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Para uma pedagogia do conflito* **

Introdução justa e mais solidária e a sua impossibilidade


política. Este tempo paradoxal cria-nos a sen-
V ivemos num tempo paradoxal. Um tempo
de mutações vertiginosas produzidas pela
globalização, a sociedade de consumo e a so-
sação de estarmos vertiginosamente parados.
Vivemos, de facto, num tempo simultanea-
ciedade de informação. Mas também um tempo mente de conflito e de repetição. O grão de
de estagnação, parado na impossibilidade de verdade da teoria do fim da história está em
pensar a transformação social, radical. Nunca que ela é o máximo de consciência possível
foi tão grande a discrepância entre a possibi- de uma burguesia internacional que vê final-
lidade técnica de uma sociedade melhor, mais mente o tempo transformado na repetição
automática e infinita do seu domínio. O lon-
* Extraído de Santos, B. de Sousa 1996 “Para uma pe-
go prazo colapsa assim no curto prazo e este,
dagogia do conflito” in Silva, L. H. da et al. Novos Mapas que foi sempre o quadro temporal do capita-
Culturais, Novas Perspectivas Educacionais (Porto lismo, permite finalmente à burguesia produ-
Alegre: Editora Sulina). zir a única teoria da história verdadeiramente
** Palestra proferida no III Seminário Internacional burguesa, a teoria do fim da história. O total
sobre Reestruturação Curricular: Novos Mapas Cultu- descrédito desta teoria não interfere em nada
rais, Novas Perspectivas Educacionais, organizado pela
Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre, de
com o sucesso dela enquanto ideologia espon-
1 a 6 de julho de 1996. Duas décadas depois, motivou a tânea dos vencedores. O outro lado do fim da
discussão das suas propostas que se reflectiram no livro história é o slogan da celebração do presente
Freitas, A. L. e Moraes, S. Campos (orgs.) 2009 Contra tão cara às versões capitulacionistas do pen-
o desperdício da experiência. A pedagogia do conflito samento pós-moderno.
revisitada (Porto Alegre: Redes Editora). [N. do A.]
526 Boaventura de Sousa Santos

A ideia da repetição é o que permite ao pre- Mas será assim? Estará a vitória da burgue-
sente alastrar ao passado e ao futuro, canibali- sia internacional consumada? Será o presente
zando-os. Estamos perante uma situação nova? capaz de repetir-se para sempre? A verdade é
Até agora a burguesia não pudera elaborar uma que a repetição do presente é a repetição da
teoria da história exclusivamente segundo os fome e da miséria para uma parte cada vez
seus interesses. Vira-se sempre em luta com mais importante da população mundial, é a
adversários fortes, primeiro as classes domi- repetição de novos fascismos transnacionais
nantes do antigo regime e depois, as classes públicos e privados que, sob a capa de uma
trabalhadoras. O desfecho dessa luta estava democracia sem condições democráticas, es-
sempre no futuro, o qual, por essa razão, não tão a criar um apartheid global, é, finalmente,
podia ser visto como mera repetição do passa- a repetição do agravamento dos desequilíbrios
do. Os nomes deste movimento orientado para ecológicos, da destruição maciça da biodi-
o futuro foram vários, tais como, a revolução, versidade, da degradação de recursos que até
o progresso, a evolução. Como o desfecho da agora garantiram a qualidade de vida na terra.
luta não estava predeterminado, a revolução Perante isto, haverá energias no passado ou no
pôde ser burguesa e operária, o progresso pôde futuro suficientes para impedir que o presente
ser visto como consagração do capitalismo ou se repita indefinidamente?
como sua superação, o evolucionismo pôde ser As energias do futuro parecem desvanecer-
reivindicado tanto por Herbert Spencer, como -se pelo menos enquanto o futuro continuar a
por Marx. ser pensado nos termos em que foi pensado
Foi neste quadro que a transformação social, pela modernidade ocidental, ou seja, o futuro
a racionalização da vida individual e colectiva como progresso. Os grandes vencidos do pro-
e a emancipação social, passaram a ser pensa- cesso histórico capitalista, os trabalhadores e
das. À medida que se foi construindo a vitória da os povos do terceiro mundo, descreem hoje
burguesia, o espaço do presente como repetição do progresso porque foi em nome dele que
foi-se ampliando. Hoje a burguesia sente que a viram degradar-se as suas condições de vida
sua vitória histórica está consumada e ao vence- e as suas perspectivas de libertação. Penso
dor consumado não interessa senão a repetição que neste momento, e pelo menos transitoria-
do presente. Daí a teoria do fim da história. mente, há que buscar energias progressistas
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sobretudo no passado. Não se trata de uma sestabilizadora que nos fornece do conflito e
tarefa fácil porque a teoria da história da mo- do sofrimento humano. Será através dessas
dernidade desvalorizou sistematicamente o imagens desestabilizadoras que será possível
passado em benefício do futuro. O passado recuperar a nossa capacidade de espanto e de
foi sempre concebido como reaccionário e o indignação e de, através dela, recuperar o nos-
futuro como progressista. Foi assim que a bur- so inconformismo e a nossa rebeldia.
guesia viu a sua luta e foi assim também que Nesta reside, em meu entender, o cerne de
a classe operária viu a sua luta. Esta teoria da um projecto educativo emancipatório, adequa-
história fez com que facilmente fossem esque- do ao tempo presente. Trata-se de um projec-
cidos o sofrimento, a injustiça, a opressão, to- to orientado para combater a trivialização do
dos superáveis num futuro próximo e radioso. sofrimento, por via da produção de imagens
Foi assim que a classe operária se viu menos desestabilizadoras a partir do passado conce-
como herdeira de escravos do que como van- bido não como fatalidade, mas como produto
guarda dos libertadores. da iniciativa humana. Um passado indesculpá-
A mesma teoria da história contribuiu para vel precisamente por ter sido produto de ini-
trivializar, banalizar os conflitos e o sofrimento ciativa humana que, tendo opções, podia ter
humano de que é feita a repetição do presen- evitado o sofrimento causado a grupos sociais
te neste fim de século. O sofrimento humano e à própria natureza. Deste modo, o objectivo
mediatizado pela sociedade de informação está principal do projecto educativo emancipatório
transformado numa telenovela interminável consiste em recuperar a capacidade de espanto
em que as cenas dos próximos capítulos são e de indignação e orientá-la para a formação de
sempre diferentes e sempre iguais às cenas dos subjectividades inconformistas e rebeldes.
capítulos anteriores. Esta trivialização traduz- Só o passado como opção e como conflito é
-se na morte do espanto e da indignação. E capaz de desestabilizar a repetição do presen-
esta, na morte do inconformismo e da rebeldia. te. Maximizar essa desestabilização é a razão
Penso, pois, ser necessário uma outra teo- de ser de um projecto educativo emancipató-
ria da história que devolva ao passado a sua rio. Para isso, tem de ser, por um lado, um pro-
capacidade de revelação, um passado que se jecto de memória e de denúncia e, por outro,
reanime na nossa direcção pela imagem de- um projecto de comunicação e cumplicidade.
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Tratarei agora de definir, a traço grosso, o ção do sofrimento e da opressão e veja neles o
perfil de um tal projecto educativo. Limitar-me- resultado de indesculpáveis opções.
-ei ao seu perfil epistemológico deixando de A educação para o inconformismo tem de ser
lado as questões institucionais e organizacio- ela própria inconformista. A aprendizagem da
nais, bem como os processos políticos concre- conflitualidade dos conhecimentos tem de ser
tos que o poderão levar à prática. ela própria conflitual. Por isso, a sala de aula
A conflitualidade do passado, enquanto cam- tem de transformar-se ela própria em campo de
po de possibilidades e de decisões humanas, é possibilidades de conhecimento dentro do qual
assumida no projecto educativo como conflitu- há que optar. Optam os alunos tanto quanto os
alidade de conhecimentos. Para este projecto professores e as opções de uns e outros não
educativo não há uma, mas muitas formas ou têm de coincidir nem são irreversíveis. As op-
tipos de conhecimento. Todo o conhecimento ções não assentam exclusivamente em ideias
é uma prática social de conhecimento, ou seja, já que as ideias deixaram de ser desestabiliza-
só existe na medida em que é protagonizado e doras no nosso tempo. Assentam igualmente
mobilizado por um grupo social, actuando num em emoções, sentimentos e paixões que confe-
campo social em que actuam outros grupos rem aos conteúdos curriculares sentidos ines-
rivais protagonistas ou titulares de formas ri- gotáveis. Só assim é possível produzir imagens
vais de conhecimento. Os conflitos sociais são, desestabilizadoras que alimentem o inconfor-
para além do mais, conflitos de conhecimen- mismo perante um presente que se repete, re-
to. O projecto educativo emancipatório é um petindo as opções indesculpáveis do passado.
projecto de aprendizagem de conhecimentos O objectivo último de uma educação transfor-
conflituantes com o objectivo de, através dele, madora é transformar a educação, converten-
produzir imagens radicais e desestabilizadoras do-a no processo de aquisição daquilo que se
dos conflitos sociais em que se traduziram no aprende, mas não se ensina, o senso comum. O
passado, imagens capazes de potenciar a in- conhecimento só suscita o inconformismo na
dignação e a rebeldia. Educação, pois, para o medida em que se torna senso comum, o saber
inconformismo, para um tipo de subjectividade evidente que não existe separado das práticas
que submete a uma hermenêutica de suspeita a que o confirmam. Uma educação que parte da
repetição do presente, que recusa a trivializa- conflitualidade dos conhecimentos visará, em
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última instância, conduzir à conflitualidade en- aplicação de conhecimentos. Os sistemas edu-


