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Humor nos tempos do cólera

Daniel Rockenbach

O humor é um tema difícil. Não é fácil conceituar o humor e esperar que todos
concordem com a definição, talvez porque quando definimos, impomos limites ao conceito e
o humor, assim como a “zoeira”, supostamente não devem ter limites.O maior problema
está em se perceber o humor como forma de se perpetuar preconceitos e se manter
relações de dominação, algo que muitos humoristas insistem em fazer no Brasil e no
mundo. A palavra humor é entendida como estado de espírito faz poucos séculos e mesmo
assim é sempre definida de forma ambígua.
Uma das manifestações humorísticas em voga é o stand-up. Popularizado no Brasil
por humoristas como Rafinha Bastos e Danilo Gentili, o stand-up como conhecemos
começou em clubes de comédia nos Estados Unidos no final da década de 1950.O conceito
é simples: um humorista faz um monólogo para a platéia que ocasionalmente interage com
o artista. Na maioria esmagadora das situações, quem apresenta stand-up são homens
heterosexuais brancos, algo que diz muito sobre o tipo de discurso visto nas apresentações.

Danilo Gentili em seu talk show, The Noite. (foto: divulgação)

Uma das práticas comuns ao stand-up é a auto-depreciação do humorista que


ridiculariza a si próprio como entrada para os monólogos que geralmente abordam temas
familiares ao artista.Outro lugar comum é a polêmica. Muitos humoristas ironizam situações
do cotidiano mas alguns ocasionalmente extrapolam o tema e discutem o comportamento
ou posicionamento alheio, buscando aquela que é a maior arma que o humor dispõe, para o
bem, ou para o mal: a ironia.
A ironia não é algo fácil de se perceber. Em alguns casos, ela se utiliza do óbvio
para se expor o ridículo de uma situação. Noutros, ela é sofisticada, oculta sobre camadas e
camadas de comentários aparentemente mundanos. O problema é quando se usa a ironia
de forma irresponsável, rasteira, aproximando ironia e deboche.
Com a polarização política no Brasil e no mundo, alguns comediantes de stand-up
decidiram seguir a onda e polemizaram questões que aparentemente estavam bem
resolvidas no humor brasileiro: piadas homofóbicas e raciais. Comediantes como Costinha e
Ary Toledo fizeram sucesso nos anos 1970 e 1980 contando piadas sobre gays, negros,
mulheres e portugueses. É inegável que Costinha e Ary Toledo são produto de sua época,
não há como nem por que questionar isso, ainda mais no Brasil onde questões de gênero e
raça estão estruturadas em cima de séculos de dominação européia. Ainda assim podemos
mencionar os ingleses do Monty Python que nos anos 1970 nunca apelaram para esse tipo
de ironia, trazendo um humor mais refinado e sutil.

O humorista Costinha. (foto: reprodução)

A questão é que por mais desconstruído que o leitor seja, se ele passou dos 30,
provavelmente ele riu de alguma piada do Costinha e/ou Ary Toledo, isso sem falar no
eterno Mussum que, mesmo sendo negro, fazia piada com a própria cor. Difícil alguém que
viveu a década de 1980 ou 1990 não ter rido desse tipo de humor, aparentemente datado e
extinto com essa geração de humoristas.
Um dos aspectos não resolvidos do humor é o machismo. No Brasil e no mundo,
além de se ter poucas humoristas em atividade, a estatística ainda é cruel com as mulheres.
No Netflix, por exemplo, a proporção ainda é mais favorável aos homens: ainda que o
serviço não forneça estatísticas, basta ver os destaques para perceber mais stand-ups com
homens que com mulheres, mesmo se você assistir mais comédia feminina. Grupos
brasileiros como o Porta dos Fundos e o extinto Tá no Ar tentam equilibrar os elencos mas
a proporção ainda é desigual.
Um dos argumentos mais usados em defesa do humor ultrapassado é que o
“politicamente correto” deixou tudo mais chato. Essa expressão anda na moda entre
humoristas e público, especialmente os mais conservadores que aparentemente não
aceitam a problematização de assuntos como o machismo ou o preconceito de classe.
Estereotipar a mulher, o homossexual ou o pobre é prática comum no Brasil e qualquer
discussão crítica do assunto é vista como apelo ao politicamente correto. Não é difícil ver o
público aderindo ao argumento, basta ver os comentários nas redes sociais adjetivando
feministas como “mal comidas” e os homossexuais como “bichas” ou “viados”.
Com a redução de estereótipos possíveis com legislação criminalizando racismo e,
mais recentemente, a homofobia, muitos humoristas ainda se limitam a ironizar o feminismo
e outras causas como forma de manter seu humor polêmico com a audiência. Danilo Gentil
se envolveu em polêmicas com feministas e militantes de esquerda, sempre alegando o
politicamente correto e a batalha contra a corrupção como motivação para atacar esse
público e se manter em alta com os fãs. Admirador assumido do atual presidente, Gentili já
foi processado em várias ocasiões por declarações e atitudes polêmicas, a mais famosa
sendo a questão com a deputada federal Maria do Rosário, tendo inclusive sendo
condenado na questão.
Em Campo Grande temos um exemplo que ganhou visibilidade nacional: o polêmico
Tio Trutis. Atualmente deputado federal, Loester Trutis começou a ganhar as manchetes
quando polemizou com vegetarianos e feministas em seu estabelecimento, o Trutis Bacon
Bar. Na época, Loester não era apenas chef do local como também humorista. Seu número
de stand-up polemizava com os vegetarianos, ironizando o consumo de vegetais perante o
de bacon, a especialidade da casa. O que começou com uma aparentemente inocente
brincadeira em uma apresentação ganhou destaque quando se tornou um processo judicial
contra Trutis que não só venceu nos tribunais como conseguiu receber uma indenização
pelo processo sofrido por parte da processante. Gradativamente se construiu a figura do
humorista injustiçado pelo politicamente correto enquanto Trutis levava seu humor a outras
questões polêmicas como o feminismo.
Loester Trutis atualmente é deputado federal pelo PSL e defensor (entusiasta) do porte de armas.
(foto: divulgação)

