Você está na página 1de 17

Antropologia, Performances e Patrimônios: saberes insubmissos 

Coordenador(es):
Paulo Jorge Pinto Raposo, ISCTE
Scott Head, UFSC - Universidade Federal de Santa Catarina

Resumo: O GT tem por objetivo reunir de comunicações que incorporem reflexões


antropológicas sobre as dimensões performativas e imateriais da cultura,
notadamente a relacionada a processos de patrimonialização. Interessa-nos (1)
entender como se evidenciam diálogos tensos e negociações entre saberes
insubmissos, insurgentes e subalternos, materializados em performances culturais e
cenários institucionalizados, que acionam a patrimonialização; (2) observar dinâmicas
entre patrimônio(s) e performance(s) explorando as dimensões criativas e processos
de objetificação cultural de repertórios culturais menos visibilizados ou minoritários;
ou as tensões entre expressões culturais de natureza performática (festas, rituais,
formas estéticas) e dinâmicas contemporâneas de classificação dessas formas
expressivas, marcadas por resistências anti-patrimoniais ou processos insurgentes de
empoderamento; (3) entender como formas de exibição dessas manifestações
expressivas da cultura se dinamizam através de propostas insubmissas - museus,
galerias, no espaço público, eventos ou plataformas virtuais - visando produzir
formas mais ou menos canônicas de cultura. Pretendemos pensar criticamente os
limites e as dimensões imateriais da cultura e da produção cultural do real. Serão
bem vindas propostas em diversos formatos, contribuindo para uma certa
descolonização na transmissão de ciência, seja pela tradicional comunicação oral,
pelo ensaio audiovisual, instalação comentada ou conferência-performativa.

Este trabalho é uma análise antropológica do Maracatu de Baque Solto em


Pernambuco, a partir dos sentidos que lhe são atribuídos pelas políticas que alegam preservá-
lo, assim como das tensões que florescem em meio aos seus detentores em razão do hiato que
se dá entre a retórica democrática da patrimonialização e suas práticas. Mais precisamente,
este é um estudo que tem em conta os efeitos éticos, estéticos e políticos da existência do
Maracatu enquanto Patrimônio, especialmente aqueles que destoam do sentido democrático
que se depreende da retórica da patrimonialização. Estes serão discutidos a partir de sua
inserção no Carnaval de Recife, quanto na recente política que patrimonializou o bem, sendo
ambos os cenários recortes privilegiados de uma relação guiada por imperativos de
preservação e sustentabilidade, mas que refletem com nitidez o paradoxo que se assenta sobre
tais pretensões democratizantes.
Em sua dimensão performática, o Maracatu encontra no Carnaval visibilidade e
potencial econômico para seus fazedores, e tem respectivamente sua estética modulada por
sua lógica festiva - tanto como experiência de entretenimento quanto de resistência. Enquanto
ocupam palcos e ruas com corpos, religiosidades e musicalidades que normalmente estão
ausentes de espaços privilegiados, assim como vestem-se também em sintonia com a
emblematização que tornou o Maracatu um grande signo da identidade pernambucana
projetada em favor do turismo local. Por outro lado, em sua extensão política, os detentores
deste bem cultural acessam por meio da patrimonialização uma espécie de Direito que se
traduz a partir da ótica do reconhecimento e, respectivamente, se sujeitam a ter sua
subjetividade regulada pelas políticas culturais que lhe são direcionadas. O Maracatu de
Baque Solto, aqui, tende a se materializar normatizado pela ética instrumental impregnada na
burocracia dos mecanismos de fomento, os quais enunciam-se enquanto canais que
viabilizariam o anseio dos fazedores pela sustentabilidade provida pela patrimonialização, e
vetores cruciais da natureza democrática da política patrimonial.
Neste sentido, os percalços que os maracatuzeiros vivenciam para acessar os recursos,
em ambos os recortes, e a respectiva precariedade que floresce de uma inatingível
sustentabilidade, evidenciam um paradoxo estrutural das políticas patrimoniais que é sua
impossibilidade de produzir a experiência inclusiva com a qual ela se enuncia. É esta
contradição a questão central deste trabalho, ao passo que ela evidencia uma dimensão
política (e não meramente técnica) da impossibilidade que as políticas culturais detêm em não
satisfazerem as expectativas, por ela mesmo lançadas, sobre os detentores do bem em terem
suas vidas economicamente melhoradas pelo direito cultural alcançado.
Esta condição paradoxal produz um arranjo afetivo complexo em meio aos detentores
do bem, o qual sobrepõe a frustração com os benefícios materiais da patrimonialização ao
orgulho pelo seu reconhecimento, e que aqui será discutido a fim de iluminar a natureza
fundamentalmente reguladora, e não majoritariamente inclusiva, das políticas patrimoniais.
