Você está na página 1de 5

a desqualificação dos filhos ilegítimos limitavam o número dos herdeiros poten - — e contrariamente ao ritual ainda praticado até o século

icado até o século v, antes da institui -


ciais e facilitavam urna melhor gestão dos patrimônios, assim como, em conse - ção do apadrinhamento —, rigorosamente 'excluídos do rito batismal, que asse-
quência, uma maior solidez das topolinhagens. Essas regras, sem dúvida incô - gura seu nascimento social e sua regeneração na graça. Nessa ocasião, eles
modas enquanto a aristocracia ainda não se encontrava inteiramente desligada devem ceder lugar aos pais espirituais, padrinhos e madrinhas, que seguram a
de suas formas anteriores de organização, mesmo sendo individualmente fasti - criança sobre a pia batismal, pronunciando, no lugar dela, as palavras rituais,
diosas, favoreciam, em uma época de desenvolvimento produtivo e demográfi co, dando-lhe seu nome e apresentando-se como garantia de sua educação cristã.
as novas estruturas de dominação fundadas no encelulamento dos domina dos e Essa substituição dos pais carnais pelos pais espirituais no momento do batis -
na territorialização dos dominantes. mo, que manifesta a indignidade dos primeiros de participarem da parte mais
No geral, a intervenção da Igreja é bem mais constritiva e decisiva no que nobre da reprodução dos membros da comunidade, torna sensível a todos a
concerne às regras de aliança, enquanto o sistema de filiação parece uma ques tão preeminência do parentesco espiritual e a desvalorização do parentesco carnal.
menos relevante, mesmo se ele é afetado pelo contragolpe da generalização do O papel do padrinho na educação religiosa da criança é, na maior parte do
modelo clerical do casamento. Dessa maneira, o clero pretende controlar a tempo, teórico, de acordo com os princípios que prescrevem sua intervenção
reprodução física da sociedade, ao mesmo tempo que se impõe de modo deter - unicamente no caso de os pais faltarem. De resto, em certos meios, os pais pare -
minante sobre a organização da classe aristocrática, sua rival e sua cúmplice na cem procurar menos padrinhos para seus filhos do que compadres para si mes -
obra de dominação social. Mas, se o clero regula a prática de laços dos quais mos, como se depreende dos estudos de Christiane Klapisch-Zuber. O campa -
ele próprio se subtrai, o parentesco espiritual é mais essencial ainda para defi - drio permite, com efeito, estabelecer uma relação horizontal, pensada em
nir seu próprio lugar e a preeminência que reivindica. termos de amizade e de fraternidade, que alarga o círculo dos aliados e é susce -
tível de apaziguar tensões sociais ou políticas. No século vt, os reis merovíngios
já utilizam o compadrio para pôr fim a suas lutas fratricidas e restaurar entre
ASOCIEDADE CRISTÃ COMO eles relações pacificas. Em outros contextos, o compadrio conserva uma dimen -
REDE DE PARENTESCO ESPIRITUAL são mais vertical e sobrepõe-se às relações de clientelismo, por exemplo, na
Florença do fim da Idade Média: ter como compadre um rico comerciante sig -
ag
nifica beneficiar-se de sua proteção e, ao mesmo tempo, integrar-se à sua clien tela
a)
Não seria possível estudar as estruturas medievais do parentesco sem insistir, 1: política e econômica. Num caso como noutro, é sem dúvida porque ele per mitia
5 multiplicar os laços de solidariedade e reforçá-los por um caráter
seguindo Anita Guerreau-Jalabert, sobre a importância dos laços de parentesco
espiritual, que constituem um de seus aspectos mais originais. o sacralizado que o parentesco espiritual gozou de tamanho favor entre os laicas.
E
o Não se poderia, portanto, subestimar a importância do apadrinhamento, em
c.)
(17,
razão de seu papel no ritual batismal e de seu lugar eminente na economia geral
Parentesco batismal, paternidade de Deus e maternidade da Igreja do sistema de parentesco. É o que confirma o desenvolvimento das interdições
a)
matrimoniais por causa do parentesco espiritual. Se as proibições principais —
a)
Uma parte essencial desses laços é urdida pelo batismo. Além de sua função de o entre padrinho e afilhada, madrinha e afilhado, compadre e comadre — são esta -
purificação indispensável para alcançar a salvação pessoal, esse rito fundamen tal
-
c, O belecidas desde o Código justiniano, em 530, ou pouco depois, outras são acres -
C
marca o verdadeiro nascimento social do indivíduo. É o momento em que ele centadas no Ocidente no século mi (por exemplo, entre o afilhado e a filha ou
recebe seu nome e se torna membro da comunidade dos fiéis. Sem batismo, cos entre a afilhada e o filho de uma mesma pessoa; entre os cônjuges daqueles que
nada de identidade, nada de existência aqui embaixo, e nada de salvação no são unidos pelo compadrio). Assim como para o parentesco carnal, esta é a
a
além. É então que se instituem os mais ativos laços de parentesco espiritual, época em que a Igreja enuncia as regras mais constritivas, a fim de reforçar sua
que são o apadrinhamento e o compadrio (que une os pais carnais e os pais espi - posição de árbitro das práticas matrimoniais.
rituais). Tendo a responsabilidade do nascimento físico da criança, em virtude É também pelo batismo que se estabelece a filiação dos homens em rela -
do qual o pecado original lhe é transmitido, os pais carnais são, na Idade Média ção a Deus. A criança, nascida de seus pais no pecado original, renasce da água

