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Resumo:
O presente trabalho analisa as representações simbólicas da Amazônia no festival
de Parintins, no estado do Amazonas. O festival é produzido e contracenado por duas
agremiações de bois-bumbás – Caprichoso e Garantido – que apresentam na arena do
ginásio temas sobre a Amazônia. O espetáculo é constituído de expressões artísticas,
formadas por música, artes visuais, coreografia e artes cênicas, a partir das quais são
encenados temas relacionados à natureza, às populações e à cultura amazônica. Deste
modo, o trabalho examina as expressões artísticas, estéticas e simbólicas constantes das
apresentações no festival, com vistas a formular uma compreensão de totalidade sobre o
regionalismo dos bois de Parintins.
O Festival de Parintins
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Trabalho apresentado no III Encontro de Antropologia Visual da América Amazônica, realizado entre os
dias 19 e 21 de setembro de 2018, Belém/PA.
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festival é restrito aos três dias de apresentação. Além de se distinguir os repertórios
próprios de cada um desses tempos, as noções de festa e festival explicitam ainda duas
outras modalidades: disputa e competição.
A disputa perpassa todo o ciclo, por isso é difusa e vivenciada durante o processo
de preparação dos bois para o festival. Disputam-se os espaços da cidade, a melhor
torcida, a simpatia dos visitantes, de celebridades e de políticos, os patrocinadores, os
melhores artistas. A competição, por sua vez, diz respeito às apresentações realizadas nos
três dias do evento, em um espaço específico – a arena do ginásio que é conhecido como
bumbódromo –, mediada por regulamento e um corpo de jurados, responsáveis pelo
julgamento das apresentações.2
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Para uma compreensão mais ampliada do ciclo festivo do boi-bumbá de Parintins, ver Silva (2007).
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Como festas e rituais não são imutáveis, na década de 1980 o festival de Parintins
foi reestruturado a partir da organização dos bois-bumbás e das ações do governo do
estado.3 Na confluência dos interesses dos bois e do governo estadual, o festival passou a
ter um espaço próprio para as apresentações, ocorreram investimentos de recursos
financeiros oriundos de patrocínios público e privado, consolidou-se a competição a partir
de regras de concorrência e da definição de uma estrutura de apresentação voltada para
abordar elementos regionais. Estes, para os organizadores da festa, conformariam o
“regionalismo amazônico” no festival, também denominado de “Ópera Amazônica” por
artistas e dirigentes dos bois. O regionalismo seria fundamentado nas representações da
natureza, do índio e do caboclo. O conjunto de transformações na organização e
apresentação dos bois proporcionou a passagem de um estilo de “brincadeira de rua” para
um espetáculo moderno constituído de atores, palco e plateia (SILVA, 2007).
A partir daí, os bois de Parintins passaram a definir identidades com base na cor e
na utilização de símbolos como marcadores diacríticos, de tal modo que uma pessoa
simpatizante de um boi refere-se ao adversário como “contrário”. O boi Caprichoso utiliza
a cor azul e a estrela como símbolos, enquanto o boi Garantido definiu sua identidade
com a cor vermelha e o coração. Esses elementos fortalecem a disputa no dia a dia e
proporcionam o engajamento de grande parte da população na rivalidade dos bois. No
período da festa a cidade parece se dividir em duas metades – azul e vermelho. Nesse
sentido, consolidou-se, com o tempo, um campo de disputa em que cores e símbolos
impulsionam a rivalidade entre os bois.
Nos três dias de apresentações dos bois, cada agremiação faz uma apresentação
por dia, durante aproximadamente duas horas e meia. Cada apresentação é um espetáculo
único, pois uma regra fundamental do festival é que os bois não podem repetir os temas,
as alegorias e as fantasias. 4 As exibições são baseadas na música – denominada de toada
–, na produção visual composta por alegorias, fantasias e adereços, e na ação cênica dos
brincantes.
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Os bois-bumbás tornaram-se associações folclóricas, juridicamente formalizadas, com estatuto, sede
própria e todos os itens exigidos por órgãos públicos e pela iniciativa privada para financiamento e
prestação de contas de recursos financeiros.
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Em 2016, em razão da escassez de recursos financeiros, no terceiro dia do festival os bois repetiram
alegorias e fantasias. As apresentações desse dia, porém, não foram contabilizadas no julgamento para
decisão do vencedor.
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Verdadeiro "fato social total" da cultura popular contemporânea, o Festival de
Parintins se propõe elaborar signos e valores regionais como verdadeiros patrimônios da
Amazônia, vinculando a economia, a política, as relações sociais, a religiosidade e a
própria organização do espaço da cidade. As letras das músicas e a abordagem de temas
como lendas, mitos, tribos indígenas, aspectos da natureza, personagens locais e os mais
variados tipos de populações identificados, durante as apresentações, pelo termo caboclo
– pescadores, caçadores, agricultores, extrativistas -- revivem, anualmente, essas
conexões. Estas são abordados especialmente no item intitulado “figura típica regional”.
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A memória histórica da arte parintinense remonta à década de 1970, quando um
padre, conhecido como Irmão Miguel, que introduziu em Parintins o ofício de artesão,
repassando aos mais jovens as técnicas de escultura em madeira e argila, assim como de
pintura. Nessa mesma década, outro fato possibilitou a introdução de novas experiências
artísticas nas apresentações do boi-bumbá. O artista plástico Jair Mendes, que morou um
período no Rio de Janeiro e se encantou com as alegorias das escolas de samba no
carnaval carioca, ao retornar a Parintins, iniciou um processo de experimentação no
festival, introduzindo alegorias nas apresentações do boi-bumbá (Silva 2007, p. 87). A
partir desse episódio, um aspecto passou a ser fundamental na produção artística do boi-
bumbá: a experimentação, que traz a novidade.