Este conjunto de questões será debatido aqui ao longo de três seções. A primeira delas
envolve a relação do Maracatu com o carnaval do Recife – o qual, como mencionado, é um
momento tópico de visibilidade e possibilidades econômicas para os maracatuzeiros, e que
replica com grande intensidade os referidos problemas. A segunda seção diz respeito ao
processo de propriamente dito de patrimonialização do maracatu do baque solto, o qual
descamba em outras ações em termos de políticas públicas e na forma aguda com que se
constrói a frustração diante da burocracia do Estado. A terceira e última seção corresponde,
justamente, aos referidos arranjos afetivos que decorrem da forma como o Direito Cultural é
acessado enquanto o alcance a outros Direitos é obstruído. É a partir desta última que se
desenha com mais clareza o argumento que será apresentado na conclusão deste trabalho, o
qual deposita sobre este paradoxo da política cultural um sentido de governo – como
estratégia de regulamentação e no sentido foucaltiano do termo, e que o situa na base da
dinâmica que as democracias liberais constroem como forma de estabelecer
comprometimentos morais entre sujeitos e a ordem constituída.
Mas, antes disso, é preciso esclarecer aqui alguns sentidos que estão sendo utilizados
em meio a este trabalho. Isso corresponde, mais diretamente, aos sentidos de política cultural
e patrimonialização, onde um quesito crítico se faz presente na forma como se concebe os
usos políticos e instrumentais da cultura em questão aqui. De início, eu gostaria de registrar a
implicação da concepção de Heidegger para a técnica que George Yúdice (??) resgata para
compreender a Cultura na contemporaneidade. Nesta, a técnica ocupa um lugar primordial
enquanto forma de pensar, onde a natureza (a realidade sensível) é compreendida unicamente
enquanto recurso para algo, e, segundo Yúdice, esta também é a tônica de como se
compreende a Cultura na contemporaneidade. Por conseguinte, a instrumentalidade da cultura
demarca, já início, os limites do terreno que pretendemos definir aqui enquanto política
cultural como, também, forma de diferenciar este entendimento de um sentido convencional
que o iguala a ideia de políticas públicas para a cultura.
A política cultural é, primariamente, um instrumento que percebe os sujeitos enquanto
recursos para o alcance de alguma finalidade. Ela é o suporte que canaliza os diferentes tipos
de registro da cultural – sejam estes os registros estéticos que indicam diferenças entre
indivíduos (por meio do gosto), sejam estes os registros antropológicos que sugerem
diferenças entre comunidades (linguagem, religiões, costumes e etc), e os articula sob a forma
de uma política que tem em si um objetivo estabelecido. Isto vai muito além do entendimento
que a circunscreve aos gestos do Estado, ao passo outros agentes também manejam
politicamente a sua diferença em favor de conquistas e mudanças. Ela opera definindo
condutas, agindo sobre os indivíduos e regulando seu campo de possibilidades, o que lhe
concede uma natureza ético-política. É a política cultural, por conseguinte, uma tecnologia
política que produz sujeitos enquanto cidadãos por meio da cultura, inscrevendo sobre estes
indivíduos substâncias éticas por meio de instituições e discursos, as quais implicam tanto em
sua auto-regulação quanto em seu comprometimento moral com a totalidade que lhe permite
a cidadania (Miller, Yúdice; ??).
Em termos de análise, uma abordagem crítica implica em pensar a cultura sem reduzir
a realidade a lógica hegemônica, desnaturalizando alguns sentidos e discursos que a
estruturam. Esta escolha, mais especificamente, enseja consequências como não dar
centralidade a uma agenda gerencial, desautorizar noções celebradas de economia da cultura,
e entender o patrimônio como um produto político discursivo mais do que a consagração
teleológica de um bem cultural. Isto corresponde ao fato de que a política cultural não almeja
preservar fortalecer manifestações culturais per se, mas produzir ganhos políticos para grupos
sociais com falta de poder ou cultivar uma lealdade entre os sujeitos e a ordem hegemônica,
ambas possibilidades por meio do uso de um conjunto de elementos reunidos sob a rubrica
“cultura”.
Neste sentido, nosso objeto privilegiado de análise são as comunidades envoltas com
a fazer do Maracatu, ao invés do Estado. É nelas que reside o nosso lócus referencial de
poder, autoridade e responsabilidade, ao contrário da convencional escolha sob as esferas
funcionais da estrutura estatal. É uma pesquisa interessada mais em uma mudança social
progressista, e menos na descrição e aprimoramento dos mecanismos tradicionais da política
cultural, o que nos inspira, sendo nossos pontos de partidas questões políticas, éticas e
afetivas ao contrário de eficiência, eficácia e descrição.

