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Arte visual, estética e imagens da Amazônia no Festival de Parintins1

José Maria da Silva (UNIFAP)

Resumo:
O presente trabalho analisa as representações simbólicas da Amazônia no festival
de Parintins, no estado do Amazonas. O festival é produzido e contracenado por duas
agremiações de bois-bumbás – Caprichoso e Garantido – que apresentam na arena do
ginásio temas sobre a Amazônia. O espetáculo é constituído de expressões artísticas,
formadas por música, artes visuais, coreografia e artes cênicas, a partir das quais são
encenados temas relacionados à natureza, às populações e à cultura amazônica. Deste
modo, o trabalho examina as expressões artísticas, estéticas e simbólicas constantes das
apresentações no festival, com vistas a formular uma compreensão de totalidade sobre o
regionalismo dos bois de Parintins.

Palavras-Chave: arte; espetáculo; Amazônia; regionalismo.

O Festival de Parintins

O Festival Folclórico de Parintins é um evento que é parte do ciclo junino da


cidade. Trata-se de um espetáculo grandioso que tem como base a competição entre duas
agremiações – os bois Caprichoso e Garantido. O festival é realizado sempre nos últimos
dias do mês de junho. O ciclo do boi-bumbá, no entanto, começa nos primeiros meses do
ano – em geral no mês de março, momento em que as duas agremiações lançam os CDs
com as músicas que farão parte da festa – e se estende até o início de julho, quando se
conhece o resultado dos três dias de competição.

Podemos identificar em Parintins duas dimensões reconhecidas localmente: a


festa e o festival. A festa envolve todo o ciclo do boi-bumbá, em um tempo de longa
duração no qual as duas agremiações realizam toda a preparação para o espetáculo. Já o

1
Trabalho apresentado no III Encontro de Antropologia Visual da América Amazônica, realizado entre os
dias 19 e 21 de setembro de 2018, Belém/PA.

1
festival é restrito aos três dias de apresentação. Além de se distinguir os repertórios
próprios de cada um desses tempos, as noções de festa e festival explicitam ainda duas
outras modalidades: disputa e competição.

A disputa perpassa todo o ciclo, por isso é difusa e vivenciada durante o processo
de preparação dos bois para o festival. Disputam-se os espaços da cidade, a melhor
torcida, a simpatia dos visitantes, de celebridades e de políticos, os patrocinadores, os
melhores artistas. A competição, por sua vez, diz respeito às apresentações realizadas nos
três dias do evento, em um espaço específico – a arena do ginásio que é conhecido como
bumbódromo –, mediada por regulamento e um corpo de jurados, responsáveis pelo
julgamento das apresentações.2

Embora existam dualidades – festa e festival, disputa e competição –, estas


categorias não são antinomias rígidas e excludentes como as relações binárias de
inspiração estruturalista; são dimensões de uma mesma realidade, vivenciadas
anualmente em cada edição do evento. Neste sentido, concebo a temporalidade e
repertórios do ciclo do boi em Parintins não como um evento linear e uniforme, mas
dinâmico e flexível, onde os fatos são produzidos no contexto da festa como um pleno
fenômeno social total.

A história do festival é conhecida. Ela remete ao início do século XX, na tradição


de “brincar de boi” pelas ruas da cidade, que se baseava no auto que narra a morte e a
ressurreição do boi. Nessa época os bois se enfrentavam nas ruas, em encontros marcados
por versos de desafios, pelo embate e, na maioria das vezes, por brigas entre brincantes e
torcedores – normalmente pertencentes a bairros diferentes.

Em 1965, um grupo de jovens ligado à igreja católica resolveu que os contendores


passariam a disputar o título de campeão e a receber um troféu. Surge, nesse momento, o
que hoje é o Festival Folclórico de Parintins, promovendo a domesticação da violência
física entre os brincantes e definindo um modelo de evento a ser seguido. As novas regras
adotadas passaram a limitar a participação das torcidas organizadas na disputa entre os
bois, a partir de critérios relacionados às apresentações de cada agremiação. Assim, por
exemplo, a torcida de um boi só pode se manifestar durante a apresentação daquele boi-
bumbá a que pertence.

