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Considerações sobre a terceira revolução industrial

TEMAS LIVRES FREE THEMES


e a força de trabalho em saúde em Natal *

Considerations on the third industrial revolution


and the health work force in Natal

Soraya Maria de Medeiros 1


Semíramis Melani Melo Rocha 2

Abstract The articulation among production Resumo A articulação entre modo de produção,
mode, social politics and health practices is estab- políticas sociais e práticas de saúde constitui-se o
lished as conducting wire of our inquiry press cut- fio condutor desta investigação: trabalho e traba-
ting: the work and the workers in health. The lhadores em saúde. A Terceira Revolução Indus-
Third Industrial Revolution unchained new ar- trial desencadeou novas articulações de processos
ticulations with the economical, political and so- econômicos, políticos e sociais, projetos de socie-
cial processes in world-wide ratios, the society dade, formas de organização de poder e de atores
projects, forms of organization, power and the so- sociais em proporções mundiais. A conformação
cial actors. This conformation defined by the new definida pela nova divisão mundial do trabalho
world-wide work division keeps a relation of un- mantém uma relação de força desigual entre o
equal force between developed countries group grupo dos países desenvolvidos e em desenvolvi-
and developing countries. Brazil lives this trans- mento. O Brasil também vivencia esse processo de
* Produção extraída formation process and has been implanting social transformação e vem implantando políticas so-
da tese apresentada ao politics with the neoliberal model characteristics. ciais com características do modelo neoliberal.
Programa de Doutorado
Interunidades das Escolas Such politcs have been motivating difficulties, in- Tais políticas têm causado dificuldades, injustiças
de Enfermagem de justices and social instability, constituting chal- e instabilidade social, constituindo desafios aos
Ribeirão Preto e São Paulo, lenges to the question of the social rights and un- direitos sociais e desencadeando processos que en-
da USP, para obtenção do
título de doutor, na linha chaining processes that involve the public and the volvem os âmbitos público e o privado, em termos
de pesquisa Trabalho. private of the Brazilian citizens, in their objective- organizativos e de subjetividade. Este estudo trata
1 Departamento de
ness and subjectiveness, studied here, a press cut- de um recorte de periferia do capitalismo tardio,
Enfermagem da
Universidade Federal ting of periphery of the delayed capitalism, which tendo o Brasil como exemplo, e mais especifica-
do Rio Grande do Norte, has Brazil as example, and more specifically the mente a região Nordeste.
Centro de Ciências da Northeast region, that is also underdeveloped in Palavras-chave Terceira Revolução Industrial,
Saúde. Av. Nilo Peçanha,
690 Petrópolis. the modern world productive forces viewpoint. Trabalho, Saúde
59012-300 Natal RN. Key words Third Industrial Revolution, Work,
sorayamaria@digi.com.br Health
2 Departamento de
Enfermagem Materno-
Infantil e Saúde Pública
da Escola de Enfermagem
de Ribeirão Preto
da Universidade de São
Paulo – EERP/USP.
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Medeiros, S. M. & Rocha, S. M. M.

Introdução to, à ética do individualismo, a ética da solida-


riedade.
No mundo do trabalho, a Terceira Revolução Resumindo, a Terceira Revolução Industrial
Industrial, sobretudo a globalização, traz como constitui um processo difuso que repercute na
um dos seus desdobramentos mais visíveis as dimensão cultural; o chamado pós-modernis-
novas tecnologias, o desemprego e as novas mo, influencia a arte e os costumes. No que diz
formas de organização do trabalho. As propos- respeito à política e à economia gerou o cha-
tas neoliberais têm produzido efeitos deletérios mado neoliberalismo e a era da globalização.
no mercado de trabalho, tendo como um dos Essa transformação no modo de produção ocor-
maiores problemas o aumento do desemprego re simultaneamente na organização do Estado
dos setores produtivos, com os trabalhadores e no processo de trabalho nos setores: primário
sendo expulsos do mercado de trabalho. (agropecuária, extração de minérios), secundá-
O espectro do desemprego e suas conse- rio (indústria, pesquisa, informática) e terciá-
qüências trazem implicações sociais, políticas e rio (serviços), sendo este último o âmbito do
culturais, com ressonância no modelo econô- setor saúde.
mico, na estrutura da sociedade, nas relações
de produção, nas subjetividades e intersubjeti-
vidades e na produção da vida cotidiana, pro- A força de trabalho em saúde na nova
vocando insegurança, intranqüilidade e mu- ordem do mundo do trabalho
dando as relações de poder.
A Terceira Revolução Industrial imprime a A saúde encontra-se inserida no setor terciário
marca da exclusão, na qual a força de trabalho de trabalho e, constituindo um processo de tra-
é dicotomizada em trabalhadores centrais e pe- balho, tem um processo de produção, suas re-
riféricos, desempregados e excluídos, dividindo lações sociais de trabalho, seus meios e instru-
também a parcela de apreensão do conheci- mentos. Uma das questões que se pode focali-
mento e a utilização de tecnologias, gerando zar na dinâmica do processo de trabalho em
relações desiguais de poder pelo saber e pelo saúde, como vem sendo tratado nesse estudo, é
controle econômico, colocando no topo da es- a Força de Trabalho em Saúde (FTS).