O “artista de boi”
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reconhecidos na cidade, na região e no país como "artistas". Naturalmente que o talento
não subentende uma perspectiva de que as práticas artísticas são inatas; há um processo
de aprendizado da arte, em Parintins, que implica observar, fazer e aprender.
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boi –, o artista de ponta normalmente comanda um grupo de profissionais sob sua
responsabilidade, contratados em conjunto. Os artistas de ponta são responsáveis pela
produção visual do boi para uma noite de apresentação, principalmente a parte mais
complexa do espetáculo, que são as alegorias e a formação de grandiosos cenários para
as exibições.
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A faculdade de observação tem sido destacada como uma das principais, dentre as faculdades humanas,
como elemento heurístico para o aprendizado. Na antropologia, por exemplo, a observação é
fundamental no trabalho de campo. Inspirado na antropologia estética de Lévi-Strauss, Roberto Cardoso
de Oliveira (1998, p. 17) analisou as perspectivas do olhar, ouvir e escrever no ofício do antropólogo, as
quais ele denominou de “faculdades do entendimento sócio-cultural”.
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O modus operandi da arte do boi
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Seguindo um modus operandi estabelecido e reconhecido no contexto artístico do
boi-bumbá, os artistas plásticos utilizam uma sequência técnica para alcançar o resultado
final: inicialmente elabora-se um esboço da fantasia, alegoria ou cenário em forma de
desenho. Às vezes o desenho dá espaço a uma maquete, principalmente quando se trata
de cenário com representações de animais, personagens e paisagens. Em seguida, elabora-
se uma estrutura feita com ferragem, que dá forma e tamanho ao artefato, o qual
finalmente recebe o acabamento com diversos tipos de materiais, atingindo a forma
artística desejada. No caso das alegorias, em que se procura representar ambientes
amazônicos (rios, florestas, montanhas), animais, seres mitológicos, figuras humanas, as
peças são sempre de grandes dimensões (chegando a medir 12 metros ou mais de altura)
e na arena formam cenários e formas gigantescas. Os cenários, pela grandiosidade,
movimento e efeitos de luz, som e cor, produzem cenas cinematográficas durante as
apresentações para deleite e admiração da plateia.
Regionalismo e autenticidade
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Ampliando ainda mais o universo simbólico constituído durante as apresentações,
nos últimos dez anos os bois assimilaram as discussões ambientais, de âmbito
internacional, nas quais a Amazônia tornou-se objeto privilegiado. Neste sentido, os bois
passaram a abordar temáticas atuais e de cunho crítico, tais como a devastação do meio
ambiente amazônico e o esgotamento dos recursos naturais, as consequências danosas do
garimpo, a invasão de terras indígenas e a dizimação de suas populações, incorporando
problemáticas contemporâneas sobre a região. Ainda que nesse plano possa se considerar
uma “obra aberta”, os temas da atualidade continuam a falar da região. Assim,
conjugando estrutura e evento (SAHLINS, 1981) os bois formulam imagens e discursos
sobre uma Amazônia que é ao mesmo tempo real, imaginada e idealizada.
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do processo de reprodução da imagem, possibilitando uma proximidade com as massas
(BENJAMIN, 1985, p. 170).
Espetáculo e performance
As apresentações são conduzidas com base na toada, a qual destaca nas letras os
personagens e temas que serão encenados a cada momento do espetáculo. Os temas são
explorados através de cenários formados por alegorias, fantasias e brincantes que
interpretam em cena personagens regionais. Porém, o sentido de performance no festival
de Parintins difere de outras festas brasileiras em razão da especificidade da dramatização
durante as apresentações. O carnaval, por exemplo, também tem sua exibição centrada a
partir de um enredo geral que se sobressai na letra do samba, nas fantasias e nas alegorias.
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No entanto, diferentemente do festival de Parintins, a apresentação das escolas de samba
no carnaval se caracteriza por um desfile na passarela, onde os brincantes passam de
forma linear.
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Há que se destacar o papel de comunicação entre palco (arena) e plateia
(arquibancada), a partir da atuação do apresentador e do narrador. Se o apresentador atua
evidenciando e informando em detalhe as exibições, por seu lado o narrador contextualiza
as apresentações com informações sobre a “realidade” da qual se faz referência no
espetáculo. Assim, ao mesmo tempo em que a plateia tem acesso a cenas que exibem
imagens metafóricas de uma Amazônia fantástica, por outro lado, a partir da atuação do
narrador, o espectador recebe informações que lhe permitem ter a sensação de que
conhece mais um pouco sobre Parintins e a região.
Referências bibliográficas
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LIMA, Luiz Costa. Vida e mimesis. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.
SAHLINS, Marshall. Historical metaphors and mythical realities: structure in the early
history of the Sandwich Island Kingdom. Ann Arbor: The University of Michigan Press,
1981.
SILVA, José M. O espetáculo do boi-bumbá: folclore, turismo e as múltiplas alteridades
em Parintins. Goiânia: Editora da Universidade Católica de Goiás, 2007.
TURNER, Victor. From ritual to theatre. New York: PAJ Publications, 1982.
TURNER, Victor. The antrhopology of performance. New York: PAJ Publications, 1988.
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