O Carnaval se vestindo

A inspiração para uma discussão sobre a reformulação que se produz sobre os sentidos do
Maracatu, a partir do Carnaval, adveio inicialmente da constatação sobre a potência do
próprio ato, em si, de construção estética dos maracatuzeiros com vistas a participar das
festividades carnavalescas. Em seguida, somou-se a tal conhecimento sobre o processo de
metamorfose pautada pela festa a percepção da natureza regular e profunda das frequentes e
reiteradas queixas que emergem da forma precária com a qual se financia a participação
destes grupos.
Aqui, o que se procura é enfatizar como a manifestação ganha significados a partir de
uma política que alega preservá-lo; e não reivindicar algum tipo de engessamento, resgate ou
conservação paralisante da dinâmica do bem cultural. O que interessa primordialmente é
compreender quais os princípios que guiam este inevitável processo de significação, mais do
que requerer a preservação de uma eventual essência, negando a fluidez indesviável da
cultura, a qual não permite com que seus sentidos estejam de alguma forma ancorados em
algum lugar.
No Carnaval, todos os anos os caboclos sobem o Marco Zero – principal palco do
evento oficial, exibindo-se para milhares e milhares de espectadores e para várias equipes de
televisão com transmissão nacional. Mas fora dele, em suas comunidades originais, a
apresentação de um grupo de maracatu se dá performativamente sob uma lógica diferente.
Num terreiro, toda a atenção está voltada para a disputa poética entre os mestres que se
enfrentam. Durante cada verso, os folgazões e visitantes se calam, observam e vibram ao
final da rima improvisada. Toca-se o terno, elaboram-se as manobras e, depois do corte do
apito do mestre que vai dar a resposta, retoma-se o ritual protocolo. O público é respeitoso e
sabe que ali está a alma da brincadeira na sambada (MENEZES, 2009).
Num palco, ou em qualquer outro espaço distante desse ambiente, onde os grupos são
para o público quase que exclusivamente um elemento exótico, as coisas se dão de forma
bem diferente. Trata-se de uma mera contemplação externalizada, de uma atividade
desterritorializada e desprendida da habitualidade. Os espectadores se encantam com a
plasticidade do brinquedo, o movimento das cores que saltam das manobras, mas não atentam
para à munganga do caboclo, nem ao verso do mestre. Poucos se interessam pelo complexo
entroncamento da manifestação. Entendem como algo bonito de se ver, mas desde que não se
estenda por não mais que dez minutos.
Algo que se compara ao processo que José Jorge de Carvalho (2010) define como
espetacularização da cultura popular. A demanda evidente da visão comercial em torno da
cultura transformou a atuação, dinâmica e a logística dos grupos. As cores das roupas dos
integrantes e o tamanho das golas (que originalmente cobriam basicamente o peitoral do
caboclo) deixaram de ser suficiente, elas precisavam crescer e brilhar: purpurinas, lantejoulas,
celofanes foram introduzidas nas indumentárias. Os adereços foram ganhando protagonismo,
o tempo de apresentação se adequando ao formato exigido, os gestuais das danças assumindo
mais potência. Os grupos tinham que se apresentar com sorrisos nos rostos, esbanjando
alegria, encantamento, exotismo – emoções fundamentais para cativar o turista e o cidadão de
classe média. Os elementos dos grupos precisavam, a partir de então, exaltar a memória, a
singularidade, a história e a cultura pernambucanas. Quanto mais chamativo e animado o
grupo, melhor.
Neste sentido, para a política cultural que o espetaculariza, pouco importa a
autenticidade, a originalidade ou a tradição do maracatu. Atingir o padrão a ser oferecido
enquanto mercadoria para o turista significa apresentar um produto de qualidade, que traga
distração e encantamento. Os pacotes padronizados e massificados precisam tão somente
cumprir o papel de um olhar superficial sobre o que está sendo apresentado – com tempo e
espaço para um registro fotográfico. Ou seja, a dinâmica de uma apresentação tem que
obedecer ao desejo e a contemplação do turista.
Os grupos de maracatu de baque solto participam do Carnaval oficial do Recife de
duas maneiras. A primeira, contratados para apresentações nos pólos espalhados pela cidade,
onde chegam, em média, com 100, 150 folgazões por grupo. A corte e os Caboclos fazem
algumas manobras no chão enquanto o terno, o mestre e o contramestre sobem ao palco para
cantar alguns versos e conduzir o recolhimento do grupo, meia hora depois. A segunda é no
Concurso de Agremiações, que é dividido em algumas categorias e que, existe uma
premiação em dinheiro para os vencedores. Uma Comissão Julgadora, composta por
membros que atuam de alguma forma nas áreas das culturas populares pernambucanas,
analisa os itens pré-estabelecidos que compõem as exigências do Edital. Em grande medida,
esses critérios padronizam e hegemonizam a atuação os grupos e, sobre isto, Manoelzinho
Salustiano, Presidente Associação de Maracatus de Baque Solto de Pernambuco, entende o
seguinte:

Maracatu hoje é espetáculo. Então não tem condições de o dono do maracatu ele botar o
maracatu na rua só com o seu salário. Aí o concurso fomenta. Ele é ruim, eu não concordo
com o concurso, muda as características do brinquedo que o baque solto não tinha rei, rainha,
nem dama do paço. Hoje tem. Por outro lado, a gente tem que entender que ela não pode ficar
parada, ela tem que evoluir. A minha preocupação é o comércio e acabar os mestres e se
tornar pessoas jovens como produtores de cultura e não pensar em sua origem, não pensar em
sua essência e sim pensar só no espetáculo. Você tem que se preocupar com o lado religioso,
né? Você vê, o maracatu de baque solto ele é de origem indígena, ele cultua a jurema
indígena, oferecendo mel, fruta e flores como proteção. Ele pode até cultuar os mestres, os Zé
e as Pomba Giras, mas aí tem gente que confunde. Já usa o sangue pra fazer maldade. Aí já
dá uma misturada. (Informação verbal)1

De acordo com a Associação de Maracatus de Baque Solto de Pernambuco, a


Prefeitura do Recife é a principal instituição fomentadora dos grupos, sendo a grande
contratante do período carnavalesco – ainda que a maioria esmagadora dos grupos não se
situe geograficamente na cidade. Em média, 65 grupos de baque solto são contratados
durante o ciclo carnavalesco. Considerando que nem todos possuem documentação em dia
exigida pela gestão para a contratação, e que alguns não conseguem ter condições
financeiras (capital de giro ou articulação com políticos e empresários) para custear as
despesas para a participação na festa, ou ainda, que alguns ficam inabilitados na fase
artística, este é um número bastante considerável, já que a associação conta com 113
grupos inscritos.
O valor das tocadas varia bastante, a depender das comprovações de cachês que os
grupos possuem. Para os grupos que não possuem comprovações, o Estado paga R$
2.000,00 e a Prefeitura do Recife, R$ 3.000,00. Há grupos mais organizados, com
documentação atualizada e comprovação de cachê, que chegam a receber R$ 15.000,00 por
1
Depoimento fornecido por Manoelzinho Salustiano, Recife, 24 de abril de 2019.
uma tocada. A maioria dos grupos, entretanto, recebe uma média de R$ 5.000,00 a R$
6.000,00 por uma tocada. Os grupos que conseguem participar do Concurso de Agremiações
promovido pela Prefeitura do Recife recebem ainda como subvenção R$ 7.000,00 (grupo 2);
R$ 11.000,00 (grupo 1) e R$ 16.000,00 (grupo especial).
A Prefeitura do Recife nunca avançou de maneira consistente nos mecanismos de
democratização do acesso ao fomento. Até o momento, não há se quer edital de fomento
próprio para ações independentes da sociedade civil. Os editais dos ciclos culturais
(carnaval, São João e natal) têm formato de convocatória, analisado exclusivamente por
funcionários da Prefeitura (sem mesclar o processo com a sociedade civil - como acontece,
por exemplo, no Governo do Estado). O canal de interlocução do poder público com a classe
artística é o Conselho Municipal de Cultura.
Em suma, o ciclo carnavalesco coloniza esteticamente o Maracatu de Baque Solto ao
passo que a festa habita centralmente o horizonte subjetivo dos maracatuzeiros desde
muito antes de sua realização. A dimensão da visibilidade alcançada, e a possibilidade de
acesso aos recursos públicos, faz deste momento um elemento que já se indissocia da
manifestação em si. Esta dinâmica está longe de ser um problema pela incorporação de
novas possibilidades estéticas e performáticas para o maracatu, afinal nem os próprios
fazedores se mostram interessados em uma concepção a-histórica e paralisada deste bem
cultural. A questão maior que se revela em meio a um olhar mais acurado é que são
sentidos muito específicos - provenientes de uma ética familiar a classe média e que articula
cidadania e consumo, o que guia este processo. As contradições sugeridas anteriormente

