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JORGE AMADO E O

BILDUNGSROMAN
PROLETÁRIO

Eduardo de Assis Duarte

N o momento em que ainda se comemoram os oitenta anos de


Jorge Amado, gostaria de abordar não o romancista consagrado de
Gabriela, Dona Flor ou Quincas Berro D 'Água, objeto contínuo de
estudos tão consistentes quanto diversificados. O escritor apreciado
por milhões de leitores em todo o mundo ostenta em sua recepção
crítica um considerável acervo de pesquisas, teses e ensaios, porém
quase todos centrados nas obras da maturidade. Já os primeiros livros,
produzidos sob o impacto de importantes transformações históricas
no Brasil e no mundo, dão a impressão de estarem envoltos numa
certa cortina de silêncio por parte da crítica, talvez por exporem em
demasia o ardor militante que os atravessa.
Sensível às demandas de seu tempo, durante mais de duas
décadas Jorge Amado levou uma vida entranhada com a política e
marcada fortemente pelos laços com a esquerda. Hoje, todavia, ele
completa oitenta anos tendo assistido à Glasnost, à Perestroika e ao
desmoronamento do "socialismo real": caiu o muro de Berlim,
varreram-se os últimos resquícios da era (e dos métodos) de Stálin.
A crise do marxismo - e das próprias concepções revolucionárias -
enseja um momento privilegiado de reflexão. Daí julgarmos propício
voltar os olhos para as obras primeiras e tentar resgatar os escritos
do jovem que abraçou a utopia e ousou, como tantos de sua geração,
romper com a arte "neutra" e intransitiva, para fazer do romance
uma arma política.
158 - Rcv. Brasil. Lit. Comparada, nº 2
Nestes casos, o requisito básico que se impõe ao crítico remete
à compreensão dos valores, do ponto de vista, enfim, do paradigma
que norteia uma opção literária desse porte. Narrativas como Suor,
Jubiabá, Capitães de areia ou Seara vermelha fundamentam-se
numa concepção de romance como discurso de representação, mas
também de intervenção na cena política. Daí a necessidade de pola-
rizar os elementos da crise social, de adotar a perspectiva dos excluÍ-
dos e de elevá-los ao centro da figuração literária. É um romance que
se defronta com os impasses de seu tempo e que desliza entre estética
e retórica para formalizar a emergência das massas no conturbado
período dos anos 30 e 40.
Este apego ao real conduz a uma literatura voltada para o
coletivo e seduzida pelo desejo de viver, interpretar e, até mesmo,
"fazer" a História. Nascido numa terra onde arte e política sempre
se amalgamaram, o romancista, desde a estréia, expõe seu fasCÍnio
pelo gesto de falar o país e de buscar sua verdadeira face. Impossível
não reconhecer aí os dotes do observador que, aos dezoito anos (já o
notou um crítico), vincula um dos aspectos mais salientes da identi-
dade nacional à grande festa popular brasileira. Ainda adolescente,
Jorge Amado escreve País do carnaval e intui uma das facetas de
nosso caráter, além de captar com certa precisão o jogo de hipocrisias
vigente nos processos de dominação incruenta.! 1. Cf. SANT' ANNA, Affon-
Outros exemplos desta capacidade de explicitar pela ficção so Romano de. Tempo brasi-
leiro, n" 74, p. 47.
certos componentes da realidade nem sempre "legíveis" no cotidia-
no - ou mesmo no discurso da historiografia oficial - encontram-se
em Jubiabá, livro que tomaremos como objeto principal destas con-
siderações. Amado se apropria da tradição do romance de aprendiza-
gem, para situá-la no nível das classes populares no Brasil dos anos
30. A trama é armada tendo como núcleo as peripécias e andanças do
protagonista, desde a infância pobre e rebelde na favela de Salvador,
até a maturidade consciente do líder proletário em que se transforma.
Jubiabá constitui-se num dos pontos altos da linhagem do
"romance proletário" vigente à época, combinando o realismo da
denúncia social com uma intensa idealização do oprimido. Amado
recorre aos modelos ancestrais da narrativa para construir um perso-
nagem-síntese de uma geração que luta por elevar-se da marginali-
dade à cidadania. E então vemos surgir Antônio Balduíno, primeiro
herói negro do romance brasileiro. É este herói que inicia o livro
suando, vendendo a força do corpo jovem numa luta de box:

Foi quando o alemão voou para cima dele querendo acertar


no outro olho de Balduíno. O negro livrou o corpo com um
gesto rápido e como a mola de uma máquina que se houvesse
Jorge Amado e o Bildullgsromall-159

partido distendeu o braço bem por baixo do queixo de Ergin,


o alemão. O campeão da Europa Central descreveu uma
2. AMADO, Jorge. Jubiabá.
curva com o corpo e caiu com todo o peso. 2
Rio de Janeiro: Record, 1984,
p.16.
O fato desta cena abrir o romance confere a ela um sentido
emblemático, fundado na conjunção do trabalho manual com a luta.
Por outro lado, a rapidez com que o lutador desvia de um golpe para
desfechar outro logo em seguida, se insere na dimensão de intensa
mobilidade que o caracteriza em todo o texto. A imagem da mola é
significativa não apenas do gesto decisivo para a definição do com-
bate inicial. Ela aponta para o procedimento básico de condicionar
aos constantes deslocamentos a vitória nas lutas maiores que irão se
seguir, além de simbolizar a positividade impulsionadora do próprio
romance. A mola representa a evolução de uma vida que terá a
rebeldia como meio e a procura como fim.
A imagem da mola sintetiza ainda o enredo construído de
forma helicoidal, fruto da combinação de circularidade com lineari-
dade ascensional. Este formato de enredo pode ser facilmente com-
provado pelas relações do personagem com o espaço, sobretudo com
o espaço de origem - o Morro do Capa Negro. Em seu processo de
formação, o herói parte sempre deste ponto, para a ele voltar enrique-
cido nas experiências que lhe vão moldando a personalidade. É um
enredo simples como a linguagem que lhe dá vida, obedecendo ambos
aos princípios de um romance empenhado em atingir a um público
cada vez mais amplo.
Em lubiabá Amado abandona a prosa fragmentária experi-
mentada em Suor e opta por soluções convencionais. O texto deixa
visíveis uma série de procedimentos construtivos de grande aceitação
popular: o ritmo ágil, marcado pelas repetições; o tratamento folhe-
tinesco das peripécias e façanhas do herói; os exageros melodramá-
ticos; as coincidências; as mudanças bruscas do destino; a variedade
das ações; o maniqueísmo de situações e personagens. Ao lado disso,
as imagens arque típicas e o substrato mitológico que permeiam
diversas passagens, completam a presença no texto de uma série de
elementos oriundos da tradição romanesca.

