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FILOSOFIA

autor do original
RAYMUNDO DE OLIVEIRA REIS NETO

1ª edição
SESES
rio de janeiro  2016
Conselho editorial  sérgio cabral, claudia behar, roberto paes, gladis linhares

Autor do original  raymundo de oliveira reis neto 

Projeto editorial  roberto paes

Coordenação de produção  gladis linhares

Projeto gráfico  paulo vitor bastos

Diagramação  bfs media

Revisão linguística  bfs media

Revisão de conteúdo  paulo pereira serra junior

Imagem de capa  zoran ras  |  shutterstock.com

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)

R2772f Reis Neto, Raymundo de Oliveira.


Filosofia / Raymundo de Oliveira Reis Neto.
Rio de Janeiro: SESES, 2016.
144 p: il.

isbn: 978-85-5548-251-9

1. Conceito filosófico. 2. Mito. 3. Humanismo. 4. Conhecimento.


I. SESES. II. Estácio.
cdd 100

Diretoria de Ensino — Fábrica de Conhecimento


Rua do Bispo, 83, bloco F, Campus João Uchôa
Rio Comprido — Rio de Janeiro — rj — cep 20261-063
Sumário

Prefácio 7

1. O Nascimento da Filosofia 9
1.1 Mitos 13
1.2 Sabedorias 16
1.3 Filosofia 17
1.4  Milagre ou continuidade? 18
1.5  Áreas da filosofia 21
1.6  Períodos da filosofia 22
1.7  Informações complementares 24

2. Os Primeiros Filósofos 27

2.1  Os filósofos pré-socráticos 31


2.2  Heráclito e Parmênides 34

3. Sócrates e os Sofistas 41

3.1  O conceito 44
3.2  A apologia de Sócrates 48
3.3  Alguns diálogos socráticos 50
3.4  Os sofistas 50

4. Platão 57

4.1  Crítica a Sócrates 61


4.2  A metafísica dos dois mundos 63
4.3  A alegoria da caverna 65
4.4  O mito da linha dividida 68
4.5  Diálogos De Platão 70
4.5.1  Diálogos considerados autênticos 70
4.5.1.1  Diálogos Socráticos (399 a.C. morte de Sócrates): 70
4.5.1.2  Diálogos da fase intermediária
(primeira viagem à Sicília, 389-388 a.C.) 70
4.5.1.3  Diálogos da maturidade (Crítica à teoria das formas) 71
4.5.1.4  Diálogos da fase final 71
4.5.1.5  Diálogos de autenticidade discutível 71

5. O Sistema Aristotélico 75

5.1  Crítica a Platão 79


5.2  Uma nova Metafísica 80
5.3  O ser em Aristóteles 83
5.4  Distinções Aristotélicas 84
5.5 Causa 85
5.6  Deus, causa primeira de tudo que existe 86
5.7  Aristóteles e as áreas do conhecimento 87
5.8  Aristóteles e o processo do conhecimento 88

6. Da Filosofia Antiga à Filosofia Medieval 93

6.1  O Período Helenístico 96


6.2  Os Céticos 97
6.3 Epicuro 98
6.4 Estoicos 100
6.5  Filosofia medieval (Séculos IV – XVI d.C.) 101
6.6  A patrística 102
6.7  Santo Agostinho 103
6.8  A Escolástica 107
6.9  Santo Anselmo (1033-1109) 108
6.10  São Tomás de Aquino 109
6.11  A queda da Escolástica 110
7. O Humanismo Renascentista 113

7.1 Introdução 114
7.2  Grandes navegações 115
7.3  Reforma protestante 115
7.4  Ciência moderna 115
7.5 Política 117
7.6 Moderno 118
7.6.1  Renée Descartes 118
7.7  O sujeito do conhecimento e o ceticismo 118
7.8  Deus como garantia da possibilidade de conhecimento 120
7.9 Política 121
7.10  A relação entre sujeito e objeto do conhecimento 123
7.11 Realismo 123
7.12 Idealismo 124
7.13 Inatismo 125
7.14  O empirismo inglês 126
7.15  Do moderno ao pós-moderno 129
7.16  A fenomenologia 130
7.17  O existencialismo 131
7.18  A filosofia contemporânea 134
7.19  Pragmatismo e relativismo 135
7.20 Relativismo 135
7.21 Pragmatismo 137
Prefácio
Prezados(as) alunos(as),

Existe a filosofia, mas existe o filosofar. Existe a definição de filosofia, seu


conceito. Muitos já sabem que o termo filosofia vem da língua grega e significa
“amor (filo) à sabedoria (sofia)”. É importante não apenas ouvir, mas refletir
sobre o que isso quer dizer, especialmente quando escolhemos ingressar na
Universidade: o que seria esse “amor ao saber”?
Também acontece assim com a história da filosofia, pontuada pelo traba-
lho de brilhantes filósofos. Podemos nunca ter ouvido falar deles e sequer sa-
ber que existiram, mas não podemos ignorar a importância que tiveram para a
formação de nossa cultura ocidental. Especialmente considerando a escolha
feita pelo universo acadêmico.
Já o filosofar é livre e, portanto, não é necessário ser filósofo para filosofar.
Um exemplo disso são as crianças. Elas aprendem coisas incríveis, como domi-
nar uma caneta e fazer um quebra-cabeça com blocos. Isso é impressionante,
sem dúvida, pois revela a inteligência do animal humano, sua capacidade de
pensar e aprender. Mas isso não é filosofar.
No entanto, as crianças também filosofam, exatamente porque se espantam
com o mundo. Por exemplo, “de onde vêm os bebês?” é uma pergunta filosófica
fundamental das crianças, que ouvem com descrença as explicações dos pais
sobre isso, mesmo quando são tecnicamente corretas e acompanhadas de ilus-
trações. A criança olha com espanto e admiração para o mundo em seu entorno
como se perguntasse “afinal, o que significa tudo isso?”; livre de preconceitos,
ela quer saber e, assim, pergunta, observa, pensa.
Afirmar que as crianças filosofam equivale a afirmar que todos nós filosofa-
mos, que essa é uma atividade espontânea da alma humana. É certo que alguns
cuidam de cultivar essa atividade e, a partir de certo ponto, podem até mesmo
se tornar filósofos. Mas todos nós podemos filosofar. Essa é uma capacidade in-
trínseca às capacidades humanas, embora se possa desenvolvê-la pouco, tanto
quanto alguém pode não desenvolver a habilidade de correr, com a qual nas-
ce equipado.
Nossa melhor expectativa seria de que este livro didático pudesse ser lido
como um convite a encontrar o filosofar que existe em cada um. Além disso,
oferecemos algumas direções para que os alunos possam guiar-se no estudo

7
que deverá fazer também junto a textos e livros indicados na bibliografia básica
e complementar da disciplina.
Introduziremos o aluno no estudo da filosofia. Para isso, será necessário
mostrar o contexto em que isso ocorre, o que inclui não apenas onde e quando,
mas também algumas circunstâncias socioculturais da época.
Será igualmente necessário destacar a especificidade da filosofia em rela-
ção às antigas sabedorias que já existiam na época. Junto com isso apresenta-
remos o conceito de mito, importante para marcar os limites do conhecimento
filosófico e de sua especificidade.
Ao final, apresentaremos em resumo as diferentes áreas da filosofia e seus
diferentes períodos, desde seu início até os dias de hoje.

Bons estudos!
1
O Nascimento da
Filosofia
Nesse capítulo inicial estaremos conversando sobre o conceito de filosofia e
sobre o contexto em que a filosofia surge. Afinal porque se diz que a filosofia
surgiu na Grécia, século VII a.C.? Os homens não filosofavam antes? Não expli-
cavam o que existia à sua volta? Claro que sim. Havia sabedorias muito elabora-
das já bem antes do nascimento da filosofia.
Contudo, admite-se que o que surgiu na Grécia naquele momento histórico
foi diferente. Uma nova maneira de inquirir o mundo e, principalmente, uma
nova maneira de responder.
Assim, para apresentar a filosofia será necessário falar não apenas do que
ela é, mas também do que ela não é. Tecnicamente falando, a filosofia difere de
outras sabedorias porque pretende que o conhecimento que produz é adquiri-
do pelo exercício da razão. Já as sabedorias anteriores à filosofia tinham outra
característica. Por mais que constituíssem por vezes sistemas sofisticados de
explicação do Universo, de tudo que há nele e do lugar do ser humano nele,
suas explicações eram pontilhadas pela tradição mitopoética. Será importante
mostrar nesse capítulo porque devemos considerar a filosofia algo novo em re-
lação aos saberes que já existiam antes.
A filosofia produz conhecimento. Nem sempre se trata o termo conheci-
mento como sinônimo de saber. Sabemos muitas coisas, sempre; o homem do
senso comum, mesmo analfabeto, sabe muitas coisas. Ele pensa e soluciona
problemas práticos que a todo o momento invadem sua vida demandando so-
lução. Porém é frequente que se reserve o termo conhecimento para aquilo que
é produzido pela filosofia e pela ciência, que não são a mesma coisa, conforme
veremos ao longo de nossos capítulos.
É verdade que é possível falar em diferentes tipos de conhecimento: cien-
tífico, filosófico, do senso comum. Nesse sentido, o conhecimento vai desde
uma explicação sobre coisas bem práticas até coisas mais abstratas. Mesmo o
homem comum, não filósofo, precisa de algumas coordenadas no momento
em que tem que responder de onde veio, quem é e para onde vai. Uma visão de
mundo deve orientá-lo em sua vida prática. Como ser justo? O que cabe ao ho-
mem e à mulher? Como devemos criar os filhos? Notem que essas questões são
até bem mais importantes para a maioria de nós do que perguntas sobre coisas
tão fascinantes quanto o movimento das marés e a alternância de dia e noite.
Todas essas questões, inclusive sobre o movimento das marés, podem ser
respondidas por sabedorias não filosóficas. Doutrinas religiosas, mitos, tradi-
ções buscaram responder a essas questões, e muitas vezes o fizeram de modo

10 • capítulo 1
eficaz, pelo menos no que concerne à sua capacidade de orientar os seres hu-
manos ao longo de uma vida. Não seria necessário filosofar para isso. Mas res-
ponder a essas questões pelo uso da razão traz consequências e sobre isso fala-
remos em seguida, neste capítulo.
Antes de passarmos à próxima sessão, gostaríamos ainda de chamar aten-
ção para a ideia de que, se nem sempre somos filósofos, sempre temos o im-
pulso a filosofar. Em alguns momentos de nossas vidas, possivelmente filoso-
famos sem perceber que o fazemos. Fazemo-lo de modo tácito, não consciente,
o que já é bem diferente do que faz um filosofo “profissional”. Assim, teríamos
cumprido um ótimo papel com esse livro didático caso com ele conseguísse-
mos despertar no aluno o impulso a filosofar que já existe nele.
Uma caricatura pode fazer com que o leigo tenha uma visão do filósofo
como alguém que pensa em coisas que são muito abstratas e que tem pouco a
ver com as coisas que mais lhe interessam na vida. Mas pensar assim é errado
por algumas razões: primeiro que a cultura ocidental não seria a mesma sem a
filosofia. Mesmo que não saibamos, somos determinados por muito do que a
filosofia produziu em tempos passados e produz até hoje. E não convém igno-
rar de forma ostensiva nossas raízes.
Segundo, embora possa conter um fragmento de verdade, a ideia de que o
que interessa ao filósofo não interessa ao homem comum envolve uma sim-
plificação que não faz jus a muito do que a filosofia fez. A própria ideia de que
a abstração nada tem a ver com a realidade concreta é problemática, confor-
me veremos em mais detalhe ao longo do livro. Por enquanto, basta dizer que
abstrair não é um exercício específico do filósofo, mas sim algo que fazemos o
tempo todo e do que não podemos nos separar.
Finalmente poderíamos ainda considerar que um universitário não pode
ignorar a filosofia sob qualquer argumento. A Universidade é lugar de contato
com o conhecimento. Levar a sério a escolha pela Universidade implica levar a
sério a filosofia, como a disciplina que desde seu início preocupou-se com a dis-
tinção do que é verdadeiro e do que é falso e com as condições de possibilidade
do conhecimento.
Se, além disso, considerarmos que nosso livro dirige-se a alunos do curso
de psicologia, mais ainda torna-se obrigatória a introdução do aluno à filoso-
fia. São inúmeras as interfaces da psicologia com a filosofia. As ciências deri-
vam direta ou indiretamente de um tronco principal composto pela filosofia.
Em um primeiro momento, a filosofia tomou para si questões que mais tarde

capítulo 1 • 11
foram se tornando de domínio científico e não filosófico (conforme veremos
em capítulos seguintes). Mas a psicologia, pelas questões metodológicas que
desafiam toda ciência social e humana, por seu interesse nas faculdades cog-
nitivas e por seu interesse no animal humano e na existência humana, requer
ainda mais um contato pelo menos introdutório com a filosofia.
Portanto, passemos a apresentação e discussão das questões colocadas aci-
ma. Ao final, apresentaremos ainda, em resumo, as diferentes áreas da filosofia
e seus diferentes períodos, desde seu início até os dias de hoje.

OBJETIVOS
•  Introduzir o conceito de filosofia;
•  Apresentar o contexto sociocultural que possibilitou o nascimento da filosofia;
•  Definir o conceito de mito;
•  Apresentar as diferentes áreas da filosofia;
•  Apresentar os diferentes períodos da filosofia.

12 • capítulo 1
Grécia, século VII antes de Cristo. Época e lugar do nascimento da filosofia, pelo
menos assim está convencionado dizer em todas as introduções à filosofia de
que tenho notícia. Considerem então a questão colocada por Marilena Chauí
(2003): continuidade ou milagre? O que determina que a filosofia tenha nas-
cido nesse momento e lugar, mesmo que com alguma defasagem de tempo?
Considerando que esteja correto dizer que foi um nascimento, então se tra-
ta de algo novo, um evento na história humana que se supõe introduzir um cor-
te. Mas o que existia antes desse nascimento? Antes disso não se filosofava? O
que é filosofar? O que é a filosofia?
Os primeiros filósofos eram basicamente cosmólogos. Seu interesse prin-
cipal tangenciava o dos físicos de hoje em dia e dirigia-se a revelar uma origem
natural do universo, assim como as leis naturais que subjaziam a seu funciona-
mento. Buscavam a Arqué, substância primeira de onde tudo que existe teria
derivado.
Poderiam ter aceitado as explicações herdadas pelas tradições de então, car-
regadas de mitos, verdades reveladas - que não existem para serem explicadas,
mas sim aceitas, sustentadas e transmitidas. Poderiam, e então não existiria a
filosofia, dependente de nossa capacidade de estranharmos e nos admirarmos
com o que se passa em nosso entorno. Mas não foi assim que ocorreu.

1.1  Mitos
Portanto o homem já formulava explicações sobre o que havia em seu entorno
antes da filosofia nascer. Já existiam culturas, com produções intelectuais es-
petaculares. Sabedorias hindu e chinesa, para mencionar dois exemplos. Certa-
mente em todas as culturas existentes até então existiam maneiras do homem
explicar o que se passava à sua volta. Explicações compartilhadas, tradições
transmitidas de geração em geração.
Pensem no fenômeno do nascimento de uma criança. Quando se começou
a saber que a fecundação do óvulo pelo espermatozóide por ocasião da cópula
era responsável por tal “milagre”? Pensem ainda na necessidade sempre pre-
mente de respondermos às três perguntas sobre de onde viemos, quem somos
e para onde vamos, que envolvem nascimento, sexo e morte?
Nas sociedades anteriores e contemporâneas ao nascimento da filoso-
fia, os mitos tinham papel fundamental na organização das trocas sociais. O

capítulo 1 • 13
procedimento inaugurado pela filosofia rompe em larga medida com isso.
Conhecer pela razão exige que se fundamente o conhecimento com argumen-
tos, o que não é possível diante do mito.
Frequentemente o termo ‘mito’ é utilizado em sentido quase pejorativo,
como sendo uma narração fabulosa e fictícia, contrária à verdade. Mas essa é
uma concepção limitada. O mito traz uma possibilidade de entendimento so-
bre a existência e origem do universo e das coisas que nele existem. Enquanto
narrativa, transmite mensagens metafóricas, retratando o universo, a socieda-
de, seus paradoxos e contradições, dúvidas e valores. Assim, possui uma eficá-
cia na organização da vida social.
Chauí (2003) observa que os mitos trazem muito frequentemente respostas
sobre as origens. De onde veio o Universo? Como ele surgiu? Por que existe al-
guma coisa e não o nada? Por que o homem pensa e o que deve fazer com essa
sua capacidade? Mitos cuja origem e autoria se perderam no tempo situam, na
origem, relações sexuais e / ou lutas entre divindades, ou entidades extraordi-
nárias (Chauí, ibid).
De modo semelhante, Lalande (1999) define mito como uma “Narração fa-
bulosa, de origem popular e não refletida, na qual agentes impessoais, a maior
parte das vezes forças da natureza, são representados sob forma de seres pes-
soais, cujas ações ou aventuras têm um sentido simbólico (1999, p. 688).
Se de fato as narrativas míticas podem ser fabulosas, isso não quer dizer
que não cumpram função organizadora e mesmo que não toquem na verda-
de. Pensemos no exemplo da Bíblia. Mesmo que não sejamos religiosos, en-
contramos nesse Livro narrativas que muitas vezes parecem tocar em verda-
des universais.
Da mesma forma, encontramos em poetas elementos míticos que falam de
verdades humanas profundas. Tomemos como exemplo um mito bastante co-
nhecido, aquele de Édipo, do poeta grego Sófocles: conta que Édipo, aquele que
casa com a mãe após matar o pai, cumpriu assim o destino que lhe havia sido
comunicado pelo oráculo. Interessante, contudo, que o tenha cumprido sem
saber e até exatamente por fugir disso.
Ao saber do oráculo seu destino (matar o pai e casar com a mãe), Édipo, que
vive com aqueles que acredita serem seus pais, fica horrorizado e foge para lon-
ge, de modo que isso jamais aconteça. Assim fazendo, em seu caminho envolve-
se em uma briga com um homem poderoso e o mata. Esse homem era Laio, Rei

14 • capítulo 1
de Tebas e seu verdadeiro pai. Continua sua jornada até que na cidade encontra
uma linda rainha e com ela se casa. Era Jocasta, sua mãe.
Laio, pai de Édipo e rei de Tebas, havia, também, sido avisado pelo oráculo
que seria morto por seu filho. Desse modo, assim que seu filho nasce ordena a
um soldado que o mate. Este, apiedado da criança, não consegue cumprir a or-
dem e colocá-la a descer um rio dentro de um cesto, torcendo para que alguém
pudesse pega-la e cria-la anonimamente. Um casal de camponeses assim o faz
e Édipo é criado por eles como se fosse filho.
Tal passagem do mito, certamente fantástica e sem realidade factual his-
tórica, fala, entretanto, de uma verdade universal: somos desde muito cedo
marcados pela influência de nossos pais, o que interferirá, sem que o saiba-
mos, nos mais diversos espaços e momentos de nossas vidas. De certo modo,
essas marcas paternas nos traçam um destino, o qual cumpriremos sem ter
dele consciência.
No mesmo mito grego, Édipo, em outro momento, defronta-se com a
esfinge, monstro que devorava todos aqueles que não conseguiam respon-
der aos enigmas que propunha. Diante da esfinge, ouve Édipo do monstro o
seguinte enigma: qual animal que de manhã anda em quatro patas, à tarde
anda em duas e à noite anda em três? Édipo então responde: o homem, que
quando criança engatinha, quando adulto anda e quando velho apoia-se em
uma bengala.
Notem que nesse fragmento do mito, outra verdade universal é transmitida:
temos que, ao longo da vida e para não sermos devorados por ela, responder a
essas três questões fundamentais sobre passado, presente e futuro. O que faze-
mos, cada um de nós, com uma mitologia individual.
No exemplo do mito de Édipo, verdades são transmitidas, porém à maneira
do mito e não ao modo filosófico. No momento em que nasce a filosofia, há
também uma transição desse tipo de transmissão do saber que se faz pela via
mito-poética, para a via filosófica. Isso se conecta também ao fato de na Grécia
ter surgido, nesse mesmo momento histórico, a democracia, com sua exigência
de argumentação.
Hoje em dia, em nossa cultura, a ciência procura dar uma palavra de autori-
dade em assuntos que antes eram abordados através de mitos. Porém é possível
especular se a ciência seria pelo menos parte da mitologia de nosso tempo, ou
se se ela pode fazer com que os mitos desapareçam. Contra essa hipótese po-
demos evocar a inequívoca importância das religiões hoje no mundo, em plena

capítulo 1 • 15
era da ciência. Isso sugere que, por mais impregnados que estejamos pelos
avanços da ciência, há áreas de nossa existência que não podem prescindir da
função dos mitos.
Por outro lado, alguns cientistas admitem que algumas de suas especula-
ções teóricas são como que mitologias, que poderão um dia vir a ser confirma-
das por suas verificações empíricas e/ou matemático-teóricas. Entretanto uma
característica fundamental dos mitos antigos é a de não poderem ser questio-
nados, o que não acontece nem com as teorias científicas ainda não confir-
madas, nem como as proposições fundamentais da filosofia1. Essas visam o
rigor, visam a verdade, porém ao contrário dos mitos podem ser questionadas.
Se faltarem argumentos e provas em contrário, elas continuam vivas; quando
provadas falsas ou superadas por outras mais eficientes, entram para o museu
da história.
Poderíamos, por exemplo, considerar a teoria científica atual sobre o
big-bang na origem do universo como um quase mito. Todavia o fato dessa
teoria se prestar à verificação científica, à discussão com novas hipóteses, à
necessidade de responder pela coerência interna de suas formulações, marca
uma diferença fundamental em relação aos mitos da antiguidade.
Importante também notar que filósofos recorreram em alguns momentos
aos mitos para transmitir sua filosofia. Veremos como o filósofo Platão lançou
mão de mitos para explicar, por exemplo, o que é conhecer. Porém o lugar do
mito em sua filosofia não será jamais um lugar central e sua finalidade é, sobre-
tudo, didática, voltada não para a fundamentação de suas teses, mas sim para
uma apresentação mais acessível.

1.2  Sabedorias
Piso descalço na areia quente e queimo meus pés. Na próxima vez evito o
mesmo caminho ou uso um chinelo. Aí está um fragmento de sabedoria. Todos
sabemos muitas coisas e podemos viver noventa anos apoiados por esses sa-
beres. Sabedorias práticas, ou mesmo teóricas. Práticas quando ligadas aquilo
que podemos sentir e observar - sei quando algo me provoca uma queimadura.
Teóricas quando explicam esse queimar. Contudo, essas explicações teóricas já

1  Voltaremos em capítulos seguintes à diferença entre filosofia e ciência. Por hora, basta que fique claro que não
são a mesma coisa.

16 • capítulo 1
são filosofia? Não. Para que o fossem, ou para que o sejam, deveriam ser guia-
das pela razão. Existem explicações teóricas, especulativas, que não são filosó-
ficas, nem científicas. Em algum momento se apoiam em mitos, em dogmas,
ou meramente em “pré-conceitos” (enganos que nos trazem conforto).
Por mais rica que possa ser uma sabedoria, como, por exemplo, aquelas ex-
pressas na Bíblia ou no Bhagavad-Gita (livro sagrado Hindú), elas não são filo-
sofia, ainda que possam perfeitamente servir para nos guiar em uma vida longa
e feliz.
Uma mitologia é uma forma de sabedoria, aliás, muito rica. A maioria de
nós já teve algum acesso à mitologia grega com seus deuses no Olimpo, mas
as mitologias estão em toda parte e até o momento de nascimento da filosofia
na Grécia, eram a regra geral e tinham importância fundamental na vida das
pessoas. Conforme dissemos, é preciso organizar o mundo em torno de nós,
mesmo que com uma mitologia, ou mesmo quando somos pessoas mais práti-
cas e avessas a especulações teóricas mais gerais. Mesmo sem saber ou pensar
no assunto, somos orientados por determinada mitologia que percorre cada
grupo cultural criando referenciais para a apreensão da realidade do mundo.
A filosofia também é uma sabedoria em certo sentido, mas dá um passo es-
petacular no caminho da humanidade ao pretender um modo de apreensão da
realidade distinto desse que se praticava até então e que até hoje ainda se prati-
ca, pois residualmente que seja, não é possível dispensar os mitos.

1.3  Filosofia
A filosofia, pelo menos quando surge, pretende produzir conhecimento através
da razão. Conforme dissemos antes, “conhecimento”, no sentido em que em-
pregamos aqui, não é sinônimo de “saber”. Dizem que somos animais racio-
nais – tese que merece qualificações. Porém os filósofos distinguem das meras
reflexões cotidianas, das sabedorias variadas, práticas ou teóricas, o conheci-
mento racional produzido pela filosofia.
O que seria então essa tal razão? Para a filosofia a razão é a faculdade que
pode nos levar aos fundamentos, aos princípios claros e distintos e às causas
primeiras. Ela pode nos revelar verdades que não podem ser questionadas, mas
por não existirem argumentos que as provem falsas, que as superem em seu
poder explicativo do tema que abordam. Ou, para evitar polêmica, ela nos leva

capítulo 1 • 17
a construir os melhores argumentos possíveis para justificar nossas pretensões
de verdade, isto é, toda e qualquer tomada de posição cognitiva, toda e qual-
quer presunção acerca do que algo é de como algo é.
Um filósofo que mereça esse nome não pode apelar a argumentos de au-
toridade: “Deus ou o Papa o disseram, então é assim que é”; ou então, “sabe-
se desde sempre que”. Nada disso. Um filósofo deve estar disposto a escutar
todos os questionamentos que lhe dirijam exigindo melhor esclarecimento
sobre o que afirma como verdade. Ele pode inclusive responder dizendo que,
tão longe quanto a razão o possa levar sobre tal tema, no momento o que pode
afirmar é isso, mantendo-se aberto a correções ulteriores e mesmo esperando
uma réplica.
A autoridade da razão deve repousar sobre a clareza dos argumentos e em
sua abertura para ceder em face de réplicas que se mostrem merecedoras de
reconhecimento. O conhecimento racional, em sentido forte, é (ou deveria ser)
uma arma contra qualquer tipo de autoritarismo. Com a razão, trata-se de aten-
der a um impulso geral em direção a construção de um discurso integralmente
legitimado e, portanto, não carente de autoridade externa para ser sustentado.
Isso era ainda mais importante no contexto grego, em que se formava um
novo universo cultural que era o da comunidade política de cidadãos na polis
(‘cidade’) que estava sempre em vias de ser lograda por meros artifícios persua-
sivos, que visavam impor a todos interesses particulares, ou mesmo em risco de
degringolar em violência em função da desarmonia de posições quanto ao que
seja o melhor para a polis.

1.4  Milagre ou continuidade?


Sobre essa pergunta, a resposta proposta por Marilena Chauí (2003) é: nem um,
nem outro. O contexto histórico da Grécia no tempo do nascimento da filoso-
fia cria condições para que o nascimento da filosofia ocorresse. Tal contexto,
por sua vez, não pode ser isolado do que se passava em culturas mais ou me-
nos vizinhas e das influências mútuas entre os povos gregos e os outros. Tais
influências não devem ser entendidas como consistindo apenas naquelas que
ocorriam exatamente naquele momento, mas sim em toda a história passada
dos povos que vieram a tornar a Grécia o que ela era naquele momento.

18 • capítulo 1
Mas é preciso reconhecer que houve um corte. A filosofia foi algo novo, que
não existia antes em outros lugares e épocas. Algumas características do con-
texto grego devem ser levadas em conta para justificar esse corte. Vejamos:

A falta de unidade da Grécia antiga – a Grécia de então não constituía um


grande império controlado por uma liderança forte. Se assim fosse, não haveria
tanta liberdade para que surgissem interrogações sobre a verdade e novas ma-
neiras de pensar. Como se sabe, onde há um controle forte desse tipo, “manda
quem pode e obedece quem tem juízo”. A fragmentação da Grécia em diferen-
tes povoados e lideranças permitia a contraposição de estilos de vida, mitos, sa-
bedorias, enfim, verdades. O que favoreceu a discussão e o aprimoramento de
argumentos. Por exemplo, a filosofia não nasceu no contexto do Império persa,
de Ciro e tampouco teve grande florescimento durante o período do posterior
Império romano.

A invenção da moeda – Trocar um boi por dois porcos é diferente de receber


uma quantidade de moedas por ele. O valor da moeda é simbólico. Imaginem
uma moeda de um real e notem que seu valor não é medido pelas propriedades
materiais dela. Seu valor depende de uma rede complexa de relações que vigora
entre um ou mais povos e não do uso direto que se pode fazer do que está sendo
trocado – como no caso de porcos por bois. Há nisso um movimento em direção
à abstração que é típico do esforço racional do filósofo. Com a moeda as trocas
não eram mais realizadas a partir de objetos concretos trocados por semelhan-
ça aparente, mas passaram a ser trocas abstratas, trocas realizadas pelo cálculo
do valor semelhante das coisas diferentes, revelando, portanto, uma nova capa-
cidade de abstração e de generalização.
Com a moeda as trocas não eram mais realizadas a partir de objetos con-
cretos trocados por semelhança aparente, mas passaram a ser trocas abstratas,
trocas realizadas pelo cálculo do valor semelhante das coisas diferentes, reve-
lando, portanto, uma nova capacidade de abstração e de generalização. Essa
capacidade de abstrair implica em não contar mais como guia os órgãos dos
sentidos. Não é a realidade captada por estes que nos orienta. Isso sempre está
presente no ser humano em algum grau, mas no conhecimento filosófico será
levado a um grau máximo.
O filósofo quer o conceito, que reúne apenas os traços mais gerais do ob-
jeto. Assim, o conceito de cadeira é o que reúne os traços - e apenas eles - que

capítulo 1 • 19
tornam possível reconhecer qualquer cadeira como cadeira, por mais diferen-
tes que sejam umas das outras. Esse conceito é puramente abstrato. Ele abstrai
de toda a particularidade dessa ou daquela cadeira, para deter-se naquilo que
faz de toda cadeira uma cadeira.

A invenção do calendário – Do mesmo modo com o calendário. Contar a


passagem do tempo pelas mudanças de lua é concreto, depende do que se vê.
Já contar a passagem do tempo pelo ritmo com que a terra gira em torno de
si mesma e em torno do sol não depende do que é imediatamente observável.
Há nisso também um caminho que vai do concreto ao abstrato. É preciso ob-
servar que naquela época ainda não havia consciência de que a terra girava em
torno do sol. Porém a invenção do calendário marca a ruptura com um modo
de contar o tempo baseado em sinais diretamente observáveis por qualquer
pessoa. O tempo era contado através das mudanças da lua, porém não mais de
modo ‘empírico’; em vez disso estabeleceram a duração de uma estação/fase
lunar e passaram a usar tal valor como medida. Sobre isso, vejam anexo ao final
do capítulo.

As navegações – Elas permitiam cada vez mais o intercâmbio entre povos


e isso evidentemente favoreceu o contato com as diferentes verdades, mitos e
saberes que organizavam as diferentes culturas. Tal como já dissemos, tal expe-
riência favorece o questionamento de antigos mitos e tradições, favorecendo o
aprimoramento e circulação de novas ideias baseadas em novos argumentos.
Voltando à pergunta de Marilena Chauí, talvez não seja exagero conceder
que, por mais que listemos essas condições históricas, restará sempre algo de
imponderável, inexplicável, no que concerne a esse nascimento da filosofia na
Grécia. Talvez aí apenas o mito pudesse dar uma palavra final. Admitir isso não
nos obriga, de forma alguma, a deixar de levar em consideração esses elemen-
tos históricos.
A filosofia se apresenta assim como o esforço para produzir conhecimento
através da razão. Tal esforço leva a uma passagem do concreto ao abstrato e
envolve uma busca dos fundamentos, dos princípios últimos e das causas pri-
meiras. Nesse sentido, utilizando uma terminologia da filosofia tradicional,
envolve distinguir o ser em si do ser em outro; aquilo que parece, daquilo que é.