456 jérõme Baschet A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 457


lustral como um filho de Deus. Ela torna-se, então, um filho de Deus, o que não
era em virtude de seu nascimento: o batismo é uma adoção divina. Com efeito,
as concepções medievais fazem da paternidade de Deus não uma característica
de todos os homens -, mas um privilégio somente dos batizados. É verdade que
Deus criou todos os homens à sua imagem e semelhança (Gen 1, 26), mas não
é em virtude dessa relação que eles são seus filhos, de modo que essa semelhan ça,
pervertida pelo pecado original, só pode ser restaurada pelo batismo. Assim, a
paternidade de Deus não define toda a humanidade: historicamente inaugu rada
pela Encarnação do Filho e transmitida a cada um pelo batismo, ela marca o
estatuto específico dos cristãos e os distingue dos outros homens, excluídos da
graça e da salvação.
Através do batismo, o cristão torna-se também filho da Mãe-Igreja. Esta
figura, que não tem nenhum papel no Novo Testamento, vê sua importância
ampliar-se à medida que se afirma a instituição eclesial. Ela não para de jogar
com a ambiguidade que lhe confere a noção de ecclesia, situada entre sua acep-
ção original de comunidade de todos os cristãos e a tendência ulterior que a
identifica com seus membros clericais (primeira parte, capítulo m). Mesmo se
a segunda acepção se impõe a partir do século tx e, mais ainda, do século xI, a
primeira jamais desaparece totalmente. Na época que nos ocupa aqui, a
Mãe--Igreja é a personificação da instituição ou da comunidade, jogando com
essa indefinição em beneficio da primeira. A maternidade da Igreja aparece,
então, como a contrapartida da paternidade de Deus, tão importante como esta
última. Agostinho já afirmava: "A Igreja é urna mãe para nós. É dela e do Pai que
nascemos espiritualmente", e, sublinhando ainda mais seu caráter Indissociável:
"Ninguém poderá encontrar junto a Deus uma acolhida paternal se menospre za
sua mãe, a Igreja". Assim como Deus é Paí, a Igreja é verdadeiramente Mãe, pois
ela faz nascer o cristão no batismo. As pias batismais são o órgão desse nascimento,
e Agostinho, seguido pela tradição patrística e litúrgica, qualifica-as de "matriz da
Mãe-Igreja". A inscrição do batistério de Latrão, de cerca de 440, precisa que suas
águas são fecundadas pelo Espírito Santo, de modo que "a Mãe- -Igreja
concebe nestas águas o fruto virginal que ela concebeu pelo sopro de Deus".
45. A Mãe-Igreja aleitando os fiéis, 1150-70 (desenho segundo os Comentários dos Evangelhos de são
Jcrônimo, Stiftsbibliothek, Engelsberg, ms. 48, fl. 103v.). Tais enunciados decalcam a procriação carnal a fim de melhor espiritualizá-la: é
A Igreja é a mãe de todos os fiéis, a quem concebe nas águas do batismo e a quem nutre com a palavra divina que o batismo deve ser concebido como um verdadeiro parto espiritual. Atribui-se
e com o pão da vida, Não há, então, nada de deslocado, para um espírito impregnado do discurse clerical, em
mostrar a personificação da Igreja oferecendo seus seios aos fiéis, pois tal imagem apenas exalta sua generosa também à Igreja uma função nutridora que reforça seu estatuto maternal.
maternidade.
Como indica Clemente de Alexandria, a Igreja "atrai para si os seus filhos e
aleita-os com um leite sagrado, o Logos dos lactentes". E se, por vezes, as
imagens figuram essa relação mostrando a Igreja oferecendo seus seios aos fiéis
(figura 45, na p. 458), é porque ela os nutre transmitindo o princípio divi no que
permite crescer na fé através da palavra e do dom da eucaristia, alimen-

