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Iniciação à Bioética
Publicação do Conselho Federal de Medicina
SGAS 915 – Lote 72
70390-150 – Brasília-DF
Fone: (061)346-9800
Fax: (061)346-0231
http://www.cfm.org.br
cfm@rudah.com.br
Organizadores
Sérgio Ibiapina Ferreira Costa
Volnei Garrafa
Gabriel Oselka
Equipe Técnica
Eliane Maria Medeiros Silva
Sulaima Leise da Silva
Projeto Gráfico
Tereza Hezim
Capa
Fernando Secchin
Copidesque/revisor
Napoleão Marcos de Aquino
Editoração Eletrônica
CMJ On Line
Tiragem
10.000 exemplares
Ficha Catalográfica
CDD 174.2
Conselheiros CFM
Gestão 1994/1999
Volnei Garrafa
Cirurgião dentista; Professor Titular do Departamento de Saúde Coletiva;
Coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Bioética da Universi-
dade de Brasília – UnB; Pós-doutorado em Bioética pela Universidade de
Roma; Vice-presidente da Sociedade Brasileira de Bioética; Editor associ-
ado da revista Bioética – Conselho Federal de Medicina
Gabriel Oselka
Médico; Professor associado do Departamento de Pediatria da Faculdade
de Medicina da Universidade de São Paulo – USP; Editor associado da
revista Bioética – Conselho Federal de Medicina
Colaboradores
Cláudio Cohen
Médico; Professor Livre Docente do Departamento de Medicina Legal,
Ética Médica e do Trabalho da Faculdade de Medicina da Universidade
de São Paulo – USP, São Paulo, SP
Débora Diniz
Antropóloga; Pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em
Bioética, Universidade de Brasília – UnB, Brasília, DF
Eliane S. Azevêdo
Médica; Núcleo de Bioética, Departamento de Ciências Biológicas,
Universidade Estadual de Feira de Santana, Feira de Santana, BA
Léo Pessini
Teólogo; Pós-graduado em Educação Pastoral Clínica, com especializa-
ção em Bioética no St. Luke’s Medical Center, Estados Unidos; Vice-
reitor do Centro Universitário São Camilo, São Paulo, SP
Leonard M. Martin
Redentorista; Diretor do Instituto Teológico-Pastoral do Ceará; Professor
de Teologia Moral e Bioética no Instituto Teológico-Pastoral do Ceará;
Presidente da Sociedade Brasileira de Teologia Moral, Fortaleza, CE
Marcos de Almeida
Médico; Professor Titular de Medicina Legal e Bioética da Universidade
Federal de São Paulo – Escola Paulista de Medicina - UFSP-EPM; Livre-
docente em Ética Médica pela Faculdade de Medicina da Universidade
de São Paulo – USP, São Paulo, SP
Marco Segre
Médico; Professor Titular do Departamento de Medicina Legal, Ética
Médica, Medicina Social e do Trabalho da Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo – USP, São Paulo, SP
Nei Moreira da Silva
Médico; Professor-adjunto de Clínica Neurológica da Faculdade de
Ciências Médicas da Universidade Federal de Mato Grosso; Diretor do
Conselho Federal de Medicina
Volnei Garrafa
Cirurgião dentista; Professor Titular do Departamento de Saúde Coletiva;
Coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Bioética da Universi-
dade de Brasília – UnB, Brasília,DF; Pós-doutorado em Bioética pela
Universidade de Roma; Vice-presidente da Sociedade Brasileira de
Bioética
Prefácio 13
Parte I - Introdução
Apresentando a Bioética 15
Sérgio Ibiapina Ferreira Costa, Volnei Garrafa e Gabriel Oselka
O Princípio da Justiça 71
José Eduardo de Siqueira
Transplantes 157
Regina Ribeiro Parizi e Nei Moreira da Silva
Parte V - Posfácio
12
Prefácio
13
14
Parte I - Introdução
Sérgio Ibiapina Ferreira Costa
Volnei Garrafa
Gabriel Oselka
Apresentando a Bioética
17
Referências bibliográficas
18
Parte II - Conceitos Básicos
Franklin Leopoldo e Silva
É tica e conhecimento
Elas aparecem quando tentamos,
por exemplo, fazer a distinção entre
ética e conhecimento. Podemos dizer
Quando pretendemos situar a éti- que quando descrevemos o mundo e
ca no contexto das dimensões culturais, procuramos compreendê-lo efetuamos
encontramos de pronto um primeiro pro- juízos que nos permitem assimilar a
blema. Como separá-la de outras mani- verdade dos fatos; para compreender
festações como, por exemplo, o conhe- estes fatos efetuamos outros juízos,
cimento e a religião? Será possível uma mais abstratos, acerca da ligação en-
separação tal que a ética se constitua tre eles e das razões que sustentam tais
como uma instância autônoma da cul- conexões. Conhecer as coisas é
tura, claramente definida na sua descrevê-las e apreender racionalmen-
especificidade? A relevância da ética nos te as relações que interligam os fenô-
leva naturalmente a assinalar para menos. Dizemos que aí encontram-se
ela um campo próprio, a partir do juízos porque se trata de uma ativida-
qual possamos reconhecer um modo de que inclui não apenas a mera des-
singular de existir, em primeiro lugar crição, mas julgamentos acerca da
característico do ser humano e, em validade e da necessidade das cone-
seguida, delimitado com nitidez en- xões que pouco a pouco vamos conhe-
tre as dimensões da existência. Po- cendo. São tais julgamentos que nos
demos partir deste pressuposto, mas permitem enunciar leis científicas. Es-
quando vamos entender concreta- tas não se encontram dadas simples-
mente esta separação e esta mente naquilo que percebemos, mas é
especificidade as dificuldades se mul- a partir do que percebemos e observa-
19 tiplicam. mos que nos julgamos autorizados a
formulá-las, atingindo assim conheci- da realidade como ela é, e a moral da
mentos que superam os fatos parti- realidade como ela deve ser. A ciência
culares, embora digam respeito a eles. elaboraria juízos de realidade e a mo-
Isto significa que a observação da re- ral juízos dependentes de
alidade com vistas ao conhecimento normatividade. Mas já vimos que a
nos leva a julgamentos acerca desta ciência atinge justamente os graus
própria realidade. É claro que quando mais elevados de conhecimento quan-
falamos em julgamentos, nesse senti- do apreende as regras de conexão res-
do, queremos dizer apenas que a ob- ponsáveis pela produção dos fenôme-
servação nos autoriza a avaliar de for- nos. Já Aristóteles reconhecia que o
ma mais ampla e mais geral o com- saber acerca das coisas inclui neces-
portamento dos fenômenos, o que nos sariamente o conhecimento das cau-
libera do particular e nos abre o vasto sas de seu aparecimento e de seu modo
horizonte da legislação da natureza: de ser. E as epistemologias modernas
sabemos não apenas como os fenôme- enfatizam a constância das relações
nos se comportam, mas também como causais como um dos mais importan-
eles devem se comportar, pois as leis tes requisitos de conhecimento. Reme-
gerais valem para todos os fenômenos ter desta maneira fatos a outros fatos
dentro das condições determinadas para apreender não apenas relações
pelos critérios da experiência. específicas mas a estrutura dos fenô-
É evidente que assim alcançamos menos já é, certamente, avaliar a na-
regras de generalidade e de universali- tureza, se não no sentido de qualificá-
dade que ultrapassam o mero plano la pelo menos na tentativa de compre-
dos fatos estritamente considerados. ender na maior generalidade possível
Atribuímos à natureza um grau de ne- a trama tecida pelos fatos.
cessidade que nenhuma observação É preciso lembrar, ainda, que al-
particular poderia em si mesma justi- gumas teorias do conhecimento da
ficar. E quando representamos a natu- antiguidade – como a de Aristóteles –
reza desta maneira, entendemos que e da modernidade – como a de Leibniz
possuimos acerca dela um conheci- – incluíam na compreensão desta tra-
mento muito superior àquele que nos ma não apenas a eficiência causal da
forneceria a percepção atomizada de produção fenomênica como também
fatos isolados. Julgamos que o conhe- a finalidade a que cada parte está sub-
cimento progride quando empregamos metida na arquitetônica da totalidade.
procedimentos intelectuais de ordena- Não bastaria entender como os fatos
ção, para por meio deles justamente se produzem, mas seria preciso com-
inferir a ordem dos fatos. preender a função de cada um no con-
Ora, uma das distinções que se junto e as razões da ordem esta-
costuma fazer para separar conheci- belecida. Embora muitas vezes
mento e moral é considerar que os criticada na história das epistemo-
juízos que a ciência emite estão na logias modernas, a causalidade fi-
ordem do ser e os juízos propriamente nal indica que o esforço de conheci-
morais na ordem do dever ser. Com mento solicita, como que natural-
isto, se quer dizer que a ciência trata mente, completar-se na formulação 20
das indagações relativas ao porquê dos coisas aparecessem como propícias ou
fenômenos descritos na estrutura da maléficas, extravasando poderes que
realidade. E certamente este tipo de interferiam na vida e nas ações huma-
resposta, se fosse possível, permitiria nas. Conhecer, neste caso, era também
um tipo de conhecimento que não se- saber como aproveitar o caráter bené-
ria somente mais abrangente, mas fico e propiciatório ou conjurar o mal
mais avaliativo, isto é, possibilitaria que as coisas poderiam causar. A ci-
julgamentos mais seguros acerca da ência eliminou esta valoração primei-
totalidade, pois nos faria ver – talvez ramente pelo conhecimento das cau-
com mais clareza – o sentido das par- sas materiais que regem o comporta-
tes e do todo, a razão da posição de mento dos seres naturais e, em segun-
cada elemento na articulação geral e do lugar, estabelecendo leis gerais e ne-
o modo pelo qual convergem, na cessárias que nos permitem prever este
sintonia e na diferença. Não se pode- comportamento para, desta forma,
ria dizer a partir daí que inferiríamos, dominá-lo. O mundo deixa de ser enig-
ao menos parcialmente, algo como as ma quando o conhecimento se torna
normas que governam o real tanto no sinônimo de determinação necessária.
sentido do ser quanto no sentido do
dever ser?
E, contudo, estaríamos ainda no
plano dos juízos de realidade, no sen- C ritérios éticos
tido em que os entendemos quando
dizemos que a ciência os produz para Quando pela primeira vez se ten-
descrever compreensivamente os seus tou ligar conhecimento e ética, o pro-
objetos, articulando as percepções e blema que surgiu foi justamente o da
sistematizando a experiência. Mas tal- determinação necessária, isto é, a di-
vez não fiquemos apenas nisto. Por um ficuldade de estabelecer parâmetros de
misto de ingenuidade e pretensão, necessidade para as ações e, princi-
muitas vezes emitimos juízos que qua- palmente, para os critérios pelos quais
lificam a realidade. Dizemos não ape- conferimos às ações este ou aquele
nas que as coisas são desta ou daque- valor. É possível estabelecer condições
la maneira, mas também que é bom gerais e necessárias a partir das quais
que sejam assim, ou que é mau, ou que possamos determinar o valor ético das
poderiam ser de outra maneira. Talvez, ações? Aristóteles pensava que não.
de maneira implícita, isto ocorra sem- Aquele que julga eticamente não o faz
pre, sendo impossível olhar as coisas a partir das mesmas condições daquele
sem atribuir a elas um valor, embora a que conhece os objetos físicos. Aquele
disciplina da atitude científica nos leve que age moralmente não o faz da mes-
a recalcar este modo de julgamento. ma maneira pela qual avalia a causa-
Talvez persista na mentalidade do sen- lidade necessariamente presente na li-
so comum, e naquilo que o cientista gação entre os fenômenos. Isto ocorre
tem de homem comum, algo do porque o universo das ações humanas
animismo da relação primitiva com o não é regido pela necessidade. O co-
21 mundo, que fazia com que todas as nhecimento eventualmente presente na
esfera da moral pode, portanto, não ser certo em moral da mesma forma que
também necessário. É conhecida a in- chego à conclusão de um teorema.
terrogação socrática acerca da possi- E no entanto existe o Bem, assim
bilidade de se ensinar a virtude. Ensi- como existe a Verdade. São critérios
nar alguma coisa supõe saber com que em última instância servem de prin-
certeza o que esta coisa é para poder cípios para tudo que é bom e para tudo
transmiti-la com clareza àquele que vai que é verdadeiro. Mas não se passa do
aprender. O homem de bem sabe com Bem ao bom da mesma forma que se
absoluta segurança teórica o que é o passa da Verdade ao verdadeiro. Me-
Bem? A prática do bem supõe este lhor dizendo: não encontramos o Bem
saber? É possível saber, ensinar e na contingência dos fatos humanos da
aprender em moral como sabemos, mesma forma que encontramos a Ver-
aprendemos e ensinamos geometria? dade refletida na demonstração das
A resposta é não, e a razão disto conexões necessárias da ciência. En-
é a diferença que existe entre conheci- tre o que é necessário e o que é contin-
mento teórico e conhecimento prático. gente a diferença está na impossibili-
O conhecimento teórico se constitui dade de demonstração; daí a aparen-
como saber acerca do que é necessá- te relatividade das coisas humanas e
rio. O conhecimento prático se consti- do que se pode conhecer acerca de-
tui como saber acerca do que é con- las. A Política, assim como a Ética,
tingente. O saber das coisas humanas participa deste caráter. Mas isto não
pertence a este segundo tipo. Daí as significa um relativismo total, que re-
dificuldades e as oscilações que carac- sultaria na impossibilidade de critéri-
terizam os juízos morais. Daí a inter- os que não fossem puramente circuns-
ferência, nestes juízos, de fatores que tanciais e subjetivos. A dificuldade da
no conhecimento teórico têm pouca ou Ética consiste justamente em introdu-
nenhuma influência. Por que nos jul- zir normatividade na contingência,
gamentos que envolvem decisões mo- pois está fora de dúvida que quem age
rais as pessoas são sensíveis à persu- moralmente o faz a partir de normas
asão derivada da eloqüência e da ha- que não são apenas relativas à pessoa
bilidade retórica daquele que defende e ao momento.
determinada causa? Por que a influ- Dizer que as coisas humanas são
ência das emoções nestes casos pode relativas é o mesmo que compará-las
ser determinante? – e os advogados sa- a um absoluto que as transcende. Este
bem muito bem utilizar isto, já que se absoluto nunca se fará presente no
exercitam em influir nas emoções da- universo das ações, de maneira dire-
queles que vão dar o veredicto. É por- ta, mas constituirá sempre uma refe-
que nestes assuntos não é possível a rência, pois agir bem significa realizar
demonstração, ao menos no mesmo o bem no plano da contingência, isto
sentido em que ela pode ser efetuada é, agir em vista de um Bem que trans-
nas ciências teóricas. O bem e o mal cende a desordem humana. O fato de
não aparecem com a mesma imediatez que não existem regras teóricas para
e o mesmo caráter coercitivo da ver- isto não afasta inteiramente a ação do
dade e do erro; não chego ao que é conhecimento do Bem. Podemos dizer 22
que quem age moralmente conhece de com um perfil absolutamente próprio.
certa maneira o Bem, pois o traduz, Também a praxis humana ganha, as-
por assim dizer, na particularidade de sim, um estatuto específico, já que é
sua conduta. A extraordinária dificul- definida não apenas em relação aos
dade que a Ética tem que superar é o objetos da ciência teórica, como algu-
reconhecimento das mediações que se ma coisa menor ou mais pobre, mas
interpõem entre o Bem absoluto e as como um domínio singular, afetado por
ações particulares e contingentes. Nes- extrema complexidade, sendo a con-
ta mediação está contido o tingência de que se reveste um sinal
discernimento, que é a distinção entre desta singularidade complexa. Esta
o bem e o mal sem qualquer regra teó- diferença de objeto e de procedimento
rica de identificação. Pois as ações enfatiza de alguma maneira as proprie-
humanas acontecem sempre numa dades singulares do universo humano,
confluência complexa de circunstânci- mostrando que ele é diferente do mun-
as, no meio das quais é preciso do natural, muito embora o homem
discernir o modo correto de agir. É sá- esteja, por muitos outros aspectos, in-
bio aquele que possui este serido na natureza. O que distingue
discernimento. Trata-se de um saber assim tão fortemente o universo huma-
bem diferente do saber teórico, pois no do mundo natural é o valor, e por
consiste essencialmente em discernir o isto a Ética é o domínio dos juízos de
verdadeiro em meio à contingência, valor.
que não é a ordem ideal das conexões Isto nos leva ao problema da ori-
necessárias da ciência. gem e da especificidade destes juízos.
Em geral, pode-se dizer que um juízo é
sempre a subordinação de um parti-
T eoria e prática
cular a um universal. Quando dizemos
que a água é uma substância, estamos
referindo um elemento particular do
É a este saber que denominamos mundo físico a uma categoria que,
prático. Não significa que ele seja uma enquanto conceito geral, subordina o
aplicação da teoria, mas sim um ou- particular e o define. O mesmo se po-
tro saber que versa sobre um objeto deria também dizer da subordinação
específico: a ação. Esta separação en- da espécie ao gênero (o cavalo é um
tre o teórico e o prático pode dar a animal). Tais relações servem para or-
entender que a Ética está irremedia- denar o real e agrupar os objetos par-
velmente relegada a um grau menor de ticulares, ressaltando a estrutura e o
certeza, sendo portanto um tipo de sa- teor sistemático do conhecimento. É
ber inferior. Na verdade, esta distinção possível notar que os conceitos gerais
faz aparecer a autonomia e a subordinam particulares empíricos,
especificidade da Ética. Pois justamen- mas relações do mesmo tipo podem ser
te mostra que ela não é uma teoria de estabelecidas entre entes abstratos, na
segundo grau, uma ciência incomple- matemática e na lógica, como quan-
ta ou um tipo de certeza flutuante. Tra- do dizemos que seis é um número par
23 ta-se de um saber de outra natureza, ou que a substância é uma categoria.
A questão é saber se há um procedi- impediria que a afirmação da generosi-
mento rigorosamente paralelo quando dade de Pedro tivesse um caráter
dizemos que Pedro é generoso ou que teórico. O que faz com que Pedro seja
a pobreza é uma forma de opressão, generoso passa por uma incrível com-
ou que a mentira é um vício. plexidade de fatores, entre os quais
Para que um juízo seja coerente, está um que é particularmente impor-
deve haver concordância entre os ter- tante para avaliarmos o significado do
mos empregados. Esta concordância que atribuímos a Pedro. Este fator é a
aparece na visão da compatibilidade vontade. Ainda que esta vontade este-
entre o sujeito e o predicado, para to- ja mesclada com mil outros fatores, tais
marmos o juízo na sua forma mais sim- como a educação e a influência do
ples. Assim, quando dizemos que a meio, os interesses de Pedro e o con-
água é uma substância ou que o ca- texto das suas ações, há sempre um
valo é um animal, a relação de subor- nível em que a atribuição do predicado
dinação está corretamente estabe- moral supõe que o sujeito quis possuí-
lecida porque, nestes casos, há uma lo, decidiu algo a respeito de si, optou
relação necessária entre os termos, o por uma determinada maneira de agir
que faz com que o juízo exprima um e de posicionar-se diante de si e dos
conhecimento. Aquele elemento que outros. Ainda que a vontade esteja
liga cavalo a animal ou água à subs- mais ou menos determinada por múl-
tância é de tal ordem que não permite tiplos fatores, ela se exerce, e o sujeito
a afirmação contrária como expressão projeta-se diante de si mesmo de uma
de conhecimento. É fácil notar que esta certa maneira, a qual depende das es-
relação de necessidade não existe en- colhas que faz. É este elemento, não
tre os termos da proposição Pedro é submetido a uma necessidade estrita,
generoso. Certamente, podemos dizer que confere à generosidade de Pedro
que quando a formulamos exprimimos o caráter moral atribuído a este
que o indivíduo Pedro pode ser incluí- predicado. Suponhamos que Pedro fos-
do no conjunto dos indivíduos gene- se um ser estritamente determinado a
rosos; mas isto não corresponde exa- agir generosamente, da mesma forma
tamente à inclusão do cavalo no con- que os corpos pesados estão determi-
junto dos animais. Pois o que faz com nados a cair se algo não os sustenta.
que Pedro seja generoso é diverso da- Não haveria, neste caso, moralidade na
quilo que faz com que o cavalo seja generosidade de Pedro – moralidade
um animal. Não podemos entender supõe vontade e escolha.
que cavalo não seja animal, mas po- Mas supõe, então, da mesma
demos entender que Pedro eventual- maneira, que possamos apontar o ser
mente fosse mesquinho, ao invés de que é capaz de escolher a partir da
generoso. Isto significa que não é ne- vontade, isto é, o ser não submetido
cessário que Pedro seja generoso, da à necessidade. A tendência a respon-
mesma forma que é necessário que o der imediatamente que os seres hu-
cavalo seja um animal. manos são dotados de tal capaci-
O que liga Pedro à generosidade, dade não é, de maneira alguma,
não sendo da ordem da necessidade, tão óbvia quanto se poderia pensar. 24
O homem não é um ser que se defi-
na apenas por um aspecto. A expres- A questão dos fundamentos
da ética
são animal racional, a mais antiga
definição teórica do homem, mostra
por si mesma a dualidade de aspec- Assim como os juízos acerca de
tos. Enquanto animal, o homem tem fatos, os juízos de valor também se re-
algo que o vincula aos seres puramen- metem à generalidade. Quando dize-
te naturais. Enquanto racional, tem mos que Pedro é generoso, e ainda o
algo que o distingue. Se permanece- admiramos por isto, o que queremos
mos no âmbito da sensação e da per- dizer é que Pedro adota, como diretriz
cepção, estamos falando de modali- de suas ações, um valor dotado de su-
dades de representação que, embo- perioridade em relação aos indivíduos
ra eventualmente mais aperfeiçoadas particulares. Ainda mais: assim fazen-
no homem, não diferem essencial- do, Pedro se coloca como um exemplo
mente do que acontece no caso dos da possibilidade de as ações humanas
animais, que são capazes não ape- particulares encarnarem valores gerais
nas de sentir e perceber como tam- que as transcendem. Quando julgamos
bém de estabelecer relações de con- Pedro por sua generosidade, estamos
secução, como o cão que foge quan- implicitamente entendendo que o
do seu dono pega um bastão, se aca- mundo seria melhor se todos fossem
so aconteceu de já ter sido espanca- como ele. Pois se todos os valores re-
do. No entanto, apenas o homem metem ao Bem, aquele cujas ações
pode emitir juízos, isto é, relacionar encarnam algum valor está contribu-
um caso particular com uma idéia indo para a realização do Bem no
geral, por definição não imediata- mundo humano. Pedro seria aquele
mente presente na situação empírica sábio, de que se falou antes, que sabe
dada. A origem destas idéias gerais, como situar-se no mundo, discernindo
mesmo no que se refere ao mundo entre o bem e o mal, e escolhendo
natural, é problema que foi resolvido a partir deste conhecimento práti-
de diversas formas na história do pen- co – que seria algo como um senso
samento. Mesmo assim não há como moral. O sentido da apreensão de
explicar o juízo sem este tipo de valores é um saber prático, que
vinculação. A questão que se coloca muitos filósofos chamaram de sa-
no caso da Ética é: a que espécie de bedoria.
generalidade vinculamos o particular Não se adquire a sabedoria da
quando formulamos juízos morais? mesma forma como se adquire o sa-
Como já sabemos que na Ética for- ber teórico. Por vezes se concebeu que
mulamos juízos de valor, responderí- as duas coisas se opõem. No início do
amos que é a valores que remete- Cristianismo, São Paulo opõe a ciên-
mos os termos dos juízos morais. cia mundana, fruto do orgulho da ra-
E dizendo isto abrimos uma outra zão, à sabedoria da cruz, fruto da hu-
questão, que é a da generalidade mildade. Por isto, a sabedoria cristã
dos valores e do fundamento desta aparece como loucura para os não-
25 universalidade. cristãos. Santo Agostinho, em perspec-
tiva semelhante, difere ciência de sa- na Ética. A moral propriamente cristã
piência para mostrar que a atitude te- vê esta autonomia da vontade como
órica, mesmo que atinja alturas ele- subordinação a Deus, entendida como
vadas de contemplação da verdade, livre aceitação da condição de criatu-
como aconteceu com alguns filósofos ra e dos desígnios de Deus. A
gregos, não permite a posse e a fruição modernidade vai entender a autono-
do objeto mais desejado em termos de mia como autonomia da razão, e isto
um saber absoluto, que seria Deus. Pelo certamente repercutirá nas teorias éti-
contrário, a aceitação da fé e do mis- cas. Mesmo assumindo a finitude e as
tério da mediação de Cristo na rela- limitações humanas, Descartes, no sé-
ção com Deus é que possibilitaria pos- culo XVII, não admitirá como critério
suir a verdade. A hierarquia que o Cris- de verdade em qualquer âmbito senão
tianismo estabelece entre a alma e o a demonstração racional. A autonomia
mundo redunda numa separação das da razão consuma assim a sua sepa-
duas instâncias, o que não ocorria ração da natureza. Esta é menos a to-
entre os gregos, para quem o homem talidade na qual o homem está inseri-
e sua alma eram parte do mundo. A do e muito mais algo que ele deve do-
separação cristã, propondo o despre- minar para seu proveito através do
zo pelas coisas do mundo, concebe a poder que lhe confere o pensamento,
alma como peregrina, isto é, como não traduzido nos procedimentos racionais
integrada ao cosmos no qual ela pro- da ciência e da técnica. Por isto, a no-
visoriamente se encontra, já que o seu ção cristã de sabedoria é modificada:
destino deve se realizar em outra di- considera-se agora que sabedoria é a
mensão. O homem estaria sozinho na perfeita integração da teoria e da prá-
imensidão do universo, não fôra o con- tica com a finalidade de conseguir para
tato com Deus, e por isto Deus deve o homem a felicidade, isto é, o gozo
ser o único objeto de aspiração. Isto dos bens que podem advir do saber e
significa que nada, a não ser Deus, do domínio racional da natureza. Esta
determina como a alma deve agir no perfeita integração, numa perpectiva
itinerário de purificação moral. Deter- racionalista, se transforma rapidamen-
minar-se por qualquer objeto sensível te numa subordinação da prática à
ou natural é renunciar à condição so- teoria, na medida em que se concebe
brenatural que constitui a natureza da uma continuidade entre a ciência e a
alma. Portanto, somente valores sobre- tecnologia. Neste império da razão, a
naturais são dignos de orientar o homem; ética só pode ser concebida a partir
tomar qualquer outro objeto como de uma perspectiva teórica e
valor ou como critério de ação é re- racionalista. Este é o motivo pelo qual
baixar a alma. Com isto, a solidão e o a moral aparece em Descartes como
estranhamento da alma num mundo a um ramo do saber que depende, para
que ela não pertence tornam-se ocasião a sua constituição, das ciências mais
para a afirmação da autonomia, isto é, fundamentais que a precederiam,
a liberdade da alma perante as coisas. como a metafísica, a física e a mate-
Assim como a vontade, a auto- mática. De direito não haveria dife-
nomia constitui também noção central rença, a não ser em termos de grau 26
hierárquico, entre a moral e as outras ente mas talvez confinada a um domí-
ciências. nio restrito?
Assim se perde aquela diferença A afirmação da autonomia racio-
entre o teórico e o prático, estabelecida nal constitui o que ficou conhecido na
por Aristóteles. O prático passa a ser história por Iluminismo. Kant o define
concebido como o domínio de aplica- como a maioridade do gênero humano,
ção do teórico, maneira como ainda isto é, a capacidade de utilização plena
hoje o entendemos. As conseqüências da razão, sem a submissão a dogmas
desta mudança são de largo alcance. ou a autoridades; portanto, o exercício
O que aí se afirma é a unidade de uma maduro da liberdade. Mas como definir
racionalidade que doravante deve go- a liberdade? Se analisarmos o que ocor-
vernar todas as instâncias do mundo re na ciência, verificaremos que a
humano. Esta racionalidade tem um racionalidade da experiência consiste
paradigma e uma finalidade. O justamente em compreender a necessi-
paradigma é a exatidão do saber ma- dade que, a partir de princípios lógicos
temático, que a razão clássica consi- do entendimento, governa a natureza.
dera como critério por excelência de Isto significa que no âmbito da experi-
conhecimento e de obtenção de certe- ência de conhecimento, que é o domí-
za. A finalidade é o domínio racional nio da razão teórica, não se pode falar
que se traduzirá concretamente na su- em liberdade pois tudo a que temos
bordinação da natureza às necessida- acesso é a uma conexão de fenômenos
des humanas e na expansão da técni- logicamente sistematizada, mas carac-
ca como extensão da ciência, que deve terizada justamente pela insepara-
realizar praticamente o domínio do bilidade de causa e efeito, condição e
homem sobre o mundo. A prerrogati- condicionado. Sempre haverá, na ordem
va do sujeito intelectual que desta ma- da experiência, que é a ordem da teoria,
neira se estabelece contribuirá para fenômenos condicionados, por mais lon-
obscurecer a especificidade da praxis, ge que formos na cadeia dos eventos
já que esta deve forçosamente se sub- naturais. Isto faz parte do determinismo
meter aos critérios da racionalidade da natureza e é o que possibilita a ciên-
técnica. De modo que a predominân- cia, no rigor das suas explicações. As-
cia de uma perspectiva em princípio sim, a liberdade terá que ser procurada
humanista, posto que afirmadora da fora do campo da experiência e da ra-
autonomia da razão, traz consigo esta zão teórica. Kant institui, então, o domí-
ambigüidade, ou pelo menos esta nio da razão prática em que é possível
questão: terá a racionalidade técnica pensar a liberdade e reivindicá-la para
alcance suficiente para cobrir todos os o sujeito moral, mas nunca para um
aspectos da vida humana, sobretudo objeto natural. Esta separação permite
os aspectos éticos? Submeter a totali- que se fale como que de dois mundos:
dade do mundo e a totalidade da vida um em que as coisas estão estritamente
a tais critérios não implicaria em re- determinadas, pois não existe efeito sem
duzir o mundo humano à perspectiva causa; outro em que o sujeito moral, no
decorrente dos princípios metafísicos plano das decisões éticas que nada tem
27 e metódicos de uma razão auto-sufici- a ver com o plano dos eventos empíricos,
pode escolher e optar, atuando assim do inteligível no qual a pura
como causa livre, isto é, como aquele racionalidade da norma universal ga-
tipo de causa que nunca se encontra no rante a moralidade do ato. Por isto o
universo dos fenômenos. Com isto as próprio Kant nos diz que, dentro de tais
ações humanas podem ser remetidas à parâmetros, jamais houve um só ato
liberdade do sujeito, quer dizer, a algo moral praticado pela humanidade.
que não atua determinadamente, mas Porém isto não o impede de formular
que pode iniciar absolutamente uma sé- o que o ato moral deve ser, na coerên-
rie de ações. cia lógica que teria de caracterizá-lo,
A esta liberdade corresponde a independentemente das condições con-
autonomia de que deve ser dotado o cretas de realização.
sujeito nas suas decisões morais, au-
tonomia que para Kant deve ser abso-
luta, ou seja, nenhum motivo de qual-
quer ordem pode interferir na decisão F undamento e experiência
moral
do sujeito, sob pena de contaminar a
vontade com elementos que a tornari-
am dependente de outra coisa que não O que sobretudo impressiona nes-
ela mesma. Mas, então, qual o critério ta concepção formalista da moral é a
para a decisão moral, se absolutamente separação drástica entre os planos do
nada pode interferir? O critério é a for- ser e o do dever ser. Não se trata ape-
ma da universalidade que deve orien- nas de separar o conhecimento teóri-
tar a ação. Somente a forma atinge a co ou científico da moral, mas de se-
pureza que o ato moral deve revestir. parar todos os aspectos da vida con-
Qualquer conteúdo, por mais geral que creta da realização ética. Independen-
seja, constituirá uma motivação te da apreciação que possamos fazer
extrínseca e comprometerá a autono- da teoria kantiana, o importante é per-
mia do ato moral. Quando estamos guntar o que isto significa no processo
diante de uma decisão moral devemos histórico da civilização moderna. No
perguntar: o que ocorreria se esta ação limiar da contemporaneidade, numa
fosse adotada universalmente? Deve- época em que a ciência calcada no
mos agir como se o critério de nossa modelo newtoniano alcança a plenitu-
ação devesse estender-se universal- de de suas possibilidades, o homem é
mente. Qualquer ato que não seja sus- separado como que em dois sujeitos:
ceptível de universalização se o teórico, que realiza o ideal de certe-
autocontradiz em termos morais. O que za absoluta no interior dos limites do
se percebe é o esforço de Kant para conhecimento científico, e o moral, que
encontrar o critério universal que de- para compreender-se na esfera de sua
veria pautar o juízo moral. A liberdade é obrigado a colocar esta li-
radicalidade com que ele concebe este berdade numa altura transcendental
critério o faz encontrá-lo somente na em que ela se situa distante do plano
esfera do formal. Assim, o que Kant da experiência. Talvez possamos ver
chama de prático não corresponde à nesta solução a que chega a filosofia
esfera da contingência, mas a um mun- crítica uma espécie de consolidação 28
do caminho tomado pela moder- trabalhavam de maneira pacífica. O
nidade. O que Kant percebe é que, na Existencialismo é seguramente a cor-
continuidade do teor unitário da rente de pensamento em que estes pro-
racionalidade, instituído por Descar- blemas apareceram de forma mais
tes, não seria possível dar conta da aguda. Pois nele, pela primeira vez, a
moral pois a racionalidade científica liberdade é vista como o exercício do-
não atinge o plano dos requisitos do loroso da constante invenção de si
ato moral, autonomia e liberdade. Isto mesma. Nas teorias clássicas, a liber-
o levou a conceber uma outra esfera dade aparece como uma sábia confor-
de racionalidade na qual os critérios mação à necessidade. Existe um Deus,
de determinação teórica não teriam existe um mundo transcendente de
vigência. E com isto separou o conhe- valores, existe uma teleologia históri-
cimento da ação, ao menos naquilo ca, existem referências que dão senti-
que a ação comporta de decisão mo- do ao mundo e aos homens. Claro,
ral. Podemos medir o alcance deste existe a insensatez, o erro, o pecado, a
acontecimento lembrando que, no caso desordem, a contingência, enfim, mas
do saber prático preconizado por tudo isto tem causas e explicações que
Aristóteles, o sujeito discernia no seio são fornecidas pela razão e mesmo pela
da contingência o meio de realizar a fé. Há uma ordem previamente dada.
ação que guardasse alguma correspon- Quando me insiro nela de maneira
dência com o Bem absoluto. Em Kant harmônica, sintonizo com o universo
este é um princípio formal, que a ra- e com os seus princípios. Quando se
zão pensa de maneira isolada do mun- torna mais difícil descobrir esta ori-
do concreto, que vai decidir acerca da gem e esta finalidade, como em Kant,
moralidade, isto é , da conformidade tenho ainda o recurso da forma, que
da ação à moral. Isto significa a tenta- é também um princípio a que posso
tiva de vincular a universalidade for- tentar conformar minhas ações.
mal à ação. Ora, o mundo da contin- Quando não me ponho em sintonia
gência se distingue de um universo com a totalidade, não é de todo mi-
logicamente necessário como o da nha culpa, é antes algo derivado da
ciência exatamente devido à impossi- finitude que afeta irremediavelmente
bilidade desta vinculação. Por isto a o ser humano. Enfim, há essência,
moralidade kantiana acaba sendo que posso realizar de maneira mais
muito mais um ideal de que devemos ou menos completa, mas que consti-
nos aproximar do que um critério de tui referência prévia à minha exis-
discernimento para a experiência mo- tência. Mesmo quando sinto o uni-
ral concreta. verso imenso e estranho, e Deus
A época contemporânea sentiu afastado, posso contar ainda com
mais de perto o impacto da experiên- a esperança.
cia moral concreta. Talvez a drama- Mas quando não há mais Deus
ticidade da história deste século tenha nem valores transcendentes, quando
manifestado de forma mais intensa não há um plano a realizar, que sen-
certas contradições entre elementos da tido atribuir às contradições, à de-
29 ação moral, com que antes as teorias sordem dentro e fora do homem, e à
miséria histórica? O Existencialismo mais como essência, mas como proje-
coloca da maneira mais crua a ques- to. Mas há uma outra vertente que faz
tão da imanência, isto é, nada existe da exterioridade a matriz do pensamen-
acima do humano com que o homem to ético, e nesta linha estão as éticas
possa contar para ordenar o seu mun- utilitaristas. Partem, por exemplo, de
do e para orientar as suas ações. É uma concepção da evolução dos con-
apenas diante de si mesmo que ele ceitos éticos para estabelecer a origem
deverá construir seus critérios e suas prática e utilitária destes conceitos. O
justificações. A liberdade não é uma bom teria sido, na origem, o útil, isto
forma de Deus testar o homem, é a é, a ação benéfica para o indivíduo e,
forma de o homem existir, é o dado principalmente, para o grupo. Má se-
primeiro, não há critérios anteriores de ria a ação prejudicial. Com o passar
como utilizá-la, ela se faz na continui- do tempo e com o progresso da civili-
dade dos atos que a exprimem, cada zação esta utilidade imediata deixou
vez que o homem se projeta na cons- de aparecer claramente como critério,
trução de si mesmo. A liberdade é um mas se manteve a distinção, que foi aos
fardo, como foi o destino para o ho- poucos tornada abstrata e resultou nos
mem antigo. É isto o que significa di- valores Bem e Mal. Esta posição pro-
zer que a existência vem antes da es- cura buscar a origem dos valores por
sência e que o homem está condena- meio de uma reflexão histórica e psi-
do a ser livre. A história da humanida- cológica acerca da evolução da huma-
de e a história de minha vida me colo- nidade, e utiliza critérios de uma lógi-
cam diante de opções. Como enfrentá- ca imanente ao desenvolvimento das
las sem critérios absolutos de necessidades humanas. Em última ins-
discernimento e de escolha? Tenho de tância, seria a sobrevivência do grupo
inventar, para cada ato, o valor a par- a origem dos valores, que são então
tir do qual eu o escolho, não encontro estabelecidos para manter obrigações
este valor, ainda que outro mo apre- morais que assegurem a sociabilida-
sente, tenho que torná-lo meu. Cada de, a cooperação e a coesão necessá-
um é aquilo que se torna, aquilo que rias à estabilidade da sociedade. Nes-
faz de si em cada momento da exis- ta vertente, a liberdade importa menos
tência. Uma ética com um único crité- do que a adaptação do indivíduo a
rio, que se confunde com um dado esquemas de conduta que ele já encon-
irredutível de realidade: a liberdade. tra prontos e aos quais é coagido a
Assumi-la é lucidez e autenticidade; aceitar. A relatividade cultural dos va-
negá-la é má-fé. lores aparece, assim, de forma mais
O Existencialismo está na verten- nítida, pois é a perspectiva históri-
te das éticas que partem de uma pro- co-sociológica que procura dar con-
funda meditação acerca da situação ta do estabelecimento e das mudan-
humana, tal como a reflexão a apre- ças dos critérios morais. Existe uma
senta. Procura então uma maneira de racionalidade na prescrição dos valo-
proporcionar o encontro do homem res, mas ela está a serviço da coesão
consigo próprio e com a história a par- social. Trata-se de uma figura da
tir da consciência, entendida agora não racionalidade técnica que se estrutura 30
por parâmetros exclusivamente utilitá- progresso da razão gerou novas formas
rios. de dominação ideológica, que se mani-
festam nos campos social, político, eco-
nômico e que somente são possíveis num
Bibliografia
36
Délio José Kipper
Joaquim Clotet
Princípios da Beneficência e
Não-maleficência
C aso
Nesta época, afastamos AIDS e
constatamos níveis séricos baixos de
imunoglobulinas IgA e IgG e normais
Este caso é parte do relato de dois de IgM e IgE. Nesta primeira internação
médicos sobre suas interações com um percebemos muito claramente a preo-
paciente e sua família e servirá para cupação da mãe com a possibilidade
ilustrar o presente tema. de haver alguma relação entre a doen-
“Em meados de 1989 foi-nos en- ça do filho e o fato de este haver ma-
caminhado o menino E.M., então com mado no seu seio, já com câncer. Ten-
um ano e dois meses de vida e história tamos, de todas as maneiras, demover
de infecções de repetição. O casal ti- essas idéias de sua cabeça e a estimu-
nha, também, uma filha saudável de lamos a continuar o acompanhamen-
três anos. O pai era engenheiro, inven- to com seu médico assistente, apesar
tor de novos utilitários domésticos. A dos problemas com seu filho.
mãe, professora, aparentava ter como A partir de então, vivemos uma
objetivo maior dedicar-se aos filhos e intensa relação médico-paciente-famí-
ao marido. Durante a gestação, nasci- lia, com altos e baixos, que culminou
mento e primeiros dois meses de vida com a morte de E.M., nas vésperas do
de E.M. não houve quaisquer anorma- Natal de 1994.
lidades. A partir de então, começou a Em novembro de 1989, fechamos
apresentar infecções de repetição. Foi o diagnóstico de hipogamaglo-
alimentado no seio até os nove meses, bulinemia, doença congênita que evo-
quando teve que ser desmamado por- lui com infecções de repetição. O des-
que a mãe submeteu-se à mastectomia fecho natural dessa doença, naquele
37 por tumor mamário maligno. momento, era o óbito por infecção ou
neoplasia. Não havia tratamento Mas, de repente, E.M. desapare-
curativo disponível, mas as infecções ceu. Seus pais não entravam mais em
poderiam ser atenuadas com a infu- contato conosco e, aparentemente, não
são de imunoglobulinas (ainda mui- estavam em acompanhamento com
to caras e raramente disponíveis à outro médico. Preocupado com os
época). melhores interesses do paciente, por
O pai viabilizou a vinda das meio de um amigo comum contac-
imunoglobulinas, bem como o acesso tamos a família. Eis a surpresa: os
à rede internacional de informações pais, sentindo-se cansados e
médicas, onde encontramos a possi- desesperançados, haviam decidido
bilidade do uso de colostro de vaca, entregar o filho “nas mãos de Deus” e
que foi conseguido; a roxitromicina não fazer mais nada. Eram muito religi-
para o tratamento de infestação por osos, rezavam muito e tinham fé de que
criptosporidium; as viagens para ava- Deus faria o melhor por seu filho. Após
liação com especialistas em São Pau- várias tentativas e com muito constran-
lo; os medicamentos experimentais do gimento tivemos que ameaçá-los com a
exterior; tudo sem resultados satis- possibilidade de denúncia ao Conselho
fatórios, exceto, talvez, o transplante de Tutelar por maus-tratos, caso não voltas-
médula óssea. sem a procurar ajuda para seu filho.
