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Immanuel

KANT

fUNDAMENJ'AÇÃO
Título original: Grundlegung zur Metaphysik der Sitten

0 Edições 70, Lda. ·


DA Mt:TAfISICA
Tradução de Paulo Quintela

Capa do Departamento Gráfico das Edições 70


DOS COSTUM:t:S
Depósito Legal n.º 86410/95

ISBN: 972-44-0306-8

Paginação, impressão e acabamento: CASAGRAF


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TRADUZIDA DO ALEMÃO POR
EDIÇÕES 70, LDA. PAULO QUINTELA
Janeiro de 2005

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~cfK;õ es 70
-·- ---
BIBLIO TECA
CIRCU LANTI
dignidade, o que a pr6pria razão prática vulgar acabará
por condenar.
É assim, pois, que a razão humana vulgar, impelida
por motivos propriamente práticos e não por qualquer
necessidade de especulação (que nunca a tenta, enquanto
ela se satisfaz com ser simples sã razão), se vê levada a sair
do seu círculo e a dar um passo para dentro do campo da
filosofia prática. Aí encontra ela informações e instruções
claras sobre a fonte do seu princípio, // sobre a sua ver-
dadeira determinação em oposição às máximas que se
apoiam sobre a necessidade e a inclinação. Assim espera
ela sair das dificuldades que lhe causam pretensões opos-
tas, e fugir ao perigo de perder todos o~ puros princípios
morais em virtude dos equívocos em que facilmente cai. j/ SEG UND A . SEC ÇÃO
Assim se desenvolve insensivelmente na razão prática vul-
gar, quando se cultiva, uma dialéctica que a obriga a buscar
ajuda na filosofia, como lhe acontece no uso teórico; e TRAN SIÇÃ O DA FILOSOFIA MORAI,, POPU LAR
tanto a primeira como a 8egunda não poderão achar PARA A METAFÍSICA DOS COSTUMES
repouso em parte alguma a não ser nunia crítica completa
da nossa razão. Do facto de até agora havermos tirado o nosso con-
ceito de dever do uso vulgar da nossa razão prática não se
deve de forma alguma concluir . que o tenhamos tratado
como um conceito empírico. Pelo contrário, quando aten-
tamos na expetiência humana de fazer ou deixar de fazer,
encontramos queixas frequentes ·e, como n:6s mesmos con-
cedemos, justas, (1) de que se não podem apresentar nenhuns
exemplos seguros da intenção de agir por puro dever; por-
que, embo,:a muitas das coisas que o dever ordena possam
acontecer ·em conformidade com ele, é contudo ainda duvi-
doso que elas àconteçam verdadeiramente por dever e que
tenham portanto valor moral. Por isso é que houve em

(1) ;Lachelier (pág. 31) traduz, ambiguamente: «••• nous cntc11-


J,ons bien Jes personnes se plainJre, et justement nous l'accor-
Jons ...,. (l';Q.)

// BA 24
/f BA 2s
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todos os tempos filósofos que 1?,egaram pura e simples- mente como por preguiça nos convencemos que acontece
mente a realidade desta intençãp nas acções humanas e também com todos os outros conceitos) têm de ser tira-
tudo atribuíram ao egoísmo mais ou menos apurado, sem dos somente da experiência; porque assim lhes prepara-
contudo por isso porem em dúvida a justeza do conceito mos um triunfo certo. Quero por amor humano conceder
de moralidade; pelo contrário, deploravam profundamente que ainda a maior parte das nossas acções são conformes
a fraqueza e a corrupção da natureza humana que, •se por ao dever; mas se examinarmos mais de perto ' as suas aspi-
um lado era nobre bastante // para fazer de wna ideia tão rações e esforços, toparemos por toda a parte o querido ·Eu
respeitável a sua regra de conduta, por outro era fraca que sempre sobressai, e é nele, e não no severo manda-
de mais para lhe obedece;r, e só se servia da razão, que mento do dever que muitas vezes exigiria a auto-renúncia,
lhe devia fornecer as leis, Pé!!ª tratar do interesse das incli- que a sua intenção se apoia. Não é preciso ser-se mesmo
nações, de maneira a satisfazê-las quer isoladamente, quer, um inimigo da virtude, basta ser-se apenas um observador
no melhor dos casos, buscando a maior conciliação entre de sangue-frio que não tome imediatamente o mais ardente
elas. desejo do bem pela sua realidade, para em certos momen-
Na realidade, é absolutamente impossível encontrar tos (principalmente com o avançar dos anos e com um
na experiência com perfeita certeza um único caso em que juízo apurado em parte pela experiência, em parte aguçado
a máxima de uma acção, de resto conforme ao dever, se para a observação) nos surpreendermos a duvidar ·se na
tenha baseado puramente em motivos morais e na repre- verdade se poderá encontrar no mundo qualquer verdadeira
sentação do dever. Acontece por vezes na verdade que, virtude. E então nada nos pode salvar da completa queda
apesar do mais agudo exame de consciência, não possamos das nossas ideias de dever, para conservarmos na alma o
encontrar nada, fora do motivo moral do dever, que respeito fundado pela lei, a não ser a clara convicção de
pudesse ser suficientemente forte para nos impelir a tal que, mesmo que nunca tenha havido acções que tivessem
ou tal boa acção ou a tal grande sacrifício. Mas daqui não jorrado de. tais fontes // puras, a questão não é agora de
se pode concluir com segurança que não tenha sido um saber se isto ou aquilo acontece, mas sim que a razão por
impulso secreto do amor-próprio, oculto sob a simples si mesma e independentemente de todos os fenómenos
capa daquela ideia, a verdadeira causa determinante da ordena o que deve acontecer; de forma que acções, de·
vontade. Gostamos de lisonjear-nos então com um móbil que o mundo até agora talvez não deu nenhum exemplo,
mais nobre que falsamente nos arrogamos; mas em reali- de cuja possibilidade poderá duvidar até aquele que tudo
Jade, mesmo pelo exame mais esforçado, nunca podemos funda na experiência, podem ser irremitentemente orde-
penetrar completamente até aos móbiles secre~os dos nossos nadas pela razão: por exemplo, a pura lealdade na ami-
:1ctos', porque, quando se fala de ~alor moral, não é das zade não pode exigir-se menos de todo, o homem pelo
acções visíveis que se trata, mas dos seus princípios íntimos facto de até agora talvez não ter existido nenhum amigo
que se não vêem. leal, porque este dever, como dever em geral, anterior-
// Não se pode prestar serviço mais precioso àqueles mente a toda a experiência, teside na ideia de uma razão
ttuc se riem de toda íl- moralidade como. de uma simples que determina a vontade por motivos a priori. .
1/uimera da imaginação humana exaltada pela presunção, Se se acrescentar que, a menos que se queira recusar
1 P <.1uc conceder.:.lhes que os conceitos do dever (exacta- ao conceito de moralidade toda a verdade e toda a relação

