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Núcleo de Estudos de Filosofias e Infâncias

NEFI

Coleção
Teses e Dissertações

Volume X
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Reitor: Ricardo Lodi Ribeiro
Vice-Reitora: Mario Sergio Alves Carneiro
Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Luís Antônio Campinho Pereira da Mota
Programa de Pós-Graduação em Educação (PROPEd)
Coordenadora: Ana Chrystina Venancio Mignot
Vice-Coordenador: Guilherme Augusto Rezende Lemos
Núcleo de Estudos de Filosofias e Infâncias (NEFI)
Coordenador: Walter Omar Kohan

Conselho Científico (NEFI/UERJ) Conselho Editorial (NEFI/UERJ)

Alejandro Ariel Cerletti, Universidad de Buenos Aires, Argentina Alessandra Lopes


Alexandre Filordi de Carvalho, UNIFESP, Brasil Alice Pessanha Souza de Oliveira
Alexandre Simão de Freitas, UFPE, Brasil Allan Rodrigues
Barbara Weber, University of British Columbia, Canadá Daniel Gaivota Contage
Beatriz Fabiana Olarieta, UERJ, Brasil Fabiana Martins
Carlos Bernardo Skliar, FLACSO, Argentina Marcelly Custodio de Souza
César Donizetti Leite, UNESP - Rio Claro, Brasil Simone Berle
Claire Cassidy, University of Strathclyde, Reino Unido
Gregorio Valera-Villegas, Universidad Exp. Simón Rodríguez, Venezuela Capa:
Gustavo Fischman, Arizona State University, Estados Unidos da América Marcelly Custodio de Souza
Jason Wozniak, West Chester University, Estados Unidos da América
Juliana Merçon, Universidad Veracruzana, México Diagramação:
Junot Cornelio Matos, UFPE, Brasil Marcelly Custodio de Souza
Karin Murris, Cape Town University, África do Sul Simone Berle
Magda Costa Carvalho, Universidade dos Açores, Portugal
Maria Reilta Dantas Cirino, UERN, Brasil Revisão Técnica deste livro:
Marina Santi, Università degli Studi di Padova, Itália Carla Feitosa
Maximiliano Durán, Universidad de Buenos Aires, Argentina
Olga Grau, Universidad de Chile, Chile
Óscar Pulido Cortés, Universidad Tecnológica y Pedagógica de Colombia, Colombia
Paula Ramos de Oliveira, UNESP – Araraquara, Brasil
Pedro Pagni, UNESP – Marília, Brasil
Roberto Rondón, UFPB, Brasil
Rosana Fernandes, UFRGS, Brasil
Sílvio Donizetti de Oliveira Gallo, UNICAMP, Brasil
Wanderson Flor do Nascimento, UnB, Brasil
Walter Omar Kohan, UERJ, Brasil

"A comissão para avaliação cega dos trabalhos da Teses e Dissertações em 2020 foi integrada por Maximiliano
Lionel Durán e Maria Reilta Dantas Cirino.”

Da d o s I n t e r n a c i o n a i s d e C a t a l o g a ç ã o n a P u b l i c a ç ã o ( C I P )
( C â ma r a B r a s i l e i r a d o L i v r o , S P , B r a s i l )
Carolina Fonseca de Oliveira

Caminhar como modo de vida: da pesquisa à skholé. Carolina Fonseca


Oliveira. – 1 ed – Rio de Janeiro: NEFI, 2020 – (Coleção Teses e
Dissertações; 10).

ISBN: 978-85-93057-21-2
1. Escola. 2. Filosofia. 3. Caminhar. 4. Pesquisa. I. Título. II Série.

CDD 370.1

Índice para catálogo sistemático:


1. Educação: Filosofia 370.1

© 2020 Carolina Fonseca de Oliveira


© 2020 Núcleo de Estudos de Filosofias e Infâncias (NEFI/UERJ)
Site: nefiedicoes.filoeduc.org
Email: publicacoesnefi@gmail.com
Carolina Fonseca de Oliveira

CAMINHAR COMO MODO DE VIDA:


DA PESQUISA À SKHOLÉ

Coleção
Teses e Dissertações

Rio de Janeiro
NEFI, 2020
Coleção
Teses e Dissertações

Beatriz Fabiana Olarieta


Gestos de Escrita: pesquisar a partir de uma experiência de filosofia na escola.
(2016.Volume I)

Maria Reilta Dantas Cirino


Filosofia com crianças: cenas de experiência em Caicó (RN), Rio de Janeiro (RJ) e La Plata
(Argentina).
(2016.Volume II)

Maria Jacintha Vargas Netto


Gestos tecnológicos: o que pensa o YouTube em um curso de formação de professores de
uma universidade pública na cidade do Rio de Janeiro?
(2016.Volume III)

Vinicius Bertoncini Vicenzi


Fala, gesto, silêncio: uma questão pedagógica. A discussão entre sofistas e filósofos pelo
sentido e poder de ensinar
(2017.Volume IV)

Daniel Gaivota Contage


Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem
(2017. Volume V)

Vanise de Cássia de Araújo Dutra Gomes


Dialogar, conversar e experienciar o filosofar na escola pública: encontros e
desencontros.
(2017. Volume VI)

Patricia Raquel Redondo


La escuela con los pies en el aire. Hacer escuela, entre la desigualdad y la emancipación
(2018. Volume VII)

Sarah Nery
#Ocupa: Uma experiência educativa
(2018. Volume VIII)

Simone Berle
Infância como caminho de pesquisa: o Núcleo de Estudos de Filosofias e Infâncias
(NEFI/PROPEd/UERJ) e a educação filosófica de professoras e professores
(2018. Volume IX)

Carolina Fonseca de Oliveira


CAMINHAR COMO MODO DE VIDA: da pesquisa à skholé
(2020. Volume X)
APRESENTAÇÃO DA COLEÇÃO

O Núcleo de Estudos de Filosofias e Infâncias da Universidade do


Estado do Rio de Janeiro (NEFI/UERJ) experimenta o que qualquer grupo
de trabalho de uma universidade pública faz: ensinar, pesquisar e estender a
universidade fora dos seus muros. Seu foco temático são as relações entre
infância, educação e filosofia, tanto no que diz respeito a experiências
filosóficas com crianças e à formação de professoras em escolas públicas quanto
ao estudo e o exercício mais amplos possíveis da categoria de infância. Desde
2003 o NEFI tem estabelecido parcerias de trabalho com grupos de distintos
países e acolhido as mais diversas pesquisas com muitas formas institucionais:
trabalhos de fim de curso, ou seja, monografias, dissertações e teses de
estudantes da UERJ, missões de estudo e de trabalho com outras instituições
nacionais e internacionais; pesquisadores visitantes; estâncias de pós-
doutorado… devido às exigências do mundo editorial, relativamente poucas
dessas pesquisas têm visto a luz em forma de livro. Eis a razão principal do
nascimento dessa Coleção “Teses e Dissertações” aqui inaugurada pelo NEFI:
trata-se de possibilitar que os trabalhos por ele acolhidos possam tomar, de
forma mais notória, estado público. Para isso, periodicamente, o NEFI abrirá
uma chamada e os trabalhos candidatados serão julgados por uma comissão
específica de seu Conselho Editor Internacional que determinará a ordem em
que os trabalhos considerados aptos serão publicados. Os livros serão
publicados nos formatos papel e e-book. Esperamos que a coleção “Teses e
Dissertações” contribua não apenas para o crescimento acadêmico dos seus
autores mas para a consolidação de um campo que, talvez, possa nos fazer
encontrar uma outra infância: a infância de uma nova educação.

Walter Omar Kohan


Coordenador do NEFI
Aos caminhantes.
AGRADECIMENTOS

A Deus/a! Inspiração do meu viver e do meu caminhar, aquele/a que me


ensina que caminhar junto é muito melhor do que caminhar sozinha.
À minha mãe, Gilene, ao meu pai, Nelson, ao meu irmão, Gabriel, por
todo amor e por tudo que sempre fizeram e fazem por mim para que eu não
pare de caminhar e realize meus sonhos. Amo muito vocês!
Ao meu padrasto, Roberto, e minha madrasta, Mônica, por todo apoio
sempre. Muito obrigada!
À minha “vózinha”, Roseni, por ser exemplo de que a sabedoria está
muito além do “conhecimento escolar”; por sempre me apoiar e por fazer minha
comida preferida quando vou à minha cidade natal, Paraty: peixe cozido com
pirão de peixe com banana - um prato tradicional caiçara. E a minha vozinha
Eustália (em memória) e Carmem (em memória) por tudo que elas representam
para mim.
Ao Pablo, por ser meu companheiro de caminhada, por todo apoio, amor
e cuidado que foram essenciais para que eu chegasse até aqui. Gratidão eterna
por tuuuuudo. Principalmente, por me ajudar a nunca desistir e a confiar em
mim mesma. Também à Sônia e ao Izi por todo o apoio, incentivo e carinho
que tanto contribuíram para a realização desse sonho.
Ao NEFI e ao projeto de filosofia “Em Caxias a Filosofia En-Caixa?”
por me proporcionarem experiências de pensamentos e de caminhar de
diferentes maneiras. Não tenho palavras para mensurar o significado desse
Núcleo na minha vida. Gratidão!
À Escola Municipal Joaquim da Silva Peçanha em Duque de Caxias por
estar sempre de portas abertas e por dar força ao projeto de filosofia. Uma
Escola, assim como as demais do município de Duque de Caxias, que vem
resistindo, principalmente nos últimos anos, aos sérios ataques aos direitos
trabalhistas alcançados com muita luta pelos/as professores/as e ao
desinvestimento na educação pública.
A todos os participantes do projeto, alunos(as), funcionários(as),
bolsistas, professores e professoras pelas experiências vividas na “sala do
pensamento”.
A todxs xs amigxs do NEFI por fazerem parte do meu caminhar, em
especial, à Edna e à Vanise por toda força, apoio, amor, cuidado e,

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principalmente, por terem me ajudado em um momento muito difícil durante
o mestrado que pensei em interromper meu caminhar; não apenas na pesquisa,
mas também na vida. Obrigada por tudo!
Também não posso deixar de agradecer à Julinha (Julia Krüger) por ter
me ajudado nesta fase final da escrita me apresentando o livro “Caminhar, uma
revolução” e por caminhar comigo este caminho da amizade.
Agradeço, também, à Camilinha, à Pri, à Estherzinha, à Mayara
(bolsistas de graduação do NEFI dos cursos de pedagogia e filosofia) e à Ju
(que está para defender sua monografia do curso de pedagogia) por
caminharem esse caminho da educação e da vida comigo.
Às minhas amigas e irmãs Hada Nivyan e Andressa por tuuudo. Pela
amizade, companheirismo, força e cuidado. Também aos seus companheiros
Rafael e Pablo. Amo todos vocês!
À minha amiga Ju (Jusilene) por sempre me apoiar e cuidar de mim e a
todos e todas os/as amigos que me ajudaram de alguma maneira e que compõe
marcas na minha caminhada.
À minha amiga Carla Feitosa por ter me presenteado com a revisão
dessa escrita com tanto cuidado e carinho. Obrigada pela profissional e amiga
que você é.
Ao Juliano, amigo caiçara de Paraty que generosamente participou
dessa escrita através das nossas conversas.
À Simone pela gentileza e generosidade, pelo apoio e pelas trocas de e-
mails que nos ajudaram a compor nossas escritas. “O NEFI É NÓIX!”
Ao meu orientador, Walter Omar Kohan, pelo “caminhar junto” desde
2012, quando cursava o terceiro período do curso de graduação em Pedagogia.
Obrigada por tudo! Obrigada por sempre nos colocar a caminho e nos convidar
a uma atenção ao mundo! Obrigada por resistir e por nos ensinar a resistir, a
não deixar de caminhar, e a lutar pela educação pública, pela escola pública.
Às professoras, Maria Reilta D. Cirino e Ana Chrystina V. Mignot, pela
disponibilidade e generosidade em compor esta banca e por criarem maneiras
de resistir na Educação, principalmente, nas Universidades Estaduais, como é
o caso da UERJ e da UERN que sofrem com o descaso do governo. Muito
obrigada!
A todos os professores da UERJ, em especial, os da Faculdade de
Educação e do ProPEd por encontrarem maneiras de resistir e de não
deixarem de caminhar.

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À UERJ por tudo que ela é e representa não apenas na minha formação
acadêmica, mas enquanto um coletivo que resiste como um espaço para o
ensino público.
Ao ProPed pela oportunidade e por toda a formação que me
proporcionou.
Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico –
CNPq pela concessão de bolsa que me permitiu permanecer na cidade do Rio
de Janeiro para realizar este trabalho.
À Vilma Guimarães, uma educadora popular, incrível, que a vida me
presenteou e colocou em meu caminho. Obrigada pela oportunidade de
caminhar por este Brasil com companheiros e companheiras dessa equipe
maravilhosa de Educação da FRM. Toda a minha gratidão a essa equipe!
Agradeço a todos os educadores que caminharam comigo de 2015 a
2018 por terras paraenses, mineiras, pernambucanas e cariocas... em especial,
a Leleu (Edileuza Moura), Berna (Bernadete Rufino), Marcia Capra, Ju
(Jussara), Ronaldo Andrade, Lu (Lucia Valois), Ingrid Bertoldo, Romero Silva,
Tércia Farias, Rosa Farias, Joana Ribeiro, Anna Zidanes que marcaram,
profundamente, minha vida nessas andanças de formação de professores e
acompanhamentos pedagógicos nas escolas públicas do nosso Brasil.
À NEFI Edições e à banca pelo parecer tão gratificante. À Marcelly por
todo carinho, cuidado e sensibilidade juntamente com Simone e Walter na
organização dessa coleção tão especial.
A todos os caminhantes que compõem essa escrita e que nos fazem
pensar outras maneiras de caminhar na educação.

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

CRE Coordenadoria Regional de Educação


Faperj Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado
do Rio de Janeiro
GRE Gerência Regional de Educação
NEFI Núcleo de Estudos de Filosofias e Infâncias
ProPEd Programa de Pós-graduação em Educação
Ripeam Regulamento Internacional para evitar abalroamentos no mar
Seduc Secretaria de Estado de Educação
UERJ Universidade do Estado do Rio de Janeiro
URE Unidade Regional de Educação
USE Unidade Seduc na Escola

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SUMÁRIO

PRÓLOGO ............................................................................................................ 15

PRIMEIROS PASSOS ............................................................................................. 21

1 CAMINHAR E FAZER PESQUISA ....................................................................... 29


1.1 Um caminhar de uma pesquisa .......................................................................... 29
1.2 Caminhar ou sobrevoar na pesquisa? ............................................................... 35
1.3 Dos por quês e para quês da pesquisa educacional ....................................... 38

2 O ESCRITOR COMO CAMINHANTE .................................................................. 47


2.1 Caminhar: viajar na mente quanto na paisagem? ......................................... 47
2.2 Entre caminhos, escritas e marcas .................................................................... 52
2.3 Caminhar e escrever como phármakon ............................................................. 63

3 UMA FILOSOFIA DE CAMINHAR ...................................................................... 71


3.1 Caminhar não é um esporte................................................................................ 71
3.2 Do lado de fora ...................................................................................................... 75
3.3 Passeios infantis .................................................................................................... 78

4 CAMINHAR COMO UMA PRÁTICA ESTÉTICA .................................................. 83


4.1 Caminhar: uma arte de ir ao encontro do Outro ........................................... 83
4.2 Caminhar e parar .................................................................................................. 90

5 CAMINHAR É REVOLUCIONÁRIO ..................................................................... 97


5.1 Xanháratiicha ........................................................................................................ 97
5.2 Caminhar é resistir ............................................................................................. 104

CAMINHOS INTERMINADOS E INDETERMINADOS ..........................................115


Caminhos outros........................................................................................................ 118

REFERÊNCIAS ....................................................................................................123

ANEXOS .............................................................................................................125
ANEXO A - CORRESPONDÊNCIA COM SIMONE BERLE......................................... 127
ANEXO B - CONVERSA COM JULIANO ARAUJO ..................................................... 133

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PRÓLOGO
“A linguagem que desobedece e é desobedecida:
colocar-nos fora de nós mesmos, nessa existência desoladora,
nessa brecha – sonora e silenciosa – que abre a possibilidade
para a produção de um sentido.” (Skiliar, 2014, p. 17).

Os sentimentos de alegria e gratidão estão presentes na escrita dessa


apresentação do texto “Caminhar como modo de vida: da pesquisa à skholé”,
que tornar-se o compartilhamento público da escrita de Carol (assim a
nomeamos na intimidade, Carol, a nossa Carol, linda e saltitante menina...).
Inicio com poesia, pois como diz Manoel de Barros (1997), somente a poesia é
verdadeira: “Tudo que não invento é falso. Há muitas maneiras sérias de não
dizer nada, mas só a poesia é verdadeira.” A escrita de Carol é generosa, nos
convida a encontrar um caminhar como uma relação com a escrita, com a
escola, caminhar no sentido de atravessar o caminho envolvidos/as em
curiosidade, em perguntas, caminhar como experiência de si, como parresía.
É um texto desobediente na perspectiva da epígrafe acima porque nos
revela “[...] a dobra da percepção e, em vez de acariciar, mostra suas garras no
limite extremo do sentido [...] desobedece porque não reconhece o lugar de
sua morada na humilhação, na hipocrisia [...] se rebela contra as inimizades:
(Skiliar, 2014, p. 16). Nas palavras da autora, trata-se de “[...] fazer um
exercício sobre mim mesma, expor-me, relevar-me, desnudar-me, mostrar-me
não como uma narrativa de si – [...] –, mas como um exercício sobre si que
não tem outra finalidade senão a constituição de si, a transformação de si.
(Oliveira, 2020, p. 14).
Tive o prazer de atravessar e ser atravessada pelo belíssimo texto de
Carol e através dele pude ser provocada por vários questionamentos e
percepções sobre a escrita, a pesquisa, a filosofia e a educação, em diálogo com
o pensamento de diversos autores, tais como: Masschelein e Maarten Simons,
Manoel de Barros, Walter Benjamin, Walter Kohan, Jorge Larrosa, Merlin
Coverley, Frédéric Gros, Francesco Careri, entre outros, assumindo o
caminhar em sua relação com a escrita, como experiência de si, como invenção
e como maneira de que aquele/a que escreve como quem caminha deixa
marcas, imprime marcas de si através da escrita. Também identifica o
caminhar em suas dimensões ética, estética, revolucionária e filosófica ... É um
texto que pergunta de maneira potente a si mesmo e a cada leitor/a que se
propõe a nele caminhar: somos nós que escolhemos o caminho ou é o caminho
que nos escolhe? Ou ainda, fazemos escolhas dentro do caminho que
escolhemos ou o caminho que escolhemos aponta as nossas escolhas? Somos

15
Maria Reilta Dantas Cirino

nós que escolhemos o caminho ou é o caminho que nos escolhe? Assim, a


autora provoca e convida a pensar no passo do seu caminhar, na relação com a
escrita. Um misto de delicadeza e intensidade atravessa todo o texto desde que
adentramos a ele. É uma escrita com originalidade e linguagem própria tanto
na maneira como propõe as temáticas dos capítulos como pela ex-posição de si
que Carol, poeticamente, nos proporciona: “Por que a página em branco nos
causa tanta angústia? Por que nos paralisa?” (Oliveira, 2020, p.12). Desse
modo, compartilha conosco uma escrita que se propõe a ser vida, a ter vida, a
revelar a vida que se torna e se faz presença no caminhar... Questiona às
tradicionais maneiras de escrever, de fazer pesquisa e assim aproxima-se
daqueles que de acordo com Skiliar (2014) são os mais desobedientes da
linguagem: as crianças, os artistas, os filósofos.
O/a leitor/a tem em mãos uma escrita com estilo próprio, também uma
escrita-encontro! Nela, encontramos tantos nomes-amigos/as que fazem parte
dos diversos e potentes movimentos que compõem o Núcleo de Estudos de
Filosofias e Infâncias/NEFI/UERJ, os quais caminham amorosamente com
Carol e passam a compor uma philia (escrita-amiga)! Constituem-se em
inspiração para o/a leitor/a pensar em sua própria caminhada de fazer e pensar
a escola pública brasileira, mais do que nunca, no cenário atual, como
resistência, como afirmação!
Reconhece-se, inicialmente, uma escrita vacilante, “travada” na pesquisa
e na escrita, reveladora de quem detesta caminhar, contudo é cativada pelo
caminho e caminha para encontrar e transformar a si mesma, pondo-se a
caminho como forma de vida, de relação com a pesquisa educacional e com a
filosofia; paradoxalmente, caminha até à Escola Municipal Joaquim da Silva
Peçanha/Duque de Caxias/RJ, volta ao caminho já percorrido junto ao
Projeto de Filosofia com crianças, retorna às amigas Edna e Vanise, às
crianças... O caminhar à escola pública se revela no texto de Carol como
potência do espaço público como afirmação da infância, da amizade, do pensar
junto, da escrita e da pesquisa!
Ao escrever como quem caminha, é no espaço da escola, nas atividades
do Projeto de Filosofia com Crianças, que Carol encontra o disparador, o pulsar
de sua escrita conduzido pelas perguntas das crianças que criará as condições
para o fluir e despertar de suas MUITAS perguntas, são elas – as perguntas
das crianças de Caxias – que vão definindo e abrindo as brechas para o caminhar
do pensamento e da escrita de Carol. O encontro, o afeto que se revelam nesse
caminhar de Carol até à escola me fez lembrar de uma passagem de Fernando
Pessoa quando diz: “Viver é ser outro. Nem sentir é possível se hoje se sente
como ontem se sentiu: sentir hoje o mesmo que ontem não é sentir - é lembrar
hoje o que se sentiu ontem [...]”. Certamente Carol não é mais a mesma,
também, possivelmente, não o será o/a leitor/a do presente texto.

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Prólogo

É uma escrita instigante, provocativa! Revela uma pesquisadora


inquieta, questionadora de si mesma, das formas como se tem realizado
pesquisas na academia, das imposições à escrita! Pergunta sobre o que é a
escrita e o que é pesquisar nas Ciências Humanas e Sociais! Denuncia a
competição, presente no espaço da academia, e nos convida à solidariedade, ao
acolhimento! Revela maneiras de realizar uma pesquisa e dos preços a serem
pagos pelo/a pesquisador/a frente a sua opção de pesquisar e escrever de
determinada maneira: nem melhor e nem pior, como quem sobrevoa e como
quem caminha, como nômade ou como sedentário/a. Carol faz opção por
coloca-se a caminho e escutar a autoridade que esse caminhar lhe impõe:
“Quem anda, vê a estrada como ela se apresenta, livre de qualquer expectativa
ou distração, pois o olhar está sob a autoridade do caminho.” (Oliveira, 2020,
p. 22). A escrita de Carol revela as marcas por ela deixadas no caminho e a
transformação da pesquisadora pelo caminhar na pesquisa, na escrita. Chico
Buarque, em sua música “Carolina” tenta traduzir a Carolina marcada pelo
mundo, pelo caminhar que o texto nos revela: “Carolina, nos seus olhos fundos
guarda tanta dor [...].”
Nessa perspectiva, o texto questiona sobre o que é a palavra, o que pode
dizer a palavra, mas também sobre o silêncio presente nas palavras, o “não-
dizível” das palavras. O “não-dizível” da autora vagueia, atravessa o texto, se
insinua ...
Passo a destacar, como convite ao/à leitor/a, para buscar na leitura do
texto de Carol, especialmente, alguns aspectos relevantes, os quais
compreendo que permeiam, atravessam todo o texto:
1) uma escrita que NÃO AFIRMA, antes é provocativa, questionadora,
tem a força e autoridade do caminho. Indaga sobre o sentido de fazer pesquisa
sobre os ditames da produção de saberes como mercadoria, como a reprodução
dos mesmos em vista da manutenção do capital. Denuncia e se indigna com o
contexto atual de desvalorização e desmonte vivenciado pela educação pública
brasileira;
2) assume um PERFIL DE PESQUISADORA, para isso identifica o/a
pesquisador/a como aquele/a que terá acesso a “uma verdade”, que produzirá
“conhecimento válido” e terá autoridade para falar sobre essa verdade;
3) é PESQUISA-FORMAÇÃO, pois que a singularidade de Carol como
pesquisadora se revela e segue pelo viés de um caminho de pesquisa que sirva
à transformação de si. Convidando e inspirando o/a leitor/a e a si mesma, para,
a partir de sua realidade de pesquisa desenvolver uma estética filosófica-
educativa do cuidado de si com OUTROS;
4) traz o potencial da ESCRITA PHILIA (amizade/amor), como o
pensar junto, revelando em sua escrita a presença de muitos OUTROS: se
compõe, caminhando, ao caminhar, ao mesmo tempo que deixa marcas,
pegadas (palavras, silêncios) no caminho (na escrita), também é marcada pelas

17
Maria Reilta Dantas Cirino

marcas (palavras) de outros e da própria escrita (caminho), encontrando e


revelando para nós a DIMENSÃO FILOSÓFICA DO CAMINHAR, como um
modo de vida; como desobediência, como forma de atenção e suspensão da
ordem das coisas do mundo, nisso consistindo a oportunidade de invenção de
si e do outro. Nas palavras de Carol: “[...] não é algo que se faz sozinho, senão
numa comunidade entre amigos que se preocupam com as coisas do mundo.”
(Oliveira, 2020, p. 57);
5) escrita como possibilidade de EXERCÍCIO E CORAGEM DE
LIBERDADE, no dizer de Gros (2010, p. 56): como liberdade, suspensão: “[...]
como uma prática transformadora a partir da recusa da identidade e de nos
colocarmos em questão.”;
5) o CAMINHAR COMO MANEIRA DE DESOBEDECER à lógica
da produtividade, da alienação do sistema, em analogia com a Skholé, como
tempo livre de suspensão para a atenção, o estudo, o pensamento;
6) o CAMINHAR COMO ATO REVOLUCIONÁRIO, como condição
para seguir lutando pela construção de saberes coletivos, através da igualdade,
do reconhecimento de si com OUTROS, de forma solidária e do exercício
educativo/democrático.
Percebemos no gesto de narrar sua experiência de escrita, no colocar-se
a caminho, também a sensação de vazio, de solidão de uma pesquisa que
enfrenta os ditames da academia e ao mesmo tempo a angustiante sensação de
que não há nada relevante que ainda não tenha sido dito sobre o tema do
caminhar e do caminho. Em muitos trechos da escrita deste trabalho, a
denúncia das contradições presentes nas maneiras de fazer pesquisa e de
escrever dentro da academia, se expressa em forma de potentes
questionamentos. São questões que, mesmo havendo o esforço de dialogar,
essas, permanecem abertas e tomam a forma de um grito, de denúncia, como
por exemplo, quando relata sobre a forma de relação solidária que se estabelece
no movimento de caminhar dos Zapatistas com a lógica da competição e da
individualidade em que se desencadeia o seu caminhar nos contextos políticos
e sociais, na academia, na pesquisa, na escrita... O texto se propõe e faz o feliz
convite para que “[...] ao caminharem juntos, carregando-se uns aos outros
nos ombros, nos ensinam uma maneira diferente de caminhar com o outro
através de uma política da igualdade.” (Oliveira, 2020, p. 78).
Embora, ao final, o texto assuma o caráter de impossibilidade de
finalização, “[...] essa escrita deixará o “seu fim” em aberto para, em vez de
respondermos às questões que nos inquietam ao longo dessa escrita, podermos
seguir perguntando.” (Oliveira, 2020, p. 16) podemos afirmar que o caminhar
como modo de vida na escrita de Carol, que se concretiza na publicação de seu
primeiro livro se desdobra em experiência ética-filosófica em educação.
Por fim, a escrita de Carol é uma escrita-experiência: “Fazer uma
experiência com algo [...] significa que algo nos acontece, nos alcança; que se

18
Prólogo

apodera de nós, que nos derruba e nos transforma. [...] ‘fazer’ significa aqui:
sofrer, padecer, agarrar o que nos alcança receptivamente, aceitar, na medida
em que nos submetemos a isso.” (Larrosa, 2014, p. 99. Grifos do autor). Assim,
ao chegar ao final da leitura do texto de Carol, me reporto ao pensamento de
Manoel de Barros quando em Retratos do artista quando coisa, ao dialogar com
seu amigo Rosa, sobre o sentido das palavras: “O que resta de grandeza para
nós são os desconheceres [...].
A autora desse livro se submeteu à força a à autoridade da experiência
do caminho ao caminhar! Convida-nos a fazer o mesmo no caminhar da leitura
de sua escrita. Deixemo-nos capturar por esse convite!!

Referências
BARROS, Manoel. Livro Sobre Nada. Editora Record: Rio De Janeiro,1997.
GROS, Frèderic. Andar. Una filosofia. Taurus, 2010.
LARROSA, Jorge. Tremores: escritos sobre experiência. Tradução de Cristina Antunes,
João Wanderley Geraldi. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
OLIVEIRA, Carolina Fonseca de. Caminhar como modo de vida: da pesquisa à skholé. Rio de
Janeiro: NEFI/UERJ, 2020.
SKLIAR, Carlos. Desobedecer a linguagem: educar. Tradução de Giane Lessa. Belo Horizonte:
Autêntica, 2014.

Maria Reilta Dantas Cirino


Caicó, fevereiro de 2020

19
PRIMEIROS PASSOS

Talvez eu devesse começar pelo começo.


Talvez eu devesse começar pela questão-problema que gira em torno
desta pesquisa seguida de uma descrição da minha trajetória até aqui. No
entanto, peço licença ao leitor para um breve desvio, pois, em vez de iniciar
pelo caminho indicado institucionalmente1, começarei por outro.
Onde começa uma escrita? Onde, quando, como nasce a escrita de uma
monografia, de uma dissertação, de uma tese ou de livro? Por que a “escrita
acadêmica” assusta tanto a tantos? Por que escrever, em muitas situações,
torna-se um sofrimento?
Porque escrever é se despir. (Mesmo que isso não seja sempre possível
na lógica da academia).
Se despir é ficar nu.
Escrever é ficar nu e se deixar olhar.
Por que a página em branco nos causa tanta angústia? Por que nos
paralisa?
Porque se despir, ficar nu costuma ser constrangedor. Não costumamos
ficar nus na frente de qualquer um.
Quando escrevemos como uma experiência (Foucault, 1994) e não
apenas para enfrentar uma demanda externa, despimo-nos para todos e
qualquer um.
Quem já teve a sensação de estar vendo e ouvindo a pessoa a quem se
está lendo? Quem já teve a sensação de conhecer o escritor intimamente apenas
por sua escrita? É porque escrever implica revelar-se, mostrar-se, dar-se a ver.
Em A escrita de si, Foucault (1992, p. 150) diz que […] “escrever é pois
‘mostrar-se’, dar-se a ver, fazer aparecer o rosto próprio junto ao outro”.
Escrever tem a ver com expor o que está no íntimo. O que há na escrita
de tão envolvente a ponto de nos aproximar ou nos afastar do texto? Por que
a escrita nos envolve, nos capta, nos move, nos comove?
De acordo com Skliar, as razões para escrever não estão na mão que
pensa a escrita, senão, na voz que treme. “A voz, como arte e parte da
respiração, é confessional e sabe e pode mover-se entre a dor, a paixão, os

1
No roteiro para apresentação das teses e dissertações da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro.

21
Carolina Fonseca de Oliveira

ossos, o sangue, os olhos, as vísceras, o estômago, as costas, o coração”. (Skliar,


2014, p. 140).
Escrever é ficar nu. Para Skliar (Skliar, 2014, p. 139), é “como se
escrever não fosse outra coisa senão ficar nu no meio da escrita”.
Escrever também é fotografar; fotografar o momento. Conta o poeta,
Manoel de Barros (2013, p. 9-10), que foi difícil fotografar o silêncio, no
entanto, ele tentou. Também fotografou o perfume, a existência de uma lesma,
o perdão, o sobre, a nuvem de calça e o poeta.
Mas, escrever também é afirmar uma vida. Segundo Kohan (2013, p. 7),
não há como separar a vida da escrita. “Isso porque há sempre, atravessando
uma escrita, uma vida sendo afirmada (e muitas sendo negadas), seja qual for
seu tema e propósito”. Para Kohan (2013, p. 20), “estamos em um tempo em
que a escrita parece ter se distanciado da vida”. Nota-se isso inclusive no
mundo acadêmico, que, por vezes, mesmo permeado por escritas sobre muitas
vidas, tem estado de costas para o mundo da vida. Nesse sentido, o autor
questiona: “quanta vida povoa esses escritos? Que tipo de vida? De que modo
esses escritos afirmam ou negam a vida que nos atravessa?”. (Kohan, 2013, p.
20).
Kohan (2013) também diz que a escrita tem sido deformada como se só
importasse o que se escreve e não como se escreve. Para o autor, escrever, pois,
tem a ver com pensar e estar no mundo. É nesse sentido que essa escrita se
propõe a desenvolver-se à sua própria maneira e ritmo assim como quem
encontra seus próprios passos ao caminhar. Essa escrita nada mais é do que a
afirmação de uma vida-caminhante. Uma vida que caminha, que se põe a
caminho, a caminhar.
Segundo Labucci (2013, p. 11), “pôr-se a caminho, colocar os pés em
movimento, sempre significou um revolvimento em direção a si mesmo e ao
próprio mundo”. Pensar uma escrita caminhante significa não apenas ir em
direção a si mesmo colocando-se à prova, a todo momento, confrontando o que
se pensa, o que se diz, o que se faz, mas também significa ir em direção ao
mundo, ao outro, ao mundo-outro. Sair de si mesmo. Deslocar a atenção do
que queremos ver para o que o caminho nos dá a ver. Afirmar uma vida-
caminhante significa não apenas um sair do lugar físico, mas um movimentar-
se, também, no pensamento. Para Ingold (apud Coverley, 2014, p. 13)
“caminhar é viajar na mente tanto quanto na paisagem: é uma prática
profundamente meditativa”.
Assim, nesta escrita tratar-se-á de fazer um exercício sobre mim mesma,
expor-me, relevar-me, desnudar-me, mostrar-me não como uma narrativa de

22
Caminhar como modo de vida

si – aquela escrita que tem por objetivo a confissão em busca da purificação da


alma –, mas como um exercício sobre si que não tem outra finalidade senão a
constituição de si, a transformação de si. (Foucault, 1992).
Esta escrita, também, será como fotografar. Fotografar aquilo que puxa
o olhar ao longo do caminho. Não tenho a pretensão de traçar neste livro,
intitulado Caminhar como modo de vida: da pesquisa à skholé, uma história do
caminhar nem de analisar (apenas) - conceitual e conclusivamente - uma
bibliografia sobre o tema. Contudo, tentarei fazer dessa escrita uma aventura
a partir das provocações das leituras, das escritas que se faz no caminho da
filosofia, ou seja, entre amigos e, do próprio caminhar, para pensar outros
mundos, olhares e caminhos possíveis para a educação.
Não temos um caminho traçado, uma rota, um mapa, um destino
específico a se chegar, pois a própria escrita vai traçando o caminho, e ele se
mostra no caminhar. E, se essa escrita se propõe a criar-se a partir do próprio
caminho fica um pouco difícil estabelecermos um fim em si mesmo. Entretanto,
por não podermos fugir de uma certa organização e burocratização da escrita
acadêmica, tentaremos dar alguns princípios norteadores para começarmos a
nos movimentar.
Nesse sentido, no primeiro capítulo intitulado Caminhar e fazer pesquisa,
abordaremos a relação entre o caminhar e a pesquisa educacional a partir de
Jan Masschelein e Maarten Simons (2014) com o livro A pedagogia, a
democracia, a escola que inclui textos sobre o caminhar como princípio
metodológico na educação.
A partir de uma leitura de Benjamin, os autores apresentam duas
maneiras de se relacionar com o caminho: uma que o sobrevoa, e outra que o
caminha. Uma que atua a partir da intenção e outra da atenção.
Fundamentados nessa discussão sobre o que significa sobrevoar ou caminhar
em uma pesquisa educacional, perguntamo-nos de que modo nós, enquanto
pesquisadores da educação, temos nos relacionado com o caminho da pesquisa.
No segundo capítulo, O escritor como caminhante, pensaremos a relação
do caminhar com a escrita bem como os sentidos de escrever uma pesquisa
educacional quando entendemos o ato de escrever como uma ação de marcar a
escrita com as palavras, assim como se faz ao caminhar que, segundo Ingold,
consiste em deixar marcas na paisagem.
Assim, dialogaremos com Merlin Coverley (2014) em A arte de caminhar
– o escritor como caminhante, para pensar não apenas a dimensão estética do
caminhar, como também o próprio escritor como alguém que escreve não para
chegar a um destino ou para determinar um caminho. Nesse sentido, escreve-

23
Carolina Fonseca de Oliveira

se não para estabelecer verdades, caminhar em um caminho (uma escrita) de


certezas, mas para criar o caminho (a escrita) ao caminhar, sempre se
perguntando e verificando algo, expondo-se aos riscos e imprevistos do
caminho (da escrita), não apenas transformando a escrita no percurso, mas
também se deixando transformar por ela.
No terceiro capítulo, Uma filosofia de caminhar, traremos uma concepção
filosófica do caminhar a partir de Frédéric Gros (2010) em seu livro Caminhar,
uma filosofia, onde o caminhar não é considerado um esporte ou uma prática
para encontrar um autêntico eu, mas um ato filosófico que subverte o sistema
capitalista ao se renunciar a seus valores: a pressa, o consumo desenfreado, a
fama, o lucro, o individualismo... Caminhar, para Gros (2010), tem a ver com
a simplicidade e com um olhar atento e curioso que tem uma criança. Nesse
sentido, pensaremos o que significa fazer uma pesquisa educacional a partir
desses princípios que caminha na contramão do sistema e que busca um olhar
infantil.
No capítulo quatro, Caminhar como uma prática estética, dialogaremos
com a perspectiva de caminhar de Francesco Careri (2013), através do livro
Walkscapes - o Caminhar como prática estética. Segundo Careri (2013), o
caminhar não é apenas uma prática de deslocar o nosso olhar para ver o
evidente, mas, também, para transformar a paisagem por onde se caminha.
Para o autor, a dimensão estética do caminhar não é apenas esculpir a
paisagem, mas refere-se, também, à arte de ir ao encontro do Outro de uma
forma não beligerante bem como de conhecer a cidade e enfrentar os medos
que nos são impostos pelo sistema para que não caminhemos por ela. Nesse
sentido, tentaremos relacionar o caminhar como uma prática estética com um
modo de caminhar na pesquisa educacional que enfrenta os medos de andar
por lugares desconhecidos e que se desenvolve sob a arte de encontrar-se com
o Outro.
No quinto e último capítulo, Caminhar é revolucionário, iniciaremos com
o documentário Caminantes (2001), sobre o movimento indigenista zapatista,
para pensarmos a prática de caminhar na educação não como uma prática
individualista, mas como um “caminhar junto”, ou seja, uma prática que se faz
com o outro e que é condição para não parar de lutar pela igualdade de direitos,
isto é, por uma sociedade mais justa.
Para dialogar com o movimento zapatista, traremos a concepção de
caminhar como um ato revolucionário sobre a qual escreve Adriano Labbucci
(2013) em seu livro Caminhar, uma revolução. Mais do que um deslocamento
físico, Labbucci (2013) considera o caminhar como uma modalidade do

24
Caminhar como modo de vida

pensamento que consiste em sempre se questionar “o porquê” e “o como” das


coisas. Consiste também, em uma prática que nos faz mais humildes – para
Labbucci, a humildade é a alma do caminhar –, é o que nos faz renunciar ao
supérfluo, a encontrarmos o outro e a subverter a lógica da desigualdade que
impera no capitalismo.
Para os zapatistas, é preciso caminhar e nunca parar de lutar por um
mundo mais justo e democrático. Assim, a partir dessa concepção de caminhar
(junto) por uma sociedade que preza a igualdade de direitos, pensaremos sua
dimensão revolucionária não apenas para fazer uma pesquisa educacional, e
sim a própria vida que queremos afirmar através de um caminhar de uma
pesquisa. Contudo, a escrita deste livro não terá um fim, assim como as
concepções de caminhar abordadas nos capítulos dela, não defenderá um
caminho com um destino final e único. Essa escrita terá o “seu fim” em aberto.