É com este arcabouço popular/popularizado que lubiabá en-


caminha a trajetória de formação do protagonista. O livro dialoga
com a tradição do Bildungsroman - que passa por Dickens, Fielding,
Goethe, entre outros - combinando-a com o tom de elevação do
proletariado presente nas narrativas soviéticas anteriores ao realismo
socialista.
O livro de Goethe, segundo Lukács, tematiza a "reconciliação
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do homem problemático - dirigido por um ideal que para ele é
experiência vivida - com a realidade concreta e sociaL" Lembra em
seguida que esta reconciliação' 'não pode nem deve ser um simples
acomodamento", nem muito menos uma "harmonia pré-estabeleci-
da", sendo o personagem "forçado a procurá-la à custa de difíceis
combates e de penosas vagabundagens, ao mesmo tempo em que deva
estar, contudo, em condições de a alcançar."3 3. "Os anos de aprendizagem
Em Jubiabá esta integração ao todo social passa por media- de Wilhelm Meister", in:
Teoria do romance. Lisboa:
ções inexistentes na obra goetheana, a começar pela origem burguesa Presença, s/d., p. 155.
de Wilhelm, bastante diversa da quase indigência que marca a con-
dição lúmpen de Balduíno. De início, o ideal de vida expresso no
romance amadiano conflita inteiramente com a aludida reconcilia-
ção, ao propor a "liberdade" do marginal como alternativa à "es-
cravidão" das ocupações proletárias. O caráter de Balduíno vai sendo
delineado a partir de situações sociais bastante distintas das que
produziram a ascensão burguesa na Alemanha. Ele cresce tomando
ciência de uma memória familiar marcada pela tradição da rebeldia
social e de uma memória comunitária que atualiza a tradição do
cativeiro.
A aproximação entre os dois romances começa a se delinear a
partir da recusa dos protagonistas a uma integração social pacífica e
sem traumas. O" ideal malandro" aponta para a recusa dos caminhos
proletários existentes no Brasil da década de 30; da mesma forma que
o ideal artístico do jovem Wilhelm Meister para a recusa do destino
burguês que a vontade do pai lhe apontava. Os dois textos, ao serem
confrontados, expõem um jogo de semelhanças e diferenças. No
romance de formação burguês o personagem se preocupa com seu
destino individual e com a concretização plena de suas potencialida-
des. Na carta dirigida ao amigo Werner (terceiro capítulo do quinto
livro) Wilhelm deixa claros seus propósitos de ascensão social,
mostrando-se consciente das dificuldades que aí se colocavam em
4. GOETHE, Afios de apren-
função de sua origem não-aristocrática. dizaje de Guilhermo Meister,
Iibro V. In: Obras completas,
vol. 11. Madrid: Aguilar,
Ora, eu tenho uma inclinação irresistível precisamente para 1968. Para esta citação opta-
a formação harmoniosa de minha natureza, a qual o meu mos pela tradução de Marcus
nascimento recusa-me ... Eu não nego agora que o meu im- Vinicius Mazzari, direto do
original, que é parte de seu
pulso de ser uma pessoa pública, de atuar e fazer boa figura ensaio "Utopia de Formação
em um círculo mais amplo, torna-se cada dia mais irresistí- e Utopia Social nos Roman-
ces WilheimMeister Lehrjah-
vel... Você bem vê que tudo isso só é encontrável para mim re e Wilhc/m Meister
no teatro e que apenas neste elemento único eu posso movi- Wanderjahre". São Paulo:
FFLCH/USP, 1982, cópia
mentar-me e formar-me. No palco o homem formado aparece mimeografada. Os grifos são
tão bem personificado em seu brilho como nas classes aItas. 4 nossos.
Jorge Amado e o Bildungsroman -161
o texto evidencia a opção artística como alternativa para uma
formação que eleve o jovem ao mesmo patamar de reconhecimento
social desfrutado pela classe dominante. Sem abdicar de seu ideal
humanista, Wilhelm quer subir no palco como quem sobe na vida.
Esse desejo de ascensão tipicamente burguês não existe em Balduíno,
que é filho de mãe (quase) escrava e pai rebelde.
Tudo o que o personagem amadiano quer é "não ser escravo"
e essa busca de liberdade leva-o primeiro à rebeldia malandra e, em
seguida, à militância operária. Quanto a seu pai, ficamos sabendo que