2
Para uma compreensão mais ampliada do ciclo festivo do boi-bumbá de Parintins, ver Silva (2007).

2
Como festas e rituais não são imutáveis, na década de 1980 o festival de Parintins
foi reestruturado a partir da organização dos bois-bumbás e das ações do governo do
estado.3 Na confluência dos interesses dos bois e do governo estadual, o festival passou a
ter um espaço próprio para as apresentações, ocorreram investimentos de recursos
financeiros oriundos de patrocínios público e privado, consolidou-se a competição a partir
de regras de concorrência e da definição de uma estrutura de apresentação voltada para
abordar elementos regionais. Estes, para os organizadores da festa, conformariam o
“regionalismo amazônico” no festival, também denominado de “Ópera Amazônica” por
artistas e dirigentes dos bois. O regionalismo seria fundamentado nas representações da
natureza, do índio e do caboclo. O conjunto de transformações na organização e
apresentação dos bois proporcionou a passagem de um estilo de “brincadeira de rua” para
um espetáculo moderno constituído de atores, palco e plateia (SILVA, 2007).

A partir daí, os bois de Parintins passaram a definir identidades com base na cor e
na utilização de símbolos como marcadores diacríticos, de tal modo que uma pessoa
simpatizante de um boi refere-se ao adversário como “contrário”. O boi Caprichoso utiliza
a cor azul e a estrela como símbolos, enquanto o boi Garantido definiu sua identidade
com a cor vermelha e o coração. Esses elementos fortalecem a disputa no dia a dia e
proporcionam o engajamento de grande parte da população na rivalidade dos bois. No
período da festa a cidade parece se dividir em duas metades – azul e vermelho. Nesse
sentido, consolidou-se, com o tempo, um campo de disputa em que cores e símbolos
impulsionam a rivalidade entre os bois.

Nos três dias de apresentações dos bois, cada agremiação faz uma apresentação
por dia, durante aproximadamente duas horas e meia. Cada apresentação é um espetáculo
único, pois uma regra fundamental do festival é que os bois não podem repetir os temas,
as alegorias e as fantasias. 4 As exibições são baseadas na música – denominada de toada
–, na produção visual composta por alegorias, fantasias e adereços, e na ação cênica dos
brincantes.

3
Os bois-bumbás tornaram-se associações folclóricas, juridicamente formalizadas, com estatuto, sede
própria e todos os itens exigidos por órgãos públicos e pela iniciativa privada para financiamento e
prestação de contas de recursos financeiros.
4
Em 2016, em razão da escassez de recursos financeiros, no terceiro dia do festival os bois repetiram
alegorias e fantasias. As apresentações desse dia, porém, não foram contabilizadas no julgamento para
decisão do vencedor.

3
Verdadeiro "fato social total" da cultura popular contemporânea, o Festival de
Parintins se propõe elaborar signos e valores regionais como verdadeiros patrimônios da
Amazônia, vinculando a economia, a política, as relações sociais, a religiosidade e a
própria organização do espaço da cidade. As letras das músicas e a abordagem de temas
como lendas, mitos, tribos indígenas, aspectos da natureza, personagens locais e os mais
variados tipos de populações identificados, durante as apresentações, pelo termo caboclo
– pescadores, caçadores, agricultores, extrativistas -- revivem, anualmente, essas
conexões. Estas são abordados especialmente no item intitulado “figura típica regional”.

Fazer arte em Parintins

Tendo examinado anteriormente a inserção do boi-bumbá de forma mais ampla


no contexto da sociedade local (SILVA, 2007), focalizarei, no restante deste capítulo, em
especial, a experiência e a produção artística dos bois no contexto do festival. A ideia de
uma antropologia da arte remonta a Boas (2010) e Firth (1992), mas minha ênfase é na
concepção de arte como “sistema cultural” (GEERTZ, 1994). Neste sentido, meu
interesse ultrapassa a experiência estética, na medida em que a arte é apreendida como
um fenômeno integrado à vida social de um determinado grupo ou sociedade. De acordo
com Geertz (1994, p. 119), toda reflexão sobre a arte que não se restringe à técnica, deve
se situar “no contexto das outras expressões da iniciativa humana e no modelo de
experiência que as sustentam coletivamente”.

Fixo-me no sentido de fazer arte em Parintins a partir da formação prática dos


“artistas de boi” e de como estes concebem os artefatos artísticos, na confluência de
diferentes modalidades – uma arte afinada com os interesses dos bois para apresentação
no festival e, portanto, do regionalismo amazônico.