20 • capítulo 1
A democracia – posta em prática pela primeira vez na Grécia, a democracia
coloca os homens livres (mulheres e escravos não eram tratados como cida-
dãos) para debater os caminhos que levam ao melhor governo da Pólis. Nesse
contexto, o poder da argumentação passa a ser muito mais valorizado, o que
abre caminho também para uma busca de fundamentação que exige que se vá
além da mera repetição de dogmas.

1.5  Áreas da filosofia


Enquanto esforço para produzir conhecimento através da razão, a filoso-
fia pode ser dividida em algumas áreas principais. Ontologia, ética e teoria
do conhecimento.

Ontologia – Trata da natureza, realidade e existência dos seres. Confunde-


se muitas vezes com a metafísica que, contudo, é mais ampla, incluindo tam-
bém a busca pelo conhecimento das causas primeiras e das verdades mais ge-
rais. A palavra forma-se a partir da língua grega, em que Ontos significa ente,
ser e logos, pensamento racional). Portanto, pensamento racional aplicado à
questão da natureza, da realidade e existência dos entes. Essa área vai desde o
interesse por o que são todas as coisas que existem, até o interesse por o que é
existir. Por exemplo, podemos perguntar-nos sobre a natureza do movimento
das marés, mas também podemos perguntar-nos simplesmente “o que é ser?”.

Ética – o campo da filosofia em que o pensamento racional aplica-se à ques-


tão do “dever” e do “Bem”, consequentemente da justiça. Tem a ver com a área
prática da vida: o que devemos fazer? Por exemplo, podemos perguntar-nos se
é possível sermos felizes sem praticar o bem, ou o que é o mal, o que são as
virtudes, todas perguntas que animaram filósofos de diferentes épocas. Outra
pergunta interessante dessa área da filosofia é: “existiriam princípios éticos vá-
lidos para todas as pessoas e culturas em todos os tempos, ou eles são sempre
relativos, quer dizer, modificam-se com os desdobramentos da história huma-
na, com suas múltiplas facetas regionais? Pode-se considerar a política uma
sub área da ética, se ela for pensada como a área que inquire os melhores meios
de governar de modo justo.

capítulo 1 • 21
Teoria do conhecimento – as perguntas que guiam a razão nessa terceira
área da filosofia dirigem-se às condições de possibilidade do conhecimento: o
que é o conhecimento? Ele é mesmo possível? Em que condições? Que cami-
nho devemos trilhar para alcançá-lo? Ele possui fundamento ontológico? Surge
a partir de nós ou dos objetos deles mesmos?)

1.6  Períodos da filosofia


Ao longo de sua história de 2600 anos, a filosofia apresentou períodos maiores
que têm sido diferenciados uns dos outros como se cada um deles tivesse um
eixo principal em torno do qual se desenrolava a produção filosófica. Assim, na
Grécia antiga a filosofia poderia ser comparada a uma criança entusiasmada
com um novo brinquedo (a razão) e encantada com sua própria capacidade de
realizar prodígios; assim ela volta-se sobre os mais diversos objetos para chegar
à sua essência (o que a coisa é). Trata-se da filosofia grega, ou antiga. Vai do sé-
culo VII A.C. até os primeiros séculos depois de Cristo.
Com a ascensão do Império romano e a progressiva diminuição da influên-
cia da cultura propriamente grega, temos a filosofia medieval, dividida em pa-
trística e escolástica. Trata-se de um longo período, somente encerrado aproxi-
madamente no século 16. O pensamento medieval tem como eixo principal a
tentativa de utilizar a filosofia grega, especialmente os dois maiores filósofos
de até então, Platão e Aristóteles, para dar sustentação aos dogmas da Igreja
Católica Apostólica Romana.
Com a filosofia moderna (século XVII ao século XX), o eixo principal já pas-
sa a ser: é possível o conhecimento? Em que condições? Momento de ceticis-
mo (descrença na possibilidade do conhecimento) inicial, devido aos mais de
dois mil anos de disputas filosóficas intensas e em que é pela primeira vez co-
locada em destaque a pergunta sobre quem conhece, ou seja, sobre o sujeito
do conhecimento.
O pensamento moderno foi marcado pelo retorno do humanismo introdu-
zido pelos sofistas ainda no período de Sócrates, mas que tinha cedido lugar a
uma perspectiva teocêntrica durante o período medieval. Se para o humanis-
mo o homem é a medida de toda as coisas, conforme frase atribuída ao sofis-
ta Protágoras de Agrigento, da época de Sócrates, na idade média a medida de

22 • capítulo 1
todas as coisas era o Deus da religião cristão. Essa perspectiva teocêntrica per-
de espaço para o retorno do humanismo no período moderno.
Portanto, se há no período moderno o ceticismo de quem já desconfia de
tantas controvérsias no terreno da filosofia, como se não houvesse chance de
mostrar quem no final das contas está com a razão, há também um entusiasmo
pela capacidade do homem, com sua razão, iluminar o caminho para o conhe-
cimento possível.
Outro traço típico do período moderno é a colocação em questão do sujeito
do conhecimento. Quem conhece e a partir de que capacidades chega ao co-
nhecimento? Essa pergunta claramente encontra-se em sintonia com aquela
outra, qual seja, sobre as condições de possibilidade do conhecimento (em que
condições o conhecimento é possível, se é que ele é possível).
Finalmente temos a filosofia contemporânea, ou pós-moderna (século XX
/ XXI), cujo traço principal seria o relativismo e pragmatismo. A filosofia deve
abandonar a busca de verdades eternas e reconhecer que cada época e cultura
têm suas verdades, historicamente construídas. Assim sendo, caberia ao filóso-
fo muito mais a criação de conceitos que contribuam para o entendimento do
mundo em nosso entorno e que seja útil aos nossos interesses.
Esse momento atual da filosofia seria fruto desse desdobramento de ideias
que ocorre dentro do campo da filosofia. O filósofo não tem o valor de seu tra-
balho medido pelas descobertas de verdades eternas e universais, mas sim por
sua capacidade de criar explicações racionais para os fenômenos que nos cer-
cam e que não podem ficar simplesmente sem explicação frente à atividade
criadora do intelecto humano.
Evidente que tal periodização se sustenta em generalizações. Em cada um
desses períodos a atividade filosófica como um todo contempla uma diversida-
de de trabalhos de seus diferentes filósofos. Em todos os períodos da filosofia
as três áreas principais mencionadas acima, a ontologia a ética e a teoria do
conhecimento, foram objeto de reflexão e de diferentes maneiras.
No próximo capítulo estaremos apresentando alguns dos primeiros filóso-
fos gregos e alguns traços definidores de sua maneira de pensar. São os cha-
mados filósofos pré-socráticos, assim reconhecidos por terem filosofado em
época anterior ao surgimento de Sócrates, filósofo que por sua tremenda im-
portância acabou tornando-se um marco temporal e lógico dentro da história
da filosofia.

capítulo 1 • 23
1.7  Informações complementares
•  A moeda grega surgiu em meados do
século VIIa.c e possuía variações de acor-
do com o valor que representava e o metal
utilizado em sua cunhagem. Historiadores
registram que já havia moedas em outros
países, como a China, datadas de mais
tempo, mas a grega parece ter sido a pri-
meira a ter valor entre vários países, im-
pulsionando o comércio internacional.
Foi também na Grécia que surgiram os primeiros sistemas bancários, embora
ainda não possuíssem este nome.
•  O calendário utilizado pelos gregos, na época, baseava-se nos ciclos lu-
nares, os meses iniciavam a cada lua nova e duravam 28 dias. Um ano possuía
12 meses lunares o que dava algo em torno de 354 dias, o que será corrigido
alguns séculos mais tarde com as futuras descobertas astrológicas.

Mapa da Grécia Antiga

24 • capítulo 1
Percebam que a Grécia não constituía uma unidade sólida, mas se estendia
por um vasto território europeu e asiático o que propiciou uma enorme influên-
cia de diferentes culturas. Por isso é difícil pensar num “modo de pensar” gre-
go, no sentido de um pensamento unificado, mas sim num pensamento múlti-
plo, reflexo de seu contexto cultural.

ATIVIDADES
01. Sabemos que mesmo com o surgimento da filosofia e, posteriormente, o avanço das
ciências, os mitos nunca deixaram de existir completamente. Reflita sobre a importância dos
mitos para uma sociedade?

02. Pesquise sobre os seguintes termos: metafísica; relativismo.

03. Procure se situar com relação à época em que surge a filosofia. Atente para a área que
correspondia à Grécia, conforme mostramos no mapa.

REFLEXÃO
Não basta dizer que filosofia significa “amor à sabedoria”, para realmente entender o que é
a filosofia. Em princípio, quando ouvimos essa definição, nossa atitude é a de quem entende
bem do que se trata. Mas então, quando alguém capaz de estranhar as coisas, como por
exemplo a criança, não cede e pergunta: “mas como assim? ”, bem, então podemos começar
a nos enrolar e perceber que não sabíamos muito sobre o que pensávamos saber.
A característica do saber racional proposto pela filosofia desde seu início, como sua
marca definidora, é a de justamente enfrentar o problema de levar a frente as perguntas
para além do ponto em que a maioria de nós, no senso comum, na vida cotidiana, paramos
de perguntar.
Diante da criança, o filósofo iria bem mais longe. Estaria preparado pelo próprio exercício
da razão a dar as melhores explicações, até o ponto em que talvez a criança fosse obrigada
a dizer, “ok, estou satisfeita”, seja por ter entendido mesmo, seja por perceber que é preciso
saber um pouco mais antes de ter a resposta para a pergunta que acabara de fazer.
Os mitos dão um ponto final às perguntas, assim como dogmas religiosos. Um dog-
ma não pode ser questionado; é aceito pela fé, por medo, ou simplesmente por alienação,
costume. Na época em que surgiu a filosofia, muitas sabedorias riquíssimas já existiam. No

capítulo 1 • 25
entanto nelas existiam inúmeros pontos de apoio em mitos e tradições sagradas. Na filosofia
propriamente dita isso não existe. O conhecimento racional é o exercício contínuo de colocar
à prova a consistência das pretensões de verdade do homem.
Como se a atividade filosófica fosse uma escavação que procurasse revelar a essência
que se encontra para além das aparências que, conforme todos sabem, enganam. Pelo me-
nos essa foi a pretensão inicial da filosofia.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
LALANDE, A. Vocabulário técnico e crítico de filosofia. SP: Martins Fontes. 1999.
MARCONDES, D. Iniciação à história da filosofia. RJ: JZE. 2008

Bibliografia complementar:
Para textos originais dos filósofos mencionados ao longo de todo esse livro didático, especialmente
Sócrates, Platão, Aristóteles e Santo Agostinho, recorrer à coleção Os Pensadores, da Abril Cultural.
Fácil de achar (até em banca de jornal) e muito confiável.

CHAUI, M. Convite à filosofia. SP: Ática. 2003


VERNANT, J. P. As Origens do Pensamento Grego. SP: DIFEL, 1981.
-----------------. Mito e Pensamento entre os Gregos. SP: Paz e Terra, 1973.

26 • capítulo 1
2
Os Primeiros
Filósofos
Nesse capítulo faremos uma breve apresentação dos principais filósofos pré-
socráticos e das principais características de sua filosofia. É importante conhe-
ce-los pois em suas discussões e investigações encontra-se, de modo embrio-
nário e pouco sistemático, muito do que depois seria trabalhado pela filosofia.
Veremos como a investigação filosófica de então se volta também especial-
mente para a busca de uma origem natural do homem e do próprio universo.
Essa explicação fazia com que os pré-socráticos se voltassem para a busca da
Arché, princípio que deveria estar presente em tudo que existe, durante todos
os momentos da existência. Apesar de errarem nas hipóteses que levantavam
para explicar a origem comum de tudo que existe, estes filósofos já mostravam
a vertente filosófica no modo como construíam as suas hipóteses.
Nossa apresentação dos pré-socráticos atende ao objetivo de introduzir re-
ferências históricas principais para as pesquisas dos alunos acerca do tema.
Pretendemos fazer isso do modo mais próximo a uma conversa, que conforme
dissemos desde o início deve funcionar como um facilitador de outras leituras
introdutórias. De todo modo não custa retomar de diversas maneiras e a partir
de diferentes referências a questão sobre o que é a filosofia.
Tendo em vista o caráter mais histórico dessa apresentação, iniciamos o ca-
pítulo com um convite a reflexão: por que estudar a filosofia e, mais especifica-
mente, qual a utilidade de estudarmos filosofia no curso de psicologia.

OBJETIVOS
•  Apresentar os filósofos pré-socráticos;
•  Apresentar as características centrais da filosofia pré-socrática;
•  Apresentar a oposição entre as escolas mobilista e monista, que tinham em Heráclito e
Parmênides respectivamente seus principais representantes.
•  Convidar o aluno de psicologia a uma reflexão sobre porquê estudar filosofia.

28 • capítulo 2
Antes de falar dos primeiros filósofos, designados como pré-socráticos, conver-
semos um pouco sobre a questão: “por que estudar filosofia? ”. Ela, no nosso
caso específico, remete a uma segunda pergunta: “Qual a relação da filosofia
com a psicologia? ”.
Dissemos que o filosofar requer a atitude de espanto e admiração da crian-
ça. De repente perceber, em meio a um mundo familiar, o estranhamento: mas
afinal, o que isso quer dizer? É como se nos “caísse a ficha” de que estamos
muito à vontade com nossos saberes, mas que na verdade não sabemos nada
tão bem assim.
Algumas crianças passam pela chamada “idade do porquê”, em que levam
seus pais à loucura perguntando pelo porquê de tudo. Geralmente em algum
momento os pais respondem: “porque é assim que é e agora vai brincar...”.
Tal resposta pode ser muito funcional e importante para desenvolvimento da
criança, mas bem poderia deixar o adulto com “uma pulga atrás da orelha”.
Muitas vezes as pessoas veem os filósofos como pessoas que pensam naqui-
lo que é desnecessário pensar. Em certo sentido estão certas, pois a verdadei-
ra filosofia não se faz por necessidade, por um cálculo de consequências, mas
pelo puro desejo de conhecer. O conhecimento aparece ao filósofo como um
fim em si mesmo e não como uma ferramenta para que alcance algo mais.
Porém em outro sentido estão redondamente enganadas. Demonstram as-
sim não ter ideia do quanto seu mundo é o que é também em função de tudo
que a filosofia vem fazendo nos últimos dois mil e mais de seiscentos anos. Por
exemplo, sem a filosofia não teríamos as ciências empíricas e sem as ciências
empíricas nós ocidentais especialmente estaríamos vivendo em outro mundo,
impossível dizer qual.
No início, filosofia não se distinguia de ciência. Havia a doxa e a Episteme,
traduzidas por opinião (aquela que todos temos pelo senso comum) e ciência
(ou conhecimento verdadeiro, pois não exatamente a mesma ciência, tal como
a entendemos hoje). Quem produzia a Episteme era a filosofia. Seu esforço era
justamente ir além da sabedoria do senso comum. Ir da opinião à verdade.
Assim os primeiros filósofos eram também um pouco físicos (principal-
mente), biólogos, psicólogos, sociólogos etc. Com o tempo, foram nascendo as
ciências empíricas (a física, a química, biologia etc). Essas ciências tiveram que
se colocar o problema do método. Essa questão sobre o método é filosófica e
não científica. As ciências têm seu objeto e os cientistas em suas respectivas

capítulo 2 • 29
áreas se põe a trabalhar para construir o conhecimento. Mas pensar qual o mé-
todo que a ciência deve seguir para ser ciência, isso é uma atividade filosófica.
Assim, com o progressivo surgimento das ciências empíricas, coube à filo-
sofia ficar com as perguntas mais gerais, aquelas que não se responde obser-
vando, e medindo, mas apenas usando minuciosamente a razão.
De modo talvez um pouco forçado, pode-se imaginar uma caricatura da di-
ferença entre o modo de proceder do cientista e o do filósofo: enquanto o pri-
meiro parte para observar o mundo, medindo, registrando e calculando minu-
ciosamente, o filósofo fecha-se confortavelmente em seu gabinete e pensa em
temas gerais. Por exemplo, enquanto o cientista examina os diferentes corpos
que existem, o filósofo pensa o que é um corpo o ou que é ter um corpo. O cien-
tista examina a composição de uma rocha através de amostras extraídas com
um martelo especial, o filósofo pensa o que é o conhecimento, se o livre arbítrio
existe, se a ideia de Deus é necessária entre várias outras.
Com relação à psicologia e sua relação com a filosofia, primeiro podemos
pensar na relação entre um jogador de futebol e musculação. Ele faz a muscu-
lação para render melhor em seu ofício. Assim, o exercício de usar a razão para
conhecer fortalece a prática de todo cientista, entre eles o psicólogo.
Por outro lado, o psicólogo, sendo cientista, deve se orientar pela filosofia
em diversos momentos de sua prática, para ter clareza quanto ao seu objeto e
refletir sobre o melhor método de estuda-lo. É a filosofia que responde à per-
gunta: o que é a psicologia? Qual deve ser o seu objeto (na psicologia, o psicó-
logo é o sujeito do conhecimento, enquanto que o objeto do conhecimento é
o que a psicologia deve estudar)? Uma pergunta fundamental que surge nes-
sa perspectiva é: o que é um sujeito? Todos nós sabemos a que nos referimos
quando usamos termos como sujeito, indivíduo, ou pessoa, no contexto da psi-
cologia científica?
Em psicologia, diferentes escolas pensam o sujeito ou indivíduo de diferen-
tes maneiras, guiado a partir de diferentes motivações e com diferentes capa-
cidades. Isso tudo não é objeto de consenso dentro da psicologia, provocando
até hoje debates que poderíamos chamar muitas vezes de filosóficos, pois não
dependem do que podemos perceber com nossos sentidos, mas sim do modo
como interpretamos ou organizamos o que estamos percebendo.
Claro que um psicólogo ou um “não filósofo” pode pôr-se a refletir sobre
essas perguntas; porém ao assim fazer, estará filosofando e não fazendo psico-
logia. No caso da psicologia essas questões se tornam especialmente agudas,

30 • capítulo 2
na medida em que se costuma reconhecer que a psicologia é um campo não
unificado, mas sim multifacetado.
Mas cabe também observar que há temas e áreas da filosofia que apresen-
tam uma interface mais evidente com a psicologia. Por exemplo, muitos temas
da ética tocam de perto assuntos abordados pelo psicólogo, uma vez que a este
muitas vezes são endereçadas questões a respeito da felicidade. Um psicólogo
clínico muitas vezes é procurado para apontar os caminhos do Bem do sujeito e
essa é uma temática essencialmente ligada à Ética como área da filosofia.
Do mesmo modo, determinadas correntes filosóficas são mais próximas à
psicologia. Por exemplo, a fenomenologia (século XIX e XX) tomou para seu
exame a consciência e o existencialismo (século XX) utilizou o método fenome-
nológico para pensar o homem em sua existência histórica concreta. Esses es-
forços filosóficos deram muitos subsídios para a psicologia enquanto ciência.
Podemos ainda mencionar a existência de tópicos em filosofia que são mui-
to importantes para algumas áreas da psicologia, como por exemplo, o livre ar-
bítrio, a mente, a relação mente e corpo. Tais tópicos podem ser enfrentados
tanto pela via filosófica quanto pela via da psicologia.
Em se tratando este de um livro didático destinado ao curso de psicologia,
permito-me aqui dizer que, por todos esses motivos, convém rever imediata-
mente qualquer traço da ideia que ainda possa existir em você aluno quanto
à inutilidade da filosofia. Se você pensa mesmo assim, reveja seu interesse
pela Universidade.
Feliz ou infelizmente, isso não quer dizer que você tenha que gostar da filo-
sofia. Mas deve reconhecer sua importância e reconhecer o que deve haver de
filosófico no trabalho de qualquer psicólogo.

2.1  Os filósofos pré-socráticos


Os primeiros filósofos eram muito próximos aos físicos. Interessavam-se pelos
fenômenos naturais, como o movimento das marés, a sucessão de dia e noi-
te, o movimento dos astros e também pela origem do universo (cosmogonia) e
pela ordem do universo (cosmologia). Os primeiros filósofos enfrentaram essas
questões racionalmente, portanto sem admitir uma origem não natural do uni-
verso. Lembrem-se que explicações mitológicas admitem afirmações que não
precisam e nem podem ser explicadas.

capítulo 2 • 31
Além de se perguntarem sobre o ser das coisas em torno deles, os filósofos
pré-socráticos interessavam-se pela Arché, ou Arqué, entendida como um prin-
cípio que deveria estar presente em todos os momentos da existência de todas
as coisas.
Os pré-socráticos são assim designados por terem pertencido à época ante-
rior ao aparecimento de Sócrates, filósofo tão importante que se tornou uma
referência lógica e cronológica na história da filosofia. . Na verdade, nem to-
dos os filósofos chamados pré-socráticos são anteriores a Sócrates. Alguns são
contemporâneos e outros são ainda posteriores. Convencionou-se chamar pré-
socráticos aqueles cujo pensamento se detêm nas questões da cosmogonia e
cosmologia (mote da filosofia estritamente pré-socrática). Sob certas perspec-
tivas filosóficas, não é incorreto dizer que tais filósofos (posteriores a Sócrates)
pertencem ao período pré-socrático, tal como Santo Agostinho pertence à ida-
de média, mesmo sendo anterior. Esses filósofos pré-socráticos logo formaram
duas escolas distintas: a jônica e a Italiana. Cada uma dessas escolas tinha ca-
racterísticas próprias. A escola Jônica se interessava pela Physis. Esse concei-
to é próximo ao conceito de natureza, porém é mais amplo do que ele. Chauí
(2003) aponta que a physis é o princípio geral, causa natural contínua e impere-
cível da existência de todos os seres e de suas transformações.
Já a escola italiana interessava-se por temas mais abstratos. Marcondes
(2008) em indica que essa orientação já anuncia uma o aparecimento de dois
campos fundamentais de exame filosófico: a metafísica e a lógica. Esta pode
ser definida como o estudo filosófico do raciocínio válido. Já a metafísica é a
área da filosofia que se interessa pelo que está além da física. Podemos dizer
para introduzir o conceito que a metafísica se ocupa daqueles temas que ape-
nas o pensamento racional (no caso da metafísica filosófica) pode chegar. Com
o surgimento e multiplicação das ciências empíricas, a metafísica tornou-se
área privilegiada da filosofia, junto com a ética e a teoria do conhecimento.
Nessa divisão entre os principais interesses das duas escolas pré-socráti-
cas, vemos começar a delinear-se uma oposição que atravessará a história da
filosofia até os dias de hoje, passando por Parmênides e Heráclito e Platão e
Aristóteles: aquela entre racionalistas e empiristas. Entre os primeiros, aqueles
que afirmam que o conhecimento vem da experiência e assim são mais volta-
dos para o mundo observável; os segundos, que afirmam que o conhecimento
vem da razão e assim interessam-se antes pelo o mundo pensável, ou seja, pelas
verdades mais gerais que podem ser estabelecidas sem o auxílio da observação,

32 • capítulo 2
apenas com uma dedução daquilo que o mundo precisa, necessariamente,
ser. Voltaremos a esse ponto nas próximas aulas, pois trata-se de uma oposi-
ção muito importante e que concerne até os dias de hoje também ao campo
da psicologia.
Costuma-se reconhecer Tales de Mileto como o primeiro filósofo. Tales é
mais conhecido por ter afirmado que a tudo vinha da água. Assim, para Tales,
a Arché era a água. Por mais que isso estivesse errado*, já era um erro marcado
pelo carimbo da filosofia. Por quê? Porque ao afirmar tal coisa, Tales buscava
uma origem comum a todas as coisas, um princípio fundador, revelando as-
sim um traço definidor da filosofia. Para os gregos de sua época, era impossível
aceitar a ideia de um Universo criado a partir do nada. Os seres tinham de ter
uma origem natural e suas tentativas caminhavam sempre no sentido de desco-
brir de onde todas as coisas vieram.

REFLEXÃO
Talvez afirmar que Tales estava errado seja, no mínimo, supor que o filósofo falava em sentido
literal e estrito. Ele propunha que a existência precisava de uma origem, de um elemento
primordial. De tudo o que ele observava na natureza a água era o que se apresentava em
comum, afinal, todos os seres vivos precisam de água para viver (além de possuírem-na em
seus corpos); se você corta um alimento, encontra ali água; se cava a terra, também a encon-
tra; a água ora é sólida, ora líquida, ora gasosa, condizente com o caráter fluido da natureza.
E apesar de tudo isso, Tales lançou a questão adiante, propondo que seus seguidores suge-
rissem outras origens (oferecendo argumentos para tal, certamente). Além disso, “sabemos”
hoje, através da ciência, que os primeiros micro-organismos vivos surgiram da água, o corpo
humano é composto por cerca de 65% de água e cerca de 71% da superfície de nosso
planeta também o é. Foi um ótimo erro, não?

Outros pré-socráticos também se dedicaram a essa busca, afirmando ora


que tudo vinha do ar (Anaxímenes), ora dos quatro elementos (Empédocles
de Agrigento), ora do número (Pitágoras, exemplo de representante da escola
Italiana, mais voltada para o abstrato). Em todos eles pode-se notar esse traço
distintivo do esforço filosófico, qual seja a de procurar pelos fundamentos, pelo
princípio original, pelo ser em si e não pelo ser em outro. Além disso, o esforço
racional exclui o apoio em dogmas e daí a busca de uma origem natural para

capítulo 2 • 33
o homem e o universo; portanto, a resposta de Tales, por exemplo, não tem o
valor de dogma. Tratamos aqui dogmas m sentido mais geral, ou seja, como
verdades adquiridas por revelação e não pela razão e que não podem ser contes-
tadas. Ela pode ser questionada e constitui uma primeira tentativa de explicar a
origem de todas as coisas a partir da natureza e não em um tempo mítico habi-
tado e governado por forças sobrenaturais.

2.2  Heráclito e Parmênides


Esses dois pré-socráticos geniais formaram a primeira grande oposição entre
filósofos que representam duas tendências bem delineadas dentro da história
do pensamento humano. De um lado aparece o empirismo e de outro o racio-
nalismo. A principal disputa entre eles dava-se em torno da questão do movi-
mento. Heráclito foi o principal representante da escola mobilista, enquanto
Parmênides da escola monista. Para o primeiro, tudo se move e se transforma
o tempo todo; para o segundo, o ser é uno, eterno, imutável, imóvel, infinito.
Para Heráclito (535-475 A.C.), tudo está em movimento o tempo todo. Por
isso, o ser é devir1 , quer dizer, o ser transforma-se permanentemente. Uma frase
famosa associada a Heráclito é: “ninguém se banha no mesmo rio duas vezes”.
Percebam que, de fato, se nos atemos a olhar para o mundo que nos cerca,
tudo está em movimento. Porém, pensemos a seguinte questão: somos os mes-
mos que éramos há quinze anos atrás, ou somos outra pessoa?
Possivelmente a maioria responderia, depois de breve reflexão: somos e não
somos. Temos uma essência? O que significa essência? Essência é o que faz
com que a coisa seja o que é. Se temos uma essência, então somos os mesmos
ao longo de toda a nossa vida; se não temos uma essência, ou se somos puro
devir, então não somos os mesmos que éramos há quinze anos atrás.
Por outro lado, aceitamos que todos os cavalos são diferentes, mas, como
são todos cavalos, são uma coisa só. Então tendemos a dizer: são e não são a
mesma coisa. No exemplo anterior, um mesmo objeto (nós mesmos), na medi-
da em que o tempo passa, deixa de ser o que era, transformando-se em outro,

1  Devir: termo latino que significa ‘vir a ser’, ‘tornar-se’, referindo-se ao caráter plástico dos seres e das coisas,
quase sempre usado em oposição à noção de essência ou identidade. O conceito será bastante explorado em um
outro momento da filosofia por filósofos como Nietzsche (século 19) e Deleuze (século 20).

34 • capítulo 2
ou permanece o mesmo? No segundo caso, os diferentes objetos de um mesmo
tipo são uma só coisa, ou várias?
A partir dos dois exemplos penso que seja possível notar que não é tão tola
como poderia parecer essa discussão filosófica. De um lado aqueles que privile-
giam o que muda, se transforma, o tempo todo. De outro, aqueles que buscam
a essência, o que permanece o mesmo mais além da diversidade evidente aos
nossos olhos. Vejamos a posição do principal opositor de Heráclito.
Parmênides (530-460 A.C.) se opunha a Heráclito radicalmente. Se Heráclito
ficou conhecido por afirmar que ninguém se banha duas vezes no mesmo rio,
a Parmênides é atribuída outra frase famosa: “o ser é e o não ser não é”, teria
dito o grande filósofo. Frase do tipo que costuma afastar as pessoas da filosofia
com expressão entre a repulsa e o horror. A frase de Heráclito é mais simpática:
ninguém se banha duas vezes no mesmo rio.
Mas Parmênides foi tudo menos bobo. Para ele, aceitar Heráclito levaria
ao absurdo de aceitar que “o ser não é” e “o não ser é”. Mas consideremos:
Parmênides, considerado um gênio, afirmava que o movimento não existe. Mas
será que permaneceria imóvel caso um leão se precipitasse sobre ele? Claro que
não. Então, do que estava falando ao afirmar tal coisa?
Para tornar Parmênides inteligível, compreensível, é necessário reconhecer
que ele afirmava que o ser é da ordem do pensável. Vejam que coisa curiosa. O
real é o pensável e não o concreto. O contrário do que costuma admitir o senso
comum. Mas por isso mesmo dei os exemplos acima, da pessoa e do cavalo.
Provavelmente Parmênides privilegiava, ao falar do ser, isso que chamamos de
essência. Mas ao assim fazer ele se afastava do mundo sensível, daquilo que a
experiência traz aos nossos olhos.
Muito conhecidos são os paradoxos de Zenão. Zenão de Eleia (aproxima-
damente 490-430 A.C.) foi discípulo de Parmênides e divertia aos curiosos de
sua época expondo problemas lógicos ou paradoxos, dos quais um dos mais
famosos é aquele que fala da corrida entre Aquiles e a tartaruga. Aquiles foi
um semideus grego e naturalmente para correr contra a tartaruga permitiu que
essa partisse bem à frente dele.

capítulo 2 • 35
Assim, a tartaruga partia do ponto 1, enquanto Aquiles partia do ponto 2,
conforme abaixo:

Ponto 1 _____________________________________________________
__________________________________ Ponto 2 __________________

Zenão mostrava que no momento em que Aquiles chegasse ao ponto 2, a


tartaruga necessariamente teria de ter andado um pouco e assim estaria em um
ponto 3, conforme abaixo:

Aquiles: ____________________________ Ponto 2


Tartaruga: _______________________________________ Ponto 3

Do mesmo modo, ao chegar ao chegar ao ponto 3, Aquiles necessariamente


encontraria a tartaruga em um ponto 4 e assim por diante, de tal maneira que,
sempre que Aquiles atingia o ponto em que a tartaruga estava, essa estaria al-
gum espaço, mínimo que fosse, à sua frente.
São também famosos outros paradoxos apresentados por esse discípulo de
Parmênides, que assim ocupava-se em demonstrar que a crença na existência
do movimento é uma ilusão.
Heráclito e Parmênides, conforme já colocado acima, foram respectiva-
mente os principais representantes das escolas mobilista e monista, que mar-
cam uma segunda fase do período pré-socrático. Para a primeira escola a na-
tureza é fluxo, está em constante movimento; enquanto que para o monismo
a realidade é imutável, não existe o movimento, e as mudanças que supomos
ver são mera ilusão dos sentidos. Há ainda uma terceira escola, o atomismo de
Demócrito, segundo o qual a realidade é composta por átomos e vazio, e todo o
movimento se dá na relação entre estes.
As diferenças entre essas escolas aparecerão posteriormente sistematiza-
das e desenvolvidas na filosofia de Platão e mesmo pela oposição entre Platão
e seu discípulo e crítico, Aristóteles. A obra desses dois autores traz implícita
essa discussão que percorreu o período pré-socrático, embora sofisticando-a e
dando a ela soluções e direções não contidas nos filósofos anteriores.
Porém mais além desses dois gigantes da filosofia, podemos ver na con-
trovérsia entre Heráclito e Parmênides, duas tendências distintas de enfocar a
questão do conhecimento. De um lado, a posição de Heráclito tende a valorizar

36 • capítulo 2
o empirismo, segundo o qual todo conhecimento vem da experiência. Já a po-
sição de Parmênides tende a valorizar o racionalismo, segundo o qual o conhe-
cimento vem da razão. Voltaremos a essa controvérsia ao longo dos capítulos
que se seguem.
Antes de chegar a Platão e em seguida Aristóteles, teremos que passar por
Sócrates. Todas as introduções à filosofia apresentam Sócrates antes de Platão.
Porém Só sabemos de Sócrates pelos escritos de Platão pois Sócrates não es-
creveu; sua filosofia era praticada em diálogos. Tradição oral, portanto. Dois
foram os traços da filosofia de Sócrates que o tornaram uma referência tão
fundamental na história da filosofia: sua exigência quanto ao conceito; e apro-
ximar a filosofia dos interesses humanos – ética e política. Contemporâneos
de Sócrates, os sofistas também tiveram grande importância na cultura grega
daquela época, além de poderem ser considerados os primeiros humanistas.
Além disso, constituíam uma interlocução importante de Sócrates e por isso
também serão examinados no próximo capítulo.
A filosofia grega ou antiga é comumente separada em três períodos: o pri-
meiro período seria o “cosmológico” e corresponderia ao tempo dos filósofos
pré-socráticos com seu interesse predominantemente orientado para a Physis;
o segundo seria introduzido por Sócrates e corresponderia ao período chamado
antropológico, quando a filosofia passou a interessar-se pelos assuntos huma-
nos, considerados distintos da Physis (natureza); e o terceiro período seria o pe-
ríodo sistemático, marcado pelo trabalhos de Platão e Aristóteles, que operou
uma primeira sistematização dos principais debates da filosofia.
Por sistematização, queremos indicar aqui o esforço de situar as questões
até então colocadas e procurar responde-las uma por uma, desde as menos im-
portantes às mais importantes, ou vice-versa.
Passemos agora ao estudo do período dito antropológico, com destaque
para o trabalho de Sócrates e para a contribuição dos sofistas (considerados
sábios, porém não filósofos) à cultura grega.

