Você está na página 1de 14

Repensando o modelo de desenvolvimento para o Brasil

Josué Cândido da Silva1

Introdução

A América Latina vive hoje uma das piores crises de sua história, depois
de passada a década de 80 que ficou conhecida como a "década perdida" se
acentuou a miséria no subcontinente e a renda per capita é hoje 10% menor que
em 80. Para muitos autores que se baseiam na teoria dos longos ciclos econômicos
de Kondratieff2, trata-se de uma crise cíclica do capitalismo e, portanto, um período
delimitado no tempo e meramente conjuntural.
Neste trabalho, pretendemos demonstrar que a crise latino-americana e
brasileira é resultado de um processo de desenvolvimento que gerou as grandes
injustiças sociais que vemos hoje. Esta crise deve ser entendida como uma crise
estrutural, cuja superação só será possível com uma mudança radical na estrutura
produtiva dos países latino-americanos afim de poderem se incorporar ao
mercado mundial não de um modo marginal como vêm fazendo, mas de um modo
autônomo e participante.
Na tentativa de verificar quais as possibilidades de saída para crise latino-
americana e de um desenvolvimento autônomo hoje, vamos fazer uma breve
análise das principais teorias do desenvolvimento nas últimas décadas e examiná-
las a luz da nova conjuntura mundial. Feito isto, veremos quais devem ser as bases
para um desenvolvimento alternativo na América Latina que não seja
marginalizador e excludente como tem sido até o presente momento.

1
Doutor em Filosofia pela PUC-SP e professor pleno do Departamento de Filosofia e Cîencias
Humanas da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC)
2
Cf. Pereira, Luiz Carlos Bresser. A crítica da direita e da esquerda a um Estado em crise. In: Lua
Nova, São Paulo, nº 26/1992, pp.225-250.

1
O desenvolvimentismo e as teorias da CEPAL

Os anos 50 vão ser marcados, no plano político-econômico, pelo


desenvolvimentismo. Os países subdesenvolvidos só podem ser entendidos em
relação aos desenvolvidos. Trata-se, portanto, de superar o subdesenvolvimento
para atingir o estágio em que se encontram os países desenvolvidos da Europa e
América do Norte. O pensamento da CEPAL (Comissão Econômica para América
Latina) nesse contexto era um marco teórico decisivo. A CEPAL com sede em
Santiago do Chile e ligada ao Conselho Econômico e Social das Nações Unidas,
foi criada em 1948 com o objetivo de elaborar estudos e alternativas para o
desenvolvimento dos países latino-americanos. A CEPAL se contrapõe a "teoria
das vantagens comparativas" segundo a qual o livre comércio e a especialização
dos países naquelas atividades para as quais demonstrassem vocação "natural"
conduziriam à difusão do progresso técnico e do desenvolvimento para todos os
países. 3 Os países industrializados, pela alta produtividade de seus produtos,
levaria a uma queda do preço de suas mercadorias no mercado mundial. Já os
países atrasados, mantendo a baixa produtividade de produtos primários,
manteriam os preços desses produtos em alta gerando uma transferência de renda
dos países avançados para os atrasados. Com isso, o desenvolvimento desses
países.
A CEPAL investe contra esse argumento, mostrando que, ao contrário do
que previa a teoria das vantagens comparativas "o centro desenvolvido não estaria
transferindo seus aumentos de produtividade para a periferia atrasada e, ainda por
cima, estaria se apropriando dos modestos incrementos de produtividade obtidos
nesta última." 4 Isto porque os preços das exportaçães da periferia estavam
crescendo num rítmo menor que o das exportaçães do centro. "As causas mais
importantes dessa deterioração apontadas pela CEPAL são, em primeiro lugar, a
diferença de comportamento da demanda de produtos primários em relação à
demanda de manufaturados e, em segundo lugar, a diferença entre a situação do