tre sensos comuns alternativos, entre saberes cativos da modernidade ocidental foram mol-
práticos que trivializam o sofrimento humano e dados por um tipo único de conhecimento, o
saberes práticos que se inconformam com ele, conhecimento científico e por um tipo único
entre saberes práticos que aceitam o que exis- da sua aplicação, a aplicação técnica. De fac-
te, só porque existe, independentemente da to, a criação moderna dos sistemas educativos
sua bondade, e saberes práticos que só aceitam coincide com a consolidação da ciência mo-
o que existe na medida em que merece existir, derna enquanto modo hegemónico de raciona-
finalmente entre saberes práticos que olham lidade, a racionalidade cognitiva-instrumental,
as decisões pelo que está a jusante delas e as uma racionalidade que se afirma pela sua efi-
converte em consequências fatais e saberes cácia na transformação material da realidade.
práticos que olham as decisões pelo que está Depois da primeira revolução industrial, essa
a montante delas e as converte em indesculpá- eficácia traduziu-se na conversão progressiva
veis opções humanas. da ciência em força produtiva, um processo
Passarei agora a descrever os três conflitos histórico que atinge hoje o paroxismo com a
de conhecimentos que, em meu entender, de- fusão praticamente total entre ciência e produ-
vem presidir ao projecto educativo. Não têm ção de bens e serviços. Nenhuma delas é hoje
todos o mesmo nível ou intensidade de confli- pensável sem a outra. Os sistemas educativos
tualidade. Apresentá-los-ei por ordem crescen- modernos pressupõem, no entanto, que entre
te de intensidade. ciência e produção há uma distância e que essa
distância é medida pela aplicação técnica da
A aplicação técnica e a aplicação ciência. São as seguintes as características da
edificante da ciência aplicação técnica da ciência:
O primeiro conflito não é propriamente um 1. Quem aplica o conhecimento está fora da
conflito de conhecimentos1. É um conflito na situação existencial em que incide a aplica-
ção e não é afectado por ela.
2. Existe uma separação total entre fins e
1 Para uma análise mais detalhada deste conflito meios. Pressupõem-se definidos os fins e a
(Santos, 1989). aplicação incide sobre os meios.
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3. Não existe mediação deliberativa entre o As consequências deste modelo de aplica-


universal e o particular. A aplicação pro- ção da ciência moderna são hoje bem conhe-
cede por demonstrações necessárias que cidas. Na sua origem, este modelo visou con-
dispensam a argumentação. verter todos os problemas sociais e políticos
4. A aplicação assume como única a definição em problemas técnicos e resolvê-los de modo
da realidade dada pelo grupo dominante e científico, isto é, eficazmente com total neutra-
reforça-a. Escamoteia os eventuais confli- lidade social e política. Punha à disposição dos
tos e silencia as definições alternativas. decisores políticos e dos actores sociais um co-
nhecimento certo e rigoroso, que desagregava
5. A aplicação do know-how técnico torna
os problemas sociais e políticos nas suas dife-
dispensável, e até absurda, qualquer dis-
rentes componentes técnicas e lhes aplicava
cussão sobre um know-how ético. A natu-
soluções eficazes, inequívocas e consensuais
ralização técnica das relações sociais obs-
porque sem alternativa. Os problemas eram
curece e reforça os desequilíbrios de poder
no século XIX de monta: a desorganização da
que as constituem.
sociedade rural e a anomia urbana causada
6. A aplicação é unívoca e o seu pensamen- pela urbanização caótica, a industrialização
to é unidimensional. Os saberes locais ou vertiginosa; a revolta das “classes perigosas”
são recusados ou são funcionalizados e, vivendo na miséria ao lado da abundância; as
em qualquer caso, tendo sempre em vista a rivalidades colonialistas e imperialistas entre
diminuição das resistências ao desenrolar os Estados-nacionais e a iminência da guerra,
da aplicação. a degradação da natureza pelo uso selvagem
7. Os custos da aplicação são sempre inferio- dos recursos naturais. Olhando em retrospec-
res aos benefícios e uns e outros são avalia- to, o portentoso desenvolvimento científico,
dos quantitativamente à luz de efeitos ime- que desde então ocorreu, não resolveu nenhum
diatos do grupo que promove a aplicação. desses problemas e, quiçá, contribuiu para
Quanto mais fechado o horizonte contabi- agravá-los. Por isso, o modelo de aplicação
lístico, tanto mais evidentes os fins e mais técnica da ciência não tem hoje a credibilidade
disponíveis os meios. que tinha no século XIX. Aliás, é o descrédito
deste modelo uma das dimensões principais
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do descrédito no futuro já que o progresso que 3. A aplicação é, assim, um processo argu-