// BA 26, 27 // BA 28

40 41
com qualquer objecto possívcl, se 'não pode contestar que /
ordena, tornam intuitivo (1) aquilo que a regra prática
a sua lei é de tão extensa significação que · tem de valer ' exprime de maneira mais geral, mas nunca podem justifi-
não só para os homens mas para todos os seres racionais car que se ponha de lado o seu verdadeiro original, que
em geral, não só sob condições contingentes e com excep- reside na razão, e. que nos guiemos por exemplos.
ções, mas sim absoluta e necessariamente, torna-se então Se, pois, não há nenhum autêntico principio supremo
evidente que nenhuma experiência pode dar motivo para da moralidade que, independente de toda a experiência,
concluir sequer a possibilidade de tais leis apodícticas. não tenha de fundar-se somente na razão pura, creio que
Porque, com que direito podemos nós / / tributar respeito não é preciso sequer perguntar se é bom expor estes con- -
ilimitado, como prescrição. universal par~ toda a natureza ceitas de maneira geral ( in abstracto), tais como eles exis-
racional, àquilo que só é váhdo talvez nas condições con- tem a priori jtmtamente com os princípios que lhes perten-
tingentes da humanidade? E como é que as leis da deter- cem, se o conhecimento se quiser distinguir do vulgar e
minação da nossa vontade hão-de ser consideradas como chamar-se. filosófico. Mas nos nossos tempos talvez isto
leis da determinação da vontade de um ser racional em seja necessário. Pois se se quisesse reunir votos sobre a
geral, e só como tais- consideradas também para a nossa preferência a dar ao puro conhecimento racional separado
vontade, se elas forem apenas empíricas e n.ão tirarem a de todo o empírico, uma metafísicã dos costumes portanto,
sua origem plenamente a priori da razão pura mas ao ou à filosofia· prática popular, depressa se adivinharia para
mesmo tempo prática? que lado penderia a balança.
Não se poderia também prestar pior serviço à mora- Este facto de descer até aos conceitos populares é sem
lidade do que querer extraí-la de exemplos. Pois cada dúvida muito 101..ivável, çontanto que se tenha começado
exemplo que 111-e seja apresentado . tem de ser primeiro por subir até aos prindpios da razão pura e se tenha alcan.:..
julgado segundo os prindpios da moralidade para se saber çado plena satisfação neste ponto; isto significaria pri-
se é digno de servir de exemplo original, isto é, de modelo; ·meiro o fundamento da doutrina // dos costumes lÍa meta-
mas de modo nenhum pode ele dar o supremo conceito física, para depois, uma vez ela fumada solidamente, a
dela. Mesmo o Santo do Evangelho tem primeiro que tornar acess{veJ. pela popularidade. Mas seria extremamente·
ser comparado com o nosso ideal de perfeição moral absurdo querer condescender com esta logo no çomeço
antes de o reconhecermos por tal; e é ele que diz de si da investigação de que depende toda a exactidão dos prin-
m.esmo: <<Porque é que vós ·me chamais bom (a mim que dpios. E não é só que este método não pode pretender
vós estais vendo) ? Ninguém é bom (o protótipo do bem) jamais alcançar o mérito raríssimo de uma verdadeira
senão o só Deus (que vós não vedes).» Mas donde é que popularidade filos6.ftca, pois n~o é habilidade nenhuma ser
nós tiramos o conceito de Deus como bem supremo? compreensível a todos quando se desistiu de todo o exame
Somente da ideia que a razão traça a priori_ da perfeição em profundidade; ass~ esse método traz à luz um asque-
moral e que tme indissoluvelmente ao conceito de vontade roso mistifório de observações enfcix:adas a troixe-moixe
li vrc. A imitação não tem lugar algum em matéria moral,
11 e os exemplos servem apenas para encorajar, isto é
p0r.:m fora de dúvida a pqssibilidade daquilo que a lei (1) No original: anschaulich. Lachelier (pág. 35): «vi~ibb.
(P.Q.)
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e de prindpios racionais meio eng
rolados com que se ,\, ,., costumes, levá-la ,Pº.r si mesma
deliciam as cabeças ocas, pois há _à sua plena_ perfeiçã~
nisso qualquer coisa de , 11 consolando o
utilizável para o palavrório de tod publico, que e:x1ge populandade,
os os dias, enquanto ,, , 1crmo desta empresa. ate
que os circunspectos só sentem con
fusão e desviam des- Ora um a tal Metafísica dos costum
contentes os olhos, sem aliás sabere es, completamente
m o que hão-de fazer; 1-.111:tda, que não anda misturada nem
ao passo que os filósofos, que pod com a Antropologia
em facilmente desco- 1w m //c om a Teologia, nem
brir a trapaça, pouca .gente encontram com a Física ou a Hiperfísica,
que os ouça quando ,. .1i11da menos. com as qualidades ocu
querem desviar-nos por algum tem ltas (que se poderiam
po da pretensa pop u- , l1.1mar hipofísicas), não é som
laridade para, só depois de ~erem ente um substrato indis-
alcançado uma ideia 11cnsável de todo o conhecime
precisa dos prindpios, poderem ser nto teórico dos deveres
com direito populares. ,c~uramente deternúnado, mas tam
Basta que lancemos os olhos aos ens bém um desiderato da
aios sobre a moi;-a- n;ais alta importância para a· ver
lidade feitos conforme o gosto preferi dadeira prática das suas
do pa,ra breve encon- 11rcscrições. Pois a pura representaç
trarmos ora a ideia do destino ão
humana (mas por vezes também a
particular da natureza da lei mo ral, ·que não anda mistura do dever e em geral
de uma natureza racio- da-com nen hum acres-
nal em geral), ora a perfeição, ora n:nto de estímulos empíricos, tem sob
a // felicidade, aqui o re o coração humano,
sentimento moral, acolá o temor por intermédio exclusivo da razã
de Deus, um pouco o (que só então se dá
disto, mais um pouco daquilo, num rnnta de que - por si mesm'.1 também
a misturada espan- pode ser prática),
tosa; e nunca ocorre . pergunta.r se uma influência mu ito mais poderosa
por toda a parte se do que todos os outros
devem buscar no conhecimento da móbiles que se possam ir buscar ao
natureza hum;µia (que campo empírico(*),
não pode provir senão da experiê
ncia) os princípios da
m.oralidade, e, . não sendo este o
caso, sendo os últimos (*)- Possuo uma carta do excelente Sulz
totalmente a priori, livres de todo o er, já. falecido, em que
empírico, se se· enc~m- me perg unta qual será a causa por
trarão simplesmente em puros con que as doutrinas da virt ude ,
ceitos racionais e não con tendo tant o de convenientes para
a razão, têm tão curt o alcance
em qualquer outra parte, nem mesmo prático. A minha resposta atrasou-
em ínfima medida; se com os preparativos para a
e ninguém tomará a resolução de poder dar completa. Mas ela ~ão
antes separar totalmente pod e ser outr a senão esta: ~ que
esta investigação como pura filo os próp rios mestres não clarifica
ram os seus conceitos e que, que
sofia prática ou (para rena o fazer bem de mais ao reun -
empregar nome tão desacreditado) ir por toda a banda motivos que
com o metafísica (*) levem ao ·bem mor al, estr aga m
a mez inha por a que rere m fazer
especialmente enérgica. Pois a mai
s vulg ar // observação mos tra
(*) Pode-se, querendo; (assim com o se que, qua ndo apresrintamos um acto
distingue a ma.temática levad.o a efeito com firmeza de alm
de honradez, tal com o ele foi
pura da aplicada, a lógica pur a a mes mo sob as maiores tentações
da aplicada) distinguir igualmente da miséria ou da sedução, apartado
:1 pura filosofia dos - costµmes (Me de toda a intenção de qualquei;
tafísica) da mor al aplicada (à van tage m neste ou nou tro mun do,
na tureza humana). Esta term inol este acto deixa mui to atrás de
ogia lem bra- nos imediatamente si e na som bra qualquer outr o que
tam bém que os princípios mor ais se lhe assemelhe mas que tenh:1
se nlo fun dam nas particula.ri- sido afec;ta.do mes mo em ínfi ma part
dad cs da natureza hum ana , mas e por um mób il estranho, ckv:i
que têm de existir por si mesmos a a~ e desperta. o ~esejo_ de pod er
,, priori, por ém que deles se pod proc ede r ~b é°: assim. Mes mo
em deri var regt as praticas para as cnanças de med iana idade sent
.1 n:1turcza hum ana
com o para qua lque r natu reza raci em esta rmpressao, e nwi c;1 ~--
,/,· Kant.) onal. {Nota lhes deve·ria exp or os seus deve
res de maneira difercnt r. ( No t,l
de Kant.)
i/ BA 32
// BA 33 Not a: // BA 33
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em tal grau que, na c0nsciência da sua dignidade, pode bem que, se não estivermos de posse desta, não digo só
desprezar estes últimos e dominá-los pouco- a pouco. Em que será vão querer determinar exactamente para o juízo
vez disto uma doutrina dos costumes mesclada, .com.posta especulativo o carácter moral do dever .em tudo o que é
de móbiles de sentimentos e inclínações ao mesmo tempo conforme ao dever, mas até que será impossível no uso
que de conceitos racionais, // tem de fazer: vacilar o ânimo simplesmente vulgar e ·prático, t!Specialmente na instrução
em face de motivos impossíveis de reportar a princípio moral, fundar os costumes sobre os seus autênticos prin-
algum, que só muito casualmente levam ao bem~ mas cípios e criar através disto puras disposições morais e
muitas vezes podem levar também ao mal. implantá-las nos ânimos para o bem supremo do mundo.
Do aduzido resulta claramente que todos os conceitos // Para, porém, neste trabalho a,vançarmos por uma
morais têm a sua sede e origem completamente a priori gradação natural, não somente do juízo moral vulgar (que
na razão, e isto tanto na razão humana mais vulgar como aqui é muito digno de respeito) para o juízo filosófico,
na especulativa. e~ mais alta medida; que não podem ser como de resto já se fez, mas duma :filosofia popular, que
abstraídos de nenhum conhecimefi:tO empírico e por con- não passa além do ponto onde pode chegar às apalpad.el~
seguinte puramente contingente; que exactamente nesta por meio de exemplos, até à metafísica (que não se deixa
pureza da sua origem reside a sua dignidade para nos ser- deter por nada de empírico e que, devendo medir todo o
virem de princípios práticos supremos; que cada vez que conteúdo do conhecimento racional deste género, se eleva
lhes acrescentemos qualquer coisa de empírico diminuímos em todo o caso até. às ideias, onde mesmo os exemplos
em igual medida a ~ua pura influência e o valor ili.mi:tado nos abandonam), temos nós de seguir e descrever clara-
das acções; que não só o exige a maior necessidade sob o mente a faculdade prática da razão, partindo das suas
ponto de vista teórico quando se trata ªEenas de especula- regras universais de determinação, até ao ponto em que
ção, // ·mas qµe é também da maior importância prática dela brota o conceito de dever.
tirar da razão pura os seus conceitos e leis, expô-los com Tudo (:) na natureza age segundo leis. Só um ser
pureza e sem mistura, e mesmo determinar o âmbito de racional tem a capacidade de agir segundo a representação
todo este conhecimento racional prático ni.as puro, isto é das leis, isto é-, segundo prindpios, ou: só ele tem uma
toda a capacidade da razão pura prática. Mas aqui não se vontade. Como para derivar as acções das leis é necessária
deve, como a :filosofia. especulativa o permite e por vezes a razão, a vontade· não é outra coisa senão razão prática.
mesmo o acha necessário, tomar os princípios dependentes Se a razão determina infalivelmente a vontade, as acções
da natureza particular da razão humana; mas, porque as de um tal ser, · que são conhecidas como objectivamente
leis morais devem valei: para todo ·o ser racional em geral, necessárias, são também subjectivamente necessárias, isto
é do conceito universal de um ser racional em geral que se é, a .vontade é a faculdade de escolher só aquilo que a razão,
devem deduzir. Desta maneira toda a moral, ·que para a independentemente da inclinação, .// reconhece como pra-
sua aplicação aos homens precisa- da Antropologia, será ticamente necessário, quer dizer como bom. Mas se a
primeiro exposta independentemente desta ciência como
pura :filosofia, quer dizer como metafísíca, e de maneira
completa (o que decerto se pode fazer neste género de (1) Ein jeáes Ding de, Natur, propriamente: «Cada coisa da
conhecimentos totalmente abstraçtos). E é preciso ver natureza.• (P.Q.)