3
Samuelson, Paul. International Trade and Equalization of Factor Prices, Economic Journal, 58,
junho, 1948, pp.163-184.
4
Mantega, Guido. A economia política brasileira. Petrópolis, Vozes, 1987, p.35.
2
mercado de trabalho e da organização sindical no centro e na periferia."5
Para CEPAL a saída do subdesenvolvimento residia na implementação de
uma política de desenvolvimento industrial, que promovesse uma reforma agrária
para permitir saltos de produtividade na agricultura, melhorasse a alocação dos
recursos produtivos e impedisse a evasão dos ganhos de produtividade. No fundo,
tratava-se de reverter o eixo da economia voltada para fora para o desenvolvimento
industrial interno. Nesse processo, o Estado tem um papel fundamental enquanto
promotor do desenvolvimento, seja através de uma política agrícola, seja como
fomentador e até mesmo executor do processo de industrialização.
Uma outra variante do desenvolvimentismo é aquela que pensa o
desenvolvimento em termos de estímulo à industrialização através de
financiamentos e construção de uma indústria de base (siderurgia, energia elétrica,
petroquímica, etc.), de outra parte através da instalação de empresas
transnacionais como, por exemplo, no Governo Kubtschek no Brasil. 6 Nos dois
casos o desenvolvimento é promovido pelo Estado que cria as condições para que
o setor privado se desenvolva.

Desenvolvimento e dependência

Segundo Theotonio dos Santos, “o conceito de dependência surge na


América Latina como resultado do processo de discussão, sobre o tema do
subdesenvolvimento e o desenvolvimento”7. Esse debate tomou corpo na medida
em que a teoria do desenvolvimento que servia de base ao modelo de
desenvolvimento nacional e independente, elaborada nos anos 50, foi colocada em
dúvida com a frustração das expectativas postas nos efeitos da industrialização e,
por outro lado, pela enorme influência do sucesso da Revolução Cubana teve
sobre toda a América Latina.

5
Id., Ib., p.37.
6
“O Governo Kubtschek marcou o início de um progresso ainda mais eufórico de crescimento. O
desenvolvimento transformou-se em bandeira política, incentivando-se a industrialização a
qualquer custo, escudada em fortíssima proteção aduaneira e em polpudos subsídios cambiais, e
promovendo-se uma grande série de obras de vasto impacto publicitário”. Simonsen, Mário H.,
Brasil 2002, 6ª ed., ed. APEC, Rio de Janeiro, 1976, p.36.
7
Santos, Theotonio dos. Imperialismo y dependência. México, ed. Era, 1978, p. 300.
3
Para teoria da dependência, o subdesenvolvimento não é um atraso em
relação ao desenvolvimento que possa ser superado mediante um crescimento
meramente quantitativo da economia. “O desenvolvimento e o
subdesenvolvimento econômicos são as duas caras da mesma moeda. Ambos são
o resultado necessário e a manifestação contemporânea das contradições internas
do sistema capitalista mundial. O desenvolvimento e o subdesenvolvimento
econômico não são simplesmente relativos e quantitativos porque um representa
mais desenvolvimento que o outro; estão relacionados e são qualitativos porquanto
cada um é estruturalmente diferente do outro, mas um e outro são causados por
sua mútua relação. Portanto, desenvolvimento e subdesenvolvimento representam
o mesmo, porque são produzidos por uma mesma estrutura econômica e por um
processo capitalista dialeticamente contraditórios” 8 . A relação entre os países
imperialistas e os países periféricos gera nestes últimos um subdesenvolvimento
estrutural como parte da própria dinâmica de acumulação capitalista. “A teoria do
subdesenvolvimento é, portanto, uma teoria do desenvolvimento, que trata de
explicar as possíveis contradições internas da sociedade desenvolvida, cuja ação
produz subdesenvolvimento em outras partes”9. A dependência, portanto, pode ser
entendida “como um complemento do conceito de imperialismo, sendo de fato a
dependência a cara interna do imperialismo em nossos países latino-
americanos”10.
Como consequência dessa nova interpretação do subdesenvolvimento
como capitalismo dependente e do sucesso da Revolução Cubana, mudam
também as estratégias para atingir o desenvolvimento. O caminho para o
desenvolvimento não pode se dar nos marcos do capitalismo, pois os países
centrais precisam subdesenvolver o resto do mundo para sustentar o seu
desenvolvimento. Ou seja, não há como romper com o imperialismo sem romper
ao mesmo tempo com o capitalismo dependente. A única via para o

