O ensino do jornalismo perante os desafios da transição tecnológica
Autor: Nelson Traquina
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Em 1982, tive a oportunidade de defender no I Congresso dos Jornalistas Portugueses, a
posição de que a melhor preparação para os futuros jornalistas era uma formação sólida nas ciências sociais e humanas, incluindo as ciências da comunicação, complementada com uma especialização em jornalismo com disciplinas teóricas e práticas que fornecem os alunos não só com saberes de fazer (“know-how to do”) mas também uma compreensão histórica e teórica acerca desta profissão cada vez mais central nas sociedades contemporâneas. Os desafios colocados pela transição tecnológica poderiam por em causa esta minha convicção mas, ao contrário, reforçam a minha certeza de que esta política científica é a mais correcta. Como disse o académico James W. Carey (1978) perante a Associação Norte-americana de Ensino do Jornalismo e da Comunicação: “Devemos reconhecer que nºao estamos apenas a instruir pessoas para uma profissão ou para as exigências de uma prática profissional mas para a participação pública e para o futuro que transcende tanto as limitações da prática contemporânea como da política contemporânea. O nosso cliente é mais um público revitalizado do que consumeidores de profissões”. Antes de abordar a questão da transição tecnológica, uma palavras sobre a história do ensino universitário do jornalismo porque, como o filósofo e político romano Cícero escreveu há mais de dois mil anos, “Desconhecer a história é permanecer criança para sempre”. Em finais do século XIX, no primeiro congresso internacional de jornalistas, o primeiro de muitos que tiveram lugar até à explosão da Primeira Guerra Mundial. E Heinzmann-Savino levantou a questão do ensino universitário dos jornalistas e defendeu que os futuros jornalistas devem ser devidamente instruídaos por forma a “cumprir a elevada missão social que lhes foi atribuída” (Bjork, 1996). Ainda nos finais do século XIX, o jornalista e director, James Pulitzer ofereceu financiar a criação de um curso universitário em jornalismo, oferecendo mais tarde uma soma de dois milhões de dólares para esse fim. Em 1902, apresentou a sua visão do ensino universitário do jornalismo da seguinte forma: “A minha ideia é reconhecer que o jornalismo é, ou deveria ser, uma das grandes profissões intelectuais, para educar, elevar e encorajar de um modo prático os actuais, e ainda mais, os futuros membros da profissão, exactamente como se tratasse do exercício do direito ou da medicina” (Dennis, 1988:11). Ao longo do século XX, é incontestável que houve não só a expansão do ensino do jornalismo mas também a sua extensão ao incluir novas áreas, como a comunicação interpessoal, comunicação de massas e “communication studies”, bem como o ensino ligado à emergência de novas tecnologias como a rádio e a televisão. Nos anos 20 e 30 do século XX, o académico norte-americano responsável pela criação de programas de pós- graduação em jornalismo, Williard G. Bleyer, reiterou a visão de Pulitzer ao defender que os jornalistas “precisam de uma educação muito mais abrangente do que os membros de outras profissões”, e o plano de estudos, que deveria incluir “o governo e a política, economia, sociologia, psicologia, história, ciência e literatura, parecem ser os requisitos mínimos de preparação” (Bleyer, 1931:38). Mas ao longo do seu trajecto, o estudo universitário do jornalismo e da comunicação tem sido marcado não só por uma por busca de respeitabilidade académica mas também por tensões e disputas internas que W. D. Sloan classifica mesmo de “esquizofrenia” (Sloan, 1990). O académico Tom Dickson chega a considerar o debate entre media profissionais e educadores um “diálogo de surdos” (Dickson, 2000:97). Num levantamento dos cursos de jornalismo e da comunicação nos Estados Unidos no fim dos anos 90, mais de 140,000 estudantes estavam inscritos em 443 programas de estudo, e mais de 10,000 estudantes estavam inscritos em programas de Mestrado e mais de mil em Doutoramentos. No ano de 1996-1997, mais de 30,000 mil obtiveram a sua Licenciatura e mais de 3,500 o grau de Mestrado, havendo 125 Doutoramentos (Kosicki, Becker, Watson e Porter, 1998:4). O nascimento da nova tecnologia A primeira rede de computadores começou nos estados Unidos em 1969 com a rede ARPANET, uma rede financiada pelo Departamento de Defesa que ligava uns 30 contratantes em ciência dos computadores. O “email” foi uma das utilizações mais importantes, numa rede muito descentralizada, em grande parte devido à Guerre Fria. Décadas depois, continuava a ser muito decentralizada e o “email” continuava a ser uma utilização principal da Internet, bem como aceder ao World Wide Web com as suas mais de três triliões de páginas. Durante os primeiros vinte anos depois de 1969, como explica Everett M Rogers, a taxa de adopção das redes de computadores cresceu lentamente, mas por volta de 1988 começou a crescer de forma mais rápida, atingindo por volta de 2002 mais de 500 