ATIVIDADES
01. Perceba que podemos dividir o período pré-socrático em duas fases. Uma primeira, mar-
cada pela oposição entre a escola Jônica e a Italiana, e uma segunda, marcada, principalmen-
te, pela oposição entre Mobilismo e Monismo. Pode-se dizer que a principal diferença entre
essas fases é que, enquanto a primeira se ocupava de questões referentes à Cosmogonia,

capítulo 2 • 37
a segunda se ocupava de questões mais ligadas à Cosmologia. Pesquise a diferença entre
esses dois conceitos.

02. Diferentemente do monismo de Parmênides, tanto o mobilismo quanto o atomismo


aceitavam que a realidade era dinâmica, no entanto essas duas escolas tinham diferentes
explicações para a mobilidade das coisas. Faça uma breve pesquisa e aponte as principais
diferenças entre elas.

03. Parmênides acreditava que a realidade era una e imutável, contudo sabemos que na
natureza, e mesmo em nós, as coisas se transformam e certamente o filósofo era consciente
desse fato. Como Parmênides explicava essas transformações?

04. Pesquise sobre o trabalho de outros pré-socráticos conhecidos. Conheça quais as suas
hipóteses sobre a Arché.

05. Mencionamos duas escolas quase contemporâneas da filosofia que tiveram grande im-
portância para a psicologia, a fenomenologia e o existencialismo. Procure por definições
desses termos em dicionários de filosofia, ou verbetes na INTERNET. Não são escolas pré-
socráticas mas vale a pesquisa para pensar a relação filosofia-psicologia.

REFLEXÃO
Nesse capítulo você foi primeiramente provocado a pensar nas razões para o estudo da
filosofia. Procuramos mostrar que uma noção básica dos principais problemas da filosofia é
fundamental para o futuro psicólogo, por três conjuntos de razões. Primeiro, na medida em
que nossa cultura ocidental é profundamente marcada pela filosofia; segundo, porque muitas
atividades em psicologia são dependentes de esforços filosóficos para definir nosso objeto e
método de investigação; terceiro, porque muitas escolas e temas na história da filosofia tem
muita proximidade com a psicologia, como por exemplo as escolas fenomenológica e exis-
tencialista, ou os temas do livre arbítrio, da busca pela felicidade e da relação da consciência
com os fenômenos percebidos.
Em uma segunda parte, apresentamos brevemente os filósofos pré-socráticos e as di-
ferentes escolas que naquela época se formaram, geralmente em torno de algum filósofo
principal. O estudo desses pensadores é de extrema riqueza, pois neles podemos perceber

38 • capítulo 2
em estado nascente a maioria das principais questões que animariam os filósofos nos próxi-
mos dois mil e seiscentos anos.
Destacamos entre os pré-socráticos os filósofos Heráclito e Parmênides, sugerindo que
na oposição entre os dois sobre a questão da existência do movimento podemos antever
questões principais do debate filosófico e principalmente a oposição entre as tendências
empirista e racionalista, que atravessa a história da filosofia.

capítulo 2 • 39
40 • capítulo 2
3
Sócrates e os
Sofistas
Neste capítulo iremos introduzir a filosofia do grande Sócrates. Personagem
sobre o qual pesa a dúvida da existência. No entanto, sua realidade para nós
ocidentais está acima de qualquer suspeita. Ou seja, tendo ou não andado pela
face da terra, Sócrates existe e, além disso, é imortal.
Foi ele quem pela primeira vez fez figurar entre os interesses da filosofia os
interesses tipicamente humanos, através dos temas da ética e da política. Além
disso, sua exigência de definições cada vez mais precisas sobre o ser do que
estava em discussão torna-se durante muito tempo uma referência principal
para a filosofia. Daí que tenha se tornado um marco lógico e cronológico na
história desta.
Porém o contexto social de Sócrates é também o mesmo dos sofistas.
Personagens principais na cena grega, os sofistas são nomeadamente sábios,
porém não filósofos. Contudo, não deixam de ser filósofos por faltar-lhes ca-
pacidade ou autorização, mas simplesmente por não desejarem sê-lo. Para o
sofista, ser um filósofo não é um ideal, mas, em parte pelo menos, um engano.
O sofista coloca em questão a concepção de ‘verdade’ do filósofo. Para ele
tudo que a razão pode oferecer são os melhores argumentos, nunca a verdade
que estaria para além disso. Se essa posição na época não era compatível com
os ideais do filósofo, hoje em dia, na época da filosofia contemporânea, muitos
filósofos a tomam como lema.
Por outro lado, os sofistas foram os primeiros humanistas. É de Protágoras,
tido como o maior deles, a frase: “O homem é a medida de todas as coisas”. A
verdade, é coisa humana, e não do mundo. Troquemos, pois, algumas ideias
sobre Sócrates e os sofistas.

OBJETIVOS
•  Introduzir a filosofia de Sócrates, destacando suas contribuições na direção da exigência
do conceito, através da busca de opiniões cada vez mais precisas e a importância mais do
que nunca antes conferida pela filosofia aos temas éticos e políticos;
•  Introduzir a importância dos sofistas no contexto grego, destacando neles a valorização da
retórica, seu humanismo, seu interesse pelo Nomos (ordem humana) e sua concepção de
verdade oposta à dos filósofos.

42 • capítulo 3
Estátua de Sócrates na Academia de Atenas - Grécia. Fonte: http://europaenfotos.com/
atenas/socrates-atenas-9352.jpg

Tamanha é a importância de Sócrates para a filosofia que a expressão “pré-


socráticos” utilizada para designar os primeiros filósofos marca um “antes e
depois de Sócrates”, tal como se pode encontrar a propósito de Cristo. Neste ca-
pítulo examinaremos o traço específico que dá a Sócrates esse lugar ao mesmo
tempo em que aprendendo sobre seu modo peculiar de fazer filosofia, através
de diálogos. Contudo examinaremos também o lugar dos então chamados so-
fistas, contemporâneos de Sócrates e interlocutores privilegiados de sua prá-
xis filosófica.

capítulo 3 • 43
3.1  O conceito
Existe entre filósofos e historiadores uma discussão sobre a existência real de
Sócrates como pessoa viva que andou sobre a terra. Como Sócrates jamais es-
creveu qualquer texto, praticamente só temos conhecimento dele pelos escri-
tos de Platão, supostamente seu discípulo. Assim, alguns especulam que talvez
Sócrates tenha sido uma invenção de Platão para transmitir a filosofia. Em todo
caso, tendo ou não sido uma pessoa real, Sócrates é um filósofo real e sua marca
nos acompanha até hoje.
Sócrates fez filosofia dialogando. Ele andava pelas ruas de sua época cha-
mando as pessoas para um diálogo que apresentava a seguinte estrutura:
Sócrates interrogava pessoas que se supunham sábias em determinado assun-
to e que, ao final da conversa com Sócrates, saíam achando que não sabiam o
que pensavam saber.
Para que isso? Sócrates considerava que essa era a melhor maneira de fazer
com que as pessoas passassem a se preocupar com a verdade: fazer com que
ficassem realmente curiosas e com desejo de saber.
Nesses diálogos, Sócrates desconstruía as certezas das pessoas através de
seus argumentos, sempre utilizando uma fina ironia. Os principais diálogos
socráticos de Platão – textos deixados por este e que têm em Sócrates o per-
sonagem principal – nos apresentam Sócrates conversando com personagens
emblemáticos, como um general, ou um sofista, enfim, com pessoas que su-
põem conhecer muito bem determinado assunto, que justamente será posto
em discussão por Sócrates. Com o general, ele discutirá a coragem, enquanto
que com o sofista, a retórica, com o aristocrata, a virtude, e assim por diante.
Imaginem então um general ou soldado questionado sobre o que é a co-
ragem e a firme convicção com que pronuncia sua primeira definição. Ao que
Sócrates começa com sua implacável desconstrução. Esse exercício faz com
que o interlocutor de Sócrates refine progressivamente seus argumentos diante
do que Sócrates continua sua operação até chegar ao limite em que seu oponen-
te desiste enfurecido ou atordoado.
Vejamos a seguir um fragmento do diálogo em que Sócrates fala sobre a
virtude com Mênon, um aristocrata de então. Diante da pergunta irônica de
Sócrates, sobre o significado de virtude, Mênon primeiro responde:

44 • capítulo 3
Mênon: “Mas não é difícil dizer Sócrates. Em primeiro lugar, se queres [que eu diga
qual é] a virtude do homem, é fácil [dizer] que é esta a virtude do homem: ser capaz
de gerir as coisas da cidade, e, no exercício dessa gestão, fazer bem aos amigos e
mal aos inimigos, e guardar-se ele próprio de sofrer coisa parecida. Se queres [que
diga qual é] a virtude da mulher, não é fácil explicar que é preciso a ela bem adminis-
trar a casa, cuidando da manutenção de seu interior e sendo obediente ao marido. E
diferente é a virtude da criança, tanto a de uma menina quanto a de um menino, e a
do ancião, seja a de um homem livre, seja a de um escravo. E há muitíssimas outras
virtudes, de modo que não é uma dificuldade dizer, sobre a virtude, o que ela é. Pois a
virtude é, para cada um de nós, com relação a cada trabalho, conforme cada ação e
cada idade; e da mesma forma, creio, Sócrates, também o vício”.

Diante de tal resposta, manifesta-se a ironia de Sócrates:

Sócrates: “Uma sorte bem grande parece que tive, Mênon, se, procurando uma só
virtude encontrei um enxame delas pousado junto a ti. Entretanto, Mênon, a propósito
dessa imagem, essa sobre o enxame, se, perguntando eu, sobre o ser de formas, o
que me responderias se te perguntasse: “Dizes serem elas muitas e de toda variedade
de formas e diferentes umas das outras quanto a serem elas abelhas? Ou quanto a
isso elas não diferem nada, mas sim quanto a outra coisa, por exemplo, quanto à bele-
za, ou ao tamanho, ou quanto a qualquer outra coisa desse tipo? Dize: que responde-
rias, sendo interrogado assim?
Mênon: Eu diria que, quanto a serem abelhas, não diferem nada umas das outras.
Sócrates: Se então eu dissesse depois disso: “Nesse caso, dize-me isso aqui Mênon:
aquilo quanto a que elas nada diferem, mas quanto a que são todas o mesmo, que
afirmas ser isso? ” Poderias, sem dúvida, dizer-me alguma coisa?
Mênon: Sim, poderia.
Sócrates: Ora, assim também no que se refere às virtudes. Embora sejam muitas e
assumam toda variedade de formas, têm todas um caráter único, [que é] o mesmo,
graças ao qual são virtudes, para o qual, tendo voltado seu olhar, a alguém que está
respondendo é perfeitamente possível, penso, fazer ver, a quem lhe fez a pergunta,
o que vem a ser a virtude. OU não entendes o que digo? ” (Apud, MARCONDES,
2008b)

capítulo 3 • 45
Esse fragmento permite observar dois traços fundamentais do filosofar de
Sócrates e do modo como ele pretendia trazer as pessoas para uma atividade
filosófica. Primeiro, a exigência de uma definição deve dar conta de uma multi-
plicidade. A definição de virtude diz o que há de virtuoso em cada caso de virtu-
de observada no comportamento dos homens. Sócrates não aceita que Mênon
responda através de exemplos, apontando para cada comportamento virtuoso
que se manifesta, mas sim exigindo que Mênon pense sobre o que faz com que
cada comportamento desses seja virtuoso.
Segundo, Sócrates traz a debate a virtude, tema ético, o que mostra de
que modo o filósofo traz para a filosofia interesses distantes da physis dos
pré-socráticos.
O processo de desconstrução de Sócrates deve ser relacionado à sua prover-
bial ironia e a um dito que historicamente se atribuí a ele: “Só sei que nada
sei”... teria dito o grande filósofo, para em seguida concluir “por isso sou o ho-
mem mais inteligente que existe, pois pelo menos uma coisa, eu sei”. Trata-se
da ironia de Sócrates, nesta passagem aplicada também a si mesmo.
Porém, não se trata apenas disso. Percebam que ao buscar as pessoas su-
postamente mais sábias para o diálogo, pessoas que se acreditavam sábias em
determinado assunto, Sócrates fazia como se quisesse aprender com elas; e, en-
tretanto, acabava por mostrar-lhes que não sabiam tanto quanto imaginavam.
O procedimento é essencialmente irônico.
Todavia também, no caminho inverso, era capaz de mostrar àqueles que se
criam ignorantes, que sabiam mais do que supunham saber. Dissemos acima
que o método socrático levava seus interlocutores a refinarem seus argumen-
tos. Assim, na medida em que Sócrates desconstruía um argumento de seu
interlocutor, este se esforçava por dizer melhor o que pensava. Mesmo que ao
final saísse convencido de que não sabia tão bem quanto pensava saber, ao lon-
go do diálogo com Sócrates aprendera que poderia dizer mais e melhor do que
pensava poder.
O valor filosófico desse procedimento é enorme pois, pela primeira vez na
história da filosofia aparece de modo tão sistemático a preocupação com o
conceito. Ao obrigar seus interlocutores a dizerem cada vez melhor o que pre-
tendiam, Sócrates fazia com que se aproximassem de uma melhor definição
do conceito. E o que é o conceito? Voltemos mais uma vez a este ponto. Os fi-
lósofos têm sido pródigos em dar o seguinte exemplo didático: existem mui-
tos objetos no mundo que chamamos de cadeira. Esses objetos por vezes são

46 • capítulo 3
muito diferentes entre si e, ainda assim, somos sempre capazes de reconhecê
-los como cadeiras. Dizemos então que dominamos o “conceito” de cadeira e
que é por esse domínio que fazemos sempre esse preciso conhecimento.
Teríamos assim, de um lado o conjunto de todas as cadeiras concretas que
existem na face da terra e de outro, o conceito de cadeira, justamente aquilo
que permite que fechemos o conjunto de cadeiras, que é abstrato e não con-
creto, ou seja, o conceito de cadeira. Esse conceito não é acessível aos órgãos
da sensibilidade: visão, audição, tato, paladar e olfato. É preciso contemplar o
conceito com a alma (psique), nos dirá Platão, conforme veremos. Para chegar
ao conceito, devemos pensar.
No filosofar de Sócrates, encontramos esse procedimento que nos afasta do
sensível / concreto em direção ao abstrato / conceitual. E o verdadeiro ser está
do lado do abstrato e não do concreto. Daí uma inversão em relação ao senso
comum, que afirma altivamente que o que existe é o concreto e que os filósofos
vivem no mundo da lua, ou coisas do tipo. Veremos como Platão irá radicalizar
essa perspectiva, mostrando que a filosofia deve romper com o concreto (aces-
sado pela sensibilidade) em direção à abstração (acessada pela razão).
Outro traço distintivo da filosofia de Sócrates, conforme também mencio-
nado acima a propósito do diálogo com Mênon, é o de que suas preocupações
filosóficas estão mais próximas das pessoas comuns, pois migram em direção
a Ética e à política: questões de dever, de felicidade e de como governar a cida-
de. Entre os filósofos pré-socráticos, predominou o interesse pela cosmologia
e pela natureza de modo geral. Porém houve também reflexões que tomaram
questões mais abstratas sobre o ser em si, sobre o ser como devir, se o movi-
mento existe ou não. Porém com Sócrates, a ética e a política aproximaram a
filosofia dos interesses humanos.
O método de Sócrates é conhecido como maiêutica, termo que designa
“parto” em grego. Referência à mãe do filósofo, uma parteira. Pela maiêutica
Sócrates realiza o parto das ideias, ou o parto da verdade, que em seu caso era
sempre a de que “só sei que nada sei”. A verdade sobre os temas calorosamente
discutidos por Sócrates com seus interlocutores, não aparece como positivida-
de, no sentido de uma clara definição sobre o ser de algum objeto de discus-
são. Parece antes uma verdade que jamais se alcança plenamente, que só pode
ser tocada de modo aproximado, tangencialmente. Voltemos ao diálogo entre
Sócrates e Mênon, sobre a virtude:

capítulo 3 • 47
“Sócrates: De novo Mênon, acontece-nos o mesmo. Outra vez, ao procurar uma única,
eis que encontramos, de maneira diferente de há pouco, uma pluralidade de virtudes.
Mas a única [virtude], a que perpassa todas elas, não conseguimos achar
Mênon: Com efeito Sócrates, ainda não consigo apreender, como procuras, uma virtu-
de [que é] única em todas elas...” (Ibid).

Assim, é possível pensar que em Sócrates a verdade é o que nunca se faz


presente, pelo menos inteiramente. Só podemos nos aproximar dela maxima-
mente, pelo refinamento de nossos argumentos em um diálogo. Ao final das
contas, terminamos por esbarrar com uma única verdade, que de certa forma é
negativa: “a verdade é o que eu não sei, mas nem por isso devo deixar de procu-
ra-la, ao contrário”.
Mas vale ressaltar que o termo grego para Verdade – alethea – é inicialmente
um verbo, significando algo como ‘revelar o que está oculto’ e por isso indicaria
mais a verdade como uma permanente uma busca. Isso muda com Platão, que
dará um caráter ontológico ao conceito. Talvez por conta de Platão, o que hoje
trazemos aqui sobre a verdade que nunca aparece em Sócrates deve ser relativi-
zado. Pois, se pensarmos na verdade como uma busca permanente, ela aparece
o tempo todo no modo de Sócrates filosofar.
Sócrates recebe do oráculo – intermediário entre os homens e os deuses,
algo próximo a profetas – a missão de fazer as pessoas interessarem-se pela ver-
dade; daí seu modo de viver, em extrema resignação com relação à posse de
bens materiais e fazendo do filosofar e do ensino da filosofia o seu bem maior.

3.2  A apologia de Sócrates


Sua missão acabou custando caro a Sócrates. Ou pelo menos seu destino te-
ria sido caro para nós, mas não tanto para ele, conhecido por sua capacidade
de não se alterar diante das condições mais adversas. Sócrates afirmava que
aprendera em suas discussões com Xantipa – sua esposa, tida como mulher in-
dócil e desafiadora – a manter o controle de sua alma.

48 • capítulo 3
Pois as discussões de Sócrates acabaram por irritar os poderosos da cidade,
que o levaram preso sob a acusação de corromper a juventude. De fato, Sócrates
de forma alguma recusaria que levava os jovens a pensar. E isso não agradou a
todos, custando ao filósofo sua condenação à morte, pela ingestão de cicuta.
A apologia (defesa) de Sócrates é um diálogo de Platão em que amigos de
Sócrates, em desespero, procuram convencê-lo a evadir-se da pena que lhe
foi atribuída atendendo a exigências dos mandatários da cidade colocadas
como condição para que fosse deixado vivo e em liberdade - embora em exílio.
Sócrates se recusa a fazê-lo, afirmando ser melhor morrer seguindo seus prin-
cípios do que viver em contradição com eles.

Obra “La Mort de Socrate” do pintor francês Jacques-Louis David, 1787.


Localizada no Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque. O texto é um dos inú-
meros textos de Platão, nem sempre tendo Sócrates como personagem princi-
pal (nem todos os diálogos de Platão são Socráticos) que traz a política ao de-
bate. Nele, Sócrates defende-se das acusações da cidade e, assim, dá sua visão
crítica da ordem pública.

capítulo 3 • 49
3.3  Alguns diálogos socráticos
O Banquete – durante um banquete para cidadãos eminentes de Atenas, cada
um faz sua homenagem a Eros (amor). Sócrates tem participação principal e
afirma que Eros não é um Deus, mas sim um gênio, ou seja, um ser que faz a
ligação entre os homens e os deuses.
Mênon – um nobre da Tessália, com quem Sócrates discute a virtude.
Eutífron - um esperto religioso, com quem Sócrates dialoga sobre a piedade.
Górgias – Um sofista, com quem Sócrates discute sobre a retórica, ou seja,
sobre a arte de bem falar, ou bem dizer.

3.4  Os sofistas
Reparem que o termo “Sofista” inclui parte do que aparece no termo “filoso-
fia”. A sabedoria se faz presente em ambos. Os sofistas eram sábios sobre quem
pesam duas versões, uma negativa e outra positiva. No sentido negativo, eram
acusados de colocarem sua arte da retórica a favor de qualquer causa, desde
que bem pagos. A retórica é o domínio da arte de convencer. Interrogado por
Sócrates sobre sua arte, Górgias, sofista e professor de retórica dirá:

“a retórica, por assim dizer, abrange o conjunto das artes, que ela mantém sob sua
autoridade. Vou apresentar-te uma prova eloquente disso mesmo. Por várias vezes, fui
com meu irmão ou com outros médicos à casa de doentes que se recusavam a ingerir
remédios ou a deixar amputar ou cauterizar; e, não conseguindo o médico persuadi-lo,
eu o fazia com ajuda exclusiva da arte retórica.
Digo mais: se, na cidade que quiseres, um médico e um orador se apresentarem a uma
assembleia do povo ou a qualquer outra reunião para argumentar sobre qual dos dois
deverá ser escolhido como médico, não contaria o médico com nenhuma probabilidade
para ser eleito, vindo a sê-lo, se assim o desejasse, o que soubesse falar bem. E se
a competição se desse com representantes de qualquer outra profissão, conseguiria
fazer-se eleger o orador de preferência a qualquer outro, pois não há assunto sobre
o que ele não possa discorrer com maior força de persuasão diante do público do
que qualquer profissional. Tal é a natureza e a força da arte retórica! ” (Platão, Górgias
456b-457ª. Apud: REZENDE, 2001, P.39).

50 • capítulo 3
Na versão positiva, eram reconhecidos como personagens importantes da
cena ateniense, por dominarem a norma culta da língua grega e por participa-
rem ativamente da educação dos cidadãos de Atenas.
Inicialmente o termo sofista designava aqueles que tinham a habilidade de-
senvolvida em alguma área, como por exemplo, na condução de um barco, na
construção de casas etc. Com o tempo o termo passou a designar sábios, porém
mais no sentido que conhecemos hoje, indicando capacidade intelectual, com-
binando inteligência e informação, mas principalmente a arte do bem dizer,
do falar com destreza e beleza. Este sentido do termo sofista liga-se à descon-
fiança com que podem ser vistos os sábios, por sua capacidade de falar bem
e convencer.
Do ponto de vista dos filósofos, a atitude dos sofistas é reprovável, por estes
verem mérito em poder convencer os outros sobre assuntos os mais variados,
como se não fosse em nada necessário para convencer alguém estar do lado
da razão.
Ora, dizer que não é preciso ter razão para convencer alguém é entrar em
choque com o ideal de produzir conhecimento racional. É como dizer a um filó-
sofo que um bom retórico vale mais do que um filósofo cheio de razão!
O problema que essa posição dos sofistas traz, entretanto, pode ser visto
sob uma diferente ótica. Os sofistas estariam na verdade afirmando que a pró-
pria verdade é sempre uma questão de melhor argumentação1. Ou seja, não
existiria critério para diferenciar uma verdade racional de uma verdade bem
argumentada. Ora, isso, nessa época da filosofia, não era considerado aceitável
pelos filósofos. Nos dias de hoje, entretanto, essa posição dos sofistas é defen-
dida por correntes relativistas e pragmatistas, que conforme o que foi dito no
final do capítulo 1, caracterizam em larga escala o pensamento pós-moderno
ou contemporâneo.
Segundo o relativismo, toda verdade tem idade e endereço, para dizê-lo de
maneira metafórica. Ou seja, não existem verdades eternas e toda verdade de-
pende da cultura e da época em que surge. Daí que muitas verdades caiam com
o tempo e sejam substituídas por outras e assim por diante.

1  Inclusive, de modo bastante provocativo, não é difícil pensar o método socrático como uma espécie de retórica,
diferindo apenas no fato de que, enquanto o retórico elabora sozinho um argumento que se faz inquestionável (não
no sentido de ser uma verdade, mas de deixar seu interlocutor sem contra-argumentos) Sócrates o faz a partir de seu
interlocutor, conduzindo o mesmo a contradizer-se e terminar por dar razão ao filósofo. Porém até segunda ordem,
sugerimos levar a sério que Sócrates é filósofo, enquanto os sofistas não.

capítulo 3 • 51
Já para o pragmatismo, a teoria mais verdadeira é aquela que produz os me-
lhores efeitos práticos. A verdade de uma teoria é medida por seus efeitos práti-
cos e não por sua suposta exatidão teórica. De nada vale uma espetacular teoria
que não tenha uso, ou que não faça as pessoas harmonizarem-se em torno dela.
Outro aspecto que se tem levado em conta é o caráter humanista da posi-
ção dos sofistas nesse tempo da Grécia. Para os sofistas, a verdade é uma coisa
dos homens. Não está no mundo, esperando para ser alcançada pela razão. Ela
é um artefato da razão, uma produção da razão, e por isso mesmo permane-
cerá sempre sendo contestada e modificada. A verdade não é descoberta, mas
sim fabricada.
Protágoras (480-415 A.C.), para muitos o mais importante entre os sofistas
e contemporâneo de Sócrates (conforme o diálogo de Platão de mesmo nome),
teria sido aquele que consagrou a frase “O homem é a medida de todas as coi-
sas”, frase que voltaria a ser lema do período moderno da filosofia, após ter
caído em ocaso durante o período medieval.
Se os sofistas foram também profissionais do ensino inescrupulosos que
serviam com a arte da argumentação aqueles que pagassem melhor, então me-
recem mesmo uma menção negativa. Porém se o que diziam era apenas que
a verdade “é o que de melhor a razão
produziu para hoje”, então sua po-
sição viria a ter força dentro da pró-
pria filosofia.
Seja como for, eles foram muito
importantes na política, uma vez
que é na Grécia daquela época que
surge pela primeira vez a democra-
cia, ou seja, o governo pelo povo,
pelos cidadãos. A democracia grega
tinha características que não co-
nhecemos na democracia de hoje.
Por exemplo, mulheres e escravos
não eram considerados cidadãos.
Mas enfrentava também muitos
problemas que conhecemos hoje,
como o jogo de interesses e a igno-
Fonte:http://www.aafa.org.ar/images/ rância de alguns participantes. Não
home/protagoras.jpg

52 • capítulo 3
se deve idealizar a democracia que, conforme disse Sir Winston Churchill, “é o
pior de todos os sistemas de governo, excluindo-se todos os outros”.
Os homens de Atenas reuniam-se na ágora, praça ou mercado central da ci-
dade e punham-se a debater sobre a melhor forma de governar a cidade. Vencia
o objetivo melhor defendido por argumentos. Como os sofistas eram mestres
na argumentação, sua sabedoria foi muito requisitada por políticos tanto para
uso em plena ágora quanto para a educação de seus filhos.
Antes de encerrar este capítulo, gostaríamos de mencionar ainda uma opo-
sição que concerne ao trabalho dos sofistas. Existem no universo a todo mo-
mento eventos ocorrendo que em nada dependem do homem. O homem pode
querer entende-los, conhece-los, e esse entendimento concernirá à physis, tan-
tas vezes traduzida por natureza.
Porém existem em nossa realidade aquelas coisas que dependem do ho-
mem; que são pelo homem e para o homem. Essa ordem de fenômenos con-
cerne ao Nomos. A oposição entre Physis e Nomos ganhou força na época dos
sofistas, e poderíamos traduzi-la com a oposição entre ordem natural e ordem
humana. Os sofistas sempre se interessaram por esta ordem, até porque se o
homem é a medida de todas as coisas, só temos acesso ao mundo natural, se-
não pelo que o homem pode sobre ele construir. Essa não é uma posição dos
filósofos da época, mas sim dos sofistas.
E se Sócrates pode ser honrado como tendo trazido para a filosofia o inte-
resse pelas coisas do homem, a ética e a política, cabe lembrar que os sofistas
trouxeram esse tema ao debate geral, embora não fossem reconhecidos pelos
filósofos como filósofos.
No próximo capítulo daremos início a nossa conversa sobre Platão.

ATIVIDADES
01. É correto afirmar sobre Sócrates:
a) Foi o primeiro filósofo a deixar obra escrita.
b) Através da maiêutica fazia com que as pessoas chegassem a definições mais claras.
c) Foi discípulo de Platão.
d) Afirmou que não se pode saber nada.
e) Nunca existiu de fato.

capítulo 3 • 53
02. Sobre a maiêutica, é incorreto afirmar que:
a) A escolha desse nome, por Sócrates, é uma referência à profissão de sua mãe,
uma parteira.
b) Nomeava o método socrático de fazer filosofia, pelo “parto das ideias”.
c) Nomeava o método socrático de fazer filosofia fazendo o “parto dos ideais”.
d) Jamais deixa inteiramente clara a verdade sobre o objeto do diálogo.
e) Faz despertar nas pessoas a curiosidade quanto à verdade.

03. Quanto ao texto sobre a apologia de Sócrates, é incorreto afirmar:


a) Sócrates preferiu morrer a viver em contradição com seus princípios.
b) Sócrates acha melhor sofrer uma injustiça do que cometê-la.
c) Sócrates incomodou as elites políticas.
d) Sócrates foi um sofista.
e) Sócrates mostrou grande controle sobre suas emoções.

04. É consenso entre os sofistas que o Nomos é uma construção humana, no entanto há
uma divergência quanto à sua finalidade para a ordem social. Pesquise mais a fundo esse
conceito e também o conceito de Contrato Social.

