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Coordenador(es):
Paulo Jorge Pinto Raposo, ISCTE
Scott Head, UFSC - Universidade Federal de Santa Catarina
O Carnaval se vestindo
A inspiração para uma discussão sobre a reformulação que se produz sobre os sentidos do
Maracatu, a partir do Carnaval, adveio inicialmente da constatação sobre a potência do
próprio ato, em si, de construção estética dos maracatuzeiros com vistas a participar das
festividades carnavalescas. Em seguida, somou-se a tal conhecimento sobre o processo de
metamorfose pautada pela festa a percepção da natureza regular e profunda das frequentes e
reiteradas queixas que emergem da forma precária com a qual se financia a participação
destes grupos.
Aqui, o que se procura é enfatizar como a manifestação ganha significados a partir de
uma política que alega preservá-lo; e não reivindicar algum tipo de engessamento, resgate ou
conservação paralisante da dinâmica do bem cultural. O que interessa primordialmente é
compreender quais os princípios que guiam este inevitável processo de significação, mais do
que requerer a preservação de uma eventual essência, negando a fluidez indesviável da
cultura, a qual não permite com que seus sentidos estejam de alguma forma ancorados em
algum lugar.
No Carnaval, todos os anos os caboclos sobem o Marco Zero – principal palco do
evento oficial, exibindo-se para milhares e milhares de espectadores e para várias equipes de
televisão com transmissão nacional. Mas fora dele, em suas comunidades originais, a
apresentação de um grupo de maracatu se dá performativamente sob uma lógica diferente.
Num terreiro, toda a atenção está voltada para a disputa poética entre os mestres que se
enfrentam. Durante cada verso, os folgazões e visitantes se calam, observam e vibram ao
final da rima improvisada. Toca-se o terno, elaboram-se as manobras e, depois do corte do
apito do mestre que vai dar a resposta, retoma-se o ritual protocolo. O público é respeitoso e
sabe que ali está a alma da brincadeira na sambada (MENEZES, 2009).
Num palco, ou em qualquer outro espaço distante desse ambiente, onde os grupos são
para o público quase que exclusivamente um elemento exótico, as coisas se dão de forma
bem diferente. Trata-se de uma mera contemplação externalizada, de uma atividade
desterritorializada e desprendida da habitualidade. Os espectadores se encantam com a
plasticidade do brinquedo, o movimento das cores que saltam das manobras, mas não atentam
para à munganga do caboclo, nem ao verso do mestre. Poucos se interessam pelo complexo
entroncamento da manifestação. Entendem como algo bonito de se ver, mas desde que não se
estenda por não mais que dez minutos.
Algo que se compara ao processo que José Jorge de Carvalho (2010) define como
espetacularização da cultura popular. A demanda evidente da visão comercial em torno da
cultura transformou a atuação, dinâmica e a logística dos grupos. As cores das roupas dos
integrantes e o tamanho das golas (que originalmente cobriam basicamente o peitoral do
caboclo) deixaram de ser suficiente, elas precisavam crescer e brilhar: purpurinas, lantejoulas,
celofanes foram introduzidas nas indumentárias. Os adereços foram ganhando protagonismo,
o tempo de apresentação se adequando ao formato exigido, os gestuais das danças assumindo
mais potência. Os grupos tinham que se apresentar com sorrisos nos rostos, esbanjando
alegria, encantamento, exotismo – emoções fundamentais para cativar o turista e o cidadão de
classe média. Os elementos dos grupos precisavam, a partir de então, exaltar a memória, a
singularidade, a história e a cultura pernambucanas. Quanto mais chamativo e animado o
grupo, melhor.
Neste sentido, para a política cultural que o espetaculariza, pouco importa a
autenticidade, a originalidade ou a tradição do maracatu. Atingir o padrão a ser oferecido
enquanto mercadoria para o turista significa apresentar um produto de qualidade, que traga
distração e encantamento. Os pacotes padronizados e massificados precisam tão somente
cumprir o papel de um olhar superficial sobre o que está sendo apresentado – com tempo e
espaço para um registro fotográfico. Ou seja, a dinâmica de uma apresentação tem que
obedecer ao desejo e a contemplação do turista.