milhões de pessoas, cerca de nove por cento da população mundial (Dennis, Meyer, Sundar, Pryor, Rogers, Chen e Pavlik, 2003:307). Como observa Lev Manovich, no seu livro The Language of New Media, tal como a invenção de Johannes Gutenberg no século XV e a invenção da fotografia no século XIX tiveram um impacto revolucionário no desenvolvimento da sociedade e culturas modernas, “estamos hoje no meio de uma nova revolução dos media - uma mudança de toda a cultura para formas computadorizadas de produção, distribuição e comunicação” (Manovich, 2002:19). Um estudo de 2004 realizado na Universidade de Columbia sublinha o mesmo ponto: “O jornalismo está no meio de uma transformação histórica, provavelmente tão importante como a invenção do telégrafo ou da televisão” (www.stateofthenewsmedia.org). 93 por cento of all data and information in the world is produced in digital form (Davenport, Fico e DeFleur, 2002). Se 93 por cento da informação no mundo está agora armazenada electronicamente, os jornalistas necessitam estar intimamente familiarizados com este ambiente digital. A tecnologia é o catalisador de um mundo em mudança. Como escreve o professor norte-americano John Pavlik: “É um mundo progressivamente moldado por media interactivos, sistemas globais de comunicação e acesso instantâneo à informação” (Dennis, Meyer, Sundar, Pryor, Rogers, Chen e Pavlik, 2003:315). Acrescenta Pavlik: “Nunca antes foram o jornalismo e a comunicação mediatizada tão importantes para a sociedade civil” (ibid.). A cobertura jornalística da Segunda Guerra do Golfo, em contraste com a cobertura da Primeira, foi marcada pela tecnologia, como o meu colega da Universidade Nova de Lisboa, ex-aluno e actual Director de Informação, José Rodrigues dos Santos, demonstrou no seu artigo publicado no número mais recente da revista Media & Jornalismo (Rodrigues dos Santos, 2004). Escreve Rodrigues dos Santos (2004:28): “ Feitas as contas, ninguém tem dúvidas de que, como dizia o senador Hiriam Johnson, ‘quando uma guerra começa, a primeira baixa é a verdade’ (Knightly, 1975), e a Guerra do Golfo, que eclodiu em 1991 e terminou em 2003, não foi excepção. Mas raras foram as guerras onde, apesar das muitas verdades que ficaram por expor, se tenha ido tão longe no esforço de relatar os acontecimentos. As sociedades pós-modernas estão assentes nas tecnologias da comunicação, e quanto mais informação circular mais difícil é controlá-la”. Os aparelhos sem fio estão a tornar-se rapidamente no último grito da distribuição de serviços com implicações importantes para o jornalismo. Estão a ser acrescentados novos acessórios aos telemóveis tais como câmaras incluídas. Em 2003, pela primeira vez, as à Internet sem computador excedem as ligações com os computadores a nível mundial, e os utilizadores de telemóveis passaram a marca dos mil milhões (Dennis, Meyer, Sundar, Pryor, Rogers, Chen e Pavlik, 2003:315). A maioria dos analistas acredita que os jornais irão sobreviver, que não estão numa “espiral da morte”, e que várias formas de jornalismo irão desenvolver-se. No ensino do jornalismo, o ciberjornalismo irá competir por maior tempo de instrução, recursos e alunos. Concordo com o académico norte-americano Larry Pryor quando defende que o que é preciso é uma abordagem interdisciplinar e que os professores de jornalismo terão que encontrar espaço para novas disciplinas (Dennis, Meyer, Sundar, Pryor, Rogers, Chen e Pavlik, 2003:306). Os desafios da transição tecnológica Segundo Pavlik, a transição tecnológica apresenta ao jornalismo desafios profundos em diversas áreas. Uma será na área da estrutura universitária, nomeadamente no ensino à distância, “e-seminars” e as universidades virtuais. Outra área será no modo de ensinar, não só pela existência de grupos de discussão “on-line”, arquivos digitais e “email”mas também pelo forma como o processo de aprendizagem é transformado. Aqui, em primeiro lugar, Pavlik aponta para o facto de que as fronteiras tradicionais da escola podem ser ultrapassadas; a sala de aula não precisa de ser o limite da discussão. Em segundo lugar, o nível de interacção entre professor e alunos pode ser intensificado dramaticamente. Em terceiro lugar, aumenta de forma exponencial os recursos postos à disposição do ensino; devido à tecnologia os custos podem aumentar mas também os avanços tecnológicos podem permitir a redução de custos. A transição tecnológica apresenta desafios numa outra área, nomeadamente na área do que é ensinado (Dennis, Meyer, Sundar, Pryor, Rogers, Chen e Pavlik, 2003:313-315). Queria agora desenvolver este ponto. Uma prioridade colocada pela transição tecnológica é a preparação dos futuros jornalistas para utilizar as capacidades postas à sua disposição, o chamado “computer-assisted reporting”: Encontrar informação “backgound”; obter informação geral; encontrar informação sobre pessoas; encontrar informação útil para entrevistas; Reunir informação de uma variedade de fontes que incluem a Internet, CD-Rom’s, banco de dados, arquivos e documentos públicos; Desenvolver as capacidades