Eis que neste ínterim a mãe E.M. voltou desnutrido, com infec-
engravida e aparecem novos dramas: ção severa na perna direita, trombo-
esta doença tem caráter genético ou se, arterite e necrose do pé. Após to-
familiar? Os pais, após muito bem in- das as tentativas, constatamos que não
formados, decidiram ter o filho, aliás havia condições de manter aquele pé
uma filha, sadia. Ainda estimulados necrosado, porque estava trazendo
com a possibilidade de transplante de grande risco de morte para E.M. Pro-
médula óssea, fizemos os testes de pomos, então, a amputação. Foi peno-
histocompatibilidade: as meninas so para nós e para os pais, mas era a
eram compatíveis entre si, mas não única chance, e os pais concordaram
com o irmão. com a amputação.
Por longo período E.M. ficou com As infecções se repetiam. Em de-
cateter semi-implantado para alimenta- zembro de 1994, sobreveio a falência
ção parenteral domiciliar e sonda de múltiplos órgãos. No dia 20 de de-
nasogástrica, que ficava permanente- zembro, pela manhã, constatamos que
mente em seu nariz. Nunca aceitou o quadro era irreversível. Mesmo com
gastrostomia e o respeitamos. Gostava a ventilação mecânica, a gasometria
muito de roupas coloridas, de passear era péssima. Não urinava mais. Esta-
pelo pátio do hospital e de fazer com- va muito ictérico. As arritmias eram
pras em sua lojinha. Fazíamos tudo para freqüentes, seu pulso débil e a perfusão
que pudesse desfrutar destes prazeres. periférica comprometida. As pupilas
Quando possível, suas irmãs estavam estavam midriáticas e não reagiam à luz.
com ele e tentávamos não fazer procedi- Ao aspirar suas vias aéreas, junto com
mentos ou interná-lo quando o time do as secreções veio parte de sua mucosa,
seu coração jogava. necrosada. Os pais, segurando as mãos 38
de seu filho, olharam para nós. Foram autor fala na pessoa como possuidora
momentos de silêncio, de reflexão e de de dignidade e valor interno (3).
reavaliação que não esqueceremos. Já nos primórdios da civilização
Após alguns segundos, que pareciam e do pensamento ocidental há sinais
séculos, perguntamo-lhes: Chega? A desse interesse pelo valor do ser hu-
resposta veio rápida e segura: che- mano e pelo respeito a ele devido. Con-
ga. Nos vinte minutos seguintes fo- tudo, as exceções a essa constatação,
ram suspensas as medicações e a ao longo da história da humanidade,
ventilação mecânica. Os pais, com foram e continuam sendo, infelizmen-
um choro suave e abraçados, acom- te, muitas. No Corpus Hippocraticum
panharam os últimos batimentos car- – denominação dada ao conjunto dos
díacos de seu filho”. escritos da tradição hipocrática, já que
hoje se sabe que Hipócrates não foi o
único autor dos mesmos – é manifesto
I ntrodução
o interesse por não lesar ou danificar
as pessoas, de forma geral, e as pesso-
as enfermas, de modo particular. Não
Jean Bernard, hematologista, pre- causar prejuízo ou dano foi a primeira
sidente da Academia de Ciências e grande norma da conduta eticamente
também do Comitê Nacional Consul- correta dos profissionais de medicina
tivo de Ética para as Ciências da Vida e do cuidado da saúde.
e da Saúde, da França, afirma que “a O interesse em conhecer o que é
pessoa é uma individualidade biológi- bom, o bem, e os seus opostos, o que
ca, um ser de relações psicossociais, é mau e o mal, com os princípios e ar-
um indivíduo para os juristas. Contu- gumentos que os fundamentam, justi-
do, ela transcende essas definições ficam e diferenciam, é o conteúdo ge-
analíticas. Ela aparece como um va- ral da ética teórica. Com toda razão,
lor. (...) Nos problemas éticos decor- George Edward Moore afirma na sua
rentes do processo das pesquisas bio- obra Principia Ethica: “O que é bom?
lógicas e médicas devem ser respeita- E o que é mau? Dou o nome de ética à
dos todos os homens e o homem todo” discussão dessa questão” (4) e “a per-
(1). O ser humano, na apreciação des- gunta sobre como deve definir-se ‘bom’
se eminente cientista, merece respeito. é a questão mais importante de toda a
Este é um tema relevante na história ética” (5).
do pensamento ético. No século XVIII, O estudo que se ocupa das ações
Immanuel Kant, destacado filósofo da das pessoas, se o seu agir pode ser
moral, fez uma afirmação parecida: qualificado de bom ou de mau, é o
“Os seres racionais são chamados de conteúdo da ética prática. A esse res-
pessoas porque a sua natureza os di- peito, diz Aristóteles na Ética a
ferencia como fins em si mesmos, quer Nicômaco: “Não pesquisamos para
dizer, como algo que não pode ser usa- saber o que é a virtude, mas para ser-
do somente como meio e, portanto, li- mos bons” (6). Essa afirmação escla-
mita nesse sentido todo capricho e é rece que o interesse de Aristóteles nes-
39 um objeto de respeito” (2). O mesmo sa obra é basicamente prático.
As teorias éticas ou as escolas éti- fissional da medicina, da odontologia,
cas que apresentam a sua doutrina da enfermagem e da psicologia torna-
como uma série de normas para agir se impossível pautar a conduta ape-
bem ou de modo correto são chama- nas pelas normas do código profissio-
das de éticas normativas. Dentre os nal, pois alguns dos problemas que
diversos tipos de éticas normativas podem se apresentar sequer foram con-
cabe destacar a teoria do dever vin- templados nos mesmos. A reflexão so-
culado ao imperativo categórico de bre um conflito moral no exercício da
Immanuel Kant, e a teoria dos deveres profissão, realizada apenas sob o
num primeiro momento ou deveres referencial do código deontológico,
numa primeira consideração (prima será, provavelmente, uma visão mío-
facie duties), de William David Ross. pe e muito restrita da problemática éti-
Essa última teoria tem grande influên- ca nele contida.
cia na teoria conhecida como o Como foi colocado, a ética
principialismo, a qual aludiremos pos- normativa e a ética deontológica têm
teriormente. a ver com a ética prática. Devido aos
No seu dia-a-dia, muitos profis- avanços da tecnologia nos mais diver-
sionais, incluídos os do cuidado à saú- sos campos, faz-se necessária a dis-
de, pautam o seu agir profissional por cussão sobre a conveniência, uso ade-
normas ou regras provenientes dos quado, riscos e ameaças da mesma
chamados códigos deontológicos de para a humanidade, tanto de forma
uma determinada profissão ou, tam- geral como para o indivíduo em parti-
bém, embora não seja a melhor deno- cular. Hans Jonas situa muito bem esse
minação, códigos de ética ou códigos problema ao afirmar que estamos preci-
de ética profissional. O interesse pelos sando de um tratado tecnológico-ético
aspectos que concernem à boa condu- (tractatus technologico-ethicus) para
ta ou à má conduta no exercício de nossa civilização (7). Os princípios da
uma profissão foi expresso, ao longo ética sobre a conduta boa ou má, cer-
da história, sob a forma de orações, ta ou errada, justa ou injusta aplicam-
juramentos e códigos. Convém obser- se, na época atual, a problemas novos
var que a maioria dos códigos decorrentes do progresso tecnológico
deontológicos profissionais pretendi- e da nova sensibilidade ética da civili-
am, originariamente, manter e prote- zação e cultura contemporâneas. As-
ger o prestígio dos seus profissionais sim, por exemplo, podemos nos pergun-
perante a sociedade. Daí a conveni- tar: recomendaríamos a fecundação
ência de punir e excluir aqueles que, assistida para uma senhora de 60 anos
na sua conduta, desprestigiavam a ou mais? Podem os animais ser usa-
imagem da profissão. Ora, expressões dos indiscrimina-damente para qual-
como punir, disciplinar, fiscalizar, fa- quer tipo de experimentação? Devem
zer denúncia, freqüentes nos códigos ser colocados limites ao uso de mate-
profissionais, têm pouco a ver com o riais que poluem as águas, as florestas
linguajar da ética propriamente dita, e e a atmosfera, ameaçando a saúde das
muito a ver com assuntos do Código gerações futuras? Essas e outras per-
Penal. Por outro lado, no exercício pro- guntas semelhantes são próprias da 40
ética aplicada, que tem uma pluralidade laqueadura de trompas, aborto, deci-
de formas, por exemplo, entre ou- sões sobre o momento oportuno da
tras muitas, a Bioética e a Ecoética. morte e tantos outros. O pluralismo
Peter Singer caracteriza esses tipos ético dominante e a necessidade de
de éticas como o raciocínio ético uma teoria acessível e prática para a
aplicado a problemas concretos do solução de conflitos de caráter ético fez
dia-a-dia (8). desabrochar o principialismo como
Conforme afirmamos, a bioética ensinamento e método mais difundi-
integraliza ou completa a ética prática do e aceito para o estudo e solução
– que se ocupa do agir correto ou dos problemas éticos de caráter
bem-fazer, por oposição à ética teó- biomédico. O principialismo, de acor-
rica ocupada em conhecer, definir e do com a versão mais conhecida – que
explicitar – e abrange os problemas re- é a de Beauchamp e Childress, em sua
lacionados com a vida e a saúde, con- obra Principles of Biomedical Ethics (9)
figurando-se, portanto, como uma éti- – apresenta quatro princípios ou mo-
ca aplicada. Esse seria o significado delos basilares: o princípio do respeito
aqui dado ao vocábulo bioética, que é à autonomia, o princípio da não-
presentemente o de maior uso e acei- maleficência, o princípio da beneficên-
tação, estreitamente relacionado com cia e o princípio da justiça. Ocupar-
as ciências da saúde. O mesmo termo nos-emos a seguir dos princípios da
poderia ser usado num sentido bem beneficência e do princípio da não-
mais amplo, a conotação da palavra maleficência.
vida, de forma geral, que estender-se- Convém relembrar que bem e bom,
ia aos reinos mineral, vegetal e animal; mal e mau são conceitos pivotais da éti-
contudo, não é esse o significado utili- ca teórica. Além disso, agir bem, agir de
zado no presente capítulo. forma correta ou, usando as palavras de
A bioética, como reflexão de ca- Aristóteles acima mencionadas, “ser
ráter transdisciplinar, focalizada bons” é tarefa da ética prática. Ser um
prioritariamente no fenômeno vida bom profissional significa, antes de mais
humana ligada aos grandes avanços nada, saber interagir com o paciente,
da tecnologia, das ciências biomédicas quer dizer, tratá-lo dignamente no seu
e do cuidado à saúde de todas as pes- corpo e respeitar os seus valores, cren-
soas que dela precisam, independen- ças e desejos, o que torna o exercício
temente de sua condição social, é, profissional do cuidado à saúde uma ta-
hoje, objeto de atenção e diálogo nos refa difícil e às vezes conflitante. O pro-
mais diversos âmbitos. O pluralismo fissional de saúde faz juízos prognósti-
ético ou a diversidade de valores mo- cos, juízos diagnósticos, juízos
rais dominantes, inclusive nas pes- terapêuticos e não pode também se exi-
soas de um mesmo país – e o Brasil é mir de fazer juízos morais. Os problemas
exemplo típico de diversidade humanos não são nunca exclusivamen-
axiológica –, torna difícil a busca de te biológicos, mas também morais.
soluções harmônicas e generalizadas Quando o médico que relatou o caso
no que se refere a problemas sobre recomendou à mãe que continuasse o
41 doação de órgãos, transplantes, tratamento para seu câncer de mama,
além de isto ser necessário e bom para ram-se especialmente sobre o mesmo,
ela, o fez porque, prevendo a evolução entre eles cabe mencionar Shaftesbury,
da doença de seu paciente, o conside- Joseph Butler, Francis Hutcheson,
rou na sua totalidade e sabia que a pre- David Hume e Jeremy Bentham.
sença de sua mãe, com saúde, seria Butler, por exemplo, diz que existe no
muito importante, e fez isto porque seria homem, de forma prioritária, um prin-
bom, o que nessa situação é o tema da cípio natural de benevolência ou da
ética. Ao estimular o uso de suas roupas procura e realização do bem dos ou-
coloridas, suas idas à lojinha e ao pátio tros e que, do mesmo modo, temos pro-
do hospital, ao não interná-lo durante jo- pensão a cuidar da nossa própria vida,
gos do seu time e ao se preocupar com o saúde e bens particulares (10). O
desconforto perante os colegas pela pre- posicionamento desses autores é uma
sença visível da sonda nasogástrica, o crítica à teoria de Thomas Hobbes,
fez considerando-o uma pessoa doen- que apresentava a natureza humana
te. Assim, o dentista, o médico, a enfer- dominada pelas forças do egoísmo, da
meira e a psicóloga não tratam apenas autoconservação e da competição
de uma doença, mas sim de uma pes- (11). Ora, o egoísmo não é o único
soa adoentada, com as suas crenças e dinamismo natural do ser humano,
valores, que não podem ser ignorados. pois toda pessoa normal tem sentimen-
Este é o significado e referencial de “ho- tos para com os outros seres que com
mem todo”, citado por Jean Bernard no ela convivem, por exemplo, simpatia,
início desta seção, e também do “respei- gratidão, generosidade e benevolência,
to” mencionado por Immanuel Kant. No que impulsionam a prática do que é
exercício correto ou adequado da medi- bom para os outros e para o bem pú-
cina, odontologia, enfermagem e psico- blico. Essa teoria é denominada por
logia, portanto, é indispensável a dimen- Shaftesbury como senso moral ou sen-
são ética. Como veremos em continua- tido moral. Platão, Aristóteles e Kant
ção, a beneficiência e a não-male- outorgam um papel secundário à be-
ficência estão na base da mesma. nevolência, pois eles priorizam nas res-
pectivas teorias éticas o papel da ra-
zão; a benevolência, vinculada ao sen-
B eneficência e não-
maleficência como princípios
timento e às paixões, tem para todos
eles um protagonismo menor. Hume
estuda, com as características que lhe
são peculiares, a virtude natural da be-
Beneficência, no seu significado nevolência nas suas obras morais. Para
filosófico moral, quer dizer fazer o bem. ele, trata-se de uma tendência que pro-
A beneficência, conforme alguns dos move os interesses dos homens e pro-
autores representativos da filosofia cura a felicidade da sociedade (12). De
moral que usaram o termo, é uma ma- forma geral, a benevolência, forma
nifestação da benevolência. Benevolên- genérica da beneficência, de acordo
cia tem sido, porém, um conceito bem com os autores citados, tem as seguin-
mais utilizado. Os moralistas britâni- tes características: 1) é uma disposi-
cos dos séculos XVIII e XIX debruça- ção emotiva que tenta fazer bem aos 42
outros; 2) é uma qualidade boa do do os pais do menino não procuraram
caráter das pessoas, uma virtude; 3) é mais o médico, este, mesmo reconhe-
uma disposição para agir de forma cendo que a autonomia do paciente,
correta; 4) de forma geral, todos os representada neste caso pelos pais,
seres humanos normais a possuem. deveria ser respeitada, priorizou a be-
William David Ross, nas três pri- neficência, que considerou seu dever
meiras décadas do século XX, desen- primeiro, mesmo tendo que ameaçar
volve uma ética normativa conhecida com a força da lei. Outra situação é
como a ética dos deveres num primei- descrita no momento da amputação.
ro momento ou numa primeira consi- Sempre devemos, numa primeira con-
deração (prima facie duties). A ética sideração, não causar mal ao pacien-
normativa de Ross traz uma lista de te, como mutilá-lo. Mas, nesta situa-
deveres que têm a particularidade de ção, o dever mais importante foi man-
serem independentes uns dos outros. ter a vida, mesmo que com qualidade
São os deveres da fidelidade, repara- inferior.
ção, gratidão, justiça, beneficência, William K. Frankena, destaca-
aperfeiçoamento pessoal, não- do filósofo da moral desde o fim da
maleficência (13). O mesmo autor afir- Segunda Guerra Mundial até a dé-
ma que usa a palavra beneficência cada dos anos 80, representante do
preferindo-a a benevolência, pois, em normativismo e da metaética, o
sua opinião, aquela exprime melhor o que não é muito comum (14), sus-
caráter de dever. O dever num primei- tenta que há pelo menos dois prin-
ro momento ou numa primeira consi- cípios de moralidade, básicos e in-
deração não é um dever absoluto, mas dependentes: o da beneficência e
sim condicional. Trata-se de um dever o da justiça (15).
evidente e incontestável. Entretanto, Depois de todo o exposto, pode-
pode alguém, de repente, encontrar-se mos afirmar que temos os elementos
diante de dois deveres num primeiro constitutivos para a compreensão do
momento ou numa primeira conside- principialismo, de forma geral, e dos
ração ao mesmo tempo. Diante do di- seus princípios de beneficência e não-
lema, terá que decidir-se por um dos maleficência. Sintetizando, vale a pena
dois. Por esse motivo pode-se afirmar destacar: a beneficência, sob o nome
que o dever num primeiro momento ou de benevolência, é um dos elemen-
numa primeira consideração, ainda tos exponenciais da filosofia moral
que muito importante ou incontestá- britânica dos séculos XVIII e XIX e
vel, não tem o caráter de absoluto. Esse de grande repercussão na bioética
dever refere-se a uma situação moral principialista. Beneficência e não-
determinada, é um dever que deve ser maleficência são deveres independen-
cumprido, a não ser que entre em con- tes e condicionais (ou não-absolutos),
flito com um dever igual ou mais forte. conforme a classificação de Ross. Be-
O mesmo caso ou problema em ques- neficência e justiça são princípios da
tão poderia ser também considerado ética, fundamentais e independentes,
sob a influência ou condicionamento de acordo com a exposição de
43 de um outro tipo de dever. Assim, quan- Frankena.
Todas estas teorias entram na ges- válida, porém parcial, das responsa-
tação do denominado principialismo. bilidades das pessoas que o utilizam.
Passemos agora ao seu nascimento. Os Cabe destacar que o principialismo foi
anos de 1978 e 1979 são inesquecí- pensado e desenvolvido numa socie-
veis no tema que nos ocupa. Neles são dade caracterizada pelo pluralismo
publicados o Relatório Belmont moral e para a solução de problemas
(Belmont Report) e o livro de concretos. Não há, portanto, uma
Beauchamp e Childress (Principles of metafísica ou ontologia específicas
Biomedical Ethics). O Relatório permeando todos os princípios dessa
Belmont apresenta os princípios bási- teoria. Essa tem sido uma das críticas
cos que podem ajudar na solução dos mais comuns feitas à teoria
problemas éticos surgidos na pesqui- principialista. No principialismo as te-
sa com seres humanos. Esse relatório orias e regras formuladas têm o cará-
foi elaborado por onze profissionais de ter de normas num primeiro momento
áreas e disciplinas diversas, que na ou numa primeira consideração, o que
época, nos Estados Unidos, eram mem- abre espaço para outros princípios e
bros da Comissão Nacional para a soluções, omitindo o termo dever usa-
Proteção dos Sujeitos Humanos da do por Ross e substituindo-o por obri-
Pesquisa Biomédica. Os princípios gação. O principialismo poderá forne-
elencados são: 1) o princípio do res- cer razões e normas para agir que fa-
peito às pessoas; 2) o princípio da be- cilmente irão além dos sentimentos
neficência; 3) o princípio da justiça. morais individuais do profissional de
Por outro lado, Beauchamp e Childress saúde. Nenhum dos princípios, porém,
tentam apresentar uma teoria de prin- tem o peso suficiente para decidir
cípios básicos da moral alicerçada no: prioritariamente em todos os conflitos
1) princípio do respeito da autonomia; morais.
2) princípio da não-maleficência; 3) O princípio da beneficência tem
princípio da beneficência; 4) princí- como regra norteadora da prática mé-
pio da justiça. A obra tem como pano dica, odontológica, psicológica e da
de fundo as teorias apresentadas an- enfermagem, entre outras, o bem do
teriormente, às quais devem acrescen- paciente, o seu bem-estar e os seus
tar-se o utilitarismo e o deontologismo interesses, de acordo com os critérios
moral kantiano. O principialismo ou do bem fornecidos pela medicina,
bioética dos princípios tenta buscar odontologia, psicologia e enfermagem.
soluções para os dilemas éticos a par- Fundamenta-se nesse princípio a ima-
tir de uma perspectiva aceitável pelo gem que perdurou do médico ao lon-
conjunto das pessoas envolvidas no go da história, e que está fundada na
processo por meio dos princípios sele- tradição hipocrática já aludida: “usa-
cionados. O principialismo é uma éti- rei o tratamento para o bem dos enfer-
ca que não vai se adaptar a todas as mos, segundo minha capacidade e
teorias éticas nem ao modo de apreci- juízo, mas nunca para fazer o mal e a
ar o que é bom e ruim de cada uma injustiça” (16). Num contexto diferen-
das pessoas de nossa sociedade. Todo te, Epicuro, filósofo da moral dos sé-
princípio apresenta uma perspectiva culos IV e III a.C., afirma: “não presta 44
a palavra do filósofo que não serve enferma em perigo” (19). Isso confir-
para curar as doenças da alma” (17). ma mais uma vez, no exercício das pro-
Cabe esclarecer que o termo filósofo fissões em questão, a afirmação de
refere-se aqui ao homem culto ou sá- Francis Bacon sobre “a disposição ou
bio. A frase poderia, hoje, aplicar-se, esforço ativo para promover a felici-
de forma restrita, aos profissionais que dade e bem-estar daqueles que nos
utilizam a palavra como arte e instru- rodeiam” (20), característica geral de
mento de terapia e, de forma ampla, a todo ser humano normal.
toda pessoa medianamente educada A beneficência no seu sentido es-
cuja palavra, no seu relacionamento trito deve ser entendida, conforme o
com pessoas afetadas por um proble- Relatório Belmont, como uma dupla
ma psíquico ou somático, deveria mi- obrigação, primeiramente a de não
nimamente aliviar ou suavizar os trans- causar danos e, em segundo lugar, a
tornos que facilmente traumatizam ou de maximizar o número de possíveis
desequilibram no dia-a-dia. A história benefícios e minimizar os prejuízos
da ética, que tem acompanhado a prá- (21). No que diz respeito à primeira
tica médica ao longo dos séculos, é em obrigação, o tema será tratado mais
alguma medida exercício da beneficên- adiante. É importante frisar, aqui, uma
cia. Edmund Pellegrino e David divergência no principialismo. No Re-
Thomasma não ocultam essa marca latório Belmont, não causar danos in-
nem sequer na medicina contemporâ- tegra o princípio da beneficência, en-
nea e identificam, portanto, a prática quanto que para Beauchamp e
médica e o princípio da beneficência: Childress, seguindo o modelo de Ross,
“a medicina como atividade humana não causar danos é um princípio dife-
é por necessidade uma forma de be- rente do princípio da beneficência.
neficência” (18). O princípio da bene- Cabe observar a influência da ética
ficência tenta, num primeiro momen- utilitarista, também chamada de arit-
to, a promoção da saúde e a preven- mética moral, na exposição da segun-
ção da doença e, em segundo lugar, da obrigação. No Relatório Belmont,
pesa os bens e os males buscando a focalizado na proteção dos seres hu-
prevalência dos primeiros. O exercício manos na pesquisa médica e na pes-
profissional das pessoas aqui já nome- quisa sobre a conduta, as obrigações
adas tem uma finalidade moral, implí- de beneficência são próprias dos pes-
cita em todo o seu agir, entendida prin- quisadores em particular e da socie-
cipalmente em termos de beneficência. dade de forma geral, pois esta deve
Esses profissionais procuram o bem do zelar sobre os riscos e benefícios de-
paciente conforme o que a medicina, correntes das pesquisas sobre a huma-
a odontologia, a enfermagem e a psi- nidade.
cologia entendem que pode ser bom no É evidente que o médico e demais
caso ou situação apresentada. profissionais de saúde não podem
Bernard ratifica esse posicionamento exercer o princípio da beneficência de
dizendo: “todo ato terapêutico, toda modo absoluto. A beneficência tem
decisão, tem como único alvo propor- também os seus limites – o primeiro
45 cionar um auxílio eficaz a uma pessoa dos quais seria a dignidade individual
intrínseca a todo ser humano. Nos mo- de deva sempre anular a decisão do
mentos finais do caso relatado, o mé- paciente, sendo essa uma das carac-
dico e os pais, vendo que inexistiam terísticas dos deveres num primeiro
quaisquer possibilidades de recupera- momento ou deveres numa primeira
ção ou manutenção da vida do paci- consideração. Essa é uma das razões
ente, por inúteis e fúteis, decidiram por pelas quais foi afirmado que eles não
suspendê-las. Assim, a decisão ferre- são absolutos, mas sim condicionais
nha de manter viva uma pessoa por ou dependentes da situação ou ponto
todos os meios cabíveis, quando os de vista com que são afirmados.
seus parâmetros vitais demonstram a Não foi fácil para o médico de-
inutilidade e futilidade do tratamento, cidir o que deveria ser feito em cada
pois não existem possibilidades de uma das situações apresentadas.
melhora ou de recuperação, mostrou- E.M. nunca ouviu de seu médico que
se correta. Da mesma forma, o bem iria morrer logo; se o tivesse ouvido,
geral da humanidade não deveria ser isso não lhe traria nenhum benefício,
aduzido como justificativa de uma pes- nem a ele nem à sua família, e certa-
quisa que desrespeitasse ou abusasse mente isto o teria deixado muito tris-
de uma vida humana, como poderia te. É preciso aprender a tomar deci-
acontecer num paciente terminal ou sões de caráter profissional e moral
num feto. O transplante de medula para em situações de incerteza. Há uma
E.M., que vinha se encaminhando ao série de situações na prática médica
estado de paciente terminal, mesmo nas quais o princípio da beneficên-
com poucas possibilidades terapêuti- cia deve ser aplicado com cautela
cas e curativas, poderia ter sido consi- para não prejudicar o paciente ou as
derado pelos pais, pelo médico, sem- pessoas com ele relacionadas. Assim:
pre à procura de novos recursos, como no caso de um tratamento paliativo,
uma contribuição à sociedade, ofere- quando e como dizer a verdade? Até
cendo o menino como sujeito de pes- quando aliviar o sofrimento? Em que
quisa. Entretanto, não o fizeram por- medida a autonomia do paciente está
que, para ele, os riscos seriam muito sendo respeitada? No caso da recusa
maiores do que os possíveis benefícios, do tratamento pelo paciente, deve o
com custos muito elevados para a fa- médico intervir quando as conseqü-
mília, e decidiram respeitá-lo como ências serão mortais para o pacien-
pessoa humana e não apenas como te, como na necessidade de transfu-
objeto de pesquisa. É difícil poder são de uma Testemunha de Jeová?
mostrar onde fica o limite entre a be- O que fazer perante um paciente
neficência como obrigação ou dever e adulto e incapaz? E no caso de um
a beneficiência como ideal ético que menor acompanhado pelos pais? A
deve animar a consciência moral de beneficência, nesses casos, deveria
qualquer profissional. Além disso, ain- tentar esgotar todos os recursos, en-
da que o princípio da beneficência seja tre outros a troca de médico e o uso
importantíssimo, ele próprio torna-se de outras medidas terapêuticas; no
incapaz de demonstrar que a decisão caso de terapias gênicas seria acon-
do médico ou do profissional de saú- selhável o uso de uma terapia que 46
comporta riscos desconhecidos e pro- danos e retirar os danos ocasionados.
vavelmente desproporcionados com Beauchamp e Childress adotam os ele-
respeito aos benefícios esperados? mentos de Frankena e os reclassificam
Qual seria a responsabilidade com as na forma a seguir: não-maleficência ou
gerações futuras? Deveriam ser as- a obrigação de não causar danos, e
sumidos os riscos no caso do trata- beneficência ou a obrigação de preve-
mento de uma doença grave? Cabe nir danos, retirar danos e promover o
observar, porém, que o princípio da bem. As exigências mais comuns da
beneficência pode motivar e justifi- lei e da moralidade não consistem na
car o uso do screening genético em prestação de serviços senão em restri-
benefício de uma determinada comuni- ções, expressas geralmente de forma ne-
dade, ou de pessoas de uma determina- gativa, por exemplo, não roubar. No
da região ou país. Dizer a verdade ao mais das vezes, o princípio de não-
paciente ou aos seus familiares constitui maleficência envolve abstenção, enquan-
uma ameaça ou uma ajuda à autono- to o princípio da beneficência requer
mia do paciente? Sob o aspecto da be- ação. O princípio de não-maleficência é
neficência, de forma geral, dizer a ver- devido a todas as pessoas, enquanto que
dade contribuiria para uma tomada de o princípio da beneficência, na prática,
decisões devidamente fundamentada no é menos abrangente.
que se refere ao tratamento, à adminis- Nem sempre o princípio da não-
tração dos bens, às relações humanas, maleficência é entendido correta-
ao sentido da vida e possíveis crenças mente pois a sua prioridade pode ser
religiosas. G. Hottois e M. H. Parizeau, questionada. Conforme Raanan
na sua obra Les Mots de la Bioéthique Gillon (24), a prática da medicina
(22), são mais prolixos na exemplificação pode, às vezes, causar danos para a
de casos e situações sobre esse tema que obtenção de um benefício maior. Os
poderia prolongar-se quase indefinida- próprios pacientes seriam os primei-
mente. ros a questionar a prioridade moral
da beneficência. E.M. teve o pé am-
putado para salvar-lhe a vida. Um
O princípio da não-
maleficência
paciente com melanoma numa das
mãos poderá perder o braço para
salvar a vida. Uma paciente com
doença de Hodgkin deverá subme-
As origens desse princípio remon- ter-se a diversos riscos, incluindo
tam também à tradição hipocrática: possivelmente a esterilidade, para ter
“cria o hábito de duas coisas: socor- uma chance razoável de sobrevivên-
rer ou, ao menos, não causar danos” cia. É evidente que o interesse prin-
(23). Esse texto não diz: primeiramen- cipal não é nem cortar o braço nem
te ou acima de tudo não causar danos a esterilidade, mas a saúde geral.
(primum non nocere), que é a tradu- Esses são casos típicos da denomi-
ção da forma latina posterior. Segun- nada teoria moral do duplo efeito.
do Frankena, o princípio da beneficên- Recomenda-se, portanto, nos diver-
47 cia requer não causar danos, prevenir sos casos, examinar conjuntamente
os princípios da beneficência e da lho de colegas inferiores ou incompeten-
não-maleficência. Não sendo assim, tes, mesmo que o bem-estar dos possí-
os médicos recusar-se-iam a intervir veis pacientes o exigisse.
sempre que houvesse um risco ame-
açador grave. O nosso objetivo não
é minimizar a importância do prin-
cípio da não-maleficência. Apenas, O paternalismo
como já foi observado quando da
exposição do princípio da beneficên- Tratando do princípio da benefi-
cia, indicar que o princípio da não- cência e dos seus limites, afirmávamos
maleficência não tem caráter abso- que o profissional de saúde não deve-
luto e que, conseqüentemente, nem ria exercer o princípio da beneficên-
sempre terá prioridade em todos os cia de modo absoluto, pois esse tipo
conflitos. de conduta aniquilaria a manifestação
No caso de ter que tirar dúvidas da vontade, dos desejos e dos senti-
ou ter que esclarecer o princípio de mentos do paciente. Como também foi
não-maleficência, seria bom conside- colocado, o verdadeiro ato médico é
rar o princípio do respeito devido a resultado da interação entre o médico
todo ser humano, como sublinhávamos e o paciente. Ora, a ética médica tra-
no início deste capítulo. A dor ou dano dicional tem pautado seu agir pelos tri-
causado a uma vida humana só pode- lhos da beneficência e com alguma fre-
ria ser justificado, pelo profissional de qüência tem sido chamada de
saúde, no caso de ser o próprio paciente paternalista. O paternalismo não é uma
a primeira pessoa a ser beneficiada. exclusividade da medicina. É possível
Devem passar a segundo ou terceiro falar também de um paternalismo eco-
lugar os benefícios para outros, como nômico, governamental, jurídico,
a família, outros pacientes ou a socie- laboralista, familiar e pedagógico, en-
dade de forma geral. tre outros. Evitando aqui qualquer co-
Convém observar que o princípio mentário sobre a propriedade ou im-
“não causar danos” nem sempre tem sido propriedade do termo em questão sob
interpretado da mesma forma, mudan- o aspecto do gênero, devemos convir
do de acordo com as circunstâncias his- que o paternalismo manifesta em to-
tóricas e as instituições. Tem aconteci- dos esses tipos mencionados algumas
do, às vezes, que o interesse primeiro dos características comuns: superproteção,
profissionais de saúde tem sido não cau- autoritarismo, inibição, infantilismo,
sar danos à profissão para manter a boa conduzindo todas elas a uma situação
imagem da mesma perante a socieda- anormal. Franklin Leopoldo e Silva (26)
de, conforme citado anteriormente, ao fala no paternalismo como resultado
falarmos dos códigos deontológicos ou do caráter assimétrico da relação mé-
códigos de ética de uma determinada dico-paciente, caracterizada pela fra-
profissão (25). Além disso, não é despre- gilidade do paciente e pela força do
zível a indicação do Código de Ética médico. Nessa relação desproporcio-
Médica de 1847, da Associação Médica nada, o cuidado prestado anula a pes-
Americana, que proibia criticar o traba- soa que é objeto do mesmo, dando-se 48
uma passagem desapercebida do sa- so favorecer ninguém, excetuando as
ber ao poder, de conseqüências lamen- crianças e os incompetentes, de acor-
táveis, pois a pessoa chega a ser apa- do com o meu conceito de felicidade,
gada como individualidade singular. mas de acordo com o conceito de feli-
Conforme Beauchamp e Childress, é cidade daquele a quem tento benefici-
possível distinguir entre um ar. O problema, na nossa sociedade
paternalismo forte exercido sobre pes- brasileira, como víamos há pouco, é
soas autônomas, passando por cima que há pessoas com enorme dificulda-
de sua autonomia e, conseqüentemen- de para poder discernir sobre o seu
te, desconsiderando-as, e um bem e a sua saúde. Sem interesses
paternalismo fraco exercido sobre pes- paternalistas, mas sim de solidarieda-
soas incapazes sob o ponto de vista de, o verdadeiro profissional de saúde
jurídico ou pessoas incompetentes sob não pode deixar de ajudar as pessoas
o ponto de vista moral. A verdade é menos favorecidas, contribuindo assim
que é difícil traçar uma linha divisória para o bom exercício da cidadania e
entre os dois tipos mencionados. A da profissão.
sociedade brasileira, devido ao consi-
derável número de pessoas com nível
de educação insuficiente ou baixo, fa-
cilita e até certo ponto justifica a práti- C onclusão
ca do paternalismo no cuidado à saú-
de. Eliane Azevêdo diz acertadamente Se a pessoa está inclinada a fa-
nesse sentido: “Como levar a idéia de zer o que é bom e a promover o bem-
autonomia e de integridade a quem estar dos outros, ela mesma deveria
nunca teve a oportunidade de sentir- tentar garantir essa sua capacidade de
se um ser com autonomia para admi- agir corretamente. Fazer uma boa op-
tir sequer sua própria fome?” (27). ção pressupõe conhecer o que é certo
Há casos em que o paternalismo e realizá-lo. Saber o que é certo e agir
é justificável e, por incrível que pare- de acordo com esse princípio é um ideal
ça, a única forma de atendimento, pró- para todo ser humano. Ter essa dispo-
prio ou característico de uma socieda- sição de saber o que é bom e levá-lo à
de em vias de desenvolvimento. prática é possuir a virtude que
O paternalismo deve ser contem- Aristóteles chama de Phronesis (28) e
plado e avaliado por meio da luz irra- que os autores latinos traduziram por
diada pelos princípios da beneficência Prudência. A Prudência, no seu signi-
e da autonomia; aceitar um só desses ficado verdadeiro e originário, é a vir-
princípios produz ofuscação. tude que facilita a escolha dos meios
Friedrich Nietzsche diz que toda certos para um bom resultado. A
ajuda é um insulto. Não concordamos Phronesis ou Prudência pauta o agir
com o enunciado desse filósofo. O in- pelo princípio da busca do que é bom
sulto dar-se-ia no caso de ajudar ou e pela recusa do que é mau. Fazer
assistir um paciente autônomo, contra- juízos de caráter moral é uma tarefa
riando sua vontade e desejos. Confor- que não escapa ao profissional de saú-
49 me a teoria moral kantiana, não pos- de. Um juízo clínico é, antes de mais
nada, um exercício da Phronesis (29), 6. Aristotelis. Ethica Nicomachea. Oxford:
quer dizer, o modo eticamente correto Oxford University Press, 1979: 1103b.
de exercer a profissão buscando o bem 7. J o n a s H . E l p r i n c i p i o d e
do paciente. Isso requer o respeito da responsabilidad: ensayo de una éti-
sua dignidade, o reconhecimento dos ca para la civilización tecnológica.
seus valores e sentimentos morais e re- Barcelona: Herder, 1995: 17.
ligiosos. Beneficência e não-malefi-
8. Singer P. A companion to ethics.
cência são dois princípios que podem
Cambridge, Mass.: Blackwell, 1991: xii.
pautar a conduta do profissional de
saúde e ajudá-lo em situações de con- 9. Beauchamp TL, Childress JF. Principles
flito. Contudo, nenhum desses princí- of biomedical ethics. 4rd.ed. New York:
pios tem caráter absoluto. A aplicação Oxford University Press, 1994.
eticamente correta dos princípios da
10. Butler J. Upon the social nature of man.
beneficência e da não-maleficência é In: Raphael DD, editor. British moralists
o resultado do exercício da Phronesis 1650-1800. Indianapolis: Hackett
ou Prudência, que sempre deveria Publishing Company, 1991. v.1: 338.
acompanhar toda atividade e decisão
11. Hobbes T. Leviatán. Madrid: Editora
do profissional de saúde.
Nacional, 1983: 223-7.
O princípio da beneficência
numa sociedade em vias de desenvol- 12. Hume D. Enquiries: an enquiry
vimento será, provavelmente, o prin- concerning the principles of morals.
cípio que vai orientar as atividades e Oxford: Clarendon Press, 1989: 181.
decisões do profissional de saúde como
Ross WD. Lo correcto y lo bueno.
cidadão ciente do seu papel e realiza- Salamanca: Ediciones Sígueme, 1994: 36.
ção pessoal e social.
13. Darwall S. Learning from Frankena: a
philosophical remembrance. Ethics
1997;107:685-705.
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2. Kant I. Grundlegung zur metaphysik der Cambridge: Harvard University Press;
sitten. Hamburg: Verlag von Felix Meiner, London: William Heinemann, 1984:
1965: 51 298-9
21. Hottois G, Parizeau MH. Les mots de la 26. Azevêdo E. Debate sobre bioética deve
bioéthique. Bruxelles: De Boeck abranger efeito da miséria. Folha de S.
Université, 1993: 89,122,205. Paulo 1994 out 16:5.
51
52
Daniel Romero Muñoz
Paulo Antonio Carvalho Fortes
O Princípio da Autonomia
e o Consentimento Livre
e Esclarecido
F undamentos da autonomia
a autonomia individual seja total, com-
pleta. Autonomia completa é um ideal.