// BA BA 34, 35 // BA 36, 37

46 47
razão só por si não detenn.ina suficientemente a vontade, gue-se do ~gradável, 'pois que este s6 influi na vontade por
se esta está ainda sujeita a condições subjectivas (a certos meio da sensação em virtude de causas puramente sub-
móbiles) que não coincidem sempre com as objectivas; jéctivas que valem apenas para a sensibilidade deste ou
numa palavra, se a vontade não é em si plenamente con- daquele, e não como principio da razão que é válido
forme à razão (como acontece realmente entre os homens), para todos{*).
então as acções, que objectivamente são reconhecidas como // Uma vontade perfeitamente boa estaria portanto
necessárias, são subjectivamente contingentes, e a deter- igualmente submetida a leis objectivas (do bem), mas não
minação de uma tal vontade, conforme a leis objectivas, se poderia representar como obrigada a acções conformes
é obrigação (Nõtigung); quer dizer, a relação das leis objec- à lei, pois que pela sua constituição subjectiva ela só pode
tivas para uma vontade não absolutamente boa repre- ser determinada pela representação do bem. Por isso os
senta-se como a determinação da vontade de um ser imperativos não valem para a vontade divina nem, em
racional por princípios da razão ( L), sim, princípios esses geral, para uma vontade santa; o dever (Sollen) não está
porém a que esta vontade, pela sua natureza, não obe- aqui no seu lugarí porque o querer coincide já por si neces-
dece necessariamente. sari~mente com a lei. Por isso os imperativos são a:penas
A representação de um princípio objectivo, enquanto fórmulas para exprimir a relação· entre leis objectivas do
obrigante pa:ra uma vontade, chama-se um mandamento querer em geral e a imperfeição subjectiva deste ot;t daquele
(da razão), e a fórmula do mandamento chama-se Impe- ser racional, da vontad~ humana por exemplo.
rativo (2) .
Todos os imperativos se exprimem pelo verbo dever
(sollen), e mostram assim a relação de uma lei objectiva
da razão para uma vontade que segundo sua constitui- a (*) Chama-se inclinação a dependência em que a faculdade de.
desejar está em face_das seruações; a inclinação prova sempre por-
ção subjectiva não é por ela necessariamente determinada tanto wna_ necessidade (Bedürfi,is ). Chama-se interesse a dependên-
(uma obrigação). Eles dizem que seria bom praticar ou cia em que uma vontade contingentemente determinável se encon-
deixar de praticar qualquer coisa, mas // dizem-no a uma tra em face dos princípios da razão. Este interesse só tem pois lugar
vontade que nem sempre faz qualquer coisa s6 porque lhe numa\vontade dependente que não é por si mesma em todo o tempo
conforme-à razão; na.vontade divina não se pod~ conceber nenhum
é representado que seria bom fazê-la. Praticamente bom interesse. Mas a vontade humana pode também tomar interesse
é porém aquilo que determina a vontade por meio de por qualquçr coisa sem por isso agir por in~resse. O primeiro signi-
representações da razão, por conseguinte não por causas fica o interesse prático na acção, o segundo o interesse parológico
subjectivas, mas objectivamente, quer dizer por princípios no objecto da acção. O primeiro mostra_ apenas dependência da
que são válidos para todo o ser racional como tal. Distin- vontade em face dos princípios da razão em si mesmos, o segundo
em face dos princípios da razão cm proveito da inclinação, pois
aquj a razão dá apenas a regra prática para socorrer a necessidade
da inclinação. No primeiro caso interessa-me a acção, no segundo
(1) Morente, pág. 54: «•.. por fimdamentos de la voluntad... ~. o ·objecto da a:cção (enquanto ele me é agradável). Vimos na Pri-
(P. Q.). meira Secção que numa acção praticada por 4ever se n.i:q cem ele
( 2) Lachelier, pág. 41: cLa représentation d'un principe objectif atender ao interesse pelo objecto, mas somente. à própria acç:io e
,0111111e wntraignant la volonté s'ape.lle Impératif». (P'. Q.) ao seu princ1:pio na razão (à lei). - (Nota de Kant.)

// BA 38 // BA 3,9

48' 49
FMC-4
Ora, todos os imperativos ordenam ou hipotética- ou górico, que _declara a acção como objectivamente neces-
cntegoricamente. Os. hipotéticos representam a necessidade sária por si, independentemente de qualquer intenção, quer
prática de uma acção possível como meio de alcançar dizer sem qualquer outra finalidade; vale como princípio
gualquer outra coisa que se quer (ou que é possível que apodíctico (prático). ·
se queira). O imperativo categórico seria aquele que nos /J Pode-se conceber que aquilo que só é possível pelas
representasse uma acção como objectiv;:1mente necessária forças de um ser racional é também intenção possível para
por si mesma, sem relação. com qualquer outra finalidade. qualquer vontade, e por isso são de facto infmitamente
Como toda a lei prática representa 1llilp acção possível numerosos os princípios da acção, enquanto esta é repre-
como boa e por isso como necessária para um sujeito pra- sentada como necessária, para alcançar qualquer intenção
ticamente determinável pela razão, // todos os imperativos possível de atingir por meio deles. Todas as ciências têm
são fórmulas da determinação da acção que é_necessária uma parte prática, que se compõe de problemas que esta-
segundo o princípio de lµlla vontade boa de qualquer belecem que uma de:terminada finalidade é possível. para
maneira. No caso de a acção ser apenas boa como meio nós, e de imperativos que indicam como ela pode ser atin-
para qualquer outra coisa, o imperativo é hipotético; se a gida. Estes imperativos podem pór isso chamar-se· impe-
acção é representada como boa em si, por conseguinte como rativos de destreza. Se a finalidade é razoável e boa não
necessária numa vontade em si conforme à ratão como importa aqui saber, mas tão-somente o que se tem de fazer
princípio dessa vontade, então o in1.perativo é categórico. para alcançá-la. As regras que o médico segue para curar
O imperativo diz-me, pois, que acção das que me são radicalmente o seu doente e as que segue o envenenador
possíveis seria boa, e representa a regra prática em relação para o matar pela certa, são de igual valor neste sentido
com uma vontade, que não pratica imediatamente Ull1a de que qualquer delas serve para conseguir perfeitamente
acção só porque ela é boa, em parte porque o sujeito nem a intenção proposta. Como não sabemos na _ primeira
sempre sabe que ela é boa, em parte porque, mesmo que juventude· quais os fins que se nos depararão na vida, os
o soubesse, as suas máximas poderiam contudo ser con- pais procuram sobretudo mandar ensinar aos filhos muitas
trárias aos .principias objectivos _duma razão prática. coisas e tratam de lhes transmitir a destreza no uso dos
O imperativo hipotético diz pois apenas que a acção meios para toda a sorte de fins, de nenhum dos quais podem
é boa em vista de qualquer intenção poss(vel ou real. No saber ·se de futuro se transformará realmente numa inten-
primeiro caso é um principio p.rqblemático, 'no ségundo ção do seu educando, sendo ~1\tretanto possível que venha
um princípio assertórico-prático (1). O imperativo cate- a ter qualquer deles; e este cuiê¼do é tao grande que por
ele descuram ordinariamente a tarefa dle formar e corrigir
o juízo dos filhos sobre o valor // das coisas que poderão
( ') Delbos (pág. 126): «Dans /e pre111ier cas, il est un príncipe vir a eleger como fins.
PR.OBLÉMA TIQUBMENT pratique; dans .le seco1:1d, un prindpe
ASSERTORIQ UEMENT pratique.•--Lacheliet (pág. 43): «C'est Há nô entanto uma finalidade da qual se ,pode dizer
1111 priucipe pratique problétnatique dans /e premier cas, assertori- que todos os seres racionais· a perseguem realmente (en-
q uc dd11s /e second.» - Morente (pág. ,57): «En el primer caso ·es un quanto lhes convêm imperativos, isto é como seres depen-
,,, i11ripi,1 problemático-prático; en · el segundo caso es un principio dentes), e portanto uma intenção que não só eles podem
.,·,,· nórico-prático.» (P.Q.)
ter, mas de que se_deve admitir que a têm na gcncr:1li-