este prometeu foi sempre concebido como mentativo e a adequação, maior ou menor,
consequência do progresso da ciência. O fac- da aplicação reside no equilíbrio, maior ou
to de o modelo de aplicação técnica da ciência menor, das competências argumentativas
continuar hoje a subjazer ao sistema educativo entre os grupos que lutam pela decisão do
só é compreensível por inércia ou por má fé, ou conflito a seu favor (o consenso não é mé-
por ambas: pela inércia da cultura oficial e das dio, nem é neutro).
burocracias educativas; pela má fé da institu- 4. O cientista deve, pois, envolver-se na luta
cionalidade capitalista que utiliza o modelo de pelo equilíbrio de poder nos vários contex-
aplicação técnica para ocultar o carácter políti- tos de aplicação e, para isso, terá de tomar
co e social da desordem que instaura. o partido daqueles que têm menos poder.
Em face disto, o projecto educativo eman- Cada mecanismo de poder cria a sua pró-
cipatório tem de criar um campo epistemoló- pria micro-hegemonia. Quem tem menos
gico em que o modelo de aplicação técnica da desse poder tende, por isso, a não ter argu-
ciência seja posto em conflito com um modelo mentos para ter mais desse poder e, muito
alternativo. O conflito entre os dois modelos menos, para ter tanto poder quanto o do
passará a constituir, neste domínio, o cerne do grupo hegemónico. A aplicação edificante
processo de ensino-aprendizagem. Como mo- consiste em revelar argumentos e tornar
delo alternativo proponho o modelo de aplica- legítimo e credível o seu uso.
ção edificante da ciência, o qual se pauta pelas
5. A aplicação edificante procura e reforça
seguintes características:
as definições emergentes e alternativas da
1. A aplicação tem sempre lugar numa situa-
realidade; para isso, deslegitima as formas
ção concreta em que quem aplica está exis-
institucionais e os modos de racionalidade
tencial, ética e socialmente comprometido
em cada um dos contextos, no entendimen-
com o impacto da aplicação.
to de que tais formas e modos promovem
2. Os meios e os fins não estão separados e a a violência em vez da argumentação e o
aplicação incide sobre ambos. Os fins só se silenciamento em vez da comunicação, o
concretizam na medida em que se discutem estranhamento em vez da solidariedade.
os meios adequados à situação concreta.
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6. Para além de um limite crítico socialmen- ciência corre um duplo risco. Por um lado,
te definível, uma maior participação numa sabe que os seus objectivos não são obtí-
visão moral e política é melhor que um veis exclusivamente com base na ciência e
acréscimo no bem-estar material. O know- na argumentação. Há interesses materiais e
-how técnico é imprescindível, mas o sen- lutas entre classes e outros grupos sociais
tido do seu uso é-lhe conferido pelo know- que usam outros meios para impor o que
-how ético que, como tal, tem prioridade lhes é benéfico. Por isso, a luta pela aplica-
na argumentação. ção edificante é sempre precária, integra-
7. Os limites e as deficiências dos saberes -se (por vezes sem saber) noutras lutas e os
locais nunca justificam a recusa in limi- seus resultados nunca são irreversíveis. É,
ne destes, porque isso significa o desarme pois, uma luta sem pressupostos nem segu-
argumentativo e social de quanto são com- ranças. Uma luta por um fim sem fim.
petentes neles. Se o objectivo é ampliar o Por outro lado, a aplicação edificante tem,
espaço de comunicação e distribuir mais nesta fase de transição paradigmática, de
equitativamente as competências argu- partir dos consensos locais para criar mais
mentativas, os limites e as deficiências de conflito, em resultado do maior esclareci-
cada um dos saberes locais superam-se, mento das razões contingentes que susten-
transformando esses saberes por dentro, tam muito do que surge como socialmente
interpenetrando-se com sentidos produzi- necessário. Este conflito ampliado é visto
dos noutros saberes locais, desnaturalizan- como condição da ampliação do espaço
do-se através da crítica científica. de comunicação e do alargamento cultu-
8. A ampliação da comunicação e a equili- ral ético e político dos argumentos utili-
bração das competências visa a criação záveis pelos vários grupos em presença.
de sujeitos socialmente competentes. Os Mas, devido às condições que sustentam
mecanismos de poder tendem a alimentar- o primeiro risco, não há garantias de que
-se da incompetência social e, portanto, a potenciação do conflito não possa indu-
da “objectivação” dos grupos sociais opri- zir algum grupo ao recurso à violência, ao
midos, pelo que a aplicação edificante da silenciamento e ao estranhamento, assim
reduzindo a comunicação e a argumenta-
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ção em vez de as aumentar. À ciência que cientista nos vários discursos locais, pró-
se pauta pela aplicação edificante não inte- prios dos vários contextos de aplicação.
ressa que a transformação seja moderada Esta transformação não pode ser exigível
ou radical, reformista ou revolucionária; em pleno e sem contradições ao cientista
interessa tão-só que ela ocorra pela amplia- ou técnico individual. A reflexividade, para
ção da comunicação e da argumentação, o ter algum peso, tem de ser colectiva. Mas,
que, obviamente, não obsta à intensidade para além disso, a transformação é pro-
do conflito ou à incondicionalidade do em- piciada por novas formas de organização
penho de quantos nele participam. da investigação, por meios alternativos de
9. A aplicação edificante vigora dentro da premiar a excelência do trabalho científico.
própria comunidade científica e técnica. Estas formas alternativas chocam-se com a
Os cientistas e os técnicos apostados nela materialidade e a resistência das soluções
lutam pelo aumento da comunicação e da vigentes. E também aqui se verificam os
argumentação no seio da comunidade cien- dois riscos anteriormente apontados: não é
tífica e técnica e lutam, por isso, contra as possível controlar pela ciência ou técnica
formas institucionais e os mecanismos edificante as consequências do aumento da
de poder que nela produzem violência, si- conflitualidade que ela promove nesta fase
lenciamento e estranhamento. Mas, além de transição paradigmática; os resultados,
disso, a transformação dos saberes locais além, de reversíveis, podem ser contrapro-
ocorre com a transformação do saber cien- ducentes e deixar, por momentos, tudo
tífico e com esta ocorre a transformação pior do que dantes. E também não há segu-
do sujeito epistémico, do ser cientista e ros contra estes riscos.
do ser técnico. Porque a aplicação é con- 10. Mas se na comunidade científica, como
textualizada tanto pelos meios como pelos em qualquer outra, não há seguros contra
fins e porque lhes preside know-how ético, estes riscos é, pelo menos, possível deter-
o cientista ou o técnico edificante tem de minar o perfil dos conflitos em que esses
saber falar como cientista e como não cien- riscos se correrão. A aplicação edificante
tista no mesmo discurso científico e, com- não prescinde de aplicações técnicas, mas
plementarmente, tem que saber falar como submete-se às exigências do know-how
534 Boaventura de Sousa Santos