Longe de se imaginar que a liberdade
O princípio da autonomia não individual possa ser total, que não exis-
deve ser confundido com o princípio tam nas relações sociais forte grau de
do respeito da autonomia de outra controle, de condicionantes e restri-
pessoa. Respeitar a autonomia é re- ções à ação individual. Mas, se o
conhecer que ao indivíduo cabe pos- homem não é um ser totalmente au-
suir certos pontos de vista e que é ele tônomo isto necessariamente não sig-
quem deve deliberar e tomar decisões nifica que sua vida esteja totalmente
segundo seu próprio plano de vida e determinada por emoções, fatores
ação, embasado em crenças, aspira- econômicos e sociais ou influências
ções e valores próprios, mesmo quan- religiosas. Apesar de todos os
do divirjam daqueles dominantes na condicionantes, o ser humano pode
sociedade ou daqueles aceitos pelos se mover dentro de uma margem pró-
profissionais de saúde. O respeito à pria de decisão e ação. 58
Como afirma Chaui (11), a deli- tomadas. Nas situações de autonomia
beração, no campo da ética, se faz reduzida cabe a terceiros, familiares ou
dentro do possível. Se, por vezes, mesmo aos profissionais de saúde de-
não podemos escolher o que nos cidirem pela pessoa não-autônoma.
acontece, podemos escolher o que O conceito legal de competência
fazer diante da situação que nos foi é intimamente relacionado ao concei-
apresentada. to de autonomia. Não costumamos
Enquanto Immanuel Kant aceita questionar a competência de decisão
a autonomia como manifestação da de um paciente quando sua decisão
vontade, John Stuart Mill, um dos pais concorda com nossas escolhas. Ao
da corrente ética utilitarista, preferia contrário, somente quando a sua de-
considerá-la como ação e pensamen- cisão conflita com a nossa, como no
to. Argumentava que o controle social caso de recusa a se submeter a um
e político sobre as pessoas seria per- procedimento que indicamos, é que a
missível e defensável quando fosse ne- questão da validade da decisão é ques-
cessário prevenir danos a outros in- tionada. O julgamento de competên-
divíduos ou à coletividade. Aos cida- cia-incompetência de uma pessoa
dãos é permitido que desenvolvam seu deve ser dirigido a cada ação parti-
potencial de acordo com as suas con- cular e não a todas as decisões que a
vicções, desde que não interfiram com pessoa deva tomar em sua vida, mes-
a liberdade dos outros. mo com aqueles indivíduos legalmente
O ser humano não nasce autôno- considerados como incompetentes.
mo, torna-se autônomo, e para isto Concordamos com Culver (12), ao afir-
contribuem variáveis estruturais bioló- mar que todos os pacientes devem ser
gicas, psíquicas e socioculturais. Po- julgados capazes até prova de sua in-
rém, existem pessoas que, de forma competência, de que sua autonomia
transitória ou permanente, têm sua está reduzida.
autonomia reduzida, como as crianças, A pessoa acometida por transtor-
os deficientes mentais, as pessoas em nos mentais, assim como os indivídu-
estado de agudização de transtornos os retidos em estabelecimentos hospi-
mentais, indivíduos sob intoxicação talares ou de custódia, não devem ser
exógena, sob efeito de drogas, em es- vistos como totalmente afetados em
tado de coma, etc. sua capacidade decisional. O simples
Uma pessoa autônoma pode agir fato da existência do diagnóstico de
não-autonomamente em determinadas uma doença mental não implica que
circunstâncias. Por isso, a avaliação de ocorra incapacidade do indivíduo
sua livre manifestação decisória é uma para todas as decisões a serem toma-
das mais complexas questões éticas das com respeito à sua saúde ou vida.
impostas aos profissionais de saúde. No âmbito legal, presume-se que um
Desordens emocionais ou mentais, e adulto é competente até que o Poder
mesmo alterações físicas, podem redu- Judiciário o considere incompetente
zir a autonomia do paciente, podendo e restrinja seus direitos civis, mas no
comprometer a apreciação e a campo da ética raramente se julga uma
59 racionalidade das decisões a serem pessoa incompetente com respeito a
todas as esferas de sua vida. Mesmo incentivo ao individualismo que seja
os indivíduos considerados incapa- insensível aos outros seres humanos,
zes para certas decisões ou campos dificultando a existência de solidarie-
de atuação, são competentes para de- dade entre as pessoas. Autonomia
cidir em outras situações (13). não significa individualismo, pois o
Os grupos socioeconomicamente homem vive em sociedade e a pró-
vulneráveis, os mais desprovidos de re- pria ética é um dos mecanismos de
cursos, têm menos alternativas de esco- regulação das relações entre os seres
lha em suas vidas, o que afeta o desen- humanos que visa garantir a coesão
volvimento de seu potencial de ampla social e harmonizar interesses indi-
autonomia mas não significa que devam viduais e coletivos. A socialização do
ser vistos como pessoas que não podem homem, desde a infância, lhe dá
decidir autonomamente, que os médicos condicionantes morais, mas uma so-
devam decidir por eles. ciedade livre estimula que as auto-
Cabe particularizar a situação da nomias individuais sejam desenvol-
autonomia dos adolescentes. O Códi- vidas, que se possa escolher entre as
go de Ética dos médicos incorporou a diversas morais existentes em cada
noção da maioridade sanitária, sem momento histórico vivido.
pronunciá-la expressamente, pois pos- A autonomia não deve ser con-
sibilita aos profissionais ocultarem vertida em direito absoluto; seus limi-
informações a respeito de pacientes tes devem ser dados pelo respeito à
menores de idade, a seus pais ou res- dignidade e à liberdade dos outros e
ponsáveis legais, quando julgarem que da coletividade. A decisão ou ação de
os adolescentes tenham competência pessoa, mesmo que autônoma, que
para decidir a partir de uma avalia- possa causar dano a outra(s) pessoa(s)
ção adequada de seus problemas de ou à saúde pública poderá não ser
saúde. Diz o art. 103 do CEM: “É ve- validada eticamente.
dado ao médico revelar segredo pro- Se a garantia do princípio da au-
fissional referente a paciente menor de tonomia requer o respeito a padrões
idade, inclusive a seus pais ou respon- morais que não sejam convencionais,
sáveis legais, desde que o menor te- padrões que não são majoritários na
nha capacidade de avaliar seu proble- sociedade, isto não significa a defesa
ma e de conduzir-se por seus próprios de uma ética sem limites. A opção éti-
meios para solucioná-lo, salvo quan- ca para ser validada deve, segundo
do a não revelação possa acarretar Singer (14), ter justificativas que de-
danos ao paciente.” monstrem que ela não é exclusivamen-
te pessoal. É necessário que os princí-
pios defendidos estejam em conformi-
L imites à autonomia
dade com princípios mais amplos, que
tendam a ser universalizáveis. Se a éti-
ca que defendemos fundamenta-se no
Há um temor que a absolu- indivíduo, sua liberdade deve ter como
tização da autonomia individual gere fronteiras a dignidade e a liberdade
um culto ao privativismo moral, um dos outros seres humanos. 60
Deve-se ainda salientar que a bem-estar, alegria, necessidades, inte-
autonomia do paciente, não sendo um resses ou valores da pessoa que está
direito moral absoluto, poderá vir a se sendo tratada. O paternalismo existen-
confrontar com a do profissional de te na interação médico-paciente é con-
saúde. Este pode, por razões éticas, a cebido como sendo uma característi-
denominada cláusula de consciência, ca relacional básica, que aliás distin-
se opor aos desejos do paciente de gue o contrato médico de outras rela-
realizar certos procedimentos, tais ções contratuais. Por vezes, o
como técnicas de reprodução assisti- paternalismo médico é reconhecido
da, eutanásia ou aborto, mesmo que sob a denominação de privilégio
haja amparo legal ou deontológico terapêutico.
para tais ações. As condutas paternalistas na prá-
A Constituição brasileira asse- tica médica originam-se dos fundamen-
gura o direito à autonomia a todos tos hipocráticos, para quem o médico
os cidadãos ao incluir a determina- deveria aplicar “os regimes para o bem
ção de que ninguém pode ser obri- dos doentes, segundo seu saber e ra-
gado a fazer ou a deixar de fazer al- zão (...)”, não concedendo lugar à au-
guma coisa senão em virtude de lei. tonomia da pessoa que tratava. A
E o Código Penal Brasileiro exige o ação seria feita com base na opinião
respeito a esse direito ao punir, em exclusiva do médico e não da vontade
seu artigo 146, aquele que constran- autônoma do paciente. Fundamenta-
ger outrem a fazer o que a lei não se na tese do predomínio, em determi-
manda ou a deixar de fazer o que a nadas circunstâncias, avaliadas e con-
lei manda. Essa nossa legislação pe- sideradas pelo próprio médico, do prin-
nal coloca, porém, uma exceção à cípio de não causar dano, que em ca-
autonomia: quando se tratar de caso sos específicos sobrepuja e pode mes-
de iminente perigo de vida ou para mo se opor ao princípio da autonomia
evitar suicídio, o constrangimento da do indivíduo.
vítima deixa de ser crime. Em outras Segundo Culver & Gert (15), para
palavras, a nossa legislação garante que um comportamento seja adequa-
ao cidadão o direito à vida, mas não do à noção de privilégio terapêutico é
sobre a vida; ele tem plena autono- necessário que se guie por certas pre-
mia para viver, mas não para mor- missas, que se evidenciam no relacio-
rer. namento médico-paciente. O médico
deve acreditar que sua ação é benéfi-
ca a outra pessoa – e não a ele próprio
P aternalismo
ou terceiros – e que sua ação não en-
volva uma violação de regra moral.
Deverá, também, não ter no passado,
Pode-se conceituar paternalismo no presente ou mesmo em futuro pró-
como a interferência do profissional de ximo o consentimento da outra pessoa
saúde sobre a vontade de pessoa au- que deve ser competente para tomar
tônoma, mediante ação justificada por decisões. Esta forma de ver a relação
61 razões referidas, exclusivamente, ao profissional de saúde-paciente legiti-
ma, por exemplo, que se maneje qua- a pessoa não tem condições de mani-
litativa ou quantitativamente as infor- festar livre e esclarecidamente sua von-
mações a serem dadas ao doente so- tade autônoma. Porém, somos contrá-
bre seu diagnóstico e prognóstico, por rios a que os médicos decidam, diante
vezes isentando-o da obrigação de de uma pessoa autônoma, o que é bom
revelá-las quando considere que pos- para ela, o que deverá ser seu bem-
sam conduzir a uma deterioração do estar, sua qualidade de vida, fundamen-
estado físico ou psíquico do paciente. tados em seus próprios valores (dos
O paternalismo é defendido como profissionais). É preciso não esquecer
ação necessária empreendida pelo que, muitas vezes, médicos e pacien-
médico no interesse daquele a quem tes provêm de classes sociais distintas,
trata. Konrad (16) considera que a com distintos valores socioculturais,
conduta paternalista acabaria por ter valores esses que podem entrar em
um fim restaurador da autonomia in- choque nas relações estabelecidas en-
dividual, de condições adequadas de tre as duas partes.
compreensão, deliberação e tomada
de decisão. Logo, o ato paternalista
seria uma resposta a incapacidades,
e não uma negação dos direitos das A medicina compartilhada
pessoas.
O Código de Ética Médica brasi- A postura do médico na relação
leiro, apesar de dispor sobre a com o paciente, dentro dos princípios
obrigatoriedade do recolhimento do bioéticos, é a de consultor, conselhei-
consentimento para validar o ato mé- ro, parceiro, companheiro e amigo,
dico, de certa maneira aceita atos com maior ou menor predomínio de
paternalistas pois permite que, em al- um desses papéis na dependência das
gumas circustâncias, sejam ocultadas características de personalidade do
informações que possam provocar da- paciente e do próprio médico. É um
nos psicológicos ao paciente, apesar relacionamento muito similar ao do
de observar ser mandatório que seja advogado e seu cliente: o médico é o
comunicado seu responsável legal profissional que eu chamo, para estar
(CEM, art.59). ao meu lado e me defender, quando
Temos posição contrária à prepon- me sinto ameaçado em minha saúde.
derância, em nosso meio, da utiliza- Como consultor, pelos seus conheci-
ção de condutas paternalistas que mentos pode esclarecer-me sobre as
muitas vezes não têm nada de ameaças à minha saúde, sobre os
paternalistas, não ocorrem no interes- modos possíveis de combatê-las, os
se da pessoa assistida, mas são fruto riscos e benefícios esperados. Como
do autoritarismo de nossa sociedade, conselheiro e profissional capaz, sei
expresso nas relações do sistema de que indicará e aplicará os recursos e
saúde. Entendemos que em situações técnicas mais adequados e, como co-
em que a autonomia está reduzida nhecedor que é dos avanços da ciên-
devam prevalecer os princípios da be- cia médica, poderá instruir-me sobre
neficência e da não-maleficência, pois a melhor estratégia que, em sua opi- 62
nião, deveria ser adotada. Como par- adotar aquela que o médico achar
ceiro, se disporá a agir (por exemplo, mais adequada, ele já decidiu e por-
realizar uma cirurgia ou outro proce- tanto está exercendo sua autonomia;
dimento) ou a indicar o profissional ou forçá-lo a tomar qualquer decisão di-
serviço capaz de fazê-lo. Como com- ferente da que escolheu significa
panheiro, sei que posso contar com seu constrangê-lo e agir com autoritarismo.
auxílio sempre que precisar. Mas, como Em outras palavras, renunciar à auto-
herdeiro da cultura latina, gostaria nomia também é exercer seu direito à
mesmo era de ter nele um amigo! Um autonomia e impor a autonomia ao
amigo que desse o melhor de seu co- paciente é autoritarismo.
nhecimento, experiência e dedicação
ao assistir-me nas decisões a serem
tomadas, mas respeitasse minha au-
tonomia para decidir o que é melhor C onsentimento livre e
esclarecido
para mim; o papel do amigo é de estar
junto e não de abandonar o paciente,
na solidão do seu sofrimento, para que A pessoa autônoma tem o direito
decida sozinho. E lá no fundo de meu de consentir ou recusar propostas de
ser ainda esperaria dele algo mais: que, caráter preventivo, diagnóstico ou
no momento da minha aflição, quan- terapêutico que afetem ou venham a
do a dor turvar meu pensamento e a afetar sua integridade físico-psíquica
desesperança me furtar o desejo de ou social.
agir, não tivesse de seus lábios apenas A noção do consentimento na
uma sentença fria a massacrar meu atividade médica é fruto de posições
anseio de vida, mas encontrasse um filosóficas relativas à autonomia do
artista sensível, experiente na arte de ser humano quando de decisões to-
curar, que saberia sedar meu sofrimen- madas em tribunais. Na esfera jurí-
to com aquele “remedinho verde”, da dica, a primeira decisão que tratou
cor da Medicina, que só o médico – da questão parece ter sido o caso
com todas as letras maiúsculas – sabe Slater versus Baker & Staplenton,
aplicar” (17). julgado em 1767 na Inglaterra: dois
Há ainda um detalhe importante médicos foram considerados culpa-
a ser lembrado: alguns profissionais dos por não terem obtido o consenti-
aderem tão intensamente ao princípio mento do paciente quando da reali-
da autonomia que não aceitam que o zação de cirurgia de membro inferi-
paciente diga: – Doutor, eu faço o que or que resultou em amputação. Deve-
o senhor achar melhor! E acabam im- se lembrar que naquela época o con-
pondo a ele, tiranicamente, a “auto- sentimento já era demandado não só
nomia” que ele não deseja, isto é, as por motivos éticos e legais mas tam-
decisões que ele se recusa a tomar. bém pela necessidade da cooperação
A nosso ver, se o paciente foi es- do paciente na realização do ato ci-
clarecido pelo médico e opta pela pos- rúrgico, pois ainda não eram sufici-
tura de não escolher nenhuma das al- entemente desenvolvidas as práticas
63 ternativas propostas, mas sim a de anestésicas.
O processo Schloendorff versus parte dos operadores, porque não ha-
Society of New York Hospitals, do iní- viam revelado ao enfermo as possibi-
cio deste século, foi o responsável pelo lidades de riscos da técnica emprega-
desenvolvimento da reflexão doutriná- da, e por isso cabia a sanção
ria nos meios jurídicos norte-america- indenizatória (18).
nos. Refere-se à senhora que, em 1908, Porém, deve-se ressaltar que do
dirigindo-se ao New York Hospital, ponto de vista ético a noção do con-
com queixas abdominais, foi examina- sentimento esclarecido pode diferir da
da por médico que diagnosticou a exis- forma adotada pelos tribunais. No Bra-
tência de tumor benigno instalado no sil, o não recolhimento do consentimen-
útero, para o qual indicou ser neces- to da pessoa é tipificado como ilícito
sária a realização de procedimento ci- penal apenas quando for ocasionado
rúrgico. A paciente submeteu-se à ci- por uma conduta dolosa, de acordo
rurgia, tendo seu útero extirpado. Mas com o art.146, § 3º, I, do Código Pe-
pouco tempo após a realização do ato, nal. A norma penal requer somente um
acusa o médico e o hospital perante consentimento simples, significando o
os tribunais alegando ter sido engana- direito à recusa. O atendimento do
da e operada sem que houvesse dado princípio ético do respeito à autono-
seu consentimento. Afirmava somente mia da pessoa requer mais, não se li-
ter autorizado ser anestesiada para mita ao simples direito à recusa ou ao
procedimentos diagnósticos, e não ci- consentimento simples, requer um con-
rúrgicos. O caso chegou à Corte Su- sentimento livre, esclarecido, renovável
prema do Estado de New York, que e revogável. O consentimento deve ser
sentenciou favoravelmente à queixosa. dado livremente, conscientemente, sem
Ocasião em que o juiz Cardozo se ex- ser obtido mediante práticas de coa-
pressa: “Todo ser humano na vida ção física, psíquica ou moral ou por
adulta e com a mente sã tem o direito meio de simulação ou práticas enga-
de determinar o que deve ser feito com nosas, ou quaisquer outras formas de
seu próprio corpo”. manipulação impeditivas da livre ma-
Porém, somente em 1957, é que nifestação da vontade pessoal. Livre
aparece a expressão informed consent, de restrições internas, causadas por
cunhada pela corte californiana distúrbios psicológicos, e livre de co-
julgadora do caso Salgo versus Leland erções externas, por pressão de fa-
Stanford Jr., University of Trustees. miliares, amigos e principalmente dos
Este caso se referia a um homem que profissionais de saúde. O consentimen-
fôra submetido a uma aortografia to livre requer que o paciente seja esti-
transtorácica realizada devido à sus- mulado a perguntar, a manifestar suas
peita de obstrução da aorta abdomi- expectativas e preferências aos profis-
nal; posteriormente ao procedimento, sionais de saúde (19).
o paciente sofrera paralisia dos mem- Aceita-se que o profissional exer-
bros inferiores, complicação dada ça ação persuasiva, mas não a coa-
como rara para a técnica utilizada na ção ou a manipulação de fatos ou da-
época. Os magistrados do caso julga- dos. A persuasão entendida como a
ram que houve conduta culposa por tentativa de induzir a decisão de outra 64
pessoa por meio de apelos à razão é nientes e possíveis riscos físicos, psí-
validada eticamente. Porém, a mani- quicos, econômicos e sociais que pos-
pulação, tentativa de fazer com que a sa ter. O médico deve esclarecer, quan-
pessoa realize o que o manipulador do for o caso, sobre as controvérsias
pretende, sem que o manipulado sai- quanto as possíveis alternativas tera-
ba o que ele intenta, deve ser eticamen- pêuticas existentes. A pessoa deve ser
te rejeitada. informada da eficácia presumida das
Para Hewlett, o consentimento só medidas propostas, sobre as probabi-
é moralmente aceitável quando está lidades de alteração das condições de
fundamentado em quatro elementos: dor, sofrimento e de suas condições
informação, competência, entendimen- patológicas, ou seja, deve ser esclare-
to e voluntariedade (20). cido em tudo aquilo que possa funda-
A informação é a base das deci- mentar suas decisões. Quanto aos ris-
sões autônomas do paciente, necessá- cos, devem compreender sua nature-
ria para que ele possa consentir ou re- za, magnitude, probabilidade e a
cusar as medidas ou procedimentos de iminência de sua materialização. A
saúde que lhe foram propostos. O con- informação a ser fornecida deve con-
sentimento esclarecido requer adequa- ter os riscos normalmente previsíveis
das informações, compreendidas pe- em função da experiência habitual e
los pacientes. A pessoa pode ser infor- dos dados estatísticos, não sendo pre-
mada, mas isto não significa que este- ciso que sejam informados de riscos
ja esclarecida, caso ela não compre- excepcionais ou raros.
enda o sentido das informações Na prática dos profissionais de
fornecidas, principalmente quando as saúde comumente se apresentam três
informações não forem adaptadas às padrões de informação. O primeiro é
suas circunstâncias culturais e psico- o padrão da “prática profissional”,
lógicas. Não é necessário que os pro- onde o profissional de saúde revela
fissionais de saúde apresentem as in- aquilo que um colega consciencioso e
formações utilizando linguajar técnico- razoável teria informado em iguais ou
científico. Basta que elas sejam sim- similares circunstâncias. Nesta padro-
ples, aproximativas, inteligíveis, leais nização, a revelação das informações
e respeitosas, ou seja, fornecidas den- é a determinada pelas regras habitu-
tro de padrões acessíveis ao nível inte- ais e práticas tradicionais de cada pro-
lectual e cultural do paciente, pois fissão. É o profissional que estabelece
quando indevidas e mal organizadas o balanço entre as vantagens e os
resultam em baixo potencial informa- inconvenientes da informação, assim
tivo, em desinformação. como os tópicos a serem discutidos
O paciente tem o direito moral de e a magnitude de informação a ser
ser esclarecido sobre a natureza e os revelada em cada um deles (21).
objetivos dos procedimentos diagnós- A nosso ver, este padrão de infor-
ticos, preventivos ou terapêuticos; ser mação negligencia o princípio ético da
informado de sua invasibilidade, da autonomia do paciente, pois o profis-
duração dos tratamentos, dos benefí- sional se utiliza de parâmetros já esta-
65 cios, prováveis desconfortos, inconve- belecidos por sua categoria, não adap-
tando ou individualizando as informa- subjetivo”. Utilizando-o, o profissional
ções aos reais interesses de cada indi- procura uma abordagem informativa
víduo. apropriada a cada pessoa, personali-
O segundo padrão encontrado é zada, passando as informações a con-
o da “pessoa razoável”, que se funda- templarem as expectativas, os interes-
menta sobre as informações que uma ses e valores de cada paciente, obser-
hipotética pessoa razoável, mediana, vados em sua individualidade. Advo-
necessitaria saber sobre determinadas gamos a utilização deste padrão de
condições de saúde e propostas tera- informações, pois requer do profissio-
pêuticas ou preventivas a lhe serem nal descobrir, baseado nos conheci-
apresentadas. Esse modelo se baseia mentos e na arte de sua prática, e ob-
numa abstração do que seria uma pes- servando as condições emocionais do
soa razoável, um ser considerado como paciente e fatores sociais e culturais a
representação da “média” de uma de- ele relacionados, o que realmente cada
terminada comunidade e cultura. Não indivíduo gostaria de conhecer e o
se requer que o profissional se dispo- quanto gostaria de participar das de-
nha a revelar informações que julgue cisões.
estar fora dos limites traçados pela fi- Do ponto de vista ético, a infor-
gura hipotética da pessoa razoável. O mação a ser transmitida ao paciente é
profissional, ao utilizar tal modelo, con- mais ampla do que exigem as normas
tinua a decidir o que será ou não reve- legais e as decisões dos tribunais – que
lado. Também, em nosso entender, o tendem a acatar a validade dos dois
padrão da “pessoa razoável” tende a primeiros padrões de informação an-
negligenciar o princípio ético da auto- teriormente citados (22).
nomia do paciente. Enfaticamente, devemos discor-
A utilização de formulários padro- dar dos que consideram que para a
nizados sobre os procedimentos a se- maioria dos pacientes em nosso meio
rem realizados em determinadas pato- é praticamente impossível estabelecer
logias, cirurgias e agravos à saúde se- condições para a utilização cotidiana
gue freqüentemente este padrão de in- do “padrão subjetivo” devido ao bai-
formações. Geralmente, essas fórmu- xo nível intelectual e sociocultural dos
las padronizadas, se bem que tendo sua pacientes que freqüentam as institui-
importância na disseminação de co- ções. Consideramos insatisfatórias as
nhecimentos sobre os eventos de saú- explicações que argumentam que boa
de, não são suficientes para garantir parte dos pacientes de instituição hos-
adequada informação, que deve ser pitalar não compreende as informa-
personalizada para obedecer aos prin- ções que lhes são reveladas. Tais afir-
cípios éticos apresentados. Muitas ve- mativas trazem consigo, disfarçados ou
zes, informações por escrito consistem inconscientes, preconceitos étnicos ou
em mero rito legal e administrativo, por de classe social. Muitas vezes, se os
isso não devem ser fontes exclusivas pacientes não compreendem as infor-
de esclarecimento da pessoa assistida. mações a causa está na inadequação
O terceiro padrão é o denomina- da informação e não na pretensa in-
do “orientado ao paciente” ou “padrão capacidade de compreensão (23). 66
Certamente, não defendemos o também compreender que os profissio-
modo norte-americano de informar. nais não podem iniciar um procedi-
Independentemente do padrão de in- mento sem sua autorização, exceto nos
formação utilizado, o profissional de casos de iminente perigo de vida. E,
saúde, principalmente os médicos, in- finalmente, que o direito de decisão
formam ao paciente, mesmo sobre inclui o de consentir ou de recusar a
prognósticos graves, quase sempre se submeter a determinado procedi-
imediatamente após terem se certifica- mento. A partir do preenchimento des-
do do diagnóstico. Isso ocorre pelo re- ses pressupostos, o paciente pode es-
ceio de promoção de sua responsabi- colher não querer ser informado ou,
lidade jurídica, através de vultosas alternativamente, que as informações
ações indenizatórias. Este tipo de con- sejam dadas a terceiros, ou ainda que-
duta não atende à conjunção dos prin- rer emitir seu consentimento sem re-
cípios éticos aqui dispostos, a autono- ceber determinadas informações.
mia, a beneficência e a não-malefi- Além de livre e esclarecido o con-
cência, pois se preocupa apenas com sentimento deve ser renovável quando
requisitos legais. ocorram significativas modificações
A pessoa autônoma também tem no panorama do caso, que se diferen-
o direito de “não ser informada”. Ser ciem daquele em que foi obtido o con-
informado é um direito e não uma obri- sentimento inicial. Quando preliminar-
gação para o paciente. Ele tem o di- mente recolhido, o foi dentro de deter-
reito de recusar ser informado. Nestes minada situação, sendo assim, quan-
casos, os profissionais de saúde devem do ocorrerem alterações significantes
questioná-lo sobre quais parentes ou no estado de saúde inicial ou da cau-
amigos quer que sirvam como canais sa para a qual foi dado, o consenti-
das informações. É certo que o indiví- mento deverá ser necessariamente re-
duo capaz tem o direito de não ser in- novado. A esse propósito, deve-se pon-
formado, quando assim for sua vonta- derar sobre a prática comum adota-
de expressa. O respeito ao princípio da, principalmente nos ambientes hos-
da autonomia orienta que se aceite a pitalares, a respeito do denominado
vontade pessoal, impedindo os profis- “termo de responsabilidade”. Quando
sionais de saúde de lhe fornecerem in- o consentimento inicial, na entrada ao
formações desagradáveis e autorizan- ambiente hospitalar, é tido como per-
do que estes últimos tomem decisões manente e imutável, mesmo que ocor-
nas situações concernentes ao seu es- ram modificações importantes no es-
tado de saúde, ou, ainda, que devam tado de saúde, pode se estar violando
preliminarmente consultar parentes ou a vontade autônoma da pessoa. É
amigos do paciente. como comprar algo e assinar, apesar
Para validar-se tal direito, o paci- das letras miúdas, sem realmente sa-
ente deve ter clara compreensão que é ber com o que se está concordando.
dever do médico informá-lo sobre os É ainda importante salientar que
procedimentos propostos, que tem o o consentimento dado anteriormente
direito moral e legal de tomar decisões não é imutável, pode ser modificado ou
67 sobre seu próprio tratamento. Deve mesmo revogado a qualquer instante,
por decisão livre e esclarecida da pes- consentimento, fundamentam-se no
soa assistida, sem que a ela devam ser princípio da beneficência, assumindo
contrapostas objeções e sanções mo- o papel de protetor natural do pacien-
rais ou administrativas. te por meio de ações positivas em fa-
Cabe também fazer-se distinção vor da vida e da saúde. Nas situações
entre o consentimento esclarecido, de emergência aceita-se a noção da
que consiste em um processo para existência de consentimento presumi-
contribuir na tomada de decisão, pelo do ou implícito, pelo qual supõe-se que
paciente, do termo de consentimen- a pessoa, se estivesse de posse de sua
to, que é um documento legal, assi- real autonomia e capacidade, se ma-
nado pelo paciente ou por seus res- nifestaria favorável às tentativas de
ponsáveis com o intuito de respaldar resolver causas e/ou conseqüências de
juridicamente a ação dos profissio- suas condições de saúde. Aliás, a ina-
nais e dos estabelecimentos hospita- ção nas circunstâncias de grave e imi-
lares. Este último tem pouca valida- nente perigo de vida contraria o dever
de ética quando não contempla os de solidariedade imposto pelo acata-
fundamentos do processo de mani- mento ao princípio de beneficência,
festação autônoma da vontade do podendo consubstanciar situação de
paciente. As decisões envolvendo omissão de socorro.
procedimentos diagnósticos ou A compreensão jurídica
terapêuticos infreqüentemente se es- prevalente e as normas de ética profis-
gotam em uma única ocasião, ao sional dos médicos e dos profissionais
contrário, ocorrem no transcorrer de de enfermagem apontam que no caso
toda a relação médico-paciente. No de iminente perigo de vida o valor da
ambiente hospitalar as decisões tam- vida humana possa se sobrepor ao re-
bém não se restringem somente aos querimento do consentimento e do es-
médicos, mas envolvem diversos pro- clarecimento do paciente (CEM, arts.
fissionais de saúde que participam na 46 e 56). A sonegação de informações
assistência ao paciente. nessas situações é justificada pragma-
Não queremos minimizar a evi- ticamente pela premência da necessi-
dente limitação ao direito do pacien- dade de agir, confrontando-se com as
te à informação imposta pelas con- dificuldades de ser estabelecida ade-
dições de atendimento em prontos- quada comunicação.
socorros e serviços de emergência. O Contudo, deve-se realçar que o
tempo de contato entre os profissio- “iminente perigo” não pode ser de modo
nais e pacientes nessas condições é que resulte em sonegação de informa-
aquém do desejável, e isto evidente- ção/esclarecimento/direito de decisão,
mente impossibilita o estabelecimen- em ocasiões em que não existem justifi-
to de uma adequada e necessária co- cativas éticas para desrespeitar a auto-
municação. nomia das pessoas. O Código de Ética
A ação dos profissionais de saú- Médica prevê que o proceder nas situa-
de nas situações de emergência, em ções de iminente perigo de vida seja ori-
que os indivíduos não conseguem ex- entado pelos princípios éticos da be-
primir suas preferências ou dar seu neficência e da não-maleficência, na 68
proteção do bem-estar do paciente, as-
sumindo o profissional o papel de prote- A conduta ética na prática
médica atual
tor natural do mesmo. Porém, é preciso
observar que nas próprias situações de
exceção é eticamente desejável que de- A prática médica atual exige rup-
cisões verdadeiramente autônomas dos turas com o sistema ético tradicional?
pacientes ou de seus responsáveis se- A ética hipocrática baseia-se, fun-
jam respeitadas, e que as normas dos damentalmente, nos princípios da
códigos de ética profissional não se- beneficiência, não-maleficiência, res-
jam utilizadas, como freqüentemente peito à vida, à privacidade e à
acontece, contra os valores e objetivos confidencialidade.
de vida do paciente. Como regra geral, esses princípios
tradicionais continuam válidos e ade-
quados para nortearem a prática mé-
O termo de consentimento
livre e esclarecido
dica; o que deve, entretanto, ser acres-
centado é o princípio do respeito à
autonomia do paciente.
À manifestação autônoma da sua
Fornecer um texto padrão de con- vontade, devidamente esclarecida pelo
sentimento livre e esclarecido para ser profissional de saúde, cabe a decisão
seguido, em nossa opinião, não é ade- final em cada procedimento. Ressalve-
quado. Alguns requisitos, entretanto, se que todos esses princípios não são
são básicos e não devem ser esque- absolutos e, portanto, admitem condu-
cidos quando da redação desse do- tas de exceção.
cumento. Esses elementos essenciais de
um termo de consentimento livre e es-
clarecido poderiam ser assim
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70
José Eduardo de Siqueira
O Princípio da Justiça
“A distribuição natural dos bens não é justa ou injusta; nem é
injusto que os homens nasçam em algumas condições parti-
culares dentro da sociedade. Estes são simplesmente fatos
naturais. O que é justo ou injusto é o modo como as institui-
ções sociais tratam destes fatos”.
I ntrodução
Cifras do Banco Mundial mostram
que caso a mortalidade infantil regis-
trada nos países pobres fosse reduzi-
Giovanni Berlinguer, em seu últi-
da ao nível observado nos países ri-
mo livro Ética de la Salud, fala de uma
cos, onze milhões de crianças pode-
“bioética de justificativa” e retoma a
riam deixar de morrer anualmente.
crítica apresentada pela prestigiosa
Esses registros iniciais nos pare-
revista Hastings Center Report. Alerta
cem oportunos para introduzir o tema
Berlinguer que essa nova tendência
do princípio da justiça, já que a possi-
pode ser considerada como o retorno
bilidade do retorno “ao deserto
a um deserto moral. Diz textualmente:
moral”deve não somente nos provocar
“Ontem a ética tratava de Justiça, do
acesso aos serviços de saúde, dos di- indignação como, também, o desejo de
reitos dos enfermos; hoje, fala-se uni- resgatar o enunciado kantiano de que
camente da racionalização dos trata- o ser humano há de ter sempre digni-
mentos médicos”. dade e não preço, como querem alguns
Essa nova visão deformada da financistas.
bioética pretende legitimar algumas Com freqüência, as autoridades
decisões políticas fortemente restritivas que estabelecem as políticas de aten-
à aplicação de recursos na área da ção à saúde amparam-se em diferen-
71 saúde. tes teorias da justiça para defender
suas decisões. Seria equivocado, po- bém o enfermo a deveria aos médicos.
rém, pensar que somente proposições A medicina era tida como uma espé-
filosóficas sobre a justiça determi- cie de sacerdócio e o médico, de al-
nam concretamente medidas gover- gum modo, o mediador entre os deu-
namentais. Entretanto, elas não só as ses e os homens. Os serviços médicos
influenciam como, também, dão sus- eram considerados de tal maneira su-
tentação às argumentações de seus periores que, em realidade, não pode-
formuladores. riam ser pagos conforme os preceitos
Imperioso, portanto, é conhecer habituais de troca, senão com a incor-
um pouco das principais correntes de poração obrigatória de um tributo de
pensamento sobre o princípio da jus- honra (honor), o que deu origem ao
tiça propostas ao longo da história da termo honorário.
filosofia política. Na cultura grega identificava-se
uma clara superioridade do bem co-
mum sobre o individual. Aristóteles, por
A justiça amparada na
metafísica
exemplo, considerava que a polis se-
ria, por natureza, anterior ao indíviduo
porque o todo é necessariamente an-
terior à parte e por ser somente ela
A teoria da justiça formulada pe- (polis) auto-suficiente em si mesma. Na
los pensadores gregos – que se mante- ordem da justiça isto significava que o
ve vigente no mundo ocidental desde bem comum é necessariamente ante-
o século VI a.C. até o século XVII de rior ao bem individual. Fundamental,
nossa era – entendia a justiça como porém, é ter claro o sentido preciso do
uma propriedade natural das coisas. que se entendia por “bem comum”.
Ao ser humano caberia apenas Esse enunciado aristotélico ganha em
conhecê-las e respeitá-las. Havendo S. Tomás de Aquino os contornos de
uma lei natural imutável, tudo teria o doutrina religiosa. Assim, baseado no
seu lugar no plano cósmico ou mesmo livro do Gênesis, toda a espécie hu-
no das relações humanas. Platão des- mana procederia de um único homem
creve uma sociedade naturalmente or- – Adão. Todos os homens tomariam
denada e estabelece, em seu livro A parte em uma comunidade natural.
República, a categoria de homens in- Essa concepção metafísica que unia
feriores, os artesãos, ao lado de outros os homens a uma entidade atemporal
que naturalmente seriam forjados para persiste ainda hoje na doutrina católi-
o comando político, os governantes. Os ca quando aponta para uma Jerusa-
indivíduos inferiores prestariam per- lém Celeste unida a uma Jerusalém Ter-
manente obediência aos governantes, restre ou Padecente, esta última repre-
a mesma que habitualmente se devo- sentada por toda a comunidade de cren-
tava aos pais. Este é o fundamento do tes vivos. O mundo sobrenatural unido
paternalismo deste modelo filosófico. ao natural em plena harmonia, tudo re-
Assim, na cidade justa descrita por gido por uma lei imutável. Dentro dessa
Platão, da mesma maneira que o súdi- ótica os atos individuais seriam consi-
to devia obediência ao soberano, tam- derados “bons” se respeitassem essa 72
ordem natural. Do mesmo modo, a mia e recebiam uma parcela de aten-
perfeição moral só poderia ser dimento médico proporcional à sua
alcançada de maneira completa na fi- categoria social e todo esse universo
gura do governante. Todos deveriam estratificado era justificado por um
estar unidos ao soberano pelo vínculo princípio metafísico.
ilimitado da obediência. A figura do
médico, nessa sociedade, apresentava-
se tal qual a do soberano. Quando
Aristóteles e S. Tomás de Aquino fala- A justiça contemplando o
indivíduo
vam da perfeição moral do rei, para
quem os súditos deveriam demonstrar
incondicional obediência, se reconhe- Por um largo período da história
ce de imediato o mesmo modelo na prevaleceu a idéia da lei natural como
relação médico-paciente. O médico, norma de relações entre os homens.
tanto quanto o rei e o sacerdote, re- Somente na modernidade a justiça
presentava o bem comum e, portanto, deixou de ser concebida como condi-
a perfeição moral. Por isso, a única vir- ção natural para transformar-se em
tude que se esperava de um enfermo decisão moral. Evoluiu-se no entendi-
era a obediência. S. Antonio de Flo- mento da justiça como valor intrínse-
rença escreveu em 1459: “Se um ho- co de uma lei natural para um bem
mem enfermo recusa os medicamen- decidido em termos de um contrato
tos prescritos por um médico chama- social. Este novo pacto passou a ditar
do por ele ou por seus parentes, pode normas de relação entre o súdito e o
ser tratado contra sua própria vontade, soberano não mais pela submissão,
do mesmo modo que um homem pode mas sim por uma decisão livre. O ho-
ser retirado contra sua vontade de uma mem comum agora desconsiderava a
casa que está prestes a ruir”. lei natural como fonte autêntica de
Nessa sociedade cabia aos legis- poder e impunha sua decisão moral
ladores implantar leis que expressas- como única e exclusiva norma de jus-
sem este ideal de justiça. A justiça tiça. No final do século XVII, John
como proporcionalidade natural. O Locke descreveu como direitos primá-
escravo era atendido por um médico rios de todo ser humano o direito à
escravo, o artesão era sempre impos- vida, à saúde, à integridade física, à
sibilitado de receber tratamentos liberdade e à propriedade.
dispendiosos, somente o cidadão rico No início do renascimento, o tema
teria completo acesso aos bens da saú- da justiça foi tratado por Jean Bodino
de. Estas diferentes atenções médicas em seu livro República, onde propõe
eram consideradas justas, pois eram uma monarquia harmônica na qual os
consensualmente aceitas como propor- súditos não seriam tratados como cri-
cionais e atenderiam aos princípios da anças, numa clara referência ao mo-
justiça distributiva na sociedade regida delo grego, mas sim como adultos, do-
por uma lei natural, transcendente e tados de liberdade, e condena a idéia
imutável. Nesse modelo de justiça os dos monarcas abusarem das pessoas
73 pacientes eram destituídos de autono- livres, bem como dos escravos e dos
bens dos súditos como se fossem seus. dual. Segundo o pensamento liberal,
Disse Bodino: “Entendo por justiça a há uma concepção minimalista do Es-
reta distribuição das recompensas e das tado que teria simplesmente a missão
penas e do que pertence a cada um de de permitir o exercício dos direitos
acordo com o direito (...) Dita distri- naturais de cada cidadão: o direito à
buição só pode realizar-se pela aplica- vida, à saúde, à liberdade e à proprie-
ção conjunta dos princípios da igual- dade. Estabelecia-se a prevalência dos
dade e da semelhança, o que cabalmen- direitos individuais sobre o poder do
te constitui a proporção harmônica(...) Estado; a plena liberdade do contrato
Nenhum autor grego ou latino referiu- substituía o velho ajuste natural.
se à justiça harmônica seja para sua No campo da saúde este novo
distribuição, seja para o governo da Re- enfoque trouxe mudanças substanciais.
pública. Não obstante, se trata da for- Se no antigo modelo o indivíduo era um
ma de justiça mais divina e mais elemento passivo e considerava-se imo-
excelsa...” ral a desobediência às decisões médi-
Entre Bodino e Locke houve um cas, no pensamento liberal a justiça sa-
pensador muito importante, Espinoza, nitária incorpora-se à nova realidade do
que em seu Tratado Teológico-Político mercado e é transacionada segundo as
defende a idéia de que a soberania leis livres do comércio, sem qualquer in-
autêntica do regime político perfeito tervenção de terceiros. Desta corrente de
deve residir exclusivamente no direito pensamento surgiram os princípios da
de todos os homens em uma comuni- medicina liberal que estabeleceu regras
dade democrática. Condenando o ab- no relacionamento médico-paciente aco-
solutismo, Espinoza considera como modadas às leis de mercado, afastado o
antinatural o poder de um monarca Estado de qualquer tipo de intervenção.
sobre seus súditos e propõe, como mais Qualquer intermediação era considera-
ajustado à natureza, que cada cida- da prejudicial. As associações médicas
dão transfira seus direitos em favor da emergentes no século XIX condenavam
maioria da sociedade. Espinoza enten- em seus códigos deontológicos os pro-
dia a justiça como obra da razão e fissionais que recebiam salários. A as-
construída dentro de um pacto demo- sistência médica era regida por um con-
crático. trato particular entre médico e pacien-
O Tractatus Theologico-Politicus te, com regras de comum acordo entre
de Espinoza é de 1670. Em 1690, John as partes, sem nenhum tipo de contro-
Locke publica Two Treatises on Civil le externo.