Produzir artefatos que adquirem o estatuto de arte no Festival de Parintins, com


criatividade e bom apelo visual, pode-se dizer que é um fenômeno histórico que
singulariza a habilidade de antigos artesãos na cidade. Esse conhecimento foi passando
de geração a geração, ganhando a cada momento novos aprendizados práticos,
experimentações, novas formas e conceitos que aprofundam cada vez mais o saber-fazer
e o resultado dessas práticas.

4
A memória histórica da arte parintinense remonta à década de 1970, quando um
padre, conhecido como Irmão Miguel, que introduziu em Parintins o ofício de artesão,
repassando aos mais jovens as técnicas de escultura em madeira e argila, assim como de
pintura. Nessa mesma década, outro fato possibilitou a introdução de novas experiências
artísticas nas apresentações do boi-bumbá. O artista plástico Jair Mendes, que morou um
período no Rio de Janeiro e se encantou com as alegorias das escolas de samba no
carnaval carioca, ao retornar a Parintins, iniciou um processo de experimentação no
festival, introduzindo alegorias nas apresentações do boi-bumbá (Silva 2007, p. 87). A
partir desse episódio, um aspecto passou a ser fundamental na produção artística do boi-
bumbá: a experimentação, que traz a novidade.

A experimentação tornou-se um elemento estrutural significativo na preparação


para o festival, quando os bumbás passaram a dotar as apresentações de novas
modalidades de arte visual, ancoradas em alegorias, fantasias e adereços. Assim,
experimentar (e ao mesmo tempo ousar) foi significativo para que os bois chegassem a
um novo tipo de festival – com a perspectiva de um espetáculo moderno –, como o que
se realiza atualmente. Mas a modernidade não é algo estanque, pois se atualiza
constantemente. Assim, vez ou outra o evento se renova adquirindo novas formas ou
ampliando o conteúdo artístico, assim como a performance dos brincantes e os
personagens durante as apresentações.

Assim, a padronização do espetáculo com um modelo, estruturado em quesitos e


em um regulamento, não aboliu as possibilidades de mudanças e a introdução de novas
formas. Experimentação e novidade passaram a fazer parte das intenções explícitas dos
bois e, neste sentido, tornaram-se elementos estruturais ao festival. Destarte, se por um
lado a experimentação e a novidade implicaram o acirramento das disputas entre os
bumbás, com repertórios de segredo e de jogo entre um e outro como fundamento da
competição, por outro lado, esses aspectos impulsionaram também o interesse do público,
renovando constantemente o fascínio pelo espetáculo.

O “artista de boi”

Sem dúvida alguma, as transformações ocorridas na produção artística do boi-


bumbá em Parintins são resultantes da formação de um agrupamento de pessoas com
talento para os diversos ofícios de arte, instrumentais ao espetáculo dos bois, os quais são

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reconhecidos na cidade, na região e no país como "artistas". Naturalmente que o talento
não subentende uma perspectiva de que as práticas artísticas são inatas; há um processo
de aprendizado da arte, em Parintins, que implica observar, fazer e aprender.

A formação de um “artista de boi” – designação nativa para os profissionais que


atuam na produção artística do festival – atualmente começa muito cedo, seja nas escolas
de arte dos bois ou na condição de ajudante de um artista profissional. As escolas de arte
são locais destinados a ensinar ofícios ligados à produção artística do boi-bumbá. Assim,
tudo o que se aprende nessas escolas está diretamente relacionado aos quesitos que os
bois apresentam no festival. Da mesma forma, os artefatos confeccionados nas oficinas
realizadas nas escolas são aproveitados nas apresentações das duas agremiações (SILVA,
2007, p. 85).

A profissionalização da produção artística do boi-bumbá se deu a partir da década


de 1980, quando o Festival de Parintins passou por mudanças, e se definiu como um
espetáculo de massa e com a especialização das esferas artísticas que estruturam a
apresentação de cada agremiação. Com as mudanças, aos poucos foram sendo
estabelecidos os espaços da música, da dança, da arte cênica e das modalidades de artes
visuais (pintura, escultura, artesanato, as fantasias) nas apresentações. É nesse contexto
que se dá a profissionalização do artista de boi e a definição de funções no interior dos
barracões, tais como compositores e levantadores de toadas, coreógrafos, artistas
plásticos, artesãos, costureiras, ferreiros, entre outros profissionais.