// IIA 40
// BA 41, 42

50
51
dade por -uma necessidade natural. Esta finalidade é a O querer ~egundo estés três princípios diferentes dis-
Jelicida1e. O · imperativo hipotético que nos representa tingue-se também claramente pela diferença da obrigação
a necessidade prática da acção como meio para fomentar a imposta à vontade. P!rra tomar bem marcada esta dife-
felicidade é assertórico. Não se deve propor somente rença, creio que o mais conveniente seria denominar estes
como necessário para uma intenção incerta, simplesmente princípios por sua ordem, dizendo : ou são regras da des-
possível, mas para uma intenção que se pode admitir como treza, ou ·conselhQs da prudência, ou mandamentos (leis) da
certa e a priori para toda a gente, pois que pertence à sua moralidade. Pois só a lei traz consigo o conceito de uma·
essência. Ora a destreza na escolha dos meios para atingir necessidade incondiâonada, objectiva e consequentemente de
o maior bem--e~tar próprio pode-se chamar prud&uia validade geral, e mandamentos são // leis a que tem de
(Klugheít) (*) no sentido mais restrito da palavra. Portanto se obedecer, quer dizer que se têm de seguir mesmo con-
J/ o imperativo que se relaciona com a escolha dos meios tra a inclinação. O conselho contém, na verdade, uma
para alcançar a própria felicidade, quer dizer o preceito de necessidade, mas que só pode valer sob a condição sub-
prudência, continua a ser hipotético; a acção não é orde- jectiva e contingente de · este ou aquele homem considerar
nada de maneira absoluta, mas· somente como meio para isto ou aquilo como contando para a sua felicidade;
uma outra ,intenção. enquanto que o imperativo categórico, pelo contrário,
Há por fim um imperativo que, sem se basear corno não é limitado por nenhuma condição e se pode chamar
condição . em qualquer outra intenção a atingir por um propriamente um mandamento, absoluta-, posto que pra-
certo comportamento, ordena imediatam,ente este com- ticamente, necessário. Os primeiros imperativos poderiam
portamento. Este imperativo é categórico. Não se rela- ainda chamar-se técnicos (pertencentes à arte), os segundos
ciona com a matéria da acção e com o que dela .deve pragmáticos(*) (pertencentes ao bem-estar), os terceiros
resultar, mas com a forma e o princípio de que ela mesma morais (pertencentes à livre conduta em geral, isto é aos
deriva; e o essencialmente bom na acção reside na dispo- costumes).
sição (Gáinnung) (1 ), seja qual for o resultado. Este impe- Surge agora a questão: como são possíveis todos estes
rativo pode-se chamar o imperativo da moraHda<}e. imperativos?. Esta pergunta não exige que se saiba como
é ·que pode ser pensada a execução da acção ordenada pelo
imperativo, mas somente como é que pode ser pensada a
(*) A palavra prudência é tomada em sentido duplo: ou
obrigação da vontade que o imperativo exprime na tarefa
pode designar a prudência nas relações com o mundo, ou a prudên-
cia privada. A primeira é a destreza de uma · pessoa no exerdcio de
influência sobre outras para as utilizar para as suas intenções. A se~ (*) Parece-me que a verdadeira significação da palavra prag-
gunda. é a sagacic:l.ade em reunir todas estas intenções para alcançat mático. se pode assim determinar da maneira mais exacta. Cha-
uma vantagem pessoal durável. A última é propriamente ;iquela mam-se pragmáticas as sanções qae decorrem propriamente não do
sobre que reverte mesmo o valor da. primeira, e quem é prudente no direito dos Estados como leis necessár4s, mas ela prevenção pcl()
primeiro sentido mas não no segundo, desse se poderá antes dizer: bem~t.ar geral A Hist6_ria. é escrita prag~ticamente qu.1.ndo nns
i: l.'spcrto e manhoso, mas em swna é impru~te. (Nota de Kant.) toma prudentes, quer dizer quando cnsma ao mundo :ictual a
(1) Delbos, pág. 128: iritention; Lachelier, pág. 46: intentio,:,; maneira ~ assegurar ;i sua vantagem melhor ou pelo mrn os t:io
Morcmc, pág. 59: áni.mo. (P.Q.) ·
bem como o mundo das gerações passadas. (Nota de Kant. )

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52 53
a cumprir. Não precisa discussão especial como seja pos- todos os elementos que pert~ncem ao conceito de felicidade
sível um imperativo de destreza. Quem quer o .fim, quer são na sua totalidade empíricos, quer dizer têm que ser
também (se a razão tem 'influência decisiva sobre as suas tirados da experiência, e que portanto para a ideia de
/ / acções) o meio indispensavelmente necessário para . o felicidade é necessário um todo absoluto, um máximo
alcançar, que esteja no seu poder. Esta proposição é, pelo de J,e~-estar, no meu estado presente e em todo o futuro,
que respeita ao querer, ana1ítica; pois no querer de um Ora é impossível que um ser, mesmo o mais perspicaz e
objecto como actividade minha está já pensada a minha simultaneamente o mais poderoso, mas finito, possa fazer
causalidade como causalidade de uma força actuante, quer ideia exacta daquilo que aqui quer propriamente. Se é a
quer .dizer o uso dos meios, e o imperativo extrai o con- riqueza que ele quer, quantos cuidados, quanta inveja e
ceito _das acções necessárias para este fim do conceito do quanta cilada não pode ele chamar sobre si! Se quer muito
querer deste fim; {para determinar os próprios meios para conhecimento e sagacidade, talvez isso lhe traga .uma visão
alcançar uma intenção proposta são já precisas na verdade mais penetrante que lhe mostre os males, que agora ainda
proposições sintéticas, que não dizem porém respeito ao se -lhe conservam ocultos e que não podem ser evitados,
princípio, mas ao objecto a realizar). Que para dividir tanto mais terríveis, ou talve_z venha a acrescentar novas
uma linha em duas partes iguais, segundo ce;to princípio, necessidades aos desejos que agora lhe dão já bastante que
tenho de tirar dois arcos de círculo que se cruzem partindo fazer! Se quer vida longa, quem é que lhe// garante que
das extremidades dessa linha, isso ensina-mo a Matemática ela não venha a ser uma longa miséria? Se quer pelo menos
na verdade só por proposições sintéticas; mas que, quando saúde, quantas vezes a fraqueza do corpo nos preserva
eu sei que só por esta acção é que o .efeito pensa4o se pode de excessos em que uma saúde ilimitada nos teria feito
dar, se eu quiser obter esse efeito completamente, tenho cair! Etc. Em resum.9., não é capaz de determinar, -segundo
de querer também a acção que para isso é indispensável, qualquer princípio e com plena segurança, o que é .que
isto é uma proposição analítica; pois que representar-me verdadeir,amente o faria feliz; para isso seria precisa a
qualquer coisa como um efoito que me é possível obter omnisciência. Não se pode pois agir segundo princípios
de determinada maneira e representar-me a mim mesmo determinados para se ser: feliz, mas apenas segundo con-
ag~do dessa maneira em relação a esse efeito é a mesma selhos empíricos, por exemplo : dieta, vida ·económica,
c01sa. cortesia, moderação, etc., acerca dos quais a experiência
Os imperativos da prudé!ncia coincidiriam totalmente ensina que são, , em média, o que mais pode fomentar o
com os da destrçza // e seriam igualmente analíticos, se bem-estar. Daqui conclui-se: que os imperativos dà pru-
fosse igualmente fácil dar um conceito determinado de dência, para falar corri precisão, não podem ordenar, quer
felicidade. Com efeito, poder-se-ia dizer aqui cómo acolá: dizer representar as acções de maneira obje7tiva como pra-
quem quer o fim, quer também (necessariamente conforme ticamente necessárias; que eles se devem considerar mais
à razão) os únicos meios que paraJ isso estão no seu poder. como conselhos (consilia) do que como mandamentos
Mas infelizmente o. conceito de felicidade é tão indeteúni- (praecepta) da razão,; que o problema de determinar certa- e
nado que, se bem que todo o homem a deseje alcançar, ele universalmente. que acção poderá assegurar a felicidndc de
nunca pode dizer ao certo e de acordo consigo mesmo o um ser racional, é totalmente insolúvel, e que portanto,
que é que propriamente deseja e quer. A ,causa disto é que em relação· com ela, nenhúm imperativo é possível que