REFLEXÃO
Sobre a importância dos sofistas, notem que a oposição entre Physis e Nomos tem rela-
ção com o fato de alguns sofistas defenderem pessoas condenadas (geralmente por crimes
políticos), pois para alguns desses sofistas a Lei (Nomos) é uma construção arbitrária que
só serve aos interesses dos poderosos, ou de um grupo específico, sendo a lei da natureza
a única válida para todos. Se só existe alguma verdade na physis, a transgressão é perfei-
tamente aceitável (até porque, como nos lembraria Nietzsche no século XIX, não existem
coisas boas ou más, feias ou belas em si mesmas, na natureza, nós quem atribuímos tais
valores e os convencionamos como verdadeiros.
A posição dos sofistas em relação à verdade, ou seja, a consideração de que a verdade é
assunto humano, uma questão de melhor argumento, também veio a ter grande repercussão
na filosofia dos séculos XVII e XVIII com os filósofos ingleses Locke (1632-1704), Thomas
Hobbes (1588-1679), e com o filósofo francês Jean Jacques Rousseau (1712-1778), to-
dos autores que trabalharam com a noção de contrato social. Já o grande filósofo alemão

54 • capítulo 3
Immanuel Kant, precisou lançar mão da existência de Deus como a única coisa que garantiria
a existência valores universais, caso contrário a moral seria mero construto humano.
De todo modo, é importante o aluno ter conhecimento que existe na filosofia um debate
em relação à noção de verdade. Para o psicólogo convém levar a sério este debate, pois ele
implicará no mínimo que esteja alerta contra a tentação de transformar seus conceitos em
dogmas, fixando posições do sujeito como universais e eternas, quando elas dependem do
solo cultural em que são “fabricadas”.
Por outro lado, cabe também ao psicólogo permitir-se teorizar, assumir posições no de-
bate. O relativismo não implica que tudo pode ser verdadeiro, mas que a verdade está per-
manentemente em debate, sempre na expectativa de argumentos que nos constranjam a
reconhecer sua necessidade. Assumir essa posição não deve se fazer acompanhar da ideia
de que outros não possam pesquisar de outras maneiras um mesmo problema, prático ou
teórico, ainda mais no campo da psicologia, notoriamente fragmentado. Apenas garante que
o psicólogo estará pronto a responder sobre sua responsabilidade pela posição firme e bem
sustentada que assume diante de seu objeto de tratamento ou estudo.

capítulo 3 • 55
56 • capítulo 3
4
Platão
Platão compõe com Aristóteles a dupla de principais pensadores do período
sistemático da filosofia Grega. No trabalho desses dois gigantes encontram-se
sistematizadas as principais discussões que envolviam a filosofia até então. Até
hoje ambas as obras são lidas, estudadas e servem de referência para a aborda-
gem de muitas questões no terreno da filosofia.
A filosofia de Platão é em grande parte apresentada em diálogos. Se Sócrates
fazia filosofia dialogando, Platão escreveu diálogos e também assim transmitiu
sua filosofia. Em vários de seus diálogos Sócrates é mencionado e em outros
tantos é o personagem principal.
Pela riqueza dos temas abordados – conforme a lista de diálogos ao final
do capitulo – percebe-se a direção da filosofia de Platão, sua preocupação em
transformar a prática política de sua época, marcada pela decadência da demo-
cracia ateniense. Mas os temas epistemológicos, éticos e metafísicos estavam
tanto quanto presentes em sua obra e, na verdade, eles não entravam em cho-
que com a perspectiva prática da filosofia de Platão.
Platão foi discípulo de Sócrates e conforme já dissemos é somente por
seus escritos que temos acesso a Sócrates. Por sua vez, [Platão] foi mestre de
Aristóteles que viria a abordar criticamente a metafísica de Platão, propondo a
sua alternativa para o problema do conhecimento. Platão enfrentou esse pro-
blema construindo a teoria das ideias ou das formas puras, essências somente
acessíveis pelo trabalho da razão, a partir de uma ruptura com o que “conhece-
mos” através dos sentidos.
Esse dualismo de Platão tem duas apresentações clássicas na alegoria da
caverna e no mito da linha dividida, conforme veremos abaixo. Em ambos os
textos, deixa claro seu menosprezo pela ideia de que o conhecimento do ver-
dadeiro possa contar com a ajuda da sensibilidade. Platão irá ainda apoiar-se
na metafísica dos dois mundos para mostrar que nada podemos conhecer de
novo, conforme sua teoria da reminiscência. Neste sentido, como em muitos
outros, conecta-se com Sócrates, quando este através das perguntas certas ex-
traía de seus interlocutores um saber que esses já possuíam sem se dar conta.
Passemos então à apresentação de alguns os pontos principais de sua filosofia.

58 • capítulo 4
OBJETIVOS
•  Introduzir a filosofia de Platão;
•  Introduzir a perspectiva prática e política da filosofia de Platão e sua relação com a demo-
cracia decadente e o trabalho dos sofistas;
•  Introduzir a metafísica platônica que dividia o mundo em inteligível e sensível;
•  Apresentar a teoria da reminiscência;
•  Apresentar o mito da linha dividida;
•  Apresentar a alegoria da caverna.

capítulo 4 • 59
Platão (428 a.C. - 347 a.C.) é um dos pilares da filo-
sofia ocidental. Sua obra formaliza questões que já
se anunciavam desde os tempos dos pré-socráticos,
muito claramente na disputa em torno da existên-
cia do movimento que encontramos em Heráclito e
Parmênides e até no próprio filosofar de Sócrates, a
quem nos apresenta como seu mestre.
Há quem diga que a filosofia é um conjunto
de notas de pé de página aos trabalhos de Platão e
Aristóteles. O período chamado “sistemático” da
filosofia antiga, este que ora iniciamos com a apre-
sentação de Platão, justamente nomeia essa carac-
terística das obras desses dois grandes filósofos que
sistematizaram tudo que se discutia até então na filosofia - seus principais ob-
jetivos, conflitos e desafios.
Diga-se de passagem, não obstante o esforço de Platão e Aristóteles para
trazer esclarecimento às principais controvérsias filosóficas de até então, estas
continuariam vivas ao longo da história da filosofia, como eixos organizadores
do trabalho dos filósofos. Parece mesmo ilusório e ingênuo supor que o mérito
da filosofia dependeria do fim dessas controvérsias.
Bom exemplo disso é a pergunta sobre a tarefa da filosofia, que percorre
a filosofia ao longo de toda a sua história. É uma pergunta sem resposta final,
tanto quanto as principais questões da filosofia. Dessa maneira, o filósofo só
pode refletir sobre qual é a tarefa da filosofia na medida em que a questão so-
bre essa tarefa lhe seja viva e por isso lhe faça filosofar.
Platão e Aristóteles tiveram imensa produção. No caso de Platão, sua filoso-
fia aparece conforme dissemos, em grande parte, sob a forma de diálogos que
versam sobre os mais variados temas. Platão acreditava na finalidade prática
da filosofia, ou seja, achava que a filosofia deveria servir para orientar o homem
em suas ações e não apenas para trazer conhecimento puro. Não que Platão
fosse um pragmatista, que entendesse a filosofia como devendo buscar a utili-
dade. O filósofo, na perspectiva de Platão, busca o conhecimento racional em
todos os níveis e isso o torna capaz de contribuir para a prática humana.
Essa perspectiva do trabalho de Platão deve ser contextualizada. Em sua
época, a democracia ateniense é decadente e carregada de injustiças, jogos de
interesse, privilégios e a filosofia de Platão forma-se nesse contexto e com a

60 • capítulo 4
perspectiva de mudar esse quadro. O conflito da filosofia com os sofistas é típi-
co dessa situação. Vale a pena acompanhar a seguinte passagem de Marcondes
(2008), caracterizando o modo platônico de ver o pensamento racional:

O discurso filosófico preocupa-se com sua própria legitimação, sua justificação, daí
ser considerado crítico e reflexivo. A filosofia não deve apenas dizer e afirmar, mas
preocupar-se em chegar à verdade, à certeza, à clareza, através da razão. Constitui um
discurso que se funda na legitimidade, que deve ser aceito por todos (tendo, portanto,
um caráter universal), que se impõe pela argumentação racional, que produz um con-
senso legítimo, que se opõe à violência do poder e à ilusão e mistificação ideológicas
que caracterizariam o discurso dos sofistas. A filosofia, segundo o modelo platônico,
vai ser esse discurso legítimo que se instaura como juiz, como critério de validade de
todos os discursos (pg.52).

Inaceitável, portanto, para o “modelo platônico”, a posição dos sofistas, se-


gundo a qual um argumento racional se limita a ser um argumento bem feito.
Essa posição é associada à ideia de que o sofista acha que tudo que existe é na
melhor das hipóteses, convencimento e que por isso não ensina a razão, mas
apenas a retórica. Esta, por sua vez, pode servir aos mais variados interesses,
uma vez que não existe como provar que um interesse seja mais correto e me-
lhor fundamentado que outros.
Para Platão, o sofista é aquele que ajuda a elite a melhor enganar para man-
ter seus privilégios. Muitos foram os diálogos escritos por Platão e que visavam
justamente desmascarar as situações de injustiça promovidas no contexto da
democracia decadente. A morte de Sócrates, seu mestre, foi talvez a consequên-
cia mais trágica disso.

4.1  Crítica a Sócrates


Existe em Platão uma crítica a Sócrates. Platão reclama que Sócrates não nos
teria deixado um caminho para chegar à verdade. Sócrates soube muito bem
descontruir nossos preconceitos e deixar que isso nos empurrasse a buscar a
verdade e, além disso, foi muito exigente quanto ao dever de buscarmos o con-

capítulo 4 • 61
ceito, a definição mais precisa. Não nos deixou, contudo, um caminho que nos
levasse até lá.
Podemos especular que, talvez, mais certo fosse dizer que o caminho apon-
tado por Sócrates não foi suficiente para Platão. Pois podemos, sim, considerar
que Sócrates deixou um caminho para a verdade, justamente aquele dado pela
“desconstrução” (de nossos preconceitos). Devemos levar às últimas conse-
quências a crítica a nossas pretensões de verdade, pois somente assim pode-
mos levar ao extremo, embora nunca definitivamente, nossa aproximação ao
conceito.
Lembremos que em Sócrates aparece como nunca antes a exigência de abs-
tração. A ironia e a maiêutica são procedimentos que forçam o interlocutor de
Sócrates a uma abstração, o que fica claro no exemplo em que ele exige que se
defina o que faz com que coisas diferentes como a coragem e a temperança, se-
jam ambas uma mesma coisa, uma virtude. Sócrates não pede uma descrição,
mas sim uma definição. E essa aponta para o conceito.
Além disso, conforme já indicado no capítulo anterior, o termo grego para
verdade é alethea, que é um verbo (desvelar) e, enquanto tal, indica uma ação
e não uma coisa (substantivo). Perfeitamente compatível, nesse sentido, com o
procedimento socrático, que nos faz trabalhar permanentemente em direção
ao conceito e esse trabalho é a verdade. Sócrates nos deixa em ato, com seu mé-
todo, a verdade como o próprio movimento da razão na direção do conceito.
Neste sentido seria possível dizer que Platão em sua crítica a Sócrates trata a
verdade como um substantivo (coisa), e não como um verbo (ação).
O que é certo é que para Platão isso não foi suficiente. Formalizou então o
caminho já em parte presente em Sócrates, apontando que a dialética é a via
que nos leva da doxa (opinião) à episteme (conhecimento verdadeiro). Na con-
traposição, pelo diálogo, não de opiniões, mas sim de definições, “erguemo-
nos” progressivamente em direção à verdade. Esta se encontra, na metafísica
de Platão, literalmente em outro mundo, aquele em que existe o verdadeiro ser,
onde se encontram e podem ser contempladas as ideias ou formas perfeitas,
que correspondem às essências.
O caminho para a verdade encontra-se na produção da teoria que só pode
ser alcançada pela alma que contempla, versão que soa metafórica para nós
hoje, ou pela razão - e não pela sensibilidade. Platão apresenta, neste sentido,
um realismo das ideias. Em sua filosofia, as ideias são reais e não subjetivas,
como as pensamos hoje. As ideias são coisas no mundo, ainda que em um

62 • capítulo 4
outro mundo; elas não estão na mente de quem pensa. A definição, na medi-
da em que toca na essência das coisas, o faz por via da razão, rompendo com
a realidade sensível para acessar a realidade inteligível, na qual se situam as
ideias platônicas.
Em filosofia, há alguns termos terminados em “ismo” que caracterizam
pontos de partida com relação às possibilidades e limites do conhecimento.
Entre eles encontramos o realismo, o idealismo, o racionalismo e o empirismo.
Platão acreditava na realidade das ideias; coerentemente com isso, acreditava
que o ser buscado pelo filósofo está no mundo das ideias e não no mundo con-
creto, mundo de sombras, de enganos, onde nada há que possa guiar ao conhe-
cimento. Para Platão o ser (essência das coisas) está do lado do que pode ser
pensado e não do que pode ser percebido.
Além dessa posição, caracterizada como realismo das ideias, Platão pode
ser também reconhecido como racionalista. Para o racionalismo, o conhe-
cimento vem da razão e não da experiência, como querem os empiristas.
Veremos mais à frente que a teoria da reminiscência de Platão expressa uma
forma radical de racionalismo.
Platão busca então formalizar o caminho que nos levaria do erro à verdade.
Como devemos fazer para tocar a natureza essencial de alguma coisa? A meta-
física é o esforço teórico (de abstração) para conhecer a natureza essencial das
coisas o que inclui uma concepção sobre a realidade como um todo. Não existe
apenas uma definição de metafísica mas, no contexto de Platão, esta funciona.
A teoria dos dois mundos de Platão é o resultado de seu esforço por avançar
nessa direção. Se Platão entende que é possível tocar a verdade, em meio a tanta
ilusão, como saber quando esse momento ocorre? É preciso situar a busca e o
encontro da verdade em um universo no qual isso faça sentido.

4.2  A metafísica dos dois mundos


Platão nos brinda com um exemplo claro de esforço metafísico. Para ele, o ver-
dadeiro conhecimento se inicia quando tratamos de romper com tudo aquilo
que adquirimos pela experiência sensível. Apresenta assim uma concepção
descontinuísta do processo de conhecimento que, para ser atingido, exige uma
ruptura com o senso comum. Conforme disse acima, é pela contemplação das
formas puras pela alma que atingimos o conhecimento.

capítulo 4 • 63
Há um mito platônico que nos fala de protos-uranos. Nesse lugar mítico,
habitavam as almas em meio às formas puras, que correspondem à natureza
essencial das coisas. Como tivessem se tornado muito altivas e desafiadoras,
os deuses castigaram-nas e houve como que uma queda das almas, a partir de
então aprisionadas em corpos na terra. Assim aprisionadas, esqueceram-se de
tudo que sabiam e passaram a viver em meio ao mundo da sensibilidade, com-
parado por Platão a um mundo de sombras. Um mundo enganador e não inte-
ligível - ininteligível.
Nenhum filósofo até então levara tão longe quanto Platão a desvalorização
da sensibilidade (captura do mundo pelos órgãos dos sentidos) expressa na
formulação popular: “as aparências enganam”. Mesmo que consideremos o
monismo de Parmênides, em Platão essa posição atinge o ponto alto de sua
formalização, com a metafísica dos dois mundos.
Voltando ao mito de Protos Uranos, como as almas um dia conheceram a
verdade tendem a se lembrar do que um dia souberam. Aí está a teoria da re-
miniscência de Platão, segundo a qual não podemos aprender nada de novo,
mas, no máximo relembrar o que já soubemos. Observem como se trata de
uma concepção fortemente “anti-empirista”. Para Platão já nascemos com todo
conhecimento puro que podemos vir a ter; apenas não sabemos disso. Assim,
conhecer é lembrar. O que é bastante coerente com seu pensamento, afinal, se
existe “A Verdade” em meio a tantas ilusões, como seria possível distinguir o
que é verdadeiro, se já não o conhecêssemos?
Conforme essa concepção, seria absurdo afirmar que o conhecimento vem
da experiência, como fazem os empiristas. Conforme dito acima, Platão é, as-
sim, racionalista por defender que somente pela razão e rompendo com os da-
dos da experiência sensível podemos chegar ao conhecimento.
Para fins didáticos, poderíamos dizer que o racionalismo privilegia o cami-
nho da dedução e não da indução. Partimos do geral em direção ao particular.
Não precisamos olhar para o mundo, onde se manifestam as singularidades
– aquele homem, aquele animal, aquela flor, aquela estrela etc. – para depois
disso fazer generalizações1.
Ao contrário, partimos das verdades mais gerais, aquelas que só acessamos
pensando, e daí podemos reunir os singulares em classes e / ou explicar sua
existência e movimento dentro do quadro das leis da natureza. Essa afirmação,
1  Em ciência, no método dedutivo partimos do geral, isto é, das verdades mais gerais, obtidas pela razão, em
direção ao particular. No método indutivo, partimos da cuidadosa observação das regularidades dos fenômenos em
direção a generalizações possíveis. Portanto, do particular ao geral.

64 • capítulo 4
todavia, funciona em caráter didático, pois tanto racionalistas quanto empiris-
tas trabalham com ambos os métodos, dependendo do seu objeto de estudo.
Finalmente, Platão poderia ainda ser considerado como um idealista,
no sentido filosófico do termo que afirma que só podemos conhecer ideias.
Todavia é fundamental perceber que as ideias de Platão não são como nossas
ideias de hoje, muito marcadas pelo modo moderno – no sentido do período da
filosofia que se estende do século XVII até o século XX. Elas são realidades abs-
tratas, existentes independentemente de estarem sendo pensadas ou não, cor-
respondendo justamente ao que há de mais real. Se há ser, ele pertence às es-
sências que estão no mundo das ideias e não ao mundo dos objetos concretos.
Em Platão as ideias existem em outro mundo, o único cognoscível, exata-
mente o mundo em que habita o ser. O ser, em Platão, é o que é pensado; nada
mais errado do que considerar que o real é o que podemos tocar, ver ouvir etc.
Para tocar a realidade na essência do que existe, é preciso pensar, utilizar a ra-
zão, o que por sua vez exige a ruptura com os dados sensíveis.
Tudo o que existe na realidade concreta, ou tudo o que criamos/construí-
mos, são cópias imperfeitas de uma ideia, ou forma ideal que pré-existe e as
origina. Essas cópias imperfeitas são mutáveis e sempre substituídas por novas
cópias; as ideias platônicas não, elas são permanentes – eternas e imutáveis.

4.3  A alegoria da caverna


Vejamos em linhas gerais o que é trazido na “alegoria da caverna” que se encon-
tra no diálogo de Platão chamado A República. Nesse escrito, homens viviam
acorrentados em uma caverna em cujo fundo projetavam-se sombras produzi-
das por movimentos dos corpos fora da caverna iluminados pela luz solar.
Um dia, um dos homens acorrentados constrói uma ferramenta, quebra
suas correntes e dirige-se ao lado de fora da caverna. Em princípio atordoado
pelo brilho da luz, recua, quase cego, porém acostuma-se aos poucos e percebe
o mundo externo, maravilhado.
Percebe também que as sombras projetadas no fundo da caverna são pro-
duzidas por marionetes fabricadas por pessoas que desejam assim que os ho-
mens da caverna somente vejam aquilo que convém.
Nosso herói retorna assim à caverna com o objetivo de contar aos ou-
tros aquilo que descobriu. Todavia, é mal recebido em suas pretensões de

capítulo 4 • 65
esclarecimento. Os homens da caverna recusam-se a acreditar nele e preferem
continuar levando a vida que levavam até então.

Do que fala essa alegoria? O homem que se liberta é o filósofo. O instru-


mento que constrói para destruir as correntes é a filosofia. As pessoas presas
na caverna em meio a sombras são as pessoas vivendo em meio ao senso co-
mum, com o saber construído com base nas sensibilidades. O acesso às coisas
pela sensibilidade é parcial tal qual as sombras recebidas pelos indivíduos pre-
sos que as tinham como única realidade possível. O mundo fora da caverna é
o mundo das formas puras e as pessoas que manipulam corpos para produzir
imagens no fundo da caverna são os sofistas e membros da elite que querem
governar a cidade para interesses próprios. Conforme Marcondes (2008):

“Do lado oposto da caverna, Platão situa uma fogueira – fonte da luz de onde se
projetam as sombras – e alguns homens que carregam objetos por cima de um muro,
como num teatro de fantoches, e são desses objetos as sombras que se projetam no
fundo da caverna, (...). Esses homens no outro lado da caverna são os sofistas e políti-
cos atenienses que manipulam as opiniões dos homens comuns e são os produtores
de ilusão tal como Platão os caracteriza no diálogo O Sofista. (p. 65).

Como se pode notar, a alegoria tem uma faceta política, além de episte-
mológica. Para Platão, a filosofia deve libertar e uma das coisas que ela ensi-
na é que também na política e na ética devemos seguir princípios e não nos

66 • capítulo 4
deixarmos guiar por decisões casuísticas ou interesses particulares. Imersos no
senso comum, corremos o risco de nos deixar levar por aquilo que os detento-
res do poder querem, para continuarem com o poder.
Contudo, é bom que se diga, Platão não era um democrata. Desiludido com
as dificuldades encontradas pela democracia grega, Platão acha que a cidade
deveria ser governada por um conselho de sábios (filósofos). Ideia ingênua,
hoje sabemos, pois sempre que tais tentativas são feitas o que observamos é a
corrupção dos membros de tais “grupos de notáveis”, que acabam “mordidos
pela mosca azul do poder”.
O sol que brilha fora simboliza a verdade máxima (transcendente), que
em um primeiro momento cega, desnorteia, e que Platão faz também coinci-
dir com o Bem, enquanto maior virtude (conforme Marcondes, 2008). Nesse
sentido, o brilho da verdade máxima exige uma progressiva adaptação do olhar
(ibid). Essa progressiva adaptação tem estágios que passam primeiro por olhar

“As sombras e imagens, depois os próprios objetos, depois os reflexos dos astros, até
finalmente conseguir olhar o próprio Sol, grau máximo de realidade, a própria ideia do
Bem, através da metáfora da luz como o que ilumina, torna visível e se opõe à escuri-
dão e às trevas” (ibid. p. 66).

Aparece ainda no texto da alegoria da caverna a ideia de que vivemos o con-


flito entre, de um lado, retornar ou permanecer na caverna e, de outro, sair para
ter acesso ao ser em si. Se temos tendência a conhecer, temos também a ten-
dência contrária. Nos termos de Marcondes (2008):

”Há uma aparente contradição entre o libertar-se e o ser forçado a levantar-se, como
se o prisioneiro estivesse na verdade sendo forçado a libertar-se, sentindo-se ofusca-
do e perturbado. (...). A força do hábito faz com que o prisioneiro se sinta confortável
com a situação em que se encontra desde sempre e que lhe é mais familiar. A força
do Eros, entretanto, faz com que se sinta insatisfeito, frustrado, infeliz, e busque uma
situação nova. Esse conflito é o motor da dialética, ou seja, do processo de mudança
transformação que resulta da oposição entre as duas forças e que faz com que o
prisioneiro saia da situação em que se encontra (p.66)”.

capítulo 4 • 67
Sendo Eros o deus do amor na mitologia grega, Platão reconhece no amor o
motor sem o qual não há busca pelo conhecimento. Amor à sabedoria, tal como
tal como aparece no próprio nome da disciplina que ora estudamos.

4.4  O mito da linha dividida


Outra abordagem do dualismo platônico aparece com seu mito da linha divi-
dida. Esse mito esquematiza a metafísica platônica, segundo a qual o mundo
é dividido em:
a) O mundo sensível, dos objetos concretos capturados pela sensibilidade.
b) O mundo inteligível, das formas (essências, ou seja, o que as coisas
são), acessado pela razão.

{ }
B

Ideias Inteligência
Mundo Ciência
Inteligível

Objectos E Entendimento

{
matemáticos

}
Objectos C Fé
sensíveis
Mundo D Opinião
Sensível
Imagens Suposição
A

Fonte: http://www.ulisses.us/antiga/apont-filgre-4-pen.html.

Dividam o diagrama em partes inferior e superior. Natural que em Platão


a parte inferior correspondesse ao mundo sensível. Ao mundo sensível corres-
pondem a percepção das imagens e, em um plano mais avançado, o conheci-
mento dos objetos naturais. As faculdades que guiam o homem nesse plano
são a suposição e a fé.
Já na dimensão do mundo inteligível, conforme a parte de cima do esque-
ma, o que a atividade racional (e não a sensibilidade) visa são os objetos geo-
métricos, imagens puras (ou mesmo formas) sem a irregularidade dos objetos
{

68 • capítulo 4
naturais, e as formas ou ideias puras. A tal ponto ia a admiração de Platão
pela geometria (e pela matemática) que mandou escrever sobre o Potal de sua
Academia o seguinte dizer: “Aqui não entre quem não souber geometria”. A
diferença entre os objetos geométricos e as formas ou ideias (no sentido pla-
tônico) puras é que os primeiros podem ser imaginarizados, tem uma forma,
perfeita, sem erros, porém visualizável – podem ser apreendidos pela sensibi-
lidade. No caso das ideias ou formas puras (essências), o que está sendo visado
é o conjunto de notas gerais sem as quais uma coisa deixa de ser o que ela é.
Enquanto tais, essas ideias / formas puras não podem ser apreendidas pelos
órgãos dos sentidos, apenas pela razão; não podem ser imaginarizadas como
os objetos da geometria.
Por outro lado, a matemática não é apenas a geometria. Se ela é uma refe-
rência para Platão é, conforme dissemos acima, também na medida em que
na matemática temos a dedução perfeita. Dado certo ponto de partida, a ma-
temática deduz todo o resto. A matemática seria a linguagem mais pura, não
contaminada pelas sensibilidades, paixões corporais. Tem um funcionamento
autônomo, pelo qual o resultado é revelado pela própria estrutura da lingua-
gem matemática e não por aquilo que se percebe.
Chamo a atenção para o fato de que o que Platão chama de mundo inte-
ligível não é nada semelhante ao mundo que percebemos pela sensibilidade.
Assim, aquilo que há para ser conhecido são as formas ou ideias puras e as for-
mas geométricas e não a diversidade infinita de objetos que há para conhecer
no mundo.
Assim, não nascemos já sabendo o que seja um ornitorrinco, animal muito
estranho que só se encontra na Austrália. Mas isso não importa a Platão; não
é disso que se trata. Outro exemplo conhecido talvez esclareça essa questão.
Sócrates argui um escravo2 supostamente ignorante e com as perguntas certas
faz com que o escravo encontre a solução para um problema lógico/matemáti-
co. Ou seja, mesmo um escravo sem estudo, devidamente conduzido pela ra-
zão, encontra aquilo que já sabia sem o saber.
Platão visa que a teoria deva ser aplicada na prática. Não quer viver em um
mundo puramente teórico, como poderia sugerir a expressão “amor platônico”
(amor sem relação corporal). Platão admite que a relação entre teoria e prática é

2  Na Grécia dessa época, um escravo não tinha qualquer valor na escala social, a não ser como força de trabalho.
Tanto quanto as mulheres, não podiam votar ou opinar nas assembleias.

capítulo 4 • 69
circular e afirma que quando voltamos à prática depois de fazer teoria voltamos
sempre de forma aperfeiçoada.
Veremos no próximo capítulo como o trabalho do igualmente genial
Aristóteles, que junto com Platão forma as duas vigas mestras de sustentação
da filosofia, contrasta acentuadamente com o trabalho deste último, de quem
foi discípulo, reeditando de modo mais avançado a antiga oposição entre
Parmênides e Heráclito. No fundo, trata-se da oposição entre racionalismo e
empirismo que, conforme já disse anteriormente, nos acompanha até os dias
de hoje. No próprio campo da psicologia, é possível reencontra-la, na oposição
entre uma psicologia de viés mais racionalista e outra mais empirista.

4.5  Diálogos De Platão


Marcondes (2008), lista os diálogos de Platão da seguinte maneira:

4.5.1  Diálogos considerados autênticos

4.5.1.1  Diálogos Socráticos (399 a.C. morte de Sócrates):


•  Apologia de Sócrates;
•  Ion, ou sobre a Ilíada;
•  Hípias menor, ou sobre a falsidade;
•  Laques, ou sobre a coragem;
•  Carmides, ou sobre a moderação;
•  Críton, ou sobre o dever;
•  República (Politeia), livro I;
•  Hípias maior, ou sobre a beleza;
•  Eutifron, ou sobre a piedade;
•  Lísis, ou sobre a amizade.

4.5.1.2  Diálogos da fase intermediária (primeira viagem à Sicília, 389-388 a.C.)

•  Teoria das formas, elaboração do platonismo


•  Protágoras,ou sobre os sofistas;
•  Górgias, ou sobre a retórica;

70 • capítulo 4
•  Menexeno, ou Oração Fúnebre;
•  Eutidemo;
•  O banquete (symposium), ou sobre o Bem;
•  Fédon, ou sobre o amor;
•  Ménon, ou sobre a virtude;
•  A república (politeia) ou sobre a justiça;
•  Fedro, ou sobre a alma.

4.5.1.3  Diálogos da maturidade (Crítica à teoria das formas)

•  Crátilo, ou sobre a correção dos nomes;


•  Teeteto, ou sobre o conhecimento;
•  Parmênides, ou sobre as formas;
•  O sofista, ou sobre o ser;
•  O político, ou sobre a monarquia;
•  Filebo, ou sobre o prazer.

4.5.1.4  Diálogos da fase final

•  Timeu, ou sobre a natureza;


•  Críticas, ou sobre a Atlândida;
•  As leis (nomoi);
•  Epinomis.

4.5.1.5  Diálogos de autenticidade discutível

•  Alcibíades, I e II;
•  Hiparco;
•  Anterestai;
•  Teages;
•  Clitofon;
•  Mino;
•  O filósofo.

capítulo 4 • 71
Obra “Plato’s Symposium” (O Banquete de Platão) do pintor alemão Alselm Feuerbach, 1873.
Localizada na Nationalgalerie de Berlin, Alemanha.

Pela diversidade e qualidade dos temas, percebe-se a vocação prática e polí-


tica da filosofia de Platão, não obstante o problema da teoria do conhecimento
e da metafísica também tenham sido enfrentados pelo grande filósofo.
Ao contrário dos textos que restaram da obra de Aristóteles, os diálogos pla-
tônicos apresentam um caráter mais didático parecendo voltados à divulgação
da filosofia.

ATIVIDADES
01. A crítica de Platão a Sócrates consiste em:
a) Platão não critica a Sócrates.
b) Sócrates não acreditava na verdade.
c) Sócrates não nos legou uma teoria, ou seja, o caminho para atingirmos a verdade.
d) Para Platão a maiêutica era sofística.
e) Sócrates não poderia ter aceitado passivamente sua condenação.

02. A relação entre os mundos inteligível e sensível era de:


a) Descontinuidade.
b) Dialética.
c) Retórica.
d) Continuidade.
e) Do concreto ao abstrato, respectivamente.

72 • capítulo 4
03. Sobre a alegoria da caverna, não está correto afirmar que:
a) As sombras correspondem ao mundo sensível.
b) A ferramenta que quebra as correntes é a filosofia.
c) A alegoria tem também um viés político.
d) As correntes são nossos preconceitos.
e) As pessoas acorrentadas anseiam por sua libertação.

04. Pesquise por alguns dos diálogos mais famosos de Platão, como ‘O Banquete’, ‘A Repú-
blica’ e ‘Fédon’, para que compreenda melhor o como sua filosofia se desenvolve. 