ético. Ao contrário, a aplicação técnica é mana e opção responsável se os professores


mais radical e prescinde militantemente do e os alunos tiverem capacidade de iniciativa
know-how ético. e de opção para conhecer e avaliar as con-
sequências das opções tomadas e das que o
O projecto educativo conflitual faz do confli- podiam ter sido e não foram. A qualidade da
to entre o modelo de aplicação técnica e o mo- pedagogia do conflito mede-se pela qualidade
delo de aplicação edificante um dos eixos prin- das opções que no conflito são tomadas por
cipais do ensino-aprendizagem. Professores e professores e alunos.
alunos discutem os dois modelos, as diferenças
e as semelhanças entre eles e simulam campos Conhecimento-como-regulação e
de experimentação social em que seja possí- conhecimento-como-emancipação
vel visualizar as consequências da adopção O segundo conflito de conhecimento que de-
da cada um deles. A pedagogia deste conflito, verá animar um projecto pedagógico emanci-
como a dos demais, não é fácil em virtude da patório é mais intenso que o anterior uma vez
desigualdade estrutural dos modelos em confli- que se não confina às opções de aplicação de
to. Enquanto um deles tem detido o monopólio um certo tipo de conhecimento e antes se es-
da aplicação da ciência, o outro não passa de tende ao próprio conhecimento a ser aplicado.
uma potencialidade promissora. Professores e A ciência moderna, como disse, é hoje a forma
alunos terão de se tornar exímios na pedagogia de conhecimento hegemónico tanto no siste-
das ausências, ou seja, na imaginação da ex- ma educativo como fora dele. Trata-se, contu-
periência passada e presente se outras opções do, de uma hegemonia em risco em virtude de
tivessem sido tomadas. Só a imaginação das muitos factores, incluindo o que acima referi
consequências do que nunca existiu poderá de- da crescente e crescentemente visível discre-
senvolver o espanto e a indignação perante as pância entre o brilho das promessas da ciência
consequências do que existe. e a mediocridade, se não mesmo o horror, de
A solução do conflito pedagógico entre alguns dos seus desempenhos. Para além des-
modelos de aplicação da ciência não está pré- se, há outros, de recorte mais distintamente
-determinada à partida. O passado só será epistemológico, que têm vindo a pôr em causa
coerentemente concebido como iniciativa hu- o rigor e a objectividade do conhecimento cien-
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tífico, e os pressupostos em que assenta como, tituição desse conflito matricial, se aprofunde
por exemplo, a dicotomia sujeito/objecto ou a a crise da confiança epistemológica da ciência
concepção da natureza como entidade separa- moderna e se criem energias para a emergência
da da sociedade e da cultura. Estes questiona- de novos conflitos epistemológicos.
mentos têm contribuído para diminuir a con- Concebo esse conflito matricial como um
fiança epistemológica da ciência moderna e a conflito entre o conhecimento-como-regulação
tal ponto que, segundo alguns, entre os quais e o conhecimento-como-emancipação3. Tenho
me incluo, estamos a entrar num longo período vindo a defender que não há conhecimento em
de transição paradigmática em cujo decurso o geral, nem ignorância em geral. Cada forma de
paradigma da ciência moderna, ferido de uma conhecimento conhece em relação a um certo
crise irreversível e final, será substituído por tipo de ignorância e, vice-versa, cada forma de
um outro paradigma de conhecimento ainda ignorância é ignorância de um certo tipo de
por definir, mas que eu tenho designado como conhecimento. Cada forma de conhecimento
paradigma de um conhecimento prudente para implica assim uma trajectória de um ponto A,
uma vida decente2. designado por ignorância, e por um ponto B,
O segundo conflito de conhecimento a cons- designado por saber. As formas de conheci-
truir no campo pedagógico parte da ideia da mento distinguem-se pelo modo como carac-
transição paradigmática, mas, em vez de pro- terizam os dois pontos e as trajectórias entre
ceder a uma análise prospectiva do paradigma eles. Na modernidade ocidental, esta trajectó-
emergente, procede a uma arqueologia da mo- ria é simultaneamente uma sequência lógica e
dernidade com o objectivo de reconstruir um uma sequência temporal. O movimento da ig-
conflito epistemológico matricial em que, aliás, norância para o saber é também o movimento
a ciência moderna começou por participar, do passado para o futuro.
mas que passou a ocultar à medida que se foi Tenho vindo a defender que o paradigma da
constituindo em forma hegemónica de conhe- modernidade comporta duas formas principais
cimento. A ideia é a de que, a partir da recons- de conhecimento: o conhecimento-como-regu-

3 Analiso com grande detalhe este conflito epistemo-


2 Sobre este debate, cf. Santos (2003). lógico noutro lugar (Santos, 1995).
536 Boaventura de Sousa Santos

lação e conhecimento-como-emancipação. O social passasse a ser concebido como ordem e