Esta amplificação foi acompanhada de uma tensão em torno da insuficiente


participação (econômica, especialmente) dos brincantes nesta nova sinergia cultural que se
deu em torno do Maracatu. Mestre Salustiano, fundador do Maracatu de Baque Solto Piaba
de Ouro, é um crítico dessa dinâmica. Segundo ele, todos – mercado, governo e mídia –
lucraram com a utilização dos personagens das manifestações tradicionais (em destaque, o
caboclo de lança) sem que qualquer retorno para os folgazões fosse garantido 2. Também os
grupos de maracatus nação, os de matrizes religiosas afrobrasileiras, se inquietavam com o
surgimento de grupos que não mantém ligações mágicas com o mundo invisível e com o uso
indiscriminado do termo maracatu. Para eles, o maracatu está, necessariamente, sustentado
nos rituais e preceitos do candomblé. Os brincantes que ensaiavam no bairro do Recife
Antigo, em sua esmagadora maioria universitários de classe média branca desvinculados dos
códigos religiosos não poderiam ser chamados de maracatus nação, já que não mantinham a
tradição religiosa (o termo “nação” faz referências às nações africanas de onde descendem)3.
Diante disto, o desejo em torno da patrimonialização do Maracatu de Baque Solto
floresce em meio a um anseio – por parte dos fazedores do bem – de que tal política pudesse
ir além dos efeitos produzidos pela espetacularização aqui descrita. Isto envolveria
contemplar suas demandas de sustentabilidade, e de que o status alcançado pelo bem
patrimonializado pudesse incorrer em benefícios diretos a partir do fomento aos seus direitos
culturais. Por conseguinte, analisar os efeitos desta política implica ter enquanto referência
justamente esta agenda dos fazedores do bem cultural, pois é na medida em que esta se
materializa que há de residir (sob o ponto de vista destes) a potência democratizante e cidadã
das políticas patrimoniais.

No entanto, as trocas culturais entre manifestações e diálogos entre o passado e o


presente são muito claras e funcionam enquanto mecanismos de adaptação. Aliás, o ritual é
isso, representações que têm a preocupação em fazer a ligação entre os tempos (OLIVEIRA,
2010, p. 02). Personagens das brincadeiras tradicionais se repetem em manifestações
diferentes. É fácil de imaginar: um trabalhador rural que costumava brincar de Mateus ou
de Bastião no Cavalo Marinho4, quando vai para uma sambada de maracatu, ele acaba
levando involuntariamente esse repertório (da dança, do espírito, da música, da poesia, seja
2
Tem alguma referência disso? Digo, algum registro formal (entrevista e etc) em que esse entendimento dele
está registrado?
3
Essa é outra questão que mereceria uma referencia.
4
Originalmente do ciclo natalino, o Cavalo Marinho foi contextualizado aqui dentro do carnaval porque os
grupos dessa manifestação, com o passar dos anos, assimilaram a festa de Momo em suas atuações. Em 2019
houve grande discussão na Secretaria de Cultura do Estado de Pernambuco a respeito dessa conjuntura, mas a
maioria dos membros da Comissão de Cultura Popular entendeu que o Cavalo Marinho, além de ser considerado
similiar de bois (de carnaval), estão hoje dentro do ciclo.
lá em que formato for) para o novo ambiente. Sendo assim, é forçoso reconhecer que as
manifestações não podem se manter ‘puras’, originais. Da mesma forma, quando uma
criança ou um jovem frequenta o terreiro, ele traz para aquele universo sua conexão direta
com a música da atualidade. É o caso, por exemplo, dos Siriris assimilando trechos da
música pop sertaneja relatado por Patrícia Silva Osório (2011). Por mais bem-intencionadas
que sejam as vozes que se levantam em favor da manutenção das tradições, o que é
compreensível, considerando que a globalização acelera o processo de marginalização das
culturas de matrizes africanas e indígenas, estas são bandeiras vencidas. As brincadeiras
tradicionais estão em diálogo com o mundo contemporâneo – e isso é que as mantém vivas
ainda, transformando-se, assumindo novos formatos, abolindo algumas práticas e
incorporando outras novas. Manifestações não são estáticas, não são peças de museu – no
livro Raça e História, escrito para a UNESCO e publicado em 1952, Lévi-Strauss já expunha
esse ponto de vista. Para o antropólogo francês, as sociedades não estão sós. Aliás, não
apenas não estão sós, como também não estão dispostas em uma linha evolutiva, na qual as
sociedades ditas ocidentais seriam o ponto culminante.