ACIVILIZAÇÃO FEUDAL 4S9


to espiritual e pão da vida. Enfim, a função maternal da Igreja declina-se em as posições de abade à frente de seu monastério e de papa no cume da
múltiplos temas que a descrevem como uma mãe que cobre seus filhos de cui - instituição eclesial. Do mesmo modo, os laços de dependência entre estabe -
dados e amor. Segundo são Bernardo, por exemplo, a Igreja "embala" os fiéis e lecimentos monásticos podem ser concebidos como relações de filiação espiri -
os protege sob suas asas. tual, por exemplo, quando se evoca a "descendência de Claraval" ou de outras
abadias cistercienses. São igualmente os laços de parentesco espiritual que são
mostrados, no século xv, pelas árvores monásticas, que crescem a partir do ven tre
A paternidade dos clérigos: uni principio hierárquico de um fundador de ordem, como são Bento ou são Domingo, e cujos ramos
abrigam a multidão de seus discípulos: embora essas representações se pareçam
Definir a posição do clero nessa rede não é fácil em virtude da diversidade dos fortemente com a árvore de Jessé e com as primeiras imagens de genealogia
estatutos em seu seio (posições hierárquicas; ordens menores/maiores; secula- familiar sob forma de árvore que aparecem então, é claro que elas não mostram
res/regulares; tradicionais/novos) e das situações que se inscrevem na fronteira absolutamente o parentesco carnal do santo, mas exprimem a amplitude de sua
fecundidade espiritual através da exuberância da árvore que ele faz nascer (de
que separa clérigos e laicos (clérigos tonsurados, mas não ordenados, conversos,
resto, esse tipo de figuração atravessa o Atlântico na época colonial e aparece
ofertados e membros das ordens terceiras). Mas, como se viu, a divisão entre
particularmente em Santo Domingo de Oaxaca, no México). Enfim, se a posi ção
clérigos e laicos, asperamente defendida, permanece socialmente determinan te.
paternal dos clérigos é contestada pelas heresias e, por vezes, pela pressão dos
Portanto, as análises seguintes serão concentradas nos indivíduos, cujo fato de
laicos, ela conhece uma evolução no próprio interior da Igreja. Assim, os
pertencer ao clero é manifestado pela realização de um ritual ordenação,
membros das ordens mendicantes fazem-se chamar "frades"" (frater, fratello,