Os grupos de maracatu de baque solto participam do Carnaval oficial do Recife de
duas maneiras. A primeira, contratados para apresentações nos pólos espalhados pela cidade,
onde chegam, em média, com 100, 150 folgazões por grupo. A corte e os Caboclos fazem
algumas manobras no chão enquanto o terno, o mestre e o contramestre sobem ao palco para
cantar alguns versos e conduzir o recolhimento do grupo, meia hora depois. A segunda é no
Concurso de Agremiações, que é dividido em algumas categorias e que, existe uma
premiação em dinheiro para os vencedores. Uma Comissão Julgadora, composta por
membros que atuam de alguma forma nas áreas das culturas populares pernambucanas,
analisa os itens pré-estabelecidos que compõem as exigências do Edital. Em grande medida,
esses critérios padronizam e hegemonizam a atuação os grupos e, sobre isto, Manoelzinho
Salustiano, Presidente Associação de Maracatus de Baque Solto de Pernambuco, entende o
seguinte:
Maracatu hoje é espetáculo. Então não tem condições de o dono do maracatu ele botar o
maracatu na rua só com o seu salário. Aí o concurso fomenta. Ele é ruim, eu não concordo
com o concurso, muda as características do brinquedo que o baque solto não tinha rei, rainha,
nem dama do paço. Hoje tem. Por outro lado, a gente tem que entender que ela não pode ficar
parada, ela tem que evoluir. A minha preocupação é o comércio e acabar os mestres e se
tornar pessoas jovens como produtores de cultura e não pensar em sua origem, não pensar em
sua essência e sim pensar só no espetáculo. Você tem que se preocupar com o lado religioso,
né? Você vê, o maracatu de baque solto ele é de origem indígena, ele cultua a jurema
indígena, oferecendo mel, fruta e flores como proteção. Ele pode até cultuar os mestres, os Zé
e as Pomba Giras, mas aí tem gente que confunde. Já usa o sangue pra fazer maldade. Aí já
dá uma misturada. (Informação verbal)1
Acredito ser relevante abrir um parêntese: não me coloco no papel definidor dos
rumos e enquadramentos que os grupos devem tomar ou assumir. Lembro recentemente,
por exemplo, a polêmica relacionada à inclusão ou não de algumas manifestações em
determinados editais de incentivo do Estado. Foi o caso do edital do Carnaval de 2019 para
montagem da grade de programação oficial do Governo: os grupos de Cavalo Marinho
foram excluídos do certame, o que causou revolta entre alguns mestres e brincantes da
manifestação.
O Boi Pintado, do Mestre Grimário, entrou com recurso contra a decisão da gestão. A
questão levantada pela Secretaria de Cultura é que o Cavalo Marinho pertence,
originalmente, ao ciclo natalino e, portanto, não deveria ser fomentado durante o Carnaval.
Grimário argumentou que o Carnaval já é uma festa apropriada também pela manifestação
– há algum tempo. Há pelo menos 10 anos, na programação oficial do Estado e da Prefeitura
do Recife, grupos de Cavalo Marinho vêm brincando no reinado de Momo.
Se o Estado se utiliza das manifestações populares para autopromoção, por qual
motivo essas manifestações não devem usufruir dos espaços criados pelas gestões para
também se mostrarem e impulsionarem a brincadeira – considerando, sobretudo, que trata-
se de uma manifestação patrimonializada e que, portanto, merece uma atenção especial
das políticas públicas de fomento? Se artistas consagrados como Alceu Valença, Lenine e
Chico Science já se utilizaram de elementos dessas tradições em suas apresentações e em
suas obras, por qual motivo as próprias tradições não podem fazer parte da festa? Por qual
motivo não estão incluídas enquanto produto final do processo produtivo se o Estado
estimula a profissionalização e o empreendedorismo dos grupos?
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Em 2 de janeiro de 1956 o Prefeito Pelópidas da Silveira assina regulamentação da Lei n. 3.346 de 7 de junho
de 1955 que promovia a oficialização do carnaval do Recife. Desde então o frevo é colocado em evidência pelo
poder público e passa a ser hegemônico nas festas de rua e nos clubes – processo que resultou em sua
patrimonialização na primeira década dos anos 2000.
identidade com o território. Esse movimento, naturalmente, trouxe aspectos positivos e
aspectos negativos para os maracatuzeiros, de maneira específica, e para os mestres e
brincantes das culturas populares tradicionais de maneira geral – sobre os quais vamos
refletir.
A questão é que, apesar de ter conquistado uma visibilidade para a brincadeira, o
que evidencia também o caráter de resistência de seus mestres e brincantes durante tanto
tempo perseguidos, censurados e moldados, esse processo revela muito mais uma vitória
de cooptação e tentativa de pacificação das classes subalternas, do que uma importante
conquista na construção de hegemonia. Um ou outro participante das brincadeiras
tradicionais e do maracatu podem alcançar notoriedade, mas a popularização das
manifestações imateriais possibilitada pela indústria cultural de fato aconteceu pelo
interesse no lucro de um mercado específico. As conseqüências de manter a manifestação
mais uma vez na dinâmica do folclore são delicadas.