REFLEXÃO
Estranha a ideia de que devemos romper com a sensibilidade para chegar ao conhecimento.
Por que Platão foi tão radical? Não seria mais razoável pensar um plano contínuo, com o
conhecimento começando pela sensibilidade e chegando até a abstração através da razão?
Veremos que essa será a alternativa de Aristóteles. Não que o racionalismo não estives-
se presente na filosofia de Aristóteles, porém ela também tem vocação empirista, além de
um realismo da substância individual, conforme veremos. Veremos em capítulos posteriores
como para a ciência moderna o realismo da substância individual aristotélico é inconcebível.
As leis gerais propostas pela ciência moderna lembram mais as entidades abstratas de Pla-
tão do que a substancia individual de Aristóteles.
Dissemos ao longo do texto deste capítulo que o conflito entre racionalismo e empirismo
se manifesta até hoje no campo da psicologia. Por exemplo, pensemos no caso do conceito
de complexo de Édipo, criado por Freud. Este autor pretendeu que esse conceito lhe foi su-
gerido pela experiência clínica. Ok, mas o fato é que não conseguimos mostrar para todos o
complexo de Édipo. É um conceito que parece mais consequência de uma dedução lógica, de
um esforço racional pela generalização, do que da nossa capacidade de obter confirmação
pública de sua existência pela via da observação.
Em uma perspectiva diferente, os behavioristas afirmaram que o objeto da psicologia
deveria ser o comportamento, pois ninguém pode observar publicamente uma consciência.
Hoje em dia, os manuais psiquiátricos criam categorias para designar transtornos mentais
com base naquilo que pode ser publicamente observável, no caso, os sinais e sintomas da
alteração mental.

capítulo 4 • 73
Assim, se para os psiquiatras de hoje conhecer os transtornos mentais depende da cui-
dadosa observação dos pacientes, para Platão seria muito mais produtivo pensar o que deve
necessariamente ser a doença mental, independentemente das manifestações particulares
dela.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
MARCONDES, D. Iniciação à história da filosofia. RJ: JZE. 2008.
BLACKBURN, S. A República de Platão. RJ: Zahar, 2008.
CHAUÍ, M. Convite à filosofia. SP: Ática. 2003
PURSHOUSE, L. A República de Platão. SP: Paulus, 2010.
ZINGANO, M. Platão & Aristóteles. O Fascínio da Filosofia. SP: Odisseus, 2002.

74 • capítulo 4
5
O Sistema
Aristotélico
©© HTTP://WWW.INFOPEDIA.PT//APOIO/RECURSOS/PM000002.JPG

Discípulo mais famoso de Platão, Aristó-


teles nasceu em Estagira na Macedônia
em 384 a.C. e morreu em 322 a.C. Incrí-
vel que uma existência relativamente
curta tenha dado oportunidade a tanta
produção por parte de um mesmo ho-
mem, que tem em sua biografia o fato de
ter sido durante algum tempo preceptor
de Alexandre, o Grande.
Grande parte da referida produção
de Aristóteles foi perdida ou destruída
ao longo do tempo e a maior parte do
que temos acesso é via reconstruções a
partir de anotações feitas por discípu-
los. Sua obra é conhecida como Corpus
Aristotelicum e foi editada em 50 a.C.
Fonte:http://www.infopedia.pt//apoio/ por Andrônico de Rodes, que reviveu a
recursos/pm000002.jpg escola Aristotélica em Roma, portanto
mais de dois séculos após a morte do filósofo (Marcondes 2008).
Admite-se que os fragmentos das anotações de seus alunos fossem esotéri-
cos, ou seja, para iniciados e não para divulgação à população interessada em
geral. De acordo com isso, recomendamos ao iniciante em filosofia que prefira
o texto de comentadores a ir direto aos textos do grande filósofo. A mesma re-
comendação não faríamos com relação aos diálogos de Platão, mais acessíveis
mesmo aos não iniciados.
Além de sua importantíssima discussão com Platão e das soluções que pro-
pôs aos problemas filosóficos de sua época em geral, Aristóteles deixa contri-
buições para a filosofia que duram até os dias de hoje. Aliás, não apenas para a
filosofia, mas para a ciência, para a ética, a política e a estética. Para terem uma
ideia, sua concepção geocêntrica do cosmo durou cerca de dois mil anos e só
foi ceder quando dos primeiros sinais do aparecimento da chamada ciência
moderna, com a proposta do modelo heliocêntrico1 por Copérnico e em segui-
da com a concepção de um universo descentrado, com Galileu.

1  O modelo heliocêntrico foi proposto por Filolau um século antes de Aristóteles e depois sofisticado por Aristarco
- contemporâneo de Aristóteles - e de quem Copérnico "resgatou" 2000 anos mais tarde (Gleiser, 1997).

76 • capítulo 5
Aristóteles usou um modelo de universo feito de esferas concêntricas, ten-
do a terra como centro, imóvel. Esse modelo, por mais que nos pareça absurdo
hoje, funcionava para explicar uma série de fenômenos observáveis na natu-
reza, sem apelo a mitos ou dogmas. Ou seja, uma explicação racional. Antes
que considerem o modelo Aristotélico errado ou primitivo, recomendamos que
procurem, a partir desse exemplo, interrogar o quanto poderá valer ainda das
explicações científicas de hoje daqui a dois mil anos.
Para acompanhar este capítulo, não será necessário ir além de pesquisa em
boas introduções a Aristóteles em livros de introdução à filosofia. Os de Danilo
Marcondes (2008) e Marilena Chauí (2003) continuam sendo indicações princi-
pais. Acrescentaremos a estas o texto de Maria do Carmo Bettencourt de Faria
que se encontra em Rezende (1986) e também Morente (1966).

OBJETIVOS
•  Introduzir a filosofia de Aristóteles;
•  Introduzir a crítica de Aristóteles a Platão;
•  Introduzir a metafísica de Aristóteles;
•  Introduzir a concepção de conhecimento de Aristóteles.

capítulo 5 • 77
Tanto quanto já acontecera com Platão, Aristóteles trabalhou intensamente
para superar os desafios trazidos pelo discurso dos sofistas e os impasses a que
tinham chegado os filósofos pré-socráticos, especialmente patentes na contro-
vérsia sobre o movimento que opôs Parmênides a Heráclito. Contudo, o cami-
nho de Aristóteles segue linhas distintas daquelas traçadas pelo pensamento
de Platão.
Se Platão e Aristóteles marcam o chamado período sistemático da filoso-
fia grega, é porque justamente procuraram “arrumar a casa”, no sentido de
localizar, descrever e solucionar os problemas até então tomados pela filoso-
fia. Mas afinal, o que quer dizer sistemático? O termo chave aqui é sistema. No
Michaelis Online encontram-se as seguintes definições, suficientes para os
nossos propósitos aqui:
1. Conjunto de princípios verdadeiros ou falsos, donde se deduzem con-
clusões coordenadas entre si, sobre as quais se estabelece uma doutrina, opi-
nião ou teoria.
2. Corpo de normas ou regras, entrelaçadas numa concatenação lógica e,
pelo menos, verossímil, formando um todo harmônico.
3. Conjunto ou combinação de coisas ou partes de modo a formarem um
todo complexo ou unitário.

Na obra de Aristóteles encontram-se estes traços, mais ainda que naquela


de Platão. O Corpus Aristotelicum constitui um sistema na acepção mais estrita
dos enunciados acima, embora a ideia de que os princípios que enuncia pos-
sam ser falsos não convenceria Aristóteles. Sua posição é a de quem fala do que
existe - o que era próprio da filosofia grega -, quer nós queiramos ou não que
exista; ou seja, independentemente do que pensamos sobre o mundo, ele existe
e está aí para ser descoberto. Essa posição muda muito no período moderno da
filosofia e mais ainda na filosofia contemporânea.
A possibilidade de descobrir o que o mundo sensível em princípio enga-
na, constitui sem dúvida um ponto sobre o qual concorda com Platão. Porém,
para Aristóteles é para este mundo que devemos começar a olhar, se quere-
mos conhecer.
Aristóteles foi mais jovem e discípulo de Platão e, portanto, sua obra pode
incluir uma crítica a Platão, sem que pudesse ter havido recíproca. Platão foi
um ponto de partida para o desenvolvimento da filosofia de Aristóteles, porém

78 • capítulo 5
não o contrário. E vale ainda dizer que nem todos os pontos da filosofia deste
foi crítica à daquele. Mas o foi em alguns pontos essenciais.
Um aspecto importante na transição de um filósofo a outro diz respeito à
direção de Aristóteles no sentido de incluir o mundo real concreto como ob-
jeto de conhecimento. Como “mundo real concreto”, note-se bem, queremos
indicar aqui a realidade sensível e permanentemente mutante que nos cerca – o
que marca uma ruptura com o modo pelo qual Platão entendia o processo de
conhecimento. Esse passo tem grandes consequências.

5.1  Crítica a Platão


Embora existam pontos de acordo entre as obras de Aristóteles e Platão, há
uma discordância de base entre os dois. Ela diz respeito ao plano metafísico
estabelecido por cada um, ou seja, ao plano das verdades mais gerais, da vi-
são de realidade. Correlativamente, não poderia deixar de haver entre os dois
uma discordância quanto ao objeto do conhecimento filosófico e ao processo
de conhecer.
A concepção de realidade (ou também, a metafísica) de Aristóteles era dife-
rente daquela de Platão. O filósofo questiona a duplicação do mundo feita por
seu mestre (mundo sensível e mundo inteligível) e a tese de que só rompendo
com o mundo sensível e com o senso comum se pode chegar ao conhecimento
das formas ou ideias perfeitas, o que deve ser objetivo do filósofo.
Em seu texto chamado Metafísica, assim escreve Aristóteles:

(...) perguntar enfim que socorro as ideias [puras, do mundo inteligível de Platão]
trazem para os entes sensíveis, quer se trate de entes eternos (astros) ou dos entes
que sofrem geração e corrupção. Com efeito, elas não são para esses seres a causa
de nenhum movimento e de nenhuma mudança. Também não trazem nenhum concur-
so para a ciência de outros seres. (Negrito meu, APUD Bettencourt de Faria, 2001,
p.70)

Constrói um argumento usando as noções de relação interna e relação ex-


terna (Marcondes 2008). Se duas coisas têm uma relação interna, então há ele-
mentos comuns às duas; porém se sua relação é externa, então não têm nada

capítulo 5 • 79
a ver uma com a outra. Nesse caso, a relação que se queira fazer entre AMBAS
exige o recurso a uma terceira coisa, que por sua vez terá uma relação externa
com as duas primeiras e precisará assim de uma quarta coisa para explicar sua
relação com a terceira e assim ao infinito.
Mas este é apenas um entre outros argumentos intelectualmente sofistica-
dos, para atacar a concepção de que para conhecer devemos olhar para o “outro
mundo”, que não aquele da realidade sensível. Por exemplo:

Quanto a dizer que as ideias são paradigmas e que as outras coisas participam delas,
isso não passa do uso de palavras destituídas de sentido, e de metáforas poéticas.
Onde então se trabalha com os olhos fixos nas ideias? Pode acontecer, com efeito,
que algum ser exista e se torne semelhante a outro, sem que por isso tenha sido mo-
delado a partir desse outro (...). Além disso, teríamos diversos paradigmas do mesmo
ser (...) (Bettencourt de Faria, op.cit., p.71)

5.2  Uma nova Metafísica


A concepção de realidade de Aristóteles é, portanto, diferente daquela de Pla-
tão. Coerentemente com sua crítica à teoria das ideias, ele propõe que o mundo
para onde devemos nos voltar se desejamos conhecer é o mundo que percebe-
mos em torno de nós. Não temos que olhar para ideias eternas, mas sim para
as coisas que existem neste mundo.
E o que existe neste mundo? Segundo Aristóteles, e aí está uma parte es-
sencial de sua concepção de natureza, existem substâncias individuais – indi-
víduos sobre os quais se pode afirmar: “Isso é x”. Notem que há aqui uma es-
trutura gramatical pela qual se unem dois termos – um sujeito e um predicado
– através do verbo ser. Podemos por exemplo dizer: “Isso é um cavalo”. Sobre
cada substância individual no mundo, quando afirmamos alguma coisa, recor-
remos a essa estrutura gramatical.
Porém, a mera possibilidade de ser sujeito de predicações não é suficiente
como critério para algo ser substância (senão até mesmo o nada seria uma subs-
tância, afinal, podemos dizer predicativamente: 'o nada não tem propriedades').

80 • capítulo 5
Substância é o que somente pode ser sujeito e nunca predicado, pois ser predi-
cado é ser uma propriedade inerente em outra coisa e substância é o que existe
por si enquanto matéria organizada por uma forma, isto é, enquanto indivíduo
realmente distinguível e separável de qualquer outro indivíduo.
Notem que Aristóteles não quer se referir com seus indivíduos a pessoas,
mas sim a cada coisa que existe e que podemos diferenciar / individuar – ou
que venhamos a poder. Por ex.: esse animal, esse homem, essa montanha, esse
rio, esse automóvel, esse planeta etc. E é para essas substâncias individuais
que o filósofo que quer conhecer deve voltar-se. Neste movimento, Aristóteles
restitui à realidade sensível1 um lugar no processo de conhecimento. Há em
Aristóteles um realismo das substâncias individuais, tal como em Platão have-
ria um realismo das ideias (sobre isso ver Garcia Morente, 1966).
Em Platão o mundo sensível existe, contudo é mero reflexo imperfeito do
mundo das ideias, ou seja, por exemplo, todos os cavalos que existem são có-
pias imperfeitas de um cavalo único e perfeito ideal, para o qual deve voltar-se
a atividade de conhecer.
Em Aristóteles, conforme dissemos logo no início, também há a desconfian-
ça quanto à possibilidade de sermos induzidos ao erro pela sensibilidade, ou
seja, também para ele não podemos nos manter apenas ao nível das sensações,
se quisermos conhecer. Assim, em cada substância individual, Aristóteles irá dis-
tinguir forma e matéria. É a inteligência racional que abstrai a forma, que nos
permite reconhecer toda uma série de elementos distintos como sendo essen-
cialmente uma mesma coisa: poderemos dizer, por exemplo, “todos os cavalos”,
“todas as montanhas”, “todas as cadeiras”, Reunimos uma diversidade em um
mesmo conjunto, porque a inteligência nos permite abstrair em todos uma for-
ma comum. Essa separação é puramente um exercício racional; para Aristóteles
não existe matéria pura (sem forma) tampouco forma pura (sem matéria).
Matéria e forma pertencem à estrutura da substância. Marcondes (2008)
apresenta o ponto da seguinte maneira:

1  Temos aí uma das raízes do empirismo (posição que sustenta que o conhecimento vem da experiência) –
embora a discussão propriamente dita entre racionalismo e empirismo somente tenha aparecido mais tarde, no
período moderno da filosofia.

capítulo 5 • 81
“A matéria é o princípio de individuação e a forma é a maneira como, em cada
indivíduo, a matéria se organiza. Assim, todos os indivíduos de uma mesma espécie
teriam a mesma forma, mas difeririam do ponto de vista da matéria, já que se tratam
de indivíduos diferentes, ao menos numericamente. ” (p.72).

Por que a matéria é princípio de individuação? Porque ela individua.


Porque ela aparece aqui e ali, em cada indivíduo (substancia individual) que se
situa em determinado lugar no universo. Quando observamos uma população
de pinguins, vemos muitos indivíduos e cada um deles é uma substância indivi-
dual. Em cada um deles, a matéria individuou. Não estaria correto dizer que foi
a mesma matéria, por serem todos pinguins, pois a matéria não pode estar em
dois lugares ao mesmo tempo.
Mas, além de reconhecermos que existem muitos diferentes objetos / seres
individuais, reconhecemos que muitos desses diferentes objetos existentes per-
tencem a uma mesma espécie (daí o realismo aristotélico), por compartilharem
uma mesma forma. No nosso exemplo, todos aqueles animais são pinguins. O
princípio de individuação é o que torna cada um desses pinguins “um”.
A imagem a seguir corresponde ao quadro de Rafael Sanzio de 1509, de títu-
lo: “A escola de Atenas”.

82 • capítulo 5
Reparem como enquanto Platão, mais velho, aponta para o alto, o jovem
Aristóteles como que lhe chama de volta para a terra.
Enquanto Platão aponta para o alto, fazendo referência ao mundo das
ideias, para onde devemos nos voltar para alcançar a verdade, Aristóteles cha-
ma de volta para o mundo em torno de nós, indicando que a verdade deve ser
investigada aqui mesmo, no mundo concreto.

5.3  O ser em Aristóteles


Aristóteles procurou nada mais nada menos que revelar as características ne-
cessárias de todo ser enquanto ser (Morente, 1966). Talvez “o ser enquanto
ser” seja o que há de mais real, porém quando ouvimos ou lemos tal expressão
temos a certeza de estar diante de uma abstração difícil de acompanhar. Para
chegar ao “ser enquanto ser” devemos despir o ser de todas as suas qualidades
particulares, ficando apenas com aquilo que é essencial, portanto necessário,
ao ser em si.
Pois Aristóteles enfrentou a questão ao ponto de propor essas que seriam as
categorias do ser, enquanto ser. Trazemos esse tópico de Aristóteles pois essa
problemática inaugurada por ele será de uma importância extraordinária para
a filosofia como um todo. Mesmo que não esteja no propósito deste livro didá-
tico aprofundar as inúmeras e sutis discussões que o tema implica, queremos
deixar pelo menos seu registro ao nosso leitor. Vejamos quais são essas catego-
rias que, segundo Garcia Morente (1966), refletem um conjunto de modos de
predicar o ser, maneiras de atribuir ao sujeito um predicado:
•  Substância - quando dizemos de algo que “isto é isso ou aquilo”;
•  Quantidade – Quando predicamos de algo ser muito ou pouco;
•  Qualidade – quando atribuímos a algo uma qualidade, como ser verde,
nobre, feio;
•  Relação – quando comparamos algo com outra coisa. Quando estabelece-
mos uma relação entre uma coisa e outra;
•  Lugar – quando dizemos de algo onde esse algo está;
•  Tempo – quando dizemos de um ser quando é, quando deixa de ser e
quando foi;

capítulo 5 • 83
•  Ação – quando dizemos de uma ação que esse ser faz;
•  Paixão2 – quando dizemos de uma ação que esse ser sofre.

Ainda segundo Garcia Morente (ibid) Aristóteles dá a essas categorias um


sentido ao mesmo tempo lógico e ontológico (p.105). Isso quer dizer que essas
categorias não pertencem apenas ao ser, mas também ao pensar. Ou seja, não
podemos pensar [o ser] sem apelar para essas categorias, que são intrínsecas ao
próprio modo de funcionamento da razão. Por outro lado, todo ser em si, des-
provido de todas as características contingentes, é substância, tem grandeza,
tem qualidades, pode ser comparado a outros, está em algum lugar e pode ser
situado no tempo, realiza algo e sofre ações.
Reencontramos em Aristóteles essa equivalência entre o ser e o pensar que
fez parte da filosofia de Parmênides e Platão. De modo correlato, e apesar da
crítica que faz a Platão, pode-se dizer que também em Aristóteles se encontra a
ideia de que as aparências enganam. Mas é aplicando a razão às próprias apa-
rências (objetos individuais que nos são dados pela sensibilidade) que pode-
mos chegar ao ser, em suas diferentes dimensões.

5.4  Distinções Aristotélicas


Além de fazer acompanhar sua metafísica por uma teoria da estrutura da subs-
tância (forma e matéria) e sobre a estrutura do ser (categorias), Aristóteles pro-
põe distinções visando esclarecer impasses deixados pela filosofia anterior.
Acreditava que esses impasses aconteciam por uma colocação inapropriada
das questões. Destacamos aqui duas das mais conhecidas dessas distinções e
que dizem respeito a importantes problemas tomados pela filosofia até então:
os problemas do ser e da causa.
Quanto ao ser, Aristóteles quer mostrar que é possível focar os seres indivi-
duais que estão no mundo de modo a contemplar tanto a sua infinita variedade
e permanente mudança quanto a sua essência. Propõe que consideremos três
oposições que corresponderiam cada uma a três dimensões do ser que não de-
veriam ser confundidas. Assim, quanto ao ser, é necessário não confundir:

2  A noção de paixão vem carregada de sentido histórico. O termo empregado em grego Pathos (doença) foi
traduzido em Latim no período Romano por Passio e indica passividade, ou a capacidade de ser afetado passivamente.

84 • capítulo 5
•  Essência e acidente - Quanto a um indivíduo, quando se pergunta sobre
seu ser, é necessário distinguir entre o que lhe essencial e o que é acidental, po-
dendo estar ou não em indivíduos da mesma espécie. A cor, a altura, o tamanho
da crina, não fazem parte da essência do cavalo e cavalos podem diferir em mui-
to quanto a isso. Essência, conforme já indicado acima, é aquilo que faz com
que a coisa seja o que é. Acidente3 diz respeito às características ou atributos
mutáveis ou variáveis das coisas, que não interferem em sua essência.
•  Necessidade e contingência – Para o propósito apenas de introdução des-
sa distinção, seria suficiente indicar que ela é estritamente correlata à anterior.
Quando falamos da essência, ela deve reunir somente aquilo sem o que a coisa
deixaria de ser o que ela é. Ou seja, apenas o que é necessário à sua definição.
O que não for, pode pertencer ao ser enquanto acidente, exatamente por ser
contingente. O contingente não pode fazer uma coisa deixar de ser o que ela é4.
•  Ato e potência – Ato é aquilo que uma coisa é enquanto tal - uma semente
é, enquanto ato, uma semente. Já a potência é tudo aquilo que uma coisa pode
vir a ser - uma semente é, enquanto potência, árvore, madeira, lenha, etc.

Para Aristóteles, discutir o ser em si ou o ser de um objeto sem essas dis-


tinções leva a contradições insolúveis. Notem como através dessas distinções
Aristóteles evita o recurso à duplicação do mundo feita por Platão. Ele afirma
que é a razão aplicada sobre os seres (substancias individuais) que é capaz de
distinguir neles o que é essência e necessidade e ato, ou atributo, contingência
e potência.

5.5  Causa
Da mesma maneira, Aristóteles criticou a tentativa de discutir a causa sem dis-
tinguir suas quatro dimensões. Quanto a essa discussão sobre a causa, Garcia

3  É comum distinguir o essencial, o acidental e o próprio. Por exemplo, não é acidental ao homem a capacidade
de sorrir, mas também não lhe é essencial (não pertence a sua definição). A isso se chama o próprio. Caso não se
atente a isso, poder-se-ia, conforme conhecida brincadeira entre filósofos, 'definir' o ser humano pelo seu próprio:
'bípede sem penas que ri').
4  É importante notar que Aristóteles tinha algo em mente ao fazer a distinção entre essência e acidente e
outra entre necessidade e contingência. A diferença seria que essência e acidente dizem respeito diretamente à
substância, sendo, portanto, uma distinção ontológica. Já a distinção entre necessidade e contingência é concernente
a proposições e seu valor de verdade, sendo, portanto, uma distinção do domínio lógico e não ontológico. Porém
entendemos que estaria fora do objetivo do momento aprofundar esse, assim como outros problemas das definições
aristotélicas.

capítulo 5 • 85
Morente (Ibid.) afirma que Aristóteles desenvolve uma reflexão sobre a estrutu-
ra da realização:
•  Causa formal – forma baseada na qual aquela coisa foi feita;
•  Causa material – matéria da qual aquela coisa foi feita;
•  Causa eficiente – o que fez com que aquela coisa viesse a ser o que é. O
agente que a produziu;
•  Causa final – qual a finalidade ou propósito. Para que aquela coisa foi feita.
Tomando o conhecido exemplo da estátua, Aristóteles propõe: a causa for-
mal é o modelo a partir do qual a estátua é feita; a causa material é o mármore
ou bronze; a causa eficiente é o escultor e a causa final é o objetivo pelo qual se
fez a estátua (enfeitar o palácio do Imperador, por exemplo).

Para cada substância individual que há no mundo, poderíamos perguntar


pela sua causa, que envolveria essas distinções. Perguntar, por exemplo, pela
causa da lua, é perguntar pela sua forma, pela sua matéria, pelo princípio que a
cria, e por sua finalidade.
Reparem que com ambas as distinções, afastamo-nos da exigência, de cer-
ta maneira já presente em Sócrates, de chegar sempre àquilo que é invariante,
pelo “um” que há por detrás do múltiplo; que não sofre corrupção com o tem-
po. No caso da causa, como se a filosofia de até então tivesse ficado a discutir
em torno da impossibilidade de definir o que seja “A Causa”, o que seria essa
causa em si mesma. Tanto quanto o fez a propósito do ser, Aristóteles entende
que essa busca levaria a paradoxos intransponíveis.

5.6  Deus, causa primeira de tudo que existe


Apesar desse seu movimento de incluir a diversidade e o movimento como ob-
jetos do conhecimento, sem abandonar uma reflexão sobre a essência, ou seja,
sobre aquilo que não varia, Aristóteles dá lugar ao imóvel e ultra abstrato em
sua teologia, ao propor Deus como causa imóvel de si mesmo e causa de tudo
que há.
Aristóteles sequer se preocupa em desenvolver provas da existência de Deus,
conforme o fariam depois dele alguns filósofos cristãos durante o período da fi-
losofia medieval, pois não considera possível colocar isso em questão. Mas no-
tem que sua argumentação não caminha pela via do sagrado. Para Aristóteles

86 • capítulo 5
não é logicamente possível aceitar que não haja uma causa primeira de tudo
que existe. A Arqué dos pré-socráticos aparece em Aristóteles como Deus.
O Deus do filósofo apresenta características peculiares como, só poder pen-
sar e só poder pensar em si. No pensamento de Deus encontra-se a essência
de tudo que existe. A tudo isso Aristóteles chega apenas pela via da razão. Não
advoga em momento algum que seja necessário para a aceitação da existência
de Deus que se creia.
Dissemos no início que ao propor uma nova metafísica, Aristóteles também
teve que pensar de maneira própria o objeto do conhecimento e o processo do
conhecimento. É sobre isso que iremos falar a seguir a partir de um esquema
que mostra bem a ambição sistemática de sua filosofia.

5.7  Aristóteles e as áreas do conhecimento


Atentem para o quadro abaixo:

Conhecimento

Prático Produtivo Teórico

Ética Arte Física

Política Poesia Matemática

Economia Retórica Metafísica

Impressionante que Aristóteles tenha deixado contribuição tão rica em to-


das essas áreas assinaladas no quadro. Para cada uma define qual seja o objeto
e a tarefa da filosofia.
O Corpus Aristotelicum é formado por livros que correspondem a essas di-
visões. É um exemplo típico do que eram os filósofos antigos, gênios que en-
tendiam um pouco de tudo. Hoje, ou foram tornando-se cientistas, cada vez
mais especialistas em sua própria área, ou em uma pequena ou micro área
dentro da sua área; ou permanecem filósofos que, todavia, pela absurda fartura

capítulo 5 • 87
{
de informação, acabam também se tornando especialistas em determinadas
áreas da filosofia.

5.8  Aristóteles e o processo do


conhecimento

Um último tópico que queremos abordar antes de passar ao próximo capítulo


com a filosofia medieval diz respeito não a essa subdivisão em áreas do conheci-
mento, mas sim às etapas a serem atravessadas em todo processo de conhecer.
Aristóteles apresenta uma concepção continuísta do conhecimento, ao
contrário de Platão, que, como já vimos, afirmava ser necessário romper com o
senso comum para chegar ao conhecimento. Para Aristóteles o conhecimento
começa com a sensibilidade à qual vem se juntar a memória para formar o pri-
meiro nível de conhecimento: a experiência.
Vivendo ao nível da experiência, uma pessoa pode ter vida longa e relati-
vamente feliz. Sabe que o fogo queima e por isso evita aproximar-se demais
dele. Isso já é conhecer. Mas existem níveis mais valorosos de conhecimento.
Para além da experiência, existe a arte ou técnica, quando a pessoa não ape-
nas sabe que o fogo queima, mas sabe das causas desse queimar e pode ensi-
nar aos outros sobre isso. Tal etapa já é distinta da anterior e, para Aristóteles,
mais valorosa.
Finalmente há a etapa última, da teoria, que Aristóteles distingue como a
de maior valor. Na teoria, a pessoa que conhece (o filósofo) interessa-se pelo
conhecimento como um fim e não como um meio. Na etapa anterior, da técni-
ca ou arte, a pessoa sabe algo que lhe traz consequências práticas. Conhecer,
neste nível, é útil para propósitos imediatos.
Na etapa da teoria não. Conhecer é um bem por si só, o que leva Aristóteles a
defender o ócio, pois somente ele pode nos permitir esse pensar desatrelado de
nossas exigências mundanas. Vejam como é possível, com a valorização da teo-
ria por Aristóteles, perceber uma aproximação de sua filosofia com a de Platão,
não obstante a importância das diferenças existentes entre elas.
Antes de finalizar este capítulo, uma nota sobre a lógica, que não faz parte
da divisão inicial feita por Aristóteles, mas sobre a qual Aristóteles produziu
muito do que hoje ainda serve de referência para a lógica e as ciências em geral.

88 • capítulo 5
Notem que a lógica não aparece no quadro que apresentamos mais acima.
Isso porque Aristóteles a trata como instrumento (Organon) e diz que ela faz
parte intrínseca da ação filosófica em todas essas áreas. Segundo Marcondes
(2008):

Segundo Aristóteles, a lógica (...) constitui muito mais um saber instrumental de impor-
tância metodológica do que uma ciência ou conhecimento, já que todos os saberes
pressupõem algum tipo de lógica (p.77).

No próximo capítulo estaremos fazendo uma apresentação da filosofia no


período conhecido como Helênico, introduzindo e abordando também a filo-
sofia medieval, dividida em patrística e escolástica.

Obra “Aristotele” do pintor italiano Paolo Veronese, 1560. Localizada na Biblioteca Nazionale
Marciana, Veneza.

capítulo 5 • 89
ATIVIDADE
01. Na divisão feita no sistema aristotélico, ao conhecimento produtivo correspondem:
a) As ciências teóricas.
b) As ciências práticas.
c) Seu tratado de estética.
d) As ciências da natureza.
e) As matemáticas.

02. Sobre a crítica de Aristóteles a Platão, assinale a alternativa incorreta:


a) Alinha-se com a crítica do empirismo ao racionalismo.
b) Implica a consideração de que a metafísica de Platão leva a uma regressão ao infinito.
c) Ataca o apego de Platão à geometria.
d) Revaloriza a participação das sensibilidades no processo de conhecimento.
e) Aponta para a distinção entre matéria e forma do objeto.

03. Entre as distinções quanto ao ser feitas por Aristóteles encontram-se:


a) Virtude e vício.
b) Movimento e eternidade.
c) O abstrato e o universal.
d) O contingente e o lógico.
e) Ato e potência.

04. A título de reflexão, de acordo com as quatro causas propostas por Aristóteles, pense
as causas do ser humano.

05. Faça uma breve pesquisa para compreender melhor o porquê de Aristóteles conside-
rar a lógica a ferramenta fundamental para o exercício da filosofia, assim como de qual-
quer ciência.

06. No texto do livro base de Danilo Marcondes, no capitulo sobre Aristóteles, procure pela
parte em que explica o que é estudado por cada área do conhecimento, conforme o quadro
que trouxemos acima. Está no comentário que faz sobre o texto de Aristóteles chamado
“Metafísica”.