conhecimento-como-regulação consiste numa o colonialismo, como um tipo de ordem. Para-
trajectória entre um ponto de ignorância desig- lelamente, o passado passou a ser concebido
nado por caos e um ponto de conhecimento, como caos e a solidariedade como um tipo de
designado por ordem. O conhecimento-como- caos. O sofrimento humano pôde assim ser jus-
-emancipação consiste numa trajectória entre tificado em nome da luta da ordem e do colo-
um ponto de ignorância chamado colonialismo nialismo contra o caos e a solidariedade. Esse
e um ponto de conhecimento chamado solida- sofrimento humano teve e continua a ter des-
riedade. Apesar de estas duas formas de co- tinatários sociais específicos — trabalhadores,
nhecimento estarem igualmente inscritas no mulheres, minorias étnicas e sexuais — cada
paradigma da modernidade, a verdade é que no um deles a seu modo considerado perigoso
último século o conhecimentocomo-regulação precisamente porque representa o caos e a
ganhou total primazia sobre o conhecimento- solidariedade contra os quais é preciso lutar
-como-emancipação. Com isto, a ordem passou em nome da ordem e do colonialismo. A neu-
a ser a forma hegemónica de conhecimento e o tralização epistemológica do passado tem sido
caos, a forma hegemónica da ignorância. sempre a contraparte da neutralização social e
Esta hegemonia do conhecimentocomo- política das “classes perigosas”.
-regulação permitiu a este recodificar nos seus O projecto original da ciência moderna com-
próprios termos o conhecimento-como-eman- portava, assim, um equilíbrio entre conheci-
cipação. Assim, o que era saber nesta última mentocomo-regulação e conhecimento-como-
forma de conhecimento transformou-se em -emancipação. Porém, à medida que a ciência
ignorância (a solidariedade foi recodificada moderna foi ganhando terreno sobre formas
como caos) e o que era ignorância transfor- alternativas de conhecimento — dos saberes
mou-se em saber (o colonialismo foi recodifi- locais à religião, da filosofia às humanidades —
cado como ordem). Como a sequência lógica e, sobretudo, à medida que se foi convertendo
da ignorância para o saber é também a sequ- em força produtiva do capitalismo industrial, o
ência temporal do passado para o futuro, a he- equilíbrio entre as duas formas de conhecimen-
gemonia do conhecimentocomo-regulação fez to rompeu-se e a ciência moderna passou a ser
com que o futuro e, portanto, a transformação conhecimentocomo-regulação por excelência.
Para uma pedagogia do conflito 537

A reanimação do passado na nossa direcção, imaginar estratégias para reduzir, no campo


proposta pelo projecto pedagógico que estou a pedagógico, essa assimetria. Trata-se de inven-
propor, consiste, neste domínio, em reconsti- tar exercícios retrospectivos e exercícios pros-
tuir o conflito entre o conhecimentocomo-re- pectivos que nos permitam imaginar o campo
gulação e o conhecimento-comoemancipação. de possibilidades que seria aberto à nossa sub-
O conflito pedagógico será, pois, entre duas jectividade e nossa sociabilidade se houvesse
formas contraditórias de saber, entre o saber um equilíbrio entre o conhecimentocomoregu-
como ordem e colonialismo e o saber como so- lação e o conhecimento-comoimaginação.
lidariedade e como caos. Estas duas formas de
saber servem de suporte a formas alternativas Imperialismo cultural e
da sociabilidade e de subjectividade. Ao campo multiculturalismo
pedagógico compete experimentar, pela imagi- O terceiro conflito epistemológico a instau-
nação da prática e pela prática da imaginação, rar no projecto pedagógico que aqui proponho
essas sociabilidades e subjectividades alterna- é ainda mais amplo que os anteriores. Enquanto
tivas, ampliando as possibilidades do humano o conflito entre o modelo técnico e o modelo
até incluí-las a todas e até poder optar por elas. edificante da aplicação da ciência e o conflito
Também aqui as opções não estão pré-deter- entre o conhecimento-comoregulação e o co-
minadas. A pedagogia do conflito é uma peda- nhecimento-comoemancipação ocorrem den-
gogia de alto risco contra o qual não há apóli- tro dos limites da modernidade eurocêntrica,
ces de seguro. Tal como no conflito anterior, a o terceiro conflito transborda destes limites e,
luta é, à partida, desigual, entre uma forma de por isso, para além de ser um conflito epistemo-
conhecimento dominante, — o conhecimento- lógico, é, acima de tudo, um conflito cultural.
-comoregulação — e uma forma de conheci- O mapa cultural que subjaz aos sistemas
mento dominada, marginalizada, suprimida, educativos da modernidade é, cartografica-
— o conhecimento-comoemancipação — que mente falando, um mapa com uma projecção
o campo pedagógico reconstitui por meio da de Mercator, o grande cartógrafo dos Países
imaginação arqueológica. O reconhecimento Baixos cujas técnicas de projecção cartográfi-
desta assimetria é, contudo, constitutiva da ex- cas foram adoptadas por toda a Europa e partir
periência pedagógica e a partir dele podemse do séc. XVII. A característica central da pro-
538 Boaventura de Sousa Santos

jecção de Mercator é que coloca o continente No final da década de sessenta, o movimento


europeu no centro do mapa, inflaccionando a estudantil de Maio de 68 representa outro sig-
sua dimensão em detrimento dos outros conti- nificativo momento de turbulência na medida
nentes. Em termos simbólicos, o mapa educa- em que, pela primeira vez, no mundo desen-
tivo da modernidade é um mapa de Mercator. volvido, o modelo de sociedade eurocêntrica é
A cultura eurocêntrica ocupa quase todo o ta- submetido a uma crítica cultural e civilizacio-
manho do mapa e só marginalmente, e sempre nal que engloba tanto as sociedades capitalis-
em função do espaço central, são desenhadas tas como as sociedades comunistas do Leste
as outras culturas indígenas, culturas negras e Europeu. As cumplicidades entre liberalismo e
culturas de minorias étnicas ou outras. É este marxismo são expostas pela primeira vez. Com
o mapa o imperialismo cultural do Ocidente. a década de setenta inicia-se o processo de ero-
Neste mapa o conflito entre culturas ou não são do modelo social que dominara nos países
aparece de todo ou aparece como conflito solu- desenvolvidos do pós-guerra, ao mesmo tempo
cionado pela superioridade da cultura ociden- que os países do chamado terceiro mundo pro-
tal em relação às outras culturas. Por isso, no curam um novo equilíbrio mundial simbolizado
sistema educativo hegemónico as outras cultu- pela subida dos preços do petróleo, pela der-
ras ou estão ausentes ou estão merecidamente rota dos americanos no Vietnam e pela luta na
vencidas, marginalizadas, suprimidas. ONU por uma nova ordem económica mundial.
Este mapa de imperialismo cultural está A dramática intensificação das interacções
hoje a passar por um período de grande tur- transnacionais a partir da década de 80 dá iní-
bulência, um período que se iniciou no pós- cio ao momento de turbulência em que nos en-
-guerra, com as imagens de horror de guerra e contramos agora. A globalização da economia,
de destruição que revelaram o lado sinistro da por um lado, proclamou globalmente a hege-
cultura eurocêntrica, com o processo de des- monia do fundamentalismo neo-liberal, por ou-
colonização e a emergência de novos estados tro lado, fez deslocar progressivamente o eixo
portadores de culturas nacionais reais ou ima- do dinamismo capitalista do oceano Atlântico
ginadas, mas em qualquer caso não eurocêntri- para o oceano Pacífico, conferindo uma nova
cas, e com a luta dos movimentos dos negros visibilidade às culturas asiáticas. O liberalis-
no Estados Unidos. mo económico e as políticas de ajustamento
Para uma pedagogia do conflito 539