8
Frank, André G. Capitalismo y Subdesarrollo en América Latina. Buenos Aires: ed. Siglo XXI,
1974, p.21.
9
Hinkelammert, Franz. Dialectica del Desarrollo Desigual. Centro-américa: ed. EDUCA, 1983,
p.16.
10
Santos, Theotonio dos. "El nuevo caracter de la dependencia". In: VVAA. La crisis del
desarrollismo y la nueva dependência. Lima: ed. Francisco Mocla, 1969, p.12.
4
desenvolvimento na América Latina é a via socialista. 11 O que opõe também a
revolução necessária a todas as formas de reformismos seja socialdemocrata,
democrata-cristão ou populista. “Com efeito, a noção de revolução necessária
indica que somente mediante a liquidação do antigo sistema de dominação – em
suas expressões econômicas, sociais, políticas e culturais –, que neste caso é o
sistema imperial de dominação, poderão se resolver os problemas e ameaças
sociais e históricas que sofrem as maiorias sociais de nossos povos”12.
Cabe ressaltar, entretanto, que nem todos chamados "teóricos da
dependência" concordavam com a tese de que a única via de desenvolvimento
para América Latina era a via revolucionária.13 Este segundo grupo, sustentava
que mesmo em uma situação de dependência era possível haver crescimento
econômico, só que este seria um desenvolvimento dependente. Ou seja, um
desenvolvimento que exclui as grandes massas da população dos benefícios
desse desenvolvimento em oposição a um desenvolvimento autônomo e
integrador. O principal erro dos que defendem a inviabilidade do capitalismo
dependente e, por conseguinte a ruptura revolucionária, segundo Fernando
Henrique Cardoso, é o de não terem percebido que pode haver crescimento do
mercado interno mesmo com a persistência ou agravamento dos problemas
sociais da população. “O erro nas interpretações que estou criticando não está em
apontar a existência de um mercado estreito ou as distorções que a estrutura da
propriedade agrária ocasionam na capacidade produtiva: está em listar estas
características como fatores que tornam inviável o desenvolvimento do
capitalismo-dependente. Eu sustento que eles constituem condições que dão
forma à especificidade desta modalidade de capitalismo e que acentuam as
contradições da economia capitalista no seu desenvolvimento na periferia”14.
Segundo estes autores, o erro está em identificar crescimento econômico

11
Entre os teóricos da dependência que partilham da concepção de que a única via para superar o
subdesenvolvimento é a do socialismo, figuram as Theotonio dos Santos, André G. Frank e Rui M.
Marini.
12
Gallardo, Hélio, op. cit., p.90.
13
Neste segundo grupo destacam-se Fernando H. Cardoso e Enzo Falleto, Celso Furtado e Anibal
Pinto.
14
Cardoso, Fernando H., "As tradições do desenvolvimento-associado", Estudos do Cebrap, nº 8,
abr-jun/1974, São Paulo, p.49.
5
com desenvolvimento. Para Celso Furtado,15 por exemplo, trata-se de vincular o
desenvolvimento e o subdesenvolvimento ao problema da igualdade ou
desigualdade social, enquanto que o crescimento está ligado a dimensão
quantitativa da produção econômica. O que eles propõem é um desenvolvimento
econômico autônomo, que inclua no mercado a massa marginalizada e que
promova igualdade social. Tal desenvolvimento exigiria uma ruptura das relações
de dependência, mas não necessariamente com as relações capitalistas de
produção.

A ofensiva neoliberal

O clima político da América Latina nos anos 70 vai ser marcado


16
pelas ditaduras militares em quase toda América do Sul e constantes
intervenções dos EUA na América Central, considerada por estes como "área
estratégica". Tal conjuntura se inscreve no contexto da Guerra Fria a qual está
vinculada as Doutrinas de Segurança Nacional que visam combater as forças
subversivas internas de cada país, assim como as políticas nacionalistas e
populistas que impedem o desenvolvimento e o progresso. Tal conjuntura levou a
burguesia, “na segunda metade dos anos 60, a uma revisão das fontes teóricas
anteriormente assinaladas, para situar o pensamento burguês num novo horizonte
teórico (...) a tradição burguesa foi revista e incorporou progressivamente o
pensamento monetarista”17. Portanto, este novo horizonte teórico parte de uma
crítica ao modelo de desenvolvimento defendido anteriormente. Para os teóricos
do Estado tecnocrático-militar que assumiu o poder com o golpe de 1964 no Brasil,
o desenvolvimento se confunde com o progresso e este último com
industrialização. A tecnologia é vista como sendo neutra e universalizável e capaz
de produzir por si só o desenvolvimento dos países atrasados. Sendo assim, a
importação de tecnologias dos países imperialistas, nos colocaria ao mesmo nível