90 • capítulo 5
REFLEXÃO
A filosofia de Aristóteles antecede uma série de grandes mudanças por ocorrer na Grécia. A
expansão rapidíssima, jamais vista na antiguidade do Império de Alexandre, levou os valores
gregos a regiões distantes do oriente médio e da Ásia. Alexandre sonhava com a integração
sincrética das múltiplas culturas de seus territórios dominados e da cultura grega.
Porém o curto Império de Alexandre se desfaria rapidamente com sua morte prematura,
aos 33 anos. Seu império é dividido entre alguns de seus generais e progressivamente vai
sendo tomado pelo império romano. A cultura grega entraria em declínio, porém durante
algum tempo a influência grega se fez grande, em um vasto território, em que também se
fariam marcantes a influência do judaísmo, do cristianismo nascente, além de Roma, vetores
fundamentais na formação da cultura ocidental.
Esse período corresponde ao helenismo. Grande foi então o desenvolvimento da ciên-
cia, para o que mais do que certamente a filosofia de Aristóteles muito contribuiu. Em filo-
sofia foi o tempo dos epicuristas, dos estoicos e dos céticos, tempo em que o debate ético
passou a um primeiro plano. Tempo de transição que prepara a entrada em cena da filosofia
medieval, primeiro com a patrística, a partir do século IV depois de Cristo e em seguida com
a escolástica.
Veremos quando estudarmos a filosofia medieval que as obras de Platão e Aristóteles
foram utilizadas por padres-filósofos e/ou filósofos-religiosos para fundamentar dogmas da
Igreja Católica que teve o monopólio do cristianismo até a Reforma e foi a instituição mais
forte daquele período. Filósofos Árabes tiveram grande importância nessa transmissão de
Aristóteles ao ocidente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BETTENCOURT DE FARIA, M. C. (2001). O Realismo Aristotélico. In: REZENDE, A. (org.) Curso de
Filosofia. RJ: JZE. 2001.
CHAUÍ, M. (2003). Um Convite à Filosofia. SP: Ed. Ática.
COSTA, J. S. (2001). A Filosofia Cristã. In: REZENDE, A. (org.) Curso de Filosofia. RJ: JZE. 2001.
GLEISER, Marcelo. A dança do Universo - dos mitos de criação ao Big-Bang. São Paulo: Companhia
das Letras, 1997
MARCONCES, D. (2008). Iniciação à História da Filosofia. RJ: Zahar.
MORENTE, G, Manoel (1966). Fundamentos de Filosofia. SP: Ed. Mestre Jou.

capítulo 5 • 91
Bibliografia complementar:
ZINGANO, M. Sobre a Metafísica de Aristóteles. SP: Odysseus, 2006.
ZINGANO, M. Platão & Aristóteles. O Fascínio da Filosofia. SP: Odisseus, 2002.

92 • capítulo 5
6
Da Filosofia Antiga
à Filosofia Medieval
Cerca de 300 anos se passaram entre as vitórias de Alexandre e a definitiva as-
censão do império romano. Do tempo de Aristóteles, portanto, até quase o final
do período anterior a Cristo, a filosofia experimentou período de sensível di-
minuição de interesse pelas questões epistemológicas e também metafisicas,
estas pelo menos relativamente, em favor das questões éticas.
Céticos, epicuristas e estoicos, todas escolas filosóficas que vicejaram du-
rante esse período, tinham traços comuns e diferenças, porém aproximavam-
se no que diz respeito ao seu interesse em responder à pergunta sobre como
viver bem. Nenhuma delas julgou o conhecimento racional capaz de decidir
essa questão e sua saída não foi meramente o abandono das tentativas de co-
nhecer, mas sim a valorização do prazer e da felicidade. Se não podemos conhe-
cer, podemos e devemos ser felizes. A busca da pacificação da alma – logo, a
ideia de que a alma é atormentada, ou atormentável – é um princípio geral que
se estende às três escolas.
Mas esse período dito helenista não foi só filosofia. Ele absorveu à cultura
grega traços da cultura dos povos conquistados por Alexandre, levando a cultu-
ra grega até eles também. A extensão de terra das conquistas de Alexandre é ab-
solutamente estarrecedora, envolvendo Europa, Oriente Médio e Ásia. O nome
“helenista” refere-se justamente à influência da cultura grega.
O período conta ainda com a ascensão do cristianismo e a influência do ju-
daísmo. Conforme dito ao final do capítulo anterior, estes últimos, juntando-se
à cultura grega, constituem três influências fundamentais de nossa civilização
ocidental. O helenismo prepara o surgimento da filosofia medieval, dividida
em patrística e escolástica.
A filosofia medieval ou cristã apresenta como nota principal a busca da
conciliação possível entre razão e fé. Isso não é uma tendência hegemônica na
cultura, e muito menos na Igreja Católica, mas sim entre alguns dos principais
filósofos cristãos da época, como Santo Agostinho e São Tomás de Aquino.
A idade média é muitas vezes referida como “idade das trevas” – daí expres-
sões como renascimento e iluminismo para designar períodos posteriores. De
fato, a ascensão da Igreja católica ao posto de principal instituição da época
produziu repressões e violências à livre expressão, como de resto tem aconte-
cido com todos os períodos da humanidade. Contudo, isso não foi suficiente
para inibir a boa filosofia, a arquitetura, a arte em geral, com produções de alto
valor cultural.

94 • capítulo 6
Foi um período longo, de mais de dez séculos. Introduziremos a seguir al-
guns dos traços característicos, primeiro da filosofia do período helenístico e
em seguida da filosofia medieval. Não deixe de fazer acompanhar a leitura des-
se material com a leitura de textos de introdução a este período, que se encon-
tram em toda introdução à história da filosofia.

OBJETIVOS
•  Introduzir ao período helenístico;
•  Introduzir as escolas filosóficas do período helenístico;
•  Introduzir a filosofia cristã.

capítulo 6 • 95
6.1  O Período Helenístico
Designa-se por período helenístico o período da história da Grécia compreen-
dido entre a morte de Alexandre III (O Grande) da Macedônia em 323 a.C. e a
anexação da península grega e ilhas por Roma em 147 a.C. Nesse período, hou-
ve grande difusão da civilização grega numa vasta área que se estendia do mar
Mediterrâneo oriental à Ásia Central. De modo geral, o helenismo foi a con-
cretização de um ideal de Alexandre: o de levar e difundir a cultura grega aos
territórios que conquistava, embora até certo ponto respeitando a riqueza das
culturas dominadas.
O helenismo ficou assim marcado como momento cultural de forte sin-
cretismo, com influências culturais variadas que incluíam, além dos valores
gregos, o cristianismo nascente, o judaísmo e as influências culturais dos
povos anexados por Alexandre. Foi o período intermediário entre a morte de
Alexandre, que se deu ainda no tempo de Aristóteles, o declínio de Atenas e o
domínio e apogeu de Roma.
Durante esse período floresceram três principais escolas filosóficas: a dos
epicuristas, a dos estoicos e a dos céticos. As duas primeiras são escolas lem-
bradas, sobretudo, pela riqueza de suas discussões éticas, ou seja, voltadas para
uma discussão sobre como as pessoas devem viver. Já os céticos punham em
questão a possibilidade do conhecimento e isso já concerne ao domínio do pro-
blema do conhecimento e não da ética. Certa tendência na história da filosofia
talvez tenha influído para o relativo esquecimento desse período, muitas vezes
mantido à parte das introduções à história da filosofia e mesmo dos programas
das disciplinas de filosofia oferecidas a outros cursos que não de filosofia.
Quando se privilegia a lógica, o problema do conhecimento e a metafísica,
então as discussões éticas podem ser tratadas como menores. Isso é questioná-
vel, pois deve haver algum mérito em manter na mira da filosofia uma pergunta
cuja importância é óbvia, bem como a relevância de se buscar também nessa
área uma reflexão rigorosa.

96 • capítulo 6
6.2  Os Céticos
Ceticismo, do grego skepsis (examinar), foi uma corrente filosófica de certo
destaque no período helenístico. Os registros que temos dos autores dessa es-
cola são fragmentários, mas acredita-se que foi inaugurada por Pirro de Élis, no
século IV a.C.
O ceticismo, ao colocar em questão a possibilidade do conhecimento,
acompanha como uma sombra todos os períodos da filosofia. É como se colo-
casse em questão a própria existência da filosofia, ou da tarefa que a filosofia
tradicional se dá. Em todos os tempos sempre houve uma resposta cética à pos-
sibilidade do conhecimento e ela talvez possa ser considerada como correlata à
filosofia. Os sofistas, desde os primeiros tempos da filosofia, já colocavam em
questão o tipo de conhecimento que os filósofos afirmavam buscar ou produ-
zir. Podemos especular se todo filósofo não carrega um cético como seu ‘altere-
go’, um interlocutor interno com o qual o filósofo presta contas de tempos em
tempos. O ceticismo aparece, pois, com muitas diferentes roupagens.
Os céticos desse período acreditavam não haver a possibilidade de justificar
plenamente nossos argumentos; seria impossível oferecer razões suficientes
para provar a verdade de qualquer coisa. Quanto a isso, aproximam-se dos epi-
curistas e dos estoicos.
Defendiam a impossibilidade de se conhecer o todo (a totalidade das coi-
sas) e punham em questão qualquer verdade absoluta. Segundo eles, as coisas
existem, porém tudo o que podemos saber e dizer delas é de que maneira nos
afetam e não o que são em si mesmas. Desse modo, valorizam os fenômenos e
a empiria (experiência), bem como a suspensão de juízo (método que será reto-
mado pela fenomenologia moderna). Segundo Pirro, sendo impossível decidir
quanto à verdade ou falsidade “convém não se deixar levar por tais preocupa-
ções e manter a alma no estado de ataraxia, isto é, sem nenhuma perturbação
ou agitação (SIQUEIRA ABRAÃO, 1999, P. 71)

capítulo 6 • 97
Fonte: http://t2.kn3.net/taringa/0/2/6/4/7/3/lichoprieto20/FF7.jpg

Neste ponto, os céticos se aproximam da posição da escola dos cínicos, para


quem, a verdade das coisas é inacessível, já que delas só se podem apreender
aparências, sempre mutáveis. Novamente, tal como acontecia com os céticos,
seria preciso suspender os juízos sobre as coisas. Contudo, os cínicos eram
mais radicais, pois entendiam que, sendo assim, deveriam calar-se, não se pro-
nunciar em debates, não polemizar. Diz-se do cínico Diógenes que vivia pelas
ruas de dia, com uma lanterna acesa, a procurar um homem de verdade. Além
disso, Diógenes viveria em um barril na rua, em situação de extrema pobreza,
conforme característico da posição cínica, compatibilizada com a desconside-
ração de bens materiais (Ibid).

6.3  Epicuro
A escola epicurista recebe esse nome de seu fundador, o filósofo Epicuro (341
a.C. - 271/70 a.C). O que mais se destaca sobre sua filosofia é sua ideia de que
o homem deve ter uma vida voltada para a busca da felicidade, evitando o des-

98 • capítulo 6
prazer. Claro que essa posição, descontextualizada, leva a pensar que Epicuro
defendia uma forma de Hedonismo (posição ética segundo a qual o homem
deve se deixar orientar pela busca dos prazeres). Entretanto, a concepção de
felicidade epicurista é diferente, e inclui a boa medida, o equilíbrio entre os
diferentes tipos de prazer necessários ao homem.
Na verdade, o hedonismo é anterior a Epicuro. Porém, na medida em que
valorizava a felicidade como objetivo maior, e que isso não deixa de incluir o
corpo, Epicuro poderia, sob certo ponto de vista, ser considerado defensor de
certa forma de hedonismo. Mas é fundamental notar que para ele o prazer é
advindo da boa medida e que seu hedonismo nada teria a ver com a busca per-
manente dos prazeres carnais ou imediatos, assim como não corresponderia
ao modo como a tradição costuma entender esse termo.
Assim como ocorreu com o termo “sofista”, o termo “hedonismo” adquiriu
valor pejorativo por ser associado a ideia de que o homem deve se deixar guiar por
seus prazeres imediatos. Quando assim considerada, a posição hedonista instiga
réplicas que reclamam pelas renuncias que o homem deve fazer para justificar
suas pretensões de não ser meramente guiado pelas forças naturais. Do homem
se espera comportamento moral guiado pelas leis criadas pelo homem; a lei do
mais forte é substituída por regras para a ação baseada em valores e princípios.
Mas seria equívoco grosseiro tratar o epicurismo dessa maneira. Para ele, o
prazer do corpo só existe com a pacificação da alma. Por exemplo, o vinho pode
dar prazer; no entanto se bebemos vinho em excesso o desprazer (ressaca) que
virá depois, será maior do que o prazer que tivemos enquanto bebíamos e, nes-
te caso, o prazer não valeu a pena (ou não foi um prazer de fato).
Nessa perspectiva, vale a evitação da dor física e a busca dos prazeres físicos,
porém desde que adequados ao equilíbrio e a pacificação da alma (ataraxia).
Essas duas direções não são facilmente conciliáveis o que exige de cada um
uma boa dose de autodisciplina para manter firme a direção rumo à felicidade.
Exatamente por isso, não é tão distante quanto pareceria a filosofia de Epicuro
daquela dos estoicos (ibid).
Fato é que as notícias que recebemos de Epicuro não são as de que tenha
formado uma seita de pessoas voltadas aos prazeres do corpo. Sua famosa esco-
la foi chamada de “Jardim” e o que sabemos é que nela Epicuro viveu comuni-
tariamente em harmonia com seus amigos. Epicuro escolheu a virtude da ami-
zade como aquela principal. Vale lembrar que, diferentemente da Academia de
Platão, ou do Liceu, de Aristóteles, O Jardim também aceitava mulheres.

capítulo 6 • 99
Epicuro acreditava que para bem vivermos deveríamos aceitar (ou ao me-
nos, não temer) a morte. É famosa a sua frase que diz mais ou menos “A morte
não é nada para nós, pois, quando existimos, a morte não está presente, e quan-
do a morte se faz presente, não existimos mais”. O tema será retomado por filó-
sofos como Sêneca (4 a.C.- 65 d.C.), Montaigne (1533-1592), Goethe (1749-1832)
e os românticos (com ideias como, para viver é preciso aprender a morrer, ou
ainda, filosofar é aprender a morrer).

6.4  Estoicos
Embora fundada por Zenão de Cício (322 a.C. – 262 a.C.), o estoicismo não
possuía um líder, como no caso do Epicurismo e tantas outras escolas. Quan-
do hoje em dia falamos em uma pessoa estoica, queremos apontar como ela
suporta adversidades de modo surpreendentemente firme. O estoico aparece
assim como um disciplinado, capaz de suportar bem as dores do mundo, em
nome de princípios. Ora, quão distantes estariam a posição estoica e a posição
de Epicuro, caso essa fosse considerada meramente como uma orientação para
a satisfação dos prazeres imediatos (ibid).
Para o estoico, é preciso estar em sintonia com a natureza para atingir a sabe-
doria. Para eles, deve-se entender que o único bem/virtude que existe é a retidão
da vontade e o único mal, o vício. O que não é nem virtude nem vício é indiferente.
Assim, a doença, a morte, a pobreza, a escravidão, por exemplo, não são males,
são indiferentes porque o sábio é, por definição, feliz, mesmo no sofrimento.
Essas escolas não deixaram de se interessar por outros assuntos. A busca
por valores pelos quais viver, a questão do lugar adequado da competição entre
os homens, a tensão entre dogmas sectários e a argumentação continuaram
a ser debatidos por essas escolas e certamente havia entre os filósofos dessa
época interesses diversos sobre os temas que a filosofia já trabalhara até então.
Todavia o certo é que a filosofia deste período não é habitualmente lembrada
como especialmente marcante na história da filosofia. A visão hegemônica den-
tro da filosofia é aquela ligada ao que voltará a aparecer com força na filosofia me-
dieval, isto é, a busca do fundamento, do absoluto, do essencial. Essa perspectiva
nunca foi a mais valorizada pelas escolas filosóficas da época helenística.

100 • capítulo 6
6.5  Filosofia medieval (Séculos IV – XVI d.C.)
A filosofia desde o início pretendeu romper
com as sabedorias pontilhadas e susten-
tadas por mitos e tradições cuja origem se
perde no tempo. Porém no período da filo-
sofia que agora introduzimos isso se trans-
formou, pelo menos no que diz respeito às
relações entre filosofia e cristianismo. O
típico sincretismo religioso e efervescência
cultural do helenismo dão o contexto para
o início dessa transformação.
A atmosfera de convívio pacífico entre
diferentes saberes e práticas religiosas
terminaria por permitir que alguns ju-
deus e cristãos utilizassem principalmen-
te Platão e Aristóteles para compreender
pela razão os dogmas religiosos “revela-
dos” (primeiro testamento, pentateuco Obra Meeting of doctors at the University of

que, traduzido para grego transforma-se Paris, 1537, autor desconhecido, localizada na
Bibliothèque Nationale, Paris.
em septuaginta).

“O primeiro representante significativo dessa tradição que se inicia é Filon de Alexan-


dria, também conhecido como Fílon, o Judeu (25 a.C. - 50 d.C.), um judeu helenizado
que viveu em Alexandria nesse período e produziu uma série de comentários ao
Pentateuco, aproximando-o da filosofia grega, principalmente do platonismo. (...). Fílon
retoma o conceito grego de logos, interpretando-o como um princípio divino a partir
do qual Deus opera no mundo.” (MARCONDES, 2008, pp.107-108).

O cristianismo nascente de então apresentava duas características que de-


vem ser destacadas: primeiro, sua orientação no sentido de tornar-se uma reli-
gião universal. Embora houvesse aqueles que pretendessem pregar apenas aos
judeus, Paulo, conhecido como “Apóstolo dos gentios1”, defendia a necessida-
1  Termo latino para o hebraico ‘GOYIM’ significando ‘nações’, porém usado para referir-se às nações ou etnias não
judaicas. Posteriormente significando qualquer pessoa pagã (não-judia).

capítulo 6 • 101
de de pregar a todos: “Não há judeu, nem grego, nem escravo, nem homem
livre, nem homem, nem mulher: todos sois um em Cristo Jesus (Epístola aos
gálatas (3, 28), apud. MARCONDES, IBID. P. 108).
Porém o cristianismo se desenvolve através de núcleos de fiéis e não há um
discurso unificado entre eles. Essa fragmentação vai contra o ideal de religião
universal e passa a ser desejável o apoio da filosofia no sentido de dar funda-
mento a uma ortodoxia, quer dizer, a uma doutrina hegemônica.
A tradição considera São Justino (século II d.C.) o primeiro filósofo cristão.
Filósofo, São Justino converteu-se ao cristianismo passando a considera-lo a
verdadeira filosofia. Deu assim origem a um movimento de filósofos e teólogos
conhecidos como apologetas, por fazerem a apologia, ou defesa do cristianis-
mo. Esse movimento será conhecido como a patrística (Ibid).

6.6  A patrística
Assim, a patrística foi a filosofia dos primeiros séculos d.C. e deve esse nome ao
fato de ser elaborada pelos padres da igreja, principalmente a partir das Epísto-
las de São Paulo e do Evangelho de São João, isto é, pelos primeiros dirigentes
espirituais e políticos do cristianismo, depois da morte dos apóstolos. Do lado
da filosofia grega, apoiava-se principalmente em Platão, mas principalmente
naqueles fragmentos que permitiam uma fundamentação dos dogmas da fé.
Divide-se em patrística grega (ligada à Igreja de Bizâncio) e patrística latina (li-
gada à Igreja de Roma).
Devido à característica religiosa, a patrística introduziu temas desconhe-
cidos para os filósofos Greco-romanos, isto é, a ideia de criação do mundo a
partir do nada, de pecado original do homem, de Deus como trindade una, de
encarnação e morte de Deus, de juízo final ou de fim dos tempos e ressurreição
dos mortos, além da existência do mal no mundo, já que tudo foi criado por
Deus, que é pura perfeição e bondade. Com Santo Agostinho (354-430 d.C.) e
Boécio (480-522, d.C.), houve a introdução da concepção de “homem interior”
(consciência moral e livre arbítrio da vontade), pelo qual o homem, dotado de
liberdade de escolha entre o bem e o mal é o responsável pela existência do mal
no mundo. De acordo com Chauí (2003, p.58),

102 • capítulo 6
“Para impor as ideias cristãs, os Padres da Igreja as transformaram em verdades
reveladas por Deus (por meio da Bíblia e dos santos) que, por serem decretos divinos,
seriam dogmas, isto é, verdades irrefutáveis e inquestionáveis. Com isso, surge uma
distinção, desconhecida pelos antigos, entre verdades reveladas ou da fé e verdades
da razão ou humanas, isto é, entre verdades sobrenaturais e verdades naturais, sendo
que as primeiras introduzem a noção de conhecimento recebido por uma graça divina,
superior ao simples conhecimento racional.”

Essa perspectiva de conciliar filosofia e cristianismo não foi, nem no início


nem no fim do período medieval, unânime. Sempre houve aqueles homens de
fé que foram contra essa perspectiva. Isso ao ponto de fazer com que o grande
tema da filosofia patrística viesse a ser o da possibilidade ou impossibilidade
de conciliar razão e fé. A esse respeito, havia três posições principais (Ibid):
1. Os que julgavam fé e razão inconciliáveis e a fé superior à razão (diziam
eles: “Creio porque é absurdo”);
2. Os que julgavam fé e razão conciliáveis, mas subordinavam a razão à fé
(diziam eles: “Creio para compreender”);
3. Os que julgavam razão e fé inconciliáveis, mas afirmavam que cada
uma delas tem seu campo próprio de conhecimento e não devem misturar-se
(a razão se refere a tudo o que concerne à vida temporal dos homens no mundo;
a fé, a tudo que se refere à salvação da alma e à vida eterna futura).

6.7  Santo Agostinho


Santo Agostinho foi o maior entre os pensadores dessa época e deixou uma con-
tribuição ainda muito estudada. A propósito, o fato de um filósofo ser antigo
não o torna obsoleto, como poderia ser dito a propósito de verdades científicas
hoje refutadas. Estudar Santo Agostinho, do ponto de vista filosófico, é estudar
alguém que amava a filosofia e a praticava em grande estilo. Seus ensinamen-
tos são, neste sentido, imperecíveis e certamente isso não vale apenas para a
obra de Agostinho. O mesmo pode ser dito a propósito de Platão, Aristóteles,
Sócrates e outros. De acordo com isso, podemos dizer que toda filosofia está

capítulo 6 • 103
contida em cada pedaço de sua história e que podemos aprender filosofia tanto
estudando sua história como fazendo um mergulho vertical no trabalho de um
mesmo filósofo.

Obra Saint Augustine, do artista frances, Philippe de Champaigne, 1650. Localizada no Los
Angeles County Museum of Art, California

Conforme Marcondes (2008) há três interesses principais na obra de Santo


Agostinho: a relação entre filosofia e teologia; a questão da interioridade; a
questão do mal. Vejamos:

“Para Santo Agostinho, a verdadeira e legítima ciência é a teologia e é aos seus ensi-
namentos que o homem deve dedicar-se, pois preparam sua alma para a salvação e
para a visão de Deus, que é a sua recompensa” (Ibid, p. 113, negrito meu).

Se para Aristóteles Deus tem que existir e isso sequer pode entrar em dis-
cussão, trata-se, conforme mencionado no capítulo anterior, de um Deus que
tem de ser suposto como causa primeira. O sistema Aristotélico exige um fun-
damento último e o Deus de Aristóteles cumpre esse papel.
Contudo para Aristóteles trata-se de um Deus que não se ocupa dos proble-
mas do mundo. É um Deus causa; ele não olha para o mundo humano nem
espera dele ações mais ou menos conformes. Observem que em Aristóteles a

104 • capítulo 6
teologia já aparecia ligada ao saber teórico, o mais admirado por Aristóteles,
conforme exposto em quadro no capítulo anterior.
O Deus da Agostinho já é um Deus marcado pelas revelações trazidas pelo
livro sagrado cristão. Um Deus com o qual o homem pode fazer contato atra-
vés de seu coração, de sua interioridade (Marcondes, ibid). E, para que haja co-
nhecimento verdadeiro, esse caminho é necessário. Sem a intermediação de
Deus, não há verdade, senão as de menor valor, da vida prática (a rigor, não
há verdade).
Apesar das diferenças, trata-se em Agostinho, tanto quanto em Aristóteles,
de uma resposta profundamente entusiasmada com a possibilidade do conhe-
cimento. Santo Agostinho opõe-se aos céticos e dá, embora com um tempero
cristão, uma resposta que afirma a possibilidade do absoluto, do geral, do fun-
damento, busca antiga da filosofia. Mas para conhecer, é preciso crer.
Notem a referência ao “dever” na citação acima; perspectiva ética, portanto.
É pela lei de Deus que devemos nos salvar. Há a noção de que temos uma queda
pelo erro; a virtude não é uma tendência espontânea em nós, mas um trabalho
a ser feito, pela via da relação com Deus mediada pelo Cristo. O Cristo está em
nosso interior. Em Agostinho, surge esse espaço interior habitado pela luz do
Cristo. É através dessa luz que também podemos conhecer verdadeiramente:

“Santo Agostinho (...) prenuncia o conceito de subjetividade do pensamento moderno.


Encontramos já formulada em seu pensamento a oposição entre interior e exterior e a
concepção de que a interioridade é o lugar da verdade. É olhando para sua interiorida-
de que o homem descobre a verdade” (Ibid, p114.).

Entenda-se: pela mediação dessa luz interior. Para além de uma questão de
fé, o que se localiza aí também é uma epistemologia, uma busca de fundamenta-
ção do conhecimento. A resposta de Agostinho, quanto a isso, tem grande valor.
Crendo, é possível o avanço da razão em direção ao absoluto, ao mais puro do ser.
Quanto ao problema do mal, a questão que afligia religiosos era a de dar
conta da aparente existência do mal no mundo. Como pode um Deus de pura
bondade criar um mundo onde o mal exista? Uma linha mestra de resposta a
essa questão apontava para a questão do livre arbítrio: Por sua suprema bonda-
de Deus dá ao homem o livre arbítrio e, com este, vem a manifestação do mal.

capítulo 6 • 105
Filósofos e padres argumentavam que o mal não existe em si mesmo, sendo
sua manifestação na realidade a manifestação da ausência do Bem, ou de uma
falha no Bem tornada possível pelo livre arbítrio dos homens. A obra capital de
Agostinho quanto ao problema do mal é A Cidade de Deus, da qual reproduzi-
mos a seguinte passagem.

“Dois amores criaram duas cidades: o amor de si, levado até o desprezo de Deus,
criou a cidade terrena; o amor a Deus, porém, levado até o desprezo de si, criou a
cidade celeste. Aquela se gloria de si mesma; esta, no Senhor. Aquela busca a glória
dos homens; esta tem como maior glória o testemunho de Deus em sua consciência.
Aquela, na sua glória, levanta orgulhosamente sua cabeça;” (Ps. 3,4, Apud. COSTA, J.
S. 2001).

Santo Agostinho considerava a filosofia de Platão a mais pura e luminosa da


antiguidade e reinterpreta-a para conciliá-la com os dogmas do cristianismo.
Algumas aproximações são imediatas. Por exemplo, são possíveis analogias en-
tre a vida e morte de Sócrates e Cristo; a cidade de Deus de Agostinho lembra
o mundo das formas perfeitas em Platão; também no próprio mito da caverna
essa aproximação é possível, uma vez que mostra pessoas presas no fundo de
uma caverna e podendo chegar até a parte de cima, onde encontrarão o sol,
equiparado ao Bem.
Outro ponto de contato entre as filosofias de Agostinho e Platão se dá no
inatismo relacionado ao processo de conhecimento e que se pode localizar em
ambas. Se para Platão (conforme capítulo 4) a teoria da reminiscência apontava
que conhecer é lembrar, para Agostinho só é possível alcançar a verdade por um
processo de interiorização, estando o acesso à verdade condicionado a algo que
já habita anteriormente em nossa alma. O conhecimento da verdade é possível,
pois há em nós (em nossa alma) uma iluminação divina, imaterial.
Ao mesmo tempo, Agostinho, cujo modo de pensar a linguagem teve muita
importância na filosofia, enfatizava a convencionalidade dos signos linguísti-
cos (as palavras não têm uma relação natural com aquilo que elas significam).
Cada língua diz de um modo diferente o que são as coisas e, portanto, o signo
linguístico não poderia ter qualquer valor cognitivo:

106 • capítulo 6
“Não é através das palavras que conhecemos; logo não podemos transmitir conheci-
mento pela linguagem. A possibilidade de conhecer supõe algo de prévio, que torna
inteligível a própria linguagem. Sua posição [de Agostinho] é assim, na mesma direção
da filosofia platônica, inatista, ou seja, supõe que o conhecimento não pode ser
derivado inteiramente da apreensão sensível ou da experiência concreta, necessitan-
do de um elemento prévio que sirva de ponto de partida para o próprio processo de
conhecer.” (Ibid, p. 113).

Fato é que a fé inquebrantável de Agostinho trazia no seu bojo a certe-


za da possibilidade de conhecer o essencial, ou seja, aquilo sobre o que não
pode haver dúvida. Nesse ponto ele foi fiel a uma tradição filosófica de busca
do fundamento.
Os mesmos temas que animaram a patrística estarão presentes
na escolástica.
O mais importante representante dessa fase seguinte será São Tomás de
Aquino que, por sua vez, se apoiará maciçamente em Aristóteles para escrever
as linhas mais famosas da escolástica.

6.8  A Escolástica
A escolástica abrange o período que vai aproximadamente do século VIII ao sé-
culo XIV. Nesta época, a Igreja Católica Apostólica Romana dominava a Europa
em todos os âmbitos da vida social, política e econômica. As primeiras universi-
dades e escolas foram criadas pela Igreja e o nome “escolástica” deve-se ao fato
do ensino da filosofia ter sido levado para o interior dessas instituições.
Se para a primeira fase do pensamento medieval o filósofo grego de refe-
rência foi Platão, para a escolástica esse lugar foi de Aristóteles, traduzido e in-
terpretado pelos filósofos árabes Avicena e Averróis. Entre os principais temas
de interesse dos filósofos desse período estão: a prova da existência de Deus e
da imortalidade da alma; a existência do infinito criador e do espírito humano
imortal; o problema do mal; e a relação entre razão e fé. Em todo caso, no fundo
permanece o mesmo objetivo geral que dominou a filosofia da primeira etapa
medieval: a conciliação das verdades da fé e da revelação.

capítulo 6 • 107
6.9  Santo Anselmo (1033-1109)
Um dos principais nomes da escolástica é o de Santo Anselmo, que retoma o
projeto de Agostinho no sentido de conciliar as exigências da razão e da fé, de
“compreender com a razão as verdades da revelação” (COSTA, J. S. 2001, p.94).
Também para Anselmo é necessário primeiro crer para depois compreender.
É especialmente famoso seu argumento ontológico a favor da existência de Deus.

“Mas o ser do qual não é possível pensar nada maior” não pode existir somente na
inteligência. Se, pois, existisse apenas na inteligência, poder-se-ia pensar que há outro
ser existente também na realidade; e que seria maior. Se, portanto, “o ser do qual não é
possível pensar nada maior” existisse somente na inteligência, este mesmo ser, do qual
não se pode pensar nada maior, tornar-se-ia o ser do qual é possível, ao contrário, pen-
sar algo maior: o que, certamente, é absurdo. Logo, “o ser do qual não se pode pensar
nada maior” existe, sem dúvida, na inteligência e na realidade. ” (APUD, Ibid. pp. 94, 95).

O argumento é chamado 'ontoló-


gico' porquanto baseia-se no 'ser' de
Deus, quer dizer, na sua própria essên-
cia, ou enquanto ser absoluto, infinito,
sumamente perfeito. Ele procede de
maneira puramente a priori (indepen-
dente da experiência; não precisamos
ver para crer, neste caso) por contras-
te com outras provas a posteriori que
se baseiam, por exemplo, no mundo
como um efeito que requer uma cau-
sa - pelo princípio de razão suficiente,
como no caso de Aristóteles.
Anselmo afirma que um ser suma-
mente perfeito deve possuir todos os
predicados reais em máximo grau e,
se existir for um tal predicado, Deus
Obra Thomas Aquinas, do pintor ita-
liano Carlo Crivelli, 1476, localizada
na National Gallery, Londres.

108 • capítulo 6
deve possuir existência em máximo grau. Daí que a essência de Deus implique
sua existência.
Para alguns objetores de Anselmo, o argumento supõe falsamente que a es-
sência de Deus é compreensível quando na verdade o entendimento humano
finito sequer pode compreendê-la em sua infinitude; se for assim, ficam excluí-
das quaisquer provas 'ontológicas' (baseadas na essência ou 'ideia' de Deus),
pois sequer podemos compreender a ideia de um ser absoluto, infinito, perfei-
to, real em máximo grau, etc. Dai restaria o argumento trágico: creio porque é
a absurdo.