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possa ordenar, no sentido rigoroso da palavra, -que se faça minada somente pela lei, ,sem qualquer outro móbil,
aquilo que nos toma felizes, pois que' a felicidade não é embora assim pareça; pois é sempre possível que o receio
um ideal da razão, mas da imaginação, q_ue assenta somente da vergonha, talvez também. a·surda apreensão· de outros
em princípios empíricos dm; quais é vão, esperar que. deter- perigos, tenham influído se1:retamente sobre· a vontade.
minem uma conduta necessária para alcançar a totalidade Quem é que pode provar pela experiência a não existên-
de uma série de consequências / / de facto infinita. Este cia de uma causa, uma vez que a experiência. nada mais
imperativo da prudência seria entretanto, admitindo que nos ensina senão que a não descobrimos? Neste caso,
era possível determinar exactamente os meios da felicidade, porém, o pretenso imperativo moral, que como tal parece
uma proposição analítica-prática; pois ele distingue-se do categ.~pco e incondicional, não passaria de facto de uma
imperativo da destreza só em que neste o fim é simples- prescríção pragmática que chama a nossa atenção para as
mente possível, enquanto que naquele é dado. Mas como nossas yantagens e apenas nos ensina a tomá-las em con-
ambos eles apenas ordenam os meios para aquilo que se
sideração.//
pressupõe ser querido como fim, o 1mperativo que manda . Teremos pois que busca.r totalmente a priori· a possi-
querer os meios a quem quer o fim é em ambos os casos bilidade de um imperativo categ6rico, uma vez que aqui nos
analítico. Não há pois também dificuldade alguma a não assiste a vantagem de a sua realidade nos ser dada na
respeito da possibilidade de um tal imperativo.
experiência, de modo que não seria precisa a possibilidade
Em contraposiçã0, a possibilidade do imperativo da para o estabelecermos, mas somente para o explicarmos.
moralidade é sem dúvida a única questão que requer solu- No temos no entanto· provisoriamente que só o imperativo
ção, pois . que este imperativo não é nada hipotético e categórico tem o carácter de uma // lei prática, ao passo
portanto a necessidade objectiva que nos apresenta não se que todos os outros se podem chamar em verdade prin-
pode àpoiar em nenhum pressuposto, como nos impera- cípios da vontade, mas não leis; porque o que é somente
tivos hipotéticos. Aqui, porém, é preciso não perder de necessário para -alcançar qualquer fim pode ser conside-
vista que não se pode demonstrar por nenhum exemplo, rado em si como contingente, e podemos a todo o tempo
isto é empiricamente, se há por toda a parte um tal impe- libertar-nos da prescrição renunciando à intenção, ao passo
rativo; mas há a recear que todos os que parecem cate- qrie _o mandam~nto incondicional não deixa à vontade a
góricos possam afinal ser disfarçadamente hipotéticos. liberdade de escolha relativamente ao contrário do que
Quando, por exemplo, dizemos: «Não deves fazer pro- ordena, só ele tendo portanto em si aquela necessidade
messas enganadoras», - admitimos que a necessidade desta que exigimos na lei.
abstenção não é somente um conselho para evitar// qual- · Em segundo lugar, o princípio da dificuldade que sus-
quer outro mal, como se disséssemos: «Não deves fazer cita este imperativo categórico ou lei da. moralidade (a
promessas mentirosas para não perderes o credito quando difiçuldade de reconhecer a sua possibilidade), é também
se descobrir o teu procedimento»; admitimos pelo con- muito grande. Ele é uma proposição sintética-prática (*)
trário que uma acção deste género tem de ser considecada
como má por si mesma, que o imperativo da proibição
l( portanto categprico; mas não poderemos encontrar
11mln11n exemplo seguro em que a vontade seja deter- (*) Eu ligo à vontade, sem c~ndição pressuposta de .qual-
quer inclinação, o acto d priori, e portanto necessariamente (posto

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57
a priori, e pois que a explicação da possibilidade das pro-
posições deste género levanta tão grande dificuldade no formar-se com esta lei, e não ·contendo a lei nenhuma
conhecimento teórico, já se deixa ver que no campo prá- condição que a limite, .naqa màis resta senão a universa-
tico essa dificuldade não sedi menor. lidade de uma lei em geràl à. qual a máxima da acção //
// Neste problema vamos primeiro tentar se acaso o deve ser conforme, conformidade essa que só ó imperativo
simples conceito de imperativo . c:itegórico não fornece nos representa propríamente como necessária.
também a sua fórmula, fórmula que contenha a proposi- O imperativo categórico é portanto só um único, que
ção que só por si possa ser um imperativo categórico; é este: Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao
porque a questão de saber como é possível um manda- mesmo .tempo querer que ela se torne lei universal.
mento absoluto, posto saibamos já o seu teor, exigirá Ora se deste único imperativo se podem derivar, como
ainda um esforço particular e difícil que reservamos para do seu princípio, todos os irnperativos do dever, embora
a última secç~o desta obra. deixemos por decidir se aquilo a que se chama dever não
Quando penso um imperativo hipotético em geral, não será em geral um conceito vazio, podemos pelo menos
sei de antemão o que ele poderá conter. Só o saberei indicar o que pensamos por isso e o que é que este con-
quando a condição me seja dada. Mas s.e pensar um impe- ceito quer dizer.
rativo categórico, então sei imediatamente o que é 'que Uma vez que à universalidade da lei, s·egundo a qual
ele contém. Porque, não contendo o imperativo, além da certos efeitos se produzem, constitui aquilo a que se cliama
lei, senão a necessidade da máxima(*) que manda con- propriamente natureza no sentido mais lato da palavra
(quanto à forma), quer dizer a realidade das coisas, enquanto
é ·determinada por leis universais, o imperativo universal
que só objectivamente, quer dizer partindo da ideia de uma razão do dever poderia também exprimir-se assim: Age como se
que teria pleno poder sobre todos os m6biles subjectivos). Isto é a máxima da tua acção se devesse tornar, pela ,tua vontade, em
pois uma proposição prática que não deriva analiticamente o que- lei universal da natureza:
rer de tuna acção de um outro querer já pressuposto (pois nós não Vamos agora enumerar alguns deveres, segundo a
possuímos uma vontade tão perfeita), mas que o liga imediata- divisão habitual em deveres para // connosco mesmos e
mente com o conceito da vontade de um ser racional, como qual-
quer coisa que nele não está contida. (Nota de Kant.) deveres para com os outros, em deveres perfeitos e imper-
(*) Máxima é o princípio subjectivo da acção e tem de se dis- feitos(*).
tinguir do princÍpio objectivo, quer dizer da lei prática. Aquela con-
tém a regra prática que determina a razão (1) em conformidade
com as condições do sujeito (muitas vezes em conformidade com a (*) Deverá notar-se aqui que reservo inteiramente para uma
rna ignorância ou as suas indinaçõ_es), e é portanto o princípio futura Metafísica dos Costumes a classificação dos deveres, e que
segundo o qual o sujeito age; a lei, porém, é o princípio objectivo, esta agora é adaptada apenas por comodidade (para ordenar os
válido para todo o ser racional, princípio segundo o qual ele deve meus exemplos). De resto, entendo· aqui por dever perfeito aquele
a.~ir, quer dizer um imperativo. (Nota de Kant.) que não permite excepção al~uma em favor da inclinação, e então
não tenho apenas deveres perjeitos exteriores, mas também interio-
res, o que vai de encontro à terminologia adaptada nas escolas;
(1) Delbos (pág. 136) dá uma interpretação diferente, fazendo mas não tenciono dar agora qualquer justificação, pois que, . para
de •a razão» o sujeito da operação relativa. (P.Q.) o meu propósito, é indiferente que se aceite ou não. (NMa de
Kant.)
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,,, p
r) Uma pessoa, por uma série de desgraças, chegou
f
j
que ela nunca poderiã valer .como lei universal da natu-
ao desespero e sente tédio da -vida, mas está ainda bastante reza e concordar consigo mesma, mas ·que, pelo contrário,
em posse da razão para poder perguntar a si mesmo se da se contradiria // necessariamente. .Pois a universalidade
não será talvez contr_ário ao dever para consigo mesmo de uma lei que permitisse a cada home m que se julgasse
atentar contra a própria vida. E procura agora saber se a cm ap~o s-prometer o que lhe viesse à ideia com a inten-
máxim a da sua acção se poderia tornar em lei universal ção de o não cumprir, tornaria impossível a própria pro-
da natureza. A sua máxima, porém, é a seguinte: Por messa e a finalidade que com ela se pudesse ter em vista;
amor de mim mesmo, admito como prind pio que, se a ninguém acreditaria· em: qualquer coisa que lhe prom e-
vida, prolongando-se, 1?-e ameaça mais com desgraças do tessem e rir-se-ia apenas de tais declarações como de vãos
que me prom ete âlegrias, devo encurtá-la. Mas pergu n-
enganos.
ta-se agora se este princípio do amor de si mesmo se pode 3) Uma terceira pessoa encontra em si um talento
tornar em lei universal da natureza. Vê-se então em breve natural q_ue, cultivado em certa medida, poderia fazer dele
que uma natureza, cuja lei fosse destruir a vida em virtude um home m útil sob vários aspectos. Mas encontra-se em
do mesmo sentimento cujo objectivo é suscitar a sua // circunstâncias cómodas e prefere ceder-ao prazer a esfor-
conservação, se contradiria a si- mesma- e portan to não çar-se por alargar e melhorar as suas felizes disposições
existiria como natureza. Por conseguinte aquela máxima naturais. Mas está em condiçqes de poder perguntar ainda
não poderia de forma alguma dar-se como lei universal a si mesmo se,. além da concordância que a sua máxima
da natureza, e porta nto é absolutamente contrária ao prin- do desleixo dos seus dons naturais tem com a sua tendên-
dpio supremo de todo o dever. cia para o gozo, ela concorda também ·com aquilo que
2) Uma outra pessoa vê-se forçada pela necessidade se chama dever. E então vê que na verdade uma natureza
a pedir dinheiro emprestado. Sabe muito . bem que não com uma tal .lei · universal poderia ainda subsistir, mesmo
poderá pagar, mas vê també m que não lhe emprestarão que o home m (como os habitantes dos mares do Sul)
nada se não prom eter firmemente pagar em prazo deter- deixasse enferruj~r o seu talento e cuidasse apenas de
minado. Sente a tentação de faz~r a promessa; mas tem empregar a sua vida na ociosidade, no prazer, na propa -
ainda consciência bastante para perguntar a si mesma: gação da espécie, numa palavra - no gozo; mas não
Não é proib ido e contrário ao dever livrar-se de apuros pode querer que isto se transforme em lei universal da
desta maneira? Admi tindo que se decidia a fazê-lo, a sua natureza o_u que exista dentro de nós por -instinto // natu-
máxima de acção seria: Quan do julgo estar em apuros de ral Pois como ser racional quer ele necessáriamente que
dinheiro, vou pedi-lo .emprestado e prom eto pagá-lo, todas as suas faculdades se desenvolvam, porqu e lhe
embora saiba que tal nunca sucederá. Este prind pio do foram dadas e lhe servem para toda a sorte de fins pos-
amor de si mesmo ou da própr ia conveniência pode talvez
síveis. ·
estar de acordo com todo o meu bem-estar futuro ; mas U~ quarta pessoa ainda, que viv.e na prosperidade
agora a questão é de saber 1se é justo. Conv erto assim esta ao mesmo tempo que vê outros a lutar com grandes difi-
exigência do amor de si ·mesmo em lei universal e ponho culda d~ (e aos q~ ela poderia auxiliar), pensa: Que é
assim a questão: Que aconteceria se a minha máxim a se qtJe isso me importa.? Que cada qual goze da felicidade
transformasse em lei universal? Vejo então imediatamente que o céu lhe concede ou que ele mesmo pode arranjar;