15
Cf., Furtado, Celso. O mito do desenvolvimento econômico. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.
16
O primeiro país a ter um governo militar de Segurança Nacional foi o Brasil (1964), logo
seguido por Bolívia (1971); Chile e Uruguai (1973); Argentina, Peru e Equador (1976).
17
Santos, Theotonio dos. Democracia e socialismo no capitalismo dependente. Petrópolis:
Vozes, 1991, p.18.
6
de desenvolvimento que estes atingiram, com a vantagem adicional, no dizer de
Delfim Neto, de não ter que “inventar a roda todos os dias”.
A transferência de tecnologia perde assim todo seu caráter espoliativo
tornando-se algo desejável e com o poder de dissolver as enormes disparidades
sociais existentes entre países imperialistas e países dependentes. “Trata-se, na
realidade, do novo molde das relações imperialistas, em que o capital não é
'espoliativo' externamente, mas na forma intrínseca que estipula a 'Tecnologia'
como um deus ex machina. O próprio conceito de 'Tecnologia', com letra
maiúscula, utilizado por Delfim, expressa essa nova forma de produzir e explorar,
que é o monopolismo, que, para se realizar, tem as várias formações sociais em
cadeia, permeadas pela internacionalização da tecnologia e pelo processo de
'desnacionalização'.”18
Ao contrário das formulações anteriores que viam o desenvolvimento não
só como crescimento econômico mas também como uma sensível diminuição dos
índices de pobreza e uma maior distribuição de renda, o pensamento neoliberal vai
priorizar o crescimento econômico em detrimento da justiça social. Mário Henrique
Simonsen, frente às estatísticas que demonstravam um aumento da concentração
de renda de 1960 para 1970, sustenta que “a transição de uma fase de estagnação
ou semi-estagnação para uma de crescimento acelerado, costuma exigir sacrifícios
que naturalmente envolvem certo aumento da concentração de rendas, ou nas
mãos de determinados indivíduos, ou em poder do Estado”.19
O outro lado dessa política de crescimento a qualquer custo é o aumento
da miséria em toda América Latina nos anos 80 e o sucateamento da indústria
nacional na maioria dos países latino-americanos por conta da “transferência de
tecnologia” aplicada durante os governos militares. Mesmo as taxas de
crescimento em torno de 5% ao ano mantidas durante a década de 70, só podem
ser explicadas pelo endividamento externo cujas consequências marcaram o baixo
crescimento econômico do Brasil até o início da primeira década do século XXI.
Esse crescimento, porém, não significou uma maior distribuição de renda. Ao
contrário, nessa época há uma maior concentração de riqueza e um aumento da

18
Covre, Maria de Lourdes M. A fala dos homens. São Paulo: ed. Brasiliense, 1983, p.58.
19
Simonsen, Mário H. Brasil 2002. Rio de Janeiro: ed. APEC, 1976, p.58.
7
miséria da maioria da população. Ou seja, os custos desse “milagre econômico”
foram pagos com a degradação do padrão de vida e o arrocho dos salários dos
trabalhadores. “Nas condições da América Latina, este processo, se é certo que
produz crescimento econômico, urbanização e enriquecimento, redefine sem
eliminar – mais ainda, em certos casos agrava – os problemas existenciais, sociais
e econômicos da maioria da população. Esta – a população – é vista muito mais
como recurso para a acumulação de capitais do que como potencial efetivo para a
criação de um modelo de sociedade baseada em seus interesses."20

Caminhos para um modelo de desenvolvimento alternativo

Depois da euforia neoliberal que assistimos nos últimos anos na América


Latina e, que ainda hoje está bastante presente, se verificou que o mercado por si
só não é capaz de promover o desenvolvimento econômico que, ao mesmo tempo,
seja capaz de incorporar as amplas parcelas marginalizadas da população.
Contudo, não podemos mais voltar ao paradigma desenvolvimentista em que o
Estado era visto como principal agente do desenvolvimento. Hoje uma nova
proposta de desenvolvimento não pode se mover apenas dentro do binômio
mercado X Estado, colocando-se ênfase ora em um, ora em outro extremo, mas
deve incorporar um terceiro elemento: a sociedade civil.
Esse novo componente nas propostas de desenvolvimento é uma
resposta a nova conjuntura mundial que propõe desafios à América Latina não
tematizados nos modelos anteriores de desenvolvimento. Entre eles, a revolução
tecnológica e a questão ecológica que provocam uma mudança significativa no
conceito de desenvolvimento. Uma primeira mudança é quanto a retomada da
discussão sobre o objetivo do desenvolvimento e a outra quanto ao modelo de
desenvolvimento a ser adotado.