A arte do boi-bumbá integra, reconhece e prestigia os talentos individuais, mas o


conjunto artístico avaliado no contexto do espetáculo resulta de uma produção integrada,
nos termos do que Becker designou como “arte coletiva” (Becker, 1977a e 1977b). Isto
porque trata-se de uma produção definida até mesmo no momento de contratação dos
artistas, tendo em vista que um artista mais gabaritado efetiva o contrato não apenas só,
mas com sua equipe de trabalho.

No caso específico das artes visuais, há uma forma local de identificação e


contratação dos artistas, a partir da distinção entre artista de ponta e artista especializado.

Denomina-se artista de ponta um profissional com experiência acumulada e


conhecimento de múltiplas habilidades na produção visual do boi-bumbá. Esse tipo de
artista é raro e, portanto, faz parte de um grupo seleto e reconhecido na cidade. Por sua
experiência – com vários anos de trabalho e conhecimento de diversos ofícios da arte do

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boi –, o artista de ponta normalmente comanda um grupo de profissionais sob sua
responsabilidade, contratados em conjunto. Os artistas de ponta são responsáveis pela
produção visual do boi para uma noite de apresentação, principalmente a parte mais
complexa do espetáculo, que são as alegorias e a formação de grandiosos cenários para
as exibições.

Por outro lado, denomina-se artista especializado o profissional que se dedica (e


se especializa) a itens específicos da apresentação do boi, tais como fantasias de
personagens individuais, como cunhã-poranga, rainha do folclore e pajé, e de quesitos
coletivos como as tribos e tuxauas.

A dinâmica de aprendizagem de um iniciante na arte do boi em Parintins implica


a sua inserção no processo de produção como auxiliar, posição em que ao mesmo tempo
deve observar, cumprir tarefas e assimilar a prática como aprendizado, ou seja, aprender
fazendo.5 Ele só passa da condição de auxiliar-aprendiz para o status de artista quando
efetivamente domina o ofício de forma autônoma e consegue produzir objetos artísticos
de acordo com as exigências da diretoria de arte do boi e as regras estabelecidas no
regulamento do festival.

Uma regra fundamental no contexto artístico do boi-bumbá de Parintins é de que


o indivíduo, para ser reconhecido como artista, deve necessariamente dominar as diversas
especialidades e técnicas na elaboração de um artefato. Por exemplo: a produção de uma
alegoria, seja para formação de um cenário ou como representação de animal ou de
paisagem, requer diferentes fases e processos artísticos, tais como desenho e confecção
de maquete da alegoria, conhecimentos e habilidades de escultura, modelagem, pintura,
trabalho com gesso e artesanato. Além disso, exige-se criatividade para produzir efeitos
especiais durante o espetáculo. O movimento de uma alegoria durante a exibição é um
dos aspectos mais valorizados e esperados pela plateia, assim como os efeitos de luz, som
e fumaça que proporcionam maior dinamismo nas apresentações.

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A faculdade de observação tem sido destacada como uma das principais, dentre as faculdades humanas,
como elemento heurístico para o aprendizado. Na antropologia, por exemplo, a observação é
fundamental no trabalho de campo. Inspirado na antropologia estética de Lévi-Strauss, Roberto Cardoso
de Oliveira (1998, p. 17) analisou as perspectivas do olhar, ouvir e escrever no ofício do antropólogo, as
quais ele denominou de “faculdades do entendimento sócio-cultural”.

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O modus operandi da arte do boi

Como a preparação das agremiações se dá a partir das regras estabelecidas no


regulamento do festival, o complexo sistema simbólico para a realização do evento
baseia-se em 21 quesitos (denominados de itens). Estes são transformados em espetáculo
através da música, artes cênicas, dança, artes plásticas e efeitos de som e luz com auxílio
de equipamentos eletrônicos.

A música é a primeira manifestação artística a ser apresentada ao público, sendo


que normalmente os bois lançam seus CDs logo após o carnaval. As letras das toadas
conjugam as exigências do regulamento com certa margem de liberdade na exploração
de temas sobre a região amazônica. Entre artistas e diretores dos bumbás, comunga-se a
ideia de que o Festival de Parintins é um espetáculo para falar da Amazônia, por isso
afirmam que o festival é uma “Ópera Amazônica”. Deste modo, cada item das
apresentações é concebido e estruturado para abordar elementos da região de forma
espetacular à plateia. Esta, composta por torcedores e visitantes, espera ver no
bumbódromo a Amazônia retratada na versão dos bois de Parintins.