cala os empregados das grandes empresas, se- Nogueira (1986) considera que existem duas
guidos dos trabalhadores do setor informal, formas distintas de abordar a questão dos pro-
cujo trabalho é precário e parcial. No extremo fissionais empregados no setor saúde: como for-
inferior da escala estão os desempregados, mui- ça de trabalho e como recursos humanos. Em-
tos dos quais não mais conseguirão voltar ao bora as duas concepções estejam aparentemen-
mercado de trabalho, por constituírem a classe te próximas, existem distinções consideráveis
de desempregados vítimas do denominado em suas aplicações. Força de trabalho é o ter-
“desemprego estrutural” (Joffily, 1994). A con- mo consagrado pela economia política, ligado
dição de desempregado ou a ameaça do desem- particularmente à escola clássica dos econo-
prego vem provocando estresse, angústia, de- mistas Smith, Ricardo e Marx. A expressão “re-
pressão, baixa auto-estima, agressividade, cons- cursos humanos”, em contrapartida, é advinda
tituindo-se como uma das causas do aumento da ciência da administração e se subordina à
da violência na sociedade. ótica de quem exerce algum tipo de função ge-
Para Singer (1999) o crescimento do de- rencial ou de planejamento, seja no âmbito
semprego no mundo globalizado é a ponta de microinstitucional (órgão público ou empresa
um iceberg muito maior que é a deteriorização privada) ou no macroinstitucional (por exem-
das relações de trabalho, que por sua vez gera a plo, planejamento estratégico nacional). O
exclusão social. A exclusão como regra e a ética conceito de recurso humano é usado, portanto,
da individualidade são princípios consentidos com o propósito explícito de intervir numa si-
pela lógica neoliberal. Nesse contexto, lutar pe- tuação para produzir e aprimorar, ou ainda pa-
la inclusão de parcela significativa da popula- ra administrar esse recurso específico, que é a
ção ao acesso às políticas sociais constitui, ho- capacidade de trabalho das pessoas. Força de
je, um desafio para os movimentos civis orga- trabalho é uma expressão que, ao ser utilizada,
nizados e para os profissionais da área da saúde nos remete às seguintes questões: produção,
especificamente, utilizando como estratégia de emprego/desemprego, renda, divisão de traba-
mudança a postura ética e compromisso social lho, setor de emprego, assalariamento, entre
com os direitos à saúde, contrapondo, portan- outros.
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Então, há duas formas de abordar uma mes- tas de sociedades, no caso da brasileira, agrava-
ma realidade: uma a descreve e a interpreta das pelo contexto de crise econômica e políti-
teoricamente à luz do referencial da economia ca, resultando em adoção de medidas de ajuste
política; a outra tem por objetivo submetê-la a e cortes financeiros nas políticas sociais, como
uma ação gerencial (Nogueira, 1983). No pre- educação, segurança, transporte, moradia e
sente estudo, adotamos a primeira definição, trabalho, entre outras. Dificultando, ao cida-
por escolhermos uma perspectiva de desvela- dão individualmente e à população em seu
mento das políticas/práticas de saúde. conjunto, a garantia de infra-estrutura básica
Segundo Barros et al. (1991), os problemas para sua saúde e educação, prevista na Consti-
que conformam o cenário atual da força de tra- tuição Brasileira e na Lei Orgânica de Saúde
balho em saúde no Brasil não são recentes nem (LOS) n. 8.080/90 (Brasil, 1990).
resultam apenas das determinações intrínsecas Considerando-se o percurso histórico trans-
ao setor. Esses problemas têm raízes na estru- corrido desde a análise de Barros et al. (1991)
tura socioeconômica e política do país, pela até o momento, constatamos que a realidade
adoção de políticas setoriais que privilegiam a analisada por aquelas autoras continua atual,
dicotomia histórica entre ações curativas indi- com o agravante da fragilização dos vínculos
viduais e coletivas de saúde pública, a discrimi- empregatícios e a utilização da estratégia de
nação da oferta de serviços à população em multiemprego por parte da força de trabalho.
função da sua importância financeira para o O mercado de trabalho dos profissionais de
setor econômico, a progressiva simplificação de saúde, particularmente nos anos 80, demonstra
procedimentos nos serviços básicos de saúde, que a criação de postos de trabalho nos estabe-
assim como a progressiva diminuição percen- lecimentos do setor foram maiores que o incre-
tual dos recursos financeiros para o setor saú- mento da oferta da força de trabalho. Entre 1976
de. Desta forma, o setor privado de saúde se ex- e 1980, a População Economicamente Ativa
pande, principalmente nos centros urbanos das (PEA) expandiu-se a 4,1% ao ano, período no
regiões Sul/Sudeste, absorvendo tecnologia e qual o emprego no setor saúde cresceu 8,6% ao
oferecendo serviços especializados, destinados ano, mantendo-se a mesma tendência na pri-
à clientela que pode custeá-los, uma minoria no meira metade da década de 1980. Desta forma,
país; em contrapartida, o setor público respon- a PEA cresceu 3,88% e o emprego no setor ex-
sável pelo atendimento da parcela maior e mais pandiu-se a 6,6% ao ano. Considerando-se que
empobrecida da população, gradativamente en- esse período correspondeu, no Brasil, a uma
frenta maior limitação técnico-financeira. grande crise econômica com conseqüente es-
Barros et al. (1991) consideram que os pro- cassez de oferta de trabalho em saúde, pelos
blemas enfrentados pela força de trabalho em dados citados, apresentou-se uma dinâmica ra-
saúde são: heteronomia salarial; jornada de tra- zoável de oferta de postos de trabalho.
balho diferenciada e desigual; critérios arbitrá- Vale ressaltar que desse crescimento de pos-
rios para ascensão funcional; ausência de Pla- tos de trabalho no setor saúde, quase dois terços,
no de Cargos, Carreira e Salários (PCCS); falta segundo Girardi (1990), podem ser traduzidos
de avaliação de desempenho ou avaliações rea- em empregos com exigência de escolaridade ele-
lizadas sem critérios explícitos; ausência de di- mentar e intermediária, sendo, portanto, de bai-
retrizes e princípios técnico-institucionais no xa remuneração. Por isso, costuma-se dizer que
processo de contratação por clientelismo; bai- o setor saúde tem se constituído em importante
xos salários; ausência de uma política de edu- pólo de geração de postos de trabalho desqualifi-
cação continuada; polarização nas categorias cado e sub-remunerado, absorvendo a força de
majoritárias de médicos e pessoal sem forma- trabalho não incorporada em setores econômi-
ção específica (atendentes, agentes de saúde e cos mais produtivos. Para os profissionais de ní-
similares); sobrecarga de trabalho para alguns vel superior ou em formação universitária, a
profissionais ou ocupacionais, com processo si- oferta de empregos também tem crescido mais
multâneo de subutilização de outros trabalha- que a procura por parte dessa força de trabalho.