6.10  São Tomás de Aquino


Pensador escolástico mais importante, São Tomás (1225-1274) conduziu com
brilho a articulação entre razão e fé, logrando convergir suas duas paixões: Aris-
tóteles e o Cristianismo. São Tomás utilizou fartamente a lógica aristotélica em
suas argumentações extensas e rigorosas, típicas do procedimento demonstrati-
vo aristotélico.
O estilo fortemente argumentativo de São Tomás tornou-se dominante na
escolástica, o que acaba tornando os textos de seus pensadores um tanto pe-
sados, levando filósofos modernos como Renée Descartes (1596-1650) e John
Locke (1632-1704), entre outros, a considerarem o pensamento escolástico can-
sativo e mesmo incompreensível.
A Suma teológica é considerada sua principal obra. Buscando o equilíbrio
nas relações entre fé e razão, a teologia e a filosofia; propõe que ambas podem
tratar do mesmo objeto, entretanto a filosofia utiliza as luzes da razão natu-
ral, enquanto a teologia as luzes da razão divina manifestada na revelação. Para
Tomás, “a razão humana é uma expressão imperfeita da razão divina, estando-
lhe subordinada. Por isso, o conteúdo das verdades reveladas pode estar acima
da capacidade da razão natural, mas nunca pode ser contrário a ela”. (SILVEIRA
DA COSTA, p.96). Destacamos abaixo passagem da Suma:w

capítulo 6 • 109
“Mesmo em relação àquelas verdades a respeito de Deus que podem ser investigadas
pela razão, foi necessário que o homem fosse instruído pela revelação divina, pois essas
verdades, ao serem investigadas pela razão, chegariam a poucas pessoas e mesmo as-
sim só depois de muito tempo e com muitos erros. Entretanto, do conhecimento dessas
verdades depende a salvação do homem, a qual está em Deus. (...). Donde a necessida-
de de uma ciência sagrada, obtida pela revelação, além das disciplinas filosóficas que
são investigadas pela razão.” (Suma Teológica, I, Q. I, art. I, apud. Ibid., p.97).

6.11  A queda da Escolástica


Marcada por uma divisão entre os próprios homens da Igreja quanto à tentati-
va de conciliar razão e fé e pelo peso de sua filosofia, fortemente sistemática e
dialética, a escolástica terminará por ceder frente ao humanismo renascentis-
ta, vicejante no século XVI. O estilo escolástico de fazer filosofia encontrou re-
sistência desde o início por parte de padres que relutavam ante a aproximação
entre filosofia e religião, e também pelo homem comum ou às pessoas mais
ou menos ilustradas, na medida em que as questões discutidas afastavam-se
de interesses humanos mais imediatos, além de serem desenvolvidas em estilo
tortuosamente argumentativo e demonstrativo.
Não obstante, é rica a influência de Tomás de Aquino na filosofia, ao ponto
de “neotomistas” terem surgido alguns séculos depois, já ao final do período
moderno, com o aparecimento de várias escolas na Europa na primeira metade
do século XX. Além disso, conforme dissemos anteriormente, há uma episte-
mologia (uma resposta ao problema do conhecimento) medieval e ela é compa-
tível com o mais audacioso sonho filosófico que seria a de encontrar verdades
absolutas, necessárias, fundamentais. Essa busca virá ao primeiro plano no tra-
balho de Renée Descartes, que abre a filosofia moderna, bem como de outros
grandes filósofos desse período.
Nos séculos XV e XVI uma grande revolução já estava já em curso na Europa,
em diversos campos da cultura. Há um enfraquecimento do poder da Igreja
Católica o que dá espaço para a emergência de uma atmosfera na qual o

110 • capítulo 6
humanismo, um dos aspectos da cultura grega abandonados em tempos me-
dievais, volte a se propagar. Na verdade, é toda uma série de valores clássicos,
do pensamento grego antigo, que atraem a atenção de um importante segmen-
to da cultura que nesse período começa a emergir, livre da autoridade da Igreja.
O humanismo retoma o lema do sofista Protágoras segundo o qual “o ho-
mem é a medida de todas as coisas”, o que obviamente está em choque com a
ética vigente no período medieval, quando certamente Deus era a medida de
todas as coisas. Sobre a transição do medievo para o moderno e sobre a filosofia
de Renée descartes, falaremos no próximo capítulo.

ATIVIDADE
•  Pesquise sobre os seguintes personagens do período helenista. Isso dará a você uma boa
noção da importância desse período: Euclides, Ptolomeu, Aristarco de Samos, Galeno.
•  Pesquise um pouco mais sobre os estoicos e sobre Epicuro.
•  Recomendamos a parte do livro de Danilo Marcondes (2008) sobre a filosofia medieval e
sobre o humanismo renascentista.
•  Pesquise sobre as datas de ascensão e queda do Império Romano. Pesquise sobre o al-
cance geográfico desse império e sobre sua divisão em Império romano ocidental e oriental.
•  Pesquise sobre os seguintes nomes da filosofia medieval: São Justino, Tertuliano, Pedro
Abelardo, John Duns Scot e Guilherme de Ockham.

REFLEXÃO
Talvez o principal desafio de introduzir a filosofia a alunos de outros cursos de graduação que
não o de filosofia seja despertar-lhes para a importância de perceberem o quanto o mundo
atual não seria o mesmo sem a existência da filosofia ocidental com todos os seus caminhos.
Junto com isso, é preciso sensibilizar o aluno para a importância que o problema do
conhecimento tem para a humanidade. O impulso de conhecer não é uma ambição desne-
cessária de alguns homens pouco práticos, mas uma forte tendência nesse estranho animal
que somos. E é tolo o sonho de voltar a viver como em tempos passados, quando a filosofia
ainda não existia.

capítulo 6 • 111
A filosofia medieval, com sua ênfase nas relações entre razão e fé e em tópicos como
a “prova ontológica da existência de Deus”, ou a “existência do mal” pode parecer ao aluno
pouco religioso como algo ultrapassado, ou ao aluno religioso como um modo estranho de
enfocar a questão da fé. É importante, contudo, que o aluno suspenda juízos sobre época
tão brevemente apresentada aqui, como de resto sobre tudo o mais que esse livro introduz,
e, em primeiro lugar, que registre a existência desse tempo medieval, conhecendo as linhas
mestras que organizavam a cultura – sobretudo europeia – de então. Em segundo lugar, que
reserve lugar para a ideia de que a filosofia da época, tal como a anterior e a posterior, faz
parte fundamental do modo como vemos o mundo hoje. E nos parece tudo, menos pouco im-
portante, conhecer um pouco mais das influências que nos fizeram ser o que somos hoje. Isso
é válido tanto para a esfera social – o que nos tornamos enquanto cultura –, quanto para a es-
fera individual – o que nos tornamos enquanto sujeitos –, com nossas visões de mundo par-
ticulares e nossa percepção do lugar que ocupamos neste mundo, tal como o entendemos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CHAUÍ, M. Um Convite à Filosofia. SP: Ed. Ática. 2003.
COSTA, J.S. A filosofia cristã. In: Rezende, A.. Curso de filosofia. RJ: JZE. 2001.
MARCONDES, D. Iniciação à História da Filosofia. RJ: Zahar. 2008.
SIQUEIRA ABRÃO, B. História da filosofia. In: Os Pensadores. SP: Nova Cultural. 1999.
Bibliografia complementar:
GILSON, E. A Filosofia na Idade Media. SP: Martins Fontes, 1995.
_________. O espírito da filosofia medieval. SP: Martins Fontes, 2006.
_________. Introdução ao estudo de Santo Agostinho. SP: Paulus, 2010.
LIBERA, A. Filosofia Medieval.SP: Loyola, 1998.

112 • capítulo 6
7
O Humanismo
Renascentista
7.1  Introdução
Terminamos o capítulo anterior falando sobre a queda da escolástica. O perío-
do que se segue ao medieval é conhecido como renascença e o humanismo é
seu traço principal. O humanismo nesse contexto retoma o lema de Protágoras,
um dos mais notórios sofistas, segundo o qual “o homem é a medida de todas
as coisas”.
O nome renascimento tem a ver com uma retomada de valores gregos, após
um período dominado pela influência central da Igreja e, na filosofia, pela pro-
blemática da relação entre razão e fé. Interessante notar que entre os valores
retomados apareça o humanismo que encontra entre os sofistas uma versão
radical, por chegar ao ponto de afirmar que também a verdade é coisa huma-
na, abrindo caminho para uma postura relativista1 ou cética, que afrontava
os filósofos de então e durante muito tempo os filósofos da principal tradição
da filosofia.
Arte, política, arquitetura, ciência, filosofia, todas essas produções huma-
nas sofreram profundamente os efeitos dessa transição do medieval ao mo-
derno, que passa pelo humanismo renascentista. Costuma-se destacar três
grandes acontecimentos que contribuíram para essa transição: novamente, as
grandes navegações; a reforma protestante; e o advento da ciência moderna.
Discute-se se teria havido uma filosofia característica da renascença, que
compreenderia sobretudo os séculos VX e XVI. Na verdade, essas grandes tran-
sições não podem acontecer de uma hora para outra. Assim, natural que algo
do moderno tenha começado a surgir ainda no tempo medieval e que algo do
medieval tenha ainda penetrado no período dito moderno. A renascença é tida
como período intermediário, muitas vezes definida na história da filosofia por
esse traço, do que por sua filosofia própria. A seguir faremos referência a alguns
fenômenos históricos relacionados a esse período.

1  Para o relativismo, o conhecimento nunca é universal e absoluto e nem precisa ser. As teses e teorias são sempre
produzidas no contexto histórico e colocam sua marca no objeto que estudam, que nunca é puramente objetivo,
independente de nossa visada, do ponto de onde olhamos para ele.

114 • capítulo 7
7.2  Grandes navegações
Como sempre, a descoberta de novas terras e novos povos, como já acontecera
no período de nascimento da filosofia grega, gera uma crise na ortodoxia ante-
rior. 1492 foi o ano da descoberta do chamado novo mundo, com a descoberta
de novos povos humanos, novos animais, novas plantas. Verdades consagradas
tornam-se mitos ultrapassados, gerando ruptura com tradições e um impulso
por novas descobertas.

7.3  Reforma protestante


Os movimentos de protesto liderados por Martin Lutero (1483-1546) e João Cal-
vino (1509-1564) contra a ortodoxia católica, que determinava que somente os
homens santos da Igreja tivessem a capacidade de professar a versão correta
do livro sagrado ganha força suficiente para abalar mais ainda o poder central
da Igreja. Esse já havia perdido força junto ao enfraquecimento progressivo
do que restou da influência do império romano, assim como pela ascensão de
uma cada vez mais poderosa classe de comerciantes que prosperou de modo
independente da igreja especialmente em Florença (Itália), mas também em
outras cidades da Europa.

7.4  Ciência moderna


A cosmologia escolástica, ou seja, como os pensadores e religiosos dessa época
pensavam a ordem do Universo, considerava a existência de uma hierarquia de
seres, onde os superiores dominam e governam os inferiores (Deus, serafins,
querubins, arcanjos, anjos, alma, corpo, animais, vegetais, minerais). Esse ar-
ranjo tão bem hierarquizado certamente favoreceu também a interesses políti-
cos da Igreja.
Na escolástica ainda estamos no tempo em que se adota um modelo geocên-
trico – a terra como o centro do universo. Essa ideia fazia parte do modelo cos-
mológico aristotélico, que prevaleceu durante muitos séculos, até ser primeiro
atingido pelo heliocentrismo - o sol como centro do universo - de Copérnico,

capítulo 7 • 115
finalmente deposto, por sua vez, pelo universo maquínico e sem centro da ciên-
cia moderna de Galileu.
O modelo aristotélico favorecia a visão religiosa de um homem feito à ima-
gem e semelhança do Criador do Universo e cuja “casa” não poderia ocupar
outro lugar que não o centro de tudo que existe.
Entre o Universo da escolástica e o da ciência moderna, houve um período de
transição em que uma terceira visão vem aparecer, tipicamente renascentista.
Para os renascentistas, o Universo é uma grande alma, um grande organismo.
Uma totalidade comparável à de um corpo humano. Macrocosmo e microcos-
mo que o homem renascentista imagina e quer conhecer. Já não mais a hie-
rarquia medieval, mas um organismo vivo e aberto ao conhecimento humano.
A investigação desse micro e macrocosmo pelo homem caminha junto com
progressos técnicos que ocorrem na área da engenharia e da medicina, da al-
quimia e mesmo com uma revalorização da magia. Há entusiasmo no ar, como
se os bons tempos da animação e espanto do filósofo grego face ao que percebe
em torno de si tivessem voltado.
Com o advento da ciência moderna no século XVII, esse tipo de visão aca-
ba, sendo substituída pela visão mecanicista de um universo sem centro, sem
alma, funcionando como uma máquina que simplesmente funciona por fun-
cionar, sem qualquer intenção, qualquer objetivo próprio ou de algum criador
a ser cumprido, ainda que conforme leis da natureza que a ciência moderna
pretenderá conhecer.
Perto do cosmos do universo da ciência moderna, o modelo geocêntrico es-
pecialmente, porém mesmo o heliocêntrico, sugerem uma espécie de “narcisis-
mo” do ser humano, que sofre da ‘tendência’ de achar que ocupa no Universo
um lugar especial - quando na verdade ela é apenas fruto casual (embora con-
forme às leis da natureza) e temporário da totalidade da natureza. Para não se
ver à altura de sua insignificância cósmica, o homem inventaria Deuses e sua
relação de preferência diante deles.
A partir da ciência moderna o universo é reduzido a leis gerais que não são
vistas, mas calculadas, formalizadas em linguagem matemática. Acabou o ro-
mance, o sentido, o olhar de um Deus sempre atento cheio de expectativas so-
bre o que fazemos. Se se pode falar de uma metafísica deste novo tempo, ela
seria mais próxima a Platão do que a Aristóteles. Ganham estatuto de realidade
muitos mais as leis que regulam o movimento dos astros do que a substância
individualizada em cada um deles e em tudo que existe. O que não é dado pela

116 • capítulo 7
sensibilidade torna-se novamente o que há de mais real. E a matemática con-
firma isso.
Homem multitalentoso, o astrônomo Galileu Galilei teve de jurar com a
mão sobre a bíblia que o sol girava em torno da terra, mas já descobrira que
isso não era assim. Tampouco advogou pelo heliocentrismo de Copérnico. Esse
mesmo homem, ícone dos tempos de fundação da ciência moderna, acredita
que o grande livro da natureza fora escrito em linguagem matemática. Não dei-
xem de notar a ousadia da ideia, pois, se assim é, então podemos supor que
pela matemática podemos conhecer o real e que esse real é abstrato, como
a matemática.

7.5  Política
Na idade média, a subordinação do poder temporal dos reis e barões ao poder
espiritual de papas e bispos organizava a vida política na Europa. A Escolástica
havia inventado um método para expor as ideias filosóficas: a disputa. De acor-
do com Chauí (2012:60),

Por causa desse método de disputa – teses, refutações, defesas, respostas, conclu-
sões baseadas em escritos de outros autores -, costuma-se dizer que, na Idade Média,
o pensamento estava subordinado ao princípio da autoridade, isto é, uma ideia é
considerada verdadeira se for baseada nos argumentos de uma autoridade conhecida
(Bíblia, Platão, Aristóteles, um papa, um santo).

A mesma hierarquia manifestava-se no plano político. Porém, os grandes


acontecimentos na história da cultura ocidental que acabamos de mencionar
não poderiam deixar de ter forte repercussão no campo da política. O universo
da ciência moderna, conforme dissemos, vai contra as histórias contadas pela
tradição e isso acaba contaminando o ambiente político de forma a favorecer o
aparecimento e amadurecimento do liberalismo e individualismo. O governo
de uma nação deve favorecer a livre iniciativa, sendo tão mínimo quanto neces-
sário para permitir que as trocas comerciais e a iniciativa individual atinjam
o equilíbrio possível. Coerentemente, as pessoas devem poder escolher quem
as governará.

capítulo 7 • 117
A república é o modo de organização política favorecido na mesma medida
em que o humanismo renascentista vai deixando para trás tanto a cosmologia
quanto esse tipo de lógica filosófica da escolástica. O retorno à liberdade de
argumentação e a tentativa de aplicar a filosofia na reflexão sobre temas “terre-
nos” tal como já ocorrera com os gregos, junto com o crescimento da burgue-
sia, pressiona o modelo feudal – religioso, fortemente hierarquizado.

7.6  Moderno
7.6.1  Renée Descartes

Descartes (1596-1650) teve uma vida intensa, coerente com seu modo de
pensar a filosofia. Além de filósofo, foi matemático e físico.
Sua trajetória é marcada pela decepção com a filosofia escolástica, que con-
siderava complicada demais e distante dos interesses da vida.
Descartes costuma ser considerado o primeiro filósofo moderno. Isso por
duas razões:
•  Ele teria sido o primeiro a colocar o sujeito que conhece (sujeito do co-
nhecimento) em questão;
•  Teria, mais acentuadamente que qualquer outro filósofo antes dele, co-
locado em questão a relação de nossas representações (ideias) com o mun-
do externo.

7.7  O sujeito do conhecimento e o ceticismo


Vimos como no período antigo da filosofia grega havia um entusiasmo quase
ingênuo quanto à possibilidade do homem utilizar a razão para conhecer o ser
dos objetos, fossem eles concretos ou abstratos. Em seguida vimos como na
idade média a filosofia cristã lutou com o problema das relações entre razão
com a fé.
Cada um desses períodos teve seus temas principais. O período moderno da
filosofia, que se inaugura com Descartes, também terá seu eixo central que será
a pergunta sobre as condições de possibilidade do conhecimento. Dissemos
no primeiro capítulo que a filosofia tem três grandes áreas de investigação: a

118 • capítulo 7
ontologia, a ética e a teoria do conhecimento. O período moderno é fortemente
marcado por uma investigação ligada a esse último terreno.
As perguntas sobre se afinal, “é possível conhecer?” “Quem conhece?” E
“como se conhece?”, vêm para o primeiro plano. Não que essas questões não
tivessem sido colocadas antes por filósofos, mas chegavam a constituir a prin-
cipal problemática da filosofia de sua época.
Descartes coloca tais questões de maneira vigorosa. As elaborações que faz
marcaram profundamente o desenvolvimento da filosofia e, especialmente, da
ciência moderna. Tendo vivido em um contexto dominado pelo humanismo
renascentista, Descartes representa uma época em que, se por um lado havia
a ideia do homem como medida de todas as coisas e, portanto, uma crença no
poder humano de conhecer e andar com suas próprias pernas, havia também a
experiência de mais de 2 mil anos de filosofia, com seus conflitos intermináveis
entre homens brilhantes e suas teses que jamais chegavam a conclusões defini-
tivas em torno de um corpo central de questões.
Era, portanto, também um contexto cético o de Descartes. A pergunta pelas
condições de possibilidade do conhecimento não se impunha à toa. Descartes
levou esse ceticismo ao extremo, ao ponto de seu método ser conhecido como
dúvida hiperbólica (levada ao extremo). Isso significa duvidar de tudo, até che-
gar a certezas claras e distintas e somente a partir daí construir o conhecimento.
Descartes perguntava-se coisas do tipo “Como posso saber que não estou
sonhando?” Ou “E se houvesse um gênio maligno que criasse ilusões somente
para perturbar meu conhecimento?”. Nesse caminho, acaba assumindo como
única certeza a dúvida. Ou seja, em sua busca tenaz por uma certeza: conclui
que, apesar de duvidar de muita coisa, não poderia duvidar que duvida. E, se
duvida, pensa. Penso, logo existo (cogito ergo sum, em latim), é a frase que
Descartes fez entrar para a história.
Descartes assim irá encontrar um fundamento no sujeito que pensa. Porém
esse sujeito cartesiano, o cogito, tem como peculiaridade ser um sujeito redu-
zido a um ponto mínimo, de puro pensar. Descartes aplica assim uma operação
já conhecida pela filosofia ao próprio sujeito, ao despi-lo de todas as suas qua-
lidades sensíveis. Sujeito, em Descartes, não é uma pessoa, mas uma função
mental. A única garantia de que existo, de que não apenas sonho, é que penso.
O cogito é o ponto que resta de uma operação de dúvida implacavelmente apli-
cada a tudo que existe, inclusive ao próprio sujeito.

capítulo 7 • 119
Entre seus escritos destacamos um
pequeno livro de enorme importância,
O discurso do método. Nele, o filóso-
fo preconizava:
•  VERIFICAR se existem evidências
reais e indubitáveis acerca do fenômeno
ou coisa estudada1;
•  ANALISAR, ou seja, dividir ao máxi-
mo as coisas em suas unidades mais sim-
ples, e estudar essas coisas mais simples;
•  SINTETIZAR, isto é, agrupar no-
vamente as unidades estudadas em um
todo verdadeiro;
•  ENUMERAR todas as conclusões e
princípios utilizados, a fim de manter a ordem do pensamento.

Vejam como esses mandamentos expressam o ceticismo cartesiano (“posso me


enganar quanto à quase tudo”), combinado com a firme disposição de conhecer.
O que ficou conhecido como o cogito cartesiano é o ponto evanescente (que
resta) desse processo de dúvida hiperbólica. O sujeito deve duvidar de tudo que
conhece para então partir para conhecer com base em certezas claras e distin-
tas. A primeira delas é: “Sei que penso”. Só isso. Esse “Só sei que penso e mais
nada” é o cogito. A certeza fundamental.

7.8  Deus como garantia da possibilidade de


conhecimento

Curioso é que Descartes, contemporâneo de Galileu, com tudo isso, tenha par-
tido para o outro extremo em sua busca de fundamentar a verdade: Deus. Re-
parem como as divisões são esquemáticas e como grandes homens que marca-
ram uma mesma época apresentam traços tão díspares por vezes.
Descartes pergunta pela garantia que podemos ter de que nossas ideias (re-
presentações) correspondem exatamente àquilo que existe no mundo, fora de
nossas mentes.
1  Indo e voltando na ciência moderna. Descartes fica espalhado aqui e ali.

120 • capítulo 7
Quando Descartes fala de “ideia”, o faz em um sentido muito diferente
daquele proposto por Platão. As ideias estão nas mentes e não em uma supra
-realidade, como neste último filósofo. Descartes abre o caminho para uma
reflexão sobre o sujeito que conhece ao afirmar que só temos acesso a nossas
representações / ideias dos objetos e não aos objetos em si. O problema é saber
se nossas representações / ideias realmente correspondem aos objetos em si
mesmos.
É nesse ponto que a existência de Deus entra como garantia: Descartes afir-
mou que seria uma ofensa à perfeição e a Deus se o homem não pudesse co-
nhecer as coisas como elas são. Para isso, apresenta uma prova ontológica da
existência de Deus.
Antes de Descartes, já Santo Anselmo e outros pensadores medievais ti-
nham se dedicado a buscar tal prova com argumentos que interessam aos ló-
gicos até hoje. Não vamos nos ater aqui à especificidade desses argumentos,
ficando apenas com a constatação de que Descartes teve esse cuidado e que sua
busca pelas “fundações do conhecimento” encontra dois pontos de apoio: de
um lado, o cogito, sujeito evanescente do conhecimento, reduzido a uma pura
atividade pensante, livre de seus preconceitos incertos; de outro, Deus, que em
sua perfeição não poderia negar ao homem o poder de conhecer o mundo como
ele é.
A dúvida hiperbólica está entranhada no método científico. A ciência é aves-
sa a especulações, só confia na frieza dos números, das medições e observações
precisas e infinitamente repetidas e publicamente confirmáveis etc. A ciência
também é cética por desconfiar das próprias verdades que produz, que devem
ser sempre passíveis de verificação. Verdades que não podem ser falsificadas
pela experimentação não são científicas. Exemplo: “Deus é bom”.
Ceticismo, nesse contexto, significa duvidar da possibilidade do conheci-
mento; colocar essa possibilidade sob análise crítica. Trata-se, contudo, de um
ceticismo metódico, uma vez que é posto à serviço da atividade de conhecer,
conforme o mostra claramente o procedimento típico da ciência moderna.

7.9  Política
Se o mundo não tem centro, se estamos sozinhos aqui, se Deus não espera nada
de nós... então onde devo parar? Qual caminho devo seguir? Em que devo acre-

capítulo 7 • 121
ditar? O Deus de Descartes só serve para garantir que podemos conhecer, mas
não é um Deus que nos garante nada mais do que isso. O trabalho de conhecer
é nosso – Deus não nos “sopra” verdades sobre o mundo; apenas garante que,
se seguirmos o caminho do método, poderemos conhecer o mundo como ele é.
E o método começa pela dúvida.
Quando faço a ligação dessa orientação com a queda das tradições e o sur-
gimento das sociedades liberais nas quais se nutre o individualismo, é porque
uma tradição não resiste à dúvida. A tradição não dá explicação, apenas aponta
o que deve ser feito. As tradições respondem sempre: “Mas é assim que deve
ser, porque sempre foi assim”, como se afirmassem uma sabedoria que não
precisa ser fundamentada. A importância crescente da ciência moderna no
mundo ocidental acabou tornando essa posição insustentável.
Fácil notar, contudo, que viver sem seguir tradições também tem seu lado
ruim. Excesso de liberdade traz angústia; e talvez tenhamos que admitir que,
uma vez que não existe obrigação de seguirmos essa ou aquela tradição, justa-
mente temos então a responsabilidade de escolher uma que nos represente.
Dessa maneira chegamos novamente às tradições, embora por outro caminho.
É possível notar nas sociedades liberais de hoje que existe um refluxo em
direção a doutrinas cheias de sabedoria tradicional. Algo deu errado no projeto
moderno nesse sentido. Há um momento em que a dúvida torna-se insupor-
tável, de modo que muitos acabam por aderir a uma certeza doutrinária para
apaziguar o espírito. O risco então passa a ser o fanatismo, quer dizer, a adesão
cega a uma palavra de ordem que não pode ser posta em dúvida sem o risco de
provocar fúria assassina.
Falamos de racionalismo e de empirismo e dissemos que eles formam uma
oposição que se manifesta de diferentes maneiras ao longo da história da filo-
sofia e – começando um pouco mais tarde – da ciência até os dias de hoje.
Existem, porém, outros “ismos” no campo da filosofia. Gostaria de fazer an-
tes uma breve menção ao realismo e ao idealismo.Tal como empirismo e racio-
nalismo, são posições filosóficas que concernem ao conhecimento.Pertencem
ao campo da teoria do conhecimento - uma das áreas da filosofia, como tam-
bém o são a ética e a ontologia - pois respondem à pergunta pelas condições de
possibilidade do conhecimento.
No período moderno, remetem à seguinte questão: quem é o sujeito que
conhece e qual sua relação com o objeto do conhecimento?

122 • capítulo 7
7.10  A relação entre sujeito e objeto do
conhecimento

Notem que não se trata de uma pergunta que se dirige ao caso concreto desse
ou daquele sujeito cientista que está fazendo um experimento, ou elaborando
uma teórica científica no aqui agora, ou do filósofo no momento exato em que
está pensando sobre alguma questão filosófica. Trata-se de uma pergunta pelo
universal: um sujeito em abstrato, que não é este nem aquele, mas todo o sujei-
to que conhece.
Esse sujeito é aquele que representa todo cientista ou todo filósofo;ou seja,
a ciência ou a filosofia em suas pretensões de conhecimento. Esse sujeito que
conhece debruça-se sobre aquilo que quer conhecer – o objeto do conhecimen-
to. Este, por sua vez, representa também todo e qualquer objeto de interesse
da filosofia e da ciência - questão geral / abstrata e não particular / concreta,
exatamente como é do feitio da filosofia colocar.
Questão esta que se apresenta com um dos eixos principais desse período
dito moderno da filosofia, que vai aproximadamente do século XVII a meados
do século XX (essa periodização admite sempre “franjas”, quer dizer, aqueles
momentos de transição de um período a outro; portanto, devem ser considera-
das com certa margem de erro).

7.11  Realismo
Para o realismo, entende-se que existem de um lado os objetos a serem co-
nhecidos, com suas características próprias e,de outro,o sujeito que conhece
através de suas faculdades cognitivas, cada vez mais auxiliadas pela tecnologia
(próteses tecnológicas, tais como telescópios, microscópios,termômetros, cro-
nômetros etc.) e que pode conhecer tais objetos exatamente como são.
No caso mais propriamente filosófico, essa posição também contempla a
realidade de entidades abstratas. Neste sentido, a razão nos permitiria pensar
objetos abstratos que existem efetivamente no mundo como a razão, que se tor-
na assim uma “coisa” no mundo, ainda que não material.
O pensamento antigo de uma maneira geral era mais marcado por essa
perspectiva. Havia um entusiasmo ingênuo do filósofo com a possibilidade de

capítulo 7 • 123
conhecer desde que seguindo a razão ou metodicamente aplicando-a para co-
nhecer a experiência.
Porém, hoje em dia também é possível encontrar comunidades de cientistas
que aceitam a ideia de que muito do que a ciência hoje comprova revela de fato
como as coisas são, “queiramos” nós ou não que elas sejam assim. Segundo
essa perspectiva, a ciência “descobriria” ou “revelaria”, com seu método, como
o mundo funciona; como o mundo de fato é.

7.12  Idealismo
Já o idealismo é - generalizando, pois não existe apenas um idealismo - a dou-
trina segundo a qual só podemos conhecer ideias. Assim, ao dirigirmos nossa
atenção para o mundo, formamos ideias (o que não exclui que existam ideias
inatas) e são essas que podemos examinar.Trata-se de uma posição na qual a
subjetividade assume lugar central, ainda que, na maioria das vezes, não como
uma subjetividade particular, mas geral. A pergunta sobre o modo como as
ideias se relacionam com os objetos do mundo é de suma importância para
essa perspectiva e muitas foram as respostas elaboradas sobre esse ponto.
Reparem que um filósofo pode combinar diferentes aspectos de alguns
desses “ismos”. Platão apresentava uma espécie de “realismo das ideias”.
Descartes também era ao mesmo tempo idealista e realista. Berkeley (1685-
1753, empirismo inglês) julgava que só tínhamos acesso às nossas ideias, mas
que elas eram provocadas pela experiência; assim, era idealista e empirista.
Por outro lado,o modo como Descartes e Platão pensavam a noção de
“ideia” era completamente diferente. Em Descartes, elas estão na nossa mente;
em Platão, em outro mundo, aquele das formas puras.
Descartes acreditava que só tínhamos acesso a nossas ideias, que seriam
reproduções em nossa mente do mundo real. Ele encontrou na existência de
Deus, como vimos na aula anterior, uma garantia de que nossas ideias pode-
riam, por sua vez, corresponder exatamente ao mundo tal como ele é, indepen-
dentemente das considerações humanas.