Acredito ser relevante abrir um parêntese: não me coloco no papel definidor dos
rumos e enquadramentos que os grupos devem tomar ou assumir. Lembro recentemente,
por exemplo, a polêmica relacionada à inclusão ou não de algumas manifestações em
determinados editais de incentivo do Estado. Foi o caso do edital do Carnaval de 2019 para
montagem da grade de programação oficial do Governo: os grupos de Cavalo Marinho
foram excluídos do certame, o que causou revolta entre alguns mestres e brincantes da
manifestação.
O Boi Pintado, do Mestre Grimário, entrou com recurso contra a decisão da gestão. A
questão levantada pela Secretaria de Cultura é que o Cavalo Marinho pertence,
originalmente, ao ciclo natalino e, portanto, não deveria ser fomentado durante o Carnaval.
Grimário argumentou que o Carnaval já é uma festa apropriada também pela manifestação
– há algum tempo. Há pelo menos 10 anos, na programação oficial do Estado e da Prefeitura
do Recife, grupos de Cavalo Marinho vêm brincando no reinado de Momo.
Se o Estado se utiliza das manifestações populares para autopromoção, por qual
motivo essas manifestações não devem usufruir dos espaços criados pelas gestões para
também se mostrarem e impulsionarem a brincadeira – considerando, sobretudo, que trata-
se de uma manifestação patrimonializada e que, portanto, merece uma atenção especial
das políticas públicas de fomento? Se artistas consagrados como Alceu Valença, Lenine e
Chico Science já se utilizaram de elementos dessas tradições em suas apresentações e em
suas obras, por qual motivo as próprias tradições não podem fazer parte da festa? Por qual
motivo não estão incluídas enquanto produto final do processo produtivo se o Estado
estimula a profissionalização e o empreendedorismo dos grupos?

No Carnaval, todos os anos os caboclos sobem o Marco Zero – principal palco do


evento oficial, exibindo-se para milhares e milhares de espectadores e para várias equipes
de televisão com transmissão nacional. Consequentemente, o número de pesquisadores
interessados no universo do maracatu aumenta e os olhares variados sobre o tema vêm
contribuindo bastante para a produção de conhecimento sobre os grupos, mestres,
folgazões e ritos. É um efeito bola de neve que pode ser considerado saudável, por um lado,
mas que carrega ainda diversos problemas, por outro.
A apresentação de um grupo de maracatu envolve o público de maneira bem distinta
a depender do local onde acontece. Num terreiro, toda a atenção está voltada para a
disputa poética entre os mestres que se enfrentam. Durante cada verso, os folgazões e
visitantes se calam, observam e vibram ao final da rima improvisada. Toca-se o terno,
elaboram-se as manobras e, depois do corte do apito do mestre que vai dar a resposta,
retoma-se o ritual protocolo. O público é respeitoso e sabe que ali está a alma da
brincadeira na sambada. A relação desses espectadores e brincantes é territorial, e
existencial (MENEZES, 2009).
Num palco ou em qualquer outro espaço distante desse ambiente, onde os grupos
são, para o público, quase que exclusivamente um elemento exótico, acontece bem
diferente. Trata-se de uma mera contemplação externalizada, de uma atividade
desterritorializada, desprendida da habitualidade (MENEZES, 2009). Os espectadores se
encantam com a plasticidade do brinquedo, o movimento das cores que saltam das
manobras, mas não atentam para à munganga do caboclo, nem ao verso do mestre. Poucos
se interessam pelo complexo entroncamento da manifestação. Entendem como algo bonito
de se ver, mas desde que não se estenda por não mais que dez minutos. Depois, parece
tudo muito parecido. E não é.
As pesquisadoras Carla Borba e Margarita Barreto diagnosticam que, desde 1980, o
segmento do turismo cultural5 surgiu como uma alternativa que se contrapunha ao potente
mercado de oferta sol e praia, que vinha até então em crescente trajetória – tanto em
aspectos econômicos, quanto em quantidade de pessoas – desde a década de 1950. O
fenômeno se deu, dentre outros motivos, pelo crescente debate provocado nas academias
acerca dos “impactos negativos do turismo massivo, aliado a certo desgaste da oferta
anterior” (BORBA & BARRETO, 2015, p. 360). Os novos perfis de consumidores do turismo
passaram a procurar, a partir de então, destinos agradáveis aliados a contextos históricos,
patrimoniais e culturais – entre outros. Esse turista, mais exigente, também despertou para
preocupações socioambientais, impulsionado pelo debate da sustentabilidade.
Em resumo, o novo formato de pacotes demandado teria que demonstrar
preocupações com a diminuição do impacto negativo de um certo tipo de turismo, assim
como ser sensível aos elementos culturalmente diversos, e aliar estas variáveis a superação
de problemas de sazonalidade6. A discussão focava no turismo associado ao
desenvolvimento econômico dos espaços e das comunidades receptoras dos visitantes.
Sofia Araújo de Oliveira também reafirma esse momento:

A cultura popular é um diferencial já exposto há algum tempo como ‘produto’.