Valentim foi na mocidade jagunço de Antônio Conselheiro e amante
de muitas mulheres, que bebia bastante e que morreu "debaixo de
um bonde num dia de farra grossa." A "rebeldia primitiva" do pai
(no sentido de Hobsbawm), sua vida boêmia e a morte prematura
levam o pequeno Baldo a tomá-lo como exemplo. Balduíno tem do
pai não uma memória concreta, fruto da convivência e do conheci-
mento. Para ele, o jagunço Valentim é a própria abstração da valentia,
do inconformismo e de tudo quanto há de heróico na mente infantil.
Esse paradigma de comportamento, ligado aos padrões romanescos,
irá sendo paulatinamente assumido pelo filho, que ainda cultua os
feitos de Zumbi dos Palmares e dos cangaceiros nordestinos.
Como Wilhelm, Balduíno vai se tornar uma pessoa pública,
mas em função da necessidade social e não da racionalidade que
move o personagem goetheano. Além disso, vai exibir-se em tablados
de ringue e de circo, nunca num teatro. Em vez das comédias e dramas
alemães, encenará o melodrama Os 3 sargentos; em vez da formação
letrada, terá a escola das ruas. O personagem de'Goethe evolui do
teatro para a medicina e finda sua peregrinação integrado ao avanço
econômico e social da burguesia. O personagem amadiano sai do
tablado para a estiva e termina liderando uma greve cujo referencial
é a utopia socialista, e não a "ideologia da filantropia burguesa em
5. BENJAMIN, Walter. sua formação utópica" que permeia o Wilhelm Meister. 5
"Goethe", in: Documentos Tais diferenças colocam lubiabá como estilização' 'proletá-
de cultura, documentos de
barbárie. São Paulo: Cultrix- ria" do romance de formação burguês. Balduíno se integra à realida-
Edusp, 1986, p. 59. de, mas para mudá-la "por dentro", exercendo o papel subversivo
de ajudar a romper estruturas estagnadas. Já Wilhelm assume o
tecnicismo implícito à vitória da revolução industrial, torna-se médi-
co, vai ocupar uma função valorizada na nova sociedade. Inclui-se,
portanto, no novo equilíbrio estabelecido. Enquanto isso, Balduíno
vai também assumir a ascensão de sua classe, mas ainda na fase
pré-revolucionária, basicamente voltada para o desequilíbrio da or-
dem vigente.
Assim, o bildungsroman proletário afasta-se e, mesmo, opõe-
se a seu correspondente burguês pelo encaminhamento dado ao
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desenrolar da trama. Ao contrário de Wilhelm, Balduíno não sofre o
processo de acomodação diante da vida e de reflexão sobre o passado
que marca a maturidade experiente do personagem de Goethe. Acres-
cente-se o fato de que este transita por um processo de formação
basicamente individual (apesar de todo o envolvimento com a Socie-
dade da Torre) e sai da crise para o cômodo enquadramento final.
Já Balduíno está envolvido num processo de crescimento cole-
tivo de nítida coloração épico-romanesca. Sua formação é mais polí-
tica e coletiva do que propriamente individual: é toda uma classe que
se levanta e luta por direitos mínimos de cidadania. Este fato demarca
bem as diferenças entre a ficção militante de Jorge Amado e o
bildungsroman burguês de Goethe. Aqui a formação da consciência
heróica sai do universo pessoal e parte para o coletivo, no rumo de
uma pré-consciência revolucionária. Entre a formação do homem
burguês e a do proletariado insurgente existe a distância que vai da
postura reflexiva - mas enquadrada - do Wilhelm maduro para a busca
permanente de uma ação desequilibradora por parte de Balduíno.
Quanto à aprendizagem no sentido restrito de formação cultu-
ral, também esta é deslocada para o universo das classes populares,
afastadas da educação convencional. O saber que por aí perpassa vem
da experiência vivida, do testemunho ou da literatura oral. Trata-se
de um saber prático, imediatista, nascido das dificuldades cotidianas
e da luta contra a opressão. A história dos bandidos é um exemplo.
Balduíno as conhece através dos causas contados nas conversas dos
adultos. Os feitos dos cangaceiros surgem hipertrofiados em meio às
histórias de assombrações ou dos tempos da escravidão:

Antônio Balduíno ouvia e aprendia. Aquela era a sua aula


proveitosa. Única escola que ele e as outras crianças do morro
possuíam. Assim se educavam e escolhiam carreiras. Carrei-
ras estranhas aquelas dos filhos do morro. E carreiras que não
exigiam muita lição: malandragem, desordeiro, ladrão. Havia
também outra carreira: a escravidão das fábricas do campo,
dos ofícios proletários.
Antônio Balduíno ouvia e aprendia. (p. 35)

Fica patente a rigidez de uma estratificação social que nega


aos oprimidos acesso a atividades que lhes possibilitem alcançar um
outro nível de vida.

Raros eram os homens livres do morro: Jubiabá, Zé Camarão.


Mas ambos eram perseguidos: um por ser macumbeiro, outro
por malandragem. Antônio Balduíno aprendeu muito nas
Jorge Amado e o Bildungsroman -163
histórias heróicas que contavam ao povo do morro e esque-
ceu a tradição de servir.
Resolveu ser do número dos livres, dos que depois teriam
ABC e modinhas e serviriam de exemplo aos homens negros,
brancos e mulatos, que se escravizavam sem remédio. (pp.
39-40, grifas nossos)

Eis a gênese do ideal de liberdade que subjaz à rebeldia do


protagonista. Por outro lado, eis a chave para o entendimento do
sentido épico do bildungsroman proletário. Aos poucos, o romance
vai conduzindo essa ânsia de liberdade no rumo da consciência de
classe, e o personagem termina tendo na greve um modo novo de
aprendizagem, em que se forma o cidadão e se compartilham expe-
riências e aspirações. De acordo com a tipologia de Mikhail Bakhtin,
J ubiabá se enquadra no modelo do romance de formação realista, em
6. Cf. BAKHTIN, Mikhail. que a evolução do personagem é indissolúvel da evolução histórica. fi
Esthétique de la création ver- O trunfo realista de Jubiabá está situado justamente nesta combina-
bale. Paris: Gallimard, 1984,
pp.225-231. ção da aprendizagem e crescimento do herói com a narração do
movimento ascensional das classes subalternas, que é o dado histó-
rico mais importante da década de 30.
E aí nos deparamos de novo com a questão da representação
histórica no romance. Em Jubiabá, Amado soube captar o momento
e as transformações vividas pelo país através de sua expressão maior.
A greve é o ponto culminante do livro (como será também em
Capitães da areia) porque as antenas do escritor estavam ligadas no
que era fundamental em termos das aspirações dos trabalhadores. A
questão institucional, a Constituinte de 1934, a própria Aliança
Nacional Libertadora e a preparação do levante de 27 de Novembro,
ausentes do livro, situavam-se muito mais entre as preocupações da
classe média politizada e das lideranças de oposição ao varguismo,
do que as das massas. Para estas, o fato novo estava na conquista dos
direitos trabalhistas e na passagem de um estágio de anomia entre
patrões e empregados, para o estágio de efetiva organização obreira
com tudo que isto implicava.
O fato de o romance não aprofundar sequer a possibilidade de
um levante armado o Brasil, no momento em que a cúpula do Partido
Comunista trabalhava nesse sentido, é duplamente revelador. De-
monstra, em primeiro lugar, que nesta fase de sua carreira Jorge
Amado não coloca os objetivos da organização como roteiro da obra
literária. A política está presente emJubiabá, mas não para favorecer
os objetivos imediatos do partido. Apesar de ser o grande sucesso
literário de 1935, o romance contribui muito pouco (ou quase nada)
para a incitação à tomada violenta do poder e este é um dado positivo
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que ainda hoje tem seu peso. lubiabá não expressa a campanha da
ANL, mas algo de significação histórica muito maior.
Por outro lado, ao se limitar a fazer com que toda a ação se
dirij a para a greve e não para o confronto armado, o romance revela
um arguto sentido de perspectiva histórica, até mesmo admirável em
se tratando de um jovem de 23 anos. E aí cabe a questão: o que é
dotado de maior concretude histórica, a gradual evolução de um
membro do lumpesinato como Balduíno ou os sonhos prestistas,
apoiados pelo PCUS, de promover uma revolução armada, de nítida
hegemonia comunista, no Brasil de 1935? Com toda idealização
romanesca, lubiabá parece estar num campo de plausibilidade maior
do que os planos dos revolucionários brasileiros daqueles tempos.
Balduíno salta da malandragem para a militância, mas vê na greve a
ponte para a conquista de uma identidade social livre dos resquícios
da escravidão.
O final do texto é revelador da nova ética e da nova postura
assumida pelo personagem. Ele, que começara o livro derrubando o
branco europeu, levanta "a mão calosa e grande" não mais para
agredir, mas para responder feliz ao aceno de outro anglo-saxônico
- o marinheiro Hans - certo de que um dia também partirá num
navio ... Risonho e vencedor, Balduíno é fiel à sua natureza e quer
ganhar o mundo para se juntar

a todos os mulatos, todos os negros, todos os brancos, que na


terra, no bojo dos navios sobre o mar, são escravos que estão
rebentando as cadeias. (p. 329)

A conquista da consciência e da solidariedade proletária con-


forma o sentido político do romance, que assimila o contexto da
chegada definitiva dos trabalhadores à equação política brasileira. Da
luta racial à luta de classes, o texto reflete (e refrata) o limiar histórico
a partir do qual a questão operária ganha nova amplitude. lubiabá é
otimista, solidário, romanesco. Politiza a malandragem ao libertar
seu herói da circularidade obsedante que marca a tradição picaresca
ou a moderna literatura do outsider, de que é exemplo BerlinAlexan-
derplatz, de Dõblin. lubiabá quer impulsionar o leitor com a mesma
mola que projeta Balduíno. Ignora a adversidade e os muitos desvãos
do próprio real para, no dizer de Antonio Candido, "erguer até às
estrelas o gesto do trabalhador brasileiro."

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