Government, a carta magna do libera- Segundo este modelo, instituiu-
lismo contratualista. O autor é categó- se no século XIX três tipos bem di-
rico em afirmar que quando as leis não ferenciados de assistência médica. As
respeitam os direitos de cada cidadão famílias ricas, que dispunham de re-
o Estado excede os limites de suas fun- cursos financeiros suficientes para ce-
ções e torna-se injusto. Para Locke, a lebrar qualquer contrato, pagavam os
verdadeira justiça erigia-se em um con- honorários arbitrados pelos médicos.
trato social que obrigatoriamente ema- Havia, também, um amplo estrato da
nava do exercício da liberdade indivi- população que se valia de um seguro 74
privado para conseguir saldar os com- recer a essa multidão de indigentes que
promissos com intervenções médicas não podia exercer o que seriam, se-
e internações hospitalares. Finalmen- gundo Locke, os direitos naturais de
te, estava a maioria das pessoas po- qualquer cidadão pelo mero fato de ser
bres que não tinham recursos para pessoa humana. O Estado minimalista
acesso ao sistema sanitário. Para aten- de Locke era muito frágil e destituído
der a esse enorme contingente de de poder para intervir em benefício de
despossuídos foram criadas as entida- quem quer que fosse. As leis do mer-
des beneficentes, que se pautavam pelo cado liberal pressupunham para o ple-
sentimento cristão de misericórdia e no exercício da cidadania o domínio
caridade. Assim, surgiram no Ociden- do poder econômico para celebrar con-
te as Santas Casas de Misericórdia, tratos que possibilitassem acesso aos
invariavelmente dirigidas por irmanda- cuidados de saúde. Fora desse âmbi-
des de freiras católicas. Muitos dos to, só restava a esmola, a misericór-
enfermos atendidos nessas entidades dia. E foi exatamente a óbvia injustiça
o foram na condição de indigentes. Se deste Estado minimalista que gerou o
recorrermos ao Dicionário de Aurélio Estado maximalista proposto por
Buarque de Holanda vamos encontrar Marx.
o termo indigência como “a falta do
necessário para viver, pobreza extre-
ma, penúria, miséria”. A realidade
destes pacientes é bem conhecida de A justiça contemplando o
coletivo
médicos formados até a década de
sessenta de nosso século e que, por
serem recentes, mostram uma outra Karl Marx e Friedrich Engels pro-
face da misericórdia, que é a miséria puseram como alternativa para as in-
que imperava no atendimento a esses justiças da sociedade liberal o regime
indivíduos. Em alguns hospitais podia- socialista como único caminho para a
se ler, afixados às portas, os construção de uma sociedade huma-
versículos iniciais do Salmo 51, cha- na autenticamente igualitária e justa.
mado Misere e que diz:“Tem pieda- Argumentavam que a justiça distri-
de de mim, ó Deus, por teu amor! butiva jamais poderia prosperar no li-
Apaga minhas trangressões, por tua beralismo que se prendia a uma ban-
grande compaixão!”. deira dos direitos civis e políticos sem
A indigência roubava dessas pes- considerar os direitos econômicos, so-
soas o direito a qualquer reivindica- ciais e culturais. Ambos ridiculariza-
ção sobre justiça e as tornava prota- vam a teoria dos direitos humanos,
gonistas do que Virgílio descrevia como dizendo que os liberais a defendiam
muta ars. A prática médica exercida como estratégia para se atingir a ver-
como a arte muda de deuses que es- dadeira meta dos interesses burgueses,
palhavam suas benesses a pacientes que era o de controle da propriedade
que absolutamente obedientes as re- privada sobre os meios de produção.
cebiam com extrema e comovida gra- Atacava, portanto, o socialismo a tese
75 tidão. A teoria liberal nada tinha a ofe- central dos regimes liberais que se
apoiavam no respeito irrestrito à pro- egoístas. A injustiça, portanto, era vis-
priedade privada. Marx dizia que só ta como intrínseca ao sistema liberal e
se conseguiria a justiça social anulan- capitalista, não cabendo outra alterna-
do-se qualquer vestígio da proprieda- tiva senão a completa transformação
de privada, transformando-a em pro- do mesmo. Embora tivesse existido
priedade coletiva. O Estado liberal, uma corrente de pensadores socialis-
para os socialistas, era uma superes- tas que vislumbravam a possibilidade
trutura edificada sobre uma infra-es- de uma humanização do sistema libe-
trutura desigual e que apenas fazia ral, contemplando os operários com
institucionalizar a injustiça. Entendia maiores direitos no campo econômi-
Marx que o liberalismo apenas trans- co e social, acabaram, finalmente, por
ferira de mãos o poder dos senhores prevalecer as teses de Marx. Para ele,
feudais para a burguesia. A proprie- os filósofos idealistas teriam criado
dade privada empregava o proletário uma grande falácia ao identificar a
que na condição de assalariado fazia pessoa humana com o conceito de
crescer o poder da burguesia sem re- moral (Kant) ou a uma realidade espi-
ceber em troca qualquer parcela do ritual (Hegel), esquecendo que o ho-
poder. Só haveria uma maneira de se mem real é inseparável de suas condi-
construir a sociedade justa, que era ções materiais de vida e de suas rela-
tornando propriedades comuns os bens ções de produção. Desconhecer essa
de produção. Marx foi mais longe ain- evidência seria condenar a sociedade
da, ao dizer que se o capital permane- a um idealismo puro, sem propostas
cesse como patrimônio pessoal de al- racionais para os problemas da im-
guns daí resultaria que seus proprietá- plantação da justiça entre os homens.
rios imporiam suas personalidades e Na sociedade comunista a saúde
iniciativas, enquanto os trabalhadores teria que ser, portanto, um serviço pú-
careceriam de ambas e, conseqüente- blico que obrigatoriamente seria ofe-
mente, perderiam também sua própria recido a todos segundo suas necessi-
liberdade. Por considerar essa estrutu- dades. Advogou Marx a famosa tese
ra injusta, Marx declara que a socie- “a cada um exigir-se segundo sua ca-
dade humana deveria aspirar a um Es- pacidade e dar-se segundo sua neces-
tado no qual fossem “abolidas a per- sidade”. Não havendo lugar para a
sonalidade, a independência e a liber- prática liberal da medicina, o Estado
dade burguesas”. Interpretava o ho- passa a oferecer a todo cidadão, de
mem gerado pelo liberalismo como um modo integral e gratuito, a assistência
indivíduo fechado em si mesmo, em sanitária segundo suas necessidades.
seus interesses particulares e aparta- Dessa maneira se alcançaria a verda-
do da comunidade, enfim, um verda- deira justiça no campo da saúde. As-
deiro predador dos mais nobres va- sim foi feito na ex-União Soviética
lores da sociedade humana. Os úni- após a Revolução de 1917, e se faz até
cos vínculos que o manteria unido à hoje em Cuba.
sociedade seriam suas necessidades e Um problema que permaneceu
interesses na preservação de sua pro- sem solução no socialismo clássico foi o
priedade, ou seja, de seus interesses do tratamento desigual dos diferentes 76
níveis de liberdade humana. A liber- furto, a fraude no cumprimento dos
dade de e a liberdade para, considera- contratos. O Estado não pode usar
das pelos socialistas, respectivamente, seu poder de coação com a finalida-
como formal e real. Consagrou-se de de obrigar alguns cidadãos a aju-
como essencial as liberdades para tra- dar outros (...)”
balhar, formar família, educar os filhos, Mais influente que Nozick foi, sem
todas atendidas pelos direitos econô- dúvida, Rawls, que em 1971 publicou
micos, sociais e culturais. Considera- A Theory of Justice, onde procura es-
das supérfluas as liberdades de expres- tabelecer a justiça como eqüidade.
são, de culto religioso, de produção Muito próximo a algumas idéias fun-
intelectual, o que recentemente moti- damentais da ética kantiana, Rawls
vou os seguintes comentários do ex- parte da pessoa como um absoluto
primeiro ministro russo Gorbachev, moral. Quer com isto dizer que todo
quando da queda do comunismo na ser humano, uma vez alcançada a ida-
União Soviética: “O que morreu para de da razão, é autonômo e tem um
sempre foi o modelo criado por Stalin, perfeito senso de justiça. Estabelece
que desde o primeiro momento foi uma uma ponte entre os conceitos de “pes-
aventura, um regime que ignorava por soa moral” e “sociedade bem-ordena-
completo a democracia, os direitos da”. Para que ocorra o perfeito
humanos (...)” entrosamento entre as duas variáveis,
pessoa e sociedade, estabelece como
imprescindíveis alguns direitos indivi-
E m busca da justiça
no século XX
duais e sociais primários, que seriam:
Bibliografia
80
Léo Pessini
Christian de Paul de Barchifontaine
Bioética: do Principialismo à
Busca de uma Perspectiva
Latino-Americana
I ntrodução
o perfil de uma bioética “made in
USA” e européia (parte III), bem
como a fisionomia de uma bioética
Nosso trabalho é contextualizado latino-americana (parte IV). Finaliza-
na rememoração histórica dos fatos e mos apontando, para além da lingua-
acontecimentos fundamentais, dos do- gem dos princípios, a existência de
cumentos e protagonistas que deram outras linguagens alternativas que
origem à reflexão bioética princi- ajudam a captar a riqueza da expe-
pialista: o Relatório Belmont, da Co- riência ética, inesgotável numa de-
missão Nacional Para a Proteção terminada visão reducionista.
dos Seres Humanos da Pesquisa Alertamos para a necessidade de ela-
Biomédica e Comportamental (1978); boração de uma bioética latino-ame-
uma descrição rápida do conteúdo dos ricana aderente à vida destes povos,
princípios apontados pela Comissão e a que ao honrar seus valores históri-
obra clássica, Principles of Biomedical cos, culturais, religiosos e sociais,
Ethics, de T. L. Beauchamp e J. F. obrigatoriamente na sua agenda
Childress (parte I). A seguir, nos pergun- temática contextual, terá encontro
tamos porque a bioética tornou-se marcado com a exclusão social e
principialista (parte II). pontualizará valores tais como co-
Nossa reflexão apresenta uma munidade, eqüidade, justiça e so-
análise comparativa, tentando traçar lidariedade.
81
G ênese do paradigma
principialista da bioética “made
Reagindo a estes escândalos, o
governo e o Congresso norte-america-
no constituíram, em 1974, a National
in USA” Commission for the Protection of
Human Subjects of Biomedical and
Para melhor entendermos e fazer- Behavioral Research (Comissão Na-
mos uma avaliação crítica pertinente cional para a Proteção dos Seres Hu-
do paradigma bioético principialista, manos em Pesquisa Biomédica e
precisamos mergulhar nas origens do Comportamental), com o objetivo de
surgimento da reflexão bioética e des- “levar a cabo uma pesquisa e estudo
tacar dois fatos de fundamental impor- completo, que identificasse os princí-
tância, quais sejam, o Relatório pios éticos básicos que deveriam
Belmont e a obra citada de nortear a experimentação em seres hu-
Beauchamp e Childress, Principles of manos nas ciências do comportamen-
Biomedical Ethics. to e na biomedicina”. O Congresso
solicitou, também, que a Comissão ela-
a) O Relatório Belmont (1) borasse – num prazo de quatro meses
– um relatório de pesquisa envolvendo
É importante ressaltar que na ori- fetos humanos. Inicialmente, os mem-
gem da reflexão ética principialista bros da Comissão deram atenção to-
norte-americana está a preocupação tal para esta questão, considerada mais
pública com o controle social da pes- urgente, e deixaram a tarefa de identi-
quisa em seres humanos. Em parti- ficar os “princípios éticos básicos”
cular, três casos notáveis mobilizaram para mais tarde. À medida que os tra-
a opinião pública e exigiram regula- balhos em questões específicas avan-
mentação ética. São eles: 1) Em 1963, çavam, tais como pesquisa com crian-
no Hospital Israelita de doenças crô- ças, prisioneiros e doentes mentais, fi-
nicas, em Nova York, foram injetadas lósofos e teólogos foram convidados
células cancerosas vivas em idosos para prestar ajuda na tarefa e identifi-
doentes; 2) Entre 1950 a 1970, no hos- car os “princípios éticos básicos” na
pital estatal de Willowbrook (NY) inje- pesquisa com seres humanos.
taram o vírus da hepatite em crianças Esta Comissão levou quatro anos
retardadas mentais e 3) Desde os anos para publicar o que ficou conhecido
30, mas divulgado apenas em 1972, como o Relatório Belmont (Belmont
no caso de Tuskegee study, no estado Report), por ter sido realizado no Cen-
do Alabama, 400 negros sifilíticos fo- tro de Convenções Belmont, em
ram deixados sem tratamento para a Elkridge, no estado de Maryland. Nes-
realização de uma pesquisa da histó- te espaço de tempo, os membros da
ria natural da doença. A pesquisa con- Comissão acharam oportuno publicar
tinuou até 1972, apesar do descobri- algumas recomendações a respeito de
mento da penicilina. Em 1996, o go- como enfocar e resolver os conflitos
verno norte-americano pediu descul- éticos levantados pelas ciências
pas públicas a esta comunidade negra, biomédicas. Para eles, os códigos, não
pelo que foi feito. obstante sua utilidade, não eram 82
operativos, pois “suas regras são com também utilizada para a reflexão
freqüência inadequadas em casos de bioética em geral. Pela sua importân-
situações complexas”. Além disso, os cia, vejamos como a Comissão enten-
códigos apontam para a utilização de dia os princípios identificados.
normas que em casos concretos podem
conflitar, resultando, na prática, como b) Os princípios éticos no enten-
“difíceis de interpretar e de aplicar”. É der da comissão governamental
claro que a Comissão dispunha de
documentos tais como o Código de Os três princípios identificados
Nuremberg (1947) e a Declaração de pelo Relatório Belmont foram o res-
Helsinque (1964), entre outros, mas peito pelas pessoas (autonomia), a
considerou o caminho apontado pelos beneficência e a justiça. Vejamos ra-
códigos e declarações de difícil pidamente em que, na visão da Co-
operacionalização. missão, consistia cada um destes
Após quatro anos de trabalhos, a princípios.
Comissão propõe um método comple- O respeito pelas pessoas incorpo-
mentar, baseado na aceitação de que ra pelo menos duas convicções éticas:
“três princípios éticos mais globais de- 1) as pessoas deveriam ser tratadas
veriam prover as bases sobre as quais com autonomia; 2) as pessoas cuja
formular, criticar e interpretar algumas autonomia está diminuída devem ser
regras específicas”. A Comissão reco- protegidas. Por pessoa autônoma, o
nhecia que outros princípios poderiam Relatório entendia o indivíduo capaz
também ser relevantes, e três foram de deliberar sobre seus objetivos pes-
identificados como fundamentais. Se- soais e agir sob a orientação desta
gundo Albert R. Jonsen, um dos 12 deliberação. A autonomia é entendida
membros da Comissão, após muita num sentido muito concreto, como a
discussão fixaram-se em três princípi- capacidade de atuar com conhecimen-
os por estarem “profundamente enrai- to de causa e sem coação externa. O
zados nas tradições morais da civiliza- conceito de autonomia da Comissão
ção ocidental, implicados em muitos não é o kantiano, o homem como ser
códigos e normas a respeito de experi- autolegislador, mas outro muito mais
mentação humana que tinham sido empírico, segundo o qual uma ação se
publicadas anteriormente, e além dis- torna autônoma quando passou pelo
so refletiam as decisões dos membros trâmite do consentimento informado.
da Comissão que trabalhavam em Deste princípio derivam procedimen-
questões particulares de pesquisa com tos práticos: um é a exigência do con-
fetos, crianças, prisioneiros e assim por sentimento informado e o outro é o de
diante”. como tomar decisões de substituição,
O Relatório Belmont foi oficial- quando uma pessoa é incompetente
mente divulgado em 1978 e causou ou incapaz, isto é, quando não tem
grande impacto. Tornou-se a declara- autonomia suficiente para realizar a
ção principialista clássica, não somente ação de que se trate.
para a ética ligada à pesquisa com No princípio da beneficência, o
83 seres humanos, já que acabou sendo Relatório Belmont rechaça claramente a
idéia clássica da beneficência como ter grande impacto, importância e su-
caridade e diz que a considera de uma cesso nos anos seguintes.
forma mais radical, como uma obri-
gação. Nesse sentido, são formuladas c) A obra clássica de Beauchamp
duas regras como expressões comple- e Childress (2)
mentares dos atos de beneficência: a)
não causar dano e b) maximizar os É importante notar que o Relató-
benefícios e minimizar os possíveis ris- rio Belmont referia-se somente às ques-
cos. Não distingue entre beneficência tões éticas levantadas pela pesquisa
e não-maleficência, o que será poste- em seres humanos. Estava fora de seu
riormente realizado por Beauchamp e horizonte de preocupação todo o cam-
Childress. po da prática clínica e assistencial.
No terceiro princípio, o da justi- Beauchamp e Childress, com sua fa-
ça, os membros da Comissão enten- mosa obra Principles of Biomedical
dem justiça como sendo a “imparcia- Ethics, aplicam para a área clínico-
lidade na distribuição dos riscos e be- assistencial o “sistema de princípios”
nefícios”. Outra maneira de entender e procuram, assim, livrá-la do velho
o princípio de justiça é dizer que “os enfoque próprio dos códigos e jura-
iguais devem ser tratados igualmen- mentos. Esta obra transformou-se na
te”. O problema está em saber quem principal fundamentação teórica do
são os iguais. Entre os homens exis- novo campo da ética biomédica. Foi
tem diferenças de todo tipo e muitas publicada inicialmente em 1979 (em
delas devem ser respeitadas em virtu- 1994 saiu a quarta edição, revista e
de do princípio de justiça, por exem- ampliada), um ano após o Relatório
plo, ideal de vida, sistema de valores, Belmont. Um dos autores, Beauchamp,
crenças religiosas, etc. Não obstante, era membro da Comissão que redigiu
existe um outro nível em que todos o Relatório Belmont e se beneficiou de
devemos ser considerados iguais, de todo o processo. Beauchamp e
tal modo que as diferenças nesse ní- Childress retrabalharam os três princí-
vel devem ser consideradas injusti- pios em “quatro”, distinguindo bene-
ças – neste particular a Comissão não ficência e não-maleficência. Além
deixou nada claro. disso, para sua obra, basearam-se na
O Relatório Belmont, um do- teoria de um grande eticista inglês do
cumento brevíssimo por sinal, inaugu- início do século, David Ross, que es-
rou um novo estilo ético de abordagem creveu em 1930 um famoso livro
metodológica dos problemas envolvi- intitulado The Right and the Good, em
dos na pesquisa em seres humanos. que fala dos deveres atuais e “prima
Desde o mesmo não se analisa mais a facie” (prima facie duties e actual
partir da letra dos códigos e juramentos, duties).
mas a partir destes três princípios, com Beauchamp e Childress, no pre-
os procedimentos práticos deles conse- fácio de sua obra, procuram analisar
qüentes. Neste contexto, o trabalho de sistematicamente os princípios morais
Beauchamp e Childress, considerados que devem ser aplicados na biome-
os “pais” da reflexão principialista, vai dicina. Trata-se pois de um enfoque 84
claramente principialista: entendem a cia) e o público (não-maleficência e
ética biomédica como uma “ética apli- justiça). Em caso de conflito entre de-
cada”, no sentido de que a sua veres destes dois níveis, os deveres no
especificidade é aplicar os princípios nível público sempre têm prioridade
éticos gerais aos problemas da prática sobre os deveres individuais.
médico-assistencial.
É conveniente assinalar que
Beauchamp e Childress são pessoas
com convicções filosóficas e éticas bem O paradigma da bioética
principialista (3)
distintas. Beauchamp é um utilitarista,
enquanto que Childress é claramente
um deontologista. Suas teorias éticas Os “princípios éticos básicos”,
são portanto distintas e dificilmente quer sejam os três do Relatório
conciliáveis na hora de justificar ou Belmont ou os quatro de Beauchamp
fundamentar os citados princípios. e Childress, propiciaram para os es-
Mas ao invés de verem-se frente a um tudiosos de ética algo que sua pró-
abismo, os autores consideram isso pria tradição acadêmico-disciplinar
uma vantagem. As discrepâncias teó- não lhes forneceu: um esquema cla-
ricas não devem impedir o acordo so- ro para uma ética normativa que ti-
bre normas, isto é, sobre princípios e nha de ser prática e produtiva.
procedimentos. Dizem eles que “o Segundo Albert Jonsen, um dos
utilitarismo e o deontologismo chegam pioneiros da bioética, os princípios
a formular normas similares ou idênti- deram destaque para as reflexões mais
cas”. Todos, tanto os teleologistas abrangentes, vagas e menos opera-
como os deontologistas, podem acei- cionais dos filósofos e teólogos da épo-
tar o sistema de princípios e chegar ca. Em sua simplicidade e objetivida-
a decisões idênticas em casos con- de, forneceram uma linguagem para
cretos, não obstante suas discrepân- falar com um novo público, formado
cias em relação aos aspectos teóri- por médicos, enfermeiros e outros pro-
cos da ética. fissionais da área de saúde(4).
Nos últimos 20 anos, a opinião A bioética tornou-se então
de Beauchamp e Childress, a de que principialista, por várias razões, entre
os princípios e as normas são consi- outras:
derados obrigatórios prima facie e es- 1) Os primeiros bioeticistas en-
tão no mesmo nível, ganhou aceitação contraram na ética normativa de
de renomados bioeticistas e somente seu tempo, no estilo dos princí-
as circunstâncias e conseqüências po- pios, a via media entre a terra
dem ordená-los em caso de conflito. árida da metaética ou metafísica
Mas a discussão continua. Por exem- e as riquezas das visões da éti-
plo, na perspectiva de Diego Gracia ca teológica, geralmente inaces-
deve-se priorizar a não-maleficência síveis;
sobre a beneficência. Ele divide os
quatro princípios em dois níveis, a sa- 2) O Relatório Belmont foi o docu-
85 ber, o privado (autonomia e beneficên- mento fundamental que respondeu
à necessidade dos responsáveis parte, o que a bioética é nestes pou-
pela elaboração de normas públi- cos anos de existência (30 anos) re-
cas, uma declaração simples e cla- sulta principalmente do trabalho de
ra das bases éticas necessárias bioeticistas na perspectiva princi-
para regulamentar a pesquisa; pialista. Hoje, fala-se que o “princi-
pialismo” está doente, alguns críticos
3) A nova audiência, composta
vão mais longe e até dizem que é um
por médicos e estudantes de me-
“paciente terminal”, mas chega-se ao
dicina, entre outros profissionais
quase consenso de que não pode ser
da área de saúde, foi introduzida
visto como um procedimento
nos dilemas éticos da época atra-
dogmático infalível na resolução de
vés da linguagem dos princípios,
conflitos éticos. Não é uma ortodoxia,
que mais do que tornar complexa
mas uma abreviação utilitária da filo-
na verdade ajudou a entender,
sofia moral e da teologia, que serviu
clarear e chegar a acordos
muito bem aos pioneiros da bioética e
procedurais em questões extrema-
continua, em muitas circunstâncias, a
mente difíceis e polêmicas
ser útil ainda hoje. A bioética não pode
trazidas pela tecnociência;
ser reduzida a uma ética da eficiência
4) O sucesso do modelo aplicada predominantemente em nível
principialista é devido à sua ado- individual. Nascem várias perspecti-
ção pelos clínicos. Os princípios vas de abordagem bioética para além
deram a eles um vocabulário, ca- dos princípios, que somente elencamos
tegorias lógicas para percepções para conhecimento. Temos o modelo
e sentimentos morais não da casuística (Albert Jonsen e Stephen
verbalizados anteriormente, bem Toulmin), das virtudes (Edmund
como meios para resolver os dile- Pellegrino e David Thomasma), do
mas morais num determinado cuidado (Carol Gilligan), do direito
caso, no processo de compreen- natural (John Finnis) e apostando no
são das razões e tomada de deci- valor central da autonomia e do indi-
são. víduo, o modelo “liberal autonomista”
A fonte de abusos do princi- (Tristam Engelhardt), o modelo
pialismo está na necessidade humana contratualista (Robert Veatch), o mo-
de segurança moral e de certezas num delo antropológico personalista (E.
mundo de incertezas. Nesse senti- Sgreccia, D. Tettamanzi, S. Spinsanti)
do, o “principialismo” foi o porto e o modelo de libertação (a partir da
seguro para os médicos durante o América Latina, com a contribuição
período de profundas mudanças na da teologia da libertação), só para
compreensão ética dos cuidados mencionar algumas perspectivas mais
clínicos assistenciais nos Estados em evidência (5).
Unidos. É bom lembrar que Beauchamp
Tudo isso levou ao fortalecimento e Childress, principialistas notórios,
do assim chamado “principialismo”, tornam-se casuístas quando examinam
que sem dúvida teve grandes méritos os casos. Na quarta edição de sua fa-
e alcançou muito sucesso. Em grande mosa obra, Principles of Biomedical 86
Ethics, após a argumentação e refle- como infalível na resolução dos confli-
xão sobre os princípios ao longo de sete tos éticos.
capítulos, o capítulo oitavo (último) é Ao fazer uma avaliação dos
todo dedicado “às virtudes e ideais na princípios na bioética, que surgiram
vida profissional”. Vale a pena regis- um pouco como a “tábua de salva-
trar o que dizem esses autores na con- ção dos dez mandamentos”, Hubert
clusão de sua obra: “Neste capítulo fi- Lepargneur aponta – entre outras ob-
nal fomos além dos princípios, regras, servações a respeito dos limites dos
obrigações e direitos. Virtudes, ideais princípios – que na implementação
e aspirações por excelência moral, sempre está implicada uma casuística
apóiam e enriquecem o esquema mo- (análise de casos clínicos). Além dis-
ral desenvolvido nos capítulos ante- so, no horizonte bioético, para além dos
riores. Os ideais transcendem as obri- princípios surge como tarefa para a
gações e direitos e muitas virtudes le- bioética colocar no seu devido lugar a
vam as pessoas a agir de acordo com prudência como sabedoria prática, que
princípios e normas bem como seus ide- vem desde a tradição aristotélica
ais.(...) Quase todas as grandes teorias tomista e que foi esquecida na refle-
éticas convergem na conclusão que o xão bioética hodierna. A sabedoria
mais importante ingrediente na vida prática da prudência – phronesis –
moral da pessoa é o desenvolvimen- domina a ética e, portanto, a vivência
to de caráter que cria a motivação ín- da moralidade, porque vincula, numa
tima e a força para fazer o que é certo síntese, o agente (com seu condicio-
e bom” (6). namento próprio e intenção), o con-
Indício claro de que estes autores, texto da ação, a natureza da mesma
notórios “principialistas”, apresentam ação e o seu resultado previsível. A fi-
um horizonte ético que vai além do gura de proa da ética é a phronesis,
mero principialismo absolutista, tão que forma as regras da ação e sabe
duramente criticado hoje pelos implementá-las (7, 8).
bioeticistas. Fica evidente que nesta A obra de maior colaboração
nova versão de sua obra Beauchamp inter e multidisciplinar produzida até
e Childress incorporaram as inúmeras o presente momento na área de
observações críticas que receberam ao bioética, Encyclopedia of Bioethics, ao
longo dos anos desde o surgimento da definir o que é bioética muda signifi-
mesma. cativamente sua conceituação entre a
O bom-senso aconselha ver os primeira (1978) e segunda edição
princípios como instrumentos para in- (1995), justamente na questão ligada
terpretar determinadas facetas morais aos princípios. Na primeira edição a
de situações e como guias para a ação. bioética é definida como sendo o “es-
Abusos de princípios ocorrem quando tudo sistemático da conduta humana
modelamos as circunstâncias para no campo das ciências da vida e da
aplicar um princípio preferido e aca- saúde, enquanto examinada à luz dos
ba-se caindo no “ismo”, e não se per- valores e princípios morais” (o desta-
cebe mais que existem limites no pro- que em itálico é nosso). Independen-
87 cedimento principialista considerado temente das diversas teorias éticas que
pudessem estar por trás destes princí- é um produto típico da cultura norte-
pios e da interpretação dos mesmos, americana. Existe uma profunda influ-
eles são o referencial fundamental. Na ência do pragmatismo filosófico anglo-
segunda edição a definição do que é saxão em três aspectos fundamentais:
bioética já não faz mais referência aos nos casos, nos procedimentos e no pro-
“valores e princípios morais” que ori- cesso de tomada de decisões. Os prin-
entam a conduta humana no estudo cípios de autonomia, beneficência,
das ciências da vida e do cuidado da não-maleficência e justiça são utiliza-
saúde, mas às diversas metodologias dos, porém no geral são considerados
éticas e numa perspectiva de aborda- mais como máximas de atuação
gem multidisciplinar. A bioética é defi- prudencial, não como princípios no
nida como sendo o “estudo sistemáti- sentido estrito. Fala-se mais de proce-
co das dimensões morais – incluindo dimentos e estabelecimentos de normas
visão, decisão e normas morais – das de regulação. Por exemplo, não há
ciências da vida e do cuidado da saú- muita preocupação em definir o con-
de, utilizando uma variedade de ceito de autonomia, mas em estabele-
metodologias éticas num contexto cer os procedimentos de análise da
multidisciplinar” (o destaque em itáli- capacidade ou competência (consen-
co é nosso). Evita-se os termos “valo- timento informado). Buscam-se os ca-
res” e “princípios” num esforço para minhos de ação mais adequados, isto
se adaptar ao pluralismo ético atual na é, resolver problemas tomando deci-
área da bioética. Este é um sintoma sões a respeito de procedimentos con-
evidente de que o panorama bioético, cretos.
claramente principialista no início da Diego Gracia, bioeticista espanhol,
bioética (década de 70), já não é mais defende a tese de que não é possível re-
o mesmo em meados da década de 90; solver os problemas de procedimento
houve uma evolução (9). sem abordar as questões de fundamen-
Após termos delineado alguns as- tação. Fundamentos e procedimentos
pectos da evolução da bioética de um são, na verdade, duas facetas da mes-
paradigma hegemônico principialista ma moeda, inseparáveis. Pobre é o pro-
nas suas origens para uma busca “plu- cedimento que não está bem fundamen-
ral” multi e interdisciplinar de tado e pobre é o fundamento que não
paradigmas, vejamos a seguir algumas dá como resultado um procedimento ágil
características de duas tradições de e correto (11).
bioética, especificamente a norte-ame- Nada mais útil do que uma boa
ricana e a européia. fundamentação e nada mais funda-
mental que um bom procedimento, são
convicções de grande parte de
B ioética latino-americana e
bioética “made in USA”
como justiça, eqüidade e solidarie-
dade, deverão ocupar na bioética
latino-americana um lugar similar ao
princípio da autonomia nos Estados
A bioética, no seu início, defron- Unidos.
tou-se com os dilemas éticos criados Segundo Drane, os latino-ameri-
pelo desenvolvimento da medicina. canos não são tão individualistas e
Pesquisa em seres humanos, o uso certamente estão menos inclinados ao
humano da tecnologia, perguntas so- consumismo em suas relações com o
bre a morte e o morrer são algumas pessoal médico do que os norte-ame-
áreas sensíveis nos anos 90. As ques- ricanos. Seria um erro pensar que o
tões originais da bioética se expandi- consentimento informado – e tudo o
ram para problemas relacionados com que com ele se relaciona – não fosse
os valores nas diversas profissões da importante para os latino-americanos.
saúde, tais como enfermagem, saúde O desafio é aprender dos Estados Uni-
pública, saúde mental, etc. Grande dos e dos europeus sem cair no
número de temas sociais foram intro- imitacionismo ingênuo de importar
duzidos na abrangência temática da seus programas (13).
bioética, tais como saúde pública,
alocação de recursos em saúde, saú- a) Ampliar a reflexão ética do ní-
de da mulher, questão populacional e vel “micro” para o nível “macro”
ecologia, para lembrar alguns.
É dito que a tecnologia médica O grande desafio é desenvolver
impulsiona o desenvolvimento da uma bioética latino-americana que
bioética clínica. Isto vale tanto na corrija os exageros das outras perspec-
América Latina como nos Estados tivas e resgate e valorize a cultura lati-
Unidos. No início, as perguntas que se na no que lhe é único e singular, uma
faziam com maior freqüência eram em visão verdadeiramente alternativa que
torno do uso humano de uma nova possa enriquecer o diálogo
tecnologia: o uso ou retirada de apa- multicultural. Não podemos esquecer
relhos, a aceitação ou não do consen- que na América-Latina a bioética tem
timento informado. o encontro obrigatório com a pobreza
Em alguns países da América e a exclusão social. Elaborar uma
Latina, a simples existência de alta bioética somente em nível “micro” de
tecnologia e centros de cuidados mé- estudos de casos, de sabor apenas
dicos avançados levanta questões em deontológico, sem levar em conta esta
torno da discriminação e injustiça na realidade, não responderia aos anseios
assistência médica. As interrogações e necessidades por mais vida digna.
mais difíceis nesta região giram em Não estamos questionando o valor in-
91 torno não de como se usa a comensurável de toda e qualquer vida
que deve ser salva, cuidada e protegi- acusações freqüentemente dirigidas à
da. Temos, sim, que não perder a vi- bioética norte-americana e européia,
são global da realidade excludente la- de que o discurso da bioética somente
tino-americana na qual a vida se inse- surge para humanizar a medicina en-
re (15, 16). quanto esquece ou não aborda a real
À medida que a medicina moder- desumanização do sistema. Por exem-
na torna-se para as culturas de hoje o plo, o discurso bioético da autonomia
que a religião era na Idade Média, as pode esconder a despersonalização dos
questões com as quais a bioética se cuidados médicos e seus riscos de
defronta tornam-se sempre mais cen- iatrogenia, a exploração do corpo e
trais e geram um crescente interesse alienação da saúde. Como resposta ao
público. No limiar das controvérsias desenvolvimento da biomedicina numa
bioéticas, significados básicos estão era tecnológica, a bioética deve ser
mudando em todos os quadrantes do menos complacente ou otimista em
planeta: o significado da vida e morte, relação ao progresso e ser capaz de
família, doença, quem é pai ou mãe. exercer um papel crítico frente a este
Maior comunicação e diálogo mútuo contexto (17).
entre os povos com diferentes perspec- A realidade da bioética latino-
tivas será imensamente proveitoso no americana, da bioética em tempos de
sentido de trazer uma compreensão cólera, AIDS e sarampo exige uma
mais profunda de cada cultura e solu- perspectiva de ética social com preo-
ções melhores para problemas críticos cupação com o bem comum, justiça e
similares. As pessoas de diferentes re- eqüidade, antes que em direitos indi-
giões e culturas podem trabalhar para viduais e virtudes pessoais. Uma
integrar as diferenças sociológicas, his- “macroética” de saúde pública pode
tóricas e filosóficas e, algum dia quem ser proposta como uma alternativa
sabe, gerar um conjunto de padrões para a tradição anglo-americana da
bioéticos respeitoso e coerente, em que “microética” ou ética clínica. Nestes
as pessoas religiosas e seculares po- países pobres, a maior necessida-
dem igualmente partilhar. de é de eqüidade na alocação de
No pensamento de J.A. Mainetti, recursos e distribuição de serviços
a América Latina pode oferecer uma de saúde (18,19).
perspectiva bioética distinta e diferen- Na perspectiva da bioética na
te da norte-americana por causa da América Latina, diz Diego Gracia: “Os
tradição médica humanista e pelas latinos sentem-se profundamente
condições sociais de países periféricos. inconfortáveis com direitos e princí-
Para este bioeticista argentino, a dis- pios. Eles acostumaram-se a julgar as
ciplina européia de filosofia geral – coisas e atos como bons ou ruins, ao
com três ramos principais (antropolo- invés de certo ou errado. Eles preferem
gia médica, epistemologia e axiologia) a benevolência à justiça, a amizade ao
– pode ser melhor equipada para trans- respeito mútuo, a excelência ao direi-
formar a medicina científica e acadê- to. (...) Os latinos buscam a virtude e a
mica num novo paradigma biomédico excelência. Não penso que eles rejei-
humanista. Tal abordagem evitaria tam ou desprezam os princípios (...). 92
Uma vez que as culturas latinas tradi- ticamente entendida como sendo éti-
cionalmente foram orientadas pela éti- ca médica; b) segunda fase: entra em
ca das virtudes, a abordagem cena o relacionamento médico-pacien-
principialista pode ser de grande ajuda te. Questiona-se o paternalismo, come-
em evitar alguns defeitos tradicionais ça-se a falar dos direitos dos pacientes
de nossa vida moral, tais como o (autonomia, liberdade, verdade, etc.);
paternalismo, a falta de respeito pela c) terceira fase: questionamentos a res-
lei e a tolerância. Na busca da virtude peito do sistema de saúde, incluindo
e excelência, os países latinos tradici- organização e estrutura, financiamen-
onalmente têm sido intolerantes. A to- to e gestão. Os bioeticistas têm que es-
lerância não foi incluída como uma vir- tudar economia e política de saúde
tude no velho catálogo das virtudes la- (Callahan - 1980) e d) quarta fase: é a
tinas. A virtude real era a intolerância, que estamos entrando, neste final da
a tolerância era considerada um vício. década de 90. A bioética, priorita-
(...) A tolerância como uma virtude foi riamente, vai lidar com a saúde da po-
descoberta pelos anglo-saxões no sé- pulação, com a adição, entre outros
culo XVII. Esta é talvez a mais impor- temas candentes, das ciências soci-
tante diferença com as outras culturas. ais, humanidades, saúde pública, di-
A questão moral mais importante não reitos humanos e a questão da eqüi-
é a linguagem que usamos para expres- dade e alocação de recursos (21). Esta
sar nossos sentimentos morais, mas o agenda programática tem tudo a ver
respeito pela diversidade moral, a es- com o momento ético da América
colha entre pluralismo ou fanatismo. O Latina.
fanatismo afirma que os valores são
completamente absolutos e objetivos e b) O desafio de desenvolver uma
devem ser impostos aos outros pela mística para a bioética
força, enquanto que a tolerância defen-
de a autonomia moral e a liberdade de Estaria incompleta nossa reflexão
todos os seres humanos e a busca de se não apontássemos a necessidade
um acordo moral pelo consenso” (20). desafiante de se desenvolver uma mís-
O desenvolvimento da bioética tica para a bioética. Pode até parecer
mundial vem ultimamente privilegi- estranho para um pensamento marca-
ando preocupações éticas típicas de do pelo pragmatismo e pelo culto da
países tais como os da América Lati- eficiência sugerir que a bioética neces-
na e Caribe. Daniel Wikler, na pales- site de uma mística. A bioética neces-
tra conclusiva do III Congresso Mun- sita de um horizonte de sentido, não
dial de Bioética, realizada em São importa o quanto estreito ou amplo
Francisco, EUA, em 1996, intitulada seja, para desenvolver suas reflexões e
“Bioethics and social responsibility”, propostas. Ao mesmo tempo, não po-
diz que ao olharmos o nascimento e demos fazer bioética sem optar no
desenvolvimento da bioética temos já mundo das relações humanas. Isto em
claramente delineadas quatro fases: a) si mesmo é uma indicação da neces-
primeira fase: temos os códigos de con- sidade de alguma forma de mística,
93 duta dos profissionais. A bioética é pra- ou de um conjunto de significados
fundamentais que aceitamos e a par- cas. Não é a única exclusiva. A expe-
tir dos quais cultivamos nossos idea- riência ética pode ser expressa em di-
lismos, fazemos nossas opções e orga- ferentes linguagens, paradigmas ou
nizamos nossas práticas. modelos teóricos, tais como os da vir-
Não é fácil definir em poucas tudes e excelência, o casuístico, o
palavras uma mística libertadora para contratual, o liberal autonomista, o do
a bioética. Ela necessariamente inclui- cuidado, o antropológico humanista,
ria a convicção da transcendência da o de libertação, só para lembrar alguns.
vida que rejeita a noção de doença, Obviamente, a convivência com esse
sofrimento e morte como absolutos in- pluralismo de modelos teóricos exige
toleráveis. Incluiria a percepção dos diálogo respeitoso pelas diferenças em
outros como parceiros capazes de vi- que a tolerância é um dado impres-
ver a vida em solidariedade e cindível. Todos esses modelos ou lin-
compreendê-la e aceitá-la como um guagens estão intrinsecamente inter-re-
dom. Esta mística seria, sem dúvida, lacionados, mas cada um em si é in-
testemunha no sentido de não deixar completo e limitado. Um modelo pode
os interesses individuais egoístas se lidar bem com um determinado aspecto
sobreporem e calarem a voz dos ou- da vida moral, mas ao mesmo tempo
tros (excluídos) e esconderem suas não com os outros. Não podemos
necessidades. Esta mística proclama- considerá-los como sendo exclusivos,
ria, frente a todas as conquistas das mas complementares. As dimensões
ciências da vida e do cuidado à saú- morais da experiência humana não
de, que o imperativo técnico-científi- podem ser capturadas numa única
co, posso fazer, passa obrigatoriamen- abordagem. Isto não surpreende, pois
te pelo discernimento de outro impe- a amplidão e a riqueza da profundi-
rativo ético, logo devo fazer? Ainda dade da experiência humana sempre
mais, encorajaria as pessoas, grupos estão além do alcance de qualquer sis-
dos mais diferentes contextos sócio- tema filosófico ou teológico. É esta
político-econômico-culturais, a unir-se humildade da sabedoria que nos dei-
na empreitada de garantir uma vida xará livres do vírus dos “ismos” que
digna para todos, na construção de um são verdades parciais que tomam uma
paradigma econômico e técnico-cien- particularidade de uma realidade
tífico que aceita ser guiado pelas exi- como sendo o todo.
gências da solidariedade humana (22). 2 - Os problemas bioéticos mais
importantes da América Latina e
A
Caribe são aqueles que se relacionam
com a justiça, eqüidade e alocação de
lgumas notas conclusivas recursos na área da saúde. Em amplos
setores da população ainda não chegou
1 - O modelo de análise teórica a alta tecnologia médica e muito menos
(paradigma) principialista iniciado o tão almejado processo de emancipa-
com o Relatório Belmont e implemen- ção dos doentes. Ainda impera, via be-
tado por Beauchamp e Childress é uma neficência, o paternalismo. Ao princí-
linguagem entre outras linguagens éti- pio da autonomia, tão importante na 94
perspectiva anglo-americana, precisa- questões que a bioética terá de enfren-
mos justapor o princípio da justiça, tar no futuro: a primeira é como resolver
eqüidade e solidariedade (23, 24). a diversidade de opiniões sobre o que é
A bioética elaborada no mundo bioética e qual é o seu campo!; a segun-
desenvolvido (Estados Unidos e Euro- da é como relacionar os vários modelos
pa) na maioria das vezes ignorou as de ética e bioética, uns com os outros; a
questões básicas que milhões de ex- terceira é justamente o lugar da religião
cluídos enfrentam neste continente e e a bioética teológica nos debates públi-
enfocou questões que para eles são cos sobre aborto, eutanásia, cuidado
marginais ou simplesmente não exis- gerenciado (managed care) e assim por
tem. Por exemplo, fala-se muito de diante. Até agora, a bioética religiosa fi-
morrer com dignidade no mundo de- cou na penumbra da bioética filosófica.
senvolvido. Aqui, somos impelidos a “À medida que nossa consciência de
proclamar a dignidade humana que diversidade cultural aumenta, prevejo
garante primeiramente um viver com que os valores religiosos que embasam
dignidade e não simplesmente uma o diálogo público virão à tona. No mo-
sobrevivência aviltante, antes que um mento, não existe uma metodologia para
morrer digno. Entre nós, a morte é pre- lidar com a crescente polarização que
coce e injusta, ceifa milhares de vidas convicções autênticas trazem para os de-
desde a infância, enquanto que no Pri- bates. De alguma forma, devemos ser ca-
meiro Mundo se morre depois de se ter pazes de viver e trabalhar juntos mesmo
vivido muito e desfrutado a vida com quando nossas convicções filosóficas e
elegância até na velhice. Um sobrevi- religiosas a respeito do certo e do errado
ver sofrido garantiria a dignidade no estejam freqüentemente em conflito e por
adeus à vida? vezes até incompatíveis” (25).