Festas, artesanato, danças, rituais, gastronomia e costumes são trabalhados para
atender aos turistas. A utilização desses elementos é feita divulgando amplamente
seus benefícios: movimentação da economia, geração de emprego e renda,
aumento das vendas dos produtos artesanais e alimentos, valorização e
manutenção do patrimônio cultural local (OLIVEIRA, 2010, p. 62)
.
A ideia inicial, que sustentou os princípios do turismo cultural, portanto, era que, no
contexto da globalização, a cultura poderia ser entendida enquanto elemento que
particulariza, detalha as experiências.
5
O Ministério do Turismo entende por turismo cultural, “atividades turísticas relacionadas à vivência do
conjunto de elementos significativos do patrimônio histórico e cultural e dos eventos culturais, valorizando e
promovendo os bens materiais e imateriais da cultura”. Grünewald lembra que Wood (1984) contrapõe
turismo étnico e turismo cultural. Segundo este, “turismo étnico poderia ser definido pelo seu foco direto
sobre pessoas sobrevivendo uma identidade cultural cuja singularidade está sendo comprada por turistas...”,
enquanto que turismo cultural seria “em termos de situações onde o papel da cultura é contextual, onde seu
papel está para moldar a experiência do turista de uma situação em geral, sem um foco particular sobre a
singularidade de uma identidade cultural específica” (GRÜNEWALD, 1999, pg. 306).
6
De acordo Paul Tolila (2007), entre 1980 e 1998, o segmento do turismo cultural apresentou um crescimento
de 4 vezes a mais do que outros setores econômicos..
O turismo étnico e cultural seria uma forma de exploração violenta das minorias até
hoje. Medeiros, citando a Condição Pós-Moderna de David Harvey, afirma que “o mercado e
a mídia não se interessam pelo o que perdura, mas pela fugacidade. É a sociedade pós-
moderna mobilizada pelo consumo, pela informação e pela acentuação do individualismo”
(MEDEIROS, 2005, p. 23).

Em Pernambuco, o mercado local e as políticas públicas de turismo acompanharam a


mesma tendência. As manifestações e as expressões tradicionais das culturas populares
locais foram amplamente utilizadas enquanto produto que agregaria valor às vendas
relacionadas ao mercado de visitantes: coco, ciranda, afoxé, samba, caboclinhos, reisado e
caretas. O caboclo de lança do maracatu de baque solto foi especialmente eleito para
representar a pernambucanidade, depois de muitos anos do Estado famoso pela presença
do frevo e a já desgastada sombrinha7. Era preciso propor algo novo ao trade turístico e o
caboclo de lança soava como a imagem ideal: sugeria a bravura do povo pernambucano, seu
espírito guerreiro e sua luta. De acordo com Borba e Barreto (2015), na verdade as gestões
públicas seguiram o caminho que já vinha sendo traçado pelo mercado. Esse personagem da
cultura tradicional já havia sido eleito pelo mercado quando a gestão entendeu o potencial
simbólico dessa escolha.
O Maracatu de Baque Solto que, até então, havia sido questionado, ridicularizado,
temido ou perseguido pela sociedade pernambucana, agora via seus símbolos incorporados
pelo trade, pelo Estado e pela mídia – passou a ser comum ver artistas locais conhecidos
nacionalmente que, quando voltavam para se apresentar em Pernambuco, subiam ao palco
com uma gola bordada, com uma lança na mão ou com uma cabeça de tiras coloridas: Alceu
Valença, Antônio Carlos Nóbrega, Banda Versão Brasileira, Chico Science e a Nação Zumbi
são exemplos.
Essa manifestação desconhecida, selvagem e misteriosa foi apropriada e cooptada
como símbolo de Pernambuco em menos de duas décadas. Era uma forma de reafirmar a

7
Em 2 de janeiro de 1956 o Prefeito Pelópidas da Silveira assina regulamentação da Lei n. 3.346 de 7 de junho
de 1955 que promovia a oficialização do carnaval do Recife. Desde então o frevo é colocado em evidência pelo
poder público e passa a ser hegemônico nas festas de rua e nos clubes – processo que resultou em sua
patrimonialização na primeira década dos anos 2000.
identidade com o território. Esse movimento, naturalmente, trouxe aspectos positivos e
aspectos negativos para os maracatuzeiros, de maneira específica, e para os mestres e
brincantes das culturas populares tradicionais de maneira geral – sobre os quais vamos
refletir.
A questão é que, apesar de ter conquistado uma visibilidade para a brincadeira, o
que evidencia também o caráter de resistência de seus mestres e brincantes durante tanto
tempo perseguidos, censurados e moldados, esse processo revela muito mais uma vitória
de cooptação e tentativa de pacificação das classes subalternas, do que uma importante
conquista na construção de hegemonia. Um ou outro participante das brincadeiras
tradicionais e do maracatu podem alcançar notoriedade, mas a popularização das
manifestações imateriais possibilitada pela indústria cultural de fato aconteceu pelo
interesse no lucro de um mercado específico. As conseqüências de manter a manifestação
mais uma vez na dinâmica do folclore são delicadas.
Em resumo, o maracatu de baque solto tornou-se conhecido e conquistou um
espaço protagonista enquanto representante de Pernambuco, mas seus mestres, brincantes
e grupos não puderam receber o mesmo tratamento, nem puderam desfrutar dessas
conquistas nesse cenário de mercantilização da cultura tradicional (MEDEIROS, 2005).
Tantos são os exemplos de mestres que podem ter conseguido alguma reputação, algum
destaque durante sua vida – seja em reconhecimento a partir de prêmios concedidos pelo
poder público, seja através da mídia ou ainda do mercado fonográfico contemporâneo, mas
que morreram pobres, no ostracismo, sem atenção.

Um dos argumentos em defesa do uso do maracatu enquanto produto cultural, além


das justificativas apontadas mais acima, é que o trabalho dos folgazões é sazonal. Parte do
ano estão no corte da cana, outra parte estão ociosos. Usufruindo do produto enquanto
mercadoria e ampliando o número de consumidores, a arte desses caboclos poderia
movimentá-los durante boa parte do ano.