estrutural foram proclamadas globalmente, neo-liberal e tendo visto fracassar no passado


de par com a democracia liberal ocidental. As outras estratégias de desenvolvimento de raiz
transições democráticas na América Latina ocidental, como, por exemplo, o nacionalismo
ocorreram simultaneamente com a perda do e o socialismo, alguns povos islâmicos adop-
rendimento global dos países do continente e tam políticas afirmativas de identidade que
o agravamento dramático das desigualdades vão ser amalgamadas pelos media ocidentais
sociais. A África foi integrada neste modelo da sob a designação de fundamentalismo islâmi-
maneira mais cruel pela exclusão total, pela co. Por outro lado, as formas de globalização
fome, pelas epidemias e pela guerra. No final hegemónica confrontaram-se com formas de
da década a modernidade ocidental em sua globalização contra-hegemónica, isto é, coli-
versão liberal, tanto económica como política, gações transnacionais de movimentos sociais
dá por consumada a sua vitória. A queda do em luta contra o modelo de desenvolvimento
Muro de Berlim, o início do desmantelamento e a cultura hegemónica, grupos de direitos
do apartheid na África do Sul são os momentos humanos, de indígenas, e de minorias étnicas,
decisivos dessa vitória. A vitória é sobretudo grupos ecológicos, feministas, pacifistas, mo-
tecnológica confirmada, tanto pela guerra do vimentos artísticos e literários de orientação
Golfo, como pelas novas tecnologias da infor- pós-colonial e pós-imperial.
mação e da telecomunicação. Não surpreende Toda esta conflitualidade e diversidade tem
que esta acumulação de êxitos tenha sido o ter- vindo a causar uma turbulência enorme nos
reno adequado para a teoria do fim da história. mapas culturais que serviram de base aos sis-
No entanto, este é apenas um dos lados da temas de educação eurocêntricos. Julgo serem
história dos últimos quinze anos. Os processos detectáveis duas tendências contraditórias:
de globalização ocorreram de par com proces- uma que vai no sentido do agravamento dos
sos de localização, com a adopção de políti- conflitos culturais no final do século; outra que
cas de identidade por parte de grupos sociais vai no sentido oposto, o do fim de tais conflitos.
vitimizados, directa ou indirectamente, pela A primeira tendência, a do agravamento dos
globalização hegemónica, minorias étnicas, conflitos, surge sob duas formas, uma hegemó-
povos indígenas, grupos de imigrantes, mu- nica e outra, contra-hegemónica. A forma he-
lheres, etc. Vitimizados pelo fundamentalismo gemónica tem origem na intelectualidade oci-
540 Boaventura de Sousa Santos

dental mais conservadora que se recusa a ver energias para promover uma dada forma de
no domínio global da economia de mercado, sociabilidade e para a defender sempre que
a consumação da vitória da cultura ocidental. ela estiver ameaçada por sociabilidades rivais.
Pelo contrário, pensa que o domínio económi- Neste contexto, a distinção entre luta económi-
co esconde uma vulnerabilidade cultural cres- ca e luta cultural deixa de fazer sentido.
cente face às culturas não europeias, abrangen- A segunda tendência da turbulência cultural
do populações cada vez maiores e assumindo contemporânea é de sentido oposto à primeira
posições de confrontação hostil com a cultura e defende que nas condições globais geradas,
eurocêntrica, como é especificamente o caso tanto pela sociedade de consumo, como pela
do Islão. Para esta intelectualidade conserva- sociedade de informação, os conflitos culturais
dora, de que o porta-voz é Samuel Huntington, terão cada vez menor acutilância. A globaliza-
estamos a entrar num novo período de choque ção da comunicação social e da informação, o
de civilizações, um choque entre o Ocidente e incremento das interacções transnacionais de
o resto cultural do mundo. bens, de pessoas e de serviços produzem uma
As formas contra-hegemónicas de agrava- tal compressão do tempo e do espaço que as
mento dos conflitos culturais são protagoni- diferenças culturais que sempre foram fruto
zadas pelos movimentos e grupos sociais que da distância e da incomunicabilidade acabarão
lutam pela afirmação da identidade cultural por dissolver-se.
contra a homogeneização descaracterizada Esta tendência assume duas formas dife-
pretendida pela cultura hegemónica. Uma for- rentes, ambas hegemónicas. Uma consiste na
ma particularmente vincada desta afirmação é versão ultra-liberal do relativismo cultural, na
precisamente o fundamentalismo islâmico em ideia de que todas as culturas e todas as ver-
sua luta contra o fundamentalismo ocidental. sões da mesma cultura tem uma singularidade
Comum às formas hegemónicas e contra- original que não permite, nem comparações,
-hegemónicas é a ideia de que os modelos so- nem diálogos profundos entre elas. Todas são
ciais de desenvolvimento e, portanto, também igualmente válidas. Deve, pois, admitir-se a
a luta contra eles, não se sustentam apenas no sua coexistência pacífica e que cada um es-
plano económico. Pressupõem um substracto colha a que lhe estiver mais próxima. A outra
cultural amplamente partilhado que forneça forma de ver a tendência para a atenuação dos
Para uma pedagogia do conflito 541

conflitos culturais faz uma leitura da situação que hoje dominam entre culturas, relações ca-
cultural parcialmente contraditória com a an- óticas, de coexistência e de interdependência.
terior. Assenta na ideia de que os contactos Para outros, o imperialismo cultural, longe de
entre culturas, sendo cada vez mais intensos, ter acabado, apenas mudou de forma. Assume
fazem com que estas percam gradualmente a agora formas camaliónicas, ora a forma do
sua integridade e a sua singularidade. No lugar choque de culturas (Huntington), ora a forma
de culturas singulares estão a surgir culturas da hibridização e da cultura global. Para estas,
híbridas, produtos de fertilizações e contami- a hibridização é sempre uma troca desigual
nações cruzadas entre culturas. O fenómeno de que reproduz, sob outra forma, a existência de
hibridização torna mesmo difícil falar de cultu- culturas dominantes e culturas dominadas, en-
ras dominantes e dominadas já que todas estão quanto a cultura global não é mais que a globa-
sujeitas ao mesmo processo de diluição da es- lização de certas características específicas da
pecificidade. Uma outra versão, parcialmente cultura eurocêntrica.
diferente, da teoria da hibridização, é a ideia de Esta enorme diversidade de leituras da situ-
que por sobre as culturas existentes, todas elas ação cultural do nosso tempo tem estado, em
específicas e parcelares, está a emergir uma geral, ausente dos sistemas educativos. O de-
cultura global, uma cultura sem raízes nem le- bate, quando tem lugar, ocorre nas margens do
aldades locais, que é partilhada por gente em sistema em iniciativas extra-curriculares dos
toda a parte do mundo, uma cultura cosmopo- professores e dos estudantes, mas raramente
lita que subjaz ao que é globalmente comum a penetram no curriculum. Em minha opinião,
toda a humanidade. um projecto educativo emancipatório tem de
A coexistência de leituras tão discrepantes colocar o conflito cultural no centro do seu
da nossa condição cultural contemporânea curriculum. As dificuldades para o fazer são
mostra só por si a turbulência a que estão a enormes, não só devido à resistência e à inér-
ser sujeitos os mapas culturais que serviram de cia dos mapas culturais dominantes, mas tam-
base aos sistemas educativos modernos. Para bém devido ao modo caótico como os conflitos
alguns, esses mapas, mesmo que alguma vez culturais têm vindo a ser discutidos do nosso
tenham sido expressão do imperialismo cul- tempo. Acresce que a comunicação, aparente-
tural, deixaram de o ser em face das relações mente facilitada pela sociedade de informação,
542 Boaventura de Sousa Santos