3 - Característica típica de toda a 4 - Uma macrobioética (socieda-
região da América Latina e Caribe é a de) precisa ser proposta como alterna-
profunda religiosidade cristã católica, tiva à tradição anglo-americana de
que hoje sofre um profundo impacto uma microbioética (solução de casos
com seitas fundamentalistas via mídia clínicos). Na América Latina, a
eletrônica. O processo de seculariza- bioética sumarizada num “bios” de alta
ção atingiu a burguesia culta, porém tecnologia e num “ethos” individualis-
não a grande massa do povo. A moral ta (privacidade, autonomia, consenti-
dessa sociedade continua a ser funda- mento informado) precisa ser
mentalmente confessional, religiosa. complementada por um “bios”
Esta sociedade não conheceu o humanista e um “ethos” comunitário
pluralismo característico da cultura (solidariedade, eqüidade, o outro).
norte-americana. Nasce aqui, sem Refletindo prospectivamente com
dúvida, um desafio de diálogo, Alastair V. Campbell, presidente da
bioética-teologia, entre esta bioética Associação Internacional de Bioética
secular, civil, pluralista, autônoma e (1996-1998), a respeito da bioética do
racional com este universo religioso. futuro, uma questão-chave a ser en-
Thomasma e Pellegrino, notáveis frentada é a justiça na saúde e nos
95
pioneiros da Bioética, levantam três cuidados de saúde. Maior esforço de
pesquisa no sentido de construção da 2. Beauchamp TL, Childress JF. Principles
teoria bioética faz-se necessário junto of biomedical ethics. Fourth Edition.
New York: Oxford University Press, 1994.
com esta questão. A bioética não pode
tornar-se uma espécie de “capelão na 3. Dubose ER, Hamel RP, O’Connell LJ,
corte real da ciência”, perdendo seu editors. A matter of principles? ferment
papel crítico em relação ao progresso in U.S. bioethics. Pennsylvania: Trinity
técnico-científico (26). Press International, 1994. Esta é a me-
lhor obra disponível no momento atual
5 - É preciso cultivar uma sabe- para uma compreensão histórico cultu-
doria que desafie profeticamente o ral da gênese dos princípios bioéticos bem
imperialismo ético daqueles que usam como uma profunda análise crítica e
a força para impor aos outros, como proposta de alternativas. É fruto de um
encontro multidisciplinar (case
única verdade, sua verdade moral par-
conference) realizado em Chicago (Es-
ticular, bem como o fundamentalismo tados Unidos- 1992) sob os auspícios do
ético daqueles que recusam entrar num Park Ridge Center, do qual participa-
diálogo aberto e sincero com os de- ram especialistas em bioética das mais
mais, num contexto sempre mais se- diferentes partes do planeta. Represen-
tando a perspectiva latino-americana,
cular e pluralista. Quem sabe, a intui-
Márcio Fabri dos Anjos, teólogo brasi-
ção pioneira de Potter (1971) ao cu- leiro, apresentou uma contribuição na
nhar a bioética como sendo uma pon- perspectiva da teologia da libertação
te para o futuro da humanidade (27) que é publicada nesta obra com o tí-
necessita ser repensada neste limiar de tulo “Bioethics in a liberationist key”.
p.130-47.
um novo milênio, também como uma
ponte de diálogo multi e transcultural 4. Jonsen AR. Foreword. In: Dubose ER,
(28) entre os diferentes povos e cultu- Hamel RP, O’Connell LJ, editors. A
ras, no qual possamos recuperar não matter of principles: ferment in U.S.
apenas nossa tradição humanista bioethics. Pensylvania: Trinity Press
International, 1994: ix-xvii.
como também o sentido e o respeito
pela transcendência da vida na sua 5. Para um aprofundamento crítico do
magnitude máxima (cósmico-ecológi- principialismo a partir dos protagonis-
ca) – e desfrutá-la como dom e con- tas norte-americanos da bioética, ver o
quista, de forma digna e solidária. número monográfico Theories and
methods in bioethics: principlism and its
critics. Kennedy Institute of Ethics
Journal 1995;5(3). Destacamos:
Beauchamp TL. Principlism and its
Referências alleged competitors. p.181-98; Veatch
RM. Resolving conflicts among principles:
ranking, balancing and specifying, p.199-
218; Cluser KD. Common morality as
1. The Belmont Report: ethical principles and an alternative to principlism, p.219-36;
guidelines for the protection of human Jonsen AR. Casuistry: an alternative or
subjects of research. National Commission complement to principles?, p.237-51;
for the Protection of Human Subjects of Pellegrino EP. Toward a virtue-based
Biomedical and Behavioral Research normative ethics for the health
1979. In: Reich WT, editors. Encyclopedia professions, p.253-77.
of Bioethics. revised edition. New York:
Macmillan, c1995: 2767-73. 96
6. Beauchamp TL, Childress JF. Op. Cit. 13. Drane JF. Bioethical perspectives
1994: 502. Ezekiel Emanuel ao fazer seu from ibero-america. J Med Philos
comentário da quarta edição da obra 1996:21:557-69.
clássica de Beauchamp e Childress no
prestigioso periódico Hastings Center 14. Patrão Neves MC. A fundamentação
Report 1995;25(4):37-8 intitulou seu tra- antropológica da bioética. Bioética
balho “The beginning of the end of (CFM) 1996;4:7-16.
principlism”. Este autor lembra que a
4ª edição é muito diferente das anterio- 15. Anjos MF dos. Medical ethics in the
res e pode até nem ser mais developing world: a liberation theology
principialista, uma vez que os autores, perspective. J Med Philos
nesta edição, apelam para um funda- 1996;21:629-37.
mento na moralidade comum e isto,
segundo E. Emanuel, “constitui uma 16. Anjos MF dos. Bioethics in a liberationist
mudança radical e anuncia o fim do key. In: Dubose ER, Hamel RP,
principialismo”. Outros críticos da pers- O’Connell LJ, editors. A matter of
pectiva principialista merecem ser lem- principles: ferment in US bioethics.
brados: Gert B, Culver CM, Clouser KD. Valley Forge, Pennsylvania: Trinity Press
Bioethics: a return to fundamentals. International, 1994: 130-47.
Oxford : Oxford University Press, 1997,
especialmente o capítulo quatro
17. Mainetti JÁ. History of medical ethics:
intitulado “Principlism”, p. 71-92. Ver
the americas and Latin America. In:
também o trabalho de Closer D, Gert
Reich WT, editors. Encyclopedia of
B. A critique of principlism. J Med Philos
bioethics. revised edition. New York:
1990;15:219-36.
Macmillan, c 1995. vol 5: 1639-44.
7. Lepargneur H. Força e fraqueza dos prin- 18. Garrafa V, Oselka G, Diniz D. Saúde
cípios da bioética. Bioética (CFM)
pública, bioética e eqüidade. Bioética
1996;4:131-43.
(CFM) 1997;5:27-33.
8. Lepargneur H. Bioética, novo conceito:
19. Leisinger KM. Bioethics in USA and in poor
a caminho do consenso. São Paulo:
countries. Cambridge Quarterly of
Loyola/CEDAS, 1996.
Healthcare Ethics 1993;2:5-8. Este autor
fala de política de saúde como uma rami-
9. Reich WT, editors. Encyclopedia of ficação da bioética, sendo esta ainda uma
bioethics. Revised edition. New York:
disciplina nascente. Ao constatar o enor-
Macmillan, 1995. Ver especialmente in-
me fosso que separa a realidade de saúde
trodução, vol. 1, p. XXI.
norte-americana em comparação com os
outros países em desenvolvimento, vale
10. Pessini L, Barchifontaine CP, organiza- registrar: “Enquanto nós começamos a
dores. Fundamentos da bioética. São
enfrentar alguns de nossos complexos pro-
Paulo: Paulus, 1996.
blemas de saúde com a engenharia genéti-
ca, centenas de milhões de pessoas nos
11. Gracia D. Procedimientos de decisión en países em desenvolvimento sofrem de
ética clínica. Madrid: Eudema, 1991.
malária, filariose, esquistossomose, doen-
ça de Chagas ou mal de Hansen. Nenhu-
12. Drane JF. Preparación de un programa ma dessas doenças – que são perfeitamen-
de bioética: consideraciones básicas te preveníveis e/ou curáveis – está sendo
para el Programa Regional de Bioética controlada de uma forma satisfatória e,
de la OPS. Bioética (CFM) 1995;1:7- para algumas delas, a situação está em fran-
18. ca deterioração.” A bioética, na visão deste
autor, deveria considerar a política de de-
97 senvolvimento nos países pobres. Um de-
senvolvimento que satisfaça as necessida- 28. Esforços nesse sentido já estão em cur-
des humanas mais básicas da população. so. Digna de nota é a atuação do Con-
Conseqüentemente, provisão de comida, selho de Organizações Internacionais de
educação básica, água potável, educação Ciências Médicas (CIOMS). Em
e facilidades sanitárias, habitação e cui- 1994, esta organização internacio-
dados de saúde básicos devem ser nal, em cooperação com a Organiza-
priorizados. ção Mundial da Saúde, Unesco e Go-
verno do México, na sua XXVIII Assem-
20. Gracia D. Hard times, hard choices: bléia, realizada em Ixtapa (México, 17-
founding bioethics today. Bioethics 20 de abril), abordou a candente pro-
1995;9:192-206. blemática: “Pobreza, vulnerabilidade,
valor da vida humana e emergência da
21. Wikler D. Bioethics and social bioética”. Como resultado deste even-
responsibility. Bioethics 1997;11:185-6. to, ao propor uma agenda global para a
bioética “a declaração de IXTAPA” afir-
22. Anjos MF dos. Op.Cit. 1994:145. ma: “À luz do fato que a bioética se de-
senvolveu primordialmente, mas não de
23. Pessini L, Barchifontaine CP. Problemas forma exclusiva, na maioria dos países
atuais de bioética. 4ª ed.rev.ampl. São desenvolvidos, existe a necessidade pre-
Paulo: Loyola, 1997. (Cf. Especialmen- mente para a elucidação e adoção uni-
te o capítulo “Bioética na América Lati- versal dos princípios básicos da bioética,
na e Caribe”, p. 59-72) de uma forma que reconheça as dife-
rentes perspectivas em nível mundial
24. Garrafa V. A dimensão da ética em saú- relacionadas com moral, cultura, prio-
de pública. São Paulo, Faculdade de ridades e valores. Um passo significati-
Saúde Pública, USP/Kellogg Foundation, vo em direção a este objetivo seria esta-
1995. belecer ligações bilaterais e multilaterais,
tais como cooperação técnica, intercâm-
25. Thomasma DC, Pellegrino ED. The bio e informação entre instituições e
future of bioethics. Cambridge Quarterly sociedades profissionais que trabalham
of Health Care Ethics 1997;6:373-5. com bioética nos países industrializados
e nos países em desenvolvimento. Tais
26. Campbell AV. A bioética no século XXI. associações seriam mutuamente benéfi-
Saúde Heliópolis 1998;abr/maio:9-11. cas”. Cf. Bankowski Z, Bryant JH,
editors. Poverty, vulnerability, and the
27. Potter VR. Bioethics: bridge to the future. value of human Life: a global agenda
Englewood Cliffs, New Jersey: Prentice- for bioethics. Geneva: CIOMS, 1994.
Hall, 1971.
98
Parte III - Temas Específicos
Volnei Garrafa
A manipulação da vida e o
tema dos “limites”
coloca-se diante do tempo e dos fe-
nômenos.
Segundo Hans Jonas, o tema da
“liberdade da ciência” ocupa posição
A questão da “manipulação da única no contexto da humanidade,
vida” pode ser contemplada a partir de não limitada pelo possível conflito com
variados ângulos: biotecnocientífico, outros direitos (16). Para ele, no en-
político, econômico, social, jurídico, tanto, o observador mais atento perce-
moral... Em respeito à liberdade indivi- be uma contradição secreta entre as
dual e coletiva conquistada pela huma- duas metades dessa afirmação, porque
nidade através dos tempos, a pluralidade a posição especial alcançada no mun-
constatada neste final do século XX re- do graças à liberdade da ciência signi-
quer que o estudo bioético do assunto fica uma posição exterior de poder e
contemple, na medida do possível e de de posse, enquanto a pretensão de
forma multidisciplinar, todas estas pos- incondicionalidade da liberdade da in-
sibilidades. vestigação tem que apoiar-se precisa-
Com relação à vida futura do pla- mente em que a atividade de investi-
neta, não deverão ser regras rígidas ou gar, juntamente com o conhecimento,
“limites” exatos que estabelecerão até esteja separada da esfera da ação. Por-
onde o ser humano poderá ou deverá que, naturalmente, na hora da ação
chegar. Para justificar esta posição, toda liberdade tem suas barreiras na
vale a pena levar em consideração al- responsabilidade, nas leis e conside-
guns argumentos de Morin sobre os rações sociais. De qualquer maneira,
sistemas dinâmicos complexos. Para ainda de acordo com Jonas, sendo útil
ele, o paradigma clássico baseado na ou inútil a liberdade da ciência é um
suposição de que a complexidade do direito supremo em si, inclusive uma
mundo dos fenômenos devia ser resol- obrigação, estando livre de toda e qual-
vida a partir de princípios simples e leis quer barreira.
gerais não é mais suficiente para con- Abordando o tema da “ética para
siderar, por exemplo, a complexidade a era tecnológica”, Casals diz que “tra-
da partícula subatômica, a realidade ta-se de atingir o equilíbrio entre o
cósmica ou os progressos técnicos e extremo poder da tecnologia e a
científicos da área biológica (15). En- consciência de cada um, bem como
quanto a ciência clássica dissolvia a da sociedade em seu conjunto: “Os
complexidade aparente dos fenômenos avanços tecnológicos nos remetem
e fixava-se na simplicidade das leis sempre à responsabilidade individual,
imutáveis da natureza, o pensamento bem como ao questionamento ético dos
103 complexo surgiu para enfrentar a envolvidos no debate, especialmente
aqueles que protagonizam as tomadas Encíclica Evangelium Vitae, do Papa
de decisões”(16). João Paulo II – desenvolve esta linha
De acordo com o que já foi colo- de pensamento (20). A relação de te-
cado anteriormente, para as pessoas mas abordados pela Encíclica papal
que defendem o desenvolvimento livre abrange tudo aquilo que se opõe de
da ciência, embora de forma respon- forma direta à vida, como a fome e as
sável e participativa, é difícil conviver doenças endêmicas, guerras, homicí-
pacificamente com expressões que es- dios, genocídios, aborto, eutanásia;
tabeleçam ou signifiquem “limites” tudo aquilo que viole a integridade da
para a mesma. O tema, contudo, é de pessoa, como as mutilações e torturas;
difícil abordagem e solução. Por isso, tudo aquilo que ofenda a dignidade
enquanto não encontrar uma expres- humana, como as condições subhu-
são (ou iluminação moral suficiente...) manas de vida, prisões arbitrárias, es-
que se adeque mais às minhas exatas cravidão, deportação, prostituição, trá-
intenções prefiro utilizar a palavra “li- fico de mulheres e menores, condições
mites” entre aspas, procurando, com indignas de trabalho. A partir desta
esse artifício, certamente frágil, expres- realidade incontestável o Papa chega
sar minha dificuldade sem abdicar de a definir o século XX como uma épo-
minhas posições. ca de ataques massivos contra a vida,
Assim sendo, é necessário que se como o reino do culto à morte. A ve-
passe a discutir sobre princípios mais racidade destes fatos, no entanto, é
amplos que, sem serem quantitativos maculada pela unilateralidade do jul-
ou “limítrofes” na sua essência, pos- gamento sobre o presente e pela es-
sam proporcionar contribuições curidão apontada para o futuro.
conceituais e também práticas no que A insistência nos aspectos nega-
se refere ao respeito ao equilíbrio tivos da realidade obstaculiza uma vi-
multicultural e ao bem-estar futuro da são mais precisa e articulada deste
espécie. Nesse sentido, parece-nos in- século. Sem cair na posição oposta,
dispensável agregar à discussão alguns deve-se reconhecer que o século XX,
temas que tangenciam as fronteiras do apesar das guerras e crimes e de estar
desenvolvimento, sem limitá-lo: a se encaminhando para seu final em
pluralidade e a tolerância, a participa- clima de incerteza, foi também o sé-
ção e a responsabilidade; a eqüidade culo da vida. Foi o século no qual
e a justiça distributiva dos benefícios aprofundou-se o conhecimento cientí-
(18, 19). fico sobre a própria vida que, sem dú-
Diversos setores da sociedade, vida, melhorou em termos de qualida-
principalmente aqueles religiosos e de para a maioria da espécie huma-
mais dogmáticos, têm traçado uma na. Foi o século no qual, pela primeira
visão perturbadora, pessimista e vez na história, a duração média da
apocalíptica da relação entre a ciên- vida aproximou-se aos anos indicados
cia e a vida humana neste final de sé- como destino “normal” da nossa es-
culo. Um dos documentos mais respei- pécie; no qual a saúde dos trabalha-
táveis surgidos nos últimos anos e que dores foi defendida e sua dignidade
contempla a discussão bioética – a reconhecida em muitos países; onde 104
vimos emergir os direitos vitais, jurídi- para uma tecnologia a serviço da hu-
cos e culturais das mulheres, que nos manidade do próprio homem (...) de
séculos anteriores foram sempre des- uma democracia jurídico-formal a
prezados; em que existiu uma substan- uma democracia real, que concilie li-
cial valorização do corpo; onde as ci- berdade e justiça (21). Trata-se, por-
ências biológicas e a medicina chega- tanto, de estimular o desenvolvimento
ram a descobertas fantásticas, benefi- da ciência dentro de suas fronteiras
ciando indivíduos e populações. O humanas e, ao mesmo tempo, de
grande desafio de hoje, portanto, é desestimulá-lo quando essa passa a
construir o processo de inclusão de avançar na direção de “limites” desu-
todas as pessoas e povos como manos.
beneficiários deste progresso.
A força da ciência e da técnica
está, exatamente, em apresentar-se
como uma lógica utópica de liberta- “E ndeusamento” versus
“demonização” da ciência
ção que pode levar-nos a sonhar para
o futuro inclusive com a imortalidade.
Tudo isso deveria, pois, desaconselhar Com relação às ciências
as tentativas de impor uma ética auto- biomédicas, as reflexões morais ema-
ritária, alheia ao progresso técnico-ci- nadas de diferentes setores da socie-
entífico. Deveria, além disso, induzir- dade mostram hoje duas tendências
nos a evitar formulações de regras ju- antagônicas. De um lado, existe uma
rídicas estabelecidas sobre proibições. radical bioética racional e justificativa,
É preferível que os vínculos e os “limi- através da qual “tudo aquilo que pode
tes” das leis sejam declinados positi- ser feito, deve ser feito”. No extremo
vamente e que seja estimulada uma oposto, cresce uma tendência conser-
moral autógena, não imposta mas ine- vadora baseada no medo de que nosso
rente. Em outras palavras, é necessá- futuro seja invadido por tecnologias
rio que entre os sujeitos ético-jurídicos ameaçadoras, levando seus defensores
não seja desprezada a contribuição à procura de um culpado, erroneamen-
daqueles que vivem a dinâmica pró- te identificado na matriz das novas
pria da ciência e da técnica (os cien- técnicas, na própria ciência. Neste
tistas), sem chegar, todavia, a delegar quadro complexo, a bioética pode vir
somente a estes decisões que dizem a ser usada por alguns como instru-
respeito a todos. mento para afirmar doutrinas
Nesse sentido, é necessário que anticientíficas e, por outros, ser consi-
ocorram mudanças nos antigos derada como um obstáculo impertinen-
paradigmas biotecnocientíficos, o que te ao trabalho dos cientistas e ao de-
não significa obrigatoriamente a dis- senvolvimento bioindustrial; ou ain-
solução dos valores já existentes, mas da como um instrumento para negar
sua transformação: “deve-se avançar o valor da ciência (ou como valida-
de uma ciência eticamente livre para ção de posições anticientíficas) ou,
outra eticamente responsável; de uma então, para justificá-la a qualquer
105 tecnocracia que domine o homem custo (22).
Orientar-se entre estas duas teses O embate entre valores e interesses so-
opostas não é tarefa fácil. A novidade bre cada uma das opções é um dado
e a complexidade são características real, inextinguível e construtivo sob
inerentes à maioria dos temas bioéticos muitos aspectos. A adoção de normas
atuais, dos transplantes às pesquisas e comportamentos moralmente aceitá-
com seres humanos e animais, do pro- veis e praticamente úteis requer, por
jeto genoma à reprodução assistida. todas as razões já expostas, tanto o
Sobre muitos destes problemas ainda confronto quanto a convergência das
não foram formuladas regulamenta- várias tendências e exigências (23).
ções que em outros campos e em épo-
cas passadas conduziram a compor-
tamentos mais ou menos homogêneos
e se constituíram no fundamento de leis P luralidade e tolerância,
participação e responsabilidade,
cujo objetivo, mais do que evitar ou
punir qualquer conduta censurável, era eqüidade e justiça distributiva
o de manter um certo equilíbrio na so-
ciedade. Nos dias atuais, o desenvol- Enfim, toda esta desorganização
vimento da ciência está sujeito a cho- de idéias e práticas comprometem di-
ques com diversas doutrinas e crenças retamente a própria espécie humana,
existentes, ao mesmo tempo em que as que se tornou interdependente em re-
opiniões pessoais também oscilam lação aos fatos, ainda que por sorte se
entre sentimentos e orientações diver- mantenha diversificada em termos de
sas. Por outro lado, linhas de pesquisa história, leis e cultura. A relação entre
se alargarão no futuro, alcançando re- interdependência, diversidade e liber-
sultados ainda imprevisíveis, enquan- dade poderá tornar-se um fator positi-
to diversos conhecimentos já adquiri- vo somente no caso das escolhas prá-
dos (como a clonagem) estão hoje ape- ticas e das orientações bioéticas terem
nas na fase inicial de sua aplicação reforçadas suas tendências ao
prática. pluralismo e à tolerância.
De acordo com esta ordem pola- A intolerância e a unilateralidade,
rizada de coisas, o mundo moderno porém, são fenômenos freqüentes tan-
poderá desaguar em uma crescente to nos comportamentos relacionados
“confusão diabólica”, ou na resolução às situações persistentes quanto nas
de todos os problemas da espécie hu- atitudes que se referem aos problemas
mana através do progresso científico. emergentes surgidos mais recentemente
As duas hipóteses incorrem no risco e que crescem todos os dias. Quanto
de alimentar na esfera cultural o aos comportamentos, no que se refere
dogmatismo, e na esfera prática a pas- aos problemas persistentes, pode-se
sividade. Se por um lado são inúme- citar, por exemplo, o ressurgimento do
ros os caminhos a serem escolhidos racismo na Europa e em outras partes
para que a terra se transforme num do mundo e cujas bases culturais es-
verdadeiro inferno, são também infi- tão exatamente em negar o fato de que
nitas as possibilidades de utilização as etnias pertencem ao domínio comum
positiva das descobertas científicas. da espécie humana e em confundir o 106
conceito de diferença com o de infe- a espécie humana é o único e real sen-
rioridade. Para as atitudes com rela- tido e meta para esse mesmo desen-
ção aos problemas “emergentes”, volvimento.
pode-se recordar a decisão do presi- Dentro ainda do tema da demo-
dente norte-americano Bill Clinton de cracia e desenvolvimento da ciência,
proibir as pesquisas de clonagem com não se poder deixar de abordar a ques-
seres humanos e cortar todo possível tão do controle social sobre qualquer
auxílio governamental para as mes- atividade que seja de interesse coleti-
mas, contrariando as sugestões da vo e/ou público. Mesmo em temas
comissão nacional de bioética por ele complexos como o projeto genoma
convocada. humano ou a doação e os transplan-
O desenvolvimento da ciência tes de órgãos e tecidos humanos, a
pode percorrer caminhos diversos, uti- pluriparticipação é indispensável para
lizar diferentes métodos. O conheci- a garantia de que os direitos humanos
mento é por si só um valor, mas a de- e a cidadania sejam respeitados. O
cisão sobre quais conhecimentos a controle social, através do pluralismo
sociedade ou os cientistas devem con- participativo, deverá prevenir o difí-
centrar seus esforços implica na con- cil problema de um progresso
sideração de outros valores. Da mes- biotecnocientífico que reduz o cidadão
ma forma, não se pode deixar de con- a súdito ao invés de emancipá-lo. O
siderar o papel do cientista ou da ati- súdito é o vassalo, aquele que está sem-
vidade que ele exerce. Sua responsa- pre sob as ordens e vontades de ou-
bilidade ética deve ser avaliada não só tros, seja do rei, seja dos seus
pelo exercício das suas pesquisas em opositores. Esta peculiaridade é abso-
si mas, principalmente, pelas conseqü- lutamente indesejável em um proces-
ências sociais decorrentes das mes- so no qual se pretende que a partici-
mas. Enquanto a ciência, não sendo pação consciente da sociedade mun-
ideológica por sua estrutura, pode es- dial adquira um papel de relevo. A éti-
tar a serviço ou dos fins mais nobres ca é um dos melhores antídotos con-
ou dos mais prejudiciais para o gêne- tra qualquer forma de autoritarismo e
ro humano, o cientista não pode per- de tentativas espúrias de manipula-
manecer indiferente aos desdobramen- ções.
tos sociais do seu trabalho. Se a ciên- Ainda no que diz respeito à tole-
cia como tal não pode ser ética ou rância, Mary Warnock destacou o prin-
moralmente qualificada, pode sê-la, no cípio segundo o qual a única razão
entanto, a utilização que dela se faça, válida para não se tolerar um com-
os interesses a que serve e as conse- portamento é que este cause danos a
qüências sociais de sua aplicação. outras pessoas, além de quem o adota
Está ainda inserido nessa pauta o (24). O exemplo ao que ela se refere é
tema da democratização do acesso a legislação sobre embriões, que foi
para todas as pessoas, indistinta e discutida na Inglaterra durante anos.
eqüanimemente, aos benefícios do Com relação ao aborto, é oportuno
desenvolvimento científico e tecnoló- recordar, na mesma linha de idéias já
107 gico (às “descobertas”), uma vez que abordada em tópico anterior, que existe
uma diferença entre seu enfoque legal cal incompatibilidade (25). É oportu-
e moral. Sobre a legalidade, vários no levantar neste ponto o importante
países o reconheceram, objetivando papel formador desempenhado pela
evitar que ele permanecesse como um mídia (virtual, impressa, falada e
fenômeno clandestino, por isto mesmo televisionada), que deve avançar do
agravado e impossível de prevenir. patamar do simples entretenimento em
Quanto à moralidade, ele é, de qual- direção à abertura de debates públi-
quer modo, um ato interruptivo de um cos relacionados e comprometidos
processo vital, ao qual setores da so- com temas de interesse comum.
ciedade atribuem significado negativo O grande nó relacionado com a
e outros não. De qualquer forma, ques- questão da manipulação da vida huma-
tões complexas como o aborto não na não está na utilização em si de novas
encontram respostas satisfatórias uni- tecnologias ainda não assimiladas mo-
camente no âmbito exclusivo do ralmente pela sociedade, mas no seu
pluralismo e da tolerância, devendo ser controle. E esse controle deve ocorrer em
integradas a outros conceitos como a patamar diferente ao dos planos cientí-
responsabilidade (da mulher, da soci- ficos e tecnológicos: o controle é ético. É
edade e do Estado) e a eqüidade no prudente lembrar que a ética sobrevive
seu mais amplo sentido. sem a ciência e a técnica; sua existência
não depende delas. A ciência e a técni-
ca, no entanto, não podem prescindir da
C onsiderações finais
ética, sob pena de, unilateralmente, se
transformarem em armas desastrosas
para o futuro da humanidade, nas mãos
É sempre preferível confiar mais de ditadores ou de minorias poderosas
no progresso e nos avanços culturais e e/ou mal-intencionadas.
morais do que em certas normas jurí- O “xis” do problema, portanto,
dicas. Existem, de fato, zonas de fron- está no fato de que dentro de uma es-
teira nas aplicações da ciência. Levan- cala hipotética de valores vitais para a
do em consideração a velocidade do humanidade a ética ocupa posição
progresso biotecnocientífico é, contu- diferenciada em comparação com a
do, impossível reconstruir rapidamen- pura ciência e a técnica. Nem anterior,
te certas referências ou valores que nem superior, mas simplesmente dife-
possam vir a ser compartilhados por renciada. Além de sua importância
todos, a menos que se insista na alter- qualitativa no caso, a ética serve como
nativa da imposição autoritária e uni- instrumento preventivo contra abusos
lateral de valores. A solução está, en- atuais e futuros que venham a trazer
tão, em verificarmos se é possível tra- lucros e poderes abusivos para poucos,
balhar para a definição de um conjun- em detrimento do alijamento e sofri-
to de condições de compatibilidade mento de grande parte da população
entre pontos de vista que permanece- mundial e do próprio equilíbrio
rão diferentes, mas cuja diversidade biossociopolítico do planeta.
não implique necessariamente em um Para que a manipulação da vida
conflito catastrófico ou em uma radi- se faça dentro do marco referencial da 108
cidadania, com preservação da liber- Referências bibliográficas
dade da ciência a partir do paradigma
ético da responsabilidade, existem dois
caminhos. O primeiro, por meio de le- 1. Jonas H . Il principio responsabilità.
gislações que deverão ser Un’etica per la civiltà tecnologica. Tu-
(re)construídas democraticamente pe- rim: Einaudi Editore, 1990.
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consideração os indicadores acima ência, saúde e cidadania. Bioética
mencionados e no sentido da preser- (CFM) 1998;6(2). (no prelo)
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cidos em consonância com o progres- 3. Schramm FR. Paradigma biotecnocien-
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so moral verificado nas respectivas Biosafety of transgenic organisms in
sociedades. No que diz respeito a esse human health products. Rio de Janeiro:
tópico, vale a pena recordar o fracas- Fundação Oswaldo Cruz, 1996:109-27.
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109 to.
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110
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nais, 1995.
124
Débora Diniz
Marcos de Almeida
Bioética e Aborto
I ntrodução
nipulações retóricas que visam ape-
nas arrebatar multidões para o cam-
po de batalha travado sobre o abor-
O tema do aborto é, dentre a to- to.
talidade das situações analisadas pela Nesse contexto, não é tarefa fácil
Bioética, aquele sobre o qual mais se apresentar um panorama dos estudos
tem escrito, debatido e realizado con- bioéticos pertinentes ao assunto. Mis-
gressos científicos e discussões públi- turam-se textos acadêmicos, políticos
cas. Isso não significa, no entanto, que e religiosos, e selecionar quais os mais
tenham ocorrido avanços substanciais significativos para o debate parece ser
sobre a questão nestes últimos anos ou sempre uma tarefa injusta. E, em al-
mesmo que se tenham alcançado al- guma medida, o é. Entretanto, não foi
guns consensos morais democráticos, preocupação deste capítulo contem-
ainda que temporários, para o proble- plar todos os pesquisadores que escre-
ma. Ao contrário. A problemática do veram sobre o tema. Selecionamos al-
aborto é um exemplo nítido tanto da guns escritos pontuais que marcaram
dificuldade de se estabelecer diálogos o debate contemporâneo e, a partir dos
sociais frente a posições morais dis- argumentos de seus autores, traçamos
tintas quanto do obstáculo em se criar um panorama bioético acerca do
um discurso acadêmico independente aborto.
sobre a questão, uma vez que a pai- O capítulo está dividido em três
xão argumentativa é a tônica dos es- partes, assim distribuídas: na primeira,
critos sobre o mesmo. Para um não- esclarecemos a terminologia e os princi-
iniciado, a maior dificuldade ao ser pais tipos de aborto; em seguida, apre-
apresentado à literatura relativa ao sentamos dados sobre legislação com-
aborto é discernir quais são os argu- parada, para, na terceira parte, nos
mentos filosóficos e científicos con- centrarmos no debate bioético propria-
125 sistentes dentre a infinidade de ma- mente dito sobre o tema.
T erminologia e tipos de
aborto
etc. Comumente, sugere-se o pra-
ticado pela medicina nazista
como exemplo de IEG quando
mulheres foram obrigadas a abor-
Uma avaliação semântica dos tar por serem judias, ciganas ou
conceitos utilizados pelos pesquisado- negras (1). Regra geral, a IEG pro-
res que escreveram (e escrevem) so- cessa-se contra a vontade da ges-
bre o aborto seria de extrema valia para tante, sendo esta obrigada a abor-
os estudos bioéticos. A variedade tar;
conceitual é proporcional ao impacto
social causado pela escolha de cada 2. Interrupção terapêutica da ges-
termo. Infelizmente, e isso é claro para tação (ITG): são os casos de abor-
qualquer pesquisador interessado no to ocorridos em nome da saúde
tema, não se escolhem os conceitos materna, isto é, situações em que
impunemente. Cada categoria possui se interrompe a gestação para
sua força na guerrilha lingüística, al- salvar a vida da gestante. Hoje em
gumas vezes sutil, que está por trás das dia, em face do avanço científico
definições selecionadas. Fala-se de e tecnológico ocorrido na medi-
aborto terapêutico como sendo abor- cina, os casos de ITG são cada
to eugênico, deste como aborto seleti- vez em menor número, sendo ra-
vo ou racista, numa cadeia de defini- ras as situações terapêuticas que
ções intermináveis que gera uma con- exigem tal procedimento;
fusão semântica aparentemente
3. Interrupção seletiva da gesta-
intransponível ao pesquisador. No en-
ção (ISG): são os casos de abor-
tanto, ao invés de se deixar abalar pela
to ocorridos em nome de anoma-
diversidade conceitual, o primeiro pas-
lias fetais, isto é, situações em que
so de uma pesquisa sobre o aborto é
se interrompe a gestação pela
desvendar quais pressupostos morais
constatação de lesões fetais. Em
estão por trás das escolhas. Há uma
geral, os casos que justificam as
certa regularidade moral na seleção de
solicitações de ISG são de pato-
cada conceito.
logias incompatíveis com a vida
Para este capítulo, utilizaremos a
nomenclatura mais próxima do discur- extra-uterina, sendo o exemplo
so médico oficial, por considerá-la a clássico o da anencefalia (2);
que mais justamente representa as prá- 4. Interrupção voluntária da ges-
ticas a que se refere. Basicamente, tação (IVG): são os casos de
pode-se reduzir as situações de aborto
aborto ocorridos em nome da
a quatro grandes tipos:
autonomia reprodutiva da gestan-
1. Interrupção eugênica da gesta- te ou do casal, isto é, situações
ção (IEG): são os casos de abor- em que se interrompe a gestação
to ocorridos em nome de práticas porque a mulher ou o casal não
eugênicas, isto é, situações em mais deseja a gravidez, seja ela
que se interrompe a gestação por fruto de um estupro ou de uma
valores racistas, sexistas, étnicos, relação consensual. Muitas vezes, 126
as legislações que permitem a IVG escolha da terminologia a ser adotada
impõem limites gestacionais à foi o fato de vários escritores denomi-
prática. narem a ISG de IEG. Este é um exem-
plo interessante do que denominamos
Com exceção da IEG, todas as
“terminologia de guerra”. O termo “se-
outras formas de aborto, por princípio,
letivo”, para nós, remete diretamente
levam em consideração a vontade da
à prática a que se refere: é aquele feto
gestante ou do casal em manter a gra-
que, devido a malformação fetal, faz
videz. Para a maioria dos bioeticistas,
com que a gestante não deseje o pros-
esta é uma diferença fundamental en-
seguimento da gestação. Houve, é cla-
tre as práticas, uma vez que o valor-
ro, uma seleção, só que em nome da
autonomia da paciente é um dos pila-
possibilidade da vida extra-uterina ou
res da teoria principialista, hoje a mais
da qualidade de vida do feto após o
difundida na Bioética (3). Assim, no
nascimento. Tratar, no entanto, o abor-
que concerne à terminologia, tratare-
to seletivo como eugênico é nitidamen-
mos mais especificamente dos três úl-
te confundir as práticas. Especialmen-
timos tipos de aborto, por serem os que
te porque a ideologia eugênica ficou
mais diretamente estão em pauta na
conhecida por não respeitar a vonta-
discussão bioética.
de do indivíduo. A diferença fundamen-
Em geral, ISG é também denomi-
tal entre a prática do aborto seletivo e
nada por ITG, sendo esta a justaposi-
a do aborto eugênico é que não há a
ção de termos mais comum. Na ver- obrigatoriedade de se interromper a
dade, muitos pesquisadores utilizam gestação em nome de alguma ideolo-
ITG como um conceito agregador para gia de extermínio de indesejáveis,
o que subdividimos em ISG e ITG. como fez a medicina nazista. A ISG
Esta é uma tradição semântica herda- ocorre por opção da paciente.
da, principalmente, de países onde a Muitos autores, especialmente
legislação permite ambos os tipos de aqueles vinculados a movimentos so-
aborto, não sendo necessária, assim, ciais, tais como o movimento de mu-
uma diferenciação entre as práticas. lheres, preferem falar em autonomia
No entanto, consideramos que, mes- reprodutiva ao invés de IVG (4). Na
mo para estes países onde o conceito verdade, entre ambos os conceitos há
ITG é mais adequado, em alguma me- uma relação de dependência e não
dida ele ainda pode gerar confusões, de exclusão. Apesar de o valor que
uma vez que há limites gestacionais rege a IVG ser o da autonomia
diferenciados para os casos em que se reprodutiva, consideramos que auto-
interrompe a gestação em nome da nomia reprodutiva é um conceito
saúde materna ou de anomalias fetais “guarda-chuva” que abarca não ape-
Além disso, o alvo das atenções é dife- nas a questão do aborto, mas tudo o
rente nos casos de ISG e ITG: no pri- que concerce à saúde reprodutiva. Na
meiro, a saúde do feto é a razão do verdade, como já foi dito, o princípio
aborto; no segundo, a saúde materna. do respeito à autonomia é o pano-de-
O outro motivo que nos fez diferenciar fundo de boa parte das discussões con-
127 a saúde materna da saúde fetal para a temporâneas em Bioética.
Além da variedade conceitual, nas...” (8). Não é preciso recorrer a
outro ponto interessante, no tocante argumentos baseados nas recentes
ao estilo dos artigos sobre o aborto, descobertas da neurofisio-
é a escolha dos adjetivos utilizados embriologia, como fizeram alguns
pelos autores para se referirem a seus autores na intenção de provar a im-
oponentes morais. Não raro, encon- possibilidade de um feto de 12 sema-
tram-se artigos que chamam os pro- nas sentir dor (9,10), para analisar o
fissionais de saúde que executam objetivo de um vídeo como este. A
aborto como “aborteiros”, “homici- idéia era provocar, no espectador,
das”, “assassinos” ou “carniceiros” a compaixão pela suposta dor do
(5). Na verdade, há relatos de casos feto durante o aborto e, conse-
de clínicas de aborto que foram quentemente, sustentar o princípio
incendiadas e os profissionais que do direito à vida desde a fecundação
nelas trabalhavam agredidos por gru- que, como veremos mais adiante, é
pos contrários ao aborto – grupos um dos pilares da argumentação con-
“defensores da vida”, como se trária ao aborto. No entanto, é preci-
autodenominam. Fala-se do feto samente esse tipo de discurso que
abortado como “vítima inocente” ou gera uma das maiores dificuldades na
mesmo “criança inocente”. Adjetivos seleção da literatura sobre o aborto:
como “hipócrita” ou “criminoso” va- misturam-se argumentos científicos e
lem para ambos os lados, sejam os crenças morais com a mesma facili-
proponentes ou oponentes da práti- dade com que se combinam ingredi-
ca. Nem mesmo sobre o resultado de entes em uma receita de bolo. E esta
um aborto há consenso: as denomi- é uma prática comum tanto entre pro-
nações variam desde “embrião”e ponentes quanto oponentes da ques-
“feto” até “criança”, “não-nascido”, tão. A dosagem de delírio varia na
“pessoa” ou “indivíduo” (6,7). intensidade da paixão.