25
CAMINHAR E FAZER PESQUISA
1 CAMINHAR E FAZER PESQUISA

1.1 Um caminhar de uma pesquisa

Alice: - Mas eu não sei como sair daqui.


Aliás, nem sei como vim parar aqui nesse país.
Chapeleiro Maluco: - É. É assim mesmo.
Alice: - Como assim?
Chapeleiro Maluco: - Nesse país só se chega sem saber.
Coelho: - Só quem não sabe o caminho é que vem até aqui.
Chapeleiro Maluco: - Esse é o único modo.
Alice: - Mas eu quero sair daqui. [...]
____: - Mas o que eu devo fazer? Como sair desse país?
Coelho: - Ora! Do mesmo jeito que você chegou.
Chapeleiro Maluco: - Mas, ao contrário.
Alice: - Mas qual é o caminho?
Coelho: - Não há caminho.
Chapeleiro Maluco: - O caminho só vira caminho depois que passou por ele.
Coelho: - Você faz o caminho.
Alice: - Mas como?
Chapeleiro Maluco: - Comece a andar, Alice.
(Lewis Carroll 20142).

A epígrafe que abre este capítulo tem por objetivo não apenas nos
introduzir no tema, mas inscrever, traçar as linhas que andarão por esta
escrita.
O diálogo entre Alice, o Coelho e o Chapeleiro Maluco foi transcrito de
um vídeo do YouTube (conforme descrito na nota de rodapé 2), transmitido
pela professora Vanise à sua turma do segundo ano do ensino fundamental
(turma 201), numa experiência de filosofia na Escola Municipal Joaquim da
Silva Peçanha – Duque de Caxias/RJ no dia 07/04/2017.
O interessante é que, antes de participar dessa experiência na escola, eu
estava me sentindo travada nesse processo de escrita; as ideias não estavam
fluindo, mesmo com as leituras e estudos. Costumamos ouvir dos professores

2
Diálogo transcrito a partir do curta Alice no país das maravilhas que traz uma releitura desse
famoso clássico de Lewis Carroll, com Direção de Robson Lima e Everton Rodrigues e Roteiro
adaptado de Marcos Hirsh. É importante destacar que o diálogo do vídeo não consta no livro
dessa maneira, pois, trata-se de uma releitura do clássico. Publicado no YouTube em 4 de agosto
de 2014. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Pphww8hXouw>. Acessado
em: 7 de abr de 2017.

29
Carolina Fonseca de Oliveira

na pós-graduação que precisamos ter uma pergunta que direcione o nosso


pensamento, a nossa pesquisa. Assim, ficava me perguntando: qual seria a
minha pergunta? Qual pergunta direcionaria minha escrita? Entrava em
desespero quando percebia que não havia pergunta alguma. Seria por isso que
meu “pensamento” estava “travado”, por que eu não tinha uma pergunta? O
que move o nosso pensamento? Seria uma pergunta o caminho para se começar
a pensar, ou o primeiro passo para se começar a caminhar? Que potência há
numa pergunta?
Foi então que as professoras Vanise e Edna, minhas amigas no grupo de
pesquisa – NEFI – e inspiradoras de vida e pensamentos, me convidaram a
voltar a participar do projeto de filosofia na escola. É importante destacar essa
relação de amizade e escrita, pois segundo Masschelein e Simons (2014), a
amizade não se restringe à intimidade ou privacidade. Ela também é condição
para pensar sobre o mundo e experimentar a escrita. “A amizade não se resume
à intimidade ou privacidade. É uma experiência mundana; para os amigos, o
mundo se torna objeto de preocupação, algo para se pensar, algo que provoca
a experimentação e a escrita”. (Masschelein; Simons, 2014, p.9).
Para Vanise e Edna, ao vivenciar as experiências de pensamento na
escola, eu voltaria a ter inspiração para escrever a partir da infância das
crianças. No entanto, quando fui à Escola Municipal Joaquim da Silva Peçanha,
não estava preocupada em encontrar algo específico que me ajudasse a
escrever. Não fui com a intenção de ver, ouvir ou sentir algo particular. Queria
apenas voltar para o projeto que participei durante três anos da minha
graduação, como bolsista de iniciação científica/Faperj e extensão/UERJ, por
causa da vida que emana daquele lugar, mas algo aconteceu quando eu menos
esperava. Quando estávamos todos assistindo ao vídeo de Alice no país das
maravilhas, algo me atravessou, e não apenas uma pergunta surgiu em mim,
senão várias.
Ao voltar ao projeto, não tinha a expectativa de encontrar algo
específico, apenas buscava encontrar algo, seja lá o que fosse. Talvez,
encontrar a mim mesma. É isso que acontece com quem busca, de acordo com
Rancière ao comentar os ensinamentos de J. Jacotot: “Quem busca, sempre
encontra. Não necessariamente aquilo que buscava, menos ainda aquilo que é
preciso encontrar. Mas encontra alguma coisa nova, a relacionar à coisa que já
conhece”. (Rancière, 2012, p. 57)
E foi isso que aconteceu, encontrar as perguntas que me faltavam foi o
que menos imaginei que iria encontrar. Podemos pensar essa relação entre
busca e encontro, também, a partir do fragmento 18 de Heráclito que diz: “Se

30
Caminhar como modo de vida

não se espera o inesperável, não se o encontrará, dado o difícil de achar e de


aceder que é” (DK 22 B 18). Como esperar aquilo que não se pode esperar? O
que é a espera? O que significa esperar? O que significa esperar o inesperável,
o que não é para ser esperado? Que relação há entre o interesse e o inesperado?
O interesse é algo que parte de dentro para fora ou de fora para dentro? Ou
algo que está entre nós? Por vezes, ouvimos que precisamos pesquisar sobre o
que nos interessa, mas de onde vem esse interesse? O que faz com que nos
interessemos por uma coisa e não por outra? O que a busca tem a ver com o
interesse? Buscamos o que nos interessa, ou, à medida que vamos buscando,
mesmo sem saber muito bem o que, algo (inesperável) nos chama a atenção e
faz com que tenhamos interesse? Ou ainda, à medida que não buscamos, mas
esperamos o inesperável é que se torna possível um encontro e o interesse
nasce em nós?
Para Masschelein e Simons, “[...] o interesse é sempre algo fora de nós
mesmos, algo que nos toca e nos leva a estudar, pensar e praticar. Leva-nos
para fora de nós mesmos”. (2013, p. 52). Para os autores, quando dedicamos
atenção ao mundo e nos despimos de nossas intenções, um momento mágico
pode acontecer e despertar o nosso pensamento.
Trata-se do momento mágico quando alguma coisa fora de nós
mesmos nos faz pensar, nos convida a pensar ou nos faz coçar a
cabeça. Nesse momento mágico, algo de repente deixa de ser uma
ferramenta ou um recurso e se torna uma coisa real, uma coisa que
nos faz pensar, mas também nos faz pensar e praticar. (Masschelein;
Simons, 2013, p. 51).
Foi nesse sentido que as perguntas contidas na epígrafe e ouvidas na
escola pública Joaquim da Silva Peçanha começaram a pulsar em mim. O que
é preciso para caminhar? O que é preciso para se começar a caminhar? A
princípio, parecem ser as mesmas perguntas, mas não necessariamente. A
primeira, pergunta sobre o que é preciso para caminhar. A segunda, pergunta
sobre o início, sobre o começo. Essas perguntas ressoaram em mim por todo o
percurso da minha graduação em pedagogia quando já estudava sobre o tema
do caminhar, no entanto, uma coisa me pareceu nova ao ouvir a conversa de
Alice com o Coelho e o Chapeleiro Maluco: percebi que, quando pensava sobre
o caminhar, pensava apenas a dimensão daquele que caminha, daquele que
anda, mas não sobre o próprio caminho; era como se, pressupunha, já houvesse
sempre um caminho esperando para ser caminhado. Ao pensar sobre o
caminhar, não havia pensado ainda sobre o caminho ou na relação entre o ato
de caminhar e o próprio caminho. Tinha reparado apenas no caminhante. A
partir desse diálogo, algo chamou a minha atenção e algumas perguntas

31
Carolina Fonseca de Oliveira

surgiram em mim. Algumas perguntas. De novo, as perguntas. Elas, as


propulsoras do nosso caminhar. As que darão início aos nossos primeiros
passos.
Coelho: - Não há caminho.
Chapeleiro Maluco: - O caminho só vira caminho depois que passou
por ele (Lewis Carroll, 20143).
Esse diálogo, também nos remete a um trecho do poema Cantares de
Antonio Machado.
Caminante, son tus huellas
el camino y nada más;
caminante, no hay camino,
se hace camino al andar4. (Antonio Machado, 2017)
Para o poeta Antonio Machado não há caminho, mas o caminho se faz
ao andar. É preciso um caminho para caminhar? Que força pode ter um
caminho e um caminhar? Só caminhamos a partir de um caminho, ou somos
nós que, ao caminhar, fazemos um caminho? Ou um caminho para ser
percebido, descoberto, precisa ser andado? Ou é o caminho que se nos impõe
quando caminhamos? Ou é uma força de um caminho que não vemos, mas que
nos impulsiona em nosso caminhar? Um caminho só existe depois de termos
passado por ele? Um caminho é um caminho mesmo que ninguém tenha
passado por ele? Se um caminho não é caminho porque ninguém passou por
ele, então o que é? Somos nós que escolhemos um caminho ou um caminho que
nos escolhe? E só se pode passar uma vez por um caminho? A cada novo
caminhar o caminho se desfaz ou se refaz? Poderíamos dizer, parafraseando
Heráclito, que não se pode caminhar duas vezes um mesmo caminho? O que é
um caminho? O que pode uma escrita, uma vida, uma educação que caminha?
Ao ingressarmos em um programa de pós-graduação precisamos ter em
mente (e no papel) um tema e objeto de estudos para os próximos anos na
pesquisa. Durante algumas aulas, quando nos pedem para nos apresentarmos
e falar sobre a “nossa pesquisa”, costumamos usar quase naturalmente as
palavras “minha pesquisa”, “meu tema”, “meu objeto” como se de alguma
maneira nós detivéssemos em nossas próprias mãos o controle daquilo que
“escolhemos” fazer em “nossas pesquisas” assim como em nossas vidas.

3
Carroll, Lewis, op. cit., nota 2.
4
“Caminhante, são tuas pegadas o caminho e nada mais; caminhante, não há caminho, se faz
caminho ao andar”. Antonio Machado. Disponível em:
<http://blogs.utopia.org.br/poesialatina/cantares-antonio-machado/>. Acessado em: 08 de
abr de 2017.

32
Caminhar como modo de vida

Quando pensamos se somos nós que escolhemos um caminho ou um


caminho que nos escolhe, isso nos remete, também, à questão dos temas de
pesquisa. Pergunto-me se de fato fui eu quem “do nada” resolvi escrever sobre
esse tema ou se foi o próprio tema que me escolheu. Somos nós que escolhemos
um tema de pesquisa ou é um tema que nos escolhe? Essas perguntas surgem
de uma inquietação, pois, ao escrever a monografia para a conclusão do curso
de pedagogia havia escolhido um tema que achava adequado, que era sobre
filosofia com crianças, tendo em vista a minha trajetória enquanto estudante e
bolsista no projeto de filosofia “Em Caxias a Filosofia En-Caixa?”. No entanto,
o resultado daquela escrita5 seguiu um caminho totalmente diferente. A
vivência no projeto e no núcleo de pesquisa me levou a andar (escrever) por
este tema do caminhar, que, diga-se de início, foi um tema que ao ser estudado
no seminário de pesquisa – NEFI no segundo semestre de 20126 me causou
resistência e repulsa. O que faz com que algo antes repulsivo, estranho,
indiferente a nós passe a ser algo que nos motiva a viver?
Interessante, também, é perceber que alguns caminhos que percorremos
anteriormente já não são mais os mesmos quando voltamos a percorrê-lo. Pois,
assim como o projeto me fez encontrar o tema do caminhar, hoje, estudar esse
tema me leva de volta ao projeto, a caminhar nele e por ele e a ouvir as suas
vozes caminhantes de outra maneira, como se fosse outro projeto. Repito,
então, a pergunta: será que não é possível caminhar duas vezes um mesmo
caminho? E se for possível, ainda assim, o caminho permaneceria o mesmo ou
seria outro?
Durante uma aula no curso de graduação em pedagogia na UERJ, numa
disciplina obrigatória do curso, PPP – pesquisa e prática pedagógica, na qual
estagiei com meu orientador Walter Omar Kohan, algumas perguntas e
respostas surgiram a partir de um exercício proposto por ele e que pode nos
ajudar a pensar a relação entre caminhos e escolhas.
Foi proposto um exercício para criarmos perguntas e, em seguida,
perguntas a partir das perguntas. Houve uma votação para escolher com quais

5
Na p. 118, no capítulo “Caminhos Outros” descreveremos mais detalhadamente essa
experiência.
6
Durante o segundo semestre de 2012 foi estudado no NEFI alguns artigos de Jan Masschelein
e Maarten Simons sobre a temática do caminhar, sendo um deles Ponhamo-nos a caminho, um
de nossos textos base para discutir o primeiro capítulo. As leituras foram feitas a fim de nos
preparar para um curso de extensão universitária, que aconteceu na UERJ, unindo participantes
do NEFI/UERJ, alguns professores e alunos da UFF – Universidade Federal Fluminense, três
professores europeus, sendo um deles o próprio Jan Masschelein, acompanhado de 30 alunos
belgas. O curso consistia em andarmos pelas ruas da cidade do Rio de Janeiro em duplas e,
através desse exercício, pensarmos um projeto de uma escola pública.

33
Carolina Fonseca de Oliveira

perguntas e/ou respostas seguiríamos pensando. A frase escolhida foi a da


aluna R: “A UERJ é um caminho que escolhemos um dia para o nosso
crescimento, e para mudança, e que se mostrou não apenas pessoal, mas
coletivo”. (R. Diário de Pesquisa, 2017).
A partir disso, foi pedido para fazermos três perguntas sobre essa frase.
Em seguida, escolhemos uma pergunta para a respondermos de olhos
vendados. A pergunta que mais inquietou a turma foi “somos nós que
escolhemos um caminho ou é um caminho que nos escolhe?”. Eis algumas
respostas:
Um caminho é sempre uma escolha, sendo nossa ou não. Temos o
livre arbítrio para tomar decisões, mas, às vezes, mesmo quando nós
escolhemos o caminho temos que seguir caminhos contrários ao
planejado não ditados por nós. Um caminho é um movimento diário,
são escolhas que fazemos para viver nossa jornada. (R. Diário de
Pesquisa, 2017).
Os caminhos somos nós que escolhemos e, ao conhecer o melhor,
outros caminhos podem nos descobrir e a mudança poderá ocorrer.
É uma via de mãos infinitas. Acidentes poderão ocorrer, mas a
ambulância do caminho chegará: ou você vai ou ela te leva. (M. G..
Diário de Pesquisa, 2017).
Chega um momento de nossas vidas no qual nos dizem que
caminhos devem ser tomados. Se possuímos livre arbítrio, quer
dizer que somos nós que decidimos em qual caminho entrar. Se
existem diversos caminhos prontos a serem percorridos só cabe a
nós escolhermos em qual entrar. (K. Diário de Pesquisa, 2017).
Acho que há caminhos que escolhemos e há caminhos que nos
escolhem. Há caminhos que nos escolhem nos caminhos que
escolhemos e, também, há caminhos que escolhemos nos caminhos
que nos escolhem. (H. Diário de Pesquisa, 2017).
Para essas alunas-colegas7, um caminho é sempre uma escolha, sendo
nossa ou não. Mas, a aluna-colega H. traz algo muito interessante para
pensarmos a relação entre um caminho que escolhemos e um caminho que nos
escolhe. Parece que uma não exclui necessariamente a outra. Pois, se há
caminhos que nos escolhem a partir do caminho que escolhemos e, se há
caminhos que escolhemos a partir do caminho que nos escolhe, então, a
questão me parece não estar tanto na escolha, mas no que um caminho nos
abre, nos oferece e nos dá a ver. E também na abertura com que nos
enfrentamos ao caminhar para deixar-nos afetar pelo caminho que se abre.
Essa escrita começa com a pergunta “onde, quando e como nasce a
escrita de um texto, de uma tese, de uma dissertação, de um livro?”. Mais uma
vez voltamos à questão do início. O que nos move a caminhar na escrita? O
que movimenta o nosso caminhar na pesquisa? Que caminhos escolhemos ou

7
Todos os nomes foram abreviados para preservar a identidade das pessoas.

34
Caminhar como modo de vida

que escolhas nos permitimos viver na pesquisa, na vida, na educação? Que


caminhos têm sido abertos em nossas pesquisas? E que caminhos desejamos
abrir ou estamos dispostos que se abram para nós e nos impulsionem a andar
(escrever)?

1.2 Caminhar ou sobrevoar na pesquisa?


Masschelein e Simons (2014) propõem explorar o caráter revolucionário
e educativo do caminhar a partir de uma pequena observação de Michel
Foucault e de um fragmento de Rua de mão única, escrito por Walter Benjamin
(1995). Segundo Benjamin (1995), a força da estrada do campo é uma se
alguém a sobrevoa e, outra se alguém a percorre andando. Quem sobrevoa uma
estrada vê apenas como a estrada se mostra através da paisagem. Logo, quem
anda vê a estrada como ela é, percebe-a em seus detalhes por vê-la de perto.
Quem sobrevoa vê a estrada do alto, perde-se em seus devaneios e expectativas
imaginando “o que tem lá embaixo?”. Quem anda vê a estrada como ela se
apresenta, livre de qualquer expectativa ou distração, pois o olhar está sob a
autoridade do caminho. “Caminhar significa que o caminho nos é imposto com
certa autoridade, que o caminho comanda nosso olhar e nos apresenta a
realidade em suas diferenças”. (Masschelein; Simons, 2014, p. 43).
Caminhar um caminho não significa o contrário de sobrevoar um
caminho, como se, ao caminhar, pudéssemos ter apenas um olhar mais próximo
e, ao sobrevoar, um olhar mais amplo, mais distante. Não se trata somente de
ter diferentes pontos de vista de um plano, mas, sobretudo, de pensar duas
maneiras distintas de lidar com o mundo e com o presente. Uma que significa
estar, em certo modo, ausente no caminho, preso ao mundo das interpretações
subjetivas, das intenções e das expectativas e outra, que significa estar
presente, com um olhar atento para ver além do que queremos, o que o
caminho nos dá a ver.
Caminhar significa deslocar o olhar para que possamos ver de uma
maneira diferente, para que possamos ver o visível (as coisas
distantes, mirantes, espaços abertos, perspectivas que se abrem no
caminho são visíveis, não estão escondidos, não estão além daqui), e
de maneira que possamos ser transformados. (Masschelein; Simons,
2014, p. 43)
Para Masschelein e Simons (2014), caminhar implica uma possível
transformação de si. Assim, podemos dizer que ao sobrevoar um caminho nos
preocupamos com a transformação do outro, ou seja, do próprio caminho que
vai se transformando sob nosso olhar. No entanto, ao caminhar, a
transformação é de si mesmo e não do outro.

35
Carolina Fonseca de Oliveira

Segundo os autores, estar sob a autoridade do caminho não significa


adotar uma metodologia ou seguir mapas, nem tanto se sujeitar a um método,
ou, obedecer a parâmetros e procedimentos estabelecidos por uma
determinada comunidade, seja ela científica ou não.
Por isso, o convite a caminhar não é a mesma coisa que exigir
obediência a certas normas, procedimentos ou leis como, por
exemplo, as de um método que funciona como um tribunal, como
garantia para alcançar respostas válidas, ou, também, aquilo que
Habermas chama recorrentemente de as condições da razão
comunicativa ou as condições do diálogo. (Masschelein; Simons,
2014, p. 49).
Masschelein e Simons (2014) entendem o método como um conjunto de
certas regras que limitam e direcionam o olhar, bem como um meio para julgar
e interpretar, que é o contrário de estar presente no presente. Caminhar é estar
presente e estar presente é estar atento. A atenção tem a ver com estar aberto
ao mundo; significa permitir que o presente se apresente a mim, faça com que
eu o veja, que liberte o meu olhar, e que a partir disso eu possa me transformar.
“Estar atento é o contrário de estar ausente”. (Masschelein; Simons, 2014, p.
48). Masschelein e Simons vão dizer que em inglês o verbo to attend tem muitos
usos; tem a ver com cuidar, com assistir, com escutar, com respeitar o outro,
com estar lá. No entanto,
Estar ausente significa ‘não estar’; significa estar preso ao horizonte
de expectativas, projeções, perspectivas, visões, opiniões, imagens e
sonhos que nos pertencem, que compõem a nossa intenção, e que
nos constituem sujeitos perante nossos próprios objetos (objetivos).
(Masschelein; Simons, 2014, p. 48).
Para Masschelein e Simons (2014), prestar atenção, estar atento não
significa estar preso a uma intenção. A atenção é a ausência da intenção e
sobrevoar um caminho tem a ver com um olhar intencionado, com
expectativas, devaneios, interpretações, juízos de valor, tem a ver com
subjetividade. No entanto, caminhar um caminho significa estar livre das
intenções e das interpretações subjetivas; significa deslocar o olhar, estar
atento ao que o caminho mostrará. Tem a ver com a possibilidade de se deixar
afetar, com uma transformação. Segundo Benjamin (apud Masschelein e
Simons, 2014), quem sobrevoa o caminho apenas o vê, mas quem caminha,
sente o caminho em sua autoridade.

36
Caminhar como modo de vida

A professora Vanise8 nos ajuda a pensar a diferença de um caminho


sobrevoado e outro percorrido a pé a partir da sua prática enquanto professora
do Ensino Fundamental de uma escola pública no Rio de Janeiro.
Desde 2007, ano da chegada do projeto na escola, como já citei, fui
convidada a percorrer caminhos ainda não trilhados. É como se
estivesse caminhando por trilhas de um jardim e, ao pisar em
gravetos, escutasse no estalar desses gravetos uma variedade de
sons. Nesse mesmo instante, abre-se a escuta de uma paisagem
sonora singular e diferente, convidando-me a uma atenção para
viver outros tempos, outros pensamentos, num lugar outrora
conhecido e, ao mesmo tempo, tão desconhecido. (Gomes, 2017, p.
17). [...]
Até minha participação no Projeto “Em Caxias a filosofia en-caixa?”,
através da minha prática pedagógica sempre direcionada e orientada
pretensamente fiel dos programas vindos da secretaria e do
ministério de educação, penso que, de alguma forma, estava
sobrevoando a minha tarefa pedagógica. É como se me permitisse
sair de uma visão de observadora e conhecedora a ser uma
professora de experiência, que deixara de pensar que ela com seu
saber tinha que transformar os alunos a partir do método
“científico” que lhe estava sendo proporcionado para passar a
deixar-se afetar e ser ela própria transformada pela experiência de
co-habitar com seus alunos uma sala de aula.
Assim, de alguma forma o projeto de Filosofia trouxe a possibilidade
de percorrer um caminho mais próximo da prática educativa,
ajudando-nos a abrir os olhos para o próprio caminho, para escutar
a autoridade - a autoria – do caminho compartilhado com meus
alunos. Surgem, então, novas possibilidades para relacionarmos
com a escola e seus processos educativos.
A caminhada, o deslocamento rumo ao exercício de pensar que o
projeto de filosofia é um convite a transitar uma perspectiva de
baixo, próxima ao solo, a baixar da altura dos saberes e métodos
aprendidos à possibilidade de olhar de perto aquilo que o caminho
nos mostra sem que possamos antecipá-lo. (Gomes, 2017, p. 33).
Segundo a professora Vanise, antes de conhecer e participar do projeto
de filosofia com crianças, sua prática pedagógica era trilhada por um caminho
cheio de expectativas quanto aos resultados e objetivos a serem alcançados na
aprendizagem dos alunos, ou seja, era um caminho percorrido a partir da visão
distante de quem sobrevoa um caminho. Entretanto, quando foi “convidada” a
percorrer um caminho diferente do qual estava acostumada, onde, numa
experiência de pensamento com os alunos, o que importava era a atenção a um
mundo comum e a criação de um espaço de potência para o pensamento – sem
se preocupar com a “resposta certa”, com uma “única verdade”, mas criando
um espaço de “igualdade de pensamento” – a professora passou a percorrer o
caminho de sua prática pedagógica de outra maneira: andando; vendo o

8
Professora de alfabetização na Escola Municipal Joaquim da Silva Peçanha – Caxias/RJ.
Doutora pelo ProPEd/UERJ e coordenadora do projeto “Em Caxias a Filosofia En-Caixa?”. As
citações que têm as referências “GOMES” referem-se à tese de doutorado da professora Vanise.

37
Carolina Fonseca de Oliveira

caminho a partir da visão de baixo, relacionando-se com ele através da sua


própria autoridade.
A questão aqui não é cairmos num dualismo e dizer que uma forma de
se relacionar com um caminho é melhor que a outra, muito menos de defender
a “importância” de se ter diferentes perspectivas – uma que vê “o todo” e outra
“que vê as partes” –, mas se trata de pensar a força que cada forma de relação
com o caminho exerce em nós, a diferença com que cada atividade se mostra
em um modo diferente de relacionar-se com o mundo e com o presente. Vanise,
mais uma vez, nos ajuda a pensar a força de um caminho quando sobrevoado
e, outra, quando percorrido andando ao dizer que sua prática pedagógica ora
é percorrida sobrevoando, ora caminhando.
Sendo assim, inicio a narrativa do percurso de uma professora que
ora se distancia, isto é, realiza sua caminhada de formação e atuação
pedagógica como quem sobrevoa um território tendo em vista o
ponto de chegada à aprendizagem dos alunos, ora decide percorrer
este território bem perto do solo, permitindo que sua prática
investigativa esteja atenta e aberta não apenas para ver o caminho,
mas para viver a experiência do caminhar com a autoridade que o
caminho lhe impõe. (Gomes, 2017, p. 34-35).
Masschelein e Simons (2014), assim como Gomes (2017), nos ajudam a
pensar sobre o modo como caminhamos e nos relacionamos em nossa prática
educativa. Pensar a partir dessas perspectivas nos leva às questões, tais como:
Quando e por que caminhamos e/ou sobrevoamos o caminho de nossas
pesquisas? De que modo queremos nos relacionar com o caminho (da
pesquisa)? O que buscamos priorizar em nossas pesquisas: a atenção de um
olhar no presente e/ou a intenção de se alcançar um objetivo? A quem
interessa quando sobrevoamos ou caminhamos o caminho da pesquisa
educacional? O que nos interessa, o que atrai o nosso olhar no caminho da
pesquisa educacional? Que encontros são possíveis em uma relação com a
pesquisa em que se caminha e em outra que se sobrevoa? O que busca
encontrar quem caminha um caminho ou quem o sobrevoa? Onde caminha o
inesperado: no caminho andado, no caminho sobrevoado ou em outra maneira
de fazer o próprio caminho e caminhá-lo? O que significa ser um pesquisador
educacional que sobrevoa ou que caminha um caminho? Que preço é exigido
do/a pesquisador/a que se dispõe a caminhar de uma ou de outra maneira?

1.3 Dos por quês e para quês da pesquisa educacional


Para Masschelein e Simons (2014), caminhar um caminho é uma
maneira de estar presente no presente submetendo o olhar à autoridade do
caminho para que, estando atento, o caminho se apresente como realmente é,

38
Caminhar como modo de vida

e não como gostaríamos ou suporíamos que fosse cheia de expectativas e


intenções subjetivas. Caminhar em uma pesquisa, então, é estar passível às
transformações que essa pesquisa nos submete. É ser transformado à medida
que se caminha atento. O conhecimento aqui não serve para outra coisa que
não seja a transformação de si.
Masschelein e Simons (2014) apresentam duas maneiras de se relacionar
com a pesquisa educacional que exige um preço a ser pago pelo pesquisador.
Uma, refere-se à busca de um conhecimento para se alcançar a verdade dentro
de uma comunidade científica e o preço a se pagar é: submeter-se às regras
internas e externas da pesquisa, impostas por essa comunidade, onde quem
tem autoridade para falar é apenas quem consegue chegar à verdade. A outra
relaciona-se à busca do conhecimento para a transformação de si próprio. A
verdade, aqui, é a verdade de si; é colocar-se à prova, em questão a todo
momento. Ter acesso à verdade, não para falar com propriedade, mas para que
essa verdade tenha acesso ao eu para atingi-lo e transformá-lo.
Desse modo, podemos fazer uma analogia entre duas maneiras de
percorrer um caminho e os dois preços a serem pagos ao se fazer uma pesquisa
educacional. Um caminho que, ao ser percorrido a pé, exige a atenção e o
desprendimento de intenções a fim de que o caminho possa transformá-lo, e
um caminho sobrevoado, em que o mais importante é a busca (através das
expectativas e interpretações subjetivas) para alcançar o conhecimento
verdadeiro e poder falar com propriedade diante de uma comunidade científica,
mas que não implica a transformação de si, senão, o conhecimento do “objeto”
a ser pesquisado.
Nesse sentido, abordaremos mais detalhadamente essas questões
iniciando com algumas perguntas que nos inquietaram quando começamos a
pensar a relação do pesquisador com a pesquisa. O que faz de um pesquisador,
pesquisador? O que significa ser um pesquisador educacional? O que significa
fazer pesquisa (educacional)? O que diferencia um pesquisador não-
educacional de um pesquisador educacional? Quem pode ser pesquisador? O
que exige uma pesquisa educacional? O que pode um pesquisador
(educacional)? O que pode uma pesquisa (educacional)?
Ao ingressar no mestrado no Programa de Pós-graduação em Educação
– PropEd/UERJ, precisei cursar uma disciplina obrigatória geral chamada
Produção do Conhecimento em Educação, ministrada pelos professores Walter
Omar Kohan e Siomara Borba. As discussões da disciplina giraram em torno
de algumas questões, dentre elas: o que significa produzir conhecimento?