124 • capítulo 7
7.13  Inatismo
Descartes acreditava também que nascíamos com certo número de ideias ina-
tas, ou seja, não aprendidas na experiência. Por exemplo, as ideias de espaço,
movimento, número e suas modificações. Em sua visão, chega-se a estas ideias
pela dúvida metódica, que elimina tudo que não seja claro e distinto. Tais ideias
forneceriam uma base para nossa construção do conhecimento. Daí também
seu inatismo (no sentido de inato, quer dizer, o que já “nasce conosco”).
Quando falamos de inatismo em teoria do conhecimento, referimo-nos à
posição que defende a existência de ideias inatas. Platão foi um “inatista radi-
cal”, com sua teoria da reminiscência, segundo a qual nada podemos aprender
de novo. Já sabemos de tudo que pode vir a ser aprendido. Aprender é “lem-
brar” do que foi esquecido. Note como tal posição é frontalmente avessa ao em-
pirismo, que defende que o homem antes da experiência é como uma “folha
em branco” (tábula rasa).
Muitos pensadores modernos apresentam algum traço de inatismo.
Immanuel Kant (1724-1804), por exemplo, quis dirimir a briga entre inatistas e
empiristas afirmando que a razão é inata, embora não seja uma ideia. Com isso
pretendeu conceder a cada lado o que lhe é de direito. Sem a experiência não há
conhecimento; porém sem a razão inata e universal, não há experiência.
Como curiosidade, vale registrar que durante muito tempo a psicologia cul-
tivou a pergunta sobre o que é dado e o que é adquirido no comportamento de
um indivíduo. Hoje a tendência é considerar com muita cautela essa pergunta,
pois parece difícil acreditar que ela possa ser respondida cientificamente.
Em todo caso, existem posições dentro do campo da psicologia que apre-
sentam elementos de inatismo. Essa questão podem também ser colocada tan-
to no plano individual quanto coletivo. Por exemplo: pode-se perguntar o que
neste indivíduo humano é inato e o que é inato em todos indivíduos humanos.

capítulo 7 • 125
7.14  O empirismo inglês
Francis Bacon2 (1561-1626) e John Locke (1632-1704) são frequentemente
considerados os primeiros representantes do empirismo inglês. Contudo, se
considerarmos como traço fundamental do empirismo a recusa em aceitar a
existência de ideias inatas, então John Locke é o primeiro filósofo a atacar mais
sistematicamente essa noção.
Bacon teve enorme importância para o desenvolvimento da ciência moder-
na. Esse filósofo falava em ídolos da mente que nos impediam de conhecer as
coisas como elas são, da única maneira que seria possível conhecer: observação
cuidadosa, registro preciso, constantes verificações e, mais do que isso, a per-
manente tentativa de encontrar uma prova em contrário.
Nesse sentido, Bacon adianta a posição que seria no século 20 defendida
pelo epistemólogo (de epistemologia, ou “filosofia da ciência”) Karl Popper
(1902-1994). Para ele, tanto quanto para Bacon, há maior valor para a ciência na
prova da falsidade de uma hipótese do que na prova de sua verdade.
Notem como vale aqui o método indutivo que vai do particular ao geral. Por
exemplo, enquanto só tivermos encontrado cisnes brancos, podemos sustentar
a hipótese científica de que “todo cisne é branco”. Mas o cientista deve seguir
em busca do encontro de um cisne que não seja dessa cor. Essa perspectiva
revela também o caráter cético e desconfiado da ciência, que ganha sua melhor
expressão na dúvida metódica de Descartes: duvidar de tudo, para só confiar no
que for claro e distinto.
Os ídolos da mente propostos por Bacon são os ídolos da tribo, os ídolos da
caverna, os ídolos do mercado e os ídolos do teatro. No final das contas, o que
essa metáfora de Bacon quer indicar é que o homem tende a deixar-se enfeitiçar
por aquilo que lhe convém acreditar e que, por isso, não há melhor guia para o
conhecimento do que a firme adesão àquilo que nossa experiência nos mostra
clara e distintamente.
Toda metafísica que mereça o nome torna-se assim suspeita, exatamente
por confiar naquilo que somente o pensamento pode informar, quer dizer, na-
quilo para cujo conhecimento a experiência em nada contribui.

2  Há quem diga que a modernidade começou com Bacon, não tanto pelo que ele produziu em filosofia, mas
sobretudo por ter questionado com veemência os métodos filosóficos que vinham sendo utilizados até então e que,
segundo ele, a nada levavam, e abrindo, assim, os caminhos para uma nova forma de se fazer filosofia. É famosa a sua
frase “conhecimento é poder” e ilustra o objeto central do pensamento moderno: o conhecimento (ou epistemologia).
(poder aqui, não em sentido político, mas poder ou controle sobre a natureza)

126 • capítulo 7
Impressionantes foram os avanços científicos nos dois séculos seguintes
ao período medieval, ao longo do qual a ciência havia enfrentado relativa es-
tagnação. Alguns filósofos, entre eles Bacon e depois Locke e Hume, entre os
principais, admitiram que esse avanço devia-se à tendência antiespeculativa
da ciência, que caminha fortemente respaldada pela observação e pelo méto-
do experimental.
O cientista não confia nos seus olhos; ele mede, repete, calcula, compar-
tilha, põe à prova enfim, trata-se de uma observação metódica e que procura
fundamentar-se na experiência, desde que – o que é importante -publicamen-
te compartilhável.
Em Descartes já encontrávamos essa ênfase na importância do método,
mas havia também a consideração da existência de ideias inatas, a partir das
quais conhecemos. Nesse ponto, os empiristas discordam, afirmando a priori-
dade da experiência.
O empirismo, em suas diversas modalidades, deu força à orientação anties-
peculativa da ciência, que termina por dar consistência ao positivismo, propos-
to por Augusto Comte (França, 1798-1857). A posição espantosamente otimista
deste filósofo defendia que o positivismo seria a maneira finalmente madura
de conhecer. Conhecer com base nos fatos. Simples assim.
Vale notar que, conforme acontece com todos os ismos que encontramos
na filosofia, não existe apenas uma forma de empirismo, nem de positivismo.
Diferenças sutis aparecem e devem ser consideradas caso a caso, o que está fora
de nosso objetivo neste momento.

John Locke

John Locke (1632-1704) ficou conhecido por sua metáfora que compara o ser
humano quando nasce a uma “tela em branco”, na qual vão sendo registrados
os estímulos internos e externos trazidos pela experiência (empiria). Segundo
Locke, as ideias são o objeto do pensamento e elas são sempre derivadas de
impressões vindas da experiência. Nossa observação impõe-se sobre as ideias
e sobre nossas operações mentais e essa é a origem do nosso entendimento.
Locke vive em um contexto fortemente marcado pelas ideias de Descartes e
é contra esse pano de fundo que devemos entender seu pensamento. Para ele,
a consideração dessas ideias inatas parece não ser necessária e acaba levando a
fantasmagorias que nos enfeitiçam.

capítulo 7 • 127
Com seu empirismo Locke traz contribuições importantes para outras
áreas da cultura, como a política. A posição empirista é, em política, favorável
a uma posição liberal que termina por levar ao individualismo. Assim como no
conhecimento, deve prevalecer a experiência em relação a estruturas que se-
riam pré-existentes, em política vale o debate democrático em que as posições
diferentes possam ser defendidas e não sejam previamente julgadas em função
de tradições cuja origem se perde no passado e diante das quais devemos, antes
de tudo, nos calar e simplesmente obedecer.

David Hume

O mais radical dos empiristas foi David Hume (1711-1776). Limito-me aqui a
apresentar em linhas gerais a contribuição que trouxe ao debate sobre a noção
de “causa” e sobre a noção de “eu”.
Primeiro, sobre a questão da causa. Em linhas gerais, Hume irá propor que
o que nos leva a entender que um evento é a causa de outro é o hábito. Jamais
percebemos na experiência a “causa”. O que a experiência nos oferece é a suces-
são no tempo e no espaço de tais eventos. Pelo hábito, passamos a prever que
dado um certo evento, segue-se outro. Mas isso não quer dizer que percebamos
a causa.
Com relação ao “eu”, a crítica se repete. A experiência não nos fornece qual-
quer “eu”. O que ela nos oferece quando tentamos encontrar determinada coisa
não é nunca mais do que um “feixe de ideias”, ou seja, um conjunto convergen-
te de ideias. Novamente o hábito nos leva a dizer que temos um “eu” que, nesse
sentido, teria sua realidade além desse feixe de ideias, quando na realidade isso
não acontece ou, se acontece, não temos nenhum acesso a isso.
Notem que não é à toa que Hume ataca estes pontos. Evidente que, ao ata-
car a noção de eu, ele mexe com a posição cartesiana que dava ao cogito uma
posição de fundamento da verdade. Além disso, a noção de causalidade é outro
destaque entre as ideias inatas propostas pelos inatistas e racionalistas.
Com esses exemplos radicais desse filósofo genial que deixou marcas per-
manentes no campo da cultura em geral e da filosofia e da ciência mais espe-
cificamente, chegamos aos limites do empirismo, com sua crítica feroz a toda
tentativa de dar realidade àquilo que não se dá na experiência.
Essa discussão entre os diferentes “ismos” da filosofia manifesta-se no
campo da psicologia e tem interesse direto para nós. Especialmente porque,

128 • capítulo 7
quando se trata do estudo do ser humano e ainda mais especificamente de sua
subjetividade ou mente, entramos em um terreno em que é difícil nos manter-
mos em acordo quanto ao que é dado na experiência.
O mental, na maioria das vezes, envolve aquilo que não pode ser publica-
mente observado. Uma das tentativas mais conhecidas de preservar os princí-
pios do empirismo neste campo é o behaviorismo, que reduz o mental ao com-
portamental – ou seja, ao que pode objetivamente ser percebido na experiência.
Os limites dessa tentativa, que tem seus méritos, são, contudo, evidentes,
o que pode ser percebido pelo lugar lateral que ocupa hoje na psicologia qual-
quer behaviorismo radical. Termina por se mostrar necessário no mínimo fle-
xibilizar a perspectiva empirista, para não corrermos o risco de produzir uma
ciência muito precisa embora, não obstante, estéril.
A dimensão mental traz muitos impasses para cientistas e filósofos. No sé-
culo vinte veremos brotar duas correntes de reflexão importantes conectadas
a essa área: a filosofia da mente e as ciências cognitivas, ambas trazendo con-
tribuições importantes à psicologia. Veremos isso resumidamente no próximo
capítulo, ao abordar a filosofia contemporânea, preferencialmente em suas in-
terfaces com a psicologia.

7.15  Do moderno ao pós-moderno


Entre os desdobramentos que levam do período dito “moderno” da filosofia
à filosofia contemporânea, teríamos ainda que prestar homenagem a muitos
movimentos que, contudo, não encontrariam todos espaço suficiente nes-
ta apresentação.
Apenas a título de exemplo, cumpre mencionar que a todos que se interes-
sem pela filosofia pode ser do maior interesse conhecer pelo menos em linhas
gerais o trabalho de Hegel (1770-1831) e dos filósofos pertencentes ao grupo
chamado de idealismo alemão; o círculo de Viena e o empirismo lógico, dos
grandes Frege (1848-1925), Russel (1872-1970) e Wittgenstein (1889-1951) en-
tre outros; a fenomenologia de Husserl (1859-1938); a filosofia da linguagem de
Wittgenstein e Austin (1911-1960); o existencialismo de Heidegger (1889-1976)
e Sartre (1905-1980), que por sua vez, em parte, se enraíza no trabalho do gran-
de Nietzsche (1844-1900) e tudo isso para mencionar apenas alguns nomes e
escolas. Impossível fazer justiça a todos.

capítulo 7 • 129
Excluindo o existencialismo propriamente dito que nasce em meados do
século 20, todos os outros são trabalhos de filósofos que produziram durante
o século 19 ou na virada deste século ao século 20. Não têm ainda, entretanto,
características gerais que os definam como pensadores contemporâneos3, sen-
do ainda melhor compreendidos quando colocados contra o pano de fundo do
pensamento moderno.
Entre eles, considero importante fazer um breve comentário sobre a feno-
menologia e o existencialismo pela contribuição que esses movimentos filosó-
ficos trouxeram ao campo da psicologia. Em seguida apresentarei a filosofia
contemporânea ou também chamada “pós-moderna”, destacando aquele que
considero seu traço principal, qual seja, a de abandonar definitivamente qual-
quer tipo de busca metafísica por essências ou por verdades universais e neces-
sárias – transcendentais, como diria Kant, ou seja, a-priori, independentes da
experiência. Daí seu forte acento relativista e pragmático.

7.16  A fenomenologia
Nascida do trabalho de Edmund Husserl (tempo de vida), a proposta dessa
escola filosófica é basicamente metodológica, bem de acordo com aquilo que
dissemos da filosofia moderna. A fenomenologia pretende oferecer um mé-
todo para o estudo dos atos mentais. Dizendo de outra maneira, um método
para conhecer a consciência, considerada inseparável de sua intencionalidade,
quer dizer, do sentido que a partir dela se produz sobre um mundo somente
acessível enquanto fenômeno e não como fato ou coisa em si mesma, separada
da consciência.
A fenomenologia entende que só temos acesso a fenômenos, isto é, ao
mundo tal como ele aparece para a consciência4. Vemos que quanto a isso, há
elementos comuns com boa parte do que foi produzido no período moderno.
Ênfase na subjetividade e no seu lugar fundamental no processo de conheci-
mento como lugar em que sujeito e objeto do conhecimento se encontram.
Pensar os atos mentais é pensar o modo de operar da consciência que, con-
forme dito acima, sendo intencional, não pode ser isolada daquilo que está
sendo apreendido no aqui agora da experiência. O filósofo deve concentrar sua

3  Embora, talvez, possam ser pensados como os precursores do pensamento contemporâneo.


4  “Assim como visto em alguns sofistas, e nos céticos”.

130 • capítulo 7
atenção naquilo que se passa na consciência no ato de apreensão de dado fe-
nômeno. Para isso, deve antes procurar despir-se dentro do possível dos (pré)
conceitos com que costuma apreender o mundo, para, assim fazendo, retornar
às coisas mesmas enquanto fenômenos – visadas pela consciência.
Como se trata do campo da filosofia e não do campo da psicologia, não
surpreende que os fenomenólogos visem com isso não o estudo de como uma
consciência individual apreende o sentido de dado fenômeno, mas sim como
uma consciência geral, ideal, o apreende, idealmente. Por exemplo, o sentido
do que seria a justiça, a beleza, a bondade, o conhecimento, Deus ou qualquer
outro termo sobre o qual pese uma discussão filosófica, que sempre pode ser
reduzida às perguntas: “o que é significar?” Ou “o que significa isso”. Não se
trata de conhecer o modo como a consciência de João ou Maria apreende a sig-
nificação do termo “Deus”, mas sim de como uma consciência “trans-indivi-
dual” (ideal) necessariamente apreende o “sentido” (ideal) de tal termo.
Na medida em que se volta para o trabalho da consciência, natural que a
fenomenologia oferecesse subsídios para a psicologia. Sobretudo quando pro-
clama o “retorno às coisas mesmas”, na medida em que se manifestam como
fenômenos à consciência, a fenomenologia permite que muitos adeptos do
método clínico em psicologia trabalhem privilegiando o método empático, isto
é, o método que permitiria ao pesquisador ou ao clínico ter acesso ao modo es-
pecífico como um sujeito vê o mundo que o cerca, sem julgá-lo pelo acerto com
que representa um suposto mundo objetivo ao qual deveria adequar-se.

7.17  O existencialismo
O existencialismo representa como talvez nenhum outro um movimento em
filosofia cuja preocupação principal é fazer a filosofia servir para que as pessoas
pensem o modo como desejam viver, ou mesmo o que significa viver.
O existencialismo utiliza o método fenomenológico para pensar o ho-
mem lançado em sua existência. Para o existencialismo, a existência precede
a essência.
Falar na essência de um objeto é supor que ele tem um lugar para estar, de-
terminado por aquilo que ele é e que não é modificável.
Tomando como objeto de seu interesse o homem em sua existência histó-
rica concreta, o existencialismo afirma que o homem não tem uma essência.

capítulo 7 • 131
Nasce livre, ou melhor, “condenado à liberdade”. Expressão paradoxal, pois
normalmente se espera de uma condenação a prisão.
Heidegger fala em “ser para a morte” e Sartre em “ser para o nada”. No pri-
meiro caso, só temos uma certeza, a morte; no segundo caso, nada tendo de es-
sencial que lhe garanta um lugar para estar ou algo necessário a fazer, o homem
deve inventar, criar, seu projeto de vida, pelo qual é inteiramente responsável.
O existencialismo não nos oferece uma doutrina sobre o que o homem deve
fazer, ou um método universal que ele deva utilizar para se compreender. É
uma filosofia que pensa caso a caso, a existência humana. Apoia-se para tan-
to em algumas certezas: o homem não é obrigado a nada. Sua única certeza
é a morte e o que tem diante de si ao nascer como sujeito é essa abertura ao
nada, que ele deve marcar com o seu projeto de vida. Condição angustiante, da
qual o homem tende a se defender buscando a escravidão, aqui significando o
caminho não assumido como gesto de escolha, ou seja, o cominho que “todo
mundo” – supostamente -segue.
O método fenomenológico participa da empreitada existencialista na me-
dida em que esta não serve a uma reflexão sobre “O Homem” em abstrato, mas
sim para que esse ou aquele sujeito reflitam sobre sua condição, uma vez lan-
çados no vazio de uma existência em que a única certeza é a morte. Daí que
se passe do homem em abstrato – movimento típico da filosofia que sempre
privilegiou o abstrato ao geral – ao sujeito no aqui agora de sua existência, sem
medir ao segundo tendo o primeiro como parâmetro. Movimento correlato ao
retorno às coisas mesmas, proposto pela filosofia, sendo a coisa mesma, no
caso do existencialismo, o próprio sujeito em seu “ser aí” (dasein).
Embora não seja o foco deste livro, talvez seja importante que se faça uma
breve menção ao romantismo que foi de grande influência para filósofos como
Hegel, Schopenhauer, Nietzsche, os existencialistas e tudo o que se produziu a
partir desses, mesmo que num viés crítico.
O romantismo foi um movimento cultural, político e filosófico que emergiu
no final do século XVIII, primeiramente na Alemanha, depois se espalhando
pela Europa (inclusive, foi o movimento que contribuiu para a unificação da
Alemanha, que até então era dividida em Estados). O movimento surgiu em res-
posta ao iluminismo e à sua supervalorização da razão e do conhecimento. Para
o romântico, a razão é impotente (ou ao menos, limitada) ante ao desejo e aos
afetos, a moral não possui valor real/universal, visto que é uma criação humana
e racional, e o sofrimento é condição da própria vida. Assim, o homem deveria

132 • capítulo 7
voltar-se para si e para a natureza, entrando em contato com seus sentimentos
e com a experiência sensível, retornando assim à “essência humana”. A vida é
sofrimento e as únicas coisas que dão um sentido a ela (bem como aquilo que
nos leva à liberdade) são o amor e a criação. O romantismo será bem criticado
posteriormente por ser considerado muito idealista (e, de fato, o foi), mas é ine-
gável a importância que o movimento teve não só para a filosofia, mas para a
cultura ocidental, e que reverbera até os nossos dias.
Muitos dizem que a filosofia morreu na modernidade, o que não é de todo
uma inverdade, a questão é: a que tipo de filosofia nos referimos quando di-
zemos isso? Em grande parte, isso se deve a Hegel, que chega a ser chamado
por alguns estudiosos (e pelo próprio Marcondes) de “o filósofo do fim da filo-
sofia” justamente porque, a partir de sua obra, deixou de fazer sentido a cria-
ção de uma filosofia preocupada com a elaboração de sistemas complexos que
se ocupem de questões distantes da experiência humana, concreta e singular.
(Vale lembrar que nessa época já existiam ciências como física, química, biolo-
gia, direito, e começavam a surgir a sociologia e a psicologia que, de um modo
ou de outro, davam conta daquelas questões que outrora foram atribuições
da filosofia).
Portanto, as escolas filosóficas que se seguem a esse período não constituem
uma unidade. Um exemplo é o existencialismo. Não existe “O Existencialismo”,
mas pensadores existencialistas, que muitas vezes discordarão entre si, mas que
carregam esse mesmo nome por haver pontos em comum que sustentam suas
filosofias. Focaremos aqui nesses pontos em comum ao falar dessas correntes.
O existencialismo é uma corrente filosófica que radicaliza a liberdade indi-
vidual, a responsabilidade e a subjetividade do ser humano, ou seja, como cada
um se relaciona e significa aquilo que lhe acontece. Para os pensadores dessa
corrente, cada sujeito é um ser singular, responsável por seus atos e seu desti-
no. O existencialismo rompe com a filosofia tradicional, ao afirmar, tal como os
românticos, que não existe vida sem sofrimento. Para eles, a angústia, a solidão
e mesmo o tédio, são inerentes à existência humana e são, justamente, o que
nos leva à criação. É a angústia que tira o homem da imobilidade e apatia e o
leva à ação. Diferente das escolas do período helenístico ou da tradição raciona-
lista, a angústia deixa de ser pensada como um sentimento negativo, e se torna
uma experiência singular e necessária, que se dá quando se tem consciência
da condição de liberdade e da total ausência de um significado inerente à vida.
Para o existencialismo o que distingue o ser humano das demais espécies é

capítulo 7 • 133
justamente essa consciência de sermos mortais e livres e, uma vez lançados ao
mundo, temos de arcar com a responsabilidade de existir.

7.18  A filosofia contemporânea


O período moderno da filosofia ocidental prolonga-se desde o final da escolás-
tica no século XVII até meados do século XX. Ele frequentemente é subdividido
em etapas menores – renascimento e iluminismo - que têm suas características
próprias, mas que não impedem que as aloquemos dentro do período maior
chamado moderno.
Destacamos do período moderno um ceticismo produtivo, ou seja, não
incompatível com o entusiasmo pelos poderes da razão e da ciência. Esse ce-
ticismo é consequência previsível dos mais de dois mil anos de filosofia que
transcorreram antes da chegada do moderno. Observem que estamos conside-
rando o início da filosofia por volta do século sétimo antes de Cristo e que a
escolástica recebe os últimos golpes de misericórdia cerca de 1600 anos depois
de Cristo, início do período moderno.
Ao longo desses séculos surgiram discussões, controvérsias e impasses
aparentemente incontornáveis em torno do esforço por atingir verdades abso-
lutas, que deveriam ser o fruto do bom uso da razão. Tais impasses levaram a
discussões epistemológicas e metodológicas que se alinham em algum ponto
dos diferentes “ismos” (empirismo, racionalismo etc.) a que nos referimos no
capítulo anterior. São questões que perguntam pela possibilidade do conheci-
mento, por o que é conhecer, interrogando assim a relação entre o sujeito e o
objeto do conhecimento.
Conforme vimos na aula 8 , depois de tantos anos de impasses, natural que
surgisse um Descartes propondo que duvidemos de tudo quanto não for claro
e distinto, chegando ao cúmulo de afirmar que, em princípio, só não podemos
duvidar que duvidamos. Esse passo cartesiano (de Descartes) entranhou-se no
método científico que se revela profundamente desconfiado – e, portanto, cé-
tico - quanto a tudo que pode ser afirmado como verdadeiro. Daí seu apoio na
metódica observação, na matemática e na incessante procura de contraprovas,
quer dizer, de fenômenos ou resultados de experimentos que mostrem que al-
guma de suas hipóteses é falsa e merece retificação ou substituição.

134 • capítulo 7
A filosofia contemporânea de certa maneira radicaliza o passo cético dado
pelo pensamento moderno. Vejamos como.

7.19  Pragmatismo e relativismo


Começo por destacar mais dois “ismos” que têm a maior importância no con-
texto da filosofia contemporânea. Vocês devem se lembrar que os “ismos” dos
quais já falamos – realismo, idealismo, racionalismo e inatismo - concernem
ao campo da teoria do conhecimento, que no período moderno problematiza
especialmente a relação entre o sujeito e o objeto do conhecimento. O mesmo
ocorre com o relativismo e o pragmatismo os quais apresento abaixo.

7.20  Relativismo
É possível considerar que os sofistas foram os primeiros sábios a manifestar
a perspectiva relativista. Para eles, a verdade era sempre um assunto humano.
O que isso quer dizer? Se descartarmos a visão crítica de que os sofistas eram
mercenários que vendiam argumentos a quem pagasse melhor, podemos en-
tender que os sofistas foram os primeiros a afirmar que a verdade é “relativa”,
ou seja, é sempre uma questão a ser resolvida em dado contexto, em face dos
melhores argumentos de que se pode dispor considerando uma série de ele-
mentos contextuais. Isso implica que a verdade jamais ultrapassa os limites
dos melhores argumentos possíveis em um dado contexto. Ela não “toca” o
mundo real, do qual nosso conhecimento estará sempre separado por um abis-
mo intransponível.
Para o relativismo, a verdade sempre tem “idade e endereço”. Ou seja, de-
pende do contexto cultural em que uma discussão filosófica tem lugar. Todo e
qualquer argumento filosófico enraíza-se nos conceitos (teóricos e da lingua-
gem cotidiana) e / ou das práticas de uma determinada comunidade. Nenhum
filósofo envolvido nesse contexto, por mais brilhante que seja, pode deixar de
falar desde uma posição determinada. Há sempre o “ponto desde onde ele pen-
sa”; ele não olha para o mundo “de fora”.
Importante fazer duas ressalvas: primeiro, a posição relativista contemporâ-
nea não implica que não deveriam existir filósofos ou que se deveria abandonar

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discussões sobre a verdade. Essa posição talvez pudesse ser atribuída a alguns
sofistas, mas o relativismo contemporâneo, pós-moderno, não tem essa im-
plicação. Apenas reconhece o caráter determinado da verdade, quer dizer, de-
terminado pelas práticas culturais, pelos valores e conceitos que circulam em
dado contexto da história das civilizações e culturas.
Segundo ponto importante: o relativismo não defende a ideia de que qual-
quer um pode dizer qualquer coisa, afinal a verdade é relativa. Assim, se você
acha que tal animal é um cão, enquanto eu acho que é um gato, não adianta
ficarmos discutindo, pois afinal toda verdade é relativa, você tem a sua e eu a
minha. O relativismo não tem essa implicação.
As discussões em torno da verdade podem e devem acontecer, eventualmen-
te com uma acalorada discussão das ideias. Não podemos viver no aqui agora
como se tudo fosse relativo. Discutimos defendendo nosso ponto de vista, em-
penhando nossos melhores argumentos e levando nossos esforços racionais às
últimas consequências. Mas sabemos que, ao final das contas, o que teremos
é a melhor “verdade” que podemos produzir no contexto de nossa discussão.
Tampouco se trata de acreditar que tudo que devo fazer é apresentar uma
performance convincente porque no final das contas o que existe são os melho-
res argumentos. Discuto acreditando no que afirmo, dando o melhor de minha
capacidade de raciocínio para justificar meu ponto de vista. Mas a busca de ver-
dades eternas, imutáveis, deixa de fazer sentido.
Mas também Kant (1724 - 1804), pensador da etapa iluminista da filosofia
moderna, já havia anunciado que a realidade em si mesma é incognoscível e que
só temos acesso a ela através da razão, o que impõe limites às nossas aspirações
de conhecimento. Assim, qual a novidade do relativismo em relação a Kant?
A novidade é que, se Kant interdita a possibilidade de conhecermos a coisa
em si, nem por isso deixa de afirmar a possibilidade de produzirmos um conhe-
cimento universal e necessário. A começar pela própria análise que Kant faz
da estrutura da razão. Essa é uma característica do pensamento moderno: se
o mundo em si mesmo não pode ser conhecido pela filosofia, pelo menos esta
pode mostrar com perfeita transparência qual a estrutura universal que condi-
ciona o conhecimento possível.
Kant apresenta assim um tipo especial de “realismo”: ele deixa de querer
mostrar como o mundo é em si mesmo para mostrar como a razão é em si mes-
ma. Ele assim pretende cumprir com uma tarefa crítica, preliminar ao conhe-
cimento propriamente dito; ele toma a razão como objeto de análise, mostra

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como ela é formada, como ela opera e assim pretende esclarecer o caminho
que a filosofia e a ciência devem seguir para produzir o conhecimento possível.
Voltando ao relativismo pós-moderno, a diferença fundamental é que vai
por água abaixo essa possibilidade de falar de uma “razão universal”. Existem
racionalidades locais e essas, sim, condicionam o conhecimento, sempre local
e datado.

7.21  Pragmatismo
Outro traço marcante da filosofia pós-moderna é o pragmatismo: para o prag-
matismo, verdadeiro é o que funciona.
Essa afirmativa causa espanto: como assim? Isso implica que a busca da
filosofia e da ciência é condicionada por interesses dos pesquisadores e da co-
munidade à qual pertencem. Verdadeiro é aquilo que traz consequências práti-
cas interessantes para as pessoas, desde que seguindo um caminho sistemati-
camente esclarecido, no caso da ciência e da filosofia. Assim, podemos admitir
que um discurso religioso, ou o senso comum, ou a literatura, também trans-
mitem “verdades”, embora elas sejam de outro tipo que as verdades produzidas
pela ciência e pela filosofia.
Ciência e filosofia seriam modos específicos de produção da verdade. Para
o pragmatismo, a verdade não é patrimônio exclusivo da ciência e da filosofia.
Digamos que para uma comunidade de pescadores certa mitologia organize
suas relações familiares e sociais, estabelecendo os papeis de homens e mu-
lheres e um conhecimento prático lhes permita uma exploração ótima do mar
para sua subsistência. Para o pragmatismo essas verdades devem ser respeita-
das e não são hierarquicamente inferiores às verdades da ciência e da filosofia.
A verdade é mensurada por sua eficácia e não por sua correspondência à
realidade ou por sua fidelidade a um método universal. Múltiplas são as verda-
des e os métodos. O papel da filosofia, mais do que descobrir verdades ocultas,
é produzir conceitos que sirvam como ferramentas para os seres humanos vi-
verem melhor.
Estamos assim no polo oposto da perspectiva aristotélica que dava máximo
valor ao conhecimento teórico, exatamente por ele ser desvinculado de qual-
quer utilidade. Perguntar a um aristotélico “para que serve querer saber” não
faz sentido. A busca do saber é independente de suas consequências; é um fim

capítulo 7 • 137
em si mesmo. Já para o pragmatismo, essa pergunta faz todo o sentido; ao con-
trário, o que não faz sentido é ficar procurando verdades de modo desvinculado
dos interesses humanos que tal busca poderia atender.
Assim, uma boa parte da produção filosófica do século XX, chamada con-
temporânea ou, mais especificamente, pós-moderna, tem essa marca de um
ceticismo em relação ao encontro de verdades eternas e absolutas e ao mesmo
tempo um entusiasmo pela tarefa da filosofia de criar conceitos que permitam
que o ser humano, ora sacie sua sede de conhecimento, ora encontre modos de
vida que pareçam mais interessantes aos envolvidos em dado contexto.
Muito representativa dessa perspectiva pragmática é o chamado pragma-
tismo norte americano de William James (1842 - 1910) e John Dewey (1859 -
1952). De diferentes maneiras esses autores, de modo bem afinado com um
forte traço cultura da América do Norte, põem em prática uma filosofia baseada
em uma concepção de verdade pragmática. Mais tarde, já no final do século 20,
Richard Rorty (1931-2007) faz reviver esse movimento no século 20 com o seu
assim chamado neopragmatismo.
O filósofo Jacques Derrida (1930-2004 ), por sua vez, foi um expoente prin-
cipal do pós-modernismo na Europa. Também poderíamos alinhar com ele o
alemão Jürgen Habermas (1929).
Importante notar que, assim como acontece em todos os períodos da filoso-
fia que destacamos, embora possamos falar de uma característica principal da
filosofia pós-moderna, também neste período encontram-se filósofos de todos
os tipos, herdeiros das mais diferentes tradições dentro da filosofia.
O método consagrado pela ciência moderna é um produto preciso desse
tipo de posição. A ciência é cética e seu método é feito de maneira a somente
progredirmos passo a passo, sempre submetendo as evidências ao enquadra-
mento dado pela matemática. O método científico caracteriza-se pelo extremo
cuidado em excluir de sua operação a ‘contaminação’ das teorias pelo fator
humano.
Galileu Galilei (Astrônomo, físico e matemático Italiano,1564-1642), chega
a afirmar que a matemática é a linguagem na qual foi escrito o grande livro da
natureza. Há nessa afirmação extrema ousadia, pois é como se o homem tivesse
acesso a essa linguagem. Nesse ponto vale notar a valorização de um aspecto

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que de certa maneira encontrava-se mais no Platão das formas abstratas do que
no Aristóteles das substâncias individuais.
A ciência moderna busca leis gerais que expliquem o funcionamento da-
quilo que percebemos em torno de nós e mesmo daquilo que não podemos
perceber.
Como a cosmologia moderna é um dos grandes tiros no pé da escolástica,
isso deveria aparecer em outro momento.

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