dores; excesso de profissionais e/ou ocupacio- Entre 1980 e 1984, foram gerados, somente nos
nais na totalidade dos dados quantitativos da estabelecimentos de saúde, aproximadamente 50
força de trabalho, porém, com deficiência em mil empregos médicos: 48.061 oferta de empre-
setores básicos e essenciais. gos para 33.227 egressos das escolas de medici-
Vale ressaltar que a condição dos trabalha- na, numa relação de 1,5 empregos para cada pro-
dores em saúde se insere em estruturas concre- fissional, aproximadamente (Girardi, 1990).
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Medeiros, S. M. & Rocha, S. M. M.

As formas de organização sindical e coope- estes avanços tecnológicos são de difícil acesso
rativas dos trabalhadores de saúde têm se ca- para a maioria dos usuários.
racterizado, segundo Girardi (1990), pela hete- No dizer de Machado (1996), com a espe-
rogeneidade estrutural. De um lado vem cres- cialização na medicina hoje, pela absorção de
cendo a presença das formas assalariadas e as inovações tecnológicas, ocorre um fenômeno
formas de organização coletiva típicas do tra- chamado de tribalização da profissão médica,
balho; do outro lado, tem-se a presença de re- já que cada especialidade se constitui em um
presentações profissionais corporativas, orga- grupo fechado, competitivo, com linguagem
nizando demandas, defendendo privilégios ex- própria. Essas “tribos” têm uma situação de au-
clusivos, emprego, salários e condições de tra- tonomia relativa na produção do conhecimen-
balho. Essa heterogeneidade, através das corre- to, prática profissional e mercado de trabalho.
lações de forças, vem conformando uma ten- Ressalta porém que vêm surgindo profissões
dência à hegemonia progressiva da forma assa- ou reorganizando-se novos campos de atuação
lariada, que deverá fortalecer e legitimar as for- emergentes como odontologia, fisioterapia, nu-
mas de coexistência das organizações mais cor- trição, psicologia, terapia ocupacional, entre
porativas, posto que as formas assalariadas bus- outras, que, por sua vez, geram disputas com a
cam formas de representações típicas do traba- medicina, até então, a profissão hegemônica.
lho na dinâmica social, como o recurso da gre- Em consonância com a emergência desse fenô-
ve. As organizações corporativas não típicas do meno, os usuários dos serviços se ajustam a es-
trabalho, principalmente médicos e dentistas, sa nova realidade, seguindo o mesmo padrão
pela oportunidade que têm do exercício autô- de exigência tecnológica, organizando-se em
nomo ou sob outras formas, como mistas, com- pequenas tribos: aidéticos, crônicos renais, sa-
binadas ou cooperadas, também vêm organi- fenados, entre outros.
zando demandas, porém, em defesa do privilé- A capitalização progressiva do setor saúde
gio do exercício exclusivo, entre outros interes- segue a lógica do avanço tecnológico na versão
ses corporativos com tendência ao crescimento final de século, quando a assistência médica
e fortalecimento. No aspecto do vínculo em- tem se transformado em uma medicina empre-
pregatício, consideramos que no contexto do sarial, visando a lucros e legitimidade social.
mercado de trabalho atual, vem ocorrendo fra- Para Machado (1996), essa nova modalida-
gilização desses vínculos e a não garantia se- de prestadora de serviços de saúde tem uma di-
quer da forma de assalariamento. Somando-se mensão de burocratização do processo de tra-
a isso o enfraquecimento das entidades sindi- balho em saúde. O SUS tenta se adequar a essa
cais, pelo esvaziamento e falta de poder na ga- nova realidade, posto que precisa se impor no
rantia de seus direitos trabalhistas. mercado competitivo. Na dinâmica da interna-
Machado (1996) analisa as profissões na cionalização do saber no campo da saúde com
área de saúde em relação à organização dos ser- as facilidades de comunicação da microeletrô-
viços de saúde no contexto do Sistema Único nica e a adoção de tecnologia avançada, ocorre
de Saúde (SUS), no momento atual. Para a au- simultaneamente uma internacionalização da
tora, a sociedade contemporânea é uma socie- prática da prestação de serviços de saúde.
dade alicerçada no trabalho profissional, por- Nesse contexto, Machado (1996) chama a
tanto, é uma sociedade profissionalizada. Defi- atenção para o fenômeno da cooperatização de
ne o significado de profissão como sendo um alguns serviços de saúde. Esse fenômeno sur-
ofício em que os indivíduos praticam uma ati- giu nos anos 90 e tem sido um mecanismo coo-
vidade em tempo integral e no qual existe uma perativo utilizado de forma eficiente, sob o
estrutura organizativa corporativa, com com- ponto de vista político, por essa categoria em
ponente vocacional, código de ética, saber es- defesa dos seus interesses privados. Machado
pecífico com orientação para serviço e alto grau (1996) assinala que esses sindicatos e corpora-
de autonomia no trabalho. tizações dos profissionais de saúde (white-col-
No entanto, somando-se aos problemas ge- lars) muitas vezes assumem posições radicais,
rados pela estrutura organizacional do SUS, há verdadeiras cartelizações dos serviços médicos,
também as situações trazidas pelo avanço tec- desconhecendo que os trabalhadores e os ser-
nológico na saúde, posto que qualquer inova- viços de saúde são um bem público.