39
Carolina Fonseca de Oliveira

Quem é produtor de conhecimento? Para que e para quem se produz


conhecimento em Educação?
Dentre alguns teóricos estudados, Lyotard foi um dos mais inquietantes
para a turma com sua crítica ao modo como as instituições de Ensino Superior
têm lidado com o saber produzido na pós-modernidade que, segundo o autor,
em vez de emanciparem, alienam. Para Lyotard, a relação de dependência entre
as Universidades e os financiamentos privados têm transformado a produção
do saber em mercadoria a ser vendida ou trocada. “O saber é e será produzido
para ser vendido e ele é e será consumido para ser valorizado numa nova
produção: nos dois casos, para ser trocado. Ele deixa de ser para si mesmo seu
próprio fim; perde o seu ‘valor de uso’”. (Lyotard, 2000, p. 05).
Nessa lógica, o saber, ao se tornar mercadoria, também se torna um
mecanismo de competição mundial (guerra intelectual) para se obter lucro e,
consequentemente, poder. Nesse sentido, Lyotard não considera o cientista na
pós-modernidade um produtor de saber, mas, sim, aquele que vai lidar com um
conhecimento já produzido para transformá-lo em mercadoria a ser negociada.
Quando nos inscrevemos em um mestrado acadêmico (Stricto sensu),
precisamos entregar um Plano de Trabalho a ser desenvolvido ao longo dos
24 meses. Temos, então, que apresentar um tema de pesquisa, as questões que
giram em torno dela, a metodologia a ser utilizada, a relevância do tema para
a área da educação e as contribuições dessa pesquisa para a sociedade. Somos
chamados de pesquisadores e produtores do conhecimento. No entanto, se
corroborarmos com Lyotard e pensarmos que, na pós-modernidade, o cientista
não é um produtor do saber, mas apenas aquele que lida com o conhecimento
a fim de fabricar as “encomendas” da classe dirigente e ajudar o capital a obter
lucro, qual o sentido de “fazer pesquisa” em Educação nesse contexto que é o
nosso? Se o pesquisador não produz conhecimento, então o que faz ao realizar
pesquisas científicas? Como esse discurso pode nos fazer pensar sobre o modo
que nos relacionamos com a pesquisa – e encontrar outras maneiras de fazê-la
– e não reforçar a diminuição do apoio e incentivo às pesquisas que nossas
Universidades vêm sofrendo com o descaso do governo? Como pensar essa
atividade acrescentando que estamos num país como o Brasil, com a situação
política atual e a atual política de desinvestimento na educação pública e, mais
ainda, na pesquisa em ciências humanas? Como ainda pensar isso mais
concretamente na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, afogada pelo
completo descaso com a coisa pública que tomou conta do Estado nos últimos
anos e, mais concretamente, a suspensão dos repasses à Universidade para seu
funcionamento? Embora essas questões excedam o que podemos aqui tratar,

40
Caminhar como modo de vida

não queremos deixar de colocá-las porque dizem respeito à condição de


pesquisa que é a nossa.
Masschelein e Simons (2014) nos ajudam a pensar a relação entre
pesquisa pedagógica e pesquisador educacional a partir da distinção entre duas
tradições de pesquisa. No entanto, essa distinção não se baseará em distinções
metodológicas, mas, inspirados em Foucault, pensarão essa distinção a partir
de duas maneiras diferentes de se situar diante do que se pode chamar de
“acesso à verdade”. “Baseado em quê pode-se obter o acesso à verdade? O que
significa ‘verdade’? Baseado em qual significado da palavra ‘verdade’ o
pesquisador pode ser capaz de falar com propriedade?”. (Masschelein; Simons,
2014, p. 57).
Desde uma perspectiva diferente à concepção de pesquisador na pós-
modernidade de Lyotard, Masschelein e Simons (2014) dizem que na atual
sociedade, chamada de “sociedade do conhecimento”, existe uma concepção de
pesquisa em que o pesquisador é considerado “um produtor de conhecimentos
e a pesquisa científica é uma produção de conhecimentos científicos”.
(Masschelein; Simons, 2014, p. 58). Nesse sentido, o termo “científico” serve
para qualificar o valor do conhecimento; isso significa que para o conhecimento
ser válido é preciso ter cumprido determinadas condições (internas e externas)
durante sua produção.
As condições internas referem-se à metodologia (às normas formais
de um método) e à estrutura do objeto de conhecimento que se
pesquisa. Trata-se de condições relativas à “validade” do
conhecimento. No entanto, as condições externas são regras sociais,
normas e valores que o pesquisador deve cumprir para poder gerar
conhecimento de um modo que resulte “fiável”. (Masschelein;
Simons, 2014, p. 58).
Nessa tradição, o objetivo da pesquisa pedagógica é produzir
conhecimentos científicos de acordo com os conhecimentos válidos. A busca
pelo conhecimento se baseia em melhorar a prática educativa e o pesquisador
é quem gera e acumula conhecimentos; para o pesquisador, o sentido formativo
da pesquisa está em acumular conhecimentos para ser aquele que pode falar
com propriedade. A transformação que se busca aqui não é a de si próprio, mas
a do próprio conhecimento.
Em contrapartida, existe uma segunda tradição de pesquisa em que o
acesso à verdade se dá a partir da transformação de si. Logo, a verdade não
consiste em alcançar apenas conhecimentos válidos, mas em vivenciar uma
ética de si.

41
Carolina Fonseca de Oliveira

(Re)conhece-se que uma pessoa diz a verdade quando presta atenção


a si mesma de um modo determinado, quando mostra um domínio
de si que se concretiza em suas ações e sem seus pensamentos, e
quando seus atos e suas palavras estão inspirados por sua verdade.
(Masschelein; Simons, 2014, p. 63).
De acordo com Masschelein e Simons (2014), na tradição da pesquisa
como “cuidado de si” é necessário ter acesso à verdade, assim como a verdade
deve ter acesso ao eu, deve atingi-lo e transformá-lo. Nesse sentido, a condição
da ação pedagógica correta é cuidar de si e colocar-se à prova a todo momento;
estar disposto a confrontar o que se pensa e o que se diz com o que se faz. É
um trabalho contínuo em e sobre si mesmo. Para isso, é preciso estar atento; a
atenção é fundamental nesse processo. Nessa tradição, o conhecimento não
tem, senão, outra função que não seja cuidar de si e transformar o eu. “O
professor que cuida de si busca a coincidência entre o que diz e o que faz”.
(Masschelein; Simons, 2014, p. 70).
Para Masschelein e Simons (2014, p.64), o que diz se alguém está na
verdade, se sua vida é verdadeira ou está inspirada pela verdade, é se esse
alguém é dono de si. A partir disso, falar com propriedade não tem a ver com
transmitir conhecimentos verdadeiros (válidos) a fim de que os ouvintes
compreendam melhor sua realidade e tentem melhorá-la a partir de então, mas
significa falar convidando e inspirando em nome do cuidado de si. “Nesse
sentido, falar com propriedade se dirige a mudar os ouvintes e a deixá-los
atentos: trata-se de um falar que funciona como oferta ou um convite para
trabalhar consigo e ocupar-se da “alma””. (Masschelein; Simons, 2014, p. 66).
Em ambas as tradições, existe um preço a pagar na pesquisa. Na
primeira tradição, o preço exigido é a produção do conhecimento válido por
meio de determinadas condições internas e externas à pesquisa. Na segunda, é
um estado de atenção que coloca a si próprio em jogo para uma efetiva
transformação do eu.
Em outro momento histórico e geográfico, na América do Sul, no século
XIX, Simón Rodríguez (2016) diz que enquanto Napoleão, imperador francês,
queria governar o gênero humano, o libertador venezuelano Bolívar, queria
governar-se por si mesmo, mas, para Rodríguez, o importante era que os
outros aprendessem a governar-se a si próprios e chamava isso de AMOR-
PRÓPRIO. Estaria Rodríguez falando do domínio de si e da atenção a si para
o cuidado e a transformação do eu da qual falam Masschelein e Simons? Seria,
então, um amor-próprio uma condição para andar numa pesquisa pedagógica?
Como entender esse amor para que não seja confundido com uma postura
individualista e narcisista nesta época de individualismos exacerbados?

42
Caminhar como modo de vida

Poderia se tratar de um amor a um coletivo, a uma comunidade, a uma escola


(pública)?
Parece-nos que Simón Rodríguez, também, faz alguma relação entre
ignorância e a forma de se relacionar com o outro. No livro Inventamos ou
Erramos de Simón Rodríguez, os organizadores, Walter Omar Kohan e
Maximiliano Durán, descrevem em uma nota de rodapé (Rodríguez, 2016, p.
134-135) que o termo “ignorância” aparece diversas vezes na obra de
Rodríguez e que Rozichner (2012) sustenta que a ignorância a qual se refere
Rodríguez é aquela que é indiferente à dor alheia, em quem falta a
reciprocidade. “Ignorante é o que não pode sentir como própria a dor alheia,
quem não pode sentir ao outro no próprio corpo (Rozichner, 2012, p. 77 apud
Rodríguez, 2016, p. 134-135).
Talvez, muitos doutores, mestres, “produtores do conhecimento”,
pesquisadores que conhecemos não passem de ignorantes porque não estão
preocupados em cuidar de si e serem sensíveis à dor alheia, em colocarem-se
em questão a partir dos outros, em pensarem e analisarem seus modos de vida
e de serem professores a partir do mundo e dos outros; em dedicarem atenção
a si e ao mundo, mas preocupam-se apenas em enriquecerem-se do
conhecimento válido a fim de manterem seus status de poder, para “falar com
propriedade” segundo os critérios da comunidade científica.
Pensar “cada um por si, e Deus por todos” consiste no refrão dos
egoístas, disse Rodríguez (2016, p. 139). Contudo, ele combate essa ideia
defendendo que “os homens não estão no mundo para se destruir, mas para se
ajudar”. (Rodríguez, 2016, p. 139).
Repito: os homens não estão no mundo para se destruir, mas para se
ajudar. Parece que a competição acadêmica existe no refrão dos egoístas: “cada
um por si, e Deus por todos”. Muitos não hesitam em destruir os outros,
“puxarem o tapete”, “passarem a perna”, ou como se queira nomear, para
produzir conhecimento ou, de forma um pouco menos digna, apenas para
aumentar algumas páginas em seu Currículo Lattes. Dizem: “Porque eu
pesquiso...”, “Porque a minha pesquisa...”, “Porque eu...”, “Porque o meu...”,
“Porque eu...”, são frases recorrentes nas aulas da pós-graduação (stricto sensu).
E para que fazemos pesquisa mesmo? Para quem?
Por vezes, as “pesquisas” sobre pessoas se tornam mais importantes do
que as próprias pessoas. Quanta hipocrisia! Masschelein e Simons dizem que
ao se fazer pesquisa, existe um preço a pagar. Que preço estamos dispostos a
pagar na pesquisa científica, filosófica e educacional? Nossa busca por
conhecimento está relacionada a ter acesso à verdade e a poder falar com

43
Carolina Fonseca de Oliveira

propriedade em uma comunidade científica, ou está implicada na possibilidade


de autotransformação? De que maneira desejamos percorrer este caminho da
pesquisa?

44
O ESCRITOR COMO CAMINHANTE
2 O ESCRITOR COMO CAMINHANTE

2.1 Caminhar: viajar na mente quanto na paisagem?


Que relação pode ter entre a atividade de caminhar e a de escrever? Por
que muitos escritores fizeram do ato de caminhar uma inspiração para suas
escritas? Ou, até mesmo, antes de fazerem algo desse caminhar, perceberam
que, ao andar, pensamentos eram provocados e os levavam a escrever? Essas
são algumas perguntas que o escritor Merlin Coverley (2014) tenta responder
em seu livro A arte de caminhar: o escritor como caminhante9.
Neste capítulo, mais do que “repetir” algumas palavras de Coverley
sobre a origem da relação entre a atividade de caminhar e escrever e o que isso
tem a ver com o pensamento, a filosofia e a literatura, tentaremos pensar o que
as palavras de Coverley nos ajudam a refletir sobre essa interessante relação e
o que as perguntas que podemos fazer a partir de seu pensamento nos ajudam
a pensar a escrita – também a nossa escrita – enquanto professores-escritores
que lidamos o tempo todo com essa linguagem e que temos a função de ensiná-
la aos que ainda não a dominam.
Coverley (2014) inicia seu livro afirmando que não é de sempre que a
atividade de caminhar carrega um significado admirável. Foi ao longo do
tempo que a atividade de caminhar adquiriu uma significação cultural
surpreendente. Segundo Coverley (2014), durante grande parte da história
humana o ato de caminhar era considerado um meio de locomoção natural e
só adquiriu outros sentidos à medida que foi substituído por outras formas de
transporte. Por conta disso, caminhar passou a ser concebido não apenas como
o movimento das pernas, mas como diversos símbolos que esse movimento
poderia ecoar.
Há muito tempo que o caminhar é considerado como uma função política
que inspirou caminhantes e radicais desde John Clare a Guy Debord, bem

9
Merlin Coverley diz que “cada caminhar pode ser expresso como uma história narrada pelo
caminhante”. (2014, p. 16). São algumas histórias e vidas dos que caminharam que o autor tenta
examinar em seu livro. Sem querer ilustrar uma história do escritor como caminhante, pois o
próprio autor indica leituras a respeito do tema em sua bibliografia, Coverley dedica uma
atenção particular a alguns escritores da tradição literária ocidental para pensar a importância,
os impactos que essa atividade teve na vida desses escritores. Nesse sentido, para os que se
interessam em uma abordagem mais profunda sobre filósofos e literatos que caminharam,
sugiro a leitura dos livros A arte de caminhar: o escritor como caminhante de Merlin Coverley, 2014
e A História do Caminhar de Rebecca Solnit, 2016.

47
Carolina Fonseca de Oliveira

como um ato estético presente nos movimentos de vanguarda do século XX,


segundo Coverley. Entretanto, para o autor, “em todos esses casos, contudo, o
caminhar é menos valorizado pelo que é ou faz do que pelo que parece,
reproduz ou facilita”. (Coverley, 2014, p. 12). Ou seja, muitas escritas sobre o
caminhar estão permeadas dos benefícios que essa atividade pode trazer para
a saúde e bem-estar mental, ou sobre como o ato de caminhar parece facilitar
ou propiciar pensamentos mais abstratos, mas não sobre sua prática em si ou
sobre o que essa experiência pode nos provocar. Em outras palavras, o
caminhar é valorizado pelos seus efeitos e não pelo próprio caminhar.
Para Coverley (2014), muitos filósofos-escritores acreditavam na
intrínseca relação entre o ato de caminhar e a atividade de escrever.
Acreditava-se que os ritmos corporais provindos do ato de caminhar geravam
processos mentais do pensamento abstrato.
Por milênios, acreditou-se que o ato de caminhar, assim como os
ritmos corporais que ele incorpora, reflete ou gera os processos
mentais do pensamento abstrato, como se a batida metronômica do
passo do caminhante pudesse marcar o tempo, moldando numa
narrativa coerente os pensamentos que provoca. (Coverley, 2014, p.
12)
É com base nesse pensamento, que se instaurou o legado cultural do
caminhar incorporado na figura do escritor como caminhante. Para Coverley
(2014), muitos escritores indicaram a relação entre caminhar e escrever, mas
talvez nenhum deles o tenha feito com a precisão do antropólogo Tim Ingold
que apresentou a sua crença de que atividades tão fundamentais como
caminhar, escrever, ler e desenhar apresentam características comuns entre si,
pois, apresentam uma forma específica de movimento que imprime uma marca
tanto na imaginação quanto no chão.
Ao se embasar em Ingold, Coverley (2014) enfatiza que caminhar e
escrever são atividades complementares e “em muitas circunstâncias os
resultados dessa união entre mente e pé, os textos que juntos formam o cânone
pedestre, refletem eles próprios os caminhares que o inspiraram”. (Coverley,
2014, p. 14).
Coverley (2014) relata que Ingold se pergunta em que se difere a leitura
do caminhar na paisagem? Ingold responde:
Em nada. Caminhar é viajar na mente tanto quanto na paisagem: é
uma prática profundamente meditativa. E ler é viajar na página
tanto quanto na mente. Longe de serem rigidamente separados, há
um constante trânsito entre esses terrenos, mental e material, pela
porta dos sentidos. (Ingold, 2011, p. 202 apud Coverley, 2014, p. 13).

48
Caminhar como modo de vida

Segundo Coverley (2014), Ingold diz que não só apenas o ato de


caminhar e ler tem em comum uma prática profundamente meditativa, mas
também o ato de caminhar pode ser comparado ao de contar histórias ao passo
firme do caminhante ao se deslocar de um lugar para outro. Contar uma
história é relatar as ocorrências do passado percorrendo novamente um
caminho onde o processo de fiar-se sempre pode ir mais além. Assim, também,
acontece na caminhada, onde no movimento de um lugar para outro é que o
conhecimento se integra. Desse modo, é que “cada caminhar pode ser expresso
como uma história narrada pelo caminhante”. (Coverley, 2014, p. 16).
Para Ingold (apud Coverley, 2014), tanto ler quanto caminhar consistem
em uma prática profundamente meditativa, enquanto no ler se viaja pela
página, no caminhar se viaja pela paisagem. No Abecedário de Gilles Deleuze10,
o filósofo francês traz uma concepção de viagem que nos ajuda a pensá-la além
de um deslocamento geográfico e de um passeio turístico e, talvez, se aproxime
mais da concepção de viagem como uma prática meditativa, mencionada por
Coverley e Ingold.
Deleuze afirma não precisar sair para viajar, pois há viagens lentas que
consistem em verdadeiras rupturas sem que seja preciso se mover. A exemplo
disso, diz que ao ouvir uma música que acha bonita ou ler um livro que acha
bonito, tem a sensação de passar por emoções que nenhuma viagem lhe
permitira conhecer.
GD: [...] Por que iria buscar estas emoções em um sistema que não
me convém quando posso obtê-las em um sistema imóvel, como a
música ou a filosofia? Há uma geo-música, uma geo-filosofia. São
países profundos. São os meus países11.
Isso nos remete a outras palavras de Gilles Deleuze, no Abecedário,
quando questionado por Claire Parnet “por que odiava as viagens?”. Deleuze
responde que não é que ele odiasse as viagens, mas devolve a pergunta
questionando “o que existe na viagem?”. O que existe na viagem que não possa
ser encontrado em outros lugares? Para Deleuze, existem três razões pelas
quais ele não gostava de viagens. A primeira razão diz respeito a uma
concepção de viagem que as pessoas têm de uma certa ruptura. Viajar para
romper com algo. Para Deleuze, isso não passa de uma falsa ruptura ou uma

10
O Abecedário de Gilles Deleuze é uma realização de Pierre-André Boutang, produzido pelas
Éditions Montparnasse, Paris. No Brasil, foi divulgado pela TV Escola, Ministério da
Educação. Tradução e Legendas: Raccord [com modificações]. A série de entrevistas foi feita
por Claire Parnet, filmada nos anos 1988-1989, mas que só acabou sendo apresentada entre
novembro de 1994 e maio de 1995, no canal (franco-alemão) de TV Arte, após o assentimento
de Deleuze.
11
O Abecedário de Gilles Deleuze, V de Viagem.

49
Carolina Fonseca de Oliveira

ruptura barata. Deleuze diz que as pessoas que viajam muito têm orgulho disso
e dizem que vão em busca de um pai. Ao se utilizar das palavras de Fitzgerald,
Deleuze diz que “não basta uma viagem para haver uma ruptura”. Se o que se
deseja é uma ruptura, então, que se faça outra coisa que não seja viajar. A
segunda razão refere-se ao fato daqueles que viajam por prazer. Para Deleuze
não é nisso em que consiste uma viagem. E os que viajam por prazer, para ele,
não passam de idiotas. E a terceira razão refere-se a sua fascinação pelos
nômades, os quais viajam pouco. “Nada é mais imóvel e viaja menos do que um
nômade. Eles são nômades porque não querem partir”. (Deleuze em O
Abecedário de Gilles Deleuze).
Parece evidente que as críticas que Deleuze faz às viagens e ao
“movimentar-se” têm a ver com determinadas concepções que foram
construídas sobre as viagens e rupturas. Percebemos que, quando Deleuze se
refere às viagens, está se referindo à mesma concepção de viagem que Claire
Parnet se referiu: as viagens convencionais, turísticas ou existencialistas; essas
viagens que consistem em se descobrir, encontrar-se consigo mesmo, superar
a si mesmo, se autoconhecer. Sempre num sentido voltado para o “eu” de uma
maneira narcisista. Para Deleuze, não é preciso viajar para viver uma
experiência de viagem. Então, se viajar não consiste em romper com certos
paradigmas, conhecer diferentes culturas, conhecer lugares “bonitos”,
“turísticos”, por puro prazer ou apenas pelo movimento de deslocar-se, então
para que viajar?
Deleuze vai mais a fundo e diz que há uma bela frase de Proust que
pergunta o que fazemos quando viajamos? A resposta vem logo em seguida:
“para verificar algo”. Deleuze diz que se há algum sentido em viajar, esse
sentido está na verificação de algo, e isso tem a ver com um bom e um mau
sonhador. Mais uma vez, Deleuze cita Proust e diz que “um mau sonhador é
aquele que não vai ver se a cor com a qual sonhou está lá. Mas um bom
sonhador vai verificar, ver se a cor está lá”. Para Deleuze, esta é uma boa
concepção de viagem. Poderíamos dizer que a verificação tem a ver com
perguntar? Pois, se há algo para ser verificado é porque existe uma dúvida,
uma pergunta. Toda dúvida é uma pergunta? E toda pergunta contém uma
dúvida? Seria o sentido da viagem um perguntar-se sobre as coisas? Duvidar
delas e ir verificá-las? E para ressignificar ou reconsiderar as dúvidas de modo
que viajemos sempre duvidando em vez de seguir com certezas absolutas sobre
as coisas?

50
Caminhar como modo de vida

O que é preciso para viajar? O que é preciso para caminhar, seja na


página ao ler e escrever, ou, no pensamento? Daniel Gaivota12 abre essas
perguntas questionando: “por que viajamos?”. (Contage, 2017, p. 41). E
responde:
O viajante não viaja porque nasceu viajante, nômade ou pastor de
ovelhas. A força que impulsiona o viajante não vem de dentro. Onde
está esta força que nos faz viajar, que nos faz sair, nos tornarmos
outros quando é tão mais fácil permanecermos os mesmos?
(Contage, 2017., p. 42)
Segundo Contage (2017), a força que nos faz viajar é a força que nos faz
sair do lugar, que faz nos tornarmos outros e não mais permanecermos os
mesmos. A viagem, então, não seria apenas o que te faz movimentar
fisicamente, mas também, um movimento interno que gera uma transformação
de si? Isso me remete às palavras de uma pessoa que o caminho me fez
encontrar em uma viagem13. Ao conversar com um pastor cadeirante, ele me
perguntou:
Sabe por que eu não preciso de um milagre para andar? Porque eu
não preciso andar fisicamente, eu preciso andar espiritualmente. A
verdadeira limitação não está nas pernas de quem não pode andar,
mas na mente de quem não pode pensar. (Pastor Vanderley. Diário
de Pesquisa, 2018).
As palavras desse pastor, me fizeram pensar que, assim como, para
Deleuze há viagens que não consistem em se locomover geograficamente,
também, há “caminhares” que não precisam das pernas para ser realizados. Há
diferentes maneiras de caminhar. E, para ele (pastor Vanderley), caminhar tem
a ver com transformação da mente (metanoia). Significa não permanecer mais
no mesmo lugar. Nessa mesma conversa, o pastor Vanderley disse ter
permanecido no mesmo lugar por um tempo – ou seja, no mesmo pensamento
– logo após o acidente que lhe causou a paralisia, pois não aceitava que aquilo
estivesse acontecendo com ele, ainda mais tão jovem. Passou um tempo
sentindo raiva, revolta de Deus e do mundo e sentindo pena de si mesmo. Mas,
depois de uma experiência com Deus no hospital, ele decidiu mudar; decidiu
caminhar, mesmo sem o movimento de suas pernas. Decidiu mudar de

12
Ver Contage, Daniel Gaivota. Poética do Deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na
escola-viagem. Rio de Janeiro: NEFI, 2017. Coleção: Teses e Dissertações; 5.
Daniel é um amigo, integrante do NEFI, que defendeu sua dissertação de mestrado em 2017
pelo ProPEd/UERJ, tendo sua dissertação publicada como livro na Coleção Teses e
Dissertações pela Editora NEFI no mesmo ano.
13
Viagem realizada à cidade Euclides da Cunha Paulista, interior do Estado de São Paulo em
dezembro de 2017 para visitar minha mãe. A conversa com o pastor Vanderley aconteceu no
dia 02 de janeiro de 2018 em uma visita que ele nos fez e foi registrada no Diário de pesquisa
com a autorização dele.

51
Carolina Fonseca de Oliveira

pensamento (conversa registrada no Diário de Pesquisa, 2017). De quantas


formas é possível caminhar? De que maneira estamos dispostos a caminhar (a
viajar)?
O que viajar tem a ver com escrever? A partir de Deleuze, arriscamo-
nos a dizer que escrever, também, pode ser uma viagem no sentido de verificar
algo. Se algo precisa ser verificado, é porque não se tem certeza sobre o que
será verificado. Assim, como podemos pensar uma escrita-viajante? Como
escrever viajando (no sentido de verificar algo, de perguntar, duvidar) sem
determinar verdades universais, mas, também, sem cair numa imparcialidade
superficial, em generalizações ou tudo dá no mesmo? Como viajar numa escrita
sem certezas, juízos de valor, verdades absolutas, sem uma postura de quem
sabe, de quem detém o saber e, ainda assim, defender princípios como, por
exemplo, o da igualdade14? De acordo com Contage (2017), se o prazer da
viagem não está em questão, pois viajar por prazer se aproxima mais do
turismo do que da viagem em si, se a viagem tem mais a ver com experimentar
um caminho do que com alcançar um objetivo e consiste numa atividade de
experimentar o fora e encontrar o outro, poderíamos dizer que uma escrita-
viajante seria uma escrita que se constrói no caminho à medida que se anda e
com as dúvidas e perguntas que surgem no percurso? Seria, também, escrever
a partir da experiência com outros?

2.2 Entre caminhos, escritas e marcas


Segundo Coverley (2014), para o antropólogo Ingold caminhar é uma
forma específica de movimento que, ao percorrer um caminho através de um
terreno, deixa uma marca na imaginação e no chão. “Consequentemente,
Ingold vê a vida humana como definida ‘pela linha do seu próprio movimento’,
um processo que inscreve através da paisagem uma marca que pode ser ‘lida’
pelas gerações posteriores”. (Coverley, 2014, p. 13).
Nessa lógica, o caminhar assume um papel essencial sendo o meio pelo
qual os seres humanos aprendem a entender o mundo a sua volta e deixam sua
marca não apenas nos caminhos que andam, mas também, nas histórias orais
e textos escritos onde são registradas essas vivências.
A partir das palavras de Miles Jebb, Coverley (2014) diz que o
verdadeiro caminhante não é apenas aquele que caminha, mas aquele que faz
algo a partir desse caminhar. E esse algo seria o que eleva essa atividade

14
Abordaremos o princípio da igualdade do caminhar no capítulo 5 (cinco) Xanháratiicha a
partir de uma leitura de Adriano Labbucci e do movimento indigenista zapatista.

52
Caminhar como modo de vida

aparentemente óbvia a algo bem mais do que uma simples locomoção. Seria,
pois, esse “algo” uma possível marca que se pode deixar à medida que se
caminha?
Nas palavras do poeta Antonio Machado, em seu poema Cantares15, não
há caminho, pois o caminho se faz ao andar. O que há são as marcas16 no mar.
Caminhante não há caminho, se faz caminho ao andar...
Caminhante não há caminho, senão há marcas no mar... (Antônio
Machado)
Nesse sentido perguntamos: O que são as marcas no mar? É possível
deixá-las? É possível segui-las? E por que as seguir? Se as marcas que
deixamos na areia (no caminho) muitas vezes são vistas apenas por nós
mesmos, pois as ondas do mar as apagam, por que as deixamos? Para quem?
Em quem deixamos nossas marcas? Elas são nossas, ou seja, causada por nós
ou em nós? Há marcas que são invisíveis ou visíveis apenas para quem as
consiga ver? Quem vê ou quem segue as marcas? Ao deixar pegadas, marcas
dos pés na areia, também se leva grãos dessa areia nos pés e para outras
marcas. Assim, poderíamos dizer que deixar uma marca também implica em
ser marcado de alguma maneira? Se algumas marcas foram apagadas da areia
pelo mar, poderíamos dizer que elas estão no mar, ou que elas ainda estão na
areia mesmo não sendo visíveis? E se pensarmos de acordo com Antonio
Machado, de que o caminho são as pegadas e nada mais, poderíamos dizer que
nossos caminhos são frutos das pegadas e das marcas de outras tantas pessoas,
visto que caminhamos e, deixamos marcas por cima das marcas dos outros?
Pensar sobre as marcas que deixamos e que recebemos ao longo do
caminho me remete a uma música popular brasileira Caminhos do Coração, do
cantor e compositor Gonzaguinha (1945-1991). A música Caminhos do coração
me faz pensar que a vida é como um caminho a ser percorrido e, nesse caminho,
não estamos sozinhos mesmo quando pensamos estar, não só por
encontrarmos tantas pessoas nesse caminho, mas, também, porque não somos
apenas uma só pessoa, mas somos “tanta gente” por causa das marcas das lições
diárias de “tanta, muita, diferente gente” deixadas em nós.
Há muito tempo que eu saí de casa
Há muito tempo que eu caí na estrada
Há muito tempo que eu estou na vida

15
Machado, Antonio. Cantares. Tradução de Maria Teresa Almeida Pina. Disponível em:
<http://blogs.utopia.org.br/poesialatina/cantares-antonio-machado/>. Acessado em: 05 de
jan de 2018.
16
A palavra original no poema traduzida como marca é estelas, que também pode ser traduzida
como rastro.

53
Carolina Fonseca de Oliveira

Foi assim que eu quis, e assim eu sou feliz


Principalmente por poder voltar
A todos os lugares onde já cheguei
Pois lá deixei um prato de comida
Um abraço amigo, um canto pra dormir e sonhar
E aprendi que se depende sempre
De tanta, muita, diferente gente
Toda pessoa sempre é as marcas
Das lições diárias de outras tantas pessoas
E é tão bonito quando a gente entende
Que a gente é tanta gente onde quer que a gente vá
E é tão bonito quando a gente sente
Que nunca está sozinho por mais que pense estar
É tão bonito quando a gente pisa firme
Nessas linhas que estão nas palmas de nossas mãos
É tão bonito quando a gente vai à vida
Nos caminhos onde bate, bem mais forte o coração
(Caminhos do Coração, Gonzaguinha)
Há de se destacar que essa música me foi apresentada por um amigo,
Ronaldo Andrade, que foi meu parceiro de trabalho em uma formação que
lecionamos para professores do Estado do Pará, na cidade de Marabá em
novembro de 2017 e, assim como muitas falas, músicas e livros que compõem
essa escrita, são frutos dos encontros que o caminhar tem me proporcionado.
São as marcas que foram deixadas em mim.
De acordo com o dicionário online de Português17, o substantivo
feminino marca tem vários significados, dentre alguns deles, o de cicatriz
indelével feito com ferro em brasa no ombro de um condenado; traço que deixa
no corpo um ferimento: as marcas de uma queimadura; sinal para distinguir
uma coisa de outra. Nesse sentido, podemos entender a marca como algo com
significado próprio que pode surgir a partir de uma ação nossa ou de outros.
Dizer que uma determinada situação nos marcou, significa dizer que foi
importante, impactante e inesquecível, mesmo que tenha sido dolorosa.
Significa dizer que algo nos aconteceu e que precisa ser registrado através da
memória, da escrita, da arte, ou seja, de alguma marca. É a necessidade de dizer
algo, de transmitir uma mensagem, um acontecimento.
Retomando a afirmação de Coverley (2014), que caminhar e escrever são
atividades complementares e considerando que há caminhos que são feitos
pelos passos do caminhante assim como diz o poeta Antonio Machado,
perguntamos: seria a página um caminho e as palavras os passos? Que relação
pode haver entre a mão que escreve e os pés que andam? Podemos dizer que
na escrita caminhamos com as mãos? O que nos impulsiona a escrever (andar)?

17
Disponível em: < https://www.dicio.com.br/marca/>. Acessado em: 05 de jan de 2018.

54
Caminhar como modo de vida

Que marcas deixamos ao escrever ou queremos deixar e que marcas levamos


da escrita ou estamos dispostos (abertos) a levar?
Em sua dissertação de mestrado, Edna, uma amiga integrante do NEFI,
pergunta “o que pode uma palavra”? (Cunha, 2014, p. 37). Pensar sobre a
potência das palavras me faz pensar também sobre as marcas. Recordo-me de
uma experiência de pensamento realizada no curso de Formação realizado em
julho de 2017 pelo NEFI, no Centro de Estudo Ambientais e Desenvolvimento
Sustentável (CEADS) da UERJ em Ilha Grande – Angra dos Reis/RJ, em que
um dos grupos de trabalho propôs uma atividade em que cada pessoa deveria
escolher uma palavra que estava pendurada numa tenda para oferecer a alguém
que julgasse representar a(s) palavra(s) escolhida(s). Poderia se escolher mais
de uma ou escrever novas palavras nos papéis disponíveis a fim de colá-las em
alguma parte do corpo da pessoa a quem se estava oferecendo essas palavras.
Percebi a empolgação do grupo ao procurar palavras e escolher para quem as
iria oferecer. Observei por um tempo. Algumas pessoas receberam muitas
palavras; outras receberam menos. Até aquele momento eu não havia recebido
nenhuma palavra. Foi quando Malena, uma professora argentina que
participava do mesmo grupo de trabalho que eu, ao perceber que eu não tinha
recebido nenhuma palavra, pegou uma que estava solta e a colou em minha
testa: sentido, foi a palavra que Malena escolhera para mim. Camila também
me ofereceu uma palavra da qual eu não consigo me recordar. Após todos
“estarem felizes” (ou aparentemente felizes) com as palavras recebidas, o grupo
que coordenava esta experiência conduziu a todos para debaixo de uma árvore
para, então, conversar sobre “as palavras”. Continuei o percurso com todo o
grupo, mas, era como se eu não estivesse mais ali. Fiquei um tempo ouvindo
cada um falar sobre o sentimento e o sentido daquela “experiência”, no entanto,
não consegui ficar até o final dela. Desisti antes que acabasse, porque não
conseguia mais dar conta daquele acontecimento (ou do que o acontecimento
tinha feito comigo) que nem sabia bem o que era. Permito-me fazer aqui um
breve desvio para pensar sobre experiência, pois fiquei me perguntando: o que
nos leva a desistir de percorrer um caminho? Eu havia desistido, abandonado
a experiência ou apenas feito uma parada no percurso? Ou mudado a rota? Ou
ainda, apenas começado a caminhar naquele momento em que algo me afetara?
Talvez não tenha desistido da experiência, e, sim, a partir daquilo que me
afetava, tenha começado a andar por ela ou a tenha deixado andar em mim,
pois foi naquele momento que a experiência aconteceu em mim. O que é uma
experiência? De acordo com Larrosa (2014, p. 68), a experiência nada mais é
do que “aquilo que nos acontece”, não o acontecimento, mas o que acontece em

55
Carolina Fonseca de Oliveira

nós. “Por isso a experiência é atenção, escuta, abertura, disponibilidade,


sensibilidade, exposição”. Se entendermos a experiência como algo que nos
atravessa, então, podemos dizer que a experiência não consiste somente na
duração cronológica de uma atividade proposta, mas, sobretudo, se nesse
tempo Chrónos em que a experiência transcorre é possível viver um tempo
Kairós, ou seja, um momento oportuno, uma oportunidade de ver o mundo de
um modo estranho, diferente. Foi a partir daquela experiência que me
atravessava que não consegui mais seguir o caminho proposto, um caminho
con-junto, precisando mudar de direção para seguir um outro, talvez mais
solitário, ou mesmo, não para seguir outro caminho, senão para fazer uma
parada naquele caminho anterior. Talvez fosse necessário parar para dar
atenção à ausência de palavras em meio a tantas palavras. Para Larrosa, a
experiência tem a ver com o “não-saber”, o “não-dizer”, o “não-poder” (Larrosa,
2014, p. 68). Assim, a experiência tem a ver com o limite do que sabemos
porque ela não pode se associar ao dogmatismo; nela sempre existe algo que
“não sabemos sobre o que nos acontece”. A experiência, também, tem a ver
com o limite do que dizemos, pois quando algo passa em nós, muitas vezes,
“não temos o que dizer”, ficamos sem palavras que possam expressar o que
sentimos. E por fim, a experiência tem a ver com um limite do poder, pois nela
existe algo que não sabemos “o que podemos fazer” com aquilo que nos afeta.
Retomando o relato, a experiência me deixara sem palavras: sem saber
o que dizer e o que fazer. Então, me afastei do grupo e me isolei para chorar e
para pensar no que a ausência das palavras, talvez, o silêncio delas, estava a
me dizer. Qual o sentido de uma palavra? Que força tem uma palavra? O que
pode uma experiência com as palavras? De que maneira a força das palavras
pode nos ajudar a andar um caminho de uma pesquisa educacional mais ou
menos comprometido com a pesquisa? Que sentido há em dar palavras e em
não as dar? Pode ser a ausência de palavras a afirmação de um sentido? Por
que queremos sempre dar palavras a alguém? É possível representar/ significar
alguém (apenas) pelas palavras? E qual o sentido de receber de um outro, ou
outra, palavras? Qual o sentido de não receber palavras? O que pode uma
palavra? O que pode sua ausência?
Cunha18 (2014) nos ajuda a pensar com mais perguntas:

18
A referência Cunha, 2014 refere-se à Edna Olímpia, amiga querida integrante do NEFI que
defendeu sua dissertação de mestrado em 2014 pelo ProPEd. É professora de Português na
Escola Municipal Joaquim da Silva Peçanha e atua no projeto de filosofia com infâncias "Em
Caxias a Filosofia En-caixa?" há muitos anos.