aquisição do hábito ou votos — e por um modo de vida discriminante essen- —

fray), inclusive pelos laicos, sinal de uma inflexão- menos hierárquica, embora
cialmente, o celibato (de resto, é a aparição, no século In, de um rito de orde -
rapidamente retomada e atenuada. Mas, a despeito dessas nuanças e dessas
nação, conferindo um papel exclusivo na celebração da eucaristia, que consti tui
evoluções, a dualidade pais/filhos equivale, no essencial, à dualidade clérigos/
a origem da separação entre clérigos e laicos).
laicos. Não apenas exprime a hierarquia estabelecida entre eles, mas também
Como os demais cristãos, os clérigos são filhos de Deus e da Igreja. Sua
constitui uma justificativa desta. A paternidade espiritual dos clérigos é o enun -
função confere, entretanto, uma posição específica na rede de parentesco: eles ciado e a garantia de sua autoridade, ainda mais porque ela se articula à prática
também são pais. É através do sacramento batismal que o estatuto paternal do do celibato. Como foi visto, o clérigo subtrai-se aos laços do parentesco carnal,
pai se manifesta mais claramente. Ele exerce, então, o papel de representante e é através dessa renúncia que ele adquire a faculdade de tornar-se espiritual -
de Deus na terra; ou melhor, ele permite a realização do ato de parir por Deus mente pai. Agostinho, apresentando um novo bispo ao povo, já afirmava: "Ele
e pela Igreja, em virtude de seu estatuto de lugar-tenente de Deus e de mem bro não quis ter filhos segundo a carne, a fim de tê-los mais ainda segundo o espí -
da Igreja-instituição. É verdade que a paternidade dos sacerdotes não pode ria rito". Tal configuração (retração do parentesco carnal/posição de pai espiritual)
pretender a mesma dignidade que a de Deus, entretanto ela é o agente indis- funda a dominação social do clero sobre uma dupla hierarquia (espiritual/car -
pensável à sua propagação (o papel eminentemente ativo do sacerdote é nal; pai/filho).
sublinhado pela evolução da liturgia batismal, pois, no Ocidente, a fórmula "eu
A posição do clero parece igualmente caracterizada por um outro elemen to
te batizo" supera o gesto passivo, mantido em Bizâncio, pelo qual o celebrante
específico: uma união matrimonial espiritual. Assim, as monjas são as "noi vas
anuncia que o fiel "é batizado em nome de Deus". Na sociedade medieval, os
de Cristo", e o bispo esposa a sua igreja (quer dizer, sua diocese), em um ritual
sacerdotes, únicos habilitados a conferir os sacramentos, são os mediadores
marcado pela entrega do anel. Como o bispo é também filho da Igreja, ao mesmo
obrigatórios do parentesco divino. É através deles que se instaura, para os cris -
título que todos os batizados, a conjunção de uma relação de filiação e
tãos, a paternidade de Deus e a maternidade da Igreja.
Os títulos empunhados dos clérigos manifestam claramente essa paterni -
33. Frères, no original francês, que corresponde tanto a "irmãos" como a "frades". (N. TI
dade: abade (de "abbas", pai) e, sobretudo, papa (papa, papatus, termos utilizados
por todos os bispos e, depois, reservados somente ao pontífice romano a par tir do
século xi). É onipresente esse modo de tratamento dos clérigos: pater, meu
padre... Além disso, a relação de paternidade não exprime somente a dua lidade
entre clérigos e laicos, mas também as hierarquias no seio do clero, como lembram
de uma aliança matrimonial permitiu que se falasse, aqui, de "incesto simbóli - amplitude, na escala da cristandade, tanto nos campos como nas cidades (e que
co", e que se definisse essa infração como um diferencial que sacraliza, que jus - está destinado a prolongar-se no Novo Mundo, sob formas parcialmente origi -
tifica a posição dominante do clero (Anita Guerreau-Jalabert). Entretanto, o nais). Segundo os lugares e as épocas, as confrarias podem tomar formas dife -
casamento com a Igreja concerne apenas aos bispos (e, sobretudo, ao papa, que rentes, privilegiando tanto o aspecto devocional como a organização corporativa
é o único a esposar a Igreja universal). Além do mais, esse ritual, que se esboça de um ofício ou de um grupo profissional. Todas têm, entretanto, importantes
a partir do século tx e se afirma no século mi, não é o fundamento do poder espi - pontos em comum. São associações de ajuda mútua e de devoção, livremente
ritual do bispo, recebido pela imposição das mãos ou pela unção, símbolos da estabelecidas, que se empenham para tornar ativos os laços de amor fraternal
infusão do Espírito Santo. Essa relação de aliança não parece, então, exercer um entre seus membros. Seu próprio nome (confraternitas, em latim; hermandad,
papel determinante na definição do estatuto do clero, mas constitui, antes, um ca - em castelhano), como o de "compadres", dado a seus participantes, indica bem
ráter suplementar, próprio ao topo da hierarquia eclesiástica. O essencial, para que elas se baseiam na noção de irmandade espiritual alargada, característica
definir o clero como grupo dominante no seio de uma sociedade dual, seria das concepções cristãs do parentesco.
muito mais o caráter duplo do celibato e da paternidade espiritual. É aí que se