ção tecnológica implica mudanças, tanto na es- Segundo Pires (1996), a partir dos anos 80
trutura do conhecimento como na prática da ocorre a utilização de novas tecnologias de ba-
atividade profissional. Embora saibamos que se microeletrônica no setor saúde, tendo se in-
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tensificado nos anos 90. Para essa autora, a in- da pequena produção de serviços de saúde, em
corporação de tecnologia cada vez mais avan- um consultório médico, pois sendo capitalis-
çada no âmbito da saúde ocorre de forma desi- mo monopolista, não pode mais ser considera-
gual, pela aquisição das mesmas por institui- do classicamente liberal. Então, este pequeno
ções públicas e privadas de médio e grande produtor é tão somente um pequeno empresá-
porte, consideradas referência tecnológica de rio que emprega outros funcionários, que vai
última geração no setor saúde. Somando-se à demandar capital para seus investimentos e que
forma desigual de incorporação de tecnologia contrata e compra serviços de outras empresas.
avançada, remetemo-nos ao objeto do nosso Assim sendo, o neoliberalismo refere-se ao mo-
estudo – a força de trabalho – para pontuar mento da produção dos serviços de saúde, em-
que o uso dessa tecnologia vem exigir um per- bora a denominação “neoliberais” tenha sido
fil mais qualificado da FTS, para o manuseio estendida à parcela do movimento médico, que
dos equipamentos, compreensão e execução da tem como bandeira a defesa desta forma de or-
totalidade do trabalho desenvolvido, com mais ganização dos serviços de saúde. Estes foram
criatividade, objetividade e racionalidade na definidos neoliberais, porque tinham um pro-
relação espaço/tempo. jeto conservador de reforma da assistência de
Chamamos a atenção para o que conside- saúde, que privilegiava o pequeno produtor
ramos uma das questões de fundo do nosso es- autônomo de serviços de saúde, assim como,
tudo: a maior qualificação dessa FTS tem em uma prática ancorada centralmente na defesa
seus desdobramentos o aprofundamento da ci- dos interesses desta fração da categoria.
são entre os trabalhadores. De um lado, os tra- Simultaneamente ao processo de organiza-
balhadores qualificados, aqueles que atuam na ção dessa parcela da categoria médica de ten-
assistência direta, nos serviços de apoio diag- dência neoliberal, outros segmentos faziam o
nóstico e terapêutico, na gerência e na produ- movimento inverso, com uma perspectiva e
ção de tecnologia. E, do outro lado, os traba- projeto político voltados para a sociedade, para
lhadores terceirizados e em situações de víncu- os trabalhadores e serviços de saúde, referindo-
lo empregatício precário. Consideramos esta se à questão da cidadania e justiça social. Os
dimensão do mundo do trabalho no setor saú- envolvidos nesse projeto eram sanitaristas, pro-
de semelhante ao processo de transformações fessores do departamento de medicina social
do mundo do trabalho em geral. Essa cisão traz de escolas de medicina, que, se articulando
em seu encalço o agravamento da desigualdade com associações e entidades da sociedade civil
e injustiça sociais. e com uma parcela de funcionários dos servi-
ços de saúde, fundam revistas, jornais, e pro-
movem conferências, simpósios, entre outros.
Modo de produção e suas relações A Associação Brasileira de Pós-Graduação em
com a Força de Trabalho em Saúde Saúde Coletiva (Abrasco) e o Centro Brasileiro
de Estudos de Saúde (Cebes) são instâncias de
O processo de trabalho, segundo Mendes-Gon- aglutinação e veiculação dessas lutas que tive-
çalves (1992), não se constitui apenas em dis- ram papel decisivo no embate político em todo
pêndio de energia, mas é, em essência, a forma o movimento da Reforma Sanitária Brasileira.
caracteristicamente humana de sociabilidade e Estes iam constituindo-se como intelectuais
de construção histórica, nas quais as determi- orgânicos e legítimos interlocutores face ao Es-
nações do passado e as possibilidades do futu- tado, na barganha das políticas públicas e, par-
ro estão presentes na tecnologia em cada mo- ticularmente, nas políticas de saúde. Nesse con-
mento desse processo. O mesmo desenvolve-se texto consideramos pertinente abordar o mo-
em um determinado modo de produção em so- vimento sanitário brasileiro, situando o con-
ciedades concretas. No modo de produção ca- texto histórico/social em que ele foi constituí-
pitalista de corte neoliberal, o processo de traba- do e denominado de Reforma Sanitária, rela-
lho em geral e, especificamente, do setor saúde cionando-o com as políticas sociais correspon-
desenvolve-se nesse contexto macroestrutural. dentes aos períodos políticos da sociedade bra-
Consideramos oportuno aqui abordar as sileira, durante a crise do regime militar, a tran-
raízes histórico-sociais dos problemas da FTS, sição e a redemocratização do país.
relacionadas ao modo de produção. A Reforma Sanitária teve como proposta a
Segundo Nogueira (1987), o termo neoli- criação de um Sistema Único de Saúde (SUS),
beral pode ser usado em relação à organização baseado nos princípios de universalidade, inte-
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Medeiros, S. M. & Rocha, S. M. M.

gralidade, eqüidade, descentralização e partici- cos, gerando, assim, autonomia de gestão para
pação social. Até chegarmos a essa proposta de os níveis periféricos, em detrimento do poder
sistema único, ancorado em princípios que têm centralizado e burocratizado.
um cunho eminentemente participativo e de- A integralidade é o princípio doutrinário
mocrático, houve um longo caminho de lutas e central do SUS, pois se constitui na indissocia-
conquistas, avanços e retrocessos. bilidade entre prevenção e atenção curativa.