56
Caminhar como modo de vida

Entre as palavras e seus silêncios, nas perguntas lançadas pelas


crianças subjazem outras perguntas: O que pode uma palavra? O
que é uma palavra? O que seria sentir uma palavra? Ou mesmo, o
que pode o silêncio, o indizível das palavras? (Cunha, 2014, p. 37)
“O que seria sentir uma palavra?” é o que Edna pergunta. Sentir uma
palavra teria a ver com escutar? Sentir uma palavra teria a ver não apenas com
escutar o que elas dizem, mas o que elas também não dizem? Com seus
silêncios? Que relação pode haver entre sentir uma palavra e as marcas de uma
palavra? Ao escrever (dar palavras), poderíamos dizer que estamos deixando
uma marca e que ser marcado pelas palavras não teria a ver com dizê-las, mas
com escutá-las? Teria a ver com esse silêncio, com o indizível das palavras
como aponta Cunha (2014)? A marca das palavras. Quando deixamos uma
marca é porque estamos dizendo algo? E quando recebemos essa marca,
estamos escutando? Onde está o silêncio das palavras?
Retomando as questões sobre o que nos impulsiona a escrever e sobre
as possíveis marcas da escrita, perguntamos: Que passos comandam os
caminhos que nossos dedos constroem na página? Que caminhos e que
caminhar inspiram nossas escritas? Que escritas inspiram nosso caminhar e
nossas escritas? É possível uma escrita (um caminhar) sem deixar marcas ou
sem tocar em outras (ou nas) marcas de outros? Sendo assim, podemos dizer
que escrever não consiste em uma atividade solitária, pois nossas escritas são
frutos da inspiração de leituras que fazemos e de encontros que nos afetam, ou
seja, das marcas de outras pessoas em nós?
Kohan (2016) ensaia uma política da escrita acadêmica, que tem por
nome a Amizade, ao se referir às palavras de Jan Masschelein na apresentação
de seu livro A pedagogia, a democracia, a escola (2014). Como conta Kohan
(2016), o livro mencionado contém alguns textos de apenas uma autoria, a de
Jan Masschelein e outros em coautoria com Maarten Simons. Por conta disso,
antes da publicação do livro em português, surgiu a dúvida de como colocariam
a autoria se nem todos os textos tinham sido escritos pelos dois autores. Foi
então que Jan Masschelein optou por colocar os nomes dos dois autores no
livro, considerando que, por mais que alguns textos tenham sido “escritos” e
publicados apenas por um autor, eles foram frutos de uma experiência de
pensamento compartilhada com seu amigo Maarten Simons.
Sim, a amizade é outro nome para uma política da escrita.
Masschelein afirma que, entre amigos, é impossível continuar a
falar, pensar e escrever sozinhos sobre as coisas que preocupam os
amigos. E aclara que a amizade não é uma relação pessoal, mas
mundana, que há um mundo que atravessa o encontro entre duas
pessoas, que é esse mundo comum, compartilhado,

57
Carolina Fonseca de Oliveira

apaixonadamente interessante, que torna a escrita solitária


impossível. (Kohan, 2016, p. 56)
Nas palavras de Kohan “é impossível se apropriar da autoria da escrita
quando há um mundo comum partilhado” (2016, p. 56). Para Masschelein, o
mundo se torna objeto de preocupação para os amigos, algo que provoca o
pensamento, a experimentação e a escrita. (Masschelein; Simons, 2016, p. 9).
Parece que Masschelein nos ensina que nós pensamos a partir do pensar junto,
com o outro, que nós somos enquanto somos com outros. Que nossas escritas
nada mais são do que os frutos de experiências vividas a partir de outros, com
outros.
Kohan (2016) nos leva a pensar sobre essa política da escrita acadêmica,
a amizade, e nos faz refletir acerca dos questionamentos sobre “para que
escrevemos hoje no mundo acadêmico?” e “para que abrimos e dispomos a
escrita para outros?”. Para o autor, a escrita acadêmica tem se tornado
burocrática e de pouca relação com a vida, sobretudo, tem se tornado um
instrumento para o individualismo e para engordar um currículo lato, porém
vazio, puro número. Por conta disso, se falamos de uma escrita acadêmica que
surge de uma experiência mundana compartilhada, então, é impossível
escrever sozinho sobre algo relacionado a essa experiência. (Kohan, 2016, p.
56).
Há uma passagem muito bonita na dissertação de mestrado de uma
amiga, Julia Kruger19, do Núcleo de Pesquisa – NEFI, em que a mesma,
inspirada em Deleuze-Guattari, escreve sobre a relação entre amizade e
pensamento. Para Krüger (2016), podemos dizer que há um pensamento entre
amigos quando uma ou mais ideias se unem ou se fundem. E, assim como numa
germinação, onde as coisas precisam de outras para fazer nascer uma terceira
ou uma nova coisa, o mesmo acontece entre as pessoas. Nada se faz sozinho.
Colocando atenção aos termos utilizados por Deleuze-Guattari e
fazendo uma livre interpretação, temos “intercessores” em relação à
intercessão, que é um ponto em comum entre dois conjuntos;
quando duas (ou mais) ideias se unem e se fundem, assim pode se
dar um “pensamento entre amigos”. Os cristais, por sua vez, são
frágeis, têm suas formas sólidas feitas de elementos primordiais e
fundantes nas constituições da natureza: átomos, moléculas ou íons.
Possuem uma geometria harmônica e regular. Já os germes, a
germinação, representaria o lugar onde algo nasce: um pensamento
entre dois, um conceito. Isto é, as coisas precisam de outras para
fazer nascer uma terceira e nova coisa. O mesmo se dá entre as
pessoas. Nada pode brotar do nada, muito menos um pensamento.
O outro parece ser fundamental para o nascimento e a criação.

19
Julia Ramires Krüger defendeu em 2016 sua dissertação de mestrado intitulada O saber da
amizade: entre filosofia e educação pelo ProPEd/UERJ.

58
Caminhar como modo de vida

Deleuze-Guattari parecem propor, portanto, que a partilha entre


amigos é uma determinação que se relaciona a uma fusão, a uma
fragilidade, que pressupõe algo mais primordial e original, e disso
surge o nascimento e a criação necessários para um pensamento
existir e inaugurar-se – é a exigência do pensamento. Nada disso se
faz sozinho. O agir vem conjuntamente. (Krüger, 2016, p. 116-117).
Na Introdução: Rizoma de Mil platôs vol. 1, Deleuze-Guattari (2011, p.
17-25) escrevem sobre uma escrita a dois, ressaltando como que nessa relação
e nos encontros que se dão a partir dela, ambos deixam de lado o que “são”
para se tornarem uma outra coisa ou por causa do outro já não podem ser mais
os mesmos. Para eles, o importante num livro, numa escrita não é a afirmação
do Eu, isto é, algo voltado para o pessoal, mas o que está fora, sob um plano
de exterioridade.
Escrevemos O anti-Édipo a dois. Como cada um de nós era vários,
já era muita gente. Utilizamos tudo o que nos aproximava, o mais
próximo e o mais distante. Distribuímos hábeis pseudônimos para
dissimular. Por que preservamos nossos nomes? Por hábito,
exclusivamente por hábito. Para passarmos despercebidos. Para
tornar imperceptível, não a nós mesmos, mas o que nos faz agir,
experimentar ou pensar. E, finalmente, porque é agradável falar
como todo mundo e dizer o sol nasce, quando todo mundo sabe que
essa é apenas uma maneira de falar. Não chegar ao ponto em que
não se diz mais EU, mas ao ponto em que já não tem qualquer
importância dizer ou não dizer EU. Não somos mais nós mesmos.
Cada um reconhecerá os seus. Fomos ajudados, aspirados,
multiplicados. (Deleuze-Guattari, 2011, p. 17).
Deleuze-Guattari (2011) dizem que ao iniciar a escrita do O anti-Édipo,
cada um era vários e concluem o parágrafo dizendo que ao escreverem juntos
não havia mais importância dizer ou não dizer “Eu”, até mesmo, porque eles já
não eram mais os mesmos. Como falar a partir do que se é se, quando se é, já
não se é mais? Como escrever sobre o que se é se o “eu” só é com “outros”?
Parece que falar ou escrever sobre si é possível quando não se olha para fora
do que está além de si mesmo, pois se há transformação do “eu” em “nós” e se
“nós” não podemos mais dizer quem somos porque já somos muitos com o
outro, então, não podemos mais escrever sobre quem se é, senão sobre
qualquer outra coisa que não se dirija a nós mesmos.
É interessante quando ouvimos dizer que a partir de uma conversa, de
um encontro, começamos a perguntar e a pensar sobre coisas que ainda não
havíamos pensado. Muitas anotações, muitas escritas surgem a partir do
“pensar junto”, das aulas e discussões com os “amigos”, dos estudos do grupo
de pesquisa, a partir de um filme, de um livro, de uma imagem, um som, uma
música, uma situação, uma cena, um aroma, um sabor, um toque, uma textura...

59
Carolina Fonseca de Oliveira

Ao descrever o percurso de sua pesquisa de doutorado, Reilta, mais uma


amiga integrante do NEFI, destaca algumas cenas importantes que montaram
o cenário do início do seu caminhar na pesquisa e sobre como sua escrita foi se
construindo a partir dos afetos que lhe atingiam, ou, se assim podemos dizer,
das marcas.
Os deslocamentos ocorrem em diferentes contextos de escolas
públicas, se encadeiam e contam em cenas, recortes, a trajetória de
uma experiência que começa ao acaso, quase acidentalmente, em
consequência de um convite e vai se fazendo na tessitura dos
acontecimentos, das experiências, dos fazeres da vida que brota e se
entrelaça nos espaços, nas trocas, nos olhares, nos sentidos que se
revelam nos fazeres, nas falas – a experiência que é – como ela foi
sendo e como eu a vejo, a compreendo, não sozinha, mas também a
partir da escuta, das vozes dos/as que caminham comigo. (Cirino,
2016, p. 30).
No início desta escrita, mencionei sobre a angústia quando ainda não
tinha perguntas sobre o tema do caminhar para começar a pensar e a escrever
e que a partir de um encontro com as professoras Edna e Vanise, com as
bolsistas do projeto, Camila e Priscila, e com a turma 202, foi que as perguntas
pulsaram em mim. Não foi a primeira nem a última vez que algo do tipo
acontecera. Na maioria das vezes, é a partir dos encontros nos seminários de
pesquisa do NEFI ou nas experiências na escola, ou ainda apenas de uma
conversa com/ entre amigos preocupados com alguma questão mundana que
nascem perguntas, pensamentos, sensações e escritas. Uma dessas trocas
aconteceu entre Simone20 e eu numa correspondência que trocamos sobre meu
texto de qualificação do mestrado. Nessa correspondência, Simo, como
carinhosamente é chamada pelo grupo, escreve sobre como uma escrita com o
outro e a partir de outros tem se tornado uma experiência significativa para
ela.
Simone: Acho que por isso a correspondência é tão cara para mim:
estar com o outro, me encontrar nas palavras, nos escritos, nas
ideias do outro me faz saltar de mim mesma, me faz querer pensar
com o outro...ou o que de mim está com o outro... Encontrar com
tuas palavras, me fez sair, saltar de mim! Me encontrei em ti.
Carol: ... eu acho importante essa coisa de pensar junto, de estar
com o outro, se encontrar no outro... acredito que meu processo de
escrita flui mais quando estou pensando junto com um grupo. O
Subcomandante Marcos vai dizer no conto “la historia de las
miradas” que é olhando nos olhos do outro que podemos nos
conhecer mais.
Simone: Carol, acho que essa é uma boa conversa! Acho que essa
troca é um verdadeiro pensar junto!

20
Simone Berle, amiga integrante do NEFI e doutora em Educação pelo ProPEd/UERJ.

60
Caminhar como modo de vida

Espero te instigar com minhas questões tanto quanto me


instigastes! (Correspondência com Simone Berle, setembro de 2017
– ANEXO A, p. 126)
Simone afirma que a troca que fizemos consiste num verdadeiro pensar
junto. Também escreve sobre a difícil tarefa que é se encontrar com as palavras
do outro, pois isso implica sair de si mesmo e estar aberto ao outro.
Ao se embasar em Aristóteles, Krüger (2016) afirma que na amizade é
possível a troca; e a troca é que abre espaço para a transformação de nossas
ações, pois é a partir do encontro com o outro que nossos pensamentos e ações
são confrontados.
É nesse trecho muito simples, porém fulcral, que se vê a relação
estreita entre amizade e pensamento, já explicitada por Aristóteles,
e que reforça a importância do outro para o pensamento. Aqui,
também podemos incluir a importância no “agir”, pois, como já
vimos, a amizade também permite a troca que abre espaço para a
transformação de nossas ações na prática, a partir do momento em
que o outro nos ajuda a confrontar nossos próprios pensamentos e
ações. (Krüger, 2016, p. 118)
Para Daniel Gaivota, através das viagens somos capazes de ir ao
encontro de outras pessoas.
Ao viajar, somos capazes de ir ao encontro de outras pessoas. É uma
experiência singular, visto que muitas vezes não encontramos
hospitalidade em nossas cidades ou locais de origem, mas sim em
estranhos. (Contage, 2017, p. 55)
O que nos faz sentir essa necessidade de dialogar com a escrita do outro
e a partir do outro em nossas escritas?
Lembro-me da primeira aula de uma disciplina que cursei durante o
mestrado no primeiro semestre de 2017, Escola, memória e cultura escrita,
lecionada pela professora Ana Chrystina Venancio Mignot, em que a
professora sugeriu como primeira leitura da disciplina uma dissertação21 de
uma ex-aluna de mestrado do ProPEd. Segundo a professora Ana Chrystina,
não temos o hábito de ler nossos colegas na pós-graduação. Lemos tantos
livros e artigos, muitas vezes apenas de autores “consagrados”, mas não lemos
as escritas de nossos próprios colegas. É claro que isso não acontece por acaso,
pois a escrita, desde sua invenção, aparece ligada ao poder22 e se constitui como
um signo de distinção social e cultural (Viñao, 1996) e, mais especificamente,
de reconhecimento acadêmico. Isso significa que algumas escritas se

21
Camacho, Suzana Brunet. Cadernos de segredos: marcas da educação católica na escrita íntima.
Dissertação (mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Educação.
2005. 172f.
22
Cf. Viñao Frago, Antonio. Por una historia de la cultura escrita: observaciones y reflexiones.
SIGNO. Revista de Historia de la Cultura Escrita, 3 (1996). Universidad de Alcalá de Henares,
pp. 41-68.

61
Carolina Fonseca de Oliveira

sobrepõem a outras, ou seja, umas são consideradas mais válidas e consagradas


do que outras. Percebemos isso na primeira tradição de pesquisa pedagógica
da qual escrevem Masschelein e Simons (2014), onde o conhecimento válido é
aquele produzido a partir das condições internas e externas de uma
comunidade científica. Nesse sentido, às vezes, preferimos ler aqueles que
alcançaram “a verdade” não pela transformação de si e por colocar em questão
seus valores determinantes, senão, os que falam por sua “capacidade
intelectual” e aptidão de “falar criticamente a todo momento”. Essa relação
com o que escolhemos ler e com quem dialogar na escrita me remete aos
questionamentos que ora ou outra nos deparávamos na aula: qual a
importância social da escrita? Por que guardamos mais livros escolares do que
cadernos escolares? Por que, muitas vezes, para validar alguma informação
dizemos “está escrito no livro”? Por que validamos algumas escritas mais do
que outras?
No início dessa escrita, baseados em Kohan (2013), defendemos que
escrever tem a ver com afirmar uma vida. Que vida estamos afirmando em
nossas escritas? Que vida estamos permitindo que nos afete em nossas
leituras? Que encontros temos nos permitido experimentar em nossas leituras
e escritas? Com quais palavras temos nos permitido dialogar? O que nos faz
escolhermos uns e não outros para dialogar? Temos deixado marcas em nossas
escritas? Quais? De que modo? Permitimo-nos ser marcados pelos outros em
nossas escritas? O que pode uma escrita acadêmica que se faz com o outro, que
se faz a partir de uma política da amizade, segundo Kohan, Masschelein e
Simons?
Diante dessas perguntas, podemos dizer que essa escrita vem se
construindo através de um caminhar que se faz com outros, através das
palavras (das marcas) dos outros; contudo, não apenas das palavras de autores
com um certo prestígio acadêmico, mas também, com as palavras de colegas
de pesquisa. A partir da concepção de uma pesquisa pedagógica que consiste
na transformação do pesquisador, segundo Masschelein e Simons (2014),
defendemos um modo de fazer pesquisa que não consiste no pesquisador
apenas solitário, com a intenção de analisar um “objeto” de sua pesquisa para
trazer verdades ou consolidá-las, mas consiste numa pesquisa que se dá por
meio de encontros com outros e de uma escrita de coautorias entre pares. É
uma escrita que se compõe, caminhando, ao caminhar. E, ao mesmo tempo que
deixa marcas, pegadas (palavras, silêncios) no caminho (na escrita), também é
marcada pelas marcas (palavras) de outros e da própria escrita (caminho),
como temos visto no decorrer dessas páginas permeada por vozes de amigos,

62
Caminhar como modo de vida

principalmente, do grupo de pesquisa NEFI, que encontramos no caminho da


pesquisa.

2.3 Caminhar e escrever como phármakon


Coverley (2014) menciona alguns filósofos-caminhantes-escritores que
tiveram suas escritas inspiradas na atividade de caminhar: Rousseau,
Kierkegaard e Nietzsche. Para Coverley (2014), essas figuras expressavam
uma efetiva solidão e ausência de laços afetivos, o que os levou a ter uma visão
muito pessoal do mundo e a fazer do caminhar solitário não só um modo de
vida, mas também, o meio pelo qual nasceram suas obras.
A caminhada de Nietzsche é considerada a mesma expressão da
solidão e ausência de laços afetivos que antes inspirara Rousseau e
Kierkegaard, e é uma forma de expressão que, em vez de lembrar os
caminhantes e pensadores de uma época anterior, antecipa a
angústia existencial ligada à modernidade. E talvez seja por essa
razão que a relação entre a caminhada e a filosofia continua tão
teimosamente esquiva - a solidão que essas figuras expressam se
fundamenta inevitavelmente numa visão muito pessoal do mundo,
uma visão que coloca seus textos em desacordo com qualquer forma
de pensamento sistemático e os torna resistentes à inclusão em
qualquer tradição. (Coverley, 2014, p. 30).
Entre os escritores mencionados por Coverley (2014), traremos um
olhar mais atento sobre o filósofo dinamarquês do início do século XIX, Søren
Kierkegaard, que fez do ato de caminhar um modo de vida. Para Kierkegaard,
caminhar era bem mais do que uma prática estética, era fonte de prazer e lazer,
além de cura e apoio para sua produtividade enquanto escritor. (Coverley,
2014, p. 28).
Kierkegaard caminhava pelos campos, mas, sobretudo, pelas ruas de sua
cidade natal, Copenhague. Preferia caminhar junto à multidão da vida urbana
por ser um ambiente ao mesmo tempo conturbado e propenso à observação.
Caminhava por prazer, mas também para cuidar de sua saúde. Por causa de
uma queda na infância, Kierkegaard tinha uma curvatura acentuada na coluna
que fazia seu andar parecer deslocado.
O caminhar que era crucial em sua vida não demorou muito a se tornar
o motivo de sua tristeza. Segundo Coverley (2014), ao invés de Kierkegaard
ter alcançado a serenidade do caminhante no caminhar, acabou recebendo
inúmeras humilhações, o que o levou ao desespero.
Depois de sustentar uma disputa pública com uma revista satírica,
a Corsair, Kierkegaard sofreu uma impiedosa campanha de
zombarias que fez dele vítima de chacotas nas ruas de Copenhague.
Sem ser mais um observador e passando a ser observado, ele já não
podia encontrar consolo na multidão. (Coverley, 2014, p. 29)

63
Carolina Fonseca de Oliveira

Segundo Oliveira (2015), depois da morte de seu pai em 1838 e do


rompimento do noivado com Regine em 1842, Kierkegaard ingressou num
período muito difícil em sua vida em dezembro de 1845. No mesmo mês, “um
antigo conhecido, P. L. Møller publicou um artigo crítico a respeito do Livro
Estações No Caminho da Vida de Kierkegaard, onde também mencionava coisas
a respeito da vida pessoal do autor”. (Oliveira, 2015, p. 176). Kierkegaard não
demorou a responder a crítica com uma publicação no jornal acusando Møller
de contribuir anonimamente para o jornal O Corsário – o qual ele chama de
“jornaleco”, conhecido pelos ataques à elite de Copenhague – o que prejudicou
a reputação de Møller. Não satisfeito, Kierkegaard desafia, no final de seu
artigo, o jornal O Corsário a atacá-lo, pois dizia que ser elogiado pelo jornal O
Corsário equivalia a um insulto. Foi, então, que o editor do jornal, Meir
Goldschimidt, que admirava Kierkegaard, sente-se ofendido e inicia uma
jornada de humilhações e ataques a Kierkegaard. Promove uma ridicularização
constante fazendo caricaturas com a intenção de zombá-lo e de menosprezar
seu intelecto. (Oliveira, 2015). Com as publicações do jornal, Kierkegaard sofre
uma enxurrada de humilhações, sendo motivo de zombarias pelos moradores
da cidade, pelos comerciantes e estudantes da faculdade enquanto passeava nas
ruas.
Mesmo sendo motivo de julgamentos e chacotas, mesmo com toda
tristeza, Kierkegaard continuou caminhando, até que em uma de suas
caminhadas, desmaiou e morreu. O caminhar que lhe inspirava a vida e lhe
dava prazer também foi o meio pelo qual sofreu humilhações até a sua morte.
É possível que algo ao mesmo tempo que nos dê vida também nos leve à
morte? Se a atividade de caminhar era tão vital para Kierkegaard a ponto dele
dizer que “a saúde e a salvação só podem ser encontradas no movimento” e “se
a pessoa continua andando, tudo ficará bem” (Kierkegaard, 1847 apud
Coverley, 2014, p .29), e que para manter a prática de caminhar ele tivesse que
enfrentar chacotas e zombarias que lhe causavam melancolia, poderíamos dizer
que ele afirmou muito mais a sua vida, embora, ao caminhar, estivesse
caminhando para a sua morte, do que muitos que, apesar de não morrerem
vivem uma vida desvitalizada? Estaria, pois, o escritor enquanto caminhante
nesse paradoxo de uma escrita (de um caminhar) que leva à vida e à morte ao
mesmo tempo? Seria o caminhar de Kierkegaard como o phármakon?
Derrida (2005) apresenta o duplo sentido do phármakon em A farmácia
de Platão, com base no diálogo Fedro. Segundo Derrida (2005), Sócrates
compara os escritos do orador Lísias que Fedro traz consigo a uma droga
(phármakon) que atua de duas maneiras: como remédio e veneno ao mesmo

64
Caminhar como modo de vida

tempo. “Esse phármakon, essa ‘medicina’, esse filtro, ao mesmo tempo


remédio e veneno, já se introduz no corpo do discurso com toda a sua
ambivalência.” (Derrida, 2005 apud Kohan, 2016, p. 51. Grifo do autor).
Nota-se que a atividade de caminhar estava relacionada para
Kierkegaard também como um remédio, tanto para a saúde física quanto
mental (emocional). Segundo Oliveira (2015), por causa da severa criação que
Kierkegaard recebeu de seu pai sob a influência da religião cristã, sua
personalidade foi profundamente marcada pela melancolia, senso de culpa e
ansiedade. Mais um motivo pelo qual a atividade de caminhar era importante
para ele, pois afastava os pensamentos opressivos.
Acima de tudo não perca o desejo de andar: todo dia eu caminho
num estado de bem-estar, e andando me afasto de todas as doenças.
Tenho tido meus melhores pensamentos enquanto ando, e não sei
de nenhum pensamento tão opressivo que a pessoa não possa afastar
enquanto caminha. (Kierkegaard, 1847 apud Coverley, 2014, p. 29).
Mas, como ressalta Coverley (2014), esse remédio estava longe de ser a
panaceia para todas as suas doenças.
A atmosfera foi corrompida para mim. Por causa da minha
melancolia e do meu enorme trabalho, eu precisava de uma situação
de solidão na multidão para descansar. Por isso me desespero. Já
não posso encontrá-la. A curiosidade me cerca por todos os lados.
(Kierkegaard apud Coverley, 2014, p. 29).
Como já mencionado anteriormente, também ao caminhar, era onde
Kierkegaard era humilhado nas ruas pelas pessoas; o que lhe causava mais
angústia e sofrimento. O caminhar que era remédio para sua saúde e motivo
de bem-estar, também, foi por onde mais pôde receber humilhações, que o
levou a uma melancolia profunda até a sua morte. Nesse sentido, retomamos a
questão: Estaria, pois, o escritor enquanto caminhante nesse paradoxo de uma
escrita (de um caminhar) que leva à vida e à morte ao mesmo tempo?
Pensar uma pesquisa educacional é também pensar a escrita que
construirá essa pesquisa. No decorrer do curso de pós-graduação, às vezes,
percebemos e até compartilhamos de uma certa angústia de muitos colegas ao
escrever sua tese ou dissertação. A frase “eu tenho dificuldade de escrever
academicamente” é recorrente entre os alunos principalmente nas disciplinas
sobre escrita oferecidas pelo nosso programa (ProPEd/UERJ). Em uma
dessas disciplinas, Tópicos especiais: A escrita acadêmica em educação, lecionada
pelo professor Walter Omar Kohan no primeiro semestre de 2017, foi-nos
proposto um exercício de escrita – a partir da fala de Deleuze no Abecedário,
letra A de animal, que escrever não tem a ver com um assunto privado, uma
história privada – em que todos deveriam dizer sobre o que a atividade de

65
Carolina Fonseca de Oliveira

escrever teria a ver e não teria a ver com sua biografia. Nesse sentido, fizemos
um exercício onde cada um de nós escreveria duas frases. A primeira começaria
com “escrever uma pesquisa educacional tem a ver com”; a segunda, “escrever
uma pesquisa educacional não tem a ver com”. E cada um de nós completava a
frase. Praticaremos aqui esse mesmo exercício para pensar: poderíamos
elencar muitos motivos, no entanto, ainda que essa escrita não tenha por
objetivo responder todas as questões aqui presentes, senão, a partir delas
pensar outras para não pararmos de caminhar, ela (essa escrita) também se faz
a partir de alguns princípios relacionados à atividade de caminhar que nos
ajudam a pensar a escrita de uma pesquisa educacional.
Assim, a partir de Masschelein e Simons, podemos dizer que a atividade
de escrever uma pesquisa educacional tem a ver com a atenção e não tem a ver
com a intenção, isto é, ela pede deixar que o caminhar seja conduzido pelo
caminho e não conduzir o caminhar a partir do nosso olhar cheio de intenções
pessoais. Mas, pensando com Coverley e Ingold, podemos dizer, também, que
escrever tem a ver com viajar; uma viagem no sentido de “verificar algo”, como
aponta Deleuze no Abecedário, ou seja, escrever é viajar sempre com um olhar
atento em um movimento de perguntar-se, de colocar algo em questão, em vez
de determinar certezas: atentar mais do que intencionar. Contudo, ainda
podemos dizer que escrever tem a ver com deixar marcas no chão da página
enquanto se caminha e de deixar-se marcar pelas palavras (marcas) do outro a
partir dos encontros que o caminhar nos proporciona. Por fim, podemos dizer
que a atividade de escrever tem a ver com a vida e morte (de si e da escrita),
pois mesmo que o caminhar nos faça querer viver de outra maneira, ainda
assim, estamos sujeitos aos riscos e perigos de caminhar. A filosofia23 é um
caminho sem volta, pois a partir do momento em que o olhar é educado a
estranhar o mundo de um modo atento, não há outra alternativa que não seja
a transformação de si. Mas essa transformação, muitas vezes, não se dá por
uma busca, ela acontece independente da busca, pois quando você se dá conta,
percebe que já não é mais a mesma e, ainda que queira voltar a ser, não
consegue. No entanto, diria ainda que a filosofia é um caminho sem volta não
porque não se possa repetir um caminho mais de uma vez, mas porque ao
repeti-lo já não se é mais o mesmo de antes – ainda que se refaça um caminho,
nem o caminho e nem o caminhante são mais os mesmos. Há uma vida que se

23
A filosofia como um “exercício de pensamento”. “Isso significa que o ‘exercício de pensamento’
(ou seja, a filosofia nesse sentido) é um exercício que não é orientado para (ou baseado em, ou
sobre) o conhecimento em primeiro lugar, mas diz respeito à questão de como agir e se
relacionar com o presente...” (Masschelein; Simons, 2014, p. 13).

66
Caminhar como modo de vida

refaz através da morte de outras vidas. Há vidas, pensamentos, caminhos que


nascem a partir da morte de outros pensamentos, de outros caminhos...
Escritas que morrem para dar vida a outras...24 Assim tem sido o caminhar
dessa pesquisa que foi se construindo deixando para trás muitas coisas,
inclusive muitas que não se queria deixar, mas por uma força maior do caminho
não se teve outra alternativa a não ser se deixar conduzir pelo próprio
caminho. Assim como muitas coisas tiveram que ser deixadas para trás, outras
surgiram do inesperado para dar vida ao que se tinha morrido. Vida e morte
da escrita. Vida e morte (dos caminhos) de uma escrita.

24
Cf. Cunha, Edna Olímpia da. Suspensões e desvios da escrita: travessias da filosofia na escola
pública. 2014. 161 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014. p 33-39. Cunha (2014), a partir
de uma experiência de filosofia com as crianças, apresenta um capítulo sobre a relação da escrita
com a vida e a morte.

67
UMA FILOSOFIA DE CAMINHAR
3 UMA FILOSOFIA DE CAMINHAR

3.1 Caminhar não é um esporte


Quantas vezes já ouvimos a frase “caminhar faz bem para a saúde”?
Talvez nós mesmos já a tenhamos reproduzido diversas vezes quase que
automaticamente. Quantas vezes, vimos reportagens tratando sobre os
benefícios da caminhada? Quantas vezes, nós mesmos já recebemos
orientações médicas para caminhar? Apesar do caminhar, frequentemente, ser
relacionado às atividades físicas benéficas à saúde, Frédéric Gros, em seu livro
Caminhar, uma filosofia, faz uma defesa do caminhar como uma experiência
espiritual e não como um esporte. Segundo Gros (2010), caminhar não é um
esporte. O esporte privilegia a técnica, a competição, a velocidade, a contagem.
Ainda que o esporte seja, também, um senso de resistência, uma disciplina e
um trabalho, ele também é algo a ser vendido pelo mercado.
São performances. O esporte proporciona imensos cerimoniais
midiáticos, apinhados de consumidores de marcas e imagens. O
dinheiro toma-o sob controle para despojar as almas, e a medicina,
para fabricar corpos artificiais. (Gros, 2010, p. 9).
Segundo Gros (2010), o esporte é constituído por contagens: em qual
posição ficou? Qual foi o seu tempo? Qual o resultado? Contudo, no caminhar
não há nada de resultados. Para o autor, caminhar é uma brincadeira de
criança: basta pôr um pé na frente do outro. Se há intenção de ir mais depressa,
o autor aconselha a não caminhar, mas a fazer outra coisa: rodar, deslizar, voar,
correr. Porque se há alguma intensidade no caminhar, não é a da velocidade.
Gros apresenta algumas dimensões da experiência de caminhar através
da vida de escritores-caminhantes, sendo alguns filósofos e outros literatos.
No entanto, não faremos uma análise de seu livro, muito menos, uma descrição
detalhada de suas páginas, mas, a partir daquilo que nos chamou a atenção
sobre a filosofia do caminhar, tentaremos nos repensar enquanto caminhantes-
educadores.
Mais do que um livro sobre caminhar, Gros escreveu um livro sobre
caminhantes. Caminhantes inconformados com o sistema vigente de sua época.
Caminhantes que faziam duras críticas ao comodismo e à mesmice. Baseado
nesses autores, Gros, também, faz uma crítica ao sistema capitalista, ao lucro,

71
Carolina Fonseca de Oliveira

ao supérfluo seguido de um convite a experimentar a terra em sua plenitude


através do caminhar.
Por que caminhar? Para que caminhar? Essas perguntas vêm e vão
como se a tentativa de respondê-las, também, as impossibilitasse de serem
respondidas. Por que a necessidade de saber o porquê e o para quê? Que
sentido têm essas perguntas quando as fazemos? Seria no sentido de encontrar
alguma utilidade, alguma serventia? Ou seria no sentido não de encontrar uma
função específica, um resultado final, uma finalidade, mas de encontrar algum
(uns) propósito (s) ou um próprio sentido?
“E por que caminhar e não outra coisa?”, muitos perguntam. Talvez
tenhamos que mudar a direção da pergunta e em vez de perguntar “por que
caminhar?”, perguntar: e porque não caminhar? Saber por que se está
caminhando é fundamental para quem caminha, diz Gros (2010). Para o autor,
o caminhante sabe por que caminha. “Para avançar, partir, atingir, tornar a
partir”. (Gros, 2010, p. 57). E quem não caminha, sabe por que não o faz? Ou
é por não saber porque caminhar que não se caminha?
Para Gros (2010), o caminhante sabe por que está caminhando, mas este
saber não está relacionado às intenções ou expectativas. Quem caminha não
caminha por um mero passeio a fim de relaxar ou sentir-se livre por algum
tempo das horas exaustivas do trabalho, muito menos para encontrar-se
consigo mesmo. Ao andar, não se está preocupado em encontrar-se consigo
mesmo, com intuito de livrar-se de velhas alienações e recuperar um “autêntico
eu”. “Ao andar, escapa-se à própria ideia de identidade, à tentação de ser
alguém, ter um nome e uma história”. (Gros, 2010, p. 14).
“Ser alguém”, para Gros, pega bem em reuniões sociais e consultórios
de psicólogos, onde se exibir faz parte do teatro, isto é, “ser alguém” no sentido
de se esconder atrás de máscaras; “ser alguém” que prioriza e se preocupa com
as aparências. É um “ser” na lógica do “ter” ou do “mostrar”, não do existir. No
mundo que prioriza o “ter” bens materiais, títulos acadêmicos, currículo
reconhecido não tem lugar para o “ser” no sentido de existir e resistir. Chega
a ser “cômico” quando as pessoas se apresentam em certas confraternizações.
Após perguntarem o seu nome, a próxima pergunta é sempre relacionada ao
que você faz, com o que trabalha, qual o teu “nível” acadêmico. E, ainda é mais
surpreendente, ver certas posturas mudarem (para melhor) quando você
menciona que “faz ou tem algo (que eles consideram) importante”.
Gros (2010) cita vários líderes, poetas, filósofos que tiveram uma vida
caminhante: Nietzsche, Rimbaud, Rousseau, Thoreau, Nerval, Kant, Gandhi.
Cada um tinha sua própria razão para caminhar; alguns para elevação e

