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fray), inclusive pelos laicos, sinal de uma inflexão- menos hierárquica, embora
cialmente, o celibato (de resto, é a aparição, no século In, de um rito de orde -
rapidamente retomada e atenuada. Mas, a despeito dessas nuanças e dessas
nação, conferindo um papel exclusivo na celebração da eucaristia, que consti tui
evoluções, a dualidade pais/filhos equivale, no essencial, à dualidade clérigos/
a origem da separação entre clérigos e laicos).
laicos. Não apenas exprime a hierarquia estabelecida entre eles, mas também
Como os demais cristãos, os clérigos são filhos de Deus e da Igreja. Sua
constitui uma justificativa desta. A paternidade espiritual dos clérigos é o enun -
função confere, entretanto, uma posição específica na rede de parentesco: eles ciado e a garantia de sua autoridade, ainda mais porque ela se articula à prática
também são pais. É através do sacramento batismal que o estatuto paternal do do celibato. Como foi visto, o clérigo subtrai-se aos laços do parentesco carnal,
pai se manifesta mais claramente. Ele exerce, então, o papel de representante e é através dessa renúncia que ele adquire a faculdade de tornar-se espiritual -
de Deus na terra; ou melhor, ele permite a realização do ato de parir por Deus mente pai. Agostinho, apresentando um novo bispo ao povo, já afirmava: "Ele
e pela Igreja, em virtude de seu estatuto de lugar-tenente de Deus e de mem bro não quis ter filhos segundo a carne, a fim de tê-los mais ainda segundo o espí -
da Igreja-instituição. É verdade que a paternidade dos sacerdotes não pode ria rito". Tal configuração (retração do parentesco carnal/posição de pai espiritual)
pretender a mesma dignidade que a de Deus, entretanto ela é o agente indis- funda a dominação social do clero sobre uma dupla hierarquia (espiritual/car -
pensável à sua propagação (o papel eminentemente ativo do sacerdote é nal; pai/filho).
sublinhado pela evolução da liturgia batismal, pois, no Ocidente, a fórmula "eu
A posição do clero parece igualmente caracterizada por um outro elemen to
te batizo" supera o gesto passivo, mantido em Bizâncio, pelo qual o celebrante
específico: uma união matrimonial espiritual. Assim, as monjas são as "noi vas
anuncia que o fiel "é batizado em nome de Deus". Na sociedade medieval, os
de Cristo", e o bispo esposa a sua igreja (quer dizer, sua diocese), em um ritual
sacerdotes, únicos habilitados a conferir os sacramentos, são os mediadores
marcado pela entrega do anel. Como o bispo é também filho da Igreja, ao mesmo
obrigatórios do parentesco divino. É através deles que se instaura, para os cris -
título que todos os batizados, a conjunção de uma relação de filiação e
tãos, a paternidade de Deus e a maternidade da Igreja.
Os títulos empunhados dos clérigos manifestam claramente essa paterni -
33. Frères, no original francês, que corresponde tanto a "irmãos" como a "frades". (N. TI
dade: abade (de "abbas", pai) e, sobretudo, papa (papa, papatus, termos utilizados
por todos os bispos e, depois, reservados somente ao pontífice romano a par tir do
século xi). É onipresente esse modo de tratamento dos clérigos: pater, meu
padre... Além disso, a relação de paternidade não exprime somente a dua lidade
entre clérigos e laicos, mas também as hierarquias no seio do clero, como lembram
de uma aliança matrimonial permitiu que se falasse, aqui, de "incesto simbóli - amplitude, na escala da cristandade, tanto nos campos como nas cidades (e que
co", e que se definisse essa infração como um diferencial que sacraliza, que jus - está destinado a prolongar-se no Novo Mundo, sob formas parcialmente origi -
tifica a posição dominante do clero (Anita Guerreau-Jalabert). Entretanto, o nais). Segundo os lugares e as épocas, as confrarias podem tomar formas dife -
casamento com a Igreja concerne apenas aos bispos (e, sobretudo, ao papa, que rentes, privilegiando tanto o aspecto devocional como a organização corporativa
é o único a esposar a Igreja universal). Além do mais, esse ritual, que se esboça de um ofício ou de um grupo profissional. Todas têm, entretanto, importantes
a partir do século tx e se afirma no século mi, não é o fundamento do poder espi - pontos em comum. São associações de ajuda mútua e de devoção, livremente
ritual do bispo, recebido pela imposição das mãos ou pela unção, símbolos da estabelecidas, que se empenham para tornar ativos os laços de amor fraternal
infusão do Espírito Santo. Essa relação de aliança não parece, então, exercer um entre seus membros. Seu próprio nome (confraternitas, em latim; hermandad,
papel determinante na definição do estatuto do clero, mas constitui, antes, um ca - em castelhano), como o de "compadres", dado a seus participantes, indica bem
ráter suplementar, próprio ao topo da hierarquia eclesiástica. O essencial, para que elas se baseiam na noção de irmandade espiritual alargada, característica
definir o clero como grupo dominante no seio de uma sociedade dual, seria das concepções cristãs do parentesco.