As fontes de inspiração e os quesitos abordados são sempre os mesmos. Porém, a


riqueza nos detalhes, a suntuosidade, a forma como os temas são explorados em cena, as
novidades apresentadas e a performance dos personagens e brincantes, são fatores
relevantes para que o espetáculo seja sempre atrativo para espectadores locais e de fora.

A preparação de cada boi para o festival é precedida de pesquisas e levantamento


de informações sobre grupos indígenas (região de origem, história, mitos, vestuário,
costumes, ritos de iniciação, alimentação, religiosidade), populações ribeirinhas (com
destaque para o caboclo), ambientes e paisagens da região, assim como pessoas de
destaques em Parintins. As informações são levantadas em acervos de museus,
universidades, agências da FUNAI, bibliotecas e, algumas vezes, com busca de dados e
entrevistas realizados diretamente entre grupos indígenas e populações ribeirinhas da
região. Estas são selecionadas previamente para serem abordadas no festival.

Após o levantamento de informações por cada diretoria de arte, definem-se


paisagens naturais, grupos sociais e aspectos culturais que serão objetos das
apresentações. Os dados são repassados aos compositores que, com base nas informações,
elaboram as letras das toadas, que por sua vez servem de inspiração para as exibições na
arena do bumbódromo.

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Seguindo um modus operandi estabelecido e reconhecido no contexto artístico do
boi-bumbá, os artistas plásticos utilizam uma sequência técnica para alcançar o resultado
final: inicialmente elabora-se um esboço da fantasia, alegoria ou cenário em forma de
desenho. Às vezes o desenho dá espaço a uma maquete, principalmente quando se trata
de cenário com representações de animais, personagens e paisagens. Em seguida, elabora-
se uma estrutura feita com ferragem, que dá forma e tamanho ao artefato, o qual
finalmente recebe o acabamento com diversos tipos de materiais, atingindo a forma
artística desejada. No caso das alegorias, em que se procura representar ambientes
amazônicos (rios, florestas, montanhas), animais, seres mitológicos, figuras humanas, as
peças são sempre de grandes dimensões (chegando a medir 12 metros ou mais de altura)
e na arena formam cenários e formas gigantescas. Os cenários, pela grandiosidade,
movimento e efeitos de luz, som e cor, produzem cenas cinematográficas durante as
apresentações para deleite e admiração da plateia.

Regionalismo e autenticidade

No festival há uma disputa entre os bois no que concerne à abordagem da realidade


regional. Esse “realismo” se configura na representação de paisagens, de aspectos físicos,
da floresta, de animais, de categorias humanas, de artefatos e costumes das populações
que supostamente caracterizam a Amazônia. Neste particular, as noções de autenticidade
e identidade regional constituem os fundamentos da perspectiva ideológica do
regionalismo amazônico defendido pelos bois de Parintins. Tal perspectiva fundamenta
também a concepção de folclore do boi-bumbá – o “folclore da floresta”.

Na verdade, se a ideia de construção de uma identidade regional amazônica é


sempre almejada pelos bumbás, é preciso ressaltar que há uma ligeira diferença na
concepção de espetáculo entre as duas agremiações. No boi Garantido, trabalha-se com a
ideia de que a realidade deve ser retratada integralmente e que os objetos produzidos
devem primar pela fidelidade ao original e, por conseguinte, pela “autenticidade”. A
agremiação do boi Caprichoso, por sua vez, define que o festival é um espaço para a
criatividade, mesmo com base em informações “reais” sobre as populações locais. Ou
seja, para o Caprichoso não se trata de reproduzir o real e, sim, de explorar temáticas e
jogar com o imaginário do espectador.