72
Caminhar como modo de vida

purificação espiritual, outros, por motivos de saúde ou para fazer passeios, para
pensar, para reencontrar, para sentir, para ser... Muitos motivos e razões que
os levaram a caminhar. No entanto, Gros (2010, p. 15), sonha com o “caminhar
como uma expressão da recusa de uma civilização podre, poluída, alienante,
desprezível”. Para o autor, essa recusa tem a ver com três etapas da liberdade
que o caminhante experimenta.
A primeira é a liberdade suspensiva, a qual refere-se a um processo de
desligamento feito num passeio ou numa simples caminhada. A liberdade
suspensiva supõe suspender as preocupações, principalmente, as referentes ao
trabalho, para pensar em outra coisa. É se desvencilhar da ilusão de carregar
consigo o indispensável, como se costuma fazer nas longas viagens em que se
carrega não apenas o peso das mochilas com “tudo que é necessário” além das
preocupações com hospedagens, com o clima, com os horários das conduções...
Para o autor, “só a caminhada é capaz de nos livrar das ilusões do
indispensável”. (Gros, 2010, p. 11). A caminhada consiste numa desconexão
provisória de tudo que nos aliena à pressa e às facilidades de comunicação, de
compras, deslocamentos, o que Gros também chama de “escapulida”, mas, que
ao retornar para a rotina, percebe-se que nada mudou, a não ser que “o ar puro
lhe fez bem”. (Gros, 2010, p. 13). Segundo Gros, a liberdade suspensiva
“permite apenas, em nossa existência, uma ‘desconexão’ provisória: escapo da
rede por alguns dias, vivencio em trilhas desertas a experiência do fora-do-
sistema”. (Gros, 2010, p. 13).
A segunda liberdade é mais agressiva e rebelde do que a suspensiva, é a
liberdade de romper. É a liberdade que rompe com o sistema e com tudo que
ele oferece. Andarilhos que rompem com a ideia de caminhar para encontrar-
se consigo mesmo, porque o “eu” já não importa mais. A liberdade recusa a
noção de identidade. Não precisa ser alguém para viver na e da natureza. A
exemplo disso, tomamos o filme Into the wild, dirigido por Sean Penn, um filme
sobre a biografia do jovem americano Christopher McCandless que na década
de 1990, ao terminar a faculdade, doa todo o seu dinheiro a uma instituição de
caridade e, sem que sua família saiba, sai de casa para viver como um andarilho.
Antes de iniciar sua caminhada, ele coloca fogo em seu carro, em sua carteira
de identidade e no restante do dinheiro que tinha na carteira. McCandless
renuncia uma vida de conforto oferecida por seus pais e rompe não apenas com
a família – a qual estava seduzida pelas exigências do sistema além de viver
sob a esfera de mentiras – mas com o materialismo da sociedade; rompe com o
passado e com o futuro. O jovem, quando na natureza, sobrevive do que ela lhe
oferece e, quando na cidade, trabalha para comer e dormir, porém, não se fixa

73
Carolina Fonseca de Oliveira

em lugar algum. Um exemplo de um caminhante que experimentou a liberdade


de romper para viver o mais próximo possível da natureza selvagem. Apesar de
admirado por muitos e incompreendido por outros, no entanto, até os dias de
hoje, a vida de McCandless é uma vida que nos convida a pensar sobre a
maneira que temos vivido e que queremos viver.
Por último, Gros (2010) apresenta uma liberdade ainda mais rara: a
liberdade do renunciante, ou seja, aquela em que “o homem pode rejeitar
repentinamente os deveres sociais, as obrigações familiares, as preocupações
econômicas e ele se faz eremita. É a etapa da ‘partida para a floresta’”. (Gros,
2010, p. 16). Assim, a partir da renúncia de máscaras sociais que determinam
papéis na sociedade, da renúncia da lógica do consumo exacerbado, das coisas
consideradas úteis, da noção de tempo passado e futuro, da identidade, o
caminhante atinge seu nível mais elevado, a etapa do mendigo errante, isto é,
quando um homem passa a ter uma vida toda itinerante numa caminhada
infinita onde o sábio renuncia a tudo. “É a mais alta liberdade: a do
desprendimento perfeito”. (Gros, 2010, p. 16).
E a gente se sente livre porque, assim que volta a lembrança dos
antigos sinais do nosso comprometimento com o inferno – nome,
idade, profissão, carreira -, tudo, sem exceção, fica irrisório,
minúsculo, fantasmagórico. (Gros, 2010, p.17).
Diferente da concepção de caminhar de Masschelein e Simons, que o
pensam como um exercício de atenção ao mundo e como uma forma de se
relacionar com a pesquisa educacional através da atenção e não da intenção,
Gros (2010) aborda a dimensão filosófica do caminhar para pensá-lo como um
modo de vida e não, propriamente, para pensá-lo em uma relação com a
pesquisa educacional ou com um modo de nos relacionarmos com o campo
educacional. Isso não significa que na concepção de caminhar de Masschelein
e Simons não haja uma dimensão filosófica, senão que ambas são abordadas de
maneiras distintas. Enquanto para Masschelein e Simons andar um caminho
não significa ter uma meta, mas apenas estar atento, para Gros, o caminhar
tem uma finalidade específica: nos ensinar a desobedecer. Para o filósofo
francês, caminhar é uma expressão da recusa de uma civilização poluída em
que o sistema nos induz à pressa, às facilidades, ao comodismo, ao consumo,
ao individualismo, às mascaras sociais. É também uma suspensão de um tempo
produtivo para se experimentar um tempo livre. No entanto, esse tempo livre
consiste em se desvencilhar das preocupações e se desconectar de tudo que o
sistema se utiliza para nos alienar. Significa “dar uma escapada” através da
caminhada. Masschelein e Simons ao defenderem a suspensão do tempo do
trabalho para o tempo livre defendem-no como um tempo livre para o estudo,

74
Caminhar como modo de vida

ou seja, para a Skholé; para os autores, o tempo livre – Skholé – não é para o lazer
ou para “se desconectar” da vida social por um tempo, como aborda Gros,
senão, para estar aberto ao mundo e dedicar-lhe atenção. “Tempo livre não é
nem tempo de lazer nem o tempo de aprendizagem, desenvolvimento ou
crescimento, mas o tempo do pensamento, estudo, exercício”. (Masschelein;
Simons, 2014, p. 160). Para Masschelein e Simons, não é preciso se colocar
fora do sistema para profaná-lo, mas é estando nele que podemos, através da
atenção, suspender o tempo e profanar o mundo. Isso também não é algo que
se faz sozinho, senão numa comunidade entre amigos que se preocupam com
as coisas do mundo: “talvez o ‘tempo livre’ faça amigos”. (Masschelein; Simons,
2014, p. 169).
No entanto, mesmo que os autores concebam o caminhar de modo
diferente, ambos nos ajudam a pensar o caminhar como uma prática
transformadora a partir da recusa da identidade e de nos colocarmos em
questão.
Masschelein e Simons (2014, p. 162) afirmam a liberdade no sentido de
que o mundo só pode ser aberto para nós a partir do momento em que
libertamos as práticas, as palavras de seu uso comum. Logo, Gros escreve
sobre a liberdade do caminhante de suspender, romper e renunciar com o sistema
capitalista. Ainda que a liberdade para ambos tenha sentidos diferentes, os dois
nos ajudam a pensar a educação no sentido em que: se queremos caminhar,
então, precisamos saber renunciar a determinados deveres sociais. Num tempo
em que a educação também se torna mercadoria para a obtenção de lucro,
aprender a renunciar, ou a suspender a lógica do consumo pode consistir em
um ato de rebeldia e de resistência.

3.2 Do lado de fora


Em Caminhar, uma filosofia, Frédéric Gros traz uma filosofia contrária à
lógica da pressa, do lucro, da fama. Para Gros (2010), estamos acostumados a
percorrer as ruas de modo totalmente prático. Andamos até o mercado, até a
estação de metrô, até a padaria e não reparamos em quase nada. Caminhamos
de cabeça baixa e registramos apenas pontos de referência. Nesse sentido, as
ruas se tornam uma rede de pequenos sinais que mantém apagado o seu
espetáculo. Por isso, ao caminhar pelas ruas da cidade sem correria, sem uma
tarefa específica, é que podemos sentir a cidade como ela se apresenta para
alguém que a vê pela primeira vez. “Como não se está atento a nada em

75
Carolina Fonseca de Oliveira

especial, tudo é oferecido à farta: as cores, os detalhes, as formas, os aspectos”.


(Gros, 2010, p. 168).
Para Gros, ao andar, temos a chance de experimentar a cidade como ela
se apresenta para nós. Livres da necessidade de “pedir tudo” é que tudo é
oferecido, tudo é entregue em abundância. Livres da expectativa de encontrar
algo é que podemos ter a surpresa dos encontros. Assim,
Seria preciso dar-se ao luxo, incomum e fácil, de passear em seu
próprio bairro, caminhando a passos inseguros, hesitantes, e tendo
tomado a decisão de fazer isso a troco de nada, com os olhos até que
ficam voltados para cima, e devagar. É então que sobrevém o
prodígio. É só de caminhar sem correria, sem se impor nenhuma
missão específica, já faz com que se sinta a cidade até certo ponto
como ela aparece para alguém que a vê pela primeira vez. (Gros,
2010, p. 168)
Nesse sentido, o caminhar pode ser considerado um “deslocar”, “um sair
do lugar”, estar na terra de outra maneira que não a habitual, experimentá-la
em sua plenitude através do caminhar. Contudo, este se deslocar não pressupõe
necessariamente um deslocar físico, pois, alguns quando não sentem a terra
em sua plenitude e a natureza como ela se apresenta, andam de um lugar para
outro sem sair do seu lugar particular. Não saem do lugar porque estão
bitolados em seus afazeres e caminham de um lugar a outro apenas para
cumprir suas obrigações. Desse modo, o caminhar também é considerado um
“pôr-se fora” do caminho.
Caminhar é pôr-se fora do caminho: ocupar uma posição marginal
com relação aos que trabalham, marginal às autoestradas de alta
velocidade, marginal aos produtores de lucro e de miséria, aos
exploradores, aos trabalhadores esforçados, posição marginal com
relação a indivíduos sérios que sempre têm coisa melhor para fazer
do que dar boa acolhida à pálida suavidade de um sol de inverno ou
ao frescor de uma brisa primaveril. (Gros, 2010, p. 98).
Pôr-se fora do caminhar indiferente e insensível à natureza, às pessoas,
a si próprio. Pôr-se fora do caminhar apressado, preocupado em chegar ao topo
da carreira profissional a fim de ter cada vez mais dinheiro para comprar, ter
e adquirir coisas da moda, coisas que o sistema capitalista diz que precisamos
para sermos felizes. Pôr-se fora do caminho habitual para vê-lo de forma
estranha e nova.
Nisto também consistia o flâneur. Segundo Labbucci (2013, p. 101),
“para o flâneur ‘existe sempre algo por ver’”. Sua meta é o novo. O termo flâneur
que pode ser traduzido como “andar a esmo”, passou a ser comum no século
XIX tendo a sua figura inextrincavelmente ligada às ruas de Paris e à poesia
de Charles Baudelaire. (Coverley, 2014, p. 138). Segundo Gros (2010), a partir
dos estudos parisienses de Walter Benjamin e de suas análises das obras de

76
Caminhar como modo de vida

Baudelaire, ele pressupõe três elementos do flâneur: a cidade, a multidão, o


capitalismo. O flâneur, “subverte a multidão, a mercadoria e a cidade, bem como
seus valores”. (Gros, 2010, p. 179). Segundo Gros, uma das razões de “estar do
lado de fora” é subverter a cidade, a multidão e o capitalismo assim como o
flâneur faz em seus passeios. O flâneur contesta a cidade tomando-a como uma
paisagem a ser explorada; contesta a necessidade de velocidade da multidão,
que acaba fazendo do outro um obstáculo em seu caminho, como também
contesta o capitalismo através de seu reinado da mercadoria.
O capitalismo vai designar esse momento em que a mercadoria
expande seu modo de ser para muito além dos produtos industriais:
até a obra de arte e as pessoas. Mercadorização do mundo: tudo se
torna objeto de consumo, tudo se vende e se compra, tudo está
ofertado no grande mercado da demanda indefinida. Reinado da
prostituição generalizada: trata-se de vender e de vender-se. (Gros,
2010, p. 179).
Nesse sentido, para Gros (2010), pôr-se fora do caminho adquire um
sentido político por ser uma forma de subverter o sistema. Enquanto a
multidão quer ir depressa e faz do outro um obstáculo no caminho, o flâneur
contesta a necessidade de velocidade ao passear apenas para olhar, se
transformando, no ambiente de seus passeios, em um explorador ou em um
detetive que desvenda os mistérios da paisagem. Enquanto o capitalismo
transforma tudo em mercadoria e expande as cidades para torná-las cada vez
mais distantes dos seus próprios habitantes, privatizando espaços públicos,
transformando as ruas em nada mais e nada menos que um lugar de transição
de um lugar para o outro (e cada vez mais) através de veículos, fazendo dos
pedestres meros apreciadores de vitrines e consumidores da moda, o flâneur
caminha na contramão desse sistema. Enquanto o turista passa pelos pontos
turísticos e consome o que as vitrines lhe oferecem, o flâneur fará um caminho
diferente. Para ele, a cidade se torna uma paisagem a ser explorada. Não é
necessário saber se orientar na cidade, mas extraviar-se nela. “A cidade é a
realização do antigo sonho humano do labirinto. A esta realidade, sem sabê-lo,
está dedicado o flâneur.” (Benjamin, 2006 apud Careri, 2013, p. 70).
Se para o flâneur, estar do lado de fora é caminhar pela cidade para
subverter o individualismo, o consumismo e a privatização dos espaços
públicos, para Masschelein e Simons “ir para fora” é caminhar atento ao
mundo, não para assumir uma perspectiva sobre ele, senão para ver o evidente.
“E o evidente não é o que simplesmente existe, mas o que ‘aparece’ quando o
olhar presta atenção no presente em vez de julgá-lo”. (Masschelein; Simons,
2014, p. 53). Por isso os autores dizem que caminhar não tem a ver com adotar
uma meta ou ter uma finalidade. Trata-se de uma pedagogia pobre, ou seja,

77
Carolina Fonseca de Oliveira

que não oferece benefícios. “Não há nada a ganhar, nenhuma lição a aprender”.
(Masschelein; Simons, 2014, p. 50). No entanto, ao mesmo tempo em que essa
pedagogia é pobre, é também, generosa, pois, “dá tempo e espaço, o tempo e o
espaço da experiência”. (Masschelein; Simons, 2014, p. 50).

3.3 Passeios infantis


Para Gros, a caminhada é uma brincadeira de criança. O autor considera
“o passeio como rito absoluto, criação de uma alma infantil; o passeio como
livre descanso, recreação do espírito; o passeio como redescoberta”. (Gros,
2010, p. 161). Segundo Gros, o adulto vê tudo do alto. Ele sabe o seu endereço
e os caminhos que o levam até o destino. O adulto passa a enxergar as
paisagens de modo habitual, automático encaixotando cada caminho a um
ponto de referência, mas a criança não. Para as crianças “os caminhos afastam,
inquietam, são possibilidades de mundos. [...] A cada passeio corresponde uma
história separada, cada uma abre um outro reino, diferentemente habitado,
assombrado”. (Gros, 2010, p. 162). Segundo Gros, o adulto costuma se
relacionar com o caminho a partir de um ponto de vista utilitário. O caminho
tem uma finalidade: levar a algum outro lugar. Seu olhar é intencional para
identificar pontos de referência que o levem mais rápido ao seu destino, ou que
evitem que ele se perca. No entanto, para as crianças os caminhos são
possibilidades (de ver o mundo).
Gros diz que caminhar tem a ver com eternidades e não com tempos
“demarcados” e apressados. Para ele, temos a tendência de inventar e impor
sobre nós mesmos obrigações, pressões e preocupações no trabalho, na vida,
nos estudos. Corremos no trabalho para amontoar economias, para
conseguirmos novas e boas oportunidades de crescer profissionalmente, para
nos “qualificarmos” mais. Corremos na vida a fim de cumprirmos obrigações
sociais, seguirmos a moda cultural... Preocupamo-nos mais em fazer e ter
coisas do que em viver, do que apenas ser, pois há sempre algo mais urgente,
mais importante e melhor para fazer. O amanhã vem carregando as tarefas de
depois de amanhã. E assim por diante. Entretanto, para Gros (2010), ao
caminhar não se faz nada, apenas se caminha. Precisa-se apenas de duas pernas
e olhos grandes. Pois, leituras, status, saberes, aparências, relacionamentos
não têm a menor serventia para as colinas, as árvores, as pedras, os rios. É
apenas o seu próprio corpo sentindo a natureza. É a redescoberta da alegria de
simplesmente existir. “Assim, a caminhada, aliviando-nos da obrigação do
fazer, arrancando-nos da obsessão por ele, permite-nos reencontrar essa

78
Caminhar como modo de vida

eternidade infantil. Quero dizer que a caminhada é uma brincadeira de


criança”. (Gros, 2010, p. 87).
Segundo Gros, não é necessário ter experiência e/ou habilidades
especiais para maravilhar-se com os fenômenos da natureza, como: o tempo, a
forma e beleza das árvores, das flores; maravilhar-se com o azul do céu, o voo
dos pássaros, o som do rio, a brisa de verão. Para o autor, convém desconfiar
daqueles que já viram de tudo, porque esses estabelecem comparações, mas a
eterna criança não. “A eterna criança é a que nunca viu nada tão belo porque
não compara”. (Gros, 2010, p. 87). É nesse sentido que aquele que se deslumbra
ao caminhar não tem mais presente, nem futuro; não tem passado, nem
projetos. “Nele está sempre a eterna criança. Ao caminhar, eu não passo de um
simples olhar”. (Gros, 2010, p. 88). Para maravilhar-se ao caminhar basta
apenas olhar ou é preciso olhar como uma criança? O que significa olhar como
uma criança?
Ingold (2015) diz que a atenção da criança é capturada por qualquer
coisinha quando está caminhando; o que o adulto considera uma distração, na
verdade, é atenção. “Para a criança a caminho da escola, a rua é um labirinto”.
(Ingold, 2015, p. 24). Segundo Ingold, assim como o copista cujos olhos ficam
na ponta dos dedos, a criança segue sempre curiosa,
[…] mas sem uma visão de comando ou vislumbre de um fim. O
desafio consiste em não sair da trilha, e para isso ela precisa se
manter alerta. [...] Mas, quando crescemos, aprendemos a deixar de
lado essas tolices de criança. O crocodilo devora o detetive, e a
disciplina engole a curiosidade. (Ingold, 2015, p. 24).
Inspirado em Benjamin, Ingold (2015) diz que para recuperar a
curiosidade da criança que foi perdida, é preciso sair da cidade, ou seja,
caminhar pelos campos, pelas matas, ser conduzido por forças ainda não
disciplinadas. “Para o adulto, nota Benjamin, é necessário algum esforço para
voltar a apreender as ruas da cidade com a mesma perspicácia de uma trilha
no meio rural”. (Ingold, 2015, p. 24). Segundo Ingold, para a maioria de nós
urbanitas, estamos tão disciplinados pela educação que as ruas não são mais
labirintos para nós. Não andamos por elas pelo que elas se revelam, senão para
transitar de um lugar para o outro.
Para Ingold (2015), a curiosidade da criança faz com que seu olhar esteja
atento para ver “aparecer coisas”, para imaginá-las, mas a imaginação não está
na representação mental, tampouco na capacidade de construir imagens.
“Imaginar é um movimento de abertura e não de fechamento; produz não fins,
mas começos. [...] Imaginar algo é aparecê-lo, assistir na sua gestação e
comparecer ao seu nascimento”. (Ingold, 2015, p. 30).

79
Carolina Fonseca de Oliveira

Tanto Ingold quanto Gros consideram o olhar do adulto um olhar


“educado”, habituado, intencional, que vê as coisas do alto, o que podemos
relacionar com o olhar de quem sobrevoa o caminho, como diz Benjamin. No
entanto, os autores também compartilham que o olhar da criança é um olhar
atento, curioso, aberto ao mundo, ao que o caminho pode mostrar, que
podemos relacionar com o olhar de quem caminha um caminho. Nesse sentido,
para pensarmos uma pesquisa educacional, segundo Masschelein e Simons,
que se propõe a estar atento e aberto ao mundo, seria preciso ter um olhar de
uma criança? Seria inverter a lógica de uma educação que quer educar uma
infância para se deixar ser educada por ela? Seria mais interessante, então,
infantilizar a educação do que educar a infância?

80
CAMINHAR COMO UMA PRÁTICA ESTÉTICA
4 CAMINHAR COMO UMA PRÁTICA ESTÉTICA

4.1 Caminhar: uma arte de ir ao encontro do Outro


Francesco Careri (2013) nos ajuda a pensar o caminhar como uma
prática estética, entendendo o ato de caminhar não apenas como uma
experiência transformadora de si, mas, também, do espaço. Para o autor, a
antiga dicotomia entre nomadismo e sedentarismo, que por muito tempo levou
arquitetos a defenderem a origem da arquitetura no sedentarismo, pode ser
repensada a partir de outra lógica: que os nômades inventaram a arquitetura,
porque caminhar é esculpir a paisagem. “Foi caminhando que o homem
começou a esculpir a paisagem que o circundava”. (Careri, 2013, p. 27).
Segundo Careri (2013), o dualismo “movimento e sedentarismo” se dá
desde o início da humanidade, bem exemplificado a partir da história bíblica
dos irmãos Caim e Abel. O escritor de Gênesis relata que Javé (Deus do
caminho) destinou Caim à agricultura (estar fixo em um lugar) e Abel ao
pastoreio (andar, caminhar a fim de apascentar as ovelhas), realizando assim
uma divisão do mundo: a um irmão a propriedade de toda a terra e a outro o
domínio de todos os seres viventes. A partir da interpretação de Careri, era
como se a Caim tivesse sido destinado o trabalho mais penoso do que a Abel,
pois,
[…] segundo as raízes etimológicas dos nomes dos dois irmãos,
Caim é identificável como o Homo faber, o homem que trabalha e que
sujeita a natureza para construir materialmente um novo universo
artificial, ao passo que Abel, realizando, no fim das contas, um
trabalho menos fatigoso e mais divertido, poderia ser considerado o
Homo ludens caro aos situacionistas, o homem que brinca e que
constrói um efêmero sistema de relações entre natureza e vida.
(Careri, 2013, p. 36).
Em vista disso, Careri diz que o diferente uso do espaço corresponde ao
diferente uso do tempo, no qual se deriva da primeira divisão do trabalho.
Enquanto Caim dedicava a maior parte do tempo arando a terra, cultivando,
semeando e colhendo, Abel, ao apascentar o gado, desfrutava de uma
quantidade maior de tempo livre, na qual poderia se dedicar à atividade
intelectual, à exploração da terra, à aventura, ao jogo. De acordo com Careri,
por causa dessa “desigualdade” de funções, e por Abel desfrutar da terra que
Caim cuidava com seu penoso trabalho, mas para apascentar as ovelhas e ainda

83
Carolina Fonseca de Oliveira

se aventurar, houve uma briga entre eles, em que, após Caim ter acusado seu
irmão de invadir suas terras, mata-o.
O livro de Gênesis relata que a briga entre os irmãos resultou de uma
revolta de Caim contra Deus por Ele ter recusado a sua oferta e aceitado a de
seu irmão25. Por causa do fratricídio, Deus amaldiçoa Caim dizendo que se ele
voltasse a arar a terra, essa seria infértil. Portanto, o que antes era apegado à
terra (Caim), haveria de ser fugitivo e errante pelo resto de sua vida. Caim
entra em pânico e diz que esse castigo era insuportável, porque andar em terras
estranhas, como um fugitivo, seria sua sentença de morte, pois qualquer que
com ele se encontrasse, o mataria. Sendo assim, Deus coloca em Caim um sinal
para que não fosse ferido de morte26. Segundo Careri, “o erro fratricida é punido
com a errância sem pátria, um eterno perder-se no país de Nod, o deserto
infinito onde antes dele Abel andara sem rumo”. (Careri, 2013, p. 36-38).
Segundo a interpretação de Careri, o sinal colocado por Deus em Caim
refere-se ao símbolo antigo do Ka: “símbolo da eterna errância, uma espécie de
espírito divino que simbolizava o movimento, a vida, a energia, e que trazia
consigo a memória das perigosas migrações paleolíticas”. (Careri, 2013, p. 60).
O Ka é um dos símbolos mais antigos da humanidade e, por ter sido
representado por diversas culturas muito distantes entre si, principalmente
porque foram encontradas figuras esculpidas muito semelhantes ao Ka nos
menires colocados ao longo das rotas da transumância da Sardenha, há uma
suposta afirmação de que se tratava de um símbolo que se deslocava junto com
as multidões errantes do paleolítico. Na cultura egípcia, o hieróglifo do Ka é
representado pela letra U, formada por dois braços levantados para cima, num
ato de receber energia divina, como também de saudação; de mostrar estar
desarmado e indo em direção ao outro de uma forma pacífica, quase que, com
uma espécie de abraço.
Retomando a narrativa de Caim, para Careri, o problema de Caim era
não saber se relacionar com outro e a resolver seus conflitos de forma pacífica.
Sendo assim, o agricultor que recebeu a punição por seu fratricídio de andar
pelas terras que seu irmão caminhara, teve que sair da sua zona de conforto
para viver a vida como um eterno errante, indo em direção ao outro
desconhecido. Teve que aprender a se encontrar com o outro; a se relacionar
com outro; a saudar o outro com as mãos levantadas, num sinal de reverência,
mas, também, de se desarmar e de abraçar. Caim teve que aprender a arte de

25
Gênesis 4: 3-5.
26
Gênesis 4: 11-15.

84
Caminhar como modo de vida

se encontrar com o outro através da errância. E isso lhe lhe causava medo,
pois, para ele, se encontrar com o desconhecido o colocaria numa zona de
perigo o que poderia ser a sua sentença de morte. “O percurso desenvolve-se
entre insídias e perigos, provocando em quem caminha um forte estado de
apreensão, nos dois significados, de sentir medo e de apreender”. (Careri, 2013,
p. 80).
Segundo Leed (apud Careri, 2013), a raiz indo-europeia da palavra
perigo (per), que muito foi interpretada como “tentar”, “pôr à prova”, “arriscar”,
também pode ser encontrada nas palavras experiência e percurso, pois, per
também pode significar “atravessar um espaço”, “ir para fora”, bem como a
palavra experiência em alemão, tem origem da palavra irfaran do alemão
antigo que significa “viajar”, “sair”, “atravessar” ou “vagar”.
Uma das palavras alemães que significam ‘experiência’, Erfahrung,
vem do alemão antigo irfaran: ‘viajar’, ‘sair’, ‘atravessar’ ou ‘vagar’.
A ideia profundamente arraigada de que a viagem é uma experiência
que põe à prova e aperfeiçoa o caráter do viajante. (Leed, 1991 apud
Careri, 2013, p. 46).
Assim, Caim ao passar do agricultor sedentário a fugitivo nômade, teve
que caminhar, de certo modo, com a “presença” de seu irmão nos caminhos que
ele passara. Careri destaca que as primeiras cidades foram construídas pelos
descendentes de Caim, tornando a relação entre sedentarismo e nomadismo
uma relação de osmose.
E é preciso sublinhar que, após a morte de Abel, será a estirpe de
Caim que construirá as primeiras cidades: Caim, agricultor forçado
à errância, dará início à vida sedentária, e portanto a outro pecado;
traz consigo tanto as origens sedentárias do agricultor como as
nômades de Abel, ambas vividas como punição e erro. (Careri, 2013,
p. 38). [...]
O nomadismo, na realidade, viveu sempre em osmose com a
sedentariedade, e a cidade atual contém no seu interior espaços
nômades (vazios) e espaços (cheios), que vivem uns ao lado dos outros
num delicado equilíbrio de recíprocos intercâmbios. Hoje a cidade
nômade vive dentro da cidade sedentária, nutre-se dos seus
resíduos, oferecendo em troca a sua própria presença, como uma
nova natureza que pode ser percorrida somente se for habitada.
(Careri, 2013, p. 30-31).
Para Careri, é imprescindível romper com o dualismo entre
sedentarismo e nomadismo como se eles estivessem totalmente separados. Ao
contrário de muitos arquitetos, Careri defende o nascimento da arquitetura a
partir dos nômades com o menir, e não a partir do sedentarismo. O menir
consiste em uma construção e transformação da paisagem. Para o autor, “o ato
de travessar o espaço nasce da necessidade natural de mover-se para encontrar
alimento e as informações necessárias para a própria sobrevivência”, bem como

85
Carolina Fonseca de Oliveira

“o caminhar é uma arte que traz em seu seio o menir, a escultura, a arquitetura
e a paisagem”. (Careri, 2013, p. 27-28).
Careri (2013) também menciona outro aspecto do caminhar como uma
prática estética baseada no movimento dadaísta da década de 1920, no qual
consistia em fazer excursões por lugares banais da cidade, como um modo de
antiarte, ou, de superação da arte, entendendo a ação de percorrer o espaço
como um ato estético, uma substituição da representação do espaço. “O dadá
elevou a tradição da flânerie a operação estética”. (Careri, 2013, p. 74). Desse
modo, tentavam alcançar a união entre vida e arte ao frequentarem os lugares
mais insossos a fim de dessacralizar a concepção de arte das pesquisas sobre a
cidade futurística que se baseava na representação. Essa pesquisa era pensada
em locais fechados, como teatros, galerias de arte, ambientes literários e quase
nunca nas ruas da cidade.
É através do dadá que se realiza a passagem do representar a cidade
do futuro ao habitar a cidade do banal. A cidade futurista era
atravessada por fluxos de energia e por voragens de massas
humanas, uma cidade que perdeu toda possibilidade de visão estática
e que é posta em ação pelas máquinas em velocidade, pelas luzes,
pelos ruídos, pelo multiplicar-se dos pontos de vista perspectivos e
pela metamorfose contínua do espaço. (Careri, 2013, p. 74)
Para o dadá, a cidade futurista em vez de aproximar as pessoas da cidade,
as afastavam. O movimento dadá transforma as cidades futuristas, que servia
de palco para a velocidade da cidade burguesa, num lugar para avistar o banal
e o ridículo. Uma forma de protesto. Deambulações urbanas em lugares
insossos que convidava artistas a não mais intervir no espaço com
representações artísticas, senão, a explorar lugares a serem descobertos sem
deixar rastos físicos. “Com a exploração do banal, o dadá dá início à aplicação
das pesquisas freudianas do inconsciente da cidade, tema que será
desenvolvido a seguir pelos surrealistas, pelos letristas e pelos situacionistas”.
(Careri, 2013, p. 77).
O conceito de inconsciente da cidade é frequentemente citado por
Careri. Os surrealistas superam o conceito de cidade banal e das excursões
urbanas para o conceito de inconsciente da cidade. Diferente da excursão
dadaísta, que tinha como palco a cidade, a deambulação surrealista tem como
palco um território “vazio”. Os surrealistas entendem que o espaço urbano
pode ser atravessado como a nossa mente. Do mesmo modo que nossa mente
pode ser revelada através do inconsciente, na cidade também pode se revelar
uma realidade não visível. (Careri, 2013, p. 82-83).
A deambulação – termo que traz consigo a própria essência de
desorientação e do abandono no inconsciente – desenvolve-se entre

86
Caminhar como modo de vida

bosques, campos, sendeiros e pequenos aglomerados rurais. [...] O


espaço apresenta-se como um sujeito ativo e pulsante, um produtor
autônomo de afetos e de relações”. (Careri, 2013, p. 78).
Careri (2013) diz que deambular em grupo pelas zonas marginais de
Paris, tornou-se uma das atividades mais praticadas pelos surrealistas que
tinham o objetivo de conhecer, de explorar, a parte inconsciente da cidade
negligenciada pelas transformações burguesas.
Anos mais tarde, início dos anos cinquenta, a Internacional Letrista que
convergirá na Internacional Situacionista em 1957, compreende o perder-se
na cidade para além de sondar o inconsciente da cidade e de subverter o sistema
capitalista, mas também, como uma atividade lúdica num contexto urbano que
tem efeitos (ou que afeta) o indivíduo. A dérive, uma atividade lúdica coletiva
que não apenas visa definir as zonas inconscientes da cidade, mas que –
apoiando-se no conceito de psicogeografia – pretende investigar os efeitos
psíquicos que o contexto urbano produz no indivíduo”. (Careri, 2013, p. 85).
Segundo Careri, os letristas queriam superar a leitura subjetiva da cidade
realizada pelos surrealistas, pois entendiam esse método como “fuga do real”.
Para os letristas não bastava apenas deambular pelas zonas marginais da
cidade, guiado pelo inconsciente, ignorando e fugindo da vida burguesa, mas,
era preciso enfrentar a realidade e construir situações para poder viver de
outra maneira, mesmo que fosse nos espaços construídos pela burguesia.
Os letristas rejeitavam a ideia de uma separação entre a vida real
alienante e aborrecida e uma vida imaginária maravilhosa: é a
própria realidade que tinha de se tornar maravilhosa. Não era mais
o tempo de celebrar o inconsciente da cidade, era preciso
experimentar modos de vida superiores através da construção de
situações na realidade cotidiana: era preciso agir, e não sonhar.
(Careri, 2013, p. 85).
A partir de um passeio sobre as diversas abordagens em relação à prática
do caminhar, Careri defende que esse exercício se constitui como uma prática
estética potente para transformar o caminhante bem como o espaço. Para o
arquiteto, caminhar é uma maneira de se relacionar com a cidade diferente de
quando se utiliza outros meios de locomoção, pois, somente através do ato de
andar é possível conhecer verdadeiramente a cidade, suas zonas marginais,
suas partes inconscientes e banais e é possível perder-se em seus espaços
vazios.
O que se quer é indicar o caminhar como instrumento estético capaz
de descrever e modificar os espaços metropolitanos que muitas
vezes apresentam uma natureza que ainda deve ser compreendida e
preenchida de significados, antes que projetada e preenchida de coisas.
Assim, o caminhar revela-se um instrumento que, precisamente pela
sua intrínseca característica de simultânea leitura e escrita do

87
Carolina Fonseca de Oliveira

espaço, se presta a escutar e interagir na variabilidade desses


espaços, a intervir no seu contínuo devir com uma ação sobre o
campo, no aqui e agora das transformações, compartilhando desde
dentro as mutações daqueles espaços que põem em crise o projeto
contemporâneo. (Careri, 2013, p. 32-33).
Careri diz também que
O caminhar, além de ser uma ação, é um sinal também, uma forma
que pode ser superposta às já existentes tanto na realidade como na
carta. Assim, o mundo torna-se um imenso território estético, uma
enorme tela sobre a folha branca, mas um intrincado desenho de
sedimentos históricos e geológicos sobre os quais simplesmente se
acrescenta um novo. Percorrendo as figuras superpostas à carta-
território, o corpo do viandante anota os eventos da viagem, as
sensações, os obstáculos, os perigos, o variar do terreno. A estrutura
física do território reflete-se sobre o corpo em movimento. (Careri,
2013, p. 133)
Para Careri é preciso deambular pelas ruas da cidade, ir a lugares poucos
frequentados, quase que “invisíveis” à sociedade; se perder na cidade para
encontrar algo que não se tinha visto ou que não se tinha visto daquela
maneira, ou seja, uma maneira de dedicar atenção. Para o arquiteto, ao
caminhar é preciso ter um espírito explorativo, porque há sempre algo para
ser descoberto, algo velado a ser visto.
O que significa caminhar com um espírito explorativo na cidade?
Estaria, Careri, afirmando um caminhar atento, que se deixa conduzir pelo
próprio caminho ou de um caminhar que conduz o caminho, que faz escolhas
para onde ir e cria expectativas ao que se deve encontrar, ou seja, que direciona
o próprio olhar? O que conduz o caminhante ao inconsciente da cidade: o olhar
intencional do caminhante ou uma autoridade do caminho como aponta
Masschelein e Simons? Esse olhar explorativo se aproxima da intenção ou da
atenção? Segundo Careri, o mundo está dado à espera de ser visto, descoberto
e explorado ou é algo inacabado, como dizem Masschelein e Simons?
Que a educação é conservadora significa que ela conserva coisas
(palavras, práticas) como coisas inacabadas, ou seja, coisas não são
diretamente relacionadas a um fim, meios sem fim para que os
alunos possam começar de novo com essas coisas, com o mundo. Elas
podem agora obter significado novamente ou obter um novo
significado. (Masschelein; Simons, 2014, p. 164).
O antropólogo Tim Ingold (2015) nos ajuda a pensar duas maneiras de
caminhar na educação que nos remetem as questões da atenção e da intenção.
A primeira maneira refere-se a um caminho que em vez de nos levar para fora
nos traz para dentro: é o caminhar do dédalo, sustentado pela ideia de educare
– verbo latim que significa criar, cultivar, inculcar, isto é, “inculcar o
conhecimento dentro das mentes dos aprendizes”. É um caminhar em que as
intenções são prioridades. O dédalo não oferece apenas um caminho, mas

88
Caminhar como modo de vida

múltiplos, deixando à escolha do caminhante a direção que se quer tomar. O


que prevalece é a subjetividade das escolhas para se chegar ao final, para
encontrar uma saída. Nesse sentido, o objetivo da educação seria a
aprendizagem, o desenvolvimento cognitivo e a capacidade de obter uma
distância crítica para então assumir uma perspectiva sobre algo.
A cada momento há uma bifurcação, uma decisão que deve ser
tomada: ir para a esquerda, para a direita, ou possivelmente seguir
em frente. O trajeto em um dédalo pode ser portanto representado
como uma sequência estocástica de movimentos pontuada por
momentos de decisão, de modo que cada movimento se baseia numa
decisão tomada previamente. (Ingold, 2015, p. 25).
Em contrapartida, há uma segunda maneira de caminhar um caminho
que nos conduz para fora: o caminhar pelo labirinto. Nesse caminho, escolher
não é uma questão. “O caminho leva, e o caminhante deve ir para onde quer
que o leve”. (Ingold, 2015, p. 25). O importante é a atenção, pois a condução
não é feita pelo caminhante, mas pelo caminho. O labirinto, diferente do
dédalo, não possui vários caminhos deixando à mercê do caminhante escolher
em qual direção seguir, por isso é considerado um caminho que nos leva para
fora – de nós mesmos, das intenções, da subjetividade, das expectativas. Nesse
sentido, o labirinto adquire o sentido de “educere, ou seja, ex (fora) + ducere
(levar). [...] Significa, literalmente, convidar o aprendiz para dar uma volta lá
fora”. (Ingold, 2015, p. 23). Nisso consiste a Skholé (fazer escola), ou seja, levar
para fora, diz Ingold ao se embasar em Jan Masschelein.
Entre navegar no dédalo e vagar no labirinto está toda a diferença
entre os dois sentidos de educação com os quais comecei este texto:
por um lado, a indução (trazer para dentro) do aprendiz às regras e
representações, ou aos “mundos intencionais” de uma cultura; por
outro, a ex-dução (levar para fora) do aprendiz no próprio mundo,
conforme ele se lhe apresenta através da experiência. (Ingold, 2015,
p. 27)
No dédalo, “o eu” assume o controle e tem o poder de escolher para onde
seguir. É preciso analisar e buscar conhecer o caminho para saber qual direção
tomar. Quanto mais se sabe, mais se pode avaliar. Logo, no labirinto, “o eu”
está posto “fora da posição”, e quem comanda os passos já não é mais uma
vontade subjetiva, senão o próprio caminho. “No labirinto, não há ponto de
chegada, não há destino final, pois, cada ponto já se encontra no caminho para
algum outro”. (Ingold, 2015, p. 28). Por isso, perder-se no labirinto ou chegar
num beco sem saída não significa sair da trilha. O desvio não é uma distração,
não é o fim da linha. Aqui, quanto menos se sabe, mais se pode estar atento aos
sinais que nos mantêm no caminho.