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cu nada lhe tirarei dela, nem sequer o invejarei;· mas con- à natureza da obrigação (não ao objecto da sua acção),
tribuir para o seu bem...estar ou para o seu socorro Iia des- pelos exemplos apontados, ficam postos completamente
graça, para isso é que eu não estou! Ora supondo que tal em dependência do- mesmo princípio único.
maneira de pensar se transformava em lei universal da Se agora prestarmos atenção ao que se passa em nós
natureza, é verdade que o género humano poderia sub- mesmos sempre que transgredimos qu.àlquer dever, des...,
sistir, e sem dúvida melhor ainda do que se .cada qual sé cobriremos que na // realidade não queremos que a nossa
pusesse a palrar de compaixão e bem-querença e mesmo máxima se tome lei universal, porque isso nos é impos-
se esforçasse por pratica~ ocasionalmente estas virtudes, sível; o contrário dela é que deve universalmente continuar
ao mesmo tempo que, sempre que pudesse, se desse ao a ser lei; nós tomamos apenas a liberdade de abrir nela
engano, vendendo os direitos dos outros ou prejudican- :uma ex,epção para nós, ou (também só por esta vez) em
do-os de qualquer outro modo. Mas, embota seja possível favor da nossa inclinação. Por conseguinte, se conside-
que uma lei universal da natureza possa subsistir segundo rássemos tudo partindo de um só ponto de vista, o da
aquela máxima, não é contudo possível querer que um razão, encontraríamos uma contradição na nossa própria
tal princípio valha por toda a parte como lei nàtural. vontade, a saber: que um certo princípio seja objectiva.-
Pois uma vontade que decidisse tal coisa pôr-se-ia em mérite necessário como lei universal e que subjectivamente
contradição consigo mesma; podem com efeito desco- não deva valer universalmente, mas permita excepções.
brir-se muitos casos em que a pessoa em questão precise Mas como, na realidade, nós consideramos a nossa acção
do amor e da com:pajxão dos outros e em que ela, graças ora do ponto de vista de uma vontade totalmente con-
a tal lei natural // nascida da sua própria vontade, rou~aria forme à razão, ora, por outro lado, vemos a· mesma ai:;ção
a si mesma toda a esp~rança de auxilio que para si deseja. do ponto de vista de uma vontade afectada pela inclinação,
Estes são apenas alguns dos muitos deveres reais ou não há aqui verdadeiramente nenhuma contradição, mas
que pelo menos ·nós consideramos como tais, cuja deriva- sim uma resistência da inclinação às prescrições da razão
ção do princípio único acima exposto ressalta bem clara. ( antagonismus), pela qual resistência a universalidade do
Temos que poder querer que uma máxima da nossa acção princípio (universalitas) se transforma numa simples gene-
se transforme em lei universal: é este o cânone pelo qual ralidade (generalitas), de tal modo que o princípio prático
a julgamos moralmente em geral. Algumas acções são da razão se deve encontrar a meio caminho com a máxima.
de tal ordem que a sua máxima nem sequer se pode pensar Ora, ainda que isto se não possa justificar no nosso pró-
sem contradição como lei universal da natureza, muito prio juízo Íl):lparcial, prova contudo que nós reconhece-
menos ainda se pode querer que devam ser tal. Em outras mos verdadeiramente a validade do imperativo categó-
não se encontra, na verdade, essa impossibilidade interna, rico e nos permitimos apenas (com todo ·· o respeito por
mas é contudo impossíveJ querer que à sua máxima se ~le) ~gumas // jxc~epções forçadas e, ao que nos parece,
erga à universalidade de uma lei da natureza, pois que uma ms1gnificantes. ,
tal vontade se contradiria a si mesma .. Facilmente se vê Conseguimo ortanto mostrar, pelo menos, que, se
li ue as do primeiro género contrariam o dever estrito ou o dever é um conceito que: deve ter um significado e
estreito (iniludível), é as do segundo o dever mais largo conter uma verdadeira legislação para as nossas acções,
(meritório); e assim todos os deveres, pelo que respeita esta legislação só se pode exprimir em imperativos cate-

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'
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góricos, mas de forma alguma em imperativos hipotéti- sem qu~ possa encontrai: nem no céu ·n em na terra qual-
cós; de igual modo determinámos claramente e para tod-as quer coisa a que se agarre ou em que se apoie. Aqui deve
as aplicações, o que já é muito, o conteúdo do imperativo ela provar a sua pureza como mantenedora das sua'S pró-
categórico que tem de encerrar o princípio de todo o dever prias. leis e não como arauto daquelas que lhe segrede um
(se é que, em verdade, há deveres). Mas ainda não chegá- sentido inato· ou não sei que natureza tutelar, as quais no
mos a provar a priori que um tal imperativo existe real- seu conjunto, sendo melhores que coisa nenhuma, nunca
mente, que h:á uma lei prática que ordene absolutamente poderão aliás fornecer prindpios que a razão dite e que
por si e independentemente ,de todo o móbil, e que a tenham de ter a sua origem totalmente a priori e com ela
obediência a esta lei é o dever.
simultaneamente a sua autoridade // imperativa: nàda
Se quisermos atingir este fim, será da mais alta impor- esperar da inclinação dos homens, e tudo do poder supremo
tância advertir que não nos deve sequer passar pela ideia da lei e do respeito que lhe é devido, ou .então, em. caso
querer derivar a realidade deste princípio da constituição. contrário, condenar o homeni ao desprezo de si mesmo
particular da natureza humana. Pois o dever• deve ser a e à execração íntima.
necessidade prática-incondici,onada da acção; tem de valer Tudo portanto o que é empírico é, como acrescento
portanto para todos os seres racionais (os únicos aos quais 3:0 principio da moralidade, não só inútil mas também
se pode aplicar sempre um imperativo), e só por isso pode altamente prejudicial à própria pureza dos costumes; pois
ser lei também para toda a vontade humana. Tudo o que, o que constitui o valor particul~ de uma vontade abso-
pelo contrário, derive da // disposição natural particular lutamente boa, valor. superior a todo o preço, é que o
da humanidade, de certos-sentimentos e tendências, mesmo principio da acção seja livre de todas as influências de
até, se possível, duma propensão especial que seja própria motivos .contingentes que só a experiência pode fornecer.
da razão humana e não tenha que valer necessariamente Todas as prevenções serão poucas contra este desleixo ou
para a vontade de· todo o ser racional, tudo isso pode na mesmo esta vil maneira de pensar, que leva a buscar o-
verdade dar lugar para. nós a uma máxima, mas não a uma principio da cmiduta em motivos e leis empíricas; pois a
lei; pode dar-nos um principio subjectivo segundo o qual razão humana é propensa a descansar das suas fa<Íi:gas neste
poderema~ agir por queda ou tendência, mas não um travesseiro e, no sonho de doces ilusões (que lhe fazem
p'rincípio objectivo que nos mande agir mesmo a despeito abraçar uma nuvem em vez de Jwio), a· pôr em lugar
de todas as nossas tendências, inclinações e disposições do filho legítimo da moralidade um bastardo composto
naturais. Tanto assim, que a sublimidade e íntima digni- de membros da mais variada proveniência que se parec~
dade do mandamento expresso num dever resplandecerão com tudo o que nde se ·queira ver, só não se parece com
tanto mais, quanto menor for o apoio e mesmo quanto a virtude aos olhos de quem um dia a tenha visto na súa
maior for a resistência que ele encontre nas causas sub~ verdadeira figura(*).
jectivas, sem que com isto enfraqueça no múrimo que
seja a obrigação que a lei impõe ou ela perca nada da
sua validade.
Ora aqui vemos nós a filosofia posta de facto numa (*) Ver a virtude na sua verdadeira figura não é mais _do tjuc
representar a moralidade despida de toda a mescla de dcmrntos
situação melindrosa, situação essa que deve ser firme, sensíveis // e de todos os falsos adornos da recompensa e do ª'.nor