Um exemplo clássico, porém
pontual, desta retórica sedutora e vio-
lenta que é a tônica do debate sobre
o aborto é o vídeo Grito Silencioso, L egislação comparada
editado por grupos contrários à prá-
tica do aborto. O filme mostra as re- A Conferência Internacional sobre
ações de um feto de 12 semanas População e Desenvolvimento ocorri-
(tempo máximo permitido por várias da no Cairo, em 1994, é considerada
legislações para a IVG) durante um um marco para as legislações e as po-
aborto. Vale a pena conferir um tre- líticas internacionais e nacionais acer-
cho da narração em que o especta- ca do aborto. Considera-se que, até
dor é convidado a identificar-se com antes da conferência do Cairo, o tema
o feto: “Esta pequena pessoa, com do aborto não compunha a agenda de
12 semanas, é um ser humano com- saúde pública de inúmeros países (11).
pletamente formado e absolutamen- Segundo Kulczycki et al, “...em Cairo,
te identificável. Tem apresentado on- pela primeira vez, um fórum
das cerebrais desde as seis sema- interministerial reconheceu que as 128
complicações do aborto apresentam superior (13). No Brasil, para o ano
ameaças sérias à saúde pública e re- de 1991, estimou-se que o total de
comendam que, onde o acesso ao abortos induzidos foi de 1.443.350,
aborto não é contra a lei, ele deve constituindo uma taxa anual, por 100
ser efetuado em condições segu- mulheres de 15 a 49 anos, de 3,65.
ras...”(11). Nos Estados Unidos, por exemplo,
O aborto, juntamente à prática esta taxa é de 2,73 (13).
do coito interrompido, tem sido du- Se, por um lado, o levantamen-
rante os séculos XIX e XX o método to demográfico acerca do número de
de controle de natalidade mais utili- abortos praticados no mundo é con-
zado e difundido (12). Em nome dis- testável, uma vez que se lida com es-
so, as taxas mundiais de aborto são timativas ante a ilegalidade da práti-
bastante elevadas, tendo como recor- ca, o estudo das legislações com-
distas alguns países da América La- paradas se mostra mais confiável.
tina e África. Apesar de difícil O melhor estudo sobre o assunto é o
mensuração, uma vez que o aborto é realizado por Rahman et al que vem
considerado crime em inúmeros paí- fazendo um acompanhamento da le-
ses, calcula-se que a taxa mundial de gislação mundial desde 1985, oca-
abortos por ano esteja entre 32 e 46 sião da publicação do primeiro rela-
abortos por 1000 mulheres na idade tório comparativo, sendo que o últi-
de 15 a 44 anos, havendo uma enor- mo levantamento foi publicado em
me variação entre os países, a de- junho de 1998, com dados relativos
pender da prevalência dos métodos até janeiro do mesmo ano (14). Se-
anticonceptivos, de sua eficácia e das gundo dados do relatório, 61% da
leis e políticas relativas ao aborto população mundial vive em países
(11). Nos países ocidentais, o pico onde o aborto induzido (IVG) é per-
etário do aborto ocorre entre as mu- mitido por algumas razões específi-
lheres de 20 anos, como, por exem- cas ou não apresenta restrições, ao
plo, na Inglaterra, onde 56% dos passo que 25% da população reside
abortos são praticados por mulheres em países onde o aborto é radical-
com menos de 25 anos, ao passo que mente proibido (14). Os autores do
nos Estados Unidos este número é de relatório argumentam, ainda, que
61% na mesma faixa etária. comparando dados da primeira pes-
Segundo dados do Instituto Alan quisa – de 1985 – com os levanta-
Guttmacher sobre o aborto na Amé- dos no último estudo há um direcio-
rica Latina, há uma correlação acen- namento mundial para a liberali-
tuada entre renda e acesso ao abor- zação do aborto. Dos vinte países que
to praticado por médicos. Enquanto modificaram suas legislações des-
apenas 5% das mulheres pobres ru- de o primeiro estudo, 19 o fizeram
rais têm acesso ao aborto médico, para legislações mais abertas para
este número é de 19% entre as mu- a prática. Vale a pena conferir a
lheres pobres urbanas e de 79% en- disposição legal mundial acerca do
tre as mulheres urbanas de renda aborto:
129
Países, pela restrição nas leis de aborto, de acordo com a região - 1997
Asia Central
Leste e Sul
Restrição ao As Américas Média Leste
da Ásia e o Europa África Sub-Saara
Aborto e o Caribe e Norte da
Pacífico
África
B ra si l - E A f e g a ni s t ã o B a ng l a d e s h Ir l a n d a A ng o l a Ma d a g a sca r
C hi l e - N D E g i to - S A In d o n é s i a B e ni n Ma li
Re p .
C o lô mb i a Ir ã Laos C e nt r o - M a ur i t â ni a
A f r i c a na
C ha d e
R e p úb l i c a
L íb a n o Mi e me n M a ur i t i us
D o m i ni c a na
C o ng o
E l S a l va d o r
L íb i a - P A Ne p a l ( B r a zza vi l l e ) Ni g e r
ND
P a ra sa l va r
a vida da O m a n S ír i a P a p ua N o va C o s ta d o
G ua t e m a l a Ni g é ri a
m ulher AS - PA G ui né Ma rfi m
E mi ra d o s Re p . D e m
Ha i ti Á ra b e s F i l i p i na s d o C o ng o S e ne g a l
S A - PA F
H o nd ur a s Iê m e n S r i L a nk a Ga b ã o S o má li a
M é xi c o - E To g o S ud ã o - E
N i c a r á g ua G ui né - B i s s a u
T â nza ni a
S P - PA S A - PA
P a ná m a
Q uê ni a
PA - E - F
P a r a g ua i L e s o to U g a nd a
V e ne zue l a
A r g e nt i na - K uw a i t P o l ô ni a B ur k i na
P a q ui s t ã o Ma la wi - S A
E (li mi ta d o ) S A - PA - F E - I - F Fasso - E
Re p . d a
B o l ív i a Ma rro co s -
C ó re i a B ur und i M o ç a m b i q ue
E - I SA
S A- E - I - F
A ra b i a
C a ma rõ e s
Saúde C o s ta Ri c a S a ud i t a Ta i l â n d i a - E R ua nd a
E - I - F
F ís i c a S A - PA
E q ua d o r
Zi m b á b ue
E - I E ri tré a
E
(li mi ta d o )
P e ru E ti ó p i a
U r ug ua i - E G ui né - B i s s a u
Ja ma i ca Ir l a n d a d o B o t s ua na L i b é ri a
A lg é ri a A us t r á l i a
PA No rte F - E - I F - E - I
Tr i n i d a d & Ir a q u e H o ng K o ng P o r t ug a l N a m íb i a
Gâ mb i a
To b a g o S - F - E - I F - E - I PA - F - E F - E - I
Saúde
M e n ta l Is r a e l E s p a nha G a na
Ma lá s i a
F - E - I F - E F - E - I
N o va
J o r d â ni a Ze l â nd i a S u íç a S e rra L e o a
F - I
Ín d i a
PA - E - F
Qu e s tõ e s
Socioeco- Japão - SA
nôm icas
Ta i w a n
130
S A-PA-I-F
C a mb o ji a
C ub a * - P A A r m ê ni a * A l b â ni a * Á f r i c a d o S ul *
Y - PA
E s ta d o s C hi na
A ze r b a i s t ã o * A ús t r i a - Y
U ni d o s - P V PA - L
P o rto Ri c o
Ge o rg i a * M o ng ó l i a * B e l a r us - Y
PV
C o ré i a d o B ó s ni a - H e r ze -
C a na d á - L K a za q ui s tã o *
No rte - L g o vi na * - P A
Re p .
S i ng a p ur a B ul g á r i a *
K yr g yz*
Ta j i q u i s t ã o * V i e t nã - L C r o á c i a * - PA
R e p . Tc h e k a *
Tu n i s i a *
PA
Tu r q u i a * D i na m a r c a *
SA - P PA
Tur k m e ni s tã o * E s t ô ni a *
Uzb e q ui s tã o * F r a nç a * - P A
A l e m a nha - Y
Gr é c i a * - PA
Sem
H ung r i a - Y
re s tri ç õ e s
d e m o ti v o It á l i a # - P A
L a t vi a *
L i t uâ ni a *
M a c e d ô ni a *
PA
M o l d o vi a *
H o l a nd a - P V
N o r ue g a *
PA
R o m ê ni a - Y
R ús s i a F e d *
S l o vá q ui a
Re p * - PA
S l o vê ni a *
PA
S ué c i a * *
U c r â ni a *
Yu g o s l á v i a *
PA
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137
138
Sérgio Danilo J. Pena
Eliane S. Azevêdo
O
PGH
Projeto Genoma Humano -
fantástico e certamente haverá impac-
tos múltiplos da nova tecnologia em
nossa vida quotidiana e em nossas
relações humanas. Para nós, a
Na história da civilização ociden- biotecnologia é inquietante porque
tal, os avanços tecnológicos freqüen- manipula a própria vida. E torna-se
te-mente trazem como conseqüência mais inquietante ainda quando volta
verdadeiras revoluções sociais e eco- a sua atenção para a própria pessoa
nômicas. Isto ocorreu, por exemplo, humana. É o caso do Projeto Genoma
com o desenvolvimento da agricultu- Humano – PGH.
ra, que permitiu a sedentarização das O genoma humano consiste de 3
sociedades nômades; com a invenção bilhões de pares de base de DNA dis-
da bússola, que permitiu as grandes tribuídos em 23 pares de cromossomos
navegações e, mais recentemente, com e contendo de 70.000 a 100.000 genes.
os desenvolvimentos da eletricidade, Cada cromossomo é constituído por
física nuclear, microeletrônica e uma única e muito longa molécula de
informática. Sem dúvida alguma, a DNA, a qual, por sua vez, é o cons-
emergência da biotecnologia moderna tituinte químico dos genes. O DNA é
representa um avanço técnico de igual composto por seqüências de unida-
139 magnitude: o potencial de progresso é des chamadas nucleotídeos ou bases.
Há quatro bases diferentes, A humano já está virtualmente completo
(ademina), T (timina), G (guamina) e em baixa e média resolução (2,3,4).
C (citosina). A ordem das quatro ba- O seqüenciamento em grande escala
ses na fita de DNA determina o con- dos três bilhões de pares de base que
teúdo informacional de um determina- constituem o genoma humano come-
do gene ou segmento. Os genes dife- çou há menos de um ano. Apenas 60
rem em tamanho, desde 2.000 bases milhões de pares de base já foram ana-
até 2 milhões de bases. Fica claro, en- lisados até agora. Entretanto, são ex-
tão, que os genes estruturais, que con- celentes as perspectivas de que o
têm a mensagem genética propriamen- seqüenciamento esteja completo em
te dita, perfazem apenas aproximada- 2005, como planejado originalmente
mente 3% do DNA de todo o genoma. (5). O PGH tem sido comparado com
O restante é constituído de seqüências o projeto de envio do homem à lua.
controladoras e, principalmente, de Porém, como salientado por Sidney
regiões espaçadoras, muitas das quais Brenner, após enviar o homem à lua o
geneticamente inertes. O PGH propõe mais difícil é trazê-lo de volta.
o mapeamento completo de todos os Analogamente, completar o
genes humanos e o seqüenciamento seqüenciamento não será o fim do
completo das 3 bilhões de bases do PGH, pois teremos, então, apenas o
genoma humano. Mapeamento é o pro- conhecimento anatômico. O mais di-
cesso de determinação da posição e fícil será o longo processo de entendi-
espaçamento dos genes nos mento da fisiologia, patologia e farma-
cromossomos. Seqüenciamento é o cologia do genoma.
processo de determinação da ordem Por que o tema do PGH é rele-
das bases em uma molécula de DNA. vante para nós, no Brasil? Afinal, não
A projeção é que o projeto esteja com- são os nossos problemas e carências
pleto no ano 2005, a um custo total de tão básicos que tal empreitada parece
três a cinco bilhões de dólares. alienada da nossa realidade? Múltiplos
O PGH tem avançado em veloci- argumentos têm de ser aqui analisa-
dade surpreendente. Genes expressos dos. Em primeiro lugar, o genoma hu-
de centenas de tecidos humanos já fo- mano é um patrimônio da humanida-
ram parcialmente seqüenciados após de. Assim, o Projeto Genoma reveste-
cópia do RNA mensageiro em biblio- se de um significado simbólico univer-
tecas de DNA complementar (cDNA). sal muito importante. Em nosso
Mais de 800.000 destas seqüências genoma está registrada toda nossa his-
parciais, chamadas ESTs (etiquetas de tória como espécie e projetada a nos-
seqüências transcritas), já estão dispo- sa potencialidade evolutiva. Se
níveis em bancos de dados públicos visualizarmos a ciência como uma ten-
(dbEST, 1998) (1), representando cer- tativa de compreender o mundo que
ca de 40.000 a 50.000 genes huma- nos cerca e de entender o
nos de um total estimado em 70.000- posicionamento do homem neste uni-
100.000. Já temos um mapa genético. verso, o Projeto Genoma vai fundo: o
O mapeamento destes genes e de homem compreendendo-se em seu ní-
marcadores de vários tipos no genoma vel mais essencial. Em segundo lugar, 140
temos de nos interessar por todo o autonomia, privacidade, justiça, igual-
enorme ganho prático e conflitos éti- dade e qualidade (8). O princípio da
cos pertinentes que certamente resul- autonomia estabelece que os testes
tarão do PGH (6). Este ganho será deverão ser estritamente voluntários,
mais palpável na invenção de novas após aconselhamento apropriado, e
técnicas de estudo e no desenvolvimen- que a informação deles resultante é
to de novos métodos diagnósticos e absolutamente pessoal. Reconhece-se,
terapêuticos em medicina. Os confli- todavia, que para que haja um
tos éticos, cujo surgimento está interli- aconselhamento apropriado é indis-
gado aos avanços técnicos, à medida pensável que o médico tenha conheci-
que surgem vão revelando o quanto a mentos suficientes sobre genética. La-
moral prevalente nas sociedades mo- mentavelmente, mesmo nos Estados
dernas e pluralistas acata ou questio- Unidos, a falta de uma compreensão
na determinados avanços. Inquestio- clara e segura sobre o significado dos
navelmente, têm especial importância percentuais de risco está se constituin-
para todos nós os aspectos sociais e do em grave problema ético no diálo-
morais do conhecimento gerado pelo go entre a maioria dos médicos e seus
projeto. Na mesma medida em que o pacientes (9). O princípio da privaci-
que aprendermos nos permita conquis- dade determina que os resultados dos
tar novas liberdades, não trarão a re- testes genéticos de um indivíduo não
boque ameaças às liberdades já exis- poderão ser comunicados a nenhuma
tentes? A resposta a essa indagação outra pessoa sem seu consentimento
exige uma reflexão ética profunda expresso, exceto talvez a familiares com
que deve cercar todo o Projeto elevado risco genético e, mesmo assim,
Genoma, e da qual toda a sociedade após falha de todos os esforços para
deve participar. obter a permissão do probando. O
DNA de cada pessoa representa um
tipo especial de propriedade por con-
A Bioética e o PGH
ter uma informação diferente de todos
os outros tipos de informação pessoal.
Mais que um relatório de exame clíni-
Por sua própria natureza, o PGH co de rotina cujos resultados podem
cerca-se de incertezas éticas, legais e ser transitórios e passíveis de variação
sociais (ELSI). Reconhecendo isto, o com dieta ou medicação, o resultado
PGH dedicou 10% de seu orçamento do exame de DNA não muda: está pre-
total à discussão destes temas. Três sente durante toda a vida da pessoa e
itens se destacam na agenda ELSI: 1) representa sua programação biológi-
privacidade da informação genética; ca no passado, no presente e no futu-
2) segurança e eficácia da medicina ro. O princípio da justiça garante pro-
genética e 3) justiça no uso da infor- teção aos direitos de populações vul-
mação genética (7). Subjacentes a es- neráveis, tais como crianças, pessoas
tes itens há cinco princípios básicos com retardo mental ou problemas psi-
sobre os quais está sendo construído quiátricos e culturais especiais. Não
141 o edifício ético consensual do PGH: apenas em nível pessoal mas também
populacional, em casos específicos de sua visão de mundo e suas práticas
populações indígenas ou similares. O sociais, além de consumir os novos
princípio da igualdade rege o acesso produtos. Que as comunidades cientí-
igual aos testes, independente de ori- fica e empresarial estão devidamente
gem geográfica, raça, etnia e classe estruturadas para exercer suas fun-
socioeconômica. Para nós, brasileiros, ções, ninguém tem qualquer dúvida.
fortemente marcados por tradicionais Mas a quem, afinal, compete a respon-
desigualdades de acesso aos bens de sabilidade maior de esclarecer os con-
saúde, o princípio da igualdade cons- sumidores? Diferentemente de outros
titui uma página especial de conflitos tipos de consumo, as pessoas terão na
éticos que exige reflexões e ações tam- oferta destes produtos conseqüências
bém especiais. Finalmente, o princípio de ordem pessoal, moral, psicológica
da qualidade assegura que todos os e afetiva. Além disso, a interação en-
testes oferecidos terão especificidade tre cientistas, empresários e sociedade
e sensibilidade adequados e serão re- será transparadigmática, ou seja, de-
alizados em laboratórios capacitados penderá fundamentalmente dos dife-
com adequada monitoragem profis- rentes paradigmas específicos que re-
sional e ética. A questão importante é gem a maneira pela qual os três ele-
que não há maneiras legais de garan- mentos percebem e expressam a im-
tir que estes princípios éticos serão portância relativa da genética e do am-
aceitos e provavelmente haverá biente na determinação do comporta-
pressões enormes, principalmente mento e da saúde humana.
de interesses econômicos, para a
implementação de testes genéticos
sem adesão a eles. Compete, pois, aos
bioeticistas e aos cientistas moralmen- R egulamentação bioética
do PGH
te motivados trazerem estas reflexões
éticas para a sociedade. Aqui, sobre-
modo, prevalece o reconhecimento Após o lançamento do PGH nos
da responsabilidade moral de produ- Estados Unidos, em 1989, grande
zir o conhecimento favorecendo seus número de outros programas
bons efeitos e limitando seus efeitos genômicos emergiu em nível nacio-
perversos (10). nal e internacional. Há, atualmente,
Em última análise, toda a proble- programas no Reino Unido, França,
mática ELSI vai convergir na interação Itália, Canadá, Japão, Austrália,
social de três elementos: a comunida- Rússia, Dinamarca, Suécia, Holanda
de científica do PGH, que vai gerar o e Comunidade Européia. Para a co-
novo conhecimento, indiferente ou não ordenação internacional destes esfor-
a seus aspectos éticos; a comunidade ços foi criada a Organização do
empresarial, que vai transformar este Genoma Humano (Human Genome
conhecimento em produtos e oferecê- Organization – HUGO). A HUGO
los à população e, finalmente, à socie- tem escritórios em Londres,
dade como um todo, que vai absorver Bethesda, Moscou e Tóquio. No Bra-
e incorporar o novo conhecimento em sil, o escritório da HUGO funciona 142
no Núcleo de Genética Médica, em te neste contexto (14,15). Mais recen-
Belo Horizonte. A missão da HUGO temente, o Comitê Internacional de
é promover a colaboração internacio- Bioética da UNESCO aprovou uma
nal na iniciativa genômica humana importante “Declaração Universal do
e assistir na coordenação da pesqui- Genoma Humano”, cuja cópia está
sa. A HUGO tem vários comitês, in- integralmente transcrita no Apêndice
cluindo: mapeamento, bioinfor- anexo.
mática, propriedade intelectual e
bioética. Do ponto de vista de pro-
priedade intelectual, a HUGO
tem tido uma posição firme contra o O diagnóstico pré-sintomáti-
co e a medicina preditiva
patenteamento de ESTs que, como já
explicado acima, são fragmentos cur-
tos de DNA seqüenciados aleatoria- Qual a relação entre o genoma e
mente de genes codificadores de pro- as características físicas e mentais?
teínas de função desconhecida (11).
Por outro lado, a HUGO, embora es- Como vimos acima, o genoma
timulando a publicação rápida e dis- humano contém aproximadamente
ponibilidade livre de informação so- 50.000 a 100.000 genes. Um gene é
bre seqüências genômicas, é contra uma unidade funcional que geralmen-
qualquer proibição do patenteamento te corresponde a um segmento de
de genes completos com função co- DNA que codifica a seqüência de
nhecida (12). O Comitê de Bioética aminoácidos de uma determinada
tem estado principalmente preocupa- proteína. Os produtos gênicos – as
do em normatizar a participação de proteínas – integram, coordenam e
indivíduos e populações em estudos participam dos processos enorme-
genômicos, especialmente com a mente complexos do nosso desenvol-
questão do consentimento informa- vimento embrionário e do nosso me-
do. Recentemente, este comitê enun- tabolismo. O produto final destes pro-
ciou quatro princípios que devem cessos de desenvolvimento e metabo-
nortear toda a pesquisa sobre o lismo é o ser humano. As caracterís-
genoma humano (13): (1) reconhe- ticas observáveis deste ser humano,
cimento de que o genoma humano é ou seja, sua aparência física, seu es-
parte do patrimônio da humanidade; tado de saúde, suas emoções, cons-
(2) aderência a normas internacio- tituem o seu fenótipo. Ao contrário
nais de direitos humanos; (3) respei- do genoma (genótipo) que permane-
to pelos “valores, tradições, cultura ce constante por toda a vida, o
e integridade” dos participantes nos fenótipo é dinâmico e muda constan-
estudos; (4) aceitação e defesa da temente ao longo de toda a existên-
dignidade humana e da liberdade. cia do indivíduo, registrando, assim,
A UNESCO também tem tido um a sua história de vida. O genótipo
papel importante na coordenação in- não determina o fenótipo; ele deter-
ternacional do PGH, principalmente mina uma gama de fenótipos possí-
143 como mediadora do diálogo Sul-Nor- veis, uma norma de reação. A norma
de reação é todo o repertório de vias bém de saber qual o tipo de altera-
alternativas de desenvolvimento e ção na proteína, o grau de robustez
metabolismo que podem ocorrer nos estrutural da mesma (uma única tro-
portadores de um dado genótipo em ca de aminoácidos pode abolir sua
todos os ambientes possíveis, favo- função?) e o papel fisiológico da pro-
ráveis e desfavoráveis, naturais ou teína (é uma enzima, um canal
artificiais. Em resumo, nosso genoma iônico, um receptor, etc.?). Quando
não determina um fenótipo, mas es- mutações em um único gene são ca-
tabelece uma gama de possibilida- pazes de, sozinhas, causar uma do-
des. Qual fenótipo se concretizará vai ença genética, falamos de um “gene
depender do ambiente e de suas de grande efeito” e a doença é cha-
interações com o genótipo. Para com- mada “monogênica”, podendo ter
plicar ainda mais, a maior parte das herança autossômica dominante,
características fenotípicas são com- autossômica recessiva ou ligada ao
plexas e sujeitas à ação de vários sexo. Por outro lado, a maioria das
genes em interação com múltiplos doenças comuns do homem (câncer,
determinantes ambientais. Assim, o diabetes, arteriosclerose, hiperten-
mero conhecimento da seqüência de são, etc.) são multifatoriais, depen-
bases do genoma humano não pode dendo de uma interação complexa de
ser traduzido diretamente em termos múltiplos genes de pequeno efeito
fenotípicos, exceto os mais simples. (doenças poligênicas) com o ambi-
Um conceito fundamental que ente.
emerge da discussão acima é que
não existem intrinsecamente “genes O que se pode conseguir com a
bons” nem “genes maus”. O genoma medicina preditiva?
humano é muito variável – se com-
pararmos os genomas de dois indi- A essência da medicina
víduos vamos encontrar, em média, preditiva, como o próprio nome in-
uma diferença em cada 500 dica, é a capacidade de fazer predi-
nucleotídeos, ou seja, há 6 milhões ções quanto à possibilidade de que
de posições diferentes em dois o paciente venha a desenvolver al-
genomas humanos. O que precisa- guma doença (nível fenotípico) com
mos saber é qual o efeito que estas base em testes laboratoriais em DNA
variações exercem sobre o fenótipo. (nível genotípico). Assim, a capaci-
Ao nível apenas do DNA não pode- dade preditiva do teste vai depender
mos fazer julgamentos de valor. Para do nível de relacionamento do gene
saber se uma determinada mutação testado com a doença. Por exemplo,
terá efeito fenotípico temos, em pri- imaginemos a situação de um indi-
meiro lugar, de saber se ela está em víduo jovem, filho de uma senhora
um segmento transcrito (em RNA na qual foi diagnosticada a coréia de
mensageiro) e traduzido (em proteí- Huntington, uma doença neurode-
na) do genoma, em outras palavras, generativa autossômica dominante
se esta mutação acarretará uma mu- causada por um gene de grande efei-
dança em uma proteína. Temos tam- to localizado em 4p16.3 (isto é, na 144
banda 16.3 do cromossomo n° 4). A Portanto, o valor do diagnóstico
detecção neste indivíduo jovem de laboratorial do genótipo DD é extre-
uma mutação (mutações neste caso mamente limitado como medicina
são causadas por expansões patoló- preditiva (só escolhemos este exem-
gicas de uma região repetitiva) per- plo porque este teste específico já
mitirá a afirmação de que inevitavel- está sendo oferecido em São Paulo
mente ele virá a desenvolver, no fu- com marketing direto ao consumi-
turo, a mesma doença que sua mãe, dor; com a contrapartida de que
independente de qualquer medida seria muito fácil contrabalançar
que possa tomar (obviamente, se vi- qualquer aumento de risco genéti-
ver por tempo suficiente, já que a do- co por meio de controle ambiental
ença geralmente manifesta-se na (ex., parar de fumar, emagrecer,
maturidade). Neste caso, então, te- fazer exercício aeróbico, etc.) (19).
mos um diagnóstico pré-sintomático. Assim, podemos definir a gama
Por outro lado, imaginemos um ou- da medicina preditiva. Por um lado,
tro indivíduo jovem no qual foi feito temos o diagnóstico pré-sintomático
um teste de polimorfismo genético da de doenças gênicas, situação em que
enzima conversora da angiotensina há grande previsibilidade mas baixa
(ECA). Foi inicialmente relatado na possibilidade de modificação do ris-
literatura que o genótipo DD em um co de desenvolvimento da doença.
polimorfismo deste gene estaria as- Por outro, temos doenças multifa-
sociado com um risco de infarto do toriais poligênicas em que um único
miocárdio duas vezes maior que o de teste genético tem baixa previsi-
indivíduos com genótipo II (16), em- bilidade, mas as chances de se ma-
bora estudos posteriores não tenham nipular o ambiente para tentar
podido evidenciar um risco tão claro evitar o desenvolvimento da doença
(17,18). O infarto do miocárdio é são grandes (Figura 1).
causado pela coronariopatia A maior parte das doenças com
aterosclerótica, uma doença noto- etiologia genética fica entre estes ex-
riamente multifatorial, na qual fato- tremos – são raras as doenças
res genéticos poligênicos e fatores
ambientais (dieta, fumo, atividade fí-
sica, etc.) interagem. Assim, o
polimorfismo da ECA é apenas um
dos inúmeros polimorfismos genéti-
cos envolvidos no estabelecimento de
um risco, como, por exemplo, Figura 1 – Previsibilidade dos testes genéticos
polimorfismos de genes do metabo-
lismo do colesterol, polimorfismos de puramente monogênicas (na grande
genes dos fatores da coagulação e da maioria das enfermidades genéticas
fibrinólise, polimorfismos de genes da monogênicas há influência de outros
superfície das plaquetas, do genes e de fatores ambientais na de-
endotélio, do controle de proliferação terminação da penetrância e do
145 da musculatura lisa das artérias, etc. grau de expressividade da doença)
e também são raras as doenças pura- gene mutante e 50% de ter herdado o
mente poligênicas (na grande maioria gene normal. Se ela herdou o gene
das doenças poligênicas há alguns normal, pode se tranqüilizar, já que seu
genes com efeito mais importante que risco de câncer de mama será exata-
outros, que são chamados “genes mai- mente o mesmo da população geral,
ores”). Como exemplo, vamos exami- ou seja, aproximadamente 10%. Por
nar a situação de algumas síndromes outro lado, se herdou o gene mutante
genéticas de câncer. ela tem 85% de probabilidade de de-
senvolver um câncer de mama antes
Exemplo de medicina preditiva: dos 70 anos de idade e uma probabili-
câncer familial de mama dade de 50% de desenvolver um cân-
cer de ovário. Imaginemos, agora, que
Após a clonagem de alguns genes ela fez um teste de BRCA1 e este reve-
de predisposição ao câncer na última lou que ela herdou o gene mutante. O
década, testes preditivos têm sido ofe- que ela deve fazer? Um programa de
recidos a indivíduos com risco genéti- exames regulares com mamografia ou
co. Por exemplo, em famílias com múl- uma mastectomia profilática e/ou uma
tiplos casos de carcinoma medular da ooforectomia profilática? Não há res-
tireóide ou com a síndrome de postas absolutas.
neoplasias endócrinas múltiplas tipo O fato do câncer de mama ser
2a, a detecção de mutações no proto- uma doença comum traz à baila a nova
oncogene RET em uma criança pode possibilidade de que testes genéticos
permitir a tireoidectomia profilática sejam feitos em indivíduos sadios da
eliminando o risco de câncer população, sem qualquer história
tireoidiano que pode ser fatal. Outro familial de câncer de mama. Várias
exemplo é a polipose familial do colo, complicações devem ser aqui discuti-
onde mutações no gene APC determi- das com relação a esta “triagem
nam elevadíssimo risco de desenvolvi- populacional”. Para melhor entendi-
mento de tumores colorretais malignos. mento, será essencial fazer uma peque-
Testes deste gene indicarão quais in- na digressão sobre genética molecular.
divíduos da família necessitarão de Tanto o BRCA1 quanto o BRCA2 são
monitoragem por exames de reto- genes muito grandes e centenas de
sigmoidoscopia e quais não terão de mutações diferentes nos mesmos po-
se preocupar. A situação é mais com- dem causar anormalidades nas pro-
plexa nos casos de câncer familial de teínas codificadas, que estão envolvi-
mama causados por mutações nos das no reparo de danos causados no
genes BRCA1 ou BRCA2, porque, in- DNA por radiação. A procura de uma
felizmente, não há uma vantagem ine- mutação em BRCA1 e BRCA2 é um
quívoca de uma pessoa saber se pos- procedimento complexo e muito
sui ou não mutações nesses genes. Exa- dispendioso, que depende do seqüen-
minemos a situação de uma jovem ciamento completo dos genes. Este pro-
cuja mãe teve câncer de mama e tem cedimento justifica-se no caso de uma
uma mutação em BRCA1. Esta jovem família com vários casos de câncer de
tem 50% de chance de ter herdado o mama, pois após a identificação da 146
mutação exata em uma das afetadas ainda não foi estabelecida; várias so-
é fácil, pela reação em cadeia da ciedades médicas e científicas já se
polimerase (PCR), desenhar um exa- manifestaram contra o seu uso clíni-
me específico para esta mutação, que co rotineiro (American Society of
pode então, de maneira simples e pou- Human Genetics, 1994; National
co dispendiosa, ser oferecido a todas Advisory Council for Human Genome
as mulheres com risco genético na fa- Research, 1994; National Action
mília. Por outro lado, na triagem Plan on Breast Cancer, 1996)
populacional é necessário testar todas (21,22,23).
as mutações em todas as candidatas,
com várias conseqüências: (i) a ausên- A medicina preditiva pode ser
cia de mutações detectáveis não ga- nociva?
rante que nenhuma mutação esteja
presente; (ii) algumas alterações da A medicina preditiva carrega con-
seqüência normal de BRCA1 e BRCA2 sigo um potencial iatrogênico impor-
são variantes normais (polimorfismos), tante. É ético fazer o diagnóstico pré-
ou seja, não representam um risco ele- sintomático de doenças que não têm
vado de câncer; (iii) algumas muta- cura? Quão confiáveis são os testes
ções, mesmo patológicas, podem es- genéticos preditivos? Quais são as con-
tar associadas com riscos de câncer seqüências de indivíduos sadios fica-
muito menores que os 85% até os 70 rem sabendo do seu destino médico?
anos citados acima (por exemplo, a A regulamentação de laboratórios que
mutação mais comum em judias oferecem testes preditivos é suficiente-
askenazitas confere um risco de 56% mente confiável para evitar erros de-
de câncer de mama e 16% de câncer vastadores? Como podem os indivídu-
de ovário); (iv) a percepção de os sadios ser protegidos de discrimi-
inevitabilidade do risco tem um fator nação por seguradoras e empregado-
temporal importante, ou seja, embora res potenciais? Quais são os verdadei-
os riscos sejam para toda a vida, o ros prós e contras dos testes preditivos?
horizonte de preocupação da pacien- As pessoas, em geral, não percebem
te é com os próximos 10 anos; e (v) os com clareza que entre ser portador de
efeitos dos genes de predisposição po- um gene alterado e apresentar a doen-
dem ser modificados por outros genes ça relacionada a este gene existe uma
polimórficos e por fatores ambientais probabilidade e não uma certeza. Sem
e estilos de vida, tais como a idade da esta percepção há a vulnerabilidade
menarca, gravidez, uso de pílula anti- a falsos alarmes ou a fantasiosas eu-
concepcional, etc. (20). Certamente, a forias. A desinformação genética po-
avaliação ponderada de todos estes derá, às vezes, ter conseqüências mais
elementos está muito além do que po- maléficas do que o próprio gene
deria ser esperada da maioria das mutante. Um tópico importante é sa-
mulheres da população e talvez mes- ber se o conhecimento gerado pelos
mo de seus médicos. Desta maneira, testes preditivos pode salvar vidas. Para
a triagem populacional está sempre doenças neurodegenerativas, a respos-
147 cercada de incertezas e sua eficácia ta é não. Para cânceres familiares, a
resposta ainda não está clara. Temos mentando que a paciente tinha uma
de determinar se as medidas preventi- doença preexistente, um “defeito ge-
vas que funcionam para a população ge- nético”, quando ingressou no plano
ral (mamografia, retossigmoidoscopia, e que não estaria então coberta. A
etc.) aplicam-se também aos cânceres paciente pagou pela cirurgia com
familiares. Por outro lado, como visto recursos próprios e no estudo
acima, o valor de um resultado nor- anatomopatológico foi constatada a
mal é inegável quando o exame foi fei- presença de um tumor canceroso que
to com inquestionável competência e não havia sido detectado pela
credibilidade. mamografia.
Para o paciente, haverá proble- Uma outra problemática que deve
mas psicológicos, porque o diagnósti- ser discutida é a leitura exagerada do
co pré-sintomático antecipa a passa- papel da genética na determinação de
gem do indivíduo do estado de sadio traços comportamentais e psíquicos, o
para o de doente. Haverá, também, o que tem sido chamado por Rose (25)
problema da estigmatização social e o de “determinismo neurogenético”. O
do preconceito. Ele poderá sofrer dis- determinismo neurogenético proclama
criminação de vários tipos. É possível ser capaz de explicar tudo pela genéti-
que os empregadores venham a exigir ca, da violência urbana à orientação
testes genéticos dos candidatos a em- sexual. Por exemplo, em 1994 a revis-
prego e recusar a admissão dos “afe- ta Time (15/8/1994) publicou uma re-
tados”. E a companhia de seguros? portagem de capa intitulada “Infidelity
Teria ela o direito de pedir testes gené- – It may be in our genes”. Independen-
ticos para o indivíduo que tem predis- te da argumentação falha do artigo,
posição para câncer? Terá ela acesso que não vamos nos dar ao trabalho de
a ficha médica dessa pessoa? discutir, a tentativa de responsabilizar
Recentemente, no New York Ti- o genoma pelo comportamento formal-
mes (24), foi relatado o caso de uma mente “reprovável” de algumas pesso-
jovem com forte história familial de as é bastante sintomática de uma pro-
câncer de mama, cujo teste genético pensão da nossa sociedade a assumir
mostrou a presença de uma mutação paradigmas deterministas para abdi-
em BRCA1. Informada do risco de car de responsabilidade social. Não
85% de desenvolvimento de câncer de surpreendentemente, no ano passado
mama até os 70 anos, a paciente op- a revista brasileira VIP-Exame (julho de
tou por fazer uma mastectomia preven- 1997) publicou uma reportagem de
tiva. Para tal, pediu a autorização do capa no mesmo teor: “Porque você trai
seu plano de saúde, sem revelar o re- – Não se sinta um canalha. A ciência
sultado do teste genético, mas relatan- diz que a culpa é do DNA”. A questão
do sua forte história familial. O plano de livre arbítrio versus determinismo é
de saúde negou o pedido, argumentan- tão velha quanto a humanidade. Com
do que não pagaria por medicina pre- as reformas Luterana e Calvinista fir-
ventiva. A paciente, então, apresentou mou-se a teoria determinista da
o resultado do teste de BRCA1. A com- predestinação, que estabeleceu os ali-
panhia novamente negou, agora argu- cerces culturais de países protestantes 148
como os Estados Unidos e grande par- sibilidade mas baixa possibilidade de
te da Europa e que, conseqüentemen- modificação do risco de desenvolvi-
te, têm influência em todo o pensamen- mento da doença, e por outro temos
to ocidental. Este determinismo tem doenças multifatoriais poligênicas em
contrapartidas igualmente fortes no que um único teste genético tem baixa
hinduísmo (conceito do karma) e no previsibilidade, mas grandes chances
islamismo [a própria palavra islame de se manipular o ambiente para evi-
vem do árabe “resignação” (à vonta- tar o desenvolvimento da doença. Es-
de de Deus)]. Embora de certo modo tas últimas incluem as várias formas
assustador, pela impossibilidade de es- de câncer, diabetes, coronariopatias,
cape, este determinismo é por outro hipertensão, doença de Alzheimer, ar-
lado conveniente, pois o peso da res- trite reumatóide, colite ulcerativa,
ponsabilidade criada pelo livre arbítrio esclerose lateral amiotrófica, esclerose
talvez seja mais apavorante ainda. De múltipla e as grandes psicoses
qualquer maneira, com a diminuição (esquizofrenia e psicose maníaco-
da importância social da religião nas depressiva). Em conjunto, estas doen-
últimas décadas, quem vai determinar ças acometem ou virão a acometer
nosso destino? Nada mais tentador que grande parte da população. Todas elas
resignar-nos aos desígnios do nosso têm em sua etiologia componentes ge-
genoma. Assim, tenta-se explicar que néticos importantes e a identificação
uma pessoa é homossexual porque tem dos genes envolvidos abrirá novas
genes de homossexualidade; embria- oportunidades para a intervenção mé-
ga-se porque tem genes do alcoolismo; dica. Assim, poderíamos usar testes de
comete crimes porque tem genes “cri- DNA em indivíduos sadios, digamos
minosos”, etc. Este reducionismo está aos 18 anos, para determinar as suas
profundamente incrustado na cultura propensões genéticas para doenças,
da nossa sociedade e vai influenciar estabelecendo, dessa forma, um mapa
fundamentalmente a receptividade aos individual de predisposições. A partir
frutos do PGH (26). Talvez, com um deste conhecimento o indivíduo pode-
programa de educação pública vigo- ria, com o aconselhamento e acompa-
roso, possamos gerar uma desejável nhamento apropriados, fazer as modi-
mudança deste paradigma, que permi- ficações ambientais necessárias (die-
tiria, então, a implantação de progra- ta, estilo de vida, escolha de profissão,
mas de testes genéticos dentro dos al- etc.) para evitar o aparecimento das
tos ideais éticos de autonomia, priva- doenças.
cidade, justiça, igualdade e qualidade Nem todas as doenças são boas
defendidos pelo PGH. candidatas para fazer parte da medi-
cina preditiva. As condições que con-
Qual deve ser a nossa conduta sideramos indispensáveis são: (i) um
com relação à medicina preditiva? gene de efeito maior deve estar entre
os que predispõem a doença; (ii) deve
Por um lado, temos o diagnóstico haver um teste genético simples para
pré-sintomático de doenças gênicas, estabelecer a presença de mutações
149 situação em que há grande previ- neste gene; (iii) o teste preditivo deve
gerar conhecimento útil para a preven- ticas (24). Além disso, o governo ame-
ção da doença; e (iv) devem ser bem ricano iniciou medidas para impedir
conhecidos os efeitos da informação a discriminação com base em testes
dos vários possíveis resultados dos tes- genéticos na contratação ou promoção
tes sobre o bem-estar psicológico e de trabalhadores nas empresas (28).
social do indivíduo testado. Assim, a Efetivamente, a legislação proibirá aos
nossa conduta com relação à medici- empregadores requisitar um teste ge-
na preditiva deve ser de um otimismo nético ou informação genética como
cauteloso. Acreditamos que, por en- condição para o emprego, bem como
quanto, a prática dos testes preditivos utilizar informação genética para limi-
ainda deve ser restrita à esfera dos cen- tar as oportunidades de trabalho, en-
tros de pesquisa universitários. A ge- tretanto permitirá o uso de testes ge-
neralização da sua prática deve ser néticos em algumas situações, visan-
acompanhada de cuidadosa regula- do garantir a saúde e segurança dos
mentação. trabalhadores. Paralelamente, temos de
Nos Estados Unidos, esta regula- levar em conta que todas estas regula-
mentação já foi iniciada. Criou-se no mentações podem vir a ter efeitos drás-
seio do PGH um Comitê (“Task For- ticos na estrutura dos seguros de saú-
ce”) de Testes Genéticos para avaliar de e seguros de vida (29).
o estado da arte dos testes preditivos e Há dois componentes importan-
emitir recomendações quando neces- tes na medicina “preditiva”: a comu-
sário para garantir: (i) o desenvolvi- nidade médico-científica, que conhe-
mento de testes genéticos seguros e efi- ce os testes e quer empregá-los, e a
cientes; (ii) o controle da qualidade dos comunidade do consumidor, que é o
laboratórios que oferecem estes testes; paciente em potencial. Infelizmente,
(iii) o uso apropriado dos testes pela está surgindo um terceiro componen-
comunidade médica e pelos consumi- te: as empresas de biotecnologia, nas
dores; e (iv) o estímulo ao desenvolvi- quais está envolvida a indústria far-
mento de novos testes (27). Em 1997, macêutica. Essas empresas estão in-
foi aprovada legislação nos Estados vestindo pesadamente no PGH. Há
Unidos garantindo que caso um indi- a expectativa de que a medicina
víduo esteja em um plano de saúde há preditiva abra mercados potencial-
pelo menos um ano, e caso tenha uma mente enormes, de bilhões de dóla-
doença genética diagnosticada nos úl- res, o que tem atraído as empresas
timos seis meses, esta informação não farmacêuticas e de biotecnologia
pode ser usada para cancelar ou limi- para esta área de atividade (30). Es-
tar a cobertura do plano. Também é ile- tima-se que até 1996 estas empresas,
gal, nos Estados Unidos, negar seguro conjuntamente, já haviam investido
de vida ou seguro de saúde com base mais de um bilhão de dólares no
em resultados de testes preditivos. Vinte PGH. Assim, vão entrar na relação
dos 50 estados americanos já têm le- médico-paciente como um coringa.
gislação impedindo o aumento do pre- Elas, certamente, vão querer induzir
ço de planos de seguro médico por o médico a fazer os testes genéticos
causa de presença de mutações gené- que elas mesmas desenvolveram e/ou 150
estão comercializando, e não terão o 8. Knoppers BM, Chadwick R. The human
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abr 20;Revista da Folha.