O regime militar, no Brasil, entra em crise a Constata-se, no entanto, que o SUS vem se afas-
partir de meados dos anos 70. Mudanças co- tando desse princípio, mostrando tendência à
meçavam a ocorrer e a repressão militar já não regressão, pois podemos constatar que a prio-
conseguia desarticular as tentativas de oposi- ridade orçamentária federal está voltada para
ção ao regime. Os movimentos sociais e popu- assistência médico-hospitalar, em detrimento
lares que levantavam a bandeira da redemocra- de ações de promoção e proteção da saúde. Se-
tização do país ganhavam maior visibilidade e gundo a proposta de reforma do Ministério da
força social. Administração e Reforma do Estado (Mare),
Nos anos 80, o embate político de interlo- esses dois tipos de ação estão separados logisti-
cução da sociedade com o Estado que emerge camente (Campos, 1997).
desses confrontos origina o processo de transi- No entanto, as transformações do modo de
ção democrática, no qual o governo militar, na produção capitalista neoliberal, somadas ao
busca de legitimação, acena com a proposta de avanço da ciência e tecnologia em saúde assim
atender às reivindicações dos movimentos so- como a reorientação do paradigma no proces-
ciais, fazendo concessões, reformas políticas, so-saúde-doença-cuidado, têm repercussão no
mais especificamente nas áreas sociais, com setor saúde. Uma das mudanças significativas
impacto e repercussão a curto e médio prazos. vem sendo a redução do uso de hospitais, co-
A municipalização da administração, em geral, mo instituição que centraliza a aplicação das
e da saúde, em particular, constituiu-se em um tecnologias visando à recuperação da saúde,
processo de transformação político-organiza- com maior utilização dos serviços ambulato-
cional cujo objetivo central era promover a riais, pelos doentes crônicos.
descentralização dos serviços de saúde, dentro Segundo Oguisso (2000), em futuro muito
da proposta do SUS. A descentralização, um próximo estarão sendo transferidos para as re-
dos instrumentos de democratização, para se sidências tanto os doentes crônicos, como de-
desenvolver necessitou de um cenário político terminados tipos de casos agudos, como já vem
de relações democráticas que contou com a ocorrendo em todo o continente europeu, tan-
participação da sociedade civil organizada, pois to por opção, pelos benefícios terapêuticos com-
a concepção que a orienta é a gestão democrá- provados em pesquisas, como por economia de
tica com redistribuição de poder, competência recursos. Os avanços tecnológicos atuais possi-
e recursos em cada município. Portanto, a im- bilitam a realização de procedimentos comple-
plantação do SUS foi vista como um aspecto mentares fora do hospital (transfusões sangüí-
interno do processo político de construção da neas e quimioterapia em domicílio), com acom-
democracia brasileira, naquele momento his- panhamento feito por enfermeiro. Desta for-
tórico e, como tal, abriu precedentes para a ma, equipamentos tecnológicos, que podem ser
participação social e possibilitou alguns avan- alugados pelo tempo necessário de sua utiliza-
ços no cenário sociopolítico. ção, estão sendo produzidos adaptando-se a sua
Com a aprovação das leis orgânicas da Se- utilização também em ambientes domiciliares.
guridade Social e da Saúde, em 1990, esperava- Consideramos que o processo de saúde é
se produzir uma política social integrada, com parte do processo de produção dos bens mate-
financiamento adequado e regular para o SUS riais e simbólicos em cada sociedade. Desta
e, também, uma profunda redefinição de pa- forma, ao analisarmos as repercussões desses
péis e estratégias de atuação das três esferas de processos, optamos pelo exercício de supera-
governo, no âmbito das ações e serviços de saú- ção da aparência imediata dos fenômenos e
de. Desta forma, seria promovida uma crescen- buscamos o seu desvelamento. No caso especí-
te descentralização para os Estados e municí- fico do nosso estudo, procuramos entender as
pios e, conseqüentemente, um positivo enxu- contradições internas entre os interesses dos
gamento da máquina federal. A descentraliza- trabalhadores do setor saúde, os serviços e ins-
ção significava transferência de poder dos ní- tituições deste setor e a sociedade em sua tota-
veis centrais de governo para os mais periféri- lidade, assim como os indícios de mudanças na
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FTS e o impacto nas suas condições de traba- aqui levantar questões que servirão para outras
lho, particularmente sobre a égide das novas investigações.
formas de organização do trabalho, como a fle- O processo de trabalho em saúde como
xibilização do mercado, na realidade da cidade processo articulado às demais práticas em cada
de Natal (RN), no Nordeste brasileiro. momento histórico, em cuja práxis se constrói
Portanto, não basta para nós que a ciência e dinamicamente, deve contemplar as necessida-
a tecnologia acenem com a possibilidade de des sociais do coletivo em sua totalidade e sin-
formas mais ágeis e eficazes de terapêutica e gularidade, superando a concepção de assistên-
cuidados de saúde, para afirmarmos corres- cia natural e universal, ideologicamente preco-
pondente mudança nas condições de trabalho nizada.
da FTS. Antes precisamos olhar com atenção Há também, a necessidade de investigar-
em que condições são realizados estes traba- mos as possibilidades e limites da Terceira Re-
lhos do ponto de vista da segurança no traba- volução Industrial, como potencialização de
lho, da saúde e risco do trabalhador. desenvolvimento das forças produtivas, mate-
riais e simbólicas, da tecnologia e das relações
sociais. É necessário, ainda, analisarmos o seu
A desconstrução de conceitos impacto, particularmente, no que diz respeito
como elaboração de pressupostos à divisão e apropriação da riqueza, produzida
coletivamente por uma minoria que detém o
Consideramos ser pertinente trabalhar a ques- controle econômico e tecnológico, agora não
tão da força de trabalho no âmbito do processo mais de um país, mas do mundo em escala glo-
de trabalho em saúde sob a ótica da Terceira balizada. Há que se ampliar a discussão das re-
Revolução Industrial, com o recorte de perife- percussões da Terceira Revolução Industrial no
ria do capitalismo tardio, que tem o Brasil co- trabalho em saúde, principalmente no que diz
mo exemplo, e mais especificamente a região respeito à análise das avaliações do impacto e
Nordeste, que também é subdesenvolvida do das tendências dos modelos de intervenções
ponto de vista das forças produtivas do mundo em saúde, suas formas de inserção e de confor-
moderno. mação no processo da produção do trabalho e
Então, considerando que a orientação polí- na construção coletiva da cultura.