muito mais o caráter duplo do celibato e da paternidade espiritual. É aí que se
A unidade das confrarias manifesta-se pela devoção comum ao protetor do
encontra o diferencial que sacraliza e que distingue os clérigos, associando
grupo, um santo padroeiro ou a Virgem (figura 25, na p. 249), por formas de soli -
renúncia e poder simbólico.
dariedade concreta, notadamente a responsabilidade dos funerais e a prece cole -
tiva para os membros defuntos, ou, ainda, por atividades ritualizadas, como o ban -
quete anual em que, em torno do alimento partilhado, se realiza simbolicamente
Irmandade de todos os cristãos e desenvolvimento das confrarias a unidade da corporação. A instituição das confrarias permitiu, assim, unia orga -
nização parcialmente autônoma dos laicos, embora sempre sob o olhar vigilante
Uma outra relação de parentesco espiritual concerne a todos os batizados: dos clérigos. Ela é, sobretudo, um instrumento eficaz de integração dos laicas no
sendo filhos de Deus e da Igreja, os cristãos são irmãos entre si. Essa irmanda - seio das estruturas sociais e ideológicas desenhadas pela Igreja. Poderosos meios
de generalizada 'é, também ela, instituída pelo batismo, de modo que caracteri - de integração, as confrarias com frequência reduplicam as estruturas paroquiais e
za os membros da cristandade e traça uma linha de separação que exclui os são inteiramente fundadas sobre as regras do parentesco espiritual, cuja elabora ção
outros homens. Poderoso vetor de unidade da cristandade e de concórdia social, e controle cabem à Igreja. No geral, a irmandade generalizada dos cristãos aparece
essa relação é muitas vezes evocada pelos clérigos, em particular quando é como uma forma ideal e não realizada do parentesco espiritual. A comu nidade
necessário apaziguar os conflitos e pregar a reconciliação. É verdade que, na ritual do batismo lhe confere unia existência objetiva, que reitera a participação no
terra, esse laço permanece largamente virtual, ineficaz. Ele se apaga, impoten - sacramento eucarístico; mas o laço de amor espiritual que deveria caracterizá-la
te na maior parte do tempo, diante da lógica das dominações sociais e das regras não chega a se manifestar plenamente. Em revanche, o fato de per tencer a uma
familiares. A irmandade generalizada dos cristãos é um horizonte parcialmente confraria cria um circulo de parentesco espiritual, tornado efetivo por ritos
inacessível aqui embaixo, cuja plena realização é adiada para o além. apropriados e por formas de ajuda mútua. A confraria é — para retornar uma noção
Certos laços sociais são, entretanto, suscetíveis de ativar essa irmandade de Pierre Bourdieu — a parte prática, "mantida em funcionamento", da
latente. O fato de os clérigos pertencerem à Igreja, a despeito das hierarquias irmandade espiritual de todos os batizados.
que a estruturam, torna mais ativo esse laço, muito particularmente no seio de Se se considera, agora, o conjunto das relações espirituais mencionadas aqui,
uma comunidade monástica. Ele pode ser estendido aos laicos que, através de suas vê-se que a conjunção do parentesco carnal e do parentesco espiritual engendra
doações, notadamente a Cluny, são integrados à familia monástica ou, ao menos, alguns paradoxos aparentes. Agostinho nota que o filho que chega ao episcopado
são associados a ela em suas preces. O compadrio é, igualmente, uma maneira torna-se pai de seu pai, enunciado paradoxal que se liga ao fato de que o laço espi-
de tornar eficaz a irmandade de todos os batizados. A prática das esmolas aos ritual inverte o laço carnal. Ilustrando um outro caso, Agostinho sublinha que seus
pobres, direta ou por intermédio da Igreja, é uma outra manifestação sua, emi - próprios pais carnais se tomaram irmãos espirituais ("Eles, que foram meus pais, e
nentemente característica da sociedade medieval. Enfim, o desenvolvimento
das confrarias, a partir do século xn, e sobretudo do século mi, permite alargar
a consciência prática dessa fraternidade. Trata-se de um fenômeno de grande
meus irmãos em vós, nosso Pai, e na Igreja católica, nossa mãe"). Dessa vez, o laço deiro Deus de verdadeiro Deus, consubstanciai ao Pai, engendrado e não cria -
espiritual não inverte o laço carnal, mas iguala uma relação hierárquica. O paren - do" (enquanto o anátema é lançado sobre aqueles que afirmam que "antes de
tesco espiritual projeta na horizontal um laço de natureza vertical. Assim, a super - ser engendrado, ele não existia", ou que "o filho de Deus nasceu"). O Filho deve,
posição dos laços espirituais aos laços carnais, através de contorção ou reversão, com efeito, ser engendrado, pois, do contrário, não seria filho; mas ele não pode
aparece como um instrumento eficaz de manipulação do parentesco. Enfim, a ser criado, pois seria uma criatura e não divino ao mesmo título que o Criador.