Em resumo, o maracatu de baque solto tornou-se conhecido e conquistou um
espaço protagonista enquanto representante de Pernambuco, mas seus mestres, brincantes
e grupos não puderam receber o mesmo tratamento, nem puderam desfrutar dessas
conquistas nesse cenário de mercantilização da cultura tradicional (MEDEIROS, 2005).
Tantos são os exemplos de mestres que podem ter conseguido alguma reputação, algum
destaque durante sua vida – seja em reconhecimento a partir de prêmios concedidos pelo
poder público, seja através da mídia ou ainda do mercado fonográfico contemporâneo, mas
que morreram pobres, no ostracismo, sem atenção.
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O Maracatu Nação Pernambuco é um grupo percussivo inspirado nas nações de maracatus de baque virado
fundado em 1989. Durante os anos 90 teve papel importante no diálogo entre a tradição dos maracatus e o
Movimento Mangue – o próprio Chico Science costumava freqüentar os ensaios abertos do grupo. Realizou
apresentações em todo o Brasil e no exterior. Também gravou com músicos como Alceu Valença, Naná
Vasconcelos, Antônio Carlos Nóbrega e Lenine. Foi através de seus colaboradores que as indumentárias dos
músicos e dançarinos começaram a criar um padrão para espetáculos, dando um salto do terreiro para o palco,
sendo seguido por outros grupos – inclusive os tradicionais.
maracatus nação autênticos, que é o que é ligado ao candomblé, que é o que tem todas
essas características de cortejo etc, tomasse uma proporção grande. Assim, os maracatus
percussivos têm um respeito para com os maracatus nação. (FUNDARPE, 2016)
Maracatu hoje é espetáculo. Então não tem condições de o dono do maracatu ele botar o
maracatu na rua só com o seu salário. Aí o concurso fomenta. Ele é ruim, eu não concordo
com o concurso, muda as características do brinquedo que o baque solto não tinha rei,
rainha, nem dama do paço. Hoje tem. Por outro lado, a gente tem que entender que ela não
pode ficar parada, ela tem que evoluir. A minha preocupação é o comércio e acabar os
mestres e se tornar pessoas jovens como produtores de cultura e não pensar em sua
origem, não pensar em sua essência e sim pensar só no espetáculo. Você tem que se
preocupar com o lado religioso, né? Você vê, o maracatu de baque solto ele é de origem
indígena, ele cultua a jurema indígena, oferecendo mel, fruta e flores como proteção. Ele
pode até cultuar os mestres, os Zé e as Pomba Giras, mas aí tem gente que confunde. Já usa
o sangue pra fazer maldade. Aí já dá uma misturada. (Informação verbal)12
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O Concurso de Agremiações tem a maior premiação dos concursos carnavalescos promovidos pela Prefeitura
do Recife, que conta também com o Concurso de Rei Momo e Rainha do Carnaval; Concurso de Passistas;
Concurso de Fantasias e o Concurso de Porta-Estandarte, Flabelista, Mestre Sala e Porta Bandeira. Os
vencedores do Concurso do Rei Momo e a Rainha do Carnaval ganham, cada um, R$ 18mil e reinam durante os
dias da festa, com extensa agenda.
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Patrícia Osório, no artigo sobre os Festivais de Cururu e Siriri, lembra que “os espetáculos guardam vínculos
com a organização social de suas competições, estabelecendo relações diversas com as cidades que os
promovem”. (OSÒRIO, 246).
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Ainda que esses números não representem exata e fielmente a realidade, o que interessa é a impressão de
Dona Juracy a respeito da perda das loas e dos rituais com o passar dos anos.
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Depoimento fornecido por Manoelzinho Salustiano, Recife, 24 de abril de 2019.
Trata-se de evento bastante disputado e com fortes doses de rivalidade entre os
grupos. Não são incomuns os relatos de confusão pós-resultado.
Os folguedos têm vínculos com o passado, mas são adaptados ao presente. Os próprios
brincantes estabelecem algumas classificações que nos permitem refletir sobre a dinâmica
entre passado e presente. Uma dessas classificações refere-se à diferenciação entre siriri
fundo de quintal e siriri espetáculo”. Ela explica que o primeiro é aquele brincado nas casas
das famílias, enquanto que o segundo efeito para turistas promovidos por órgãos públicos
ou pelo mercado. E continua: “A diferença diz respeito a mudanças de cenários de exibição
e contextos. O siriri fundo de quintal e o siriri palco envolvem formas diferenciadas de
experimentação da dança e de vinculação do folguedo a outras práticas sociais (OSÓRIO,
2012, p. 245).