tica neoliberal prevê o Estado Mínimo e, con- Segundo Minayo (1997), faz-se necessário
seqüentemente, o corte de recursos para as po- perceber essas mudanças que afetam o campo
líticas públicas e sociais, perguntamos: como a das políticas públicas e do trabalho no mundo
região Nordeste poderá sair de uma situação de atual, inclusive na sua conotação positiva e
exclusão social, segregação, marginalização dos propositiva, partindo da premissa de que o fe-
processos produtivos e atrasos tecnológicos? nômeno que está posto, embora confuso e mal
Quais as alternativas possíveis para sair dessa delineado, não pode ser apenas repelido e de-
situação, já que não aceitamos a inexorabilida- monizado, mas ao contrário, exige uma prática
de dos fatos de maneira conformista? Como de desvelamento.
vêm ocorrendo as transformações no setor A realidade da saúde em geral, cujo merca-
saúde e na dinâmica das relações sociais de tra- do de trabalho tem propiciado a expansão do
balho na rede pública de serviços em Natal multiemprego, como forma de compensar as
(RN)? A flexibilização da força de trabalho já é perdas salariais, tornando o trabalho polivalen-
uma realidade instituída? Qual a lógica que te, desgastante, intenso e estressante, é caracte-
orienta a organização dos serviços de saúde e a rística das mudanças tecnológicas ocorridas
disposição da sua força de trabalho? Como o com a Terceira Revolução Industrial. O setor
mercado de trabalho em saúde movimenta-se saúde, na busca de qualidade, incorpora um
nessa dialética? Quais as tensões existentes que novo instrumental no processo de diagnóstico
dão conta dos confrontos antagônicos entre ca- e terapêutica, introduzindo, assim, tecnologias
pital e trabalho? E os interesses dos atores so- referentes à informática, à biotecnologia, às
ciais nas micro e macrorrelações? E quais as máquinas de comando numérico computado-
novas tecnologias introduzidas no setor saúde rizado e sistemas integrados.
em Natal (RN)? Na tentativa de entendermos e Há, portanto, uma necessidade de enfrenta-
buscarmos respostas para essas perguntas, sa- mento das inovações e diversificações tecnoló-
bemos que, certamente, não as encontraremos gicas adotadas pelo mundo do trabalho globa-
em apenas um estudo. Entretanto, procuramos lizado, que por sua vez definem um novo pa-
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drão de produtividade de bens e serviços, pro- do mundo. Há, no Brasil, uma heterogeneidade
vocando mudanças nas relações de trabalho e de oferta de serviços de saúde, públicos e pri-
na organização produtiva. Assim, a morbidade vados. Por um lado, temos serviços de alta tec-
da população sofre o impacto dessas mudan- nologia, acessíveis a uma pequena parcela da
ças, e estas, por sua vez, determinam demandas população; enquanto do outro lado, uma gran-
profissionais, bem como a elaboração de novas de maioria enfrenta problemas de acesso aos
propostas assistenciais e paradigmas técnico- serviços de atenção primária. Essa grande par-
científicos. cela, geralmente, não tem acesso aos bens de
Concordamos com Ianni (1998), quando consumo coletivo e individual, como sanea-
questiona o “fim da geografia”, o “fim da histó- mento, transporte, segurança, serviços públi-
ria” ou a “inexorabilidade” da nova ordem cos, telefônicos, entre outros.
mundial, uma vez que, dialeticamente, a “ine- O conceito de capitalismo tardio, analisado
xorabilidade” do global traz consigo, inexora- por Paiva & Rattner (1985) e Behring (1998), é
velmente, a multiplicidade das diversidades que trabalhado a partir dos estudos de Ernest Man-
tendem à convergência global. Sobre esse as- del, revolucionário socialista. Para Mandel, a
pecto, o autor cita o exemplo da hegemonia do chamada Terceira Revolução Tecnológica foi
idioma inglês, que não significa, necessaria- propiciada em grande parte pelo estímulo às
mente, a sua homogeneização, assim como os invenções decorrentes da guerra. Portanto, está
demais componentes da vida dos sujeitos so- ligada à aplicação de capitais entesourados en-
ciais. Assim, sua universalização não significa tre a crise de 1929 e a Segunda Guerra Mun-
automaticamente a homogeneização dos mo- dial, facilitada pela intervenção do Estado, com
dos de falar, escrever e pensar, ou ser, agir, sen- a finalidade de estimular e garantir a viabiliza-
tir, imaginar e fabular, assim como, as diversas ção do capital privado, tendo como meta prio-
e plurais modalidades de organizar a vida e o ritária vencer a guerra e superar a crise das eco-
trabalho, as diferenças e as polifonias. nomias capitalistas, que, naquele contexto, en-
Sendo o Brasil considerado periferia no cha- traram numa nova fase. Nos países centrais, a
mado capitalismo tardio, como percebermos e partir da Segunda Guerra Mundial, setores eco-
analisarmos essas diferenças e diversidades? nômicos inteiros foram industrializados, com
Como devemos proceder se existe um contexto automação da indústria e forte elevação da
de diversidades e desigualdades internas díspa- composição orgânica do capital, tendo como
res, com realidades características de Primeiro conseqüência uma maciça concentração e cen-
Mundo, em pleno desenvolvimento tecnológi- tralização de capitais. Este capitalismo pene-
co e processo produtivo, convivendo com ou- trou em todas as esferas: na indústria, na agri-
tras realidades em estágios anteriores a esse cultura, no comércio e nos serviços em geral.