// BA 60
// BA 61 Nota: // BA 61

64 65
FMC-j
/ / A questão que se põ·e é portanto esta: ...:.... É ou
é uma lei necessária para todos os seres · racionais hão desaparece por si, porque, se a razão por si s6
determina
a de jul- o procedimento (e essa possibilidade é que nós
gar sempre as suas acções por .máximas tais que vamos
eles pos- agora investigar), terá de fazê-lo necessariamente
sam querer que devam servir de leis universa,is a priori.
? Se essa A vontade é concebida como a factild;ide de se dete
lei existe, então tem ela ele estar já ligada (tota r-
lmente minar a si mesmo a agir em conformidade com a
a priori) ao -conceito de vontade de um ser racio represen-
nal em tação de cerias leis. E uma tal faculdade só se pode
geral. Mas para descobrir ei,ta ligação é preciso, encon-
por bem trar em seres racionais. Ora aquilo que serve
que nos custe, dar um passo mais além, isto é para à vontade
a Meta-
física, posto que para wn campo da Metafísica de princípio objectivo da sua autodeterminação
que é dis- é o fim
tinto do da Filosofia especulativa, e que é: a ·(Zweck), e este, se é dado pela só razão, tem de
Metafísica ser válido
dos Costumes. Num a filosofia prática, em que igualmente para todos os seres racionais. O
não temos que pelo
de determinar os princípios do que acontece mas contrário contém apenas o princípio da possibilid
sim as leis ade da
do que deve acontecer, mesmo que nunca acon acção, cujo efeito é um fim, chama-se meio. O
teça, quer princípio
dizer leis objectivas-práticas ;; num a tal filosofia, subjectivo do desejar é o móbil (Triebfeder) ( 1), o
digo, não prip.cípio
temos necessidade de encetai: investigações sobre objectivo do querer é o motivo (Bewegungsgrund);
as razões daqui
por que qualquer coisa agrada ou desagrada, por a diferença entre fins subjectivos, que assentam
que, por em mób i-
exemplo, o prazer da simples sensação se disti les, e objectivos, que dependem de motivos, válid
ngue do os para
gosto, e se este se distingue de um prazer univ // todo o ser racional. Os princípios práticos são
ersal da formais,
razão; não precisamos de investigar sobre· que quando fazem abstracção de todos os fins subje
assenta o ctivos;
sentimento do prazer e do -desprazer, e com o é mas são materiais quando se baseiam nestes fins subje
que daqui
resultam desejos e tendências, e como destas pôr ctivos
sua vez, e portanto em certos móbiles. Os fins que um ser
com o concurso da razão, resultam as// máximas racional
; porque se propõe a seu grado como efeitos da sua acção (fins
tudo isto pertence a uma psicologia empírica que mate-
consti- riais) são na totalidade apenas relativos; pois o
tuiria a segunda parte da ciência da natureza se que lhes_
a conside- dá o seu valor é somente a SUla relação com uma
rássemos como Filosofia da· Natureza, enquanto faculdade
ela se de desejar do· sujeito com características espec
funda em leis empfricqs. Aqu i trata-se, porém. da iais, valor
lei objec- esse que por isso não pode fornecer princípios
tiva-prática ( 1), isto é da. relação de uma vontadé universais
consigo para todos os seres racionais, que sejam também
mesma enquanto essa vontade: se determina só pela válidos
razão, e necessários para todo o querer, isto é leis práticas.
pois que então tudo o que se relaciona _-com o Todos
empµico tstes fins relativos são, por conseguinte, apen
as a base
de imperativos hipotéticos.
Admitindo porém que haja alguma coisa cuja exist
de si mesmo. Com o ela então deixa na sombra
tudo o que às incli- ên-
nações parece tão encantador, eis o que cada qual cia em si mesma tenha um vafor absoluto e que,
como jim
vcr "pclo meno r esforço da sua razão, se esta não pode facilmente em si mesmo, possa ser a base de leis determinadas,
nessa
estiver já de todo
incapacitada par.a toda, a abstracção: (Nota _de Kant.
)
( l) Lachelier (pag. 63) e More ntê (pág. 76)
l·xpn:ssão no plural. (l>.Q.) traduzem a
( 1) Morc nte {pág. 76): «resorte» .. (P. Q.).

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// BA 64

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67
coisa e só nela é que es·tará a base de um possível impe- relação ao qual essas coisas servissem apenas como meios;
rativo categórico, quer dizer de uma lei prática. porque de outro modo nada. ém parte alguma se encon-
Ora digo eu: - O homem, e, duma maneira geral, traria 'J.Ue tivesse valor absoluto; mas se todo // o valor
todo o ser racional, existe como fim em si mesmo, não só fosse condj,cional, e por conseguinte contingente, em
como meio para o gso arbitrário desta ou daquela vontade. parte alguma se poderia encontrar um princípio prático
Pelo contrário, em todas as suas acções, tanto nas que se supremo para a razão.
dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem // a outros Se, pois, deve haver um princípio prático supremo e
seres racionais, ele tem sempre de ser considerado simul- um imperativo categórico no que respeita à vontade
taneamente como fim. Todos os o~jectos das inclinações humana, então tem de ser tal que, da representação daquilo
têm somente um valor condicional, pois, se não existis- que é necessariamente um fim para toda a gente, porque
sem as inclinações e as nece:isidades que .nelas se baseiam, é fim em si mesmo, faça um princípio objectivo da vontade,
o seu objecto seria sem valor. As própt:ias inclinações, que possa por conseguinte sc::rvir de lei prática universal.
porém, como fontes das necessidades, estão tão longe de O fundamento ªeste princípio é: A natureza racional existe
ter um valor absoluto que as torne desejáveis em si mes- como fim em si. .E ~ssim que o homem se representa neces-
mas, que, muito pelo contrário, o desejo universal de sariamente a sua própria existência; e, neste sentido, este
todos os seres racionais deve ser o de se libertar total- princípio é um princípio sirbjectivo das acções humanas.
mente delas. Portanto o valor de todos os objectos que Mas é também assim que qualquer outro ser racional se
possamos adquirir pelas nossas acções é sempre condicional. representa a sua existência, em virtude exactamente do
Os seres cuja existência depende, não em verdade da mesmo princípio racional que é válido também para
nossa vontade, mas da nat'llreza, têm contudo, se são mim (*) ; é portanto simultaneamente um princípio objec-
seres irracionais, apenas um valor relativo como meios e tivo, do qual como princípio prático supremo se têm de
por isso se chamam coisas, ao passo que os seres racionais poder derivar todas as leis da vontade. O imperativo prá-
se chamam pessoas, porque a sua natureza os distingue já tico será pois o seguinte: Age 'de tal maneira que uses a
como fins em si mesmos, quer dizer como algo que não humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualq1,1er
pode ser empregado como simples meio e que, por con- outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca // sim-
seguinte, limita nessa medida todo o arbítrio (t) (e é um plesmente como meio. Vamos ver se é possível cumprir isto.
objecto do respeito). Estes não são portanto meros fins Atendo-nos aos exemplos dados atrás, veremos·:
subjectivos cuja existência tenha para nós um· valor como Primeiro: Segundo o conceito do dever necessário
efeito da nossa acção, mas sim fins objectivos, quer dizei para consigo mesmo, o homem que anda pensando em
coisas cuja existência é em si mesma um ~ e um fim
suicidar-se perguntará a si mesmo se a sua acção pode
tal que se não pode pôr nenhum outro no seu lugar ·em estar de acordo com a ideia da humanidade como fim em