de explorar a Internet e utilizar a Internet como ferramenta de reportagem; Mobilizar o poder do computador para realçar o tradicional jornalismo de investigação; Saber avaliar a informação na Internet. Escrevem Davenport, Fico e DeFleur (2002:18): “Os programas de jornalismo devem aceitar a responsabilidade de preparar os estudantes para serem jornalistas eficazes na era digital”. Mesmo os jornalistas que trabalham nas indústrias jornalísticas tradicionais. Uma segunda prioridade colocada pela transição tecnológica é a preparação dos futuros jornalistas para um novo tipo de jornalismo – o ciberjornalismo (Deuze, 2000). Uma característica do ciberjornalismo é que é uma forma eminentemente multimédia. Como escreve Larry Pryor: “A tecnologia digital cria uma mistura de informação alfabética e icónica que oferece uma forma sem precedente de apresentar o conhecimento”. Acrescenta Pryor que a tecnologia oferece “novas formas de escrever e ler” (Dennis, Meyer, Sundar, Pryor, Rogers, Chen e Pavlik, 2003:302). Os autores do livro Wired Style, Constance Hale e Jessie Scanlon (1999:2), escrevem: “A escrita na Web deve manter os elementos frequentemente rivais de palavras, imagens e código numa tensão primorosa, combinando movimento, profundidade, imediatismo, interactividade, capacidade de utilização – e rapidez”. Uma segunda característica é a abolição da narrativa linear com o “hipertexto”. Devido à interactividade do novo médium, o hipertexto é definido como uma forma narrativa que não existe enquanto o “leitor” não o produz através de uma série de escolhas feitas de acordo com os seus desejos e interesses. O hipertexto é uma rede de textos potenciais. O público deixa de ser o “leitor” e é descrito como o “utilisador” que passa o seu tempo a navegar através das ementas e dos “links”. Os pacotes de palavras e imagens são módulos independentes, multimédia, ligados através dos “links” numa rede não-hierárquica. Assim, estamos perante a terceira característica do jornalismo-em-linha: os hipertextos não comunicam através de uma só voz mas incorporam múltiplas perspectivas para contar a ‘estória’. Robert Huesca (2000:6) exemplifica: “(…) Em vez de representar o quem, o quê, porquê de um suicídio através de uma única voz, um repórter de hipertexto reuniria relatos complementares e antagónicos, que ocupariam lugares diferentes observando o mesmo acontecimento, tal como os raios de uma roda se liga a um eixo central”. De acordo com o autor do livro Online Journalism, Jim Hall, as notícias podem ser contadas através de perspectivas múltiplas “postas umas contra as outras por forma a conseguir uma compreensão dos temas e dos contextos” (2001:90). A quarta característica está directamente ligada às condições do consumo do produto e à valorização da rapidez: a qualidade de ser breve. Jonathan e Lisa Price (2002:68) escrevem que os utilizadores esperam que os textos “actuem, saltem, comuniquem num rápida dentada, não como uma refeição completa mas como petisco que podem aquecer carregando nos botões do microondas”. Existem outras consequências provocadas pelo desafio da transição tecnológica sobre o plano de estudos. Por exemplo, o ensino de jornalismo deve dar mais atenção à formação dos futuros jornalistas nos métodos de pesquisa das ciências sociais, incluindo a estatística. Uma “Task Force” da Associação do Ensino do Jornalismo e Comunicação norte- americana defendeu num relatório publicado nos finais dos anos 90 que os alunos deviam adquirir múltiplas competências e não apenas competências numa área de especialização (Dickson, 2000:155). Perante os desafios da transição tecnológica, com todas as suas implicações, não podemos esquecer o essencial: aprender os princípios éticos, a boa escrita e o pensamento crítico, nas palavras de John Pavlik (Dennis, Meyer, Sundar, Pryor, Rogers, Chen e Pavlik, 2003:314). Apesar do facto de continuar a ser a sua responsabilidade preparar os alunos para uma carreira profissional, o papel do ensino do jornalismo ultrapassa este objectivo. Precisa de transmitir aos seus alunos o reconhecimento de que o jornalismo tem um papel central no funcionamento da sociedade democrática. O ensino do jornalismo deve ajudar os alunos a serem melhores críticos e analistas dos meios de comunicação social. A análise crítica é essencial ao papel do ensino. Como escreve Jeremy Cohen (2001:18): “(…) (A) análise crítica é igualmente essencial para o ensino do jornalismo. Aprender a pensar acerca dos media é tão importante para os estudantes como o aperfeiçoamento dos saberes se quiserem trazer a melhor prática para as novas oportunidades sem precedentes que estão a surgir”. Bibliografia Bjork, Ulf Jonas (1996) “The European Debate in 1894 on Journalism Education”. Journalism & Mass Communication Educator. Spring. Bleyer, W. G. (1931) “What Schools of Journalism Are Trying To Do”. Journalism Quarterly, 8, 35-44. Carey, James W. (1978) “A Plea for the University Tradition” Journalism Quarterly 55 (4), pp.854-855. 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