processo? Essas questões desafiadoras e insti- As condições de produção no capitalismo
gantes servem de parâmetros norteadores, in- tardio geram profundas transformações nas re-
dicando que sempre teremos de (re)indagar a lações sociais de trabalho, afetando, conse-
respeito dessa realidade, como a esfinge na por- qüentemente, a força de trabalho. A utilização
ta da cidade: – Decifra-me ou te devoro! Essas da energia atômica e a difusão das máquinas
questões refletem-se na organização dos servi- eletrônicas criaram condições para a reprodu-
ços de saúde, assim como no perfil epidemio- ção ampliada, que conduziu a superprodução
lógico, quadro bastante evidenciado no Brasil dos meios de produção, promovendo pressões
com a transição demográfica, através do qual que modificaram a nova fase da exportação de
notamos o impacto da convivência entre as do- capitais. Este fato gerou a obtenção de taxas
enças degenerativas, características de socieda- mais elevadas de lucro e também a abertura do
des desenvolvidas, e as doenças epidêmicas trans- mercado para os meios de produção superpro-
missíveis, associadas às sociedades subdesen- duzidos nos países centrais. A dinâmica do cres-
volvidas. cimento econômico produz a pobreza, princi-
A desigualdade se dá no acesso aos serviços palmente nas grandes metrópoles, assim como
de saúde e na oferta geral de bens de consumo a distância entre o Primeiro Mundo e os “ou-
coletivo e individual. Embora se considere que tros mundos”.
no nosso país tenha ocorrido uma melhoria Embora essa exportação de capitais seja
nas últimas décadas em setores como a oferta ainda hoje um elemento importante na supe-
de infra-estrutura urbana básica, não mudou a ração das crises das economias capitalistas, com
forte concentração de renda, uma das maiores a inovação tecnológica ela ganha novo valor,
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como fonte de obtenção de uma sobretaxa de O processo de trabalho em saúde é, parti-
lucros nos países centrais. Uma vez monopoli- cularmente, complexo porque ainda guarda,
zada, essa inovação tecnológica vai permitir a em alguns momentos, características do traba-
captação da sobretaxa de lucro; porém essa so- lho artesão (como ocorre em procedimentos
bretaxa vai desaparecer na medida em que, cirúrgicos); em outros, apresenta a sistematiza-
com a utilização dessa mesma tecnologia por ção taylorista (screenings de populações, cam-
capitais concorrentes, ela se generaliza equali- panhas de vacinação) e, em outros, a automa-
zando essa taxa de lucros, gerando uma pres- ção eletrônica (diagnósticos por imagem e som).
são permanente na busca de novas tecnologias O avanço da tecnologia, particularmente com
e descobertas científicas que possibilitem ino- o advento da informática e das novas tecnolo-
vações tecnológicas para a obtenção da sobre- gias da comunicação, possibilita aos profissio-
taxa de lucros nos países centrais. Esse proces- nais de saúde atuarem com o computador tan-
so leva à crescente automação dos diversos se- to para o uso interno nas instituições, quanto
tores econômicos, obrigando-os à elevação do no atendimento de usuários dos serviços, em
montante dedicado ao capital fixo, isto é, à ma- seus domicílios. Por exemplo, com o uso de um
quinaria, promovendo, com isso, uma centrali- laptop, o profissional pode assistir um doente
zação de capital que permitirá a formação de em sua residência, trocando informações e
firmas gigantescas, representadas pelas multi e imagens on line com a gerência na instituição e
transnacionais. Essa pressão pela inovação tec- vice-versa. A máquina funciona agilizando os
nológica, geradora de lucro suplementar, reduz procedimentos, fornecendo informações com-
o tempo de vida do capital fixo, fazendo com plementares sobre o doente aos profissionais,
que os produtos tornem-se obsoletos, quando durante os procedimentos, possibilitando além
sua produção deixa de proporcionar uma so- disso, o contato instantâneo com a gerência na
bretaxa de lucro para os capitais investidos em instituição, agilizando ainda os registros das in-
sua reprodução. Desta forma, alteram-se as re- formações. Este é o modelo vislumbrado pela
lações sociais de trabalho e, conseqüentemen- sociedade informacional ou do conhecimento,
te, a própria força de trabalho, devido às sérias como vem sendo denominada a sociedade atual.
conseqüências que a automação traz para o tra- Mas para estes processos serem possíveis faz-se
balho humano e para a sua qualificação (Paiva necessário o investimento financeiro e a capa-
& Rattner, 1985). citação da força de trabalho envolvida.
A máquina, ao elevar a produtividade do No momento, no Brasil, esta realidade está
trabalho, promove a substituição do trabalho muito longe de se concretizar para a maioria da
vivo (humano) pelo trabalho mecânico e, com população, a mais empobrecida; porém, uma
isso, a força de trabalho do homem vai sendo pequena minoria tem acesso a padrões de saú-
progressivamente deslocada da produção dire- de similares aos do Primeiro Mundo. Mas é im-
ta para a manutenção e para as tarefas de dire- portante salientar que a globalização, o avanço
ção e vigilância. Modifica-se, com isso, a quali- da tecnologia, quando não democratizados,
ficação da força de trabalho necessária a essa aprofundam as desigualdades internas e exter-
produção. A obsolescência vertiginosa dos pro- nas de uma localidade.