A unidade das confrarias manifesta-se pela devoção comum ao protetor do
encontra o diferencial que sacraliza e que distingue os clérigos, associando
grupo, um santo padroeiro ou a Virgem (figura 25, na p. 249), por formas de soli -
renúncia e poder simbólico.
dariedade concreta, notadamente a responsabilidade dos funerais e a prece cole -
tiva para os membros defuntos, ou, ainda, por atividades ritualizadas, como o ban -
quete anual em que, em torno do alimento partilhado, se realiza simbolicamente
Irmandade de todos os cristãos e desenvolvimento das confrarias a unidade da corporação. A instituição das confrarias permitiu, assim, unia orga -
nização parcialmente autônoma dos laicos, embora sempre sob o olhar vigilante
Uma outra relação de parentesco espiritual concerne a todos os batizados: dos clérigos. Ela é, sobretudo, um instrumento eficaz de integração dos laicas no
sendo filhos de Deus e da Igreja, os cristãos são irmãos entre si. Essa irmanda - seio das estruturas sociais e ideológicas desenhadas pela Igreja. Poderosos meios
de generalizada 'é, também ela, instituída pelo batismo, de modo que caracteri - de integração, as confrarias com frequência reduplicam as estruturas paroquiais e
za os membros da cristandade e traça uma linha de separação que exclui os são inteiramente fundadas sobre as regras do parentesco espiritual, cuja elabora ção
outros homens. Poderoso vetor de unidade da cristandade e de concórdia social, e controle cabem à Igreja. No geral, a irmandade generalizada dos cristãos aparece
essa relação é muitas vezes evocada pelos clérigos, em particular quando é como uma forma ideal e não realizada do parentesco espiritual. A comu nidade
necessário apaziguar os conflitos e pregar a reconciliação. É verdade que, na ritual do batismo lhe confere unia existência objetiva, que reitera a participação no
terra, esse laço permanece largamente virtual, ineficaz. Ele se apaga, impoten - sacramento eucarístico; mas o laço de amor espiritual que deveria caracterizá-la
te na maior parte do tempo, diante da lógica das dominações sociais e das regras não chega a se manifestar plenamente. Em revanche, o fato de per tencer a uma
familiares. A irmandade generalizada dos cristãos é um horizonte parcialmente confraria cria um circulo de parentesco espiritual, tornado efetivo por ritos
inacessível aqui embaixo, cuja plena realização é adiada para o além. apropriados e por formas de ajuda mútua. A confraria é — para retornar uma noção
Certos laços sociais são, entretanto, suscetíveis de ativar essa irmandade de Pierre Bourdieu — a parte prática, "mantida em funcionamento", da
latente. O fato de os clérigos pertencerem à Igreja, a despeito das hierarquias irmandade espiritual de todos os batizados.
que a estruturam, torna mais ativo esse laço, muito particularmente no seio de Se se considera, agora, o conjunto das relações espirituais mencionadas aqui,
uma comunidade monástica. Ele pode ser estendido aos laicos que, através de suas vê-se que a conjunção do parentesco carnal e do parentesco espiritual engendra
doações, notadamente a Cluny, são integrados à familia monástica ou, ao menos, alguns paradoxos aparentes. Agostinho nota que o filho que chega ao episcopado
são associados a ela em suas preces. O compadrio é, igualmente, uma maneira torna-se pai de seu pai, enunciado paradoxal que se liga ao fato de que o laço espi-
de tornar eficaz a irmandade de todos os batizados. A prática das esmolas aos ritual inverte o laço carnal. Ilustrando um outro caso, Agostinho sublinha que seus
pobres, direta ou por intermédio da Igreja, é uma outra manifestação sua, emi - próprios pais carnais se tomaram irmãos espirituais ("Eles, que foram meus pais, e
nentemente característica da sociedade medieval. Enfim, o desenvolvimento
das confrarias, a partir do século xn, e sobretudo do século mi, permite alargar
a consciência prática dessa fraternidade. Trata-se de um fenômeno de grande
meus irmãos em vós, nosso Pai, e na Igreja católica, nossa mãe"). Dessa vez, o laço deiro Deus de verdadeiro Deus, consubstanciai ao Pai, engendrado e não cria -
espiritual não inverte o laço carnal, mas iguala uma relação hierárquica. O paren - do" (enquanto o anátema é lançado sobre aqueles que afirmam que "antes de
tesco espiritual projeta na horizontal um laço de natureza vertical. Assim, a super - ser engendrado, ele não existia", ou que "o filho de Deus nasceu"). O Filho deve,
posição dos laços espirituais aos laços carnais, através de contorção ou reversão, com efeito, ser engendrado, pois, do contrário, não seria filho; mas ele não pode
aparece como um instrumento eficaz de manipulação do parentesco. Enfim, a ser criado, pois seria uma criatura e não divino ao mesmo título que o Criador.
abrangência simbólica desses laços é considerável, pois eles contribuem para defi nir A diferença entre criação e engendramento é, então, decisiva para manter junto
a armação ideológica da sociedade. A irmandade de todos os cristãos enuncia a o que os contestadores arianos — corno também os pagãos e os judeus con- —