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Ampliando ainda mais o universo simbólico constituído durante as apresentações,
nos últimos dez anos os bois assimilaram as discussões ambientais, de âmbito
internacional, nas quais a Amazônia tornou-se objeto privilegiado. Neste sentido, os bois
passaram a abordar temáticas atuais e de cunho crítico, tais como a devastação do meio
ambiente amazônico e o esgotamento dos recursos naturais, as consequências danosas do
garimpo, a invasão de terras indígenas e a dizimação de suas populações, incorporando
problemáticas contemporâneas sobre a região. Ainda que nesse plano possa se considerar
uma “obra aberta”, os temas da atualidade continuam a falar da região. Assim,
conjugando estrutura e evento (SAHLINS, 1981) os bois formulam imagens e discursos
sobre uma Amazônia que é ao mesmo tempo real, imaginada e idealizada.

Outra via de construção de representações sobre a Amazônia – e, portanto, do


discurso regionalista dos bois – está no fato de que as duas agremiações procuram criar
artefatos artísticos com o aproveitamento de produtos do ambiente regional, tais como
cipós, caroços, folhas, dentes de animais e outros. Mas, se na tradição naturalista de
retratar paisagens o artista prostrava-se diante da natureza e a pintava, diferentemente o
artista de Parintins utiliza o meio técnico da fotografia como auxiliar em seu ofício. Senão
vejamos.

Para reproduzir paisagens em suas pinturas, os artistas parintinenses recorrem a


uma forma não usual se pensamos na história da pintura naturalista: ele dirige-se a um
determinado local, escolhe um aspecto da paisagem que considera ideal para um quadro
e fotografa. Após a revelação da fotografia, o artista passa dias pintando em uma tela o
que fotografou, na expectativa de reproduzir a paisagem escolhida. Aqui, o artista recorre
à perspectiva da verossimilhança – uma forma característica da arte mimética
(AUERBACH, 1987; LIMA, 1995 e 2000).

Outro aspecto a acentuar nessa busca da paisagem natural amazônica, é que, no


movimento que incorpora estes dois tipos de arte – fotografia e pintura –, o artista
parintinense subverte as bases da teoria benjaminiana sobre a autenticidade da obra de
arte. Para Benjamin (1985), a obra de arte, em sua forma tradicional, traz consigo a aura
da unicidade porque, sendo única, não pode ser reproduzida. Na pintura, seja de figuras
humanas ou de paisagens, o artista imprime em sua obra o instante apreendido pelo olhar,
isto é, o aqui e agora da criação. A fotografia, segundo Benjamin, diferentemente das
artes da tradição, é o instrumento técnico da sociedade moderna que proporcionou o início

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do processo de reprodução da imagem, possibilitando uma proximidade com as massas
(BENJAMIN, 1985, p. 170).

Diferentemente da posição do filósofo da Escola de Frankfurt, o artista plástico


de Parintins utiliza a fotografia como recurso para trazer a paisagem até si, por meio da
reprodução; com base na verossimilhança da imagem elabora a sua própria obra – a
pintura. Trata-se de recorrer ao artifício técnico para capturar a paisagem pela objetiva da
câmera e, a partir daí, passar à tela. Em outras palavras, é preciso reproduzir a paisagem
desejada em imagem fotográfica para em seguida transformá-la em pintura. Assim, as
formas de reprodução da imagem – reprodução manual e reprodução técnica –, em
princípio distintas, somam-se em um mesmo processo para a eficácia da imagem.

É com essa técnica de trabalho – a utilização da fotografia e da pintura – que o


artista de Parintins busca o sentido da autenticidade, não da obra em si, mas da paisagem
amazônica. Ora, se existe algo que deve ter um valor de culto, não é mais a obra, mas o
seu referencial – a Amazônia –, na medida em que esta região adquiriu uma aura e um
valor quasi-sagrado no contexto da sociedade global contemporânea, em razão da
importância atribuída em nível mundial à sua biodiversidade.

Espetáculo e performance

A apresentação dos bois na arena do bumbódromo é realizada com base nos


quesitos definidos no regulamento do festival, que podemos distingui-los da seguinte
forma: i) individuais: apresentador, levantador de toada, boi-bumbá, porta- estandarte,
amo do boi, cunhã-poranga, sinhazinha da fazenda, rainha do folclore e pajé; ii) coletivos:
batucada ou marujada (ritmistas), tribos indígenas, tuxauas, uma figura típica regional,
vaqueirada, galera (torcida organizada); iii) temáticos: lenda amazônica e ritual. São
avaliados ainda os quesitos alegoria, coreografia e organização.