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Carolina Fonseca de Oliveira

Benjamin diz que “A cidade é a realização do antigo sonho humano do


labirinto”. (Benjamin, 2006 apud Careri, 2013, p. 70). Estaria Benjamin
afirmando o mesmo labirinto que Ingold? De um caminhar que consiste em se
perder e em perder o controle, a condução, mas em se deixar ser conduzido
pelo caminho a fim de conhecer a cidade (o caminho) como ela realmente é?
Caminhar em um labirinto seria o mesmo que caminhar um caminho, em vez
de sobrevoá-lo? Caminhar em uma pesquisa educacional, segundo Masschelein
e Simons, significaria caminhar em um labirinto? Como caminhar em uma
pesquisa educacional? Como se caminha em um labirinto – em que os
resultados da aprendizagem não se constituem como objetivo, destino, nem
fim – quando estamos inseridos em uma instituição (dédalo) que em vez de nos
conduzir para fora, nos traz para dentro de um campo que exige resultados,
análises, avaliações, respostas?
A partir da leitura de Masschelein, Ingold diz que um caminho (dédalo)
se refere a uma pedagogia rica que oferece um conhecimento pronto, e o outro
caminho (labirinto) refere-se a uma pedagogia pobre que abre nossas mentes
para a sabedoria da experiência. Ingold descreve duas maneiras opostas de
caminhar um caminho: uma de um lado e outra de outro. Todavia, seria
possível um “estar” na educação que caminhe ora um caminho, ora outro?
Enquanto pesquisadores da educação, não estaríamos caminhando em um
dédalo quando precisamos cumprir prazos, fazer relatórios, cumprir tarefas
burocráticas, papéis institucionais, apresentar os resultados da pesquisa e, em
outros momentos, caminhando em um labirinto quando suspendemos esse
tempo produtivo e nos colocamos fora dessa posição para dedicar atenção ao
mundo? O que seria caminhar na educação como uma prática estética? Seria
subverter essa lógica ao se relacionar com o caminho - não sobrevoando-o,
mas, andando por ele – como o flâneur e o movimento dadá? Seria relacionar-
se com o caminho não a partir de nossas impressões sobre ele, mas, a partir de
como ele se apresenta a nós? Relacionar-se com o caminho aprendendo a ir ao
encontro do outro de uma forma não beligerante?

4.2 Caminhar e parar


Segundo Careri (2013), a arte da errância segue a arte do encontro. Para
o autor, não é apenas o movimento, o caminhar, que consiste numa prática
estética, mas também, o deter-se, o parar. O caminhar não consiste apenas em
perder-se, mas, também, em “topar com o outro”.

90
Caminhar como modo de vida

No prefácio do livro Caminhar e parar de Francesco Careri (2017), o


autor diz que o livro reúne artigos escritos durante vinte anos, desde 1996 a
2016, sobre as viagens e caminhadas feitas por ele com diferentes grupos em
diferentes países e, trata-se de uma tentativa de construir uma ponte entre o
caminhar e o parar, entre o ir e o ficar, pois entende o parar como parte do
caminhar, […] “uma longa pausa em um percurso que não se pode parar”.
(Careri, 2017, p. 7).
Segundo Careri (2017), as deambulações dos surrealistas, assim como a
dérive dos situacionistas, provêm da metáfora do mar e do navegar. Os
surrealistas parisienses entendiam a cidade como um mar subconsciente, que
a nova ciência chamada psicogeografia poderia ter interpretado como a parte
obscura da mente humana. Logo, os situacionistas compreendiam a cidade
como um misto entre o racional e o irracional, ao mesmo tempo, que era um
território para perder-se, não, necessariamente, precisaria ser pelo
inconsciente, senão, um perder-se conscientemente.
A deriva, com efeito, é um termo duplo: uma palavra que carrega
consigo a ideia surrealista do acaso e do navegar ao sabor das
correntezas, como um veleiro que se move sem vento e sem mapa, e
que vai – portanto – “à deriva”. Porém, é também, o nome daquele
elemento náutico que se encontra embaixo da quilha do barco e que
permite navegar contra o vento, aquela protuberância submarina
que é mais profunda, e quanto menos o casco se move
transversalmente à quilha, menos perde tempo e espaço para chegar
com determinação à meta. (Careri, 2017, p. 31-32).
Segundo Careri, […] “para quem navega, o andar é tão importante
quanto o parar”. (Careri, 2017, p. 32). Do mesmo modo que o navegante
levanta a âncora para zarpar, ao levá-la consigo, também a utiliza para parar e
conhecer outros territórios de perto, conhecer outras pessoas. “Navegar,
caminhar, perder-se carregam consigo o tema do encontro com o Outro, levam
a ser estrangeiro e a encontrar outros estrangeiros – é este que talvez me
pareça ser hoje – o aspecto mais atual da errância”. (Careri, 2017, p. 33). A arte
de navegar exige aprender a lidar com os perigos do mar, com se aproximar
da costa sem dar com os baixios, como se comunicar com outros navegantes e,
principalmente, como se relacionar com o outro quando se chega num
território, para não ser visto como um invasor, mas como um hóspede bem-
vindo.
Careri retoma a narrativa de Caim e Abel para abordar a arte de ir ao
encontro de alguém. Após Caim ter matado seu irmão Abel, Deus o pune
fazendo-o andar pelas terras de Node. O que antes era agricultor, fixo em um
lugar, agora passa a ser errante em territórios desconhecidos, tendo que ir ao

91
Carolina Fonseca de Oliveira

encontro de outros. Segundo Careri (2017), a marca que Deus imprime em


Caim para não ser morto pelos estrangeiros é o sinal do Ka, um símbolo antigo
da eterna errância que acompanhava os errantes do paleolítico. Nos hieróglifos
egípcios o Ka é representado pela letra U em forma de dois braços erguidos
com as mãos abertas em sinal de receber energia divina, bem como de
demonstrar estar desarmado e ir ao encontro do outro de forma pacífica.
Portanto, Caim que não soube resolver o conflito com seu irmão de forma
pacífica, terá agora que andar ao encontro do outro fazendo um sinal não
beligerante para que não seja morto. Teve que aprender a ir ao encontro de
outros de maneira pacífica. Para Careri, o fratricídio surge de uma
incapacidade de se relacionar com o Outro.
Deus ensina a Caim a saudar na errância; ensina-lhe um
comportamento para com o estrangeiro, um gesto diante do Outro,
uma atitude pacífica e, ao mesmo tempo, uma chave para passar de
território a território, para continuar a navegar no vasto mar dos
desertos, enfrentando os perigos e os conflitos que encontrará.
(Careri, 2017, p. 36).
Para Careri (2017), somente através da arte do encontro de alguém é
que podemos produzir conhecimento através das trocas e, juntos, podemos
imaginar uma outra maneira de habitar nosso mundo. Segundo Careri, Deus
ensina uma metodologia para Caim: o cumprimento não beligerante. Para o
autor, “para encontrar o Outro é preciso inventar-se uma metodologia, ou
melhor, é preciso saber comportar-se de uma certa maneira.” (Careri, 2017, p.
118). Careri diz que encontrar o Outro é um bom motivo para fazer uma parada
na caminhada.
A arte de ir ao encontro do outro, abordada por Careri através de uma
outra dimensão do deslocamento, a navegação, me fazem recordar das minhas
viagens/passeios marítimos na minha cidade natal à beira mar, localizada no
interior do Estado do Rio de Janeiro: Paraty. Passei a minha infância andando
de barco pelas ilhas de Paraty. É assim que nós, caiçaras, falamos: andar de
barco, ou, sair de barco. Por não entender de navegação, duas coisas me
chamaram atenção das últimas vezes que andei de barco. A primeira, é a
maneira como os marinheiros se comunicam sem precisar dizer uma palavra,
e a segunda, como sabem se movimentar num infinito mar sem trilhas
demarcadas.
Em uma conversa com meu amigo Juliano27, marinheiro, com quem faço
meus passeios de barco, perguntei como ele e os outros marinheiros sabiam se
localizar e em qual direção seguir, se não eram guiados por uma bússola ou
27
O nome do Juliano foi mantido por autorização do mesmo.

92
Caminhar como modo de vida

mapa? Juliano me disse que as navegações pela região costeira de Paraty são
feitas através da navegação por referência; o que ele chama de “navegação por
visibilidade”. Segundo Juliano, apesar da Marinha do Brasil oferecer o curso
de navegação por carta náutica, esse método não é utilizado pelos marinheiros
caiçaras de Paraty, pois a navegação pela região costeira é feita pelo re-
conhecimento do lugar, das ilhas, é pelo que veem. Ou seja, Juliano, assim
como os outros marinheiros, navegam pela costeira porque a conhecem não
apenas por meio de mapas, mas, principalmente, por andar por aquelas águas.
Mas, Juliano também me relata um acontecimento inusitado nesse verão de
2018, em que o tempo fechou impedindo a visibilidade dos marinheiros. Com
muita chuva, vento e nebulosidade, alguns marinheiros saíram da rota e só
puderam retornar a ela depois que a chuva passou.
Juliano: - Esses dias aconteceu uma situação inusitada que fechou o
tempo, começou a chover muito e não dava pra ver nada na frente. A
visibilidade estava no máximo cinco metros e não dava pra ver ilha
nenhuma. Aí, um monte de gente se perdeu. Se tivesse uma bússola aqui,
não ia acontecer isso. Não aconteceu nada com o pessoal porque a chuva
parou em 15 minutos, mas aí, cada barco viu que estava fora do rumo, só
que eu não errei o rumo nesse dia porque eu vi que tava um ventinho e eu
fui acompanhando o vento. Sempre que o vento tivesse do meu lado – no
caso, tava no meu lado esquerdo do barco, que a gente não chama de lado
esquerdo, mas de bombordo – enquanto o vento estivesse no meu bombordo
ali, essa era a minha referência, eu sabia que estava no rumo certo. Se o
vento começasse a cair muito de frente ou muito pra trás ali, eu saberia que
tinha mudado de rumo.28
Nesse sentido, podemos dizer que mesmo quando se conhece o caminho
é possível se perder nele. E, para navegar – pelo menos pela região costeira de
Paraty – não basta conhecer a região apenas por mapas (teoricamente), é
preciso navegar em suas águas, andar por elas, aprender a ser guiado pelo que
se vê, correr os riscos e estar exposto aos imprevistos que fazem parte do
navegar, como relatou Juliano. Navegar, também, é o que permite ir ao
encontro do Outro, o que para Careri, é o aspecto mais atual da errância.
Em outro momento, perguntei ao Juliano como que os marinheiros
sabiam a direção que deveriam seguir quando viessem outras embarcações em
sua direção? Juliano me respondeu que há um código de ultrapassagem
marítima que os marinheiros precisam saber para navegar, apresentados no
Ripeam29, um regulamento disponibilizado pela Marinha do Brasil que diz que
a preferência é sempre de quem é avistado pelo boreste.
Juliano: - Você tá navegando, aí vem uma embarcação do seu lado direito,
aí é mais ou menos igual ao carro, tá vindo uma navegação do seu lado

28
ANEXO B, p. 133.
29
Regulamento Internacional para evitar abalroamento no mar.

93
Carolina Fonseca de Oliveira

direito e você tá avistando ela pelo seu boreste, então, a preferência é dela.
Você tem que passar por trás dela, nunca pela frente. Você nunca pode
cruzar na frente dela que se bater você vai estar errado. Só que mesmo
quem no mar tem preferência, sempre tem que ficar atento. Nunca pode
assim, achar que as preferências é sempre dele, porque aí existem as
exceções, pois a embarcação pode estar desgovernada, pode ter acontecido a
mesma coisa com o marinheiro, então sempre predomina o bom senso.30
Juliano ressalta que se a preferência é de quem está vindo pelo boreste,
a embarcação que está avistando-a nunca deve passar na sua frente ou cruzar
sua rota, mas passar por trás. Contudo, mesmo quando se tem a preferência é
preciso estar atento e não se achar o “dono do direito” de passagem, mas, estar
preparado para os imprevistos para se for preciso, abrir “mão da
ultrapassagem”. Para Juliano, o que prevalece é o “bom senso”; o que
poderíamos dizer, que diz respeito há uma ética de quem navega. Não basta
estar atento apenas ao caminho da sua embarcação, mas estar atento ao outro
também.
A partir do que nos traz Careri, sobre a arte de caminhar, que também
é uma arte de saber ir ao encontro do outro de uma forma não beligerante, de
encontrar-se com o outro, de seguir em frente, mas também, de parar, e a partir
do que o marinheiro Juliano relata – que não basta conhecer as regras de
navegação, é preciso estar sempre atento ao que está ao nosso redor e não se
achar o dono da vez – podemos pensar que fazer uma pesquisa educacional
consiste muito mais nos encontros que pode acontecer ao longo do caminho
do que chegar em um destino final; significa se perder, parar, e, quem sabe, até
abrir caminho como fazem os marinheiros em Paraty; deixar o outro passar,
mesmo que para isso você precise “ficar para trás”, ou seja, “doar a vez” em vez
de monopolizá-la.

30
ANEXO B, p. 133-134.

94
CAMINHAR É REVOLUCIONÁRIO
5 CAMINHAR É REVOLUCIONÁRIO

5.1 Xanháratiicha
É possível caminhar e, necessariamente, não sair do lugar? É possível
caminhar mesmo estando parado fisicamente? O que é um caminhante? O que
é preciso para ser caminhante? O que é preciso para caminhar junto? É possível
um caminhar sozinho na pesquisa educacional e na prática educativa? É
possível caminhar junto um mesmo caminho, mesmo quando se pensa
diferente? Por que caminhar junto?
O povo Purépecha, uma das etnias indígenas de Chiapas/México, conta
que há muitas histórias sobre os primeiros deuses, os que criaram o mundo.
Uma delas é sobre os deuses que criaram o mundo caminhando e, conforme
andavam, faziam perguntas que dessem conta de descobrir os mistérios do
mundo. Por isso, os homens e mulheres verdadeiros para caminhar, precisam
caminhar perguntando.
O documentário Caminantes31 (2001) mostra os preparativos da
comunidade indígena zapatista, da etnia Purépecha, para a recepção do
Subcomandante Insurgente Marcos e do EZLN32, que realizavam uma
caminhada organizada em fevereiro de 2001, até a capital do México, para
exigir o cumprimento de um projeto de lei que reconhecesse os direitos e a
cultura dos povos indígenas mexicanos.
Ao longo do documentário, representantes da comunidade são
entrevistados, inclusive o Subcomandante Insurgente Marcos, contando o que
significa fazer parte do movimento zapatista e sobre o descaso que sofrem por
parte do governo Mexicano. Por falta de direitos à educação, à saúde e ao
trabalho para os indígenas, os povos sofrem com a pobreza e com todas as
consequências que ela acarreta, como, por exemplo, a saída de muitos pais que
deixam suas famílias para atravessar a fronteira com os Estados Unidos de
forma ilegal e conseguirem melhores condições de vida.
Nesse sentido, o movimento zapatista, mais do que se dizer um
movimento anticapitalista e de esquerda, se constitui num movimento de luta

31
Caminantes. Documental del Subcomandante Insurgente Marcos, 2001. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=j-BcpRIOJXM&t=55s>. Acessado em: 30 de jan de
2018.
32
Exército Zapatista de Libertação Nacional – México/Chiapas.

97
Carolina Fonseca de Oliveira

pelo reconhecimento dos direitos e emancipação dos povos indígenas de


Chiapas.
Um dos representantes do povo Purépecha conta que, anteriormente,
algumas comunidades brigavam entre si e não andavam junto com o
movimento zapatista, mas, agora, estavam caminhando junto e seguiriam
caminhando enquanto tivessem vida.
Porque caminhar não termina aí e não vai terminar aqui, senão que
vamos ter que seguir de mãos com outros irmãos de outros povos
indígenas. E vamos compartilhar com eles tudo o que vai surgir
deste... dado o esforço desta longa caminhada. (transcrição
traduzida do documentário Caminantes, 2001).
Para o Subcomandante Marcos, os princípios do movimento zapatista é
“aprender a escutar” o outro, “mandar obedecendo” e “caminhar perguntando”.
O que tais princípios podem significar?
Escutando é como os zapatistas se organizam para buscar novos
interlocutores e repensam seus pensamentos e suas práticas.
Mandar obedecendo significa que quem apenas manda, não ouve, só fala.
Mandar obedecendo não é apenas falar, mas, é também, ouvir e pensar com o
coletivo.
Caminhar perguntando é não parar. Não desistir. É seguir em luta e
resistência. Não se calar.
Assim, como para os zapatistas o princípio de ouvir o outro tem a ver
com pensar em/com (a) comunidade, o princípio de caminhar também adquire
esse sentido, além de ser uma forma de resistência e de luta. De seguir em
frente e não parar.
[...] Caminando es la única forma que el hombre tiene de avanzar,
de progresar, de luchar por sus derechos. Y es así, caminando, como
unos pueblos deben unir sus fuerzas con la de otros pueblos
indígenas para así poder resistir el sistema y encontrar la vía
adecuada para lograr los derechos que todo el mundo se merece.
Constantemente caminamos. En nuestras casas, en el trabajo, en las
calles. Todo con un único fin. Conseguir algo que queremos.
Palabras del Subcomandante "Marcos" del EZLN (Ejército
Zapatista de Liberación Nacional).33
No capítulo anterior, escrevemos sobre o parar como parte do caminhar,
pois para Careri, o parar é fundamental para encontrar-se com o outro. No
entanto, não podemos dizer que ambos se opõem porque o sentido de parar
para cada um é diferente. Careri concebe o parar como uma oportunidade de

33
Disponível em: <http://www.purepecha.mx/threads/3821-Caminantes-(EZLN)-
Cr%C3%B3nica-de-la-lucha-P-urh%C3%A9pecha-desde-Nurio-Michoacan>. Acessado em: 23
de jan de 2018.

98
Caminhar como modo de vida

encontrar com o outro, logo, os zapatistas parecem conceber o parar como


acomodação, ou seja, parar, teria o sentido de deixar de lutar.
Para os zapatistas, se for preciso, caminha-se ao passo mais lento para
todos poderem seguir juntos. Para além de pensar um caminhar que se
encontra com o outro, os zapatistas o pensam como um caminhar que se faz
com o outro, mesmo que para isso, seja preciso um encontro anterior. Na lógica
da competição em que temos vivido, onde o “melhor” é quem chega primeiro,
quem corre mais (quanto mais novo se tornar doutor e concursado; quanto
mais novo e mais extenso o currículo Lattes, mais artigos publicados em
revistas qualificadas), quem consegue a primeira vaga ou única vaga de um
emprego, de um concurso, quem consegue a melhor nota, quem tem o melhor
desempenho, o melhor salário, as melhores férias... Pensar em outra lógica em
que não caiba mais dizer “você segue seu passo a seu ritmo, e eu ao meu”, senão,
“vamos encontrar uma maneira, um ritmo, um passo em que possamos
caminhar juntos”, pode nos causar bastante estranheza, porque isso implica
certa renúncia. Se um quer ir mais à frente, mas percebe que precisa
desacelerar para que outros possam seguir caminhando e caminhando junto,
então, será preciso abrir mão de uma vontade particular para pensar nos
outros. E se outro quer ir mais devagar, mas percebe que precisa ir um pouco
mais rápido para seguir junto aos demais, então, esse também terá de abrir
mão de sua vontade individual para seguir junto com os outros. E, será que
nessa lógica do caminhar junto, a qual falam os zapatistas, teria lugar ou
haveria a possibilidade para “individualidades”, “particularidades”? Ou a lógica
seguiria outro caminho: sempre pensar em coletivo?
Para Labbucci (2013, p. 21), é possível ser um caminhante solitário,
porém, nunca isolado, pois o isolamento nada tem a ver com o movimento.
Mesmo quem decide caminhar sozinho, nunca está isolado, pois não está
confinado em nenhum lugar, senão exposto a uma paisagem e aos atritos que
podem surgir ao longo do caminho. Labbucci, ao citar Jacques Lanzmann e
Bruce Chatwin que preferiam caminhar sozinhos a acompanhados, diz que
Chatwin dizia que não havia nada mais irritante do que percorrer um roteiro
com alguém que não conseguisse acompanhar o seu ritmo. Essa visão parece
ser bem egoísta e não se aproxima da concepção de caminhar junto, a passos
lentos para que todos possam seguir, como pensam os zapatistas. Mas será que
todo caminhar solitário é necessariamente egoísta? O que faz um caminhar ser
egoísta? O que faz um caminhar ser igualitário? Como inventar um caminhar
coletivo em uma sociedade estruturada na desigualdade?

99
Carolina Fonseca de Oliveira

Vivemos um contexto histórico no Brasil de muitas tensões políticas.


Grande parte da população parece ter se dividido em dois extemos polos: os
que são a favor da democracia, da justiça e da igualdade e os que são a favor da
ditadura militar, das leis da meritocracia que regem o sistema capitalista e da
desigualdade social. Vemos uma onda de haters dominarem as redes sociais
com ataques discriminatórios, preconceituosos, disseminando ódio às minorias.
Há um deputado Federal no Brasil da extrema-direita, Jair Messias
Bolsonaro, pré-candidato à presidência da República, que levanta um discurso
racista, sexista, machista, homofóbico, que tem conquistado milhares de
seguidores os quais têm disseminado discursos de ódio com todo tipo de
preconceito e discriminação, não apenas nas redes sociais, mas em qualquer
espaço, seja público ou privado, em que estejam. Trata-se de um grupo que
tem “caminhado” junto, no entanto, esse “coletivo” defende interesses
privados, excludentes, utilitaristas. Nesse sentido, podemos considerar que
nem todo caminhar coletivo seja um caminhar baseado na igualdade e
politicamente interessante. Mas, há o caminhar que se faz a partir de um
caminhar junto, como os zapatistas, que lutam pelos direitos dos povos
indígenas e por um mundo em que seja possível muitos mundos; em que haja
espaço para o diálogo e, principalmente, para aprender a escutar e a caminhar
junto. Podemos dizer que, os zapatistas ao caminharem juntos, carregando-se
uns aos outros nos ombros, nos ensinam uma maneira diferente de caminhar
com o outro através de uma política da igualdade.
É possível caminhar junto e ao mesmo tempo estar sozinho? É possível
estar sozinho e ao mesmo tempo caminhar junto? O que nos interessa dizer
aqui não é dizer que caminhar junto é melhor do que caminhar sozinho, ou,
vice-versa, senão, que há diferentes formas de se relacionar com o caminho,
seja em coletivo ou solitário. Também, não se trata de defender a ideia de um
caminhar coletivo em que seja possível criar um mundo que caiba todos os
mundos, pois, como é possível um mundo que preza a desigualdade, exclusão
e opressão caber dentro de um mundo que preza a igualdade e a liberdade?
Senão, assim como os zapatistas, defender que esse caminhar coletivo consiste
em encontrar outros com quem se possa dialogar e passar a caminhar junto.
E quanto a nós, estamos dispostos a caminhar junto? É possível
caminhar junto, um mesmo caminho, mesmo quando se pensa diferente? Por
que caminhar junto? O que é preciso para caminhar junto?
[…] pero el Viejo Antonio me explicó que los indígenas caminan
siempre como encorvados, aunque no traigan cargando nada,
porque llevan sobre los hombros el bien del otro.

100
Caminhar como modo de vida

Pregunté cómo mero era eso, y el Viejo Antonio me contó que los
dioses primeros, los que nacieron el mundo, hicieron a los hombres
y mujeres de maíz de modo que siempre se caminaran en colectivo.
Y me contó que caminar en colectivo quiere decir pensar también
en el otro, en el compañero.
-Por eso los indígenas caminan encorvados- dijo el Viejo Antonio-,
porque cargan sobre los hombros su corazón y el corazón de todos.
Yo pensé entonces que para ese peso no bastaban dos hombros.
Pasó el tiempo y, con él, pasó lo que pasó. Nos preparamos para
combatir y nuestra primera derrota fue frente a estos indígenas.
Ellos y nosotros caminábamos encorvados, pero nosotros por el
peso de la soberbia, y ellos porque también nos cargaban a nosotros
(aunque nosotros ni en cuenta). Entonces nos hicimos ellos, y ellos
se hicieron nosotros.
Empezamos a caminar juntos, encorvados pero sabiendo todos que
no bastaban dos hombros para ese peso. Así que nos alzamos en
armas un día primero de enero del año de 1994... para buscar otro
hombro que nos ayudara a caminar, es decir, a ser. (El tercer
Hombro. Los otros cuentos – Relatos del Subcomandante
Insurgente Marcos volumen 2).34
Na história El tercer hombro, o velho Antônio conta que os primeiros
deuses, os que criaram o mundo, fizeram os homens e as mulheres de maíz35
de modo que sempre caminhassem em coletivo. Caminhar em coletivo quer
dizer pensar também no outro, no companheiro. Por essa razão, os indígenas
caminham encurvados porque carregam sobre os ombros o seu coração e o
coração de todos.
A história segue contando que para carregar esse peso da luta pela
aprovação do projeto de lei que assegura os direitos e a cultura dos povos
indígenas não bastavam dois ombros, pois mesmo com os zapatistas e os
indígenas mexicanos caminhando juntos, encurvados, um carregando o outro,
não foi suficiente para a autonomia desses povos e para uma sociedade mais
justa, democrática e livre. Assim, o movimento indigenista zapatista busca um
terceiro ombro (ou, se podemos dizer, terceiros ombros) para ajudá-los a
caminhar, a dizer, a ser.
O dicionário online de Português aponta que um dos significados da
palavra “encurvar” em seu sentido figurado é “humilhar”. Se virmos alguém
andar encurvado, que não seja por alguma má formação na coluna, julgamos
no senso comum que aquela pessoa tem uma autoestima baixa. Como se ela
estivesse se humilhando ou se sentindo humilhada para andar dessa maneira.
Sempre com um sentido negativo do termo. Se encurvar para o outro, às vezes,
adquire o sentido de estar se humilhando. Então, pensar num povo, como os
zapatistas, que caminham em coletivo e encurvados, carregando-se uns aos

34
Disponível em: <www.redchiapas.org>. Acessado em: 24 de jan de 2018.
35
Os homens e mulheres de maíz são os indígenas cultivadores de milho (maíz).

101
Carolina Fonseca de Oliveira

outros nos ombros, parece escapar a toda a nossa capacidade de compreensão.


Que povo se dispõe a esse tipo de coisa?
Num mundo em que, muitas vezes, não se quer nem mesmo carregar a
si próprio, então, quem dirá carregar os outros? Mas, se encurvar para o outro
e carregá-lo nos ombros não parece ser tão difícil se pensarmos numa relação
de igualdade entre todos. Se todos são iguais (ou seja, mesmo em suas
diferenças todos têm igual valor), não há como subjugar o outro inferior a você
mesmo, sendo assim, não tem sentido se sentir “inferior” quando se está
encurvado e quando se tem que carregar o outro nos ombros, pois ao mesmo
tempo em que se carrega, também se é carregado.
Essas questões me remetem a algumas cenas que tenho visto quando
viajo para ministrar cursos de curta duração para professores/as da rede em
alguns estados do Brasil. Os/as professores/as reivindicam sobre a falta de
apoio dos representantes/funcionários da secretaria regional de educação
(CRE, GRE, URE, USE) para melhores condições de trabalho nas escolas,
pois, na maioria, falta material pedagógico e infraestrutura para trabalhar com
os/as alunos/as. Logo, os funcionários da regional dizem não ter muito o que
fazer porque dependem dos representantes da Secretaria de Educação do
Estado (Seduc). E, os funcionários da Seduc, por sua vez, também dizem não
ter muito o que fazer por falta de verba e apoio do Governo do Estado. Um vai
passando a responsabilidade para o outro. O que geralmente acontece são os
funcionários da Seduc e das Regionais, que também são
professores/professoras, porém, parecem não se identificar com a classe, se
voltarem contra os/as professores/as que estão em sala de aula, exigindo e
cobrando deles/as sem ao menos dar condições para tal exigência. Assim, uma
classe que deveria se unir para caminhar junto e lutar por uma educação de
qualidade para todos, acaba disputando e guerreando uns contra os outros,
fortalecendo ainda mais a exploração e o sucateamento do ensino público.
Precisamos aprender com os zapatistas a escutar o outro e, em vez de oprimir
uns aos outros, aprender a caminhar juntos, encurvados, carregando uns aos
outros nos ombros. E, em vez de nos colocarmos uns contra os outros, de nos
eximirmos de nossa responsabilidade tirando o peso dos nossos ombros e
transferindo para os ombros dos outros, deveríamos nos unir e caminhar
juntos, carregando uns aos outros nos ombros e lutando juntos por uma
sociedade mais justa e igualitária, como fazem os zapatistas.
A ideia de se encurvar nos leva à palavra humildade. É preciso ter
humildade para andar encurvado e, principalmente, se esse “se encurvar” for
para carregar o peso de outros nos ombros.

102
Caminhar como modo de vida

Adriano Labbucci (2013) diz que para caminhar é preciso ser humilde.
“A humildade é a alma do caminhar”. (Labbucci, 2013, p. 61). Para o autor,
“quem é humilde caminha, com Deus ou sem Deus; quem é soberbo não
caminha, rasteja”. (Labbucci, 2013, p. 60). Labbucci afirma que o caminhar tem
a ver com humildade e igualdade. A palavra humilitas tem uma relação direta
com a palavra húmus (terra). Para Labbucci, é através dos pés que percorrem a
húmus que adquirimos a humilitas. “É através dos pés que nos fazemos
humildes”. (Labbucci, 2013, p. 58).
Para Labbucci, ser humilde tem a ver com renunciar. Renunciar o que é
supérfluo para seguir caminhando levemente. O contrário do que o mercado
nos impõe: em vez de renunciar o supérfluo, devemos adquirir, consumir cada
vez mais.
A lógica competitiva do mercado tem alcançado inclusive espaços
públicos, como as Universidades Federais e Estaduais, as quais deveriam
valorizar os princípios de igualdade e humildade, mas não é o que geralmente
acontece, pois acaba muitas vezes, seguindo a lógica produtivista,
individualista e competitiva do mercado. A lógica do mercado é a lógica da
desigualdade.
Labbucci (2013) diz que no sistema capitalista o importante é “ter” cada
vez mais coisas. É consumir cada vez mais com a falsa promessa de que a
felicidade está intrinsecamente relacionada ao consumo. Nessa lógica,
perpetua a desigualdade. Mas o autor pergunta: “O que resta de uma
democracia baseada no consumo e na desigualdade?”. (Labbucci, 2013, p. 61).
Para o autor, o primeiro ídolo a ser combatido quando se caminha é a
autossuficiência orgulhosa, a soberba, pois elas são incompatíveis com a
igualdade.
Por isso, o caminhar e a igualdade andam juntos: no excesso e na
soberba não há igualdade, com excesso e soberba não se caminha. E
é sempre por isso que quem caminha adquire humildade, seja por
necessidade, seja por virtude própria, aprende a não se considerar
autossuficiente, a ver os outros como semelhantes, dos quais, na
imprevisibilidade do caminho, se pode precisar. (Labbucci, 2013, p.
58).
Para Labbucci, quem caminha aprende a não se considerar superior aos
outros, pois nunca se sabe o que e de quem se pode precisar. Mas isso não
significa se tratar de uma relação utilitarista, que é justamente a sua crítica.
Labbucci (2013) afirma que o pensamento ocidental se caracteriza por ser
calculista, utilitarista e instrumental, isto é, busca medir e calcular tudo,
tentando obter sempre resultados a fim de tornar as coisas mais eficientes. Por
isso, caminhar se faz necessário, pois o “caminhar supera essa relação

103
Carolina Fonseca de Oliveira

instrumental, essa cisão entre meios e fins, porque não se mede pela eficiência
e pela eficácia.”. (Labbucci, 2013, p. 28).
Segundo Labbucci, um dos maiores problemas da política é que em vez
de perguntar sobre os princípios que se deseja representar, ou seja, o que seria
mais justo, acaba perguntando o que convém e o que não convém, ou, como
deve se comportar para obter determinada vantagem. Relação que flutua entre
o individual e coletivo por um viés utilitarista.
Para o autor, quem caminha deve sempre se perguntar “o porquê” e “o
como” das coisas que nos circundam e ter como sua maior ambição “respeitar
e valorizar os lugares que atravessa para que outros possam fazê-lo com o
mesmo prazer”. (Labbucci, 2013, p. 34). Nisto se baseia a igualdade. Pensar
nos outros. Ser humilde.
A concepção de Labbucci sobre os caminhantes parece se aproximar da
concepção dos zapatistas. Para Labbucci, o caminhante precisa ser humilde, se
perguntar sempre “o porquê” e “o como” das coisas, resistir ao sistema
capitalista, deixar o supérfluo e lutar pela igualdade e liberdade. Logo, para os
zapatistas, o caminhante não deve nunca parar. Precisa caminhar sempre
perguntando. Precisa aprender a escutar e a andar junto, encurvado,
carregando o seu coração e o coração dos outros. Para ambos, caminhar é uma
maneira de resistir. E resistir é existir. Na língua do povo Purépecha, os
caminhantes são chamados de xanháratiicha36; vem da raiz xanhára. Xanhára é
caminhar e xanháratiicha caminhantes. Ponhamo-nos a caminho, xanháratiicha!