156
Regina Ribeiro Parizi
Nei Moreira da Silva
Transplantes
O s transplantes
Hume, no Peter Brent Brigham Hos-
pital, em Boston, obteve sucesso com
um transplante renal, após uma fracas-
Desde tempos imemoriais, os so- sada tentativa, 7 anos antes, de trans-
nhos de eterna juventude e imortalida- plante heterotópico (fora do sítio
de sempre acompanharam a humani- anatômico normal) de rim. No entan-
dade e alimentaram lendas e mitos. to, os transplantes somente adquiriram
Assim, quando os primeiros transplan- grande destaque na mídia quando
tes de órgãos obtiveram sucesso, o Barnard, em dezembro de 1967, na
imaginário pareceu tornar-se real. En- cidade do Cabo, realizou o primeiro
tretanto, ainda que essa técnica se transplante cardíaco, feito esse repeti-
constitua numa das mais admiráveis do no Brasil seis meses depois, em São
conquistas da ciência, muitas são ain- Paulo, por Zerbini. Nessa época, em
da as dificuldades a vencer. apenas 15 meses foram realizados 118
Os transplantes de órgãos, hoje transplantes e, para decepção geral,
corriqueiros, representam o todos os pacientes estavam mortos em
coroamento de séculos de aperfeiçoa- dezembro de 1969. Houve então uma
mento da cirurgia – especialmente a significativa redução de cirurgias até
partir do desenvolvimento das técnicas que critérios mais rígidos de seleção
de anastomoses vasculares, por Carrez de pacientes e o avanço obtido nas
e Gouthrie, em 1902 – e da imunologia técnicas de cuidados pós-operatórios
– com o conhecimento dos mecanis- intensivos permitissem maior seguran-
mos de rejeição e o desenvolvimento ça nos transplantes.
de drogas imunossupressoras, culmi- Hoje, a demanda mundial por
nando com a introdução da ciclosporina, transplantes está muito acima de sua
por Borel, em 1976. capacidade de realização. Para se ter
Uma das primeiras experiências uma pequena amostra dessa realida-
157 ocorreu, em 1954, quando David de, existem aproximadamente 25 mil
pacientes em hemodiálise, dos quais gislação atual; assim, ela disciplina a
pelo menos 15 mil têm indicação de gratuidade da doação, o creden-
transplante. No Brasil, são cerca de 5 ciamento das instituições junto ao
mil aguardando por um rim. Em São Sistema Único de Saúde (SUS) e cri-
Paulo, são 2.600 aguardando por rims, térios para a seleção do doador, entre
419 por fígado e 144 por um coração. outros.
Por outro lado, existem no país 176 A doação de tecidos, órgãos e
instituições realizando transplantes, partes do corpo humano passa a ser
concentradas nas regiões Sul e Sudes- realizada post mortem mediante o
te. No ano de 1997 (até setembro in- diagnóstico de morte encefálica regu-
clusive) foram realizados 1.456 trans- lamentado pela Resolução nº 1.480/
plantes de órgãos sólidos, sendo 1.247 97, do Conselho Federal de Medicina
de rim, 49 de coração, 150 de fígado, (CFM), e o Decreto nº 2.268/97, o qual
1 de pâncreas, 8 de pâncreas/rim e 1 considera doador toda pessoa que não
de pulmão. Quanto aos transplantes de manifestou em vida vontade contrária,
tecidos, foram 842 no total, sendo 650 devendo gravar em sua Carteira de
de córnea, 185 de medula óssea e 7 Identidade ou Carteira Nacional de
de ossos. Habilitação a expressão “Não Doa-
Outro fator a ser considerado são dor de Órgãos e Tecidos” para ga-
os custos, que já chegaram a até 200 rantir efetivamente a sua condição de
mil dólares para um transplante não-doador.
cardíaco e 400 mil dólares para um A doação em vida, por outro lado,
de fígado. Além disso, no seguimento sofre alterações na ampliação de seus
após a cirurgia, os gastos com critérios pois na legislação anterior (Lei
ciclosporina podem ficar em torno de nº 8.489/92) a doação só poderia
6 mil dólares ano/paciente. ocorrer em caso de parentesco muito
próximo ou com autorização judicial,
enquanto na lei atualmente em vigor é
L egislação brasileira
permitida a qualquer pessoa juridica-
mente capaz, desde que se trate de ór-
gãos duplos ou partes do corpo huma-
A Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de no que não coloquem em risco a vida
1997, bem como seu respectivo Decreto ou representem grave comprometimen-
nº 2.268, de 30 de junho de 1997, vie- to de sua funções vitais.
ram substituir a Lei nº 8.489, de 18 de É vedada a publicidade sobre di-
novembro de 1992 e o Decreto nº 879, versos aspectos relacionados aos trans-
de 22 de julho de 1993, introduzindo plantes de órgãos, bem como a pro-
modificações nas normas relativas aos moção de instituições que realizem tal
transplantes, em particular à doação pre- procedimento, a arrecadação de fun-
sumida – a qual tem provocado um in- dos em benefício de particulares e o
tenso debate tanto na esfera da bioética apelo público de doação para deter-
quanto na sociedade. minada pessoa.
Diversos aspectos relacionados As instituições ficam obrigadas
aos transplantes estão contidos na le- a notificar os casos de morte 158
encefálica às centrais de notificação
existentes em cada unidade da Fede- P erspectivas futuras
ração. Por sua vez, o Decreto nº
2.268/97, visando desenvolver o pro- A legislação brasileira referente
cesso de captação e distribuição de aos transplantes pode ser considerada
tecidos, órgãos e partes do corpo bastante atualizada, tendo em vista
humano, organizando para tanto a princípios fundamentais que vêm
lista única nacional de receptores, norteando internacionalmente os paí-
cria o Sistema Nacional de Trans- ses que realizam tais procedimentos.
plante – SNT, regulamentando as re- No entanto, encerra questões polêmi-
lações e atribuições do Ministério da cas, tanto do ponto de vista ético como
Saúde, secretarias estaduais e mu- técnico.
nicipais de Saúde, instituições hos- O principal debate, sem dúvida, tem
pitalares e redes de serviços. sido em torno da doação presumida, pois
Aos infratores a lei prevê, de for- embora tal medida venha sendo aplica-
ma minuciosa, sanções penais e ad- da em diversos países – como Austrália,
ministrativas que vão desde o Bélgica, França, Espanha e outros – mui-
descredenciamento até a multa e re- tos aspectos têm sido motivo de contro-
clusão. vérsias, originadas pelas diferenças cul-
turais e de condições estruturais dos sis-
temas e serviços de saúde de cada loca-
A doação “presumida“ é
realmente uma doação?
sa garantir a vontade ou o direito do
cidadão.
Por outro lado, nos países que
adotaram a doação presumida, euro-
Quanto ao caráter da doação, a peus principalmente, há predominân-
atual legislação brasileira introduziu o cia da tese de que os direitos individu-
princípio da doação presumida, pelo ais e de propriedade do cidadão de-
qual, não havendo manifestação em vem ser preservados desde que não fi-
documentos legais da decisão de não ram os interesses da coletividade, nos
doar, todos os indivíduos são doado- quais o Estado deve intervir para fazer
res. Ou seja, inverte-se o significado prevalecer. No entanto, mesmo nesses
altruísta da doação e passa a vigorar países há a tendência de buscar con-
o princípio da “ausência de negativa” ciliar esses interesses quando se obser-
como sinônimo de consentimento. A va a preocupação em certificar-se da
doação passa a ser simplesmente a opinião da família.
conseqüência da não renovação de A justificativa para a adoção do
um documento ou até mesmo do total “princípio da doação presumida” foi
desconhecimento da necessidade de exatamente o baixo índice de doações,
manifestar-se sobre a disponibilidade com conseqüente carência de órgãos
ou não dos seus órgãos, bem distinta, para transplantes ocasionando gran-
portanto, do que vem a ser um gesto des filas de pacientes que aguardam
de solidariedade. desesperados por órgãos que nunca
Vigente em países de cultura chegam, gerando, inclusive, privilegia-
anglo-saxônica com visão e costu- mento dos pacientes mais ricos.
mes diferentes dos nossos, pensa- Pensamos que não são estas nem
mos que o princípio da “doação as verdadeiras causas da insuficiência
presumida” choca-se com nossa de transplantes em nosso meio nem a
alma latina, por assemelhar-se à melhor solução para o problema. Na
“obrigação”, o que possivelmente verdade, a baixa oferta de transplan-
trará, ao menos de início, redução tes em nosso país é apenas uma parti-
165 no número de doadores. cularidade da ineficiência do sistema
de saúde em atender às necessidades Bibliografia
da população, desde os cuidados bá-
sicos até os procedimentos de maior
complexidade e alto custo, como o caso Argentina. Decree nº 512 of 10 April
de quimioterapia para câncer, trata- 1995, laying down regulations for the
mento da AIDS, exames sofisticados e implementation of law nº 24193 of 24
March 1993 on the transplantation of
os transplantes. Assim, sem que se re- organs and anatomical materials.
solva essa questão estrutural do siste- Boletin Oficial de la República Argenti-
ma, nada funcionará adequadamente na, Section 1, 17 April 1995.
na saúde no país, até mesmo a políti- International Digest of Health Legislation
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ca de transplantes, qualquer que seja
a natureza da doação preconizada em Bailey L. Organ transplantation: a
lei. A experiência de outros países, in- paradigm oh medical progress. Hastings
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clusive de culturas bastante diferentes
da nossa, demonstram que uma Brasil. Decreto nº 879, de 22 de julho de
melhoria dos índices de transplantes 1993. Regulamenta a Lei nº 8.489, de 18
depende mais de uma adequada es- de novembro de 1992, que dispõe sobre
a retirada e o transplante de tecidos, ór-
trutura do que de uma ilusória
gãos e partes do corpo humano, com fins
superoferta de órgãos almejada pela terapêuticos, científicos e humanitários.
doação presumida. Na prática, conti- Diário Oficial da União, Brasília, n. 139,
nuam os médicos a procurar obter al- p. 10298, 23 jul 1993. Seção 1.
gum tipo de autorização familiar para Brasil. Decreto nº 2.268, de 30 de ju-
a retirada dos órgãos. nho de 1997. Regulamenta a Lei nº
Defendemos o princípio da doa- 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, que
ção consentida (haverá outra manei- dispõe sobre a remoção de órgãos, teci-
dos e partes do corpo humano para fins
ra de doar algo que não com o con- de transplante e tratamento, e dá ou-
sentimento expresso?) associado a tras providências. Diário Oficial da
grandes e permanentes campanhas de União, Brasília, n. 123, p. 13739, 1 jul
divulgação junto à população, ao lado 1997. Seção 1.
da reestruturação do sistema de saú- Brasil. Lei nº 8.489, de 18 de novem-
de, adequando-o às necessidades da bro de 1992. Dispõe sobre a retirada e
população brasileira. É necessário que transplante de tecidos, órgãos e partes
o governo federal assuma suas respon- do corpo humano com fins terapêuticos
e científicos, e dá outras providências.
sabilidades de grande financiador da Diário Oficial da União, Brasília, n. 223,
saúde (pois é o grande arrecadador de 20 nov 1992. Seção 1.
impostos) e viabilize a efetiva
Brasil. Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de
implementação do SUS dentro dos
1997. Dispõe sobre a remoção de órgãos,
princípios constitucionais e das leis tecidos e partes do corpo humano para
regulamentadoras, vigentes já há qua- fins de transplante, e dá outras providên-
se uma década e, na prática, ignora- cias. Diário Oficial da União, Brasília, n.
25, p. 2191-3, 5 fev 1997. Seção 1.
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169
170
Leonard M. Martin, C.Ss.R
Eutanásia e Distanásia
I ntrodução
a distanásia levanta. Pretendemos,
sim, contribuir para um maior escla-
recimento sobre o que significa falar
O compromisso com a defesa da acerca de uma morte digna e sobre os
dignidade da vida humana, na grande meios éticos necessários para alcan-
maioria dos casos, parece ser a preo- çar este fim. Nesta busca de compre-
cupação comum que une as pessoas ensão, o grande instrumento a nosso
situadas nos diversos lados da dis- dispor é a linguagem e a identificação
cussão sobre eutanásia e distanásia. de palavras cujas referências são apro-
Este fato é importante porque indica priadas nos contextos onde são utili-
que as discordâncias ocorrem mais em zadas. Assim, podemos descobrir com
relação aos meios a utilizar do que em mais segurança aquilo que é bom,
relação ao fim desejado. Isto não sig- compreender melhor aquilo que é fra-
nifica que há consenso sobre o que se queza e desmascarar sem medo aqui-
entende por “compromisso com a de- lo que é maldade humana.
fesa da dignidade da vida humana”, A estratégia que propomos seguir
mas possuir clareza sobre a tarefa em em nossa reflexão é, primeiro, tentar
mãos – seja esclarecimento dos fins al- identificar os problemas que a eutaná-
mejados, seja esclarecimento dos meios sia e a distanásia querem resolver. O
– só pode ajudar na busca de uma éti- sofrimento no fim da vida é um dos
ca que respeite a verdade da condi- grandes desafios, que assume novos
ção humana e aquilo que é bom e cor- contornos neste fim de milênio diante
reto nos momentos concretos da vida da medicalização da morte e do poder
e da morte. que as novas tecnologias dão à profis-
Neste capítulo, portanto, nosso são médica para abreviar ou prolongar
objetivo é modesto. Não pretendemos o processo de morrer. Qualidade e quan-
resolver todos os problemas que a di- tidade de vida na fase terminal da exis-
171 nâmica da tensão entre a eutanásia e tência humana assumem conotações
insuspeitadas há cinqüenta ou cem nalidade acabar com a dor e a indig-
anos. Esta situação complica-se ain- nidade na doença crônica e no mor-
da mais diante das mudanças rer, eliminando o portador da dor. O
verificadas no estilo de praticar a me- debate sobre o sentido deste termo
dicina. No Brasil, pode-se detectar pelo gera, às vezes, mais calor que ilumi-
menos três paradigmas da prática mé- nação mas é importante que as pesso-
dica: o paradigma tecnocientífico, o as percebam com clareza o que estão
paradigma comercial-empresarial e o aprovando e o que estão condenando.
paradigma da benignidade humanitá- Nosso quarto ponto é um esfor-
ria e solidária, cada qual com suas ço para mostrar que rejeitar a euta-
prioridades e estratégias diante do do- násia não significa necessariamente
ente terminal e da problemática do seu cair no outro extremo, a distanásia,
sofrimento. onde a tecnologia médica é usada
O segundo ponto que pretende- para prolongar penosa e inutilmente
mos abordar é a situação muitas ve- o processo de agonizar e morrer.
zes chamada de eutanásia social. Su- Mais uma vez, neste caso, a clareza
gerimos que este conjunto de situações terminológica é indispensável para
é melhor caracterizado pelo termo fundamentar juízos éticos consisten-
mistanásia, a morte miserável, fora e tes.
antes da hora. A eutanásia, pelo me- Nosso quinto ponto, trabalhando
nos em sua intenção, quer ser uma com o conceito de saúde como bem-
morte boa, suave, indolor, enquanto a estar, procura mostrar que não preci-
situação chamada eutanásia social samos apelar nem para a eutanásia
nada tem de boa, suave ou indolor. nem para a distanásia para garantir a
Dentro da grande categoria de dignidade no morrer. Nossa tese final
mistanásia quero focalizar três situa- será que a ortotanásia, que procura
ções: primeiro, a grande massa de do- respeitar o bem-estar global da pessoa,
entes e deficientes que, por motivos abre pistas para as pessoas de boa
políticos, sociais e econômicos, não vontade garantirem, para todos, dig-
chegam a ser pacientes, pois não con- nidade no seu viver e no seu morrer.
seguem ingressar efetivamente no sis-
tema de atendimento médico; segun-
do, os doentes que conseguem ser pa-
cientes para, em seguida, se tornar ví-
timas de erro médico e, terceiro, os pa-
O s problemas que a eutanásia
e a distanásia querem resolver
cientes que acabam sendo vítimas de
má-prática por motivos econômicos, A eutanásia e a distanásia, como
científicos ou sociopolíticos. A procedimentos médicos, têm em co-
mistanásia é uma categoria que nos mum a preocupação com a morte do
permite levar a sério o fenômeno da ser humano e a maneira mais adequa-
maldade humana. da de lidar com isso. Enquanto a euta-
O terceiro ponto que queremos násia se preocupa prioritariamente com
aprofundar é a eutanásia propriamen- a qualidade da vida humana na sua fase
te dita, um ato médico que tem por fi- final – eliminando o sofrimento –, a 172
distanásia se dedica a prolongar ao má- rá uma maior precisão terminológica
ximo a quantidade de vida humana, e maior segurança nas decisões que
combatendo a morte como o grande e precisam ser tomadas, seja como mem-
último inimigo. bro da equipe médica, seja como pa-
Estas caracterizações iniciais da ciente, familiar ou responsável legal.
eutanásia e da distanásia, apontando No período pré-moderno, o mé-
para os valores que querem proteger, dico e a sociedade estavam bastante
podem servir de ponto de partida para conscientes de suas limitações diante
nossa discussão. das doenças graves e da morte. Mui-
A primeira grande questão para tas vezes, o papel do médico não era
ambas é a morte do ser humano e o curar, mas sim acompanhar o pacien-
sentido que esta morte apresenta, prin- te nas fases avançadas de sua enfer-
cipalmente quando acompanhada de midade, aliviando-lhe a dor e tornan-
fortes dores e sofrimento psíquico e do o mais confortável possível a
espiritual. Até um momento relativa- vivência dos seus últimos dias. De
mente recente na história da humani- modo geral, o médico era uma figura
dade, a chamada morte natural por paterna, um profissional liberal, num
velhice ou doença simplesmente fazia relacionamento personalizado com seu
parte da vida e, em grande parte, fu- paciente, muitas vezes um velho co-
gia do nosso controle. A morte violen- nhecido. Os ritos médicos foram acom-
ta, por outro lado, vem sendo aperfei- panhados de ritos religiosos e tanto o
çoada pela maldade humana durante médico como o padre tornaram-se
séculos e já alcançou requintes de per- parceiros na tarefa de garantir para a
versidade e capacidade de mortanda- pessoa uma morte tranqüila e feliz.
de em massa jamais sonhados no pas- Com a modernização da medici-
sado. Muitos dos receios que surgem na, novos estilos de praticar a ciência
na discussão sobre eutanásia e e novas atitudes e abordagens diante
distanásia refletem a consciência que da morte e do doente terminal emergi-
se tem de tanta violência e, no contex- ram. O paradigma tecnocientífico da
to da medicalização da morte, são re- medicina se orgulha, com bastante ra-
sultado do crescente poder moderno zão, diante dos significativos avanços
sobre os processos ligados com a cha- obtidos nos últimos cem anos nas ci-
mada morte natural e o espectro da ências e na tecnologia biomédica. Atu-
mão curadora do médico se transfor- almente, doenças e feridas antigamen-
mar em mão assassina. te letais são curáveis desde que tenham
Diante destas ambigüidades, para tratamento adequado. O orgulho, po-
maior clareza na discussão, parece-me rém, facilmente se transforma em ar-
oportuno distinguir entre a morte rogância e a morte, ao invés de ser o
provocada que acontece num contex- desfecho natural da vida, transforma-
to terapêutico sob a supervisão de pes- se num inimigo a ser vencido ou numa
soal médico devidamente habilitado e presença incômoda a ser escondida.
todas as outras formas de morte vio- Outro paradigma da moder-
lenta, sejam acidentais, sejam propo- nidade, bastante ligado aos desenvol-
173 sitais. Esta distinção nos proporciona- vimentos tecnológico e científico, é o
paradigma comercial-empresarial. O ortotanásia, a morte digna e huma-
advento da tecnologia, novos na na hora certa.
fármacos e equipamentos sofistica- Um outro problema – que tem um
dos tem um preço, e às vezes bem grande peso na discussão sobre euta-
alto. Este fato deu margem para a násia e distanásia – é a definição do
evolução de um estilo de medicina momento da morte. Em muitos casos,
onde o médico deixa de ser um pro- não há nenhuma dúvida sobre o óbito
fissional liberal e se torna um funcio- do paciente e o fato é aceito sem con-
nário, nem sempre bem pago, que testação tanto pela equipe médica
atua no contexto de uma empresa como pela família. Há outros casos,
hospitalar. Principalmente no setor porém, bastante polêmicos. A utiliza-
privado, a capacidade do doente ter- ção de tecnologia sofisticada que per-
minal pagar a conta, e não o diag- mite suporte avançado da vida levan-
nóstico, é o que determina sua ad- ta a questão de quando iniciar e quan-
missão como paciente e o tratamen- do interromper o uso de tal recurso. A
to a ser subseqüentemente emprega- crescente aceitação da constatação de
do. Já que, nesta perspectiva, o fator morte encefálica como critério para
econômico predomina, é o poder declarar uma pessoa morta é decisiva
aquisitivo do freguês, mais que a sa- não somente em casos onde se preci-
bedoria médica, que determina o sa liberar o corpo para enterro, mas,
procedimento terapêutico – a infiltra- também, para liberá-lo como fonte de
ção desta mentalidade nota-se mes- órgãos para transplante.
mo nos grandes centros de atendi-
mento médico mantidos pelos cofres
públicos.
Um terceiro paradigma da me- A mistanásia: a “eutanásia
social”
dicina, o paradigma da benignidade
humanitária e solidária, reconhecen-
do os benefícios da tecnologia e da Uma frase freqüentemente utiliza-
ciência e a necessidade de uma boa da é eutanásia social. No entanto, con-
administração econômica dos servi- sidero ser este um uso totalmente
ços de saúde, procura resistir aos ex- inapropriado da palavra eutanásia e,
cessos dos outros dois paradigmas e assim, deve ser substituído pelo uso do
colocar o ser humano como o valor termo mistanásia: a morte miserável
fundamental e central na sua visão fora e antes do seu tempo. A eutaná-
da medicina a serviço da saúde, des- sia, tanto em sua origem etimológica
de a concepção até a morte. Este (“boa morte”) como em sua intenção,
paradigma rejeita a mistanásia em quer ser um ato de misericórdia, quer
todas as formas, questiona os que propiciar ao doente que está sofrendo
apelam para a eutanásia e a uma morte boa, suave e indolor. As
distanásia e, num espírito de benig- situações a que se referem os termos
nidade humanitária e solidária, eutanásia social e mistanásia, porém,
procura promover nas suas práti- não têm nada de boas, suaves nem
cas junto ao moribundo a indolores. 174
Mistanásia em doentes e deficien- sucateamento dos serviços públicos e
tes que não chegam a ser pacientes da elitização dos serviços particulares
em outros. Numa sociedade onde re-
Na América Latina, de modo ge- cursos financeiros consideráveis não
ral, a forma mais comum de conseguem garantir qualidade no aten-
mistanásia é a omissão de socorro es- dimento, a grande e mais urgente ques-
trutural que atinge milhões de doentes tão ética que se levanta diante do do-
durante sua vida inteira e não apenas ente pobre na fase avançada de sua
nas fases avançadas e terminais de enfermidade não é a eutanásia, nem a
suas enfermidades. A ausência ou a distanásia, destinos reservados para
precariedade de serviços de atendi- doentes que conseguem quebrar as
mento médico, em muitos lugares, ga- barreiras de exclusão e tornar-se paci-
rante que pessoas com deficiências fí- entes, mas, sim, a mistanásia, destino
sicas ou mentais ou com doenças que reservado para os jogados nos quar-
poderiam ser tratadas morram antes da tos escuros e apertados das favelas ou
hora, padecendo enquanto vivem do- nos espaços mais arejados, embora
res e sofrimentos em princípio evitá- não necessariamente menos poluídos,
veis. embaixo das pontes das nossas gran-
Fatores geográficos, sociais, polí- des cidades.
ticos e econômicos juntam-se para es- Mistanásia por omissão é, sem
palhar pelo nosso continente a morte dúvida, a forma de mistanásia mais
miserável e precoce de crianças, jo- espalhada no chamado Terceiro Mun-
vens, adultos e anciãos: a chamada do. Há, porém, formas de mistanásia
eutanásia social, mais corretamente ativa que merecem breve comentário
denominada mistanásia. A fome, con- tanto por causa de sua importância
dições de moradia precárias, falta de histórica como da tendência de con-
água limpa, desemprego ou condições fundi-las com eutanásia.
de trabalho massacrantes, entre outros A política nazista de purificação
fatores, contribuem para espalhar a racial, baseada numa ciência
falta de saúde e uma cultura excludente ideologizada, é um bom exemplo da
e mortífera. aliança entre a política e as ciências
É precisamente a complexidade biomédicas a serviço da mistanásia.
das causas desta situação que gera na Pessoas consideradas defeituosas ou
sociedade um certo sentimento de im- indesejáveis foram sistematicamente
potência propício à propagação da eliminadas: doentes mentais, homos-
mentalidade “salve-se quem puder”. sexuais, ciganos, judeus. Pessoas en-
Planos de saúde particulares para quadradas nestas categorias não pre-
quem tem condições de pagar e o ape- cisavam ser doentes terminais para
lo às medicinas alternativas tradicio- serem consideradas candidatas ao ex-
nais e novas por parte do rico e do termínio. Pode-se argumentar, tam-
pobre, igualmente, são dados sintomá- bém, que o uso de injeção letal em exe-
ticos de um mal-estar na sociedade cuções nos Estados Unidos, principal-
diante da ausência de serviços de saú- mente se a aplicação for feita por pes-
175 de em muitos lugares e do soal médico qualificado, é um abuso
da ciência médica que constitui O Código de Ética Médica (1988)
mistanásia e, de fato, é um tipo de má fala de três tipos de erro médico: de
prática condenado pelo Código [Bra- imperícia, de imprudência e de negli-
sileiro] de Ética Médica (elaborado em gência (artigo 29). Nossa intenção aqui
1988), no seu artigo 54. é apenas apontar alguns destes erros
Os campos de concentração, com que surgem no caso do paciente crô-
grande quantidade de cobaias huma- nico ou terminal e que constituem
nas à disposição, favoreceram outro tipo mistanásia.
de mistanásia ativa. Em nome da ciên- Um exemplo de mistanásia por
cia, foram realizadas experiências em imperícia é quando o médico deixa de
seres humanos que em nada respeita- diagnosticar em tempo uma doença
vam nem a integridade física nem o que poderia ter sido tratada e curada
direito à vida dos participantes. Assim, porque ele descuidou da sua atualiza-
seres humanos foram transformados ção e da sua formação continuada
em cobaias descartáveis. (conforme o art. 5º do Código). A im-
O Brasil não está à margem da perícia do médico por desatualização
forte reação mundial a este tipo de condena o paciente a uma morte do-
comportamento. A Resolução n° 196/ lorosa e precoce.
96, do Conselho Nacional de Saúde, Outra forma de mistanásia por
adota uma série de medidas para ga- imperícia é a equipe médica deixar
rantir a integridade e a dignidade de de tratar adequadamente a dor do
seres humanos que participam em ex- paciente crônico ou terminal por fal-
periências científicas. A resolução exi- ta de conhecimento dos avanços na
ge, nesta situação, cuidados especiais área de analgesia e cuidado da dor,
para defender os interesses de grupos principalmente quando este conhe-
vulneráveis. O Código de Ética Médi- cimento for de acesso relativamente
ca comunga com esta mesma preo- fácil. A falta de habilidade nesta área
cupação quando, atentando para um pode significar, para o paciente, uma
grupo vulnerável específico, o paciente morte desfigurada por dor desneces-
crônico ou terminal, proíbe explicitamen- sária.
te, em seu artigo 130, experiências sem A mistanásia como resultado da
utilidade para o mesmo, com a intenção imprudência médica pode ser aponta-
de não lhe impor sofrimentos adicionais. da em vários casos.
Principalmente quando o médico
Mistanásia em pacientes vítimas de for adepto da medicina curativa e não
erro médico vê muito sentido em perder tempo com
pacientes desenganados, ele pode cor-
Um outro tipo de situação rer o risco de prescrever tratamento ou
mistanásica que nos preocupa é aquela outros procedimentos sem exame di-
dos doentes que conseguem ser admi- reto do paciente (postura condenada
tidos como pacientes, seja em consul- pelo artigo 62 do Código). Esta atitu-
tórios particulares, em postos de saú- de talvez poupe o tempo do médico,
de ou em hospitais, para, em seguida, mas expõe o doente a risco de terapia
se tornarem vítimas de erro médico. paliativa inadequada e sofrimento des- 176
necessário, ambos características típi- ça ou desinteresse por parte do médi-
cas da mistanásia. co e tais casos, certamente, são repro-
Outra forma de imprudência que váveis. Não seria justo, porém, jogar a
pode levar a resultados mistanásicos é culpa por toda a negligência nas cos-
o profissional de saúde efetuar qual- tas do médico como indivíduo, já que
quer procedimento médico sem o es- muitas vezes a negligência é fruto de
clarecimento e o consentimento prévi- cansaço e sobrecarga de serviços de-
os do paciente, só porque é crônico ou vido às condições de trabalho impos-
terminal. Deixando de lado os casos tas a muitos profissionais em hospitais
previstos nos artigos 46 e 56 do Códi- e postos de saúde.
go (apelo ao responsável legal e imi- Sem desmerecer estas considera-
nente perigo de vida), a imprudência ções, é importante apontar duas for-
em desconsiderar a autonomia do pa- mas de mistanásia por negligência
ciente crônico e terminal pode provo- onde o médico precisa se responsabi-
car um mal-estar mental e espiritual lizar e que o atual Código de Ética
devido à perda sensível de controle Médica procura evitar: a omissão de
sobre sua vida, tornando miserável e tratamento e o abandono do paciente
mistanásico o processo de morrer. O crônico ou terminal sem motivo justo.
direito de saber e o direito de decidir Não se contesta que o médico tem,
não são direitos absolutos, mas o res- até certo ponto, o direito de escolher
peito por eles no contexto de parceria seus pacientes e ele não é obrigado a
entre o doente e a equipe médica certa- atender a qualquer um, indiscrimi-
mente é elemento fundamental na pro- nadamente (conforme o artigo 7º do
moção do bem-estar global do paciente Código). Este direito, porém, como tan-
em fase avançada ou terminal de sua do- tos outros, não é absoluto. É limitado
ença. pela cláusula, no mesmo artigo, “salvo
Mistanásia por negligência tam- na ausência de outro médico, em ca-
bém surge para ameaçar o doente que sos de urgência, ou quando sua nega-
consegue se transformar em paciente. tiva possa trazer danos irreversíveis ao
Sem levar em consideração os paciente”. O princípio de beneficência
casos de mistanásia que atingem os e o apelo à solidariedade humana neste
doentes que não têm acesso a servi- caso pesam mais que o princípio da
ços de atendimento médico e que mor- autonomia do médico. O Código re-
rem antes da hora devido à omissão força esta posição no artigo 58 quan-
de socorro estrutural, queremos aqui do veda ao médico “deixar de atender
apontar a mistanásia provocada por paciente que procure seus cuidados
omissão de socorro na relação médi- profissionais em caso de urgência,
co-paciente já estabelecida ou pelo quando não haja outro médico ou ser-
abandono do paciente. viço médico em condições de fazê-lo”.
É verdade que casos de negligên- O médico que na ausência de outro se
cia que provocam danos ao paciente omite em casos de urgência ou que,
crônico ou terminal, aumentando seu pela inércia, causa danos irreversíveis
sofrimento e tornando mais miserável ao paciente, precipitando uma morte
177 sua morte, podem ser fruto de pregui- precoce e/ou dolorosa, é responsável
por uma negligência que constitui não to físico ou psíquico”. É interessante
apenas um erro culposo mas, também, notar que nos códigos de 1929 e de
uma situação mistanásica. 1931, em artigos com a mesma nu-
Se esta posição é válida para os meração, o abandono do paciente
pacientes de modo geral, aplica-se de crônico ou terminal é categoricamen-
modo especial ao paciente crônico e te proibido. De acordo com o artigo
terminal e o Código se esforça para 8/1929 (pouco modificado em 1931):
indicar precisamente isso quando tra- “0 médico não deverá abandonar
ta especificamente do problema do nunca os casos chronicos ou
abandono do paciente. incuraveis e nos difficeis e prolonga-
Além dos artigos 36 e 37 que ve- dos será conveniente e ainda neces-
dam ao médico abandonar plantão e sário provocar conferencias com ou-
pacientes de modo geral, há um artigo tros collegas”.
que trata especificamente da proble- O abandono do paciente crônico
mática do abandono do paciente crô- ou terminal que implica na recusa de
nico e terminal, o artigo 61. A posição “continuar a assisti-lo ainda que apenas
fundamental assumida é que é veda- para mitigar o sofrimento físico ou psí-
do ao médico “abandonar paciente quico” constitui, pois, por causa das suas
sob seus cuidados”. As exceções são conseqüências, uma forma de
regulamentadas por dois parágrafos mistanásia rejeitada pela profissão mé-
explicativos. O § 1º estabelece o pro- dica no Brasil desde os primórdios da
cedimento a seguir quando o médico sua tradição codificada.
considera que não há mais condições
para continuar dando assistência: Mistanásia em pacientes vítimas de
“Ocorrendo fatos que, a seu critério, má prática
prejudiquem o bom relacionamento
com o paciente ou o pleno desempe- A grande diferença entre a
nho profissional, o médico tem o di- mistanásia por erro médico e a
reito de renunciar ao atendimento, des- mistanásia por má prática reside na
de que comunique previamente ao pa- diferença entre a fraqueza humana e
ciente ou seu responsável legal, asse- a maldade. O erro, mesmo culposo por
gurando-se da continuidade dos cui- causa da presença dos fatores imperí-
dados e fornecendo todas as informa- cia, imprudência ou negligência, é fru-
ções necessárias ao médico que lhe su- to da fragilidade e da fraqueza huma-
ceder”. O § 2º insiste que o fato de o na e não de uma intenção proposital
paciente ser portador de moléstia crô- de prejudicar alguém. A má prática,
nica ou incurável não é motivo sufici- porém, é fruto da maldade e a
ente para abandoná-lo, “salvo por justa mistanásia por má prática ocorre
causa, comunicada ao paciente ou a quando o médico e/ou seus associa-
seus familiares, o médico não pode dos, livremente e de propósito, usam a
abandonar o paciente por ser este por- medicina para atentar contra os direi-
tador de moléstia crônica ou incurá- tos humanos de uma pessoa, em be-
vel, mas deve continuar a assisti-lo ain- nefício próprio ou não, prejudicando
da que apenas para mitigar o sofrimen- direta ou indiretamente o doente ao 178
ponto de menosprezar sua dignidade morte precoce, miserável e sem digni-
e provocar uma morte dolorosa e/ou dade. Não há dúvida que tal situação
precoce. constitui mistanásia, a única dúvida é
Fundamental para esta análise é de que tipo? É preciso distinguir entre
a convicção de que o foco de atenção a mistanásia que, por exemplo, ocorre
para a profissão médica deve ser a numa cidadezinha pobre do interior,
saúde do ser humano, convicção for- num abrigo para idosos abandonados
mulada claramente no artigo 2º do mantido a duras penas por pessoas de
Código de 1988: “O alvo de toda a boa vontade e com poucos recursos, e
atenção do médico é a saúde do ser a mistanásia por má prática que surge
humano, em beneficio da qual deverá numa empresa hospitalar quando a
agir com o máximo de zelo e o melhor verba destinada à alimentação e
de sua capacidade profissional”. O acompanhamento dos idosos for des-
desvio deste alvo levanta sérias preo- viada para beneficiar financeiramen-
cupações de ordem ética. Já é grave te donos, administradores ou funcio-
quando se usa a medicina para mal- nários da instituição, deixando os pa-
tratar qualquer pessoa, como, por cientes numa situação de miséria, pro-
exemplo, na prática de tortura ou na vocando-lhes uma morte indigna e
comercialização de órgãos para trans- antes da hora.
plante, principalmente quando retira- Outro exemplo de mistanásia
dos de doador pobre, vulnerável por por má prática, muitas vezes confun-
causa de sua situação econômica. dido com eutanásia por causa da mo-
Quando se usa a medicina para mal- tivação do responsável pelo ato, é
tratar o paciente, a gravidade é mais quando profissionais de saúde, mui-
complexa ainda por violar um rela- tas vezes enfermeiros que têm dificul-
cionamento especial de confiança e dades pessoais em conviver por lon-
de vulnerabilidade estabelecido entre gos períodos com pacientes termi-
a pessoa doente e o profissional de nais, por conta própria se tornam
saúde. “anjos da morte”, administrando
A malícia, aqui, consiste no uso medicamentos aos seus pacientes
maldoso da medicina contra o ser hu- idosos, crônicos ou terminais, visan-
mano ou para tirar proveito dele, em do apressar o óbito. O fato de ser
lugar de usá-la para promover seu bem- motivado por compaixão não justifi-
estar. ca esta atitude autoritária que, além
Não pretendemos demorar muito de ferir o direito à vida dessas pes-
neste ponto, mas vale a pena indicar soas confiadas aos seus cuidados,
algumas situações típicas para ilustrar fere também outros direitos ligados
melhor esta forma de mistanásia. à autonomia do paciente crônico ou
Um primeiro exemplo de terminal: o direito de saber qual o tra-
mistanásia por má prática pode surgir tamento proposto pela equipe médi-
no caso de idosos internados em hos- ca e o direito de decidir sobre proce-
pitais ou hospícios onde não se ofere- dimentos terapêuticos que o afetam,
cem alimentação e acompanhamento ou pessoalmente ou por meio do seu
179 adequados, provocando assim uma responsável legal.
Claro que a má prática se torna marcadas pela fraqueza e a maldade
muito mais grave se procedimentos humana.
para abreviar a vida de pacientes ido- Com esta análise das diversas for-
sos, crônicos ou terminais, especial- mas de mistanásia, preparamos o ter-
mente sem sua anuência, for política reno para tentar esclarecer melhor o
assumida pela administração do hos- sentido dos termos eutanásia, distanásia
pital ou hospice e não apenas iniciati- e ortotanásia.
va de profissionais isolados.
Um último exemplo de mistanásia
por má prática é retirar um órgão vi-
tal, para transplante, antes de a pes- A eutanásia
soa ter morrido. O Código de Ética
Médica de 1988 procura evitar esta A detalhada discussão da
prática proibindo ao médico que cui- mistanásia que acabamos de apresen-
da do paciente potencial doador – e tar é importante, em primeiro lugar,
responsável pela declaração de óbito para explicar o que se entende por
– participar da equipe de transplante. mistanásia e, em segundo lugar, para
Além da dimensão ética que pede res- ajudar-nos a entender melhor aquilo
peito pelo direito à vida da pessoa, que a eutanásia não é. No meio de
mesmo nos seus últimos momentos, há tanta confusão terminológica, a abor-
uma dimensão pragmática ligada com dagem do tema pela via negativa faci-
esta proibição. Se pessoas desconfiam lita o processo de esclarecimento pelo
que possam ser mortas para fornecer qual um determinado tipo de compor-
órgãos para outros, é bem possível que tamento se identifica corretamente
o número de pessoas recusando ser como sendo eutanásia, o que é indis-
doador aumente significativamente. pensável para poder emitir com sere-
Resumindo, podemos dizer que as nidade um juízo ético fundamentado.
situações de mistanásia provocada por É pouco provável que os comporta-
erro são graves mas, de modo geral, mentos que acabamos de caracterizar
são fruto da fraqueza e fragilidade da como mistanásia tenham seus defen-
condição humana. Não devem ser sores do ponto de vista da ética, mas
julgadas com a mesma severidade com a eutanásia, para muita gente, conti-
que se julgam situações mistanásicas nua uma questão aberta. É justamen-
onde as pessoas se tornam vítimas de te por isso que queremos examinar a
má prática por motivos econômicos, eutanásia levando em consideração o
científicos ou sociopolíticos, ou de ou- resultado que provoca, a intenção ou
tra forma de má prática qualquer fruto motivação que se tem para praticar o
da maldade humana. ato, a natureza do ato e as circunstân-
Estas distinções todas que acaba- cias. Também, precisamos distinguir
mos de ver são importantes porque nos entre o valor moral, considerado obje-
permitem distinguir entre situações de tivamente, que se pode atribuir a um
impotência devido às macroestruturas ato eutanásico e a culpa ética ou jurí-
sociais e às situações de responsabili- dica que se pode atribuir num deter-
dade individual ou comunitária minado caso. 180
Uma das grandes diferenças en- dade, do ponto de vista da ética médi-
tre a mistanásia e a eutanásia é o re- ca codificada e da teologia moral, é
sultado. Enquanto a mistanásia provo- que, na eutanásia, se elimina a dor eli-
ca a morte antes da hora – de uma minando o portador da dor.
maneira dolorosa e miserável –, a eu- O Código de Deontologia Médi-
tanásia provoca a morte antes da hora ca de 1931 expressa bem este dilema
de uma maneira suave e sem dor. É no seu artigo 16. Primeiro, afirma que
justamente este resultado que torna a “o médico não aconselhará nem prati-
eutanásia tão atraente para tantas pes- cará, em caso algum, a eutanásia”. Em
soas. seguida, afirma que o médico tem o
A grande preocupação dos parti- direito e o dever de aliviar o sofrimen-
dários da eutanásia é justamente tirar to, “mas esse alívio não pode ser leva-
da morte o sofrimento e a dor e a gran- do ao extremo de dar a morte por pie-
de crítica que eles fazem aos que rejei- dade”. A postura adotada é sedar, sim;
tam a eutanásia é que estes são desu- matar, não. A partir do Código de
manos, dispostos a sacrificar seres Deontologia Médica de 1945 (artigo 4º.
humanos no altar de sistemas morais 5) os códigos brasileiros de ética mé-
autoritários que valorizam mais prin- dica não mais utilizam o termo euta-
cípios frios e restritivos que a autono- násia, porém a reprovação da morte
mia das pessoas e a liberdade que as proposital por mão de médico perma-
dignificam. nece firme.