( ') O original: «•• . mithin sofern alie Willkür einschrãnkt• - (*) Apresento-aqui esta proposição como um postulado. Na
,: :issim traduzido por Delbos {pág. 149): «••• qui par suite limite
,l',1111,mt toute fac,.dté ti'agir comme bon nous semble.. (P. Q.). últim,a secção encontraremos as razões em que se apoia .. (Nota
de Kant.) ·

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si mesma. Se, para escapar a uma situação penosa, se destrói , .11nente comó seres que devem poder conter também cm
a si mesmo, serve-se ele de uma pessoa como_ de um sim- •,1 o fim desta mesJlla .-.acção (*).
ples meio para conservar até ao fim da vida uma situação Terceiro: Peló que respeita ao dever contingente (meri-
suportável. Mas o home m não é uma coisa; não é por- 1úrio) para consig o mesmo , não basta que a // acção não
tanto um objecto que possa ·ser utilizado simplesmente esteja em _contradição com. a humanidade na nossa pessoa
como um meio, mas pelo contrário deve ser considérado como fim em si, é preciso que concorde com. ela. Ora, há
11a humanidade disposiçõês para maior perfeição
que per-
sempre em todas as suas aa;:ões como fim em si mesmo.
Portanto não posso dispor do homem. na minha pessoa tencem ·ao fim da natureza a respeito da humanidade na
para o mutilar, o degradar ou o matar. (Tenho de deixar nossa pessoa; descurar essas disposições poderia em ver-
agora de parte a determinação mais exacta deste princípio dade subsistir com a conservação da humanidade como fim
para evitar todo o mal-entendido, por exemplo no caso cm si, mas nã? com a promoção deste fim.
de amputação· de membros para me salvar, ou no de pôr · Quarto: No que concerne o dever meritório para com
a vida em perigo para a conservar, etc.; essa determina- outrem, o fim natural que todos os homens têm é a sua
ção pertence à moral pFopriamente dita.) própria felicidade. Ora, é verdade ·que a humanidade pode-
Segundo: Pelo que diz respeito ao dever necessário ou ria subsistir se ninguém contribuísse para a felicidade dos
estrito para com os outros, aquele que tem a intenção outros, contanto que também lhes não subtraísse nada
de fà2er a outrem uma promessa mentirosa reconhecerá intencionalmente; mas se cada qual se não esforçasse por
imediatamente que quer servir-se de outro home m// sim- f.
:~~
contribuir na medida das suas forças para os fins dos seus
plesmente como meio, sem que este último contenha ao t;
f1 semelhantes, isso seria apenas uma concordância negativa
mesmo tempo .o fim em si. Pois aquele que eu quero uti- lt e não . positiva com: a .humanidade como fim em si mesma.
lizar para os meus intuitos por meio de uma tal promessa ~· Pois que se um sujeito é um fim em si mesmo , os seµs
não pode de modo algum concordar com a minha maneira 'f fins têm de ser quanto possível os meus, para aquela ideia
de proceder a seu respeito, não pode portanto conter em !ti poder exercer em mim toda a sua eficácia.
si mesmo o fim desta acção. Mais claramente ainda dá i Este princípio da humanidade e de toda a natureza
na ·vista esta colisão · com o princípio de humanidade ( 1) l racional em geral como fim em si mesma (qu.e é a condição
cm outros homens quando tomamos para exemplos ata-
ques à liberdade ou à propriedade alheias. Porque então
1
i

é evidente que o violador dos direitos dos homens tenciona


(*) Não vá pensar-se que aqui o trivial: qiwd tibi non vis
servir-se das pessoas dos outros simplesmente como meios, fieri etc., possa servir de d.irectriz ou principio. Pois este preceito,
sem considerar que eles, como seres racionaiç, devem ser posto que com várias restrições, só pode derivar_daquele; não pode
sempre tratados ao mesmo tempo como fms, isto é uni- ser uma lei universal, visto não conter o principio dos deveres para
consigo mesmo, nem o dos deveres de caridade para com os outros
(porque muitos renunciariam de bom grado a que os outros lhes
~essem bem se isso os dispensasse de eles fazerem bem aos outros),
nem mesmo finalmente o p rincipio dos deveres mútuos ; PC?rquc o
1
( ) Kant diz simplesmente: «das Prinzip anderer Menschen» -
·•, princípio de outros homens•. Seguimos neste passo a interpre- criminoso poderia por esta razão argume ntar contra os juízes que
1,, .\., dl' Dc:lbos (pág. 152) e de Lachdi er (pág. 68). (P. Q.). o punem , etc. (Nota de Kant.) ·

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suprema que limita a liberdade // ,das acções de cada Os imperativos, tais·como atrás 1_10-los representámos,
homem) não é extraído da ·e:xperiência, - primeiro, por quer dizer como constituindo uma legisl~ção das acções
causa da sua universalidade, pois que se aplica a todos os t11úversalmente semelhante a unia ordem natural, ou como
seres racionais em geral, sobre o que nenhuma experiên- universal privilégio de finalidade dos seres racionais em
cia chega para determinar seja o que for; segundo, porque si mesmos (1),- excluíam sem dúvida do seu principio de
nele a humanidade se representa não como fim dos :1utorid.ade toda a mescla d:e qualquer interesse como
homens (subjectivo), isto é como objecto de que fazemos m6bil, exactamente por serem concebidos como categó-
por nós mesmos efectivamente wn fim, mas como fim ricos; mas eles só foram admitidos como categóricos por-
objectivo, o qual, sejan1: quais forem os fins que tenha- que tínhamos de admiti-los como tais se queríamos expli-
mos em vista, deve constituir como lei a condição suprema car o conceito de dever. ~as que houvesse proposições
que limita todos os fins subjectivos, e que por isso só
práticas que ordenassem categoricamente,. eis o que por
pode .derivar da razão pura. É que o princípio de toda a
si nã~ pôde ser provado e o que ne~ta secção tão-pouco
legislação prática reside objectivamente na regra e na forma
da universalidade que a torna capaz (segundo o primeiro se pode provar ainda; mas podia ter acontecido uma coisa,
princípio) de ser uma lei (sempre lei da natureza); sub- a saber: indicar no próprio imperativo, ·por qualquer
jectivamente, porém, reside no fim; mas o sujeito de todos determinação nele contida, a renúncia a todo o interesse
os fins é (conforme o segundo princípio) todo o ser racio- no querer por dever como carácter específico de distinção
nal como fim em si mesmo: daqui resulta o terceiro prin- do imperativo categórico em face do hipotético. Ora é
cípio prático da vontade como condição suprema da con- precisamente o que acontece na presente terceira fórmula
cordância desta vontade com a razão prática universal, do princípio, isto é na ideia da vontade de todo o ser
quer dizer a ideia da vontade de todo o ser racional concebida racional como vontade legisladora universal.
como vontade legisladora universal.
Segundo este princípio são rejeitadas todas as máxi-
mas que não possam subsistir juntam ente com a própria
legislação universal da vontade. A vontade não está pois (1) Confronte-,se a nossa tradução d.o passo .original: - illie
simplesmente submetida // à lei, mas sirh submetida de Itnperativen nach der vorig.en Vorstellungsart, 11ãmlich d!!! allgeme
in
tal maneira que tem de ser considerada também como- einer Nqturordnung . iihnlichen Gesetzmãssigkeit der Handlungen oder
des allgemeinen Zwec/es11orzuges vemünftiger Wesen an sidi selbst...• -
legisladora ela mesma (1), e exactamente por isso e só respeccivamente com as de Delbos (pág. 155), Lachelier (págs.
então submetida à lei (de que ela se pode olhar como 70-71)
e Morente (pág. 83): - «Les impératifs, selon le genre de formule
s que
autora). nous avons présentées plus haut, soit celui qui exige que les actions soient
cotiformes à ~-s /()is utiiverselles ,011,me dans un ordrc de la natute
soit celui quí 11eut que les êtres raisonnables aient la prérogative uni-,
verselle de fins en soi ...• - «Les ítnpératifs, tels que nous venons
de
les représenter, c'est-à-àire constituan( une /égislation pratique sembla-
( 1) No origin al« ... ais selbstgesetzgebená». Delbos (pág. 155)
traduz : «comme instituant elle-mlme la loi•; Lachelier ble en .genéral à l' ord.re de la natute, ou accor~ant aux itres raisonn
(Pág. 70): a-
••t"'"llc soít législatrice»; Moren te (pág. 82): ·ccomo legisla,ulose a bles, consiàérés en eux-mimes, 1~ privilege de fa finalité en soi ..., -
sí cLos imperativos, según el modo anterior áe representarias, a saber:
l'"'l''ia». (P. Q.). la
legaliáail de las qcciones semejante a ut1 ord.en natural, o la prefercu
cia universal dei fin en p,:o de los seres racionales en si mismos ... -
,.
// DA 10, 11
(P.Q.)
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