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12 JORNAL DA UNICAMP Campinas, 31 de agosto a 7 de setembro de 2009

Sobre afeto e
limites
LUIZ SUGIMOTO uma extensão da mãe, visto que não

C
sugimoto@reitoria.unicamp.br tem noção do ser individual. Como
medir as consequências em um bebê
omo enfrentar o desafio que é colocado na creche logo aos
de educar crianças e dois ou três meses?”.
adolescentes no mun- O pediatra toma conhecimento
do de hoje, transmitir de casos surpreendentes dentro das
valores morais e con- creches, como da mãe que trazia a
tribuir para o desenvolvimento da
personalidade de cada um, sem au- Livro aborda crescimento e desenvolvimento criança às 7 da manhã e avisava que
a pegaria às 7 de noite “de banho

na infância e na adolescência
toritarismo? Este é o tema central do tomado, pijama e, se possível, já
livro “Cuidado, afeto e limites: uma dormindo”. Ou da proprietária de
combinação possível”, do médico uma creche que oferecia o serviço de
pediatra José Martins Filho e do Ilustração: Omaga pernoite, caso a mãe precisasse via-
psicólogo clínico e psicoterapeuta jar. “É como deixar o cachorrinho no
Ivan Roberto Capelatto. A publica- veterinário, que se encarrega apenas
ção, da Editora Papirus, acaba de de dar água e comida ao animal”.
ser lançada. No livro, os autores discutem
Martins Filho, professor da Uni- como esta falta de tempo e de em-
camp, e Capelatto, também acadê- penho dos pais também com os
mico, vêm se encontrando com fre- adolescentes influencia no aumento
quência em debates promovidos em da violência social, com desrespeito
universidades, escolas e congressos. ao idoso, ao professor, à autoridade.
Foi da Papirus a proposta de registrar A título de ilustração, Martins Filho
em compêndio as ideias e relatos das lembra a rumorosa notícia sobre
experiências profissionais de ambos cinco jovens de classe média que
sobre o crescimento e desenvolvi- espancaram uma empregada do-
mento na infância e na adolescência. méstica no Rio de Janeiro, roubando
O livro é todo escrito no formato de dela 50 reais. “Eram jovens sem pai
um debate – ou de um diálogo, diante nem mãe, já que estes não tinham
da afinidade de pontos de vista – a ideia de onde os filhos estavam e o
exemplo do trecho que lemos logo que faziam. São jovens sem limites,
de início: sem noção de cidadania. O jovem
deve, sim, ter liberdade e se tornar
Ivan Capelatto – O que independente, mas o que vemos
é ser pai e ser mãe, hoje? é um abandono, a terceirização
Infelizmente, não sabe- do cuidado com o filho”.
mos mais ao certo, a
cultura já não nos Estado de risco
dá essa referência. Co-autor de “Cui-
Não crescemos mais dado, afeto e li-
aprendendo o que carac- mites”, o psicote-
teriza essas funções sociais rapeuta e professor
– estamos fora, longe. Também j á Ivan Roberto Capelatto
não temos clara a noção de cuida- atende a crianças e ado-
do: de quem é a responsabilidade lescentes que estão nas duas
pelos cuidados com os pequenos? pontas do chamado estado de
Do pai? Da mãe? Da professora? risco: aqueles em profundo so-
Perdeu-se o conceito de cuidador frimento mental e com depressão
atrelado aos papéis de pai e mãe. em andamento – alguns com sinais
Às vezes, a babá tem mais a noção psicóticos ou sinais evidentes de
do que seja cuidado do que o pai e drogadição ou desconforto com a
a mãe; e, por isso, acaba ocupando estima; e, na outra ponta, com os
o papel materno. “lúcidos”, aqueles bem cuidados e
de pais presentes. “Os últimos, por
José Martins Filho – Porque estarem bem psiquicamente, não en-
ninguém mais ouve o pai, a mãe, contram uma ‘tribo’ para se relacio-
o avô, a avó, a tia... Esses valores nar e se sentem sozinhos, menores,
familiares estão se diluindo, as fa- rejeitados”.
mílias se tornaram muito celulares. Capelatto é incisivo ao falar
Fotos: Antoninho Perri
Dessa forma, quem acaba assumin- de um dos temas centrais do livro,
do a discussão sobre o problema das referente aos problemas emocionais
relações familiares, quem cria um QUEM SÃO OS AUTORES e comportamentais que crianças e
vínculo para que o assunto possa ser adolescentes apresentam em função
levantado e discutido é, principal- das recentes mudanças nas relações
mente, o profissional que vai atender familiares. “O filho que não vive
a criança. Daí a importância do que José Martins Filho Ivan Capelatto sob limites colocados por pais ou
é médico pediatra e é psicoterapeuta de
estamos discutindo aqui. cuidadores pode se sentir ‘dono do
professor titular aposentado crianças, adolescentes
e famílias, e mestre em
mundo’, um ser narcísico, sem a ca-
da Faculdade de Ciências
Assim, através de uma linguagem Médicas (FCM), da qual psicologia clínica pela pacidade de resistência às frustrações
informal e atraente ao pai, mãe, foi diretor. Vice-reitor da PUC de Campinas. Foi que a vida traz. E, sem resistir às
parente ou outros leitores leigos, Unicamp de 1990 a 94, professor convidado perdas, pode adoecer, se machucar
mas com conteúdo suficiente para assumiu a Reitoria na dos cursos de terapia ou machucar outras pessoas”.