continua a ter muitos obstáculos, a ser selecti- dagógico para o multiculturalismo enquanto
va e a reduzir muita gente e muitas causas ao modelo emergente da interculturalidade. O
silêncio. Mesmo algumas políticas contra-hege- modelo dominante, do imperialismo cultural,
mónicas como, por exemplo, as da afirmação não reconhece outro tipo de relações entre
da identidade nacional, étnica, sexual, cultural culturas senão a hierarquização segundo crité-
têm, em suas versões mais extremas, contri- rios que são tidos como universais ainda que
buído para o separatismo e para a criação de sejam específicos de um só universo cultural,
guettos culturais mutuamente incomunicáveis. a cultura ocidental. À luz destes critérios é a
O projecto educativo emancipatório tem, superioridade cultural própria das culturas do-
pois, neste domínio, responsabilidades acres- minantes que justifica a existência de culturas
cidas. Tem de, por um lado, definir correcta- dominadas. Esta superioridade pode afirmar-se
mente a natureza do conflito cultural e tem de de várias formas inclusive através de formas
inventar dispositivos que facilite a comunica- que aparentemente negam a ideia de hierarquia
ção. Não esqueçamos que, ao contrário dos como a hibridização e a cultura global. Qual-
dois conflitos anteriores, o conflito cultural não quer destas têm por limite não bulir com a he-
ocorre no seio da mesma cultura, mas antes gemonia da cultura ocidental.
num espaço intercultural que tem de ser cons- Compete, antes de mais, ao campo pedagó-
truído para que a comunicação seja possível. gico emancipatório criar imagens desestabi-
Proponho que o conflito seja definido como lizadoras deste tipo de relacionamento entre
conflito entre o imperalismo cultural e o mul- culturas, imagens criadas a partir das culturas
ticulturalismo. Mais do que de um conflito de dominadas e da marginalização, opressão e
culturas, trata-se de um meta-conflito de cultu- silenciamento a que são sujeitas e, com elas,
ras. Ou seja, trata-se de um conflito entre duas os grupos sociais que são seus titulares. Estas
maneiras distintas de conceber o conflito entre imagens desestabilizadoras ajudarão a criar o
culturas, dois modelos de interculturalidade. espaço pedagógico para um modelo alternati-
Tal como nos anteriores conflitos, o campo vo de relações interculturais, o multiculturalis-
pedagógico tem de criar pela imaginação uma mo. Como se trata de um modelo emergente, o
conflitualidade que é negada pelo modelo he- tipo de comunicação e de relacionamento que
gemónico. Tem, em suma, de criar espaço pe- estabelece entre as culturas está ainda pouco
Para uma pedagogia do conflito 543

estruturado, é de mais difícil aprendizagem e em argumentos inteligíveis e credíveis noutra


deve por isso ocupar lugar central na experiên- cultura. Para dar um exemplo, tenho vindo
cia pedagógica. noutros trabalhos (1995: 337-347) a propor
Proponho como dispositivo de comunica- uma hermenêutica diatópica entre o topos dos
ção multicultural o que designo por herme- direitos humanos da cultura ocidental e o to-
nêutica diatópica. Trata-se de um procedi- pos da dharma na cultura Hindu, e entre o to-
mento hermenêutico baseado na ideia de que pos dos direitos humanos e o topos da umma
todas as culturas são incompletas e de os to- na cultura islâmica, neste caso em diálogo
poi de uma dada cultura, por mais fortes que com Abdullahi Ahmed An-na’im (1990; 1992).
sejam, são tão incompletos quanto a cultura Elevar a incompletude ao máximo de cons-
a que pertencem. Os topoi fortes são as prin- ciência possível abre possibilidades insuspeita-
cipais premissas da argumentação dentro de das à comunicação e à cumplicidade. Trata-se
uma dada cultura, as premissas que tornam de um procedimento difícil, pós-colonial e pós-
possível a criação e a troca de argumentos. -imperial e, em certo sentido, pós-identitário. A
Esta função dos topoi cria uma ilusão de tota- própria reflexividade sobre as condições que a
lidade assente na sinédoque pars por toto. Por tornam possível e necessária é uma das mais
isso, a incompletude de uma dada cultura só exigentes condições da hermenêutica diatópi-
é avaliável a partir dos topoi de outra cultura. ca. Com um forte conteúdo utópico, a energia
Vistos de outra cultura, os topoi de uma dada para a pôr em prática advém-lhe de uma ima-
cultura deixam de ser premissas da argumen- gem desestabilizadora que designo por epis-
tação para passarem a ser meros argumentos. temicídio, o assassínio do conhecimento. As
O objectivo da hermenêutica diatópica é ma- trocas desiguais entre culturas têm sempre
ximizar a consciência da incompletude recí- acarretado a morte do conhecimento próprio
proca das culturas, através de um diálogo com da cultura subordinada e, portanto, dos grupos
um pé numa cultura e o outro pé, noutra. Daí sociais seus titulares. Nos casos mais extre-
o seu carácter diatópico. A hermenêutica dia- mos, como o da expansão europeia, o episte-
tópica é um exercício de reciprocidade entre micídio foi uma das condições do genocídio.
culturas que consiste em transformar as pre- A perda de confiança epistemológica por que
missas de argumentação de uma dada cultura passam actualmente os mapas culturais hege-
544 Boaventura de Sousa Santos