dutos e das maquinarias, em conseqüência das Segundo Singer (1999), nos países de eco-
inovações tecnológicas constantes, obriga a re- nomia globalizada, grandes parcelas da popu-
ciclagem periódica da força de trabalho. Assim, lação são marginalizadas da vida econômica,
a própria especificidade do processo de acu- pelo desemprego e pela degradação profissio-
mulação do capitalismo tardio, corresponden- nal. Esta degradação ocorre em parte pelo de-
do às exigências impostas por suas instâncias saparecimento de algumas atividades produti-
mais modernas dentro dessa lógica da econo- vas, motivado pela competição e suplantação
mia capitalista, traz à tona a questão da qualifi- da indústria local pelos importados, extinguin-
cação da força de trabalho, tema que nos interes- do qualificações profissionais, obrigando seus
sou investigar neste estudo. Contudo, as trans- portadores a procurar novos lugares no merca-
formações no processo de trabalho, nesta pers- do de trabalho, em condição de trabalhador
pectiva, têm sido estudadas somente no que se não qualificado, gerando insegurança, ansieda-
refere à produção de bens, tanto que o setor de de e estresse nos trabalhadores e provocando
serviços, que inclui transporte, comunicações, instabilidade social. Vale ressaltar porém que
educação e saúde, tem tido pouca atenção como esta situação tem a característica de ser volátil,
processo de trabalho socialmente determinado. ou seja, pode existir em determinado momen-
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to, pela adoção da importação de produtos na bém “cuidados” ou “carentes de cuidados” de


economia, mas pode mudar rapidamente em saúde e de melhores condições de vida;
seguida, com a retomada do crescimento eco- c) considerando ainda que a força de trabalho
nômico. em saúde vem passando por um processo de
Com a expansão dos serviços e a penetra- feminilização, isto é, o aumento da participa-
ção do capital no setor saúde, houve elevação ção das mulheres em sua composição, trazendo
dos salários dos trabalhadores, à medida que consigo as determinações histórico-sociais e
aumentou a produtividade do trabalho. Com econômicas desse fenômeno, como a dupla jor-
isso, os salários passaram a se constituir fonte nada de trabalho, a desigualdade salarial, entre
de demanda crescente para a ampliação da pro- outros, vale ressaltar que essa característica po-
dução de bens de consumo, promovendo, con- tencializa o quadro já referido de vulnerabili-
seqüentemente, a rápida circulação das merca- dade dessa força de trabalho;
dorias. Paralelamente, aumentou o tempo livre d) o tempo livre ou folga remunerada desse
do trabalhador, na medida em que a automa- trabalhador é utilizado, obrigatoriamente, em
ção reduziu o tempo socialmente necessário à outra ocupação rentável ou investido em sua
produção. Há que se levar em conta, no entan- qualificação profissional, sendo esta financia-
to, que essa automação somente vem ocorren- da, muitas vezes, com seus próprios recursos,
do em uma parcela da indústria. No capitalis- em busca de uma colocação melhor ou preve-
mo atual, convive-se simultaneamente com nindo-se contra futuras demissões. Desta for-
formas mais antigas e formas sofisticadas de ma, esse tempo livre não coincide com a defi-
produção de bens e serviços. nição de tempo de lazer.
No setor saúde, analisamos que o trabalho À guisa de conclusão, sugerimos que para
humano será sempre necessário e até o presen- se aumentarem as oportunidades de requalifi-
te momento não houve desemprego estrutural. cação da Força de Trabalho em Saúde em Natal
Com o avanço da tecnologia, porém, vem mu- (RN), devem ser abertos cursos de aperfeiçoa-
dando a forma de se organizarem os serviços, mento, de pós-graduação lato e stricto sensu e,
assim como os procedimentos, individuais e de reeducação da força de trabalho. Com isso
coletivos das práticas, baseados na transforma- visa-se à garantia de recolocação no mercado,
ção do paradigma orientador do modelo assis- adaptando os profissionais e qualificando-os
tencial, com a incorporação de outras áreas de para enfrentarem as transformações do mundo
conhecimento como a antropologia, a sociolo- do trabalho. Para que estas mudanças ocorram
gia, e a ecologia, entre outras, assim como a oferecendo-lhes mais qualidade de vida, neces-
tendência à atuação inter e transdisciplinar. En- sário se faz que os governos invistam em políti-
tretanto, investigamos se há simultaneidade cas sociais básicas como: educação, saúde, tra-
entre os processos que emergem das relações balho e emprego justo, habitação, saneamento
atuais com o processo produtivo direto da rea- básico e urbanização. No entanto, percebemos
lidade do setor saúde em Natal (RN): a dificuldade na implantação dessas políticas,
a) a flexibilidade da força de trabalho em saú- com o modelo econômico adotado no Brasil e,
de se dá pela necessidade das mudanças no especificamente, na região Nordeste. O que
processo produtivo, ao qual os trabalhadores se tem restado a esses trabalhadores é a adoção de
submetem para garantir seus empregos, apesar políticas de assistência social que os colocam
das perdas de direitos trabalhistas gerarem ten- na condição de cidadãos de segunda classe, ex-
são e insegurança no trabalhador; postos à doença, à degradação pessoal e social
b) para compensar as perdas salariais e pro- e às chamadas situações de risco.
mover uma aparente segurança nas barganhas Todas essas questões precisam ser reavalia-
entre demissões, reestruturação e enxugamen- das no âmbito do setor saúde, levando-se em
tos, o trabalhador da saúde assume um projeto consideração seu processo produtivo no mun-
de vida de multiemprego, com risco de preju- do do trabalho atual, as suas contradições, con-
dicar a qualidade do produto e de trazer para si tinuidades, rupturas e formas de superação na
estresse, fadiga, tornando-se vulnerável aos aci- dinâmica das realidades concretas, por ser essa
dentes de trabalho. Essa situação traz o signo força de trabalho composta por cidadãos inse-
das ambigüidades características do mundo do ridos no contexto socioeconômico e político da
trabalho precarizado atual, no tocante ao setor sociedade onde vivem e trabalham.
saúde, no qual, trabalhadores são ao mesmo
tempo “cuidadores” da saúde de outros e tam-
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