As apresentações são conduzidas com base na toada, a qual destaca nas letras os
personagens e temas que serão encenados a cada momento do espetáculo. Os temas são
explorados através de cenários formados por alegorias, fantasias e brincantes que
interpretam em cena personagens regionais. Porém, o sentido de performance no festival
de Parintins difere de outras festas brasileiras em razão da especificidade da dramatização
durante as apresentações. O carnaval, por exemplo, também tem sua exibição centrada a
partir de um enredo geral que se sobressai na letra do samba, nas fantasias e nas alegorias.

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No entanto, diferentemente do festival de Parintins, a apresentação das escolas de samba
no carnaval se caracteriza por um desfile na passarela, onde os brincantes passam de
forma linear.

No Festival de Parintins, os temas abordados na arena são encenados e adquirem


o sentido de um espetáculo teatral. Para tanto, concorrem para a boa apresentação a
formação de cenários estruturados com grandes alegorias, as quais produzem formas
realçadas com música, efeitos de luz, sons de animais e de seres representados, e o
desempenho de dois personagens: o apresentador e o narrador. Estes componentes
obrigatórios na apresentação do boi singularizam o festival de Parintins e contribuem para
sua exibição.

O apresentador comanda a apresentação do boi na arena e promove a interação


entre palco e plateia – faz a torcida participar do espetáculo através de movimentos
coreográficos e da manipulação de adereços. O narrador, por sua vez, informa aos
espectadores o que está sendo encenado e apresenta detalhes acerca do contexto
sociocultural em que o boi se inspirou para a exibição de determinadas cenas e quesitos.
Neste sentido, como podemos avaliar a atuação desses dois personagens na performance
dos bois no festival?

Os estudos de performance foram intensificados nas últimas décadas, a partir de


contribuições teóricas oriundas da antropologia – principalmente das análises de rituais e
dramas (TURNER, 1982, 1988 e 1994) –, do teatro (SCHECHNER, 1986 e 2000;
GOODY, 1997) e das análises sobre condutas e papéis sociais desempenhados no
cotidiano (GOOFFMAN, 2003). As ideias de John Austin (1997) tornaram-se
inspiradoras na antropologia a partir do uso pioneiro realizado por Tambiah (1973). Para
Schechner, seguindo Austin, as palavras pronunciadas por determinado ator em um dado
contexto deixam de ser meras afirmações sobre alguma coisa; as palavras adquirem força
e eficácia que se estendem muito além do contexto de fala.

Seguindo a esteira desses estudos que redimensionaram a teoria da ação no âmbito


da cultura e, portanto, da dimensão simbólica humana, pode-se afirmar que a performance
no festival de Parintins depende de um conjunto de atividades artísticas produzidas com
a intenção de disputar o título e o troféu de campeão da competição, assim como para a
satisfazer e deslumbrar o público.

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Há que se destacar o papel de comunicação entre palco (arena) e plateia
(arquibancada), a partir da atuação do apresentador e do narrador. Se o apresentador atua
evidenciando e informando em detalhe as exibições, por seu lado o narrador contextualiza
as apresentações com informações sobre a “realidade” da qual se faz referência no
espetáculo. Assim, ao mesmo tempo em que a plateia tem acesso a cenas que exibem
imagens metafóricas de uma Amazônia fantástica, por outro lado, a partir da atuação do
narrador, o espectador recebe informações que lhe permitem ter a sensação de que
conhece mais um pouco sobre Parintins e a região.

As fontes mais destacadas pelos bois no Festival de Parintins incluem a natureza


caracterizada como amazônica e as populações da região. Neste sentido, o discurso de
identidade regional dos bumbás é fundamentado no meio ambiente amazônico e na
dimensão étnica, cuja referência são índios e caboclos. Esse aspecto, ao mesmo tempo
em que demarca o regionalismo dos bois, contribui para projetar, legitimar e fortalecer
uma aura sobre a Amazônia no mundo contemporâneo.

Pode-se concluir que o festival é ao, mesmo tempo, competição, espetáculo e um


locus de discurso sobre a Amazônia e sobre a identidade regional. Como identidades são
construtos sociais e dependem dos atores e das premissas discursivas em jogo, não há
dúvida que o festival dos bois-bumbá de Parintins procura retratar a Amazônia, entre
metáforas e metonímias, construindo e constituindo um forte discurso regionalista.

Referências bibliográficas

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13
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