Em grande medida, esse movimento de visibilização dos maracatus e da


pernambucanidade por Governo, trade e mídia, impulsionou a criação de vários grupos, nas
periferias e no centro. Como ressaltou Hermano, “as festas populares se alimentam de
inovações há muito tempo. Ninguém pode controlar sua constante folia”. (VIANNA, 2005, p.
313). Além disso, tal conjuntura levou esses grupos e se organizarem para negociar cachês e
vender os produtos que tinham em mão para oferecer. Os espaços para suas apresentações
passaram a ser os mais diversificados: receptivos, casamentos, shoppings, formaturas.
Complementando recursos que davam condições de investimento aos grupos e geravam
renda extra aos mestres e brincantes.
O processo não é isento de tensões e o movimento é visto com desconfiança por
alguns. Mestre Salustiano, fundador do Maracatu de Baque Solto Piaba de Ouro, foi um
crítico dessa dinâmica. Segundo ele, todos – mercado, governo e mídia – lucravam com a
utilização dos personagens das manifestações tradicionais (em destaque, o caboclo de
lança) sem que qualquer retorno para os folgazões fosse garantido. Também os grupos de
maracatus nação, os de matrizes religiosas afrobrasileiras, se inquietavam com o surgimento
de grupos que não mantém ligações mágicas com o mundo invisível e com o uso
indiscriminado do termo maracatu. Para eles, o maracatu está, necessariamente,
sustentado nos rituais e preceitos do candomblé. Os brincantes que ensaiavam no bairro do
Recife Antigo, em sua esmagadora maioria universitários de classe média branca
desvinculados dos códigos religiosos não poderiam ser chamados de maracatus nação, já
que não mantinham a tradição religiosa (o termo “nação” faz referências às nações
africanas de onde descendem). Passaram, então, a ser identificados enquanto grupos
percussivos. Fábio Sotero, diretor do Maracatu Nação Aurora Africana, em depoimento ao
documentário Maracatu Nação, fez a seguinte análise:

Alguns maracatus, o Nação Pernambuco 8 particularmente, começaram a realizar uma nova


roupagem nas apresentações de maracatu e começaram a divulgar isso no exterior
também, justamente na mesma época que o Manguebeat surgiu. E isso foi muito bom
porque, assim, o pessoal começou a conhecer o instrumento alfaia, começou a padronizar
uma forma de tocar. E a partir do Manguebeat e do que o Nação Pernambuco começou a
desenvolver, o toque do maracatu começou a ter um padrão: toque de Luanda, toque de
Imalê, toque de Arracho, toque de Parada... Abriu um leque para que outras pessoas,
independente da religião, começassem a ter interesse no fato de tocar maracatu. Isso fez
com que os maracatus nação tomassem um reinado, um lugar. Porque hoje existem vários
maracatus. Mas graças a Deus, nós que somos maracatus nação, que chamamos de

8
O Maracatu Nação Pernambuco é um grupo percussivo inspirado nas nações de maracatus de baque virado
fundado em 1989. Durante os anos 90 teve papel importante no diálogo entre a tradição dos maracatus e o
Movimento Mangue – o próprio Chico Science costumava freqüentar os ensaios abertos do grupo. Realizou
apresentações em todo o Brasil e no exterior. Também gravou com músicos como Alceu Valença, Naná
Vasconcelos, Antônio Carlos Nóbrega e Lenine. Foi através de seus colaboradores que as indumentárias dos
músicos e dançarinos começaram a criar um padrão para espetáculos, dando um salto do terreiro para o palco,
sendo seguido por outros grupos – inclusive os tradicionais.
maracatus nação autênticos, que é o que é ligado ao candomblé, que é o que tem todas
essas características de cortejo etc, tomasse uma proporção grande. Assim, os maracatus
percussivos têm um respeito para com os maracatus nação. (FUNDARPE, 2016)

A demanda evidente da visão comercial em torno da cultura transformou a atuação,


dinâmica e a logística dos grupos. As cores das roupas dos integrantes dos grupos, deixaram
de ser suficientes, elas precisavam brilhar: purpurinas, lantejoulas e celofanes foram
introduzidas nas indumentárias. Os adereços foram ganhando protagonismo, o tempo de
apresentação se adequando ao formato exigido, os gestuais das danças assumindo mais
potência. Os grupos tinham que se apresentar com sorrisos nos rostos, esbanjando alegria,
encantamento, exotismo – emoções fundamentais para cativar o turista. Os elementos dos
grupos precisavam, a partir de então, exaltar a memória, a singularidade, a história e a
cultura pernambucanas. Quanto mais chamativo e animado o grupo, melhor. Neste sentido,
para o trade turístico, pouco importa a autenticidade, a originalidade ou a tradição do
maracatu. Atingir o padrão a ser oferecido enquanto mercadoria para o turista significa
apresentar um produto de qualidade, que traga distração e encantamento. Os pacotes
padronizados e massificados precisam tão somente cumprir o papel de um olhar superficial
sobre o que está sendo apresentado – com tempo e espaço para um registro fotográfico. Ou
seja, a dinâmica de uma apresentação tem que obedecer ao desejo e a contemplação do
turista.

Os grupos de maracatu de baque solto participam do Carnaval oficial do Recife de


duas maneiras. A primeira, contratados para apresentações nos pólos espalhados pela
cidade, onde chegam, em média, com 100, 150 folgazões por grupo. A corte e os Caboclos
fazem algumas manobras no chão enquanto o terno, o mestre e o contramestre sobem ao
palco para cantar alguns versos e conduzir o recolhimento do grupo, meia hora depois.