5.2 Caminhar é resistir


Labbucci (2013, p.9) defende uma tese: “que não existe nada mais
subversivo, mais alternativo em relação ao modo de pensar e de agir, hoje
dominante, que o caminhar”. Para o autor, caminhar consiste numa
modalidade de pensamento. Num tempo em que são dadas respostas sem antes
se fazerem perguntas, caminhar consiste num exercício precioso, pois, a partir
dele, somos provocados e levados a fazermos perguntas.
De acordo com Labbucci, caminhar é mais do que andar com um pé na
frente do outro, pois é um exercício que propicia o pensamento e o faz estar
em movimento. É uma forma de resistência. Ao parafrasear María Zambrano,
diz que existir é resistir. Resistir é opor-se. Mas, resistir a que, a quem?

36
Caminantes. Documental del Subcomandante Insurgente Marcos, 2001. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=j-BcpRIOJXM&t=55s>. Acessado em: 30 de jan de
2018.

104
Caminhar como modo de vida

Ao contrário de muitas concepções sobre o caminhar, que têm sido,


muitas vezes, aclamadas, principalmente, pela indústria cinematográfica, sobre
a vida de pessoas que deixaram suas famílias, carreira, tudo, para lançarem-se
no mundo como andarilhos, não é esse tipo de caminhar como resistência que
Labbucci defende. Baseado em Hesse, Labbucci diz que o caminho não é uma
fuga para algum lugar exótico com o objetivo de “se livrar” do sistema, mas é
um caminhar para dentro, que busca encontrar forças para resistir a esse tempo
da técnica e do dinheiro.
Labbucci (2013) diz que o mercado valoriza o consumo, a
competitividade e a desigualdade. No entanto, para caminhar, é preciso resistir
a esse sistema. Pois, para caminhar, é preciso “aprender a soltar” o supérfluo.
É preciso reaprender outras maneiras de se relacionar com o outro e com o
mundo que não seja a partir de uma relação utilitarista, tecnicista e consumista.
Labbucci também defende que é preciso resistir ao tempo apressado.
“Não se caminha para chegar depressa, caminha-se para que as coisas nos
alcancem no tempo propício, caminha-se para ficar com os sentidos despertos
e para fazer o ar circular pela mente e pela alma”. (Labbucci, 2013, p. 42). Na
lógica do mercado, “ser rápido” consiste quase um dogma religioso. É preciso
“ser rápido” para produzir mais, consumir mais, competir mais. Entretanto,
para Labbucci, o caminhar “é a única experiência capaz de abarcar a dimensão
do tempo em todas as suas implicações e facetas”. (Labbucci, 2013, p. 40). Pois,
resistir ao tempo apressado não quer dizer excluir a rapidez.
O autor apresenta dois aspectos do tempo que podem ser contemplados
no caminhar: o khrónos (tempo cronológico) e o kairós (o tempo certo e
oportuno para fazer as coisas). Para Labbucci, “caminhar é dar significado e
juntar khrónos e kairós, deixando as coisas irem por esse caminho para que
tomem o rumo certo”. (Labbucci, 2013, p. 40).
Nossa vida é feita de velocidade e lentidão. Para Labbucci, não interessa
substituir um valor pelo outro, mas, o contrário: reconhecer e valorizar a
mistura de lentidão e rapidez que compõem nossa vida.
Com efeito, não se trata de substituir um valor absoluto e a ideologia
da velocidade pela sua oposta, a da lentidão, mas de reconhecer e
dar valor ao amálgama, à mistura de rapidez e lentidão de que é feita
nossa vida. [...]Feliz união em que a rapidez e a lentidão não se
excluem, tocam-se, uma inclinando-se em direção à outra, e ambas
nos devolvendo a verdade da nossa vida. (Labbucci, 2013, p. 46)
Para Labbucci, o novo símbolo de status desse tempo é a pressa, e não a
velocidade. As pessoas consideradas importantes são aquelas apressadas,
multitarefas, que fazem muitas coisas ao mesmo tempo para não ter tempo de

105
Carolina Fonseca de Oliveira

não fazer nada. Quantas pessoas se orgulham de sair de uma reunião atrás da
outra e de dizer que mal tem tempo para comer ou dormir por causa de tantos
afazeres? Enquanto almoçam, resolvem pendências e problemas pelo
smartphone. Durante uma reunião, uma aula, uma palestra, resolvem ao
mesmo tempo outras questões pela facilidade da internet. Parece que não
somos mais capazes de dedicar atenção a uma coisa de cada vez. Labbucci
aponta que essa guerra de velocidade tem se tornado um tumor, uma doença
do nosso tempo. E não é por acaso que na “Itália, por ano, morre-se oito vezes
mais por acidentes de carro, causados quase sempre pela alta velocidade, do
que por homicídios”. (Labbucci, 2013, p. 51). Essa é uma face da rapidez que
Labbucci diz não querer saber.
Percebemos claramente a velocidade do khrónos nos calendários
escolares. Existe um tempo demarcado para “ensinar” (pelo menos pelo que se
entende por ensinar que é informar, apresentar, explicar o assunto) e outro,
para que os alunos possam “aprender” dentro de um ano (como se a
manifestação da inteligência se desse igualmente a todos e no mesmo tempo).
Há cobrança, exigência, “apressamento” em cima dos professores que mal os
permitem “parar”, caminhar mais lentamente. Se os professores são
pressionados a correr contra o tempo, quem dirá os alunos. Por isso, caminhar
é um ato de rebeldia, como aponta Labbucci. Pois, mesmo quando o sistema
nos induz à pressa, à guerra da velocidade, precisamos ter atenção para saber
lidar com as diferentes dimensões do tempo. Caminhar significa estar atento e
olhar para o que precisa de atenção. “Cada coisa a seu tempo, a semeadura e a
colheita não acontecem nem antes nem depois, só no tempo oportuno,
propício”. (Labbucci, 2013, p 51). Caminhar não significa apenas estar no
khrónos, mas, também, estar atento ao kairós, ao tempo oportuno, propício,
mesmo que ele seja para parar ou divagar.
Caminhar é divagar: a partir de um caminho sinalizado, de uma via
principal, para seguir outros caminhos, outras vias mais afastadas,
mais marginais, secundárias ou que foram vistas de passagem.
Caminhar é parar: porque temos vontade, porque as pernas, porque
o lugar ou a luz, porque...
Divagar e parar: atividades humanas, demasiado humanas,
incompatíveis com as máquinas e com o mito da velocidade. Somos
feitos para perder tempo, divagar, estacionar, contemplar. Não é um
defeito a ser corrigido, um dano a ser reparado, uma doença a ser
curada. Muito pelo contrário; é isso que nos torna únicos e
irredutíveis a máquinas e à cultura mecanicista. (Labbucci, 2013, p.
51-52).
Labbucci diz também que caminhar tem relação com a humildade e a
igualdade, como já abordado no início do capítulo, pois, para o autor, a

106
Caminhar como modo de vida

humildade é a alma do caminhar. “Mas o que hoje liga de maneira decisiva o


tema da igualdade à experiência de caminhar é o fato de que nenhum deles se
harmoniza com o excesso, com o supérfluo”. (Labbucci, 2013, p. 56).
Para o autor, a política tem se apropriado de um discurso público para
introduzir cada vez mais a categoria do cidadão-consumidor. Um discurso que
busca oprimir a todos e fazer do consumo o centro da nossa existência.
Ora, essa democracia do consumo, que privatiza todos os âmbitos
da existência e da sociedade, essa pulsão de se apropriar, que, quanto
mais supérflua é, mas obsessiva fica, é incompatível com o caminhar.
(Labbucci, 2013, p. 69).
Segundo Labbucci, a leveza do caminhar consiste em reduzir ao
essencial. Decidir o que levar consigo no caminho e o que deixar pode parecer
nada, no entanto, é tudo. “A leveza do caminhar: reduzir ao essencial; ser
humilde para acolher o mundo que nos vem ao encontro; e criar um vazio
dentro de nós, de modo que ainda nos surpreendamos e nos maravilhemos”.
(Labbucci, 2013, p. 73).
Por fim, Labbucci diz que caminhar é uma revolução porque consiste
num extraordinário exercício de liberdade.
Caminhar: é o gesto mais humano; liga meio e fim; dá tempo ao
tempo; nutre-se de humildade e leveza e nos restitui ao essencial, de
modo a nos permitir olhar para dentro e para fora de nós.
Tudo isso pode ser resumido a uma palavra, uma única palavra:
liberdade.
Caminhar é um extraordinário exercício de liberdade. (Labbucci,
2013, p. 75).
No entanto, o autor ressalta que não se trata da liberdade de consumo,
mas da liberdade de ser, mas, também, não no sentido de ser “o cidadão dócil”,
um tipo de cidadão fruto de uma suposta democracia. Labbucci diz que a
democracia se baseia em identidades, busca consenso. Entretanto, uma
sociedade só pode ser livre no dissenso, porque uma sociedade livre é o oposto
de uma sociedade dócil. Os cidadãos dóceis se assemelham a uma massa de
espectadores, passivos, sempre prontos a cumprir ordens, bem como, buscam
a comodidade. Labbucci os denomina como “nova raça de servos voluntários,
satisfeitos ou indiferentes com sua condição”. (Labbucci, 2013, p. 83).
Esse tipo antropológico, ‘o cidadão dócil’, estejam certos, nunca se
colocará a caminho. Imóvel, esperará que outros digam se deve ficar
parado no lugar, e então vai advertir com preocupação aqueles que
se movem em torno dele; ou esperará ordem para ir, e então se porá
a segui-los. Bem, quem caminha é o oposto desse tipo humano,
exprime curiosidade, comprometimento, sente-se e quer sentir-se
livre para se movimentar. Conhece não a docilidade, que é uma
mistura de obscurantismo e subordinação, mas a vulnerabilidade,
massa feita de atenção e de disponibilidade... (Labbucci, 2013, p. 80).

107
Carolina Fonseca de Oliveira

A liberdade apresentada por Labbucci é a liberdade que coloca em jogo


a própria vida. “Caminhar é liberdade. Liberdade é autonomia. Autonomia é
risco. Caminhar é arriscado”. (Labbucci, 2013, p. 83). O autor faz menção a
uma história bíblica para ratificar a tensão entre liberdade e vida. A história
refere-se a uma passagem no livro de Êxodo, em que Moisés liberta os judeus
do Egito, mantidos como escravos por quatro séculos. Ao sair do Egito e se
deparar com o Mar Vermelho, e sabendo que se aproximava seiscentos carros
do exército de faraó para matá-los, o povo se volta contra seu líder Moisés e o
questiona “por que havia os tirados do Egito para morrer no deserto?”. “Não
é isso o que te dissemos no Egito: deixa-nos, para que sirvamos os egípcios?
Pois melhor nos fora servir aos egípcios do que morrermos no deserto.”37
A história continua com Deus ordenando a Moisés que encostasse o
cajado nas águas para que elas se separassem e o povo pudesse atravessar. Para
impedir o ataque do exército egípcio, Deus fez uma barreira com uma coluna
de fogo. Após a travessia do povo e o livramento da morte, o dilema se repete
quando o povo, ao caminhar por dias no deserto, se vê sem água e sem comida.
Disseram-lhe os filhos de Israel: Quem nos dera tivéssemos morrido
pela mão do SENHOR [sic], na terra do Egito, quando estávamos
sentados junto às panelas de carne e comíamos pão à farta! Pois nos
trouxestes a este deserto, para matardes de fome toda essa
multidão.38
Segundo Labbucci, o povo de Israel ao se ver desamparado, questiona
se a escravidão não seria um preço mais suave a pagar do que a liberdade que
coloca em jogo a própria vida. Caminhar é arriscado. Estamos dispostos a nos
arriscar? Estamos dispostos a caminhar, mesmo que para isso seja necessário
pôr a nossa vida em risco? Ou vamos preferir nos satisfazer na condição de
cidadãos-dóceis acomodados? Estamos livres para caminhar?
Contudo, não devemos confundir a “liberdade” de caminhar como um
caminho sem metas, sem ponto de partida e de chegada. Para Labbucci, essa
consiste em uma tese mal fundamentada sobre o caminhar.
Caminhar não é mover-se por mover-se. Desviar, passar o tempo,
voltar sobre os nossos passos não é apenas belo ou prazeroso, não
exalta apenas a nossa particularidade de seres humanos em
contraste com a repetição das máquinas, mas é, sobretudo e antes
de tudo, possível enquanto inserido em uma ordem, em um
percurso, em um télos. (Labbucci, 2013, p. 120-121).
Ao citar Franz Hessel, Labbucci defende que caminhar não é andar a
esmo, mas, propor-se a ir a um determinado lugar, mesmo que nesse percurso

37
Êxodo, 14:12.
38
Êxodo, 16:3.

108
Caminhar como modo de vida

haja desvios, porque o desvio também pressupõe uma meta. Para Labbucci, o
caminhante não é, necessariamente, aquele que segue sempre em frente, em
busca do nunca visto, da novidade, do exotismo forjado, mas, sobretudo, é
aquele que retorna a Ítaca. Que faz o caminho de volta, porque os lugares já
não são mais como os deixamos. O caminhante está numa dupla dimensão: da
partida, mas também, do retorno. “É necessário voltar pelo caminho que já se
fez, para repeti-lo, e para traçar ao lado dele novos caminhos. É necessário
recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já”. (Saramago, 1999, apud
Labbucci, 2013, p. 123-124).
No capítulo três mencionamos que, para Gros, o caminhante sabe por
que caminha. Ele precisa saber. Diz ainda que caminhar não é um esporte,
muito menos uma experiência que busca uma identidade. Para Gros, caminhar
é estar do lado de fora; é subverter a ordem do sistema; é uma experiência
revolucionária que se aproxima da concepção de Labbucci. Para Labbucci, o
caminhar não consiste em andar a esmo porque caminhar é um ato
revolucionário. A meta que deve ter o caminhante é a de desobedecer ao
sistema que tenta nos alienar à pressa, ao consumo, ao individualismo, à
soberba, à desigualdade. Para Labbucci, é através do caminhar que nos
tornamos mais humildes, nos desvencilhamos do supérfluo e aprendemos a nos
relacionar com o outro em uma relação de igualdade. E isso implica uma
escolha: a de permanecermos acomodados ou de nos colocarmos a caminho; de
querer voltar para o Egito como escravos ou de experimentar a liberdade,
mesmo que para isso, precisemos atravessar o deserto. Por isso, Labbucci diz
que caminhar é autonomia e essa autonomia é arriscada. E essa autonomia não
tem a ver com assumir uma postura de certezas perante o caminho, senão de
caminhar sempre perguntando, como fazem os zapatistas.
Labbucci (2014) também diz que caminhar é arriscado porque nos expõe
ao imprevisível. Contudo, nossa relação com o imprevisível tem mudado no
curso dos milênios. Não queremos lidar com imprevistos ou com incertezas.
Não é por acaso que os sites de meteorologia são os mais procurados no
Google. Claro, que se deve, também, aos deslocamentos dos finais de semana,
no entanto, para Labbucci, o problema vai mais a fundo: está no desejo de
conhecer previamente para poder controlar os acontecimentos e, assim,
proteger-se e eliminar os imprevistos. A ânsia por proteção e segurança da
própria vida nos distancia cada vez mais dela. Acabamos vivendo sem ter
vivido. Ao parafrasear Buda, Labbucci diz que se vivemos no medo, acabamos
não vivendo. Quanto mais se busca por segurança, mais a liberdade é corroída.

109
Carolina Fonseca de Oliveira

Caminhar é um pensamento prático que pode nos ajudar a romper


esse círculo vicioso que alimenta medo e insegurança.
Caminhar dá um testemunho de que não há necessidade de temer o
medo, dá um testemunho do cuidado e da atenção com os lugares
pelos quais passamos para que outros possam colocar-se a caminho
como nós. (Labbucci, 2013, p. 136).
O relato de Careri sobre as viagens que tem feito com os cursos sobre
Stalker nos ajudam a pensar sobre essa constante busca por segurança que tem
nos impedido de caminhar. Careri tem viajado muito por causa do seu livro
Walkscapes – o caminhar como prática estética, inclusive para ministrar cursos na
América Latina e no Brasil. O autor diz que é preciso ressaltar a diferença que
é caminhar em seu país (Itália) e caminhar em outros. Diz ter ficado surpreso
com as condições impostas para se caminhar na América do Sul, por causa da
periculosidade que não é de toda falsa, no entanto, a mídia se apropria de uma
situação real para criar um sentimento maior de risco e insegurança que é “pôr-
se a caminho”, para que as pessoas continuem em seus espaços privados,
privando-se de encontrar-se com o outro e, vivendo suas vidas
individualistamente.
Na América do Sul, caminhar significa enfrentar muitos medos:
medo da cidade, medo do espaço público, medo de infringir as
regras, medo de apropriar-se do espaço, medo de ultrapassar
barreiras muitas vezes inexistentes e medo dos outros cidadãos,
quase sempre percebidos como inimigos potenciais. Simplesmente,
o caminhar dá medo e, por isso, não se caminha mais; quem caminha
é um sem-teto, um mendigo, um marginal. (Careri, 2013, p. 170).
Careri diz que o fenômeno antiperipatético e antiurbano é menos
evidente na Europa e mais evidente na América do Sul em que a cidade é
construída para que não se caminhe por ela. Se for para sair de casa, que não
seja a pé. O “monstro” da insegurança e da periculosidade faz com que as
pessoas queiram resolver suas questões em locais fechados e que se for para
andar, que seja dentro de shopping centers. Careri diz que, nos cursos de
arquitetura que ministra, os estudantes sabem muito de teoria urbana, no
entanto,
nunca tiveram a experiência de jogar bola na rua, de encontrar-se
com os amigos na praça, de fazer amor em um parque, de entrar
ilegalmente numa ruína industrial, de atravessar uma favela, de
parar para pedir uma informação a um transeunte. Que tipo de
cidade poderão produzir essas pessoas que têm medo de caminhar?
(Careri, 2013, p. 170).
Para Labbucci assim como para Careri, é preciso enfrentar o medo de
caminhar e colocar-se a caminho. E, para Masschelein e Simons (2014, p. 50).,
“caminhar significa literalmente deixar para trás o conforto de casa e entrar
no mundo entendido como um lugar que não pertence a ninguém, que não tem

110
Caminhar como modo de vida

porta de acesso que necessite ser vigiada”. O convite a caminhar é um convite


a sair pelo mundo, a se expor, a estar aberto ao mundo, atento ao caminho.
Que monstros de inseguranças e periculosidades têm nos impedido – e que
precisamos resistir e enfrentar – nesse caminhar nas escolas, nas salas de aula,
nos ambientes de pesquisa educacional que temos vivido? Diante de tudo isso,
estamos dispostos a caminhar?

111
CAMINHOS INTERMINADOS E INDETERMINADOS
CAMINHOS INTERMINADOS E INDETERMINADOS

Finalizar uma escrita-experiência não parece ter o mesmo sentido que


iniciá-la, ainda mais em se tratando de um texto sobre o caminhar que foi sendo
construído à medida que se escrevia, caminhava. Iniciar um texto nos traz a
noção de uma abertura a algo; finalizá-lo parece se aproximar de um
fechamento desse caminho. No entanto, não há propriamente algo a ser
fechado na presente escrita e também essa não é a única maneira de pensar o
fim. Para Ingold (2015), o fim pode ser apenas um desvio e não o fim da linha.
Pode ser um desvio que ainda nos mantêm no caminho, que nos faz permanecer
na trilha, como acontece quando nos encontramos em um beco sem saída de
um labirinto. No entanto, segundo Careri (2017), o fim não precisa trazer
respostas conclusivas que esgotam as discussões em uma pesquisa; pode
sempre permanecer em aberto. Esse é um dos sentidos de se fazer pesquisa:
que o fim seja apenas uma parada para, então, partir novamente. Assim, em
vez de escrevermos as considerações finais, pensamos em um fim interminado
e indeterminado. Para Careri, a experiência como pesquisador o ensinou que
“tanto o método como o projeto podem permanecer indeterminados,
desenvolverem-se durante o caminhar”. (Careri, 2017, p. 115).
Mas o que significa deixar, no fim, um projeto indeterminado? O que se
sugere é que “tanto o autor quanto o projeto devem estar prontos para acolher
os incidentes de percurso, se não até mesmo para causá-los ou buscá-los”.
(Careri, 2017, p. 115). Ao contrário do projeto predeterminado, o projeto
indeterminado “nada sabe de seus resultados e é inacabado por natureza”.
(Careri, 2017, p. 116). E é assim que essa pesquisa tem se construído, em meio
aos incidentes de percurso, aos imprevistos...
Desde o primeiro projeto entregue para o processo seletivo do
mestrado, passando por sua qualificação no meio do percurso e chegando à sua
fase “final”, essa pesquisa tem passado por transformações desde o título até a
formação dos capítulos. Autores selecionados inicialmente para dialogarmos e
que acabaram não entrando no diálogo; entrevistas que seriam feitas com
pessoas que fazem do caminhar uma prática estética ou uma peregrinação
religiosa que não foram realizadas; experiências de caminhar com algumas
turmas que participam do projeto “Em Caxias a Filosofia En-Caixa?” que não
aconteceram... Entretanto, da mesma maneira que caminhar na pesquisa nos

115
Carolina Fonseca de Oliveira

coloca em riscos, nos expõe aos imprevistos que nos fazem abandonar coisas
que muitas vezes não queremos deixar pelo caminho, caminhar na pesquisa
também nos traz encontros inesperados que passam a fazer parte do nosso
percurso como, por exemplo, autores que inicialmente não estavam em nossa
bibliografia e que passaram a compô-la nos fazendo pensar questões ainda não
pensadas. Dentre esses autores destacamos Careri, que aborda a arte de ir ao
encontro do Outro através do caminhar; Labbucci, que concebe o caminhar
como uma revolução; Coverley, que pensa o escritor como caminhante e
Ingold, que escreve sobre caminhar pelo labirinto como uma forma de atenção
e de fazer skholé.
Na introdução deste livro, comparamos a atividade de escrever com o
ato de se despir. Desse modo, a partir do primeiro capítulo podemos dizer que
não apenas para escrever, mas, também, para caminhar é preciso se despir: das
intenções e das expectativas que impedem nosso olhar de ver o óbvio e de nos
relacionarmos com o caminho da pesquisa educacional como quem anda um
caminho e não como quem o sobrevoa. Segundo Masschelein e Simons (2014),
a atenção não é o que nos permite ver as coisas a partir de uma nova
perspectiva, ou seja, não significa ter um novo olhar sobre algo, mas é o que
permite estarmos presente no presente. “É, eu diria, o que acontece quando
ficamos atentos ou nos expomos”. (Masschelein; Simons, 2014, p. 45). Nesse
sentido, a pesquisa educacional trata de uma pedagogia pobre, pois não
promete benefícios, somente o tempo e o espaço da experiência.
Também nos referimos a uma outra dimensão do caminhar a partir de
Merlin Coverley (2014): o caminhar como viajar tanto na mente quanto na
página e o escritor enquanto caminhante. Nesse sentido, o escritor não escreve
sob um caminho de certezas, senão sob um caminho de perguntas, de
curiosidade. A relação com a escrita está ligada a uma vida-caminhante e, assim
como caminhar deixa marcas na estrada, escrever consiste em deixar marcas
na página. No entanto, ao mesmo tempo em que o escritor-caminhante deixa
marcas através de sua escrita, também está sujeito a ser marcado por ela.
A partir de Frédéric Gros (2010), pensamos uma dimensão filosófica do
caminhar que não se refere à ideia de que o movimento do corpo está associado
ao pensamento e a escrita, mas se refere ao caminhar como um ato de ir na
contramão do sistema capitalista. É uma atividade que nos permite suspender
os papéis e obrigações sociais para viver uma experiência de liberdade. Para
Gros (2010), caminhar tem a ver com simplicidade e com um olhar de criança.
Nesse sentido, nos perguntamos: fazer uma pesquisa educacional nos

116
Caminhar como modo de vida

princípios do caminhar apresentados por Gros seria caminhar com o olhar


atento das crianças?
A partir de Francesco Careri (2013), apresentamos o caminhar como
uma prática estética não apenas porque através dele se esculpe a paisagem, mas
também, porque caminhar consiste na arte de ir ao encontro do Outro de uma
forma não beligerante. Assim, tentamos pensar uma pesquisa educacional que
se faz a partir do encontro com o Outro e que somente ao caminhar podemos
aprender dessa arte.
Apresentamos também uma dimensão revolucionária do caminhar,
dialogando com Adriano Labbucci (2013) e com o movimento zapatista.
Assim, apresentamos o caminhar como um ato revolucionário por ser ele uma
condição de seguir lutando por uma sociedade mais justa, democrática e
autônoma. Segundo Labbucci, caminhar é um ato revolucionário porque nos
faz subverter o sistema capitalista. Ao contrário do sistema que nos aliena à
pressa, ao individualismo, à soberba e à servidão, o caminhar faz com que nos
desfaçamos do supérfluo, nos tornemos mais humildes e sigamos sempre
perguntado. Para os zapatistas, caminhar é seguir perguntando e não se
conformando com as injustiças sociais; seguir caminhando juntos. Ao
caminhar não se pensa no “eu”, mas em “nós”. A partir desses princípios,
questionamo-nos de que maneira temos caminhado e queremos seguir
caminhando na educação. Se queremos caminhar juntos, mesmo que isso
implique uma atitude de carregarmos uns aos outros nos ombros, ou se
queremos seguir o caminho individualmente.
Assim, não tivemos o objetivo de reduzir o caminhar a uma única coisa,
senão a partir do sentido que cada autor dá para o caminhar, pensá-lo como
um modo de afirmar uma vida que se põe a caminho. Pôr-se a caminho na
escrita é pôr-se a caminho na vida e, assim como na pesquisa educacional, pode
não ter a ver com alcançar um conhecimento válido para poder falar com
propriedade em uma comunidade científica. Em vez de buscar um
conhecimento da educação ou para a educação, buscam-se condições para viver
uma experiência filosófica e educativa no sentido do cuidado de si, da
transformação de si e, à medida que cuidamos de nós mesmos, convidamos o
outro, também, a cuidar de si. Caminhar como escrever pode ser uma forma de
filosofia e de educação.

117
Carolina Fonseca de Oliveira

Caminhos outros
A ideia inicial dessa escrita-caminhante era pensar o tema do caminhar
como um modo de vida e, como uma forma de fazer pesquisa educacional e
skholé. Por isso o título “da pesquisa à skholé”. No entanto, devido “a como” eu
cheguei a esse tema, talvez a ordem do título devesse ser invertida para “da
skholé à pesquisa educacional”. Mas por quê? Porque foi através da skholé que
eu cheguei ao tema do caminhar como pesquisa educacional, não o contrário.
E seu início não foi no mestrado, senão no curso de graduação em Pedagogia
na UERJ quando estive bolsista de iniciação científica no NEFI.
Skholé é uma palavra grega que significa tempo livre. Para Masschelein e
Simons (2013) é o sentido original da “escola”, ou seja, na escola se suspende
o tempo produtivo, do trabalho, para oferecer um tempo livre para o estudo.
Tempo livre não significa não fazer nada, ou, “tirar” um tempo para o lazer,
mas, significa dedicar atenção a alguma coisa do mundo para que se possa
estudar sobre ela. Segundo os autores, a atenção é um dos princípios da skholé,
do tempo livre.
A atenção também é o contrário da intenção. Segundo Masschelein e
Simons (2014), o objetivo da educação não deve ser a intenção, mas a atenção.
Não é papel da educação ter como objetivo a intenção de: formar cidadãos
críticos, de construir o conhecimento, de ajudar no desenvolvimento dos
alunos, mas, o único objetivo da educação é a “atenção”. Estar atento é estar
aberto ao mundo. A educação deve convidar o outro a ter atenção. Educar o
olhar não para ver o que se deseja ver, mas, para ver o evidente. “E o evidente
não é o que simplesmente existe, mas o que ‘aparece’ quando o olhar presta
atenção no presente em vez de julgá-lo”. (Masschelein; Simons, 2014, p. 53).
Foi assim que eu pude chegar ao tema do caminhar. A partir de uma
experiência em que fui convidada a caminhar, diga-se “à contra-gosto”, e a
dedicar um olhar atento àquela experiência.
Em 2012, enquanto cursava o 4º período de graduação em Pedagogia na
UERJ e participava do NEFI – Núcleo de Pesquisas de Filosofias e Infâncias
como bolsista de iniciação científica, fui convidada a participar de um curso de
extensão universitária, Sobre a Escola Pública e o Ato Educativo, realizado pelo
NEFI da UERJ em conjunto com a UFF, em que 60 alunos do curso, mais os
professores convidados, deveriam caminhar pelas ruas da cidade do Rio de
Janeiro para pensar um projeto de escola pública a partir dessa experiência.
Desses alunos 30 alunos eram belgas e 30 brasileiros. Para cada dupla ou trio
composto geralmente por um brasileiro e um belga, foi entregue um mapa dos

118
Caminhar como modo de vida

bairros que a dupla ou trio deveriam andar durante a semana do curso, mas,
antes da caminhada, estudamos alguns artigos escritos por Jan Masschelein e
Maarten Simons sobre os temas da skholé e do caminhar. Inspirados em Walter
Benjamin, os artigos de Masschelein e Simons traziam uma reflexão sobre
caminhar como uma forma de estar atento e presente no caminho, que é o
contrário de sobrevoar um caminho que significa estar ausente. Porém, eu não
havia lido os textos e nem participado de todas as palestras antes de iniciar a
caminhada, e só a fiz por me sentir na obrigação de participar do curso como
bolsista. Não tendo entendido a proposta do curso, odiei fazer o exercício que
me deixou com bolhas nos pés depois de ter andado por três dias consecutivos
em 4 bairros da zona sul do Rio de Janeiro. Além disso, aquela discussão sobre
caminhar nas ruas do Rio para pensar uma escola pública não fazia o menor
sentido para mim.
Mas o que eu não compreendia ainda era que o curso consistia em
“viver” o próprio conceito de skholé: que é dedicar atenção a algo do mundo
para então estudar sobre isso. Para Masschelein e Simons (2013) o professor
“coloca sobre a mesa” algo para ser estudado. E isso não tem a ver com “partir
do interesse do aluno”, ou, “falar a língua do aluno”, ou “ensinar algo que tenha
relação com o mundo desse aluno”, porque isso seria compreender a educação
em termos econômicos, onde o aluno tem necessidades a ser atendidas e o
professor é aquele que vai satisfazer a essas necessidades. Preciso abrir aspas
aqui: vemos isso diariamente nas propagandas das instituições privadas de
ensino básico e superior que dizem: “Aqui o seu esforço ganha força!” “Aqui o
professor valoriza o seu esforço!”. “Flexibilidade para a sua vida, qualidade
para a sua carreira!”.
O exercício de caminhar sobre as ruas da cidade do Rio não partiu do
interesse dos alunos. Foi algo que os professores “colocaram sobre a mesa” e
nos convidaram a dedicar a atenção. Não tinha uma aprendizagem específica a
ser alcançada. Tínhamos apenas que participar daquela experiência e, depois,
a partir dela, escrever sobre algo relacionado a educação, mas esse algo, não
foram os professores que decidiram por nós. Eles apenas abriram o mundo, me
convidaram a dedicar atenção àquilo e pronto. Nada aconteceu. Aquele assunto
de caminhar e skholé não fazia nenhum sentido para mim e eu só queria que o
curso acabasse logo.
Uns meses depois, meu orientador, o professor Walter Kohan, propôs
novamente o exercício de caminhar, só que agora numa disciplina de PPP –
Pesquisa e Prática Pedagógica, na qual eu era aluna e bolsista dele. Quis
“matar” o Walter naquele momento. Quase chorei por ter que repetir um

119
Carolina Fonseca de Oliveira

exercício que eu havia odiado fazer. Mas, como não havia outro jeito, decidi
que em vez de ficar revoltada, tentaria fazer o curso novamente de uma
maneira diferente: mais aberta a experiência.
No final do semestre tivemos de entregar um trabalho final da disciplina
sobre a experiência de caminhar, dialogando com os textos lidos. O resultado
foi um trabalho que amei escrever e foi a partir desse texto que nasceu minha
monografia “Experiência de caminhar: encontros entre a filosofia, a infância e a
educação?”. Ou seja, mais uma vez o professor “colocou um assunto sobre a
mesa”, nos convidou “a dedicar a atenção” aquilo, e, dessa vez, algo inesperado
aconteceu: o tema que antes me causava aversão, se tornou meu tema de
pesquisa, ou, se posso dizer, de vida. O professor abre o mundo, traz os alunos
“para o seu mundo”, convida-o a uma atenção, a uma experiência. Ele não tem
por objetivo ensinar algo, mas oferecer tempo e espaço para a experiência. E é
nessa experiência que algo mágico pode acontecer. Que algo pode nos afetar,
nos atravessar.
Por isso, talvez o título desse livro pudesse ser invertido ora ou outra,
pois não é apenas a pesquisa sobre o caminhar que me leva a pensar sobre a
skholé, mas, sobretudo, foi o exercício da skholé que me fez me apaixonar pelo
tema do caminhar na pesquisa educacional. Essa é uma das questões que mais
me inquieta nessa escrita: somos nós que escolhemos ou encontramos um tema
(um caminho para a pesquisa) a partir do nosso interesse, ou, é um tema que
nos escolhe, ou nos encontra?
O tema do caminhar me inquietou primeiramente porque eu não sou
uma pessoa que gosta de fazer caminhadas. Sou uma pessoa que gosta de estar
no controle, de ter as situações sob (meu) controle. Sou uma pessoa que cria
expectativas demais nas pessoas e nas situações, que se preocupa muito com o
futuro, que tem medo do incerto e das mudanças, que gosta de segurança... e o
caminhar me convida a “ir para fora”, sair da comodidade, do lugar confortável,
do lugar de certezas para caminhar por caminhos incertos, caminhos não
determinados, mas que vai se construindo ao caminhar... o caminhar me
convida a olhar para o mundo, para as pessoas, não com um olhar de
expectativa e cheio de intenções, mas, com um olhar atento, para ver não aquilo
que eu quero ver, mas, para o que se mostra para que o meu olhar possa ver.
O caminhar me convida a “ir para fora”, a me livrar do supérfluo, a me colocar
em questão, a me preocupar não com o futuro, mas com o presente.
Na nossa LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação) e no PNE (Plano
Nacional de Educação) temos como princípios a qualificação e formação para
o trabalho e exercício da cidadania, ou seja, nossa educação se preocupa com

120
Caminhar como modo de vida

“formar e qualificar” para o “mercado de trabalho”, para o futuro, mas, será que
também tem se preocupado com uma educação que eduque o olhar para estar
atento? Como uma educação que em vez de apenas querer “formar e qualificar”
também se preocupa em oferecer um tempo e espaço para a experiência? Será
que a nossa educação tem se preocupado, em vez de determinar um caminho
para ser caminhado, em oferecer um tempo e espaço para que cada um possa
fazer o seu próprio caminho ao caminhar?