Com a visibilidade veio o “ativismo reverso” e novas polêmicas, até que Trutis
decidiu se candidatar ao cargo de deputado federal pelo Partido Social Liberal em 2018. A
votação foi expressiva para uma primeira candidatura com 56339 votos válidos, elegendo
Trutis na frente de outros candidatos tradicionais.
Como entender essa postura agressiva com questões sociais tão relevantes?
Colocados lado a lado, Danilo Gentili e Loester Trutis tem várias semelhanças: homens,
heterosexuais, brancos, origem na classe média, Danilo tem 39 anos, Loester 36. Ambos
manifestam apoio incondicional ao conservadorismo e ao status de “mito” do presidente Jair
Bolsonaro além de um desprezo gritante pelo politicamente correto.
Uma das manifestações contrárias a esse humor conservador está nas tirinhas de
artistas como Daniel Lafayette, Arnaldo Branco, Ricardo Coimbra e Bruno Maron. Alguns se
posicionam politicamente, caso de Lafayette e Arnaldo, outros não se manifestam a favor de
nenhum lado, ironizando as incoerências de todos os lados como Coimbra e Maron.
Tirinha de Ricardo Coimbra. (foto: divulgação)

Com a vitória no processo por injúria contra Danilo Gentili, a deputada federal Maria
do Rosário afirmou que a sentença “deve ser lida como uma convocação à sociedade
brasileira de que é necessário retomar o respeito, o bom senso no debate público, nas
redes sociais e na vida […] Considero a decisão um símbolo de que é possível preservar a
liberdade de expressão e garantir a dignidade humana. Esta é uma vitória da democracia e
da justiça“. A sentença de seis meses e 28 dias de prisão em regime semiaberto vem como
punição por um vídeo do humorista publicado em 2016 e no Twitter, em 2017. No vídeo,
Gentili rasgava uma notificação remetida pela Câmara dos Deputados, colocando os restos
do papel nas calças insinuando que pouco se importava com o documento.
Após a condenação, a cartunista Laerte se manifestou questionando a vitória
judicial. Para ela, a decisão abre precedentes para censura e eventual condenação de
humoristas contrários ao governo, sob o mesmo tipo de acusação. Se essa possibilidade vai
ou não se concretizar ainda não se sabe mas legalmente no Brasil, tudo tem sido possível,
a legislação sobre injúria não é absoluta e é passível de interpretação, algo que assusta
humoristas que fazem oposição ao governo.
Tweet de Laerte sobre a situação com Danilo Gentili. (foto: reprodução)

A ironia é forma mais inteligente de crítica. Humor como forma de perpetuar


preconceito quebra essa crítica e toda possibilidade de se repensar as incoerências de uma
sociedade. Apelar para o politicamente incorreto para se fazer rir sem pensar traz o risco da
alienação e o preconceito pela validação de um discurso único, uma só história, a da
hegemonia. Rir é fundamental para o ser humano mas nem por isso devemos rir a qualquer
custo, de tudo e todos, sem nenhum critério.

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