A segunda é no Concurso de Agremiações. Dividido em quatro categorias: Grupo


Especial; Grupo 1; Grupo 2 e Grupo de Acesso, o Concurso acontece domingo, segunda e
terça-feira de Carnaval. Em 2018, contou com a presença de 225 agremiações em 11
modalidades diferentes: Troças; Clubes de Frevo; Clubes de Boneco; Blocos Pau e Corda;
Maracatu de Baque Solto; Maracatu de Baque Virado; Caboclinhos; Tribo de Índios; Bois de
Carnaval; Ursos (ou La Ursas, como são mais conhecidas popularmente) e Escolas de Samba.
A Prefeitura do Recife ofereceu em 2016 R$ 730.500,00 em prêmios para os vencedores 9.
Uma Comissão Julgadora, composta de sete membros que atuam de alguma forma
nas áreas das culturas populares pernambucanas (artistas, brincantes, gestores...), analisa
os itens pré-estabelecidos que compõem as exigências do Edital 10. Esses critérios
padronizam e hegemonizam a atuação os grupos. Por um lado, esse engessamento acaba
com as peculiaridades dos grupos. Dona Juracy Simões do Clube Indígena Canindé, o grupo
de Caboclinho mais antigo em atividade (fundado em 1897), eleito Patrimônio Vivo de
Pernambuco em 2009, relata que na época em que seu avô comandava o grupo, mais de
200 loas eram cantadas e ensinadas aos mais novos. Hoje, ela não contabiliza 50 loas 11.
Dentre outros fatores, Dona Juracy acreditava que a estrutura engessada e autoritária dos
critérios do Concurso de Agremiações levou a estas perdas. Nas palavras de Osório, os
grupos enfrentam o que seria um processo de domesticação da cultura popular: “para estar
no espetáculo é preciso ser espetáculo” (OSÓRIO, 2012, p. 248). Sobre isto, Manoelzinho
Salustiano diz o seguinte:

Maracatu hoje é espetáculo. Então não tem condições de o dono do maracatu ele botar o
maracatu na rua só com o seu salário. Aí o concurso fomenta. Ele é ruim, eu não concordo
com o concurso, muda as características do brinquedo que o baque solto não tinha rei,
rainha, nem dama do paço. Hoje tem. Por outro lado, a gente tem que entender que ela não
pode ficar parada, ela tem que evoluir. A minha preocupação é o comércio e acabar os
mestres e se tornar pessoas jovens como produtores de cultura e não pensar em sua
origem, não pensar em sua essência e sim pensar só no espetáculo. Você tem que se
preocupar com o lado religioso, né? Você vê, o maracatu de baque solto ele é de origem
indígena, ele cultua a jurema indígena, oferecendo mel, fruta e flores como proteção. Ele
pode até cultuar os mestres, os Zé e as Pomba Giras, mas aí tem gente que confunde. Já usa
o sangue pra fazer maldade. Aí já dá uma misturada. (Informação verbal)12

9
O Concurso de Agremiações tem a maior premiação dos concursos carnavalescos promovidos pela Prefeitura
do Recife, que conta também com o Concurso de Rei Momo e Rainha do Carnaval; Concurso de Passistas;
Concurso de Fantasias e o Concurso de Porta-Estandarte, Flabelista, Mestre Sala e Porta Bandeira. Os
vencedores do Concurso do Rei Momo e a Rainha do Carnaval ganham, cada um, R$ 18mil e reinam durante os
dias da festa, com extensa agenda.
10
Patrícia Osório, no artigo sobre os Festivais de Cururu e Siriri, lembra que “os espetáculos guardam vínculos
com a organização social de suas competições, estabelecendo relações diversas com as cidades que os
promovem”. (OSÒRIO, 246).
11
Ainda que esses números não representem exata e fielmente a realidade, o que interessa é a impressão de
Dona Juracy a respeito da perda das loas e dos rituais com o passar dos anos.
12
Depoimento fornecido por Manoelzinho Salustiano, Recife, 24 de abril de 2019.
Trata-se de evento bastante disputado e com fortes doses de rivalidade entre os
grupos. Não são incomuns os relatos de confusão pós-resultado.

Os folguedos têm vínculos com o passado, mas são adaptados ao presente. Os próprios
brincantes estabelecem algumas classificações que nos permitem refletir sobre a dinâmica
entre passado e presente. Uma dessas classificações refere-se à diferenciação entre siriri
fundo de quintal e siriri espetáculo”. Ela explica que o primeiro é aquele brincado nas casas
das famílias, enquanto que o segundo efeito para turistas promovidos por órgãos públicos
ou pelo mercado. E continua: “A diferença diz respeito a mudanças de cenários de exibição
e contextos. O siriri fundo de quintal e o siriri palco envolvem formas diferenciadas de
experimentação da dança e de vinculação do folguedo a outras práticas sociais (OSÓRIO,
2012, p. 245).

As culturas populares, em espaços urbanos, se conectam com as dinâmicas urbanas.


Através das atividades que desenvolvem ao longo do ano no centro da cidade, os maracatus
de baque solto – como dito, provenientes das periferias e das zonas rurais – despertam
formas de se relacionar com a cidade e usufruir dela, de ocupá-la. E esses eventos são
momentos propícios a esta incorporação.
Os grupos saem de um contexto de terreiro, quando a brincadeira acontece de
forma genuína e natural para assumir um formato que lhes exige uma grande articulação e
formalização, atendendo às demandas das Secretarias de Cultura e de Turismo e aos anseios
de um público que está ali para assistir a uma performance espetacularizada. Ao mesmo
tempo que subtrai simbolismos do terreiro, congrega novos simbolismos (OSÓRIO, 2012, p.
248).

Políticas municipais, estaduais, nacionais e internacionais voltadas para a valorização dos


patrimônios culturais têm provocado novas dinâmicas nas manifestações populares. Os
processos de patrimonialização de bens culturais e as respostas das populações locais a tais
ações têm estimulado dinâmicas identitárias que se cruzam com o mercado e o turismo.
Porém, José Reginaldo Gonçalvez (2003) amplia o enfoque analítico dos processos de
patrimonialização para além de seus limites jurídicos e de seu referencial estritamente
identitário ao tratar o patrimônio como categoria de pensamento. (OSÓRIO, 2012, p. 248).

Você também pode gostar