121
122
REFERÊNCIAS

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Biblioteca Manoel de Barros [coleção]. São Paulo: LeYa, 2013a. 18 volumes.
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CARERI, Francesco. Walkscapes: o caminhar como prática estética. São Paulo: G. Gili,
2013. 4ª impressão, 2016.
CARERI, Francesco. Caminhar e Parar. São Paulo: Gustavo Gili, 2017.
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Coleção: Teses e Dissertações; 2.
CONTAGE, Daniel Gaivota. Poética do Deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa
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5.
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Martins Fontes, 2014.
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escola pública. 2014. 161 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade
de Educação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2, vol.
1. São Paulo: Editora 34, 2011. 2. ed. Coleção TRANS.
DERRIDA, Jacques. A farmácia de Platão. Tradução Rogério da Costa. São Paulo:
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EZLN. CAMINANTES. Documental del Subcomandante Insurgente Marcos, 2001.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=j-
BcpRIOJXM&t=55s>. Acesso em: 30 de jan de 2018.
FOUCAULT, Michel. A escrita de si. In: O que é um autor? Lisboa: Passagens. 1992,
pp. 129-160.
FOUCAULT, Michel. Conversa com Michel Foucault (Entrevista com D.
Trombadori). In: M. Foucault. Ditos e Escritos VI: repensar a política (pp. 289-
347). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1994.
GOMES, Vanise de Cássia de Araújo Dutra. Dialogar, conversar, experienciar o
filosofar na escola pública: encontros e desencontros. Tese (Doutorado em
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Rio de Janeiro – RJ. 2017.
GROS, Frédéric. Caminhar, uma filosofia. São Paulo: É Realizações, 2010.
HERÁCLITO, de Éfeso. Pensar com Heráclito. KOHAN, Walter Omar. (Orgs.) e
tradução. Pinturas em encáustica de Elvira Vigna. Rio de Janeiro: Lamparina,
2013. 1ª Ed.

123
Carolina Fonseca de Oliveira

INGOLD, Tim. O dédalo e o labirinto: caminhar, imaginar e educar a atenção.


Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 21, n. 44, p. 21-36, jul./dez. 2015.
KOHAN, Walter Omar. O Mestre Inventor. Relatos de um viajante educador. Belo
Horizonte: Autêntica, 2013. Coleção Educação: Experiência e Sentido.
KOHAN, Walter Omar; OLARIETA, Beatriz Fabiana (Orgs.). A escola pública aposta
no pensamento. Belo Horizonte: Autêntica, 2012. Coleção Educação:
Experiência e Sentido.
KOHAN, Walter Omar. Sobre a escrita acadêmica, a política e a amizade. In:
CALLAI, Cristiana; RIBETTO, Anelice. (Orgs.). Uma escrita acadêmica outra:
ensaios, experiências e invenções. Rio de Janeiro: Lamparina, 2016. pp. 48-56.
KRÜGER, Julia Ramires. O saber da amizade: entre filosofia e educação. 181f.
Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade
do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.
LABUCCI, Adriano. Caminhar, uma revolução. São Paulo: Martins Fontes, 2013.
LARROSA, Jorge. Experiência e alteridade em educação. Disponível em:
<https://online.unisc.br/seer/index.php/reflex/article/view/2444/1898>.
Acesso em: 10 de mar. 2017.
LARROSA, Jorge. Tremores. Escritos sobre experiência. Belo Horizonte: Autêntica,
2014. Coleção Educação: Experiência e Sentido.
LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Trad. Ricardo Corrêa Barbosa;
posfácio: Silviano Santiago. 6. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2000.
MASSCHELEIN, Jan; SIMONS, Maarten. A pedagogia, a democracia, a escola. Belo
Horizonte: Autêntica, 2014. Coleção Educação: Experiência e Sentido.
MASSCHELEIN, Jan; SIMONS, Maarten. Em defesa da escola: Uma questão pública.
Tradução: Cristina Antunes. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. Coleção
Educação: Experiência e Sentido.
OLIVEIRA, André Luiz H. Søren Kierkegaard: por uma filosofia da existência.
Ágora Filosófica, Pernambuco, v. 1, n. 1, p. 169-94, 2015.
RANCIÈRE, J. O Mestre Ignorante. Cinco lições sobre a emancipação intelectual. 3.
Ed. 1. Reimp. – Belo Horizonte: Autêntica, 2011. Coleção Educação:
Experiência e Sentido.
RODRÍGUEZ, Simón. Inventamos ou erramos. Apresentação e notas Maximiliano
Durán, Walter Kohan. Belo Horizonte: Autêntica, 2016. Coleção Educação:
Experiência e Sentido.
SKLIAR, Carlos. Desobedecer a linguagem: educar. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
Coleção Educação: Experiência e Sentido.

124
ANEXOS

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Caminhar como modo de vida

Anexo A - Correspondência com Simone Berle

Data: ANO 2017


simone berle <simone_berle@yahoo.com.br>
Responder a: simone berle <simone_berle@yahoo.com.br>
Para: Carolina Fonseca <carolinafonseoli@gmail.com>
11 de setembro de 2017 13:44

Querida Carol!
Acabo de receber seu texto de qualificação. Iniciei a leitura e, rapidamente, percebi
que suas questões tem muito das minhas e, possivelmente, muito das questões dos nosso
colegas. Pesquisar a partir de uma pergunta. Escrita acadêmica. Basicamente esses dois
temas tem me afetado profundamente. E me fizeste encontrar com um diálogo que estou
tendo com a Paula Ramos: sobre o sentimento de pertencimento, sobre estar junto, sobre
como estando com o outro conseguimos estar conosco... Essa imagem de grupo, como
interlocutor... [tampoco sei se encontrei com essa interlocução no grupo, tampouco sei se
me encontro...]
Tenho sentido uma solidão profunda, e acho que esse silêncio, essa falta de vozes
ecoando, é um jeito de não sair de mim - não sei se por resistência ou por falta de percepção
- nesse caso, portanto, na ideia dos nosso queridos filósofos belgas, trata-se de uma
"negação" do fazer pesquisa.
Acho que por isso a correspondência é tão cara para mim: estar com o outro, me
encontrar nas palavras, nos escritos, nas ideias do outro me faz saltar de mim mesma, me
faz querer pensar com o outro...ou o que de mim está com o outro... Encontrar com tuas
palavras, me fez sair, saltar de mim! Me encontrei em ti.
Não sei se posso te ajudar com teu trabalho. Mas senti vontade de poder conversar,
sinto uma necessidade profunda de encontrar com algo... o estranho é que não sei com o
quê... talvez comigo.
Não sei como essas palavras te chegam, e peço desculpas se te soa estranho que te
diga isso, assim... foi impossível não te escrever e acho bonito esse movimento da escrita
que é provocada por outra escrita.
Ano passado fiz uma tentativa de pesquisa que iniciei com uma correspondência,
abandonei. Tenho uma carta com teu nome. Tua carta está aqui, comigo, no envelope
endereçado. Nunca a enviei. Sua carta, por algum motivo, ficou no meio de um caderno com
endereços... Viajou para Portugal comigo. Nunca tirei ela de lá. Sabia que poderíamos ter
uma interlocução interessante. Mas nunca fiz o movimento. Achava que o momento de te
escrever chegaria.
O abandono da tentativa de pesquisa aconteceu gradativamente. Agora percebo que
porque, ao enviar as cartas, buscava algo particular numa carta tipo "mala direta"...uma
carta genérica. Isso, como tentativa de pesquisa pode ser uma opção? Sim, pode. Assim
como um questionário ou uma entrevista que pode ser replicada, uma carta para muitos,
também funciona. Mas eu não sei se era aquilo que me interessava. Acho que o abandono
da proposta - a partir do suposto fracasso dela (das 30 cartas enviadas recebi 4 ou 5
respostas) - me dizia que não era aquilo que me interessava. Mas o que me interessa?
Acho que por isso, finalmente, estou aqui, te escrevendo! Porque é isso que me
interessa. É essa correspondência que me interessa. Essa que me afeta, que me provoca, que
me instiga a falar com a Carol. Não com dados informados pela Carol, mas o que eu e Carol
trocamos de afetos. Entendes?
Querida, realmente não sei como essas palavras vão te chegar... tem uma beleza na
escrita, num email que é pelo puro prazer de se juntar ao outro... mas as palavras também
podem ser fechadas de sentido (sem o tom, a expressão, o olhar...).
A carta que não te enviei não foi por não achar que não deveria, ao contrário, estava
endereçada, por acaso se perdeu e, talvez, com ela tive a chance de pensar se era aquela
correspondência que me interessava.

127
Carolina Fonseca de Oliveira

Enfim, um aprendizado sobre a pesquisa também é escutar o que faz sentido, que
tipo de "questões" levantamos...que tipo de "dados" podemos e queremos gerar... para o que
mesmo estamos olhando?
A ideia do fazer pesquisa como prática autoeducativa às vezes é uma pancada nos
modos como aprendemos a pesquisar, a estudar, a pensar....
Tu estás no NEFI já tem alguns anos e tem tido a oportunidade de experimentar
essa relação de pesquisa, talvez, em outra dimensão... digo, tua formação "acadêmica inicial"
tem passado por ai... por um lugar na academia que parece pouco convencional, que parece
contrastar com a ideia de academia como produção de conhecimento ou acúmulo...
O NEFI mexeu muito com a minha perspectiva de pesquisa, mas também me
colocou, em alguns momentos, em um lugar perigoso... parece que enfrento um
limite...sensação que não vou conseguir encontrar aquilo que nem sei o que é que procuro...
soa até engraçado, mas é assim que sinto... a sensação que tenho que ler, ler, ler para ter
algo a dizer...
Não sei como te sentes em relação a isso... se quiseres falar ou não... mas a sensação
que tive, iniciando a leitura do teu trabalho foi que passou por algo parecido...
Outra coisa que me passou, que pensei - ou repensei, já não lembro - , lendo teu
texto, foi quando retomas a ideia do sobrevoo e do caminhar como pesquisa, a partir do
Benjamin (em Masschelein e Simons). Fiquei pensando sobre o sobrevoo e o andar, quando
diz: "a força da estrada do campo é uma se alguém a sobrevoa e, outra, se alguém a percorre
andando." (p. 13). Fiquei pensando no sobrevoo... que é um olhar que compõe um todo.
Quando olhamos algo de cima temos uma perspectiva, que não é do detalhe, mas que ajuda
a perceber outras coisas... Ao mesmo tempo que minha nota faz uma certa oposição à
oposição dos autores, acho interessante considerarmos também o sobrevoo como forma de
complexificar o pesquisar... Claro que fazemos escolhas, e percebo que a tua é o caminhar...
mas me provocou a pensar como será ter olhares diversos sobre uma mesma coisa?
Foi uma olhadela no teu projeto...fui até a metade... e me derramei a te escrever.
Obrigada pela oportunidade de ler (ainda que não tenha lido tudo) e de me pensar a
partir dos teus escritos!
Um abraço carinhoso
Simo
P.s.: "Masschelein e Simons entendem o método como um conjunto de certas regras
que limitam e direcionam o olhar, bem como um meio para julgar e interpretar, que é o
contrário de estar presente no presente." Aqui não seria ausente?
Carolina Fonseca <carolinafonseoli@gmail.com>
Para: simone berle <simone_berle@yahoo.com.br>
11 de setembro de 2017 21:45
Simo, querida...
Me alegrou muito teu e-mail. Li e reli algumas vezes porque tuas palavras mexeram
comigo. Nem sei por onde começar. Talvez eu não siga a ordem das suas palavras, mas vou
escrever à medida que for sentindo o que preciso dizer.
Acredito que consegui sim compreender o que me disseste. E não me soou de
maneira estranha não...rsrs... acho lindo esse movimento de escrita, de trocas, de
correspondências que, para mim, se parece muito com o caminhar.
Por incrível que possa parecer, eu não gosto de caminhar. Tenho preguiça e
principalmente medo de andar por ruas e lugares que não conheço, principalmente se for à
noite, além de sentir muitas dores por causa das hérnias de disco que tenho na região lombar
(que por sinal, o ortopedista disse que a melhor coisa para mim, seria caminhar todos os
dias pelo menos 30 min, pois assim, eu fortaleceria minha musculatura. rsrsr). Mas teu e-
mail me fez lembrar de como cheguei a esse tema. Como esse tema passou a ser motivo de
fazer meus olhos brilharem e sair comprando livros sobre isso adoidada. Hahaha
Acho que aconteceu comigo o que o Jan e o Maarten falam tanto naqueles dois
livros, o laranja e o azul, rsrsr... foi a atenção que abriu meus olhos, que me fez ver o
evidente. Quando eu procurava um tema para minha monografia, pensava em escrever sobre
algo que me interessava. Algo do meu gosto. Que me desse prazer, tesão, sabe?! rsrs...
pensei, então, em escrever sobre o projeto de Caxias, que era algo que eu estava apaixonada

128
Caminhar como modo de vida

na época (ainda sou). Foi aí que eu recebi um “convite à caminhar”, daquele “famoso” curso
com os belgas, rsrs. Eu fui caminhar porque me senti obrigada como bolsista, mas odiei o
exercício e principalmente esse assunto todo. Achei maior viagem. Até aí tudo bem. Os
professores abriram o mundo, me convidaram a dedicar atenção àquilo e pronto. Nada
aconteceu.
Uns meses depois, o Walter, nosso querido professor, propôs novamente o exercício
de caminhar, só que agora numa disciplina de PPP, na qual eu era aluna e bolsista dele. Quis
matar o Walter naquele momento. Quase chorei. Hahahah... Mas antes de caminhar,
tivemos de ler o texto do Jan e do Maarten “Ponhamo-nos a caminho”, que por sinal, eu não
tinha lido no curso. Quando li esse texto algo aconteceu! Fiquei encantada e fiz o exercício
de caminhar “aberta àquela experiência”. O Jan vai dizer que estar atento nada mais é do
que estar aberto ao mundo (MASSCHELEIN; SIMONS, 2014, p. 48). O resultado dessa
experiência foi um trabalho que amei escrever. E o resto da história você já sabe. Aqui estou
eu, com esse tema no mestrado e que levarei para a vida.
Talvez o caminhar já estivesse em mim, não sei... eu só sei que as coisas que eu mais
resisto e me nego a fazer, ou pensar, ou olhar são as que mais me transformam, são as que
mais me afetam. Eu tenho encontrado livros e livros sobre esse tema e percebo que não há
nada que eu possa dizer além do que já foi dito. Nada de novo. Nada de relevante para a
“sociedade”. As ideias que eu achava que eram inéditas outras pessoas já escreveram...rsrs...
[...] mas que contribuição melhor eu poderia dar do que a minha própria transformação
enquanto ser humano, enquanto educadora?
Acho que às vezes nossa angústia é por querer fazer algo grandioso, ou, por querer
fazer algo totalmente diferente; ou, até mesmo, por fazer algo que a gente gosta. Mas,
talvez, o que a gente gosta não nos afete tanto quanto algo que a gente nem gosta tanto
assim, mas que nos provoca, nos faz sair do lugar seguro, do lugar cômodo. E o caminhar é
assim para mim. Eu não gosto de caminhar, mas me ponho a caminho. Eu não gosto de
mudanças, mas a vida (o caminho) me coloca situações em que eu preciso mudar
(literalmente de lugar, de casa quanto minha alma). E essas mudanças são motivos de
minhas transformações. Mudança de olhar. Mudança de alma. Esse tema me confronta
comigo mesma o tempo todo, inclusive nessa questão de resistência a caminhar e de medo
do incerto, do aparentemente perigoso, que tenho tentado vencer. Talvez, esse tema não
veio para me dar um novo olhar ou uma perspectiva diferente (que é o que o caminho
sobrevoado nos proporciona), mas, apenas, uma mudança para um olhar atento, aberto, que
não julga, que não cria expectativas. E isso é difícil para caralho para mim, porque eu sou
uma pessoa que projeta muito o futuro e olha muito para o passado. Que cria expectativas
demais nas coisas e nas pessoas. Essa “pesquisa” é questão de vida para mim. Como você
mesma disse, de sair de si. O que eu acredito dessa escrita é o que “luto” a cada dia para
tentar viver: o sair de mim mesma, sair do comodismo, do lugar confortável e seguro para
ter um olhar atento e aberto (ao outro, ao mundo), deixar que o caminho me conduza a uma
transformação...
Pra terminar (rsrs), eu acho importante essa coisa de pensar junto, de estar com o
outro, se encontrar no outro... acredito que meu processo de escrita flui mais quando estou
pensando junto com um grupo. O Subcomandante Marcos vai dizer no conto “la historia de
las miradas” que é olhando nos olhos do outro que podemos nos conhecer mais. Mas eu
também te entendo... passei por momentos em que eu precisei me recolher, me isolar, me
afastar... foi preciso. Mas quando entendi que precisava voltar a me abrir ao grupo
novamente, tentei fazê-lo. E é o que tem feito diferença na escrita.
Sobre pensar olhares diversos sobre a mesma coisa, referente ao caminho
sobrevoado e percorrido a pé, não tem tanto a ver com pensar diferentes modos de “ver” o
caminho, nem de mensurar e dizer que um é melhor e mais potente que o outro, senão de
mostrar duas maneiras diferentes de se relacionar com o caminho e a força que cada uma
exerce ao fazê-lo. No caso de percorrer a pé, a força é de estar presente no presente. De ver
como o caminho se apresenta. No caso do caminho sobrevoado, o caminho não tem como
se apresentar; o olhar só pode ver um recorte do horizonte. E isso para o Masschelein e
Simons é o mesmo que estar “ausente”. Estar ausente não é necessariamente “ruim”. “Estar
ausente significa “não-estar”; significa estar preso ao horizonte de expectativas, projeções,
perspectivas, visões, opiniões, imagens e sonhos que nos pertencem, que compõem a nossa

129
Carolina Fonseca de Oliveira

intenção, e que nos constituem sujeitos perante nossos objetos (objetivos)”. (Masschelein;
Simons, 2014, p. 48).
O que eu entendo com isso? Que pesquisar a partir de um lugar que sobrevoa o
caminho significa pesquisar em busca de uma verdade, segundo os critérios de uma
comunidade científica, visando os resultados e aplicações daquele procedimento que possa
ser convertido em conhecimento a ser compartilhado. Não há nada de ruim nisso. Acredito
até que precisamos de pesquisas assim. Mas, há também a pesquisa educativa que visa nada
mais nada menos do que a transformação de si através de um olhar atento no presente,
percorrendo esse caminho a pé, sem expectativas, intenções e projeções. O importante aqui
não é “ler e estudar muito” para poder falar com propriedade e autoridade sobre um tema
(uma de minhas grandes aflições e confrontações). Não é ter um objeto a ser analisado e um
objetivo com um fim específico a se chegar. Não é apresentar resultados ou comprovar
qualquer coisa. É apenas a transformação de si. Por isso eles a chamam de uma pesquisa
com uma pedagogia pobre. Uma pedagogia cega, surda e muda.
Simo, peço desculpas pelo tamanho do e-mail. Saí escrevendo e saiu tudo isso...rsrs.
Estou em Pádua e volto para o Rio somente no dia 19. Espero te encontrar para
continuarmos essa conversa. E obrigada por compartilhar tuas palavras comigo. Costumo
dizer que as palavras têm muito poder. Ou como o grupo diria, tem muita potência. Rsrsr
Um beijo e um abraço bem forte. Que bom que estás de volta!
carol.

De: Carolina Fonseca <carolinafonseoli@gmail.com>


Para: simone berle <simone_berle@yahoo.com.br>
Enviadas: Terça-feira, 12 de Setembro de 2017 1:45
Assunto: Re: o que pensei contigo: uma correspondência que finalmente chega

Carol... a correspondência parece que virou um bonito diálogo... fui pensando e


escrevendo contigo, literalmente!

beijos
simo
________________
Simo, querida...
Me alegrou muito teu e-mail. Li e reli algumas vezes porque tuas palavras mexeram
comigo. Nem sei por onde começar. Talvez eu não siga a ordem das suas palavras, mas vou
escrever à medida que for sentindo o que preciso dizer.
Querida, me passou o mesmo com teu email: li e reli algumas vezes... acho que
esse reconhecimento da pesquisa como uma imagem também é um reconhecimento
de como vamos nos formando, nesse caso, como vamos nos tornando professore.
Veja: eu encontro na correspondência, tu, no caminhar, Vanise, no diálogo, Neila, na
escuta, Dani, na viagem, Marcelly, nas cores, Julia, na amizade, Fabi O., no gesto,
Alê, no habitar, Edna, na escrita, Cori, escolar (?)... Será que podemos dizer que
buscamos uma figura para atravessar esse pesquisar?
Acredito que consegui sim compreender o que me disseste. E não me soou de
maneira estranha não...rsrs... acho lindo esse movimento de escrita, de trocas, de
correspondências que, para mim, se parece muito com o caminhar.
Por incrível que possa parecer, eu não gosto de caminhar. Tenho preguiça e
principalmente medo de andar por ruas e lugares que não conheço, principalmente se for à
noite, além de sentir muitas dores por causa das hérnias de disco que tenho na região lombar
(que por sinal, o ortopedista disse que a melhor coisa para mim, seria caminhar todos os
dias pelo menos 30 min, pois assim, eu fortaleceria minha musculatura. rsrsr). Mas teu e-
mail me fez lembrar de como cheguei a esse tema. Como esse tema passou a ser motivo de
fazer meus olhos brilharem e sair comprando livros sobre isso adoidada. Hahaha
Acho que aconteceu comigo o que o Jan e o Maarten falam tanto naqueles dois
livros, o laranja e o azul, rsrsr... foi a atenção que abriu meus olhos, que me fez ver o
evidente. Quando eu procurava um tema para minha monografia, pensava em escrever sobre
algo que me interessava. Algo do meu gosto. Que me desse prazer, tesão, sabe?! rsrs...

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Caminhar como modo de vida

pensei, então, em escrever sobre o projeto de Caxias, que era algo que eu estava apaixonada
na época (ainda sou). Foi aí que eu recebi um “convite à caminhar”, daquele “famoso” curso
com os belgas, rsrs. Eu fui caminhar porque me senti obrigada como bolsista, mas odiei o
exercício e principalmente esse assunto todo. Achei maior viagem. Até aí tudo bem. Os
professores abriram o mundo, me convidaram a dedicar atenção àquilo e pronto. Nada
aconteceu.
Uns meses depois, o Walter, nosso querido professor, propôs novamente o exercício
de caminhar, só que agora numa disciplina de PPP, na qual eu era aluna e bolsista dele. Quis
matar o Walter naquele momento. Quase chorei. Hahahah... Mas antes de caminhar,
tivemos de ler o texto do Jan e do Maarten “Ponhamo-nos a caminho”, que por sinal, eu não
tinha lido no curso. Quando li esse texto algo aconteceu! Fiquei encantada e fiz o exercício
de caminhar “aberta àquela experiência”. O Jan vai dizer que estar atento nada mais é do
que estar aberto ao mundo (MASSCHELEIN; SIMONS, 2014, p. 48). O resultado dessa
experiência foi um trabalho que amei escrever. E o resto da história você já sabe. Aqui estou
eu, com esse tema no mestrado e que levarei para a vida.
Colocar atenção
Talvez o caminhar já estivesse em mim, não sei... eu só sei que as coisas que eu mais
resisto e me nego a fazer, ou pensar, ou olhar são as que mais me transformam, são as que
mais me afetam. Eu tenho encontrado livros e livros sobre esse tema e percebo que não há
nada que eu possa dizer além do que já foi dito. Nada de novo. Nada de relevante para a
“sociedade”. As ideias que eu achava que eram inéditas outras pessoas já escreveram...rsrs...
[...] mas que contribuição melhor eu poderia dar do que a minha própria transformação
enquanto ser humano, enquanto educadora?
Estranha essa sensação de que "tudo já está dito". Eu tenho escutado muitas
pessoas falando sobre isso... e tenho sentido isso também... Então qual é a nossa
"função" enquanto pesquisadores na área da educação? De certa forma tu respondes
uma pergunta que tenho me feito (e pergunta ela também no teu projeto): nossa
função é nos formarmos? Será a Pós-graduação em educação, também, um espaço de
produção de "autoconhecimento"? O que se tem produzido em termos de
conhecimento em educação, diante da hibridez do campo (não somos um ciência, mas
bebemos de outras ciências: filosofia, sociologia, psicologia, antropologia,
história...), é quase impossível de "catalogar"... mas paralelo ao que se produz, será
que podemos dizer que nos "produzimos" também... ou seja, nos formamos a medida
que formamos... não ha formação para algo, se não, para um mesmo? Se assim for,
então o que compartilhamos, enaquanto produção de conhecimento, é uma trajetória
de formação? Será por isso é difícil reconhecer-nos como pesquisadores? Será que a
Pós é formação de professore...?
É bonito isso de encarar o afeto como uma coisa complexa, esse exercício de
encarar o que é difícil, de perceber no que supostamente não gostamos, um gosto,
daquilo que não percebemos... como a vida nos chama a atenção, "torce" nosso
pescoço e faz olhar o que negligenciamos... é um super esforço que, no fim, pode não
ser percebido, pode ser negado... ou seja, apesar das repetições com que o tema do
caminhar se apresentou para ti, tu poderias ter seguido negando ele... entendes?
Talvez a angústia seja querer fazer algo para "fora", para os outros, para uma
"academia", para um ciência... e que no fim, percebemos que só podemos fazer algo
no sentido coletivo, se podemos movimentar a nós mesmo... se aprendemos a
aprender... será? Será por isso tudo se torna tão vital?
Acho que às vezes nossa angústia é por querer fazer algo grandioso, ou, por querer
fazer algo totalmente diferente; ou, até mesmo, por fazer algo que a gente gosta. Mas,
talvez, o que a gente gosta não nos afete tanto quanto algo que a gente nem gosta tanto
assim, mas que nos provoca, nos faz sair do lugar seguro, do lugar cômodo. E o caminhar é
assim para mim. Eu não gosto de caminhar, mas me ponho a caminho. Eu não gosto de
mudanças, mas a vida (o caminho) me coloca situações em que eu preciso mudar
(literalmente de lugar, de casa quanto minha alma). E essas mudanças são motivos de
minhas transformações. Mudança de olhar. Mudança de alma. Esse tema me confronta
comigo mesma o tempo todo, inclusive nessa questão de resistência a caminhar e de medo
do incerto, do aparentemente perigoso, que tenho tentado vencer. Talvez, esse tema não

131
Carolina Fonseca de Oliveira

veio para me dar um novo olhar ou uma perspectiva diferente (que é o que o caminho
sobrevoado nos proporciona), mas, apenas, uma mudança para um olhar atento, aberto, que
não julga, que não cria expectativas. E isso é difícil para caralho para mim, porque eu sou
uma pessoa que projeta muito o futuro e olha muito para o passado. Que cria expectativas
demais nas coisas e nas pessoas. Essa “pesquisa” é questão de vida para mim. Como você
mesma disse, de sair de si. O que eu acredito dessa escrita é o que “luto” a cada dia para
tentar viver: o sair de mim mesma, sair do comodismo, do lugar confortável e seguro para
ter um olhar atento e aberto (ao outro, ao mundo), deixar que o caminho me conduza a uma
transformação...
Pra terminar (rsrs), eu acho importante essa coisa de pensar junto, de estar com o
outro, se encontrar no outro... acredito que meu processo de escrita flui mais quando estou
pensando junto com um grupo. O Subcomandante Marcos vai dizer no conto “la historia de
las miradas” que é olhando nos olhos do outro que podemos nos conhecer mais. Mas eu
também te entendo... passei por momentos em que eu precisei me recolher, me isolar, me
afastar... foi preciso. Mas quando entendi que precisava voltar a me abrir ao grupo
novamente, tentei fazê-lo. E é o que tem feito diferença na escrita.
Sobre pensar olhares diversos sobre a mesma coisa, referente ao caminho
sobrevoado e percorrido a pé, não tem tanto a ver com pensar diferentes modos de “ver” o
caminho, nem de mensurar e dizer que um é melhor e mais potente que o outro, senão de
mostrar duas maneiras diferentes de se relacionar com o caminho e a força que cada uma
exerce ao fazê-lo. No caso de percorrer a pé, a força é de estar presente no presente. De ver
como o caminho se apresenta. No caso do caminho sobrevoado, o caminho não tem como
se apresentar; o olhar só pode ver um recorte do horizonte. E isso para o Masschelein e
Simons é o mesmo que estar “ausente”. Estar ausente não é necessariamente “ruim”. “Estar
ausente significa “não-estar”; significa estar preso ao horizonte de expectativas, projeções,
perspectivas, visões, opiniões, imagens e sonhos que nos pertencem, que compõem a nossa
intenção, e que nos constituem sujeitos perante nossos objetos (objetivos)”.
(MASSCHELEIN; SIMONS, 2014, p. 48).
Agora que fazes essa analogia com o horizonte, lembro do que Derrida diz
sobre a experiência: a experiência nunca está no horizonte, porque ela não é
previsível. A experiência vem de qualquer lado, menos de frente, porque ela nos
assalta, como um assombro do inesperado. Pode ser uma boa combinação de reflexão
com o olhar de sobrevoo que nos permite ver o horizonte, enquanto o caminho, nos
coloca atentos ao experienciar, que pode nos transformar....
O que eu entendo com isso? Que pesquisar a partir de um lugar que sobrevoa o
caminho significa pesquisar em busca de uma verdade, segundo os critérios de uma
comunidade científica, visando os resultados e aplicações daquele procedimento que possa
ser convertido em conhecimento a ser compartilhado. Não há nada de ruim nisso. Acredito
até que precisamos de pesquisas assim. Mas, há também a pesquisa educativa que visa nada
mais nada menos do que a transformação de si através de um olhar atento no presente,
percorrendo esse caminho a pé, sem expectativas, intenções e projeções. O importante aqui
não é “ler e estudar muito” para poder falar com propriedade e autoridade sobre um tema
(uma de minhas grandes aflições e confrontações). Não é ter um objeto a ser analisado e um
objetivo com um fim específico a se chegar. Não é apresentar resultados ou comprovar
qualquer coisa. É apenas a transformação de si. Por isso eles a chamam de uma pesquisa
com uma pedagogia pobre. Uma pedagogia cega, surda e muda.
Eu sinto algo muito próximo do que descreves sobre o pesquisar... talvez
compactuo da tua angústia, pois a pesquisa, parece envolver uma devolutiva para a
sociedade... e parece que estamos dizendo que "vamos nos devolver melhores"
rsrsrsr é o exercício esperitual dos estóicos que se anuncia como formação? E
podemos assumir isso? Nos educamos para sermos educadores que, não ensinam
como educar, mas como se autoeducar? Carol, acho que essa é uma boa conversa!
Acho que essa troca é um verdadeiro pensar junto!
espero que te instigar com minhas questões tanto quanto me instigastes!

beijo
simo

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Caminhar como modo de vida

Anexo B - Conversa com Juliano Araujo

Transcrição: Carolina Fonseca de Oliveira


Data: ANO 2018
Carolina: - Então Juliano, espero que você possa me ajudar aí (risos). Na verdade,
são perguntas muito simples. Na verdade, que eu já tinha te feito uma vez que a gene saiu
de barco, né. Uma pergunta é assim: É... como que você sabe pra onde, por onde navegar,
se você não é guiado por uma bússola e nem um dispositivo ali, e nem por um mapa. Eu sei
que você conhece a região, mas, por exemplo, se tiver a noite, você também vai saber
navegar por aí, né, com certeza, então como que você faz pra saber a sua localização, pra
saber por onde você tem que navegar, sem ser guiado por um mapa ou por uma bússola.
Um mapa acho que não adiante muito, né. Não sei (risos). Por uma bússola.
- E a outra pergunta que eu tinha te feito também, você tinha me respondido, essa
pergunta que eu te fiz você me respondeu, mas eu só lembro de você ter respondido que
conhecia o lugar, né. Já conhecia Paraty, as ilhas e tudo mais, então você já sabia o trajeto,
mas você também respondeu uma outra coisa também que eu não me lembro, por isso que
eu perguntei de novo. E a outra pergunta é, eu lembro que eu te perguntei... por exemplo,
tava vindo duas, três escunas e a gente tava indo, né. Tipo, indo em direção a Paraty com o
barco Pelézinho e tava vindo acho que umas duas ou três escunas, aí eu perguntei: como
que vocês sabem pra onde cada embarcação tem que ir pra ninguém bater em ninguém, já
que não tem uma... tipo, na estrada é fácil, existe a pista da esquerda e uma da direita, uma
que vai e outra que vem, mas no mar, como é que vocês fazem pra saber isso, né. Quando tá
vindo outras embarcações na sua direção, qual direção cada uma tem que ir? Como é que
faz pra saber isso?
Juliano: - Certo. Então, vamos a primeira pergunta. Aqui em Paraty a gente sempre
navega por visibilidade. Tem mapa sim e mapa é muito importante, inclusive é uma
exigência da marinha, mas pra gente não serve aqui. O mapa que eles exigem, o mapa do
marinheiro chama carta náutica. Aí tem curso pra você aprender a traçar rumo com
compasso, régua, essas coisas, com bússola. Aí é outro tipo de navegação, não é a nossa
daqui. A nossa daqui, por conta da gente já conhecer tudo, chama-se navegação por
visibilidade. A gente vai pra onde a gente tá vendo. Se sair fora da costa, por exemplo e
pegar mar aberto, aí essa navegação já não serve. Aí você tem que ter uma bússola,
realmente, ou você tem que saber navegar pelas estrelas. Você perguntou sobre navegar à
noite. A noite aqui também a gente continua navegando por visibilidade, porque tem as
luzes e tal, né. E com noite clara dá pra ver também as ilhas, mas aí tem a navegação pelas
estrelas, por bússola, mas não é o nosso caso aqui.
- Não lembro se o nome exato é por visibilidade ou por referência. Fiquei em dúvida
agora. Sei que tem um tipo de navegação por referência mesmo. Não sei se tem os dois,
entendeu?! Mas é uma navegação visual mesmo, essa que a gente faz aqui. Aí navegação
por referência no caso seria à noite também... alguma luz, como eu disse... Esses dias
aconteceu uma situação inusitada que fechou o tempo, começou a chover muito e não dava
pra ver nada na frente. A visibilidade estava no máximo cinco metros e não dava pra ver
ilha nenhuma. Aí um monte de gente se perdeu. Se tivesse uma bússola aqui, não ia
acontecer isso. Não aconteceu nada com o pessoal porque a chuva parou em 15 minutos,
mas aí cada barco viu que estava fora do rumo, só que eu não errei o rumo nesse dia porque
eu vi que tava um ventinho e eu fui acompanhando o vento. Sempre que o vento tivesse do
meu lado, no caso, tava no meu lado esquerdo do barco, que a gente não chama de lado
esquerdo, mas de bombordo, enquanto o vento estivesse no meu bombordo ali, essa era a
minha referência, eu sabia que estava no rumo certo. Se o vento começasse a cair muito de
frente ou muito pra trás ali, eu saberia que tinha mudado de rumo.
- Em relação a segunda pergunta, tem um código, um livro, né, oficial,
disponibilizado pela marinha, também, outro item de obrigatoriedade nas embarcações e
que se fiscaliza, que chama Ripeam, que diz respeito as regras e normas de ultrapassagem
nas embarcações. E aí tem um código. Se você puder pesquisar ele na internet, talvez você

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Carolina Fonseca de Oliveira

consiga alguma coisa. Aí tem lá as preferências, né. Aí, geralmente assim, o que eu posso te
adiantar caso você não consiga achar, mas acho que você consegue sim na pesquisa lá, é que
quem é avistado pelo boreste tem a preferência, no caso, né. Você tá navegando, aí vem uma
embarcação do seu lado direito, aí é mais ou menos igual ao carro, tá vindo uma navegação
do seu lado direito e você tá avistando ela pelo seu boreste, então a preferência é dela. Você
tem que passar por trás dela, nunca pela frente. Você nunca pode cruzar na frente dela que
se bater você vai estar errado. Só que mesmo quem no mar tem preferência, sempre tem
que ficar atento. Nunca pode assim, achar que as preferências é sempre dele, porque aí
existem as exceções, pois a embarcação pode estar desgovernada, pode ter acontecido a
mesma coisa com o marinheiro, então sempre predomina o bom senso. Mas o livrinho de
regra aí se chama Ripeam.

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