Revolução tecnológica e desenvolvimento

20
Cardoso, Fernando Henrique & Faletto, Enzo. Post-Scriptum a 'Dependencia y desarrollo en
América Latina'. In: VVAA. Debates sobre la teoria de la dependencia y la sociología latino-
americana. San José: ed. EDUCA, 1979, p.111.

8
Vivemos hoje uma revolução tecnológica baseada na microeletrônica e na
informática. Tal revolução fomenta o processo de automação industrial e possibilita
uma maior economia de mão-de-obra, aumentando assim o desemprego
estrutural, seja nos países ricos ou nos pobres. Como consequência dessa
revolução tecnológica, o sistema produtivo industrial que era dominado pelo
taylorismo-fordismo, baseado na produção em série e na fragmentação do
processo produtivo, está sofrendo uma profunda mudança. Este sistema vem
sendo substituído por processos baseados na flexibilização, em que o trabalho
manual repetitivo dá lugar à rotatividade de funções até mesmo de gerência e
controle do fluxo de produção. Isto implica a necessidade de trabalhadores cada
vez mais qualificados, com capacidade lógico-abstrata para decodificar instruções,
programar a produção, etc., o que exige uma sólida formação educacional. Uma
consequência direta desse processo para América Latina é a relativização de uma
das principais vantagens nos anos 60-70 que tornava a região atrativa para o
investimento externo – a mão-de-obra abundante e barata. A acumulação
capitalista desloca-se da produção em série com baixo custo para sofisticação
cada vez maior do produto, tornando a força de trabalho do Terceiro Mundo pouco
atrativa para os investidores internacionais.
Outro aspecto da revolução tecnológica é o desenvolvimento de novos
materiais que substituem com muitas vantagens as matérias-primas tradicionais, o
que provoca a queda nos preços das matérias-primas exportadas pelos países
pobres e a maior autossuficiência dos países desenvolvidos. Tal efeito pode ser
observado pela queda da participação dos países do Terceiro Mundo no comércio
mundial. Em 1970 a participação da América Latina no comércio mundial era de
5,6%, em 2014 era de apenas 2,6%. “Sem dúvida, vivemos hoje certas tendências
rumo a perda de importância da produção de matérias-primas do Terceiro Mundo.
Muitas matérias-primas 'naturais' são substituídas por matérias primas 'sintéticas',
o que também torna supérflua a força de trabalho que as produzia. Muitas matérias-
primas continuam sendo produzidas no Terceiro Mundo, mas é cada vez menos
possível usar toda força de trabalho disponível para produção delas”21.

21
Hinkelammert, Franz. La crisis del socialismo y el Tercer Mundo. In: Pasos, nº 30, jul/agost/90,
9
Somados os efeitos da mudança no processo de produção e a substituição
das matérias-primas produzidas pelo Terceiro Mundo, teremos como
consequência o surgimento de uma população excedente no Terceiro Mundo que,
mantidas as atuais tendências, nunca será integrada ao mercado formal de
trabalho. Seja pela sua falta de especialização, seja pela falta de investimentos no
setor produtivo por parte do capital nativo e estrangeiro. Ser "explorado", na
concepção clássica do termo, tornou-se um privilégio para poucos no Terceiro
Mundo. Na América Latina, a maior parte da população economicamente ativa está
fora do mercado formal de trabalho vivendo no subemprego ou no desemprego.
A América Latina se integra no mercado mundial de uma maneira
marginal. São necessárias ainda suas matérias-primas, e como região par
instalação de “tecnologias sujas” (indústrias poluidoras), mas sua população sobra,
o que acentua cada vez mais a miséria desse subcontinente.
Tais efeitos colocam em xeque o objetivo dos modelos de
desenvolvimento aplicados na América Latina até então. Seguir a lógica do modelo
de desenvolvimento baseado na revolução tecnológica pode acentuar a exclusão
social de grandes parcelas da população ao invés de incorporá-las ao mercado de
trabalho.
É partindo dessa análise que órgãos como a ONU formularam, a partir de
1985, um novo conceito de desenvolvimento que busca substituir “a obsessão
pelos meios” pela preocupação com os fins. “O objetivo básico do desenvolvimento
é criar um ambiente propício para que os seres humanos disfrutem de uma vida
prolongada, saudável e criativa. Esta pode parecer uma verdade óbvia, embora
frequentemente esquecida devido à preocupação imediata de acumular bens de
consumo e riqueza financeira”22. No caso do Brasil, trata-se de integrar os quase
60 milhões que sobrevivem em condições de miséria para que tenham condições
dignas de vida. Para tanto, a incorporação das novas tecnologias deve estar
subordinada às prioridades sociais, o que implica uma total reforma do sistema
produtivo e da estrutura do Estado. “Em síntese, a necessidade de criar e adaptar

San José, p.3.