mónicos torna possível identificar o âmbito e par do diálogo multicultural. O terceiro pres-
a gravidade dos epistemicídios cometidos pela suposto é o de que das várias versões de uma
modernidade hegemónica eurocêntrica. A ima- dada cultura deve ser escolhida para o diálogo
gem de tais epistemicídios será tanto mais de- multicultural a que oferece o campo mais vas-
sestabilizadora quanto mais consistência tiver to de reciprocidade e a mais ampla abertura a
a prática da hermenêutica diatópica. outras culturas. Dou o exemplo de um tópico
A hermenêutica diatópica é o dispositivo importante na cultura ocidental, os direitos
privilegiado do multiculturalismo enquan- humanos. Existem na cultura ocidental duas
to modelo emergente de interculturalidade. grandes tradições de direitos humanos: a libe-
Trata-se de um modelo muito exigente. Apli- ral que dá prioridade aos direitos cívicos e po-
cado de forma ingénua ou descuidada pode líticos, negligenciando os direitos económicos
transformar-se facilmente no seu contrário, e sociais; e a tradição marxista que, sem perder
ou seja, numa forma de imperialismo cultural. de vista os direitos cívicos e políticos, dá prio-
Daí a atenção que deve ser dada aos seus pres- ridade aos direitos económicos e sociais. Des-
supostos e às condições da sua aplicação. O tas duas tradições deve ser escolhida para o
primeiro pressuposto é o de que, embora to- diálogo multicultural a tradição marxista uma
das as culturas aspirem a valores últimos, só vez que ela tem um campo de reciprocidade
a cultura ocidental os define em termos de va- mais amplo: os direitos económicos e sociais
lores universais. Por esta razão, a questão do são fundamentais para o exercício efectivo dos
universalismo atraiçoa o que pergunta no acto direitos cívicos e políticos.
de perguntar. Por outras palavras, a questão do As condições de prática do multiculturalis-
universalismo é uma questão particular, espe- mo são ainda mais exigentes que os seus pres-
cífica da cultura ocidental. supostos. Depois de séculos de dominação
O segundo pressuposto é o de que, sendo to- cultural, pergunta-se se é legítimo ou sequer
das as culturas incompletas, todas as culturas possível tentar um diálogo tanto quanto possí-
são também relativas; no entanto, o relativis- vel igualitário entre culturas. Acresce que essa
mo, enquanto postura filosófica, é incorrecto. dominação cultural se caracterizou, entre ou-
Ou seja, cada cultura tem várias versões e nem tras coisas, por tornar impronunciáveis alguns
todas são igualmente adequadas para partici- dos temas ou aspirações mais fundamentais
Para uma pedagogia do conflito 545

das culturas dominadas. Enquanto a pronúncia gógica emancipatória. O conflito serve, antes
desses temas não lhes for devolvida, o diálogo de mais, para vulnerabilizar e desestabilizar os
intercultural pode perversamente, e apesar das modelos epistemológicos dominantes e para
boas intenções, contribuir para o aprofunda- olhar o passado através do sofrimento huma-
mento da sua dominação. no que, por via deles e da iniciativa humana a
O projecto pedagógico emancipatório que eles referida, foi indesculpavelmente causado.
aqui vos proponho conhece todas estas di- Esse olhar produzirá imagens desestabilizado-
ficuldades, mas sabe também que têm de ser ras susceptíveis de desenvolver nos estudantes
superáveis sob pena de caminharmos cada vez e nos professores a capacidade de espanto e
mais aceleradamente para uma situação de de indignação e a vontade de rebeldia e de in-
apartheid global. Por isso, parte dessas mes- conformismo. Essa capacidade e essa vontade
mas dificuldades e da necessidade de serem serão fundamentais para olhar com empenho
superadas para instaurar o campo pedagógico os modelos dominados ou emergentes através
em que o multiculturalismo surja como uma dos quais é possível aprender um novo tipo
alternativa credível e ao imperialismo cultural. de relacionamento entre saberes e, portanto,
entre pessoas e entre grupos sociais. Um re-
Conclusão lacionamento mais igualitário, mais justo que
Propus-vos nesta comunicação um projec- nos faça aprender o mundo de modo edifican-
to pedagógico conflitual e emancipatório cujo te, emancipatório e multicultural. Será este o
perfil epistemológico procurei desenhar a tra- critério último da boa e da má aprendizagem.
ço grosso. Identifiquei três grandes conflitos
epistemológicos que, por ordem crescente de Bibliografia
conflitualidade, designei por conflito entre a An-na’im, A. A. 1990 Toward an Islamic
aplicação técnica e a aplicação edificante da Reformation (Syracuse: Syracuse
ciência; conflito entre conhecimento-como-re- University Press).
gulação e conhecimento-como-emancipação; An-na’im, A. A. (ed.) 1992 Human Rights in
conflito entre imperialismo cultural e multicul- Cross-Cultural Perspectives. A Quest for
turalismo. Defendi que estes conflitos devem Consensus (Philadelphia: University of
ocupar o centro de toda a experiência peda- Pennsylvania Press).
546 Boaventura de Sousa Santos

Santos, B. de Sousa 1989 Introdução a


uma Ciência Pós-Moderna (Porto:
Afrontamento).
Santos, B. de Sousa 1995 Toward a New
Common Sense: Law, Science, and Politics
in the Paradigmatic Transition (Nova
Iorque: Routledge).
Santos, B. de Sousa 2003 Conhecimento
prudente para uma vida decente: um
discurso sobre as ciências revisitado
(Porto: Afrontamento).
Da ideia de universidade
à universidade de ideias*

U m pouco por todo o lado a universidade


confronta-se com uma situação complexa:
são-lhe feitas exigências cada vez maiores por
impermeabilidade às pressões externas, enfim,
à aversão à mudança.
Começarei por identificar os principais parâ-
parte da sociedade ao mesmo tempo que se metros da complexa situação em que se encon-
tornam cada vez mais restritivas as políticas de tra a universidade para, de seguida, construir o
financiamento das suas actividades por parte ponto de vista a partir do qual a universidade
do Estado. Duplamente desafiada pela socie- deve defrontar os desafios que lhe são postos.
dade e pelo Estado, a universidade não pare-
ce preparada para defrontar os desafios, tanto Fins sem fim
mais que estes apontam para transformações A notável continuidade institucional da uni-
profundas e não para simples reformas parce- versidade sobretudo no mundo ocidental suge-
lares. Aliás, tal impreparação, mais do que con- re que os seus objectivos sejam permanentes.
juntural, parece ser estrutural, na medida em Em tom joco-sério Clark Kerr afirma que das
que a perenidade da instituição universitária, oitenta e cinco instituições actuais que já exis-
sobretudo no mundo ocidental, está associada tiam em 1520, com funções similares às que
à rigidez funcional e organizacional, à relativa desempenham hoje, setenta são universidades
(Kerr, 1982: 152)1. Em 1946, repetindo o que
* Extraído de Santos, B. de Sousa 2013 “Da ideia de
universidade à universidade de ideias” in Pela mão de
Alice. O social e o político na pós-modernidade (Coim- 1 Sobre a história das universidades, ver entre mui-
bra: Almedina) pp. 309-355. tos Bayen (1978).

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