abrangência simbólica desses laços é considerável, pois eles contribuem para defi nir A diferença entre criação e engendramento é, então, decisiva para manter junto
a armação ideológica da sociedade. A irmandade de todos os cristãos enuncia a o que os contestadores arianos — corno também os pagãos e os judeus con- —
unidade da cristandade, enquanto a paternidade espiritual dos clérigos funda a sideram inconciliável (a possibilidade de conceber Cristo como Filho e, ao
dualidade hierárquica que, no seio desse conjunto unificado, os separa dos laicos. mesmo tempo, totalmente igual ao Pai).
Uma relação de paternidade, fundada sobre o engendramento, inscreve -
se, assim, no seio do núcleo divino, entre as figuras da Trindade, diferentes em
O PARENTESCO DIVINO,
suas pessoas mas iguais em sua essência, a ponto de que nenhuma pode se
PONTO FOCAL DO SISTEMA
vangloriar de preeminência, qualquer que seja ela. Entre o Pai e o Filho exis -
tem, a um só tempo, verdadeira filiação e perfeita igualdade. Ou seja, uma equa-
ção "Pai = Filho", na qual a igualdade é, ao mesmo tempo, hierárquica e essen -
No coração mesmo do dogma, quer dizer, das representações que fundam a cial, mas que nem por isso supõe uma identidade entre as pessoas. O dogma
visão de mundo e a organização da sociedade cristã, urde-se um novelo particular -
trinitário produz, assim, o modelo de uma relação paradoxal, em total contra -
mente denso de relações de parentesco. Um laço de parentesco inscreve-se,
dição com os elementos da filiação na ordem carnal, pois ele iguala uma rela -
com efeito, entre as duas primeiras pessoas da Trindade, o Pai e o Filho. A ques tão
ção que, normalmente, é hierárquica. Mais precisamente, esse modelo nega o
do parentesco situa-se, então, no centro da definição do Deus cristão, mesmo
que a filiação define aqui embaixo, quer dizer, seu caráter ordenado. Na espécie
se o estatuto do Espírito Santo incita a sublinhar que nem tudo, nesse sistema, é
pensado em termos de parentesco (assimilado à efusão da graça e da inspiração humana, composta de seres mortais, essa relação supõe urna ordem, uma
divinas, o Espírito Santo é o agente de urna expansão do amor entre os homens sucessão das gerações. Ao contrário, o parentesco trinitário, unindo pessoas
Deus e entre eles próprios: ele é uma potência de conjunção e de concórdia, divinas eternas, caracteriza-se por um modelo de filiação sem relação de gera -
tanto entre as criaturas como no seio da Trindade, da qual ele assegura a coesão, ções e sem subordinação.
pois Tomás de Aquíno qualifica explicitamente o Espírito de "nó entre o Pai e o O dogma trinitário é um paradoxo insustentável (tanto no que concerne à
Filho"). junção da filiação e da igualdade como pela delicada conciliação do "um" e do
"três"). Desde cedo, foi diante de dois perigos opostos que a ortodoxia teve
de se definir: de um lado, o arianismo, que só admite a divindade do Pai e nega
O Filho igual ao Pai: os paradoxos da Trindade a do Filho; de outro, o sabelianismo ou o priscilianismo dos séculos III e iv, acusa-
dos de confundir o Pai, o Filho e o Espírito Santo em uma só pessoa. Por cami -
A natureza da filiação entre Pai e Filho constitui urna das principais questões nhos inversos, tende-se, nos dois casos, à retomada de um monoteísmo estrito,
das controvérsias trinitárias. Enquanto Árius (256-336), sacerdote. em enquanto a ortodoxia procura sua via entre os perigos, para fundar o paradoxo
Alexandria no início do século IV, nega a plena divindade de Cristo e reconhe ce de um Deus único em três pessoas (uno em sua essência e trino na diversidade
o Pai como único Deus verdadeiro, a ortodoxia, que se forma em reação ao das pessoas). Como se viu, as acusações de heresia não demoram a reaparecer,
arianismo, deve conceber um laço entre o Pai e o Filho que seja uma verdadei ra apesar das decisões do Concílio de Niceia: o nestorianismo desafia, na sequên cia
filiação e que, todavia, assegure sua igualdade divina. Decisivo a esse propó sito, o do arianismo, a lógica da Encarnação, separando radicalmente as duas naturezas,
Concílio de Niceia, em 325, seguido por outros concílios ecumênicos do século divina e humana, de Cristo; no outro extremo, o monofisismo afirma a natureza
nr, proclama o Credo trinitário, em virtude do qual o Filho é dito "verda- única de Cristo, indissociavelmente divino e humano.