desafiar professores e especialistas à gestão seguinte (94-98). familiar do The Milton Segundo o psicoterapeuta, a pri-
reflexão, os autores abordam quase Segue atuando como pesquisador e orientador de H. Erickson Foundation (Arizona, EUA) e de pós- meira recomendação para contornar
duas dezenas de temas, conforme mestrandos e doutorandos em “Saúde da criança e do graduação da Faculdade de Medicina da PUC de esses problemas é a orientação aos
o sumário: A sociedade e o hedo- adolescente” do Centro de Investigação em Pediatria Curitiba. Ex-professor do Núcleo de Terapia Familiar de pais, cuidadores e professores – a que
nismo. A figura da babá. O vínculo (Ciped). Além dos livros dirigidos a leigos, é autor vários Londrina e de medicina da família da FCM da Unicamp. o livro se propõe – e, se necessário,
e a autonomia. Criança normal dá livros científicos e de dezenas de trabalhos publicados Colaborador da Unesco no Projeto de Vida com Apoio oferecer assistência psicoterapêutica
trabalho. Como lidar com os limites. em revistas nacionais e internacionais. É âncora do do Estado de São Paulo e fundador do Centro de à criança ou adolescente. “É impor-
A geração que estamos criando. Pais: programa “Conexão Brasil”, da TV Século 21. Atendimento à Criança Leucêmica do Hospital Boldrini tante lembrar que a sociedade está
amigos dos filhos? Sexo, drogas e de Campinas. vivendo sob a filosofia do hedonis-
diálogo. O dever de cuidar é dos pais. mo, da busca do prazer a qualquer
A família na origem do problema. custo. Os bares não fecham mais, as
As falhas do sistema de saúde. A A saúde da criança está integrada às pelo trabalho e problemas de toda miliar torna-se complicada quando os baladas são diárias, não há limites
adolescência prolongada. Quando a relações familiares e ao aprendizado ordem. Sobra pouco tempo para pais deixam de assumir o papel fun- claros para o uso e o abuso de álcool
pessoa adoece. Quando a sociedade escolar. Portanto, a atuação do pe- educar”. damental de demonstrar que a criança e drogas”.
adoece. A adoção. A mente no co- diatra vai muito além de observar se Na opinião do pediatra, a terceiri- é querida dando-lhe afeto, mas ao Ivan Capelatto é autor de “Diá-
mando do corpo. A responsabilidade nasceu um novo dente ou de receitar zação do papel de pais é a tendência mesmo tempo de educar, orientar e logos sobre afetividade” (Papirus,
da educação. Quem precisa de ajuda: remédios para febre e diarréia”. nas famílias desses tempos moder- estabelecer limites. “Vejo filhos de 2007) e “Prepare as crianças para
os pais ou os filhos? José Martins Filho afirma que este nos, em que as crianças estão sendo 5 anos de idade que já tiveram três o mundo” (Editora Unicef, 2006),
é seu oitavo livro na mesma linha e cuidadas e educadas por pessoas que ou quatro babás – são demitidas pela e co-autor de “As dimensões do
Último dos clínicos representa uma continuidade do ante- não as geraram. “Saindo às sete da mãe ciumenta da afeição das crianças amor” (Editora da Unicamp, 1993) e
Por que um pediatra está preocu- rior, “A criança terceirizada”, editado manhã e voltando às oito da noite do por elas. E, a cada babá, as crianças “Psicoterapia breve no atendimento
pado com tudo isso? Martins Filho também pela Papirus em 2007 e que trabalho, pai e mãe têm que colocar buscam um novo vínculo para se da criança” (Editora Pontes, 2004).
responde que, na sua visão, o pediatra ficou na lista dos dez melhores do os filhos muito cedo na escola ou sentirem amadas, pois necessitam de Sobre o livro escrito juntamente com
é o último dos clínicos gerais. “É o Jabuti – prêmio que o autor ganhou conseguir quem cuide deles; quando um adulto protetor”. o professor José Martins Filho, ele
único médico que ainda se preocupa em 1996 com “Lidando com crian- voltam, cansados, não têm disposição Nesse aspecto, Martins Filho re- define como um “palavrório” clíni-
com a alimentação, a vacina e a escola ças, conversando com os pais”. “São para colocar ordem na casa, permitin- vela seu gosto por um autor inglês, o co-científico entre dois profissionais
da criança; se ela está dormindo bem livros que se seguem, depois que me do tudo às crianças em troca de não pediatra e psicanalista Donald Winni- que lidam com as mesmas pessoas e
ou se sofre de terror noturno; se as dei conta da importância de rever as ouvir problemas e choros”. cott, que considera essencial este vín- problemas. “É um livro que chamo
relações com o pai e a mãe são boas. questões familiares e, principalmen- culo entre mãe e filho principalmente de científico-popular, o tipo de obra
E, se for o caso, vai encaminhá-la a te, a problemática educacional neste Afeto e limites no primeiro ano de vida. “Para Win- que gosto, pois atinge a base e o topo
um especialista, como o psicólogo. mundo de pais e mães assoberbados O autor observa que a relação fa- nicott, um bebê não existe sozinho; é da cadeia intelectual”.

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