unidade da cristandade, enquanto a paternidade espiritual dos clérigos funda a sideram inconciliável (a possibilidade de conceber Cristo como Filho e, ao
dualidade hierárquica que, no seio desse conjunto unificado, os separa dos laicos. mesmo tempo, totalmente igual ao Pai).
Uma relação de paternidade, fundada sobre o engendramento, inscreve -
se, assim, no seio do núcleo divino, entre as figuras da Trindade, diferentes em
O PARENTESCO DIVINO,
suas pessoas mas iguais em sua essência, a ponto de que nenhuma pode se
PONTO FOCAL DO SISTEMA
vangloriar de preeminência, qualquer que seja ela. Entre o Pai e o Filho exis -
tem, a um só tempo, verdadeira filiação e perfeita igualdade. Ou seja, uma equa-
ção "Pai = Filho", na qual a igualdade é, ao mesmo tempo, hierárquica e essen -
No coração mesmo do dogma, quer dizer, das representações que fundam a cial, mas que nem por isso supõe uma identidade entre as pessoas. O dogma
visão de mundo e a organização da sociedade cristã, urde-se um novelo particular -
trinitário produz, assim, o modelo de uma relação paradoxal, em total contra -
mente denso de relações de parentesco. Um laço de parentesco inscreve-se,
dição com os elementos da filiação na ordem carnal, pois ele iguala uma rela -
com efeito, entre as duas primeiras pessoas da Trindade, o Pai e o Filho. A ques tão
ção que, normalmente, é hierárquica. Mais precisamente, esse modelo nega o
do parentesco situa-se, então, no centro da definição do Deus cristão, mesmo
que a filiação define aqui embaixo, quer dizer, seu caráter ordenado. Na espécie
se o estatuto do Espírito Santo incita a sublinhar que nem tudo, nesse sistema, é
pensado em termos de parentesco (assimilado à efusão da graça e da inspiração humana, composta de seres mortais, essa relação supõe urna ordem, uma
divinas, o Espírito Santo é o agente de urna expansão do amor entre os homens sucessão das gerações. Ao contrário, o parentesco trinitário, unindo pessoas
Deus e entre eles próprios: ele é uma potência de conjunção e de concórdia, divinas eternas, caracteriza-se por um modelo de filiação sem relação de gera -
tanto entre as criaturas como no seio da Trindade, da qual ele assegura a coesão, ções e sem subordinação.
pois Tomás de Aquíno qualifica explicitamente o Espírito de "nó entre o Pai e o O dogma trinitário é um paradoxo insustentável (tanto no que concerne à
Filho"). junção da filiação e da igualdade como pela delicada conciliação do "um" e do
"três"). Desde cedo, foi diante de dois perigos opostos que a ortodoxia teve
de se definir: de um lado, o arianismo, que só admite a divindade do Pai e nega
O Filho igual ao Pai: os paradoxos da Trindade a do Filho; de outro, o sabelianismo ou o priscilianismo dos séculos III e iv, acusa-
dos de confundir o Pai, o Filho e o Espírito Santo em uma só pessoa. Por cami -
A natureza da filiação entre Pai e Filho constitui urna das principais questões nhos inversos, tende-se, nos dois casos, à retomada de um monoteísmo estrito,
das controvérsias trinitárias. Enquanto Árius (256-336), sacerdote. em enquanto a ortodoxia procura sua via entre os perigos, para fundar o paradoxo
Alexandria no início do século IV, nega a plena divindade de Cristo e reconhe ce de um Deus único em três pessoas (uno em sua essência e trino na diversidade
o Pai como único Deus verdadeiro, a ortodoxia, que se forma em reação ao das pessoas). Como se viu, as acusações de heresia não demoram a reaparecer,
arianismo, deve conceber um laço entre o Pai e o Filho que seja uma verdadei ra apesar das decisões do Concílio de Niceia: o nestorianismo desafia, na sequên cia
filiação e que, todavia, assegure sua igualdade divina. Decisivo a esse propó sito, o do arianismo, a lógica da Encarnação, separando radicalmente as duas naturezas,
Concílio de Niceia, em 325, seguido por outros concílios ecumênicos do século divina e humana, de Cristo; no outro extremo, o monofisismo afirma a natureza
nr, proclama o Credo trinitário, em virtude do qual o Filho é dito "verda- única de Cristo, indissociavelmente divino e humano.

464 Térôme Raschet A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 465

Você também pode gostar