22
Desarrollo humano: informe 1991, publicado para el PNUD por Tercer Mundo editores,
Bogotá, 1991, p.30.

10
tecnologias requer readequar a infraestrutura científica da economia, o que exige
modificar os sistemas educacionais (desde a formação primária, passando pela
técnica, até a universitária), isto obriga a democratizar a participação da população
na gestão e adoção de novas técnicas, organizações, instituições, etc, o que tem
como pré-requisito a reforma da propriedade, da gestão, do Estado, etc. Isto é,
modificar o eixo da inovação requer transformar toda sociedade. Isto pode assustar
a muita gente, mas inclusive dentro do sistema capitalista seria uma necessidade,
embora as burguesias nacionais anquilosadas não vejam assim (embora suas
seções 'modernizantes' poderiam ser as mais beneficiadas por tal transformação)
”23.
Nesse processo, é indispensável uma massiva participação da sociedade
civil que possibilite a incorporação de novas tecnologias de uma forma não
excludente, seja através da democratização da gestão das empresas, na criação
de cooperativas de trabalhadores rurais e urbanos, seja através da democratização
da gestão do Estado e na maior fiscalização sobre os gastos públicos. “O
substancial, contudo, afim de permitir a participação massiva, criativa e inovadora
da população, radica nas indispensáveis mudanças nos sistemas de propriedade,
produção e gestão, entre os quais caberia destacar a reforma agrária, a
coparticipação dos trabalhadores na propriedade industrial, o estímulo à
autogestão, o fomento da pequena indústria, etc. Paralelamente deve se assegurar
a descentralização política e econômica no interior de cada um de nossos
países”24.

Ecologia e desenvolvimento sustentável

Durante muito tempo, América Latina viveu o mito do progresso das forças
produtivas como fonte de bem-estar social sem questionar o modelo de
desenvolvimento, que quase sempre foi entendido como industrialização crescente
e elevação do padrão de consumo até alcançar o padrão dos chamados países

23
Schuldt, J. Relaciones Norte-Sur y desarrollo. In: VVAA, América Latina: opciones
estratégicas de desarrollo, Caracas, ed. Nueva Sociedad, 1992, p.41.
24
Id., Ib., p.40.
11
“desenvolvidos”. “É inútil insistirmos aqui nessa estratégia do desenvolvimento-
ocidentalização, que fracassou não apenas em sua ambição de arrancar o Terceiro
Mundo à miséria, como, além disso, acelerou perigosamente sua dependência
econômica, política e cultural e, em certos casos, precipitou a deterioração
inquietante de seus recursos naturais e de meio ambiente”25.
A falsidade do mito do progresso ficou provada pelo estudo Os Limites do
Crescimento, elaborado pelo MIT (Instituto Tecnológico de Massachusetts) para o
chamado Clube de Roma em 1972. Segundo esse estudo, se o Terceiro Mundo
compartilhasse do ritmo de crescimento econômico e do consumo do Primeiro
Mundo, haveria grande crise de recursos não-renováveis. Hoje tal afirmação é
ainda mais verdadeira. Os países desenvolvidos que possuem aproximadamente
um quarto da população mundial consomem 70% da energia mundial, 75% dos
metais, 85% da madeira e 60% dos alimentos. A imitação de tal padrão de
consumo pelo Terceiro Mundo significaria a destruição de todos os recursos
naturais do planeta em poucos anos. Ou seja, o padrão de desenvolvimento
capitalista não é universalizável. Mais que isso: só é possível a manutenção do
padrão de consumo e desenvolvimento de uma quarta parte da população mundial
com a miséria e o atraso dos outros três quartos da humanidade.
Somente uma mudança na mentalidade que associa, erroneamente,
padrão de consumo com nível de vida é que pode reverter esta situação. Em
contraposição a um modelo de desenvolvimento que se baseia apenas no
crescimento material pode-se pensar em um modelo que esteja, o máximo
possível, em conformidade com a natureza e o respeito a cultura dos povos. Tal
projeto deve, portanto, além de ter como objetivo o desenvolvimento humano,
manter também o equilíbrio com a natureza através de um desenvolvimento
sustentável. “O desenvolvimento sustentável é aquele que atende às necessidades
do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem
a suas próprias necessidades. Ele contém dois conceitos-chave: 1- o conceito de
'necessidades', sobretudo as necessidades essenciais dos pobres do mundo, que
devem receber a máxima prioridade; 2- a noção das limitações que o estágio da
tecnologia e da organização social impõe ao meio ambiente, impedindo-o de

25
Verhelst, Thierry G., O direito à diferença, Petrópolis, ed. Vozes, 1992, p.41.
12
atender às necessidades presentes e futuras (...)”26.

Conclusão

Como vimos, a crise brasileira e latino-americana não pode ser vista como
mero reflexo da crise mundial, mas sim como resultado de uma política de
desenvolvimento que se pautava somente pelo crescimento do PIB. “O PIB do
Brasil até que foi um dos que mais cresceu no mundo, no pós-guerra de 45 e até
o início dos anos 80. Mas que desenvolvimento foi este? Desenvolvimento
selvagem, concentrador, dependente do Norte. Desenvolvimento contra os
brasileiros, a maioria dos brasileiros”27. A fé que se devotou no Estado como agente
do desenvolvimento parece hoje canalizada ao mercado que é visto como um novo
deus ex machina capaz de levar-nos ao Primeiro Mundo.
Atualmente, as novas tecnologias demonstram que estas promessas são
ilusórias ou, quando muito não se estendem a toda população, mas somente à
elite, com o aumento da distância entre países ricos e países pobres. Nesse
sentido, o desenvolvimento não pode ser visto como um processo puramente
econômico, mas deve incorporar a maioria da população não só como
consumidores mas como agentes do desenvolvimento. Ou seja, as bases de um
novo modelo de desenvolvimento não se pautam mais na exploração da mão-de-
obra barata e desqualificada, mas exigem uma mudança na mentalidade
empresarial e um forte investimento do Estado em Capital Humano, o que significa
investir fortemente em educação e pesquisa, o contrário do que os preconizadores
do “Estado mínimo” estão fazendo. Em um processo de desenvolvimento
sustentado não se pode pensar o Estado como estando acima da sociedade civil
e nem a sociedade civil e o mercado como sendo o oposto do Estado e capazes
de encontrar por si mesmos o caminho do desenvolvimento, mas os três,
sociedade civil, mercado e Estado, formam um conjunto que, na falta de um deles,

26
Hogan, Daniel J., & Vieira, Paulo Freire (orgs.), Dilemas socioambientais e
desenvolvimento sustentável, São Paulo, ed. UNICAMP, 1991, p.78.
27
Grzybowski, Cândido, "Construindo a democracia como alternativa ao caráter anti-humano
dos processos econômicos dominantes", texto preparatório para o VI Encontro do Fórum
Paralelo das ONGs, Rio de Janeiro, set./1991, p.245.
13
não é possível a viabilização de um projeto de desenvolvimento que seja integrador
e que respeite o meio-ambiente. Como constatou Franz Hinkelammert, “o problema
do Estado é um problema da sociedade inteira, na qual se inter-relacionam e
interpenetram a sociedade civil, o mercado e o Estado. Nenhum destes polos pode
existir sem o outro, e até a possibilidade da vida humana e da própria racionalidade
econômica são produto dos três e sua inter-relação tal que possa haver uma
síntese ao invés da negação de um polo em nome do outro. Somente nesta
perspectiva será possível enfocar os problemas do desenvolvimento dependente.
Trata-se de problemas que hoje já não podem ser solucionados por cada um dos
Estados dentro de seu marco de dominação política, mas que implicam a
necessidade da criação de novas ordens mundiais – nova ordem mundial
econômica, financeira, de mercados, ecológica – sem as quais uma política de
desenvolvimento racional já não é possível”28.

28
. Hinkelammert, Franz J., "Nuevo rol del Estado en el desarrollo latinoamericano", in VVAA.
América Latina: opciones estratégicas de desarrollo. Caracas, ed. Nueva Sociedad,
1992, p.199.

14

Você também pode gostar