Não há dúvida que, aqui, existem No atual Código, de 1988, o arti-
elementos éticos de peso: o direito do go 6º dá continuidade a esta tradição
doente crônico ou terminal ter sua dor afirmando claramente a preocupação
tratada e, quando possível, aliviada; a com o valor da vida humana quando
preocupação em salvaguardar, ao diz: “O médico deve guardar absoluto
máximo, a autonomia da pessoa e sua respeito pela vida humana, atuando
dignidade na presença de enfermida- sempre em benefício do paciente. Ja-
des que provocam dependência pro- mais utilizará seus conhecimentos para
gressiva e a perda de controle sobre a gerar sofrimento físico ou moral, para
vida e sobre as funções biológicas; e o o extermínio do ser humano ou para
próprio sentido que se dá ao fim da permitir e acobertar tentativa contra
vida e à morte. sua dignidade e integridade”. Esta for-
Resta, porém, a questão: se a eu- mulação vai muito além de qualquer
tanásia é tão desejável como seus de- concepção biologista do ser humano,
fensores afirmam, por que há tanta afirmando que o tratamento deve ser
resistência, durante tanto tempo, por em benefício do paciente, que não se
parte da ética médica codificada e por deve usar a medicina para gerar sofri-
parte da teologia moral? mento, nem para ofender a dignidade
Pelo menos uma parte da respos- e integridade das pessoas e, menos
ta reside no próprio resultado que a ainda, para o extermínio do ser huma-
eutanásia traz. O grande objetivo é no. Como complemento desta afirma-
proteger a dignidade da pessoa, elimi- ção de princípios, dentro da grande
181 nando o sofrimento e a dor. A dificul- tradição da benignidade humanitária,
o Código veda ao médico: “Utilizar, em Outra grande diferença entre a
qualquer caso, meios destinados a mistanásia e a eutanásia é a intenção
abreviar a vida do paciente, ainda que ou motivação que se tem para prati-
a pedido deste ou de seu responsável car o ato. Em certas formas de
legal” (artigo 66). mistanásia, especialmente por má prá-
A moral católica, nos seus textos tica, existe a intenção de usar a medi-
oficiais, adota uma postura semelhan- cina para prejudicar o doente crônico
te quando declara moralmente repro- ou terminal, retirando vantagem desta
vável a eutanásia, entendida como situação. Para um comportamento se
“uma ação ou omissão que, por sua caracterizar como eutanásia, porém,
natureza ou nas intenções, provoca a é importante que a motivação e a in-
morte a fim de eliminar toda a dor”. tenção visem beneficiar o doente.
Esta afirmação da Sagrada Congrega- Apressar o óbito de um doente termi-
ção para a Doutrina da Fé é reforçada nal com a intenção de ganhar mais
pelas palavras do Papa João Paulo II, rapidamente a herança seria
na sua Carta Encíclica Evangelium mistanásia, se não simplesmente as-
Vitae n° 65, quando confirma que “a sassinato. Apressar o óbito deste mes-
eutanásia é uma violação grave da lei mo doente terminal, motivado por com-
de Deus, enquanto morte deliberada, paixão e com a intenção de mitigar seu
moralmente inaceitável de uma pessoa sofrimento, seria eutanásia.
humana”. Boas intenções não levam, neces-
Resumindo, podemos perceber no sariamente, a bons resultados. Com-
resultado da eutanásia dois elementos: paixão por aquele que sofre é, sem
a eliminação da dor e a morte do por- dúvida, um sentimento que enobrece
tador da dor como meio para alcan- a pessoa. Quando esta compaixão
çar este fim. A ética médica codifica- tem como resultado o alívio da dor e
da e a teologia moral acolhem o pri- a criação de estruturas de apoio que
meiro elemento, o tratamento e a eli- melhorem o bem-estar do doente ter-
minação da dor, e recusam o segundo minal, estamos diante de uma postura
elemento, a morte direta e proposital eticamente louvável. Quando, porém,
do portador da dor. Quando se con- esta compaixão leva a um ato médico
dena a eutanásia, não é o controle da que diretamente mata o paciente, aca-
dor, nem a defesa da dignidade da ba-se tirando da pessoa não apenas a
pessoa humana doente ou moribunda possibilidade de sentir dor mas, tam-
que se condena, mas, sim, aquela par- bém, qualquer outra possibilidade exis-
te do resultado que acaba matando a tencial.
pessoa a fim de matar sua dor. O de- Na administração de analgésicos
safio é como defender e promover os aos pacientes em fase avançada da sua
valores positivos da eutanásia (quem doença, a questão de intenção pode
não queria uma boa morte, suave e sem assumir uma importância muito gran-
dor?) sem cair no extremo de matar a de na avaliação ética do procedimen-
pessoa depositária da dignidade hu- to. Quando, por compaixão, se aplica
mana que fundamenta todos os outros o analgésico com a finalidade de abre-
direitos. viar a vida, estamos diante de um caso 182
de eutanásia. Quando, porém, se apli- como sendo expressões de mistanásia,
ca o analgésico com a finalidade de distanásia ou ortotanásia, conforme
aliviar a dor e mitigar o sofrimento, em seus resultados, intencionalidade, na-
doses não-letais, mesmo se com isso tureza e circunstâncias.
pode haver como efeito colateral um Dentro desta perspectiva que
certo encurtamento da vida, estamos estamos desenvolvendo, ainda falta
diante de uma situação diferente. No considerar um pouco mais a fundo a
primeiro caso, um ato tem como seu natureza do ato eutanásico e as cir-
principal efeito algo mau (matar dire- cunstâncias em que se realiza.
tamente alguém) e um efeito secundá- Uma ambigüidade que freqüen-
rio bom (eliminar a dor), enquanto no temente surge em relação à natureza
segundo caso o ato tem como seu prin- da eutanásia é se ela é exclusivamente
cipal efeito algo bom (eliminar a dor) um ato médico ou não. Se os fatores
e um efeito secundário mau (indireta- decisivos na definição da eutanásia
mente, apressar a morte de alguém). são o resultado (morte provocada, eli-
No segundo caso, pode-se ver que a minação da dor) e a motivação (com-
diferença reside precisamente na inten- paixão), a palavra pode continuar ten-
ção: fazer o bem, aliviando a dor; e na do uma conotação bastante ampla.
natureza do ato que também é bom: Nesta acepção da palavra, o ato de um
sedar para promover o bem-estar do marido atirar e matar sua esposa que
paciente. O procedimento se justifica está morrendo de câncer, porque não
pelo princípio do duplo efeito pelo qual agüenta mais ouvir suas súplicas para
se pode fazer algo bom (sedar), com acabar com tanto sofrimento, poderia
intenção reta (aliviar a dor), mesmo se ser caracterizado como eutanásia. Se,
isso tiver um efeito secundário negati- porém, se acrescenta outro fator, a
vo (apressar o processo de morrer num natureza do ato e a eutanásia for defini-
caso onde a terminalidade irreversi- da como ato de natureza médica, de re-
velmente se instalou). pente a situação descrita não é mais
A distinção entre ação direta e eutanásica.
resultados secundários aqui percebida Já que é o uso que consagra o
não pode ser transformada em critério sentido das palavras, minha sugestão
de aplicação mecânica, mas pode ser é que o ato descrito seja caracterizado
de grande utilidade mais adiante, na como homicídio por misericórdia ou,
discussão sobre a distanásia e o senti- quando muito, suicídio assistido, de-
do de prolongar indefinidamente a vida pendendo da participação da vítima
humana em certas circunstâncias. no processo. Mais ainda, proponho
Para ajudar na clarificação que se reserve a palavra eutanásia ex-
terminológica, nesta fase da discussão, clusivamente para denotar atos médi-
sugerimos que o termo eutanásia seja cos que, motivados por compaixão,
reservado apenas para a ação ou omis- provocam precoce e diretamente a
são que, por compaixão, abrevia dire- morte a fim de eliminar a dor.
tamente a vida do paciente com a in- Acolhida ou não esta sugestão, é
tenção de eliminar a dor e que outros importante, na análise de casos
183 procedimentos sejam identificados concretos, notar a diferença entre
um homicídio por misericórdia, siderações. É perfeitamente compreen-
culposo ou não, praticado por um pa- sível que uma pessoa tetraplégica,
rente ou amigo, e um ato médico que consciente, lúcida e angustiada peça
mata intencionalmente o doente a fim a morte para pôr fim ao seu sofrimen-
de aliviar sua dor. to. Se a saúde significa a ausência
Independentemente desta dis- de doença e de enfermidades
cussão sobre a abrangência do termo, a incapacitantes e se a autonomia sig-
eutanásia como ato médico merece ain- nifica que a pessoa tem liberdade de
da um pequeno comentário. Do ponto morrer quando e como quiser, faltan-
de vista ético, é importante distinguir do outros elementos é difícil encontrar
entre eutanásia praticada em pessoas argumentos para negar este pedido. Se,
que estão sofrendo física ou psicologi- porém, a saúde tem outra conotação
camente, mas cuja condição não é tal e se a autonomia se enquadra numa
que ameace imediatamente a vida (life- rede de sentidos e não é um critério de
threatening), e pessoas cuja enfermida- ação isolado, opções alternativas po-
de já entrou numa fase terminal, com dem ser cogitadas.
sinais de comprometimento progressivo Na situação onde se define a saú-
de múltiplos órgãos. de como ausência de doença ou de
Em ambos os casos, seria empo- incapacidade psicomotora, não existe
brecer muito a discussão reduzir a pro- muito sentido falar da saúde do doen-
blemática ética à simples questão de te tetraplégico com pouca perspectiva
autonomia e ao direito da pessoa de- de cura. Quando, porém, se entende a
cidir se quer continuar vivendo ou não. saúde como o bem-estar físico, men-
Mesmo na perspectiva da ética de prin- tal, social e espiritual da pessoa, abre-
cípios, além da autonomia, é preciso se todo um leque de possibilidades
levar em conta os princípios da bene- para falar na saúde do doente crônico
ficência, da não-maleficência e da jus- e para promover seu bem-estar. O
tiça. Se alargarmos mais ainda o hori- bem-estar físico da pessoa tetraplégica
zonte para dialogarmos com as pers- se promove, em primeiro lugar, cuidan-
pectivas da ética baseada num do de sua higiene, conforto e tratando
positivismo jurídico ou da ética da vir- infecções ou moléstias que possam pôr
tude, novas indagações e novas res- em risco sua vida. Um quarto limpo,
postas aparecerão. Diante desta reali- com cores alegres e temperatura agra-
dade do pluralismo ético, um conceito dável, onde não apenas o doente mas
adequado de saúde pode ajudar a também os outros que entram se sen-
redimensionar a questão de conflito tem à vontade, contribui muito. Não
entre valores e procedimentos e ofere- basta, porém, cuidar apenas do bem-
cer outras pistas a não ser a morte pre- estar físico. A promoção do bem-estar
coce da pessoa. mental é de fundamental importância
Analisando, especificamente, o para poder descobrir junto com o do-
caso da pessoa que está sofrendo físi- ente, exercitando justamente uma au-
ca ou psicologicamente, mas cuja con- tonomia co-responsável, outras saídas
dição não ameaça imediatamente sua para lidar com sua situação a não ser
vida, podemos tecer as seguintes con- a morte precoce. A reconquista de 184
autoestima e a descoberta das possi- mento apropriado é investir na morte.
bilidades existenciais dentro das novas A questão é, que tipo de morte?
limitações impostas pela sua condição Se a saúde significa a ausência de
física são todos caminhos para promo- doença e se o doente está com dores atro-
ver não apenas o bem-estar mental do zes e numa situação onde não há míni-
doente mas, também, no sentido am- mas condições de efetuar uma cura,
plo do termo, sua saúde. A reconquis- parece não ter sentido falar da saúde do
ta da auto-estima acontece, de modo paciente terminal e a eutanásia pode se
especial, no mundo das relações hu- apresentar como uma proposta razoá-
manas e é difícil divorciar a promo- vel. Se, porém, se entende a saúde como
ção do bem-estar mental da promoção o bem-estar físico, mental, social e es-
do bem-estar social. Isolamento da piritual da pessoa podemos começar a
convivência com pessoas significativas pensar não apenas na saúde do doente
é uma das grandes fontes de miséria crônico mas, também, em termos da
para o doente crônico. Reverter este saúde do doente em fase avançada da
isolamento, recriando redes de rela- sua doença e com índices claros de
cionamento e construindo novo senti- terminalidade.
do para viver é um caminho alternati- Nesta perspectiva, a promoção do
vo que leva o doente a esquecer seu bem-estar físico do doente terminal,
pedido de morte e a investir novamen- claro, não consiste na sua cura, mas
te na vida. Nesta fase de construção nos cuidados necessários para asse-
de novos sentidos, a preocupação com gurar seu conforto e o controle da sua
o bem-estar espiritual pode ser um fa- dor. Garantir este bem-estar físico é um
tor decisivo na promoção da saúde glo- primeiro passo para manter sua saú-
bal da pessoa. de enquanto morre. Mas bem-estar fí-
À luz desta reflexão, pode-se ar- sico apenas não basta. Muitas vezes,
gumentar que nesta situação onde a é o mal-estar mental que leva o doente
angústia é provocada por uma condi- terminal a pedir a morte antes da hora.
ção que não ameaça diretamente a Por isso, uma estratégia importante
vida, a eutanásia é um procedimento para permitir a pessoa repensar seu
inapropriado do ponto de vista da éti- pedido de eutanásia é ajudá-la a re-
ca. O que a situação requer não é in- criar seu equilíbrio e bem-estar men-
vestimento na morte mas, sim, investi- tal. O sentir-se bem mental e emocio-
mento no resgate da vida e do seu sen- nalmente é componente fundamental
tido. na saúde do doente terminal. Da mes-
No caso onde a terminalidade já ma forma, o bem-estar social e espiri-
se instalou e o comprometimento tual agregam às outras formas de bem-
irreversível do organismo está em fase estar uma condição que permita à pes-
avançada, novamente o conceito de soa aguardar com tranqüilidade a
saúde com que se trabalha é decisi- morte e viver plenamente dentro de
vo para poder dialogar com a pro- suas possibilidades enquanto ela não
posta eutanásica. Enquanto no caso vem.
anterior o procedimento apropriado foi Para concluir esta parte da nossa
185 investir na vida, neste caso o procedi- reflexão sobre a eutanásia e os dile-
mas éticos que levanta, precisamos como, por exemplo, compaixão diante
distinguir entre o valor moral, consi- de grande sofrimento, ou por retas in-
derado objetivamente, que se pode atri- tenções, como, por exemplo, aliviar a
buir a um ato eutanásico e a culpa éti- dor. O ato continua sendo crime, mas
ca ou jurídica que se pode atribuir num as pessoas que o praticam, em deter-
determinado caso. minadas circunstâncias especificadas,
Trabalhando com a definição de não são punidas, não porque a euta-
eutanásia que nós mesmos propomos: násia em si não seja um mal, mas por-
atos médicos que, motivados por com- que outros fatores entram na elabora-
paixão, provocam precoce e direta- ção do juízo ético-jurídico.
mente a morte a fim de eliminar a dor, Na teologia moral, algo semelhan-
precisamos traçar alguns parâmetros te existe na distinção que se faz entre
para a valoração da eutanásia em ca- o mal objetivo e o pecado, entre a
sos concretos. maldade praticada e a culpa pessoal.
Na tradição jurídica ocidental e Para caracterizar um pecado grave
na tradição da ética médica codifica- não basta uma pessoa cometer um ato
da e da teologia moral não há dúvida objetivamente mal, como matar uma
que a eutanásia, nos termos traçados, pessoa inocente. Precisa, também, ter
é considerada objetivamente como conhecimento claro e pleno que aqui-
sendo um mal. Isto não significa, po- lo que se faz está errado e ter plena
rém, que estas tradições desconsiderem liberdade para agir. Em relação à eu-
o elemento subjetivo e tratem unifor- tanásia, em determinados casos é pos-
memente todos os casos onde há ho- sível juntar estes três elementos: maté-
micídio por misericórdia ou onde há ria grave, clara consciência e plena
eutanásia no sentido mais restrito por liberdade; nesta circunstância, o ato
nós proposto. As distinções que exis- eutanásico seria um pecado. Porém,
tem no direito entre crime e pena e na no dia-a-dia dos doentes terminais,
teologia moral entre o mal, o pecado e quando se praticam atos eutanásicos,
a culpa podem ajudar nos casos con- muitas vezes por causa das pressões
cretos onde a pessoa pratica o que é emocionais, familiares ou sociais, fal-
objetivamente um mal, segundo os cri- tam os elementos de clareza de cons-
térios dos sistemas jurídicos e éticos, ciência ou de liberdade. Nestes casos,
mas onde ela considera que está pro- o próprio documento do Vaticano que
cedendo corretamente. versa sobre a eutanásia (de 1980) re-
Em relação à problemática jurí- conhece que pode haver diminuição
dica, um sistema de leis pode, perfei-
ou até ausência total de culpa.
tamente, continuar acenando no sen-
tido de que a eutanásia é um mal ob-
jetivo, prejudicial à sociedade, carac-
terizando-a como crime e, ao mesmo
tempo, incorporar na legislação meca-
A distanásia
nismos pelos quais não se prevêem A mistanásia e a eutanásia têm
penas para pessoas que praticam tais em comum o fato de provocarem a
atos movidas por fortes emoções, morte antes da hora. A distanásia erra 186
por outro lado, não conseguindo A questão técnica, nesta ótica, é
discernir quando intervenções terapêu- como prolongar os sinais vitais de uma
ticas são inúteis e quando se deve dei- pessoa em fase avançada de sua do-
xar a pessoa abraçar em paz a morte ença e cuja terminalidade se constata
como desfecho natural de sua vida. a partir de critérios objetivos como, por
Neste comportamento, o grande valor exemplo, a falência progressiva e múl-
que se procura proteger é a vida hu- tipla de órgãos. A questão ética é: até
mana. Enquanto na eutanásia a preo- quando se deve investir neste empre-
cupação maior é com a qualidade da endimento? Que sentido este investi-
vida remanescente, na distanásia a mento tem?
tendência é de se fixar na quantida- No Brasil, na tradição da ética
de desta vida e de investir todos os médica codificada, durante certo tem-
recursos possíveis em prolongá-la ao po havia uma tendência a respaldar
máximo. um comportamento distanásico. O
A distanásia, que também é ca- motivo apresentado pelo Código de
racterizada como encarniçamento 1931 para reprovar a eutanásia é “por-
terapêutico ou obstinação ou futilida- que um dos propósitos mais sublimes
de terapêutica, é uma postura ligada da medicina é sempre conservar e pro-
especialmente aos paradigmas longar a vida” (artigo 16). Se aceitar-
tecnocientífico e comercial-empresarial mos que a finalidade da medicina “é
da medicina. sempre conservar e prolongar a vida”
Ajuda-nos a entender melhor a estamos claramente deitando as raízes
problemática da distanásia situá-la da justificação da distanásia com seu
na transição da medicina como arte, conjunto de tratamentos que não dei-
nas suas expressões pré-modernas, xam o moribundo morrer em paz. No
para a medicina como técnica e ci- atual Código de Ética Médica notamos
ência, na sua expressão mais moder- uma importante mudança de ênfase.
na. Os avanços tecnológicos e cien- O objetivo da medicina não é apenas
tíficos e os sucessos no tratamento prolongar ao máximo o tempo de vida
de tantas doenças e deficiências hu- da pessoa. O alvo da atenção do mé-
manas levaram a medicina a se pre- dico é a saúde da pessoa e o critério
ocupar cada vez mais com a cura de para avaliar seus procedimentos é se
patologias e a colocar em segundo eles vão beneficiá-la ou não (artigo 2º).
plano as preocupações mais tra- O compromisso com a saúde, princi-
dicionais com o cuidado do porta- palmente se for entendida como bem-
dor das patologias. A saúde se defi- estar global da pessoa e não apenas
ne em termos de ausência de doença ausência de doença, abre a possibili-
e o grande inimigo a derrotar é a dade de se preocupar com questões
morte. O importante é prolongar ao outras no tratamento do doente termi-
máximo a duração da vida humana; nal que apenas questões curativas.
a qualidade desta vida, um conceito Mesmo assim, continua firme a con-
de difícil mediação para a ciência e vicção, encontrada em códigos ante-
a tecnologia, passa para segundo pla- riores, de que “o médico deve guardar
187 no. absoluto respeito pela vida humana”
(artigo 6º). Esta tensão entre benefici- dade solidária e humanitária e a teo-
ar o paciente com tratamentos paliati- logia moral procuram outras aborda-
vos – que talvez abreviem sua vida mas gens na tentativa de resolver o dilema
que promovem seu bem-estar físico e entre tratar em excesso ou deixar de
mental – e a absolutização do valor da tratar o suficiente o doente terminal.
vida humana no seu sentido biológico Procuram mostrar que atribuir grande
gera um dilema que alguns médicos valor à vida humana não significa uma
preferem resolver a favor do prolonga- opção por uma frieza cruel diante do
mento da vida. sofrimento e da dor do paciente termi-
Dentro da perspectiva do nal. A medicina tecnocientífica tende
paradigma tecnocientífico, a justifica- a resolver o dilema caindo em um dos
ção do esforço para prolongar indefi- dois extremos. Ou escolhe a eutanásia
nidamente os sinais vitais é o valor – reconhecendo sua impotência e, nes-
absoluto que se atribui à vida huma- te caso, opta por abreviar o sofrimen-
na. Dentro da ótica do paradigma co- to, abreviando a vida, alegando que já
mercial-empresarial da medicina, a que não pode mais curar a pessoa não
obstinação terapêutica segue outra há sentido em prolongar a agonia – ou
racionalidade. Aqui, ela tem sentido na escolhe a distanásia – ofendida no seu
medida em que gera lucro para a em- brio, optando por resistir à morte até
presa hospitalar e os profissionais nela as últimas conseqüências, mostrando
envolvidos. Havendo um plano de saú- uma obstinação terapêutica que vai
de ou uma família ou instituição dis- além de qualquer esperança de bene-
postos a investir neste procedimento, ficiar o doente ou promover seu bem-
os tratamentos continuam enquanto o estar global. A medicina que atua den-
paciente não morrer ou os recursos tro do paradigma da benignidade hu-
não acabarem. Dentro de um sistema manitária e solidária e que opera com
de valores capitalistas, onde o lucro é o conceito de saúde como bem-estar
o valor primordial, esta exploração da tende a optar por um meio termo que
fragilidade do doente terminal e dos nem mata nem prolonga exagera-
seus amigos e familiares tem sua pró- damente o processo de morrer, mas
pria lógica. Uma lógica sedutora por- que procura favorecer à pessoa uma
que, além de garantir lucro para a morte sem dor, uma morte digna na
empresa, parece defender um dos gran- hora certa, rodeada de amor.
des valores da ética humanitária, o A teologia moral procura abordar
valor da vida humana. Porém, a pre- a questão afirmando que a vida e a
cariedade do compromisso com o va- saúde são bens fundamentais que per-
lor da vida humana, nesta perspecti- mitem a conquista de tantos outros
va, se manifesta logo que comecem a bens, mas que não são bens absolu-
faltar recursos para pagar as contas. tos. A vida nesta terra é finita e a mor-
Uma tecnologia de ponta que parecia te é um fenômeno natural que pode ser
tão desejável de repente é retirada e domado mas não evitado. O sentido
tratamentos mais em conta, do ponto que se dá ao viver e ao morrer é que é
de vista financeiro, são sugeridos. importante. A tradição cristã reconhe-
O paradigma médico da benigni- ce que há circunstâncias em que a 188
pessoa pode, legitimamente, sacrificar um dever básico de cuidar da saúde,
sua saúde e sua vida – por exemplo, mas deve existir uma proporciona-
para salvar a vida de outra pessoa. lidade entre os meios usados para isto
Reconhece, também, que há momen- e os resultados previsíveis. Principal-
tos quando se deve lutar para afastar mente quando não há mais possibili-
a morte e momentos quando se deve dade de se recuperar de uma doença
parar e abraçá-la. – e quando já se iniciou o processo de
Já em meados do século XX, o morrer – “é lícito, em consciência, to-
papa Pio XII, preocupado em mar a decisão de renunciar a tratamen-
humanizar a situação do paciente ter- tos que dariam somente um prolonga-
minal, falou da distinção entre meios mento precário e penoso da vida sem,
ordinários e meios extraordinários em contudo, interromper os cuidados nor-
relação ao direito e dever de empregar mais devidos ao doente em casos se-
os cuidados necessários para conser- melhantes”.
var a vida e a saúde. Enquanto con- O que abre horizontes para pro-
denava claramente a eutanásia, ele cedimentos éticos que evitam a
rechaçou a distanásia afirmando que distanásia é a distinção entre terapia
ninguém é obrigado a usar meios ex- e cuidados normais. Cuidar do asseio
traordinários para manter a vida. Ele do paciente, do seu conforto e de sua
estabelece como princípio básico o alimentação – na medida em que essa
direito e dever de empregar os cuida- pode ser tolerada por via oral – consti-
dos necessários para conservar a vida tuem, sem dúvida, cuidados normais.
e a saúde. Somente é obrigação, po- A obrigação ética de recorrer a qual-
rém, usar meios ordinários que não quer outro procedimento que constitui
impõem nenhum ônus extraordinário ato médico ou terapêutico, incluindo,
para si mesmo ou para outros. Nesta a meu ver, alimentação artificial, pre-
perspectiva, determinadas cirurgias ou cisa ser avaliada à luz da propor-
tratamentos caros no exterior podem cionalidade entre o ônus para o paci-
ser legitimamente recusados. O fato de ente e para os responsáveis pelo seu
não ser obrigado a fazer algo não tira bem-estar e os benefícios que razoa-
a liberdade de fazê-lo e isto é a tercei- velmente possam ser previstos. Não há
ra consideração que Pio XII apresen- nenhuma obrigação de iniciar ou con-
ta. É permitido apelar para meios ex- tinuar uma intervenção terapêutica
traordinários, com a condição de não quando o sofrimento ou o esforço gas-
faltar com deveres mais graves. to são desproporcionais aos benefícios
Em 1980, com a Declaração so- reais antecipados. Neste caso, não é a
bre a Eutanásia, a posição da Igreja foi interrupção da terapia que provoca a
aperfeiçoada um pouco mais. Diante morte da pessoa, mas a patologia previ-
das dificuldades de se definir, em ca- amente existente.
sos concretos, quais os meios ordiná- Na perspectiva da benignidade
rios e extraordinários, a Declaração humanitária e solidária, o importante
adota a terminologia de meios propor- é viver com dignidade e, quando che-
cionados e meios não proporcionados. gar a hora certa, morrer com dignida-
189 Por esta distinção se entende que há de também.
A ortotanásia
já que nos referimos a seu bem-estar
físico, mental, social e espiritual, mes-
mo quando não há mínima perspecti-
Estas reflexões nos levam a per- va de cura, e isto faz sentido.
ceber que, para os que favorecem uma O compromisso com a promoção
medicina tecnocientífica ou comerci- do bem-estar do doente crônico e ter-
al-empresarial, uma mudança de minal permite-nos não somente falar
paradigma se impõe se quiserem evi- de sua saúde mas, também, de desen-
tar os excessos da eutanásia e da volver um conceito de ortotanásia, a
distanásia. Enquanto o referencial for arte de bem morrer, que rejeita toda
a medicina predominantemente cura- forma de mistanásia sem, no entanto,
tiva, é difícil encontrar caminho que cair nas ciladas da eutanásia nem da
não pareça desumano, por um lado, ou distanásia.
descomprometido com o valor da vida A ortotanásia permite ao doente
humana, por outro. Uma luz importan- que já entrou na fase final de sua do-
te advém da mudança de compreen- ença, e àqueles que o cercam, enfren-
são do que realmente significa saúde, tar seu destino com certa tranqüilida-
que vem sendo impulsionada pela de porque, nesta perspectiva, a morte
redefinição deste termo pela Organi- não é uma doença a curar, mas sim
zação Mundial da Saúde, para a qual algo que faz parte da vida. Uma vez
já chamamos a atenção. Em lugar de aceito este fato que a cultura ocidental
ser entendida como a mera ausência moderna tende a esconder e a ne-
de doença, propõe-se uma compreen- gar, abre-se a possibilidade de tra-
são da saúde como bem-estar global balhar com as pessoas a distinção
da pessoa: bem-estar físico, mental e entre curar e cuidar, entre manter a
social. Quando a estes três elementos vida – quando isto for o procedimento
se acrescenta também a preocupação correto – e permitir que a pessoa mor-
com o bem-estar espiritual, cria-se uma ra – quando sua hora chegou.
estrutura de pensamento que permite Neste processo o componente éti-
uma revolução em termos da aborda- co é tão importante quanto o compo-
gem ao doente crônico ou terminal. nente técnico. O ideal é realizar a
Dentro do horizonte da medicina integração do conhecimento científico,
curativa que entende a saúde, primor- habilidade técnica e sensibilidade éti-
dialmente, como a ausência de doen- ca numa única abordagem. Quando
ça, é absurdo falar da saúde do doen- se entende que a ciência, a técnica e a
te crônico ou terminal porque, por de- economia têm sua razão de ser no ser-
finição ele não tem nem pode ter saú- viço à pessoa humana individual, co-
de. Porém, se redimensionamos nosso munitária e socialmente, descobre-se
conceito de saúde para focalizar suas no doente crônico e terminal um valor
dimensões positivas, reinterpretando- até então escondido ou esquecido.
a como sendo um estado de bem-es- Respeito pela sua autonomia: ele tem
tar, descobrimos formas de discurso o direito de saber e o direito de deci-
nas quais existe sentido em se falar da dir; direito de não ser abandonado;
saúde do doente crônico ou terminal, direito a tratamento paliativo para 190
amenizar seu sofrimento e dor; direito plificações desta natureza. Aspectos
de não ser tratado como mero objeto jurídicos, sociais, psicológicos, cultu-
cuja vida pode ser encurtada ou pro- rais, religiosos insistem em se “intro-
longada segundo as conveniências da meter” e “complicar” a situação. O
família ou da equipe médica são to- objeto biológico constantemente se
das exigências éticas que procuram transforma num sujeito pessoal reivin-
promover o bem-estar global do doen- dicando direitos, dignidade e respeito.
te terminal e, conseqüentemente, sua Nesta insistência do “eu” em incomo-
saúde enquanto não morre. No fundo, dar o objetivo científico, surgem os
ortotanásia é morrer saudavelmente, parâmetros éticos e as questões vitais
cercado de amor e carinho, amando e que procuramos identificar dentro das
sendo amado enquanto se prepara categorias de mistanásia, eutanásia,
para o mergulho final no Amor que não distanásia e ortotanásia.
tem medida e que não tem fim.
C onclusão
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4.ed.rev.atual. Aparecida, SP: Santuá-
rio, 1997. vol 2, t.1.
192
Corina Bontempo D. Freitas
William Saad Hossne
I ntrodução
número total de cientistas que o mun-
do já teve e morreram. E, caso a curva
do crescimento não sofra inflexão, da-
Admite-se que as ciências expe- qui a 10 – 15 anos teremos o dobro de
rimentais, a partir das quais se desen- cientistas em relação aos dias atuais.
volveram os outros ramos da ciência, Essas duas considerações, a re-
têm como marco inicial simbólico as volução científica e o número de cien-
contribuições e, sobretudo, a postura tistas em ação, merecem pequena re-
de Galileu no século XVI. flexão dentro de nosso tema. Ambos
Desde então os avanços científi- os fatos significam, em última análise,
cos se fizeram de tal forma que, ao fi- a geração constante e crescente de
nal de dois séculos, configurou-se e novos conhecimentos e novas
consolidou-se a chamada Revolução tecnologias, os quais se destinam ao
Científica. homem e irão atingi-lo de modo direto
No século XX, a evolução cientí- e indireto. E a primeira aplicação do
fica e tecnológica apresentou ritmo tão conhecimento ou da tecnologia no ser
vertiginoso a ponto de se poder falar humano é, no fundo, uma experimen-
em mais duas revoluções, no mesmo tação. Assim, é lícito assumir o con-
século: a revolução atômica, na primei- ceito de que, cada vez mais, estará
ra metade do século, e a revolução aumentando o número de experimen-
molecular, a partir da década de 50 e tações em seres humanos.
cujo auge está sendo vivenciado nos Em geral, quando se pensa no
dias de hoje. assunto, o foco se concentra nas pes-
Por outro lado, desde Galileu o quisas na área médica, no máximo na
número de cientistas vivos vem dupli- biomédica ou na saúde. Compreende-
cando a cada 10 a 15 anos; estima-se se, até certo ponto, que assim seja. As
que, hoje, o mundo dispõe de um nú- pesquisas na área das profissões da
193 mero de cientistas maior, talvez, que o saúde são, em geral, mais visíveis, com
conseqüências imediatas; além do concentração de torres de emissão de
mais, principalmente na área médica, energia.
onde existe uma tradição ética de vin- Nos dias de hoje, o ser humano
te e cinco séculos, há constante preo- tem o poder, graças à nova biologia,
cupação com esse aspecto. de interferir e até dominar setores ou
Contudo, na verdade, a experi- áreas de importância vital (ou mortal):
mentação com seres humanos ocorreu poder sobre a reprodução (até mesmo
e vem ocorrendo em muitas outras a concepção sem sexo), sobre a here-
áreas, muitas vezes sem a devida pre- ditariedade (terapêuticas gênicas,
ocupação com os aspectos éticos. transgenicidade), sobre as neurociên-
Faz-se experimentação com seres cias (transplante de células nervosas,
humanos no setor da educação, da fi- condicionamentos psico-farmacoló-
sioterapia, da terapia ocupacional, da gicos), clonagem.
educação física, da sociologia, etc. e A possibilidade da aplicação
até na economia (nem sempre com as indevida dos conhecimentos, da ciên-
devidas premissas científicas ou bási- cia e da tecnologia, podendo levar até
cas e, no geral, atingindo coletivida- à destruição da humanidade, foi
des). um dos fatores que deram origem
O ser humano pode também es- ao neologismo proposto há vinte e
tar sendo objeto (e não sujeito) de pes- cinco anos por Potter – “Bioética” –,
quisa, sem que o saiba; podem ocor- o qual tem, hoje, na verdade, uma ou-
rer situações em que só a posteriori os tra conotação, mais ampla.
cientistas e o ser humano submetido à Todas essas considerações apon-
experimentação tomam conhecimento tam para a oportunidade e necessida-
de que houve uma “experimentação de premente de se discutir a questão
humana”. da experimentação com seres huma-
Foi o caso dos linfomas detecta- nos, de modo a permitir os avanços da
dos em prevalência maior nas locali- ciência e da tecnologia em benefício
dades (na Europa) em que as crian- da humanidade, tendo, contudo, como
ças conviveram constantemente com centro de preocupação, o respeito pela
redes de alta tensão. Foi o caso, tam- dignidade do ser humano.
bém, das leucemias diagnosticadas em Quanto à pesquisa propriamente
operadores (e em seus descendentes) dita, são de estarrecer o número, a di-
de radar por longo período, durante a versidade e as circunstâncias em que
II Guerra. se cometeram abusos, dentro e fora
Vale lembrar que, do ponto de vis- dos campos de concentração, durante
ta biológico, em animais, está bem de- a II Grande Guerra. Abusos que, às
monstrada a ocorrência de alterações vezes, tiveram a participação de pes-
sangüíneas, eletroencefalográficas, soas de alto prestígio científico e com
cromossômicas, oculares e testiculares, amparo de órgãos de apoio à pesqui-
decorrentes da emissão de energias de sa e de outros cuja função seria a de
alta freqüência. Convém, a propósito, cuidar da saúde da população.
não esquecer a “alta poluição” nos gran- Inoculação experimental de sífilis
des centros, ocasionada pela elevada em adolescentes, o não – tratamento 194
deliberado de pacientes sifilíticos ou de Deontologia) dos profissionais de
mulheres com lesões pré-cancerosas saúde.
do colo do útero, com objetivo de curi- Não obstante a dramaticidade do
osidade científica, a inoculação pro- contexto em que surge o Código de
posital do vírus da febre amarela, da Nuremberg, os abusos continuaram a
dengue, da hepatite, sem o devido res- ocorrer. Já na década de 60, Beecher
paldo ético, são exemplos clássicos – chamava a atenção para o grande nú-
sem falar das experiências realizadas mero de pesquisas de experimentação
com prisioneiros de guerra, em estu- humana conduzidas de forma etica-
dos sobre congelamento, ação de ve- mente inadequada e publicadas em
nenos ou radiações. revistas médicas de renome.
Com este pano de fundo, não dei- Em 1964, na 18ª Assembléia da
xa de ser surpreendente o fato de que Associação Médica Mundial foi revis-
somente em 1947 a humanidade deci- to o Código de Nüremberg e aprovada
diu estabelecer as primeiras normas a Declaração de Helsinque, introdu-
reguladoras da pesquisa em seres hu- zindo a necessidade de revisão dos
manos. Normas que surgiram quando protocolos por comitê independente, a
do julgamento dos crimes de guerra qual, revista na década de 70 (Tóquio)
dos nazistas, ao se tomar conhecimento e de 80 (Veneza e Hong Kong) e, por
(aliás, na verdade, parte já era conhe- último, em 1996 na 48ª Assembléia
cida) das situações abusivas da expe- Geral realizada em Somerset West, Re-
rimentação, que foram denominadas pública da África do Sul, continuou
como “crimes” contra a humanidade. porém conhecida com o nome de De-
Surge, então, o Código de Nüremberg claração de Helsinque. Nesta declara-
estabelecendo normas básicas de pes- ção se estabelecem também as normas
quisas em seres humanos, prevendo a para a pesquisa médica sem fins
indispensabilidade do consentimento terapêuticos.
voluntário, a necessidade de estudos Na década de 80, o Council for
prévios em laboratórios e em animais, International Organizations of Medical
a análise de riscos e benefícios da in- Sciences (CIOMS), juntamente com a
vestigação proposta, a liberdade do Organização Mundial da Saúde
sujeito da pesquisa em se retirar do (OMS), elaboraram um documento
projeto, a adequada qualificação ci- mais detalhado sobre o assunto esti-
entífica do pesquisador, entre outros pulando as “Diretrizes internacionais
pontos. para a pesquisa biomédica em seres
O princípio da autonomia, reco- humanos”, traduzida para a língua
nhecidamente um dos referenciais bá- portuguesa pelo Ministério da Saúde.
sicos da Bioética, se enuncia, assim, O documento foi reavalizado e pu-
no Código de Nüremberg. Vale lembrar, blicado em nova versão em 1993,
pois, que esta autonomia (autodeter- traduzido e publicado pela revista
minação) se firma na regulamentação Bioética, do Conselho Federal de
da pesquisa e que, somente muitos Medicina (CFM).
anos depois, se incorpora nos Códi- Na década de 90, o CIOMS lança
195 gos de Ética (melhor dizendo, de o primeiro documento especificamente
voltado para a pesquisa em estudos de · a inclusão, no preâmbulo, de
coletividade (estudos epidemiológicos): disposições legais que dão respal-
International Guidelines for Ethical do à resolução;
Review of Epidemiological Studies.
· a necessidade de revisão perió-
dica das normas;
N ormas no Brasil: a
Resolução CNS nº196/96
· a incorporação dos referenciais
básicos da Bioética (não-
maleficência, beneficência, auto-
nomia, justiça, eqüidade, sigilo,
No Brasil, merece destaque a Re- privacidade);
solução CNS nº 1, de 13 de junho de
· a ampla abrangência, aplican-
1988, do Conselho Nacional de Saú-
do-se as normas a toda e qual-
de – é o primeiro documento oficial
quer pesquisa (todas as áreas do
brasileiro que procurou regulamentar
conhecimento e não só a
as normas da pesquisa em saúde.
biomedicina) que, individual ou
Todos os documentos até aqui ci-
coletivamente (estudos de comu-
tados levam em conta referenciais (“ou
nidades, pesquisas epidemioló-
princípios”) básicos da Bioética: a
gicas), envolva o ser humano, de
não-maleficência, a beneficência (ris-
forma direta ou indireta, em sua
cos e benefícios), a justiça e, sobretu-
totalidade ou partes dele, incluin-
do, a autonomia (autodeterminação),
do o manejo de informações ou
respeitando-se o sigilo, a privacidade,
materiais;
a auto-estima. Vieira e Hossne (1987)
analisam os principais aspectos conti- · a proibição de qualquer forma de
dos em tais documentos. remuneração, cabendo, porém, o
Em 1995, sete anos após a apli- ressarcimento de despesas e inde-
cação da Resolução CNS nº 1/88, o nização (direito indeclinável) aos
Conselho Nacional de Saúde (CNS) sujeitos da pesquisa;
decidiu pela revisão da mesma, com o · a conceituação de risco como
objetivo de atualizá-la e preencher la- sendo a possibilidade de danos à
cunas geradas pelo desenvolvimento dimensão física, psíquica, moral,
científico. Um Grupo Executivo de Tra- intelectual, social, cultural ou es-
balho (GET), integrado por represen- piritual do ser humano;
tantes de diversas áreas sociais e pro-
fissionais, contando com o apoio de · a consideração de que todo pro-
médicos, teólogos, juristas, biólogos, cedimento (de qualquer natureza)
engenheiros biomédicos, empresários cuja aceitação não esteja consa-
e representantes de usuários elaborou grada na literatura será tido como
uma nova resolução (CNS nº 196/96) pesquisa em ser humano;
que estabelece as normas de pesquisa · o respeito total à dignidade do
envolvendo seres humanos. ser humano e a necessidade de
Alguns pontos dessa resolução se obter o consentimento livre e
merecem destaque: esclarecido dos indivíduos-alvo e 196
a proteção a grupos vulneráveis, de delineamento da pesquisa, nos
excluindo-se as possibilidades de estudos multicêntricos;
dependência, subordinação, coa-
· a necessidade de comunicação
ção ou intimidação;
aos Comitês de Ética, nos casos
· o respeito à vulnerabilidade, de descontinuidade do projeto de
sem, porém, exclusão, isto é, pre- pesquisa;
servação do direito de decisão; · a necessidade de retorno de be-
· a exigência de condições (recur- nefícios à coletividade pesquisada,
sos humanos e materiais) adequa- bem como a obrigatoriedade de
das à execução do projeto; acesso dos sujeitos às vantagens da
· a proteção à imagem, a não- pesquisa;
estigmatização, o direito à · a importância e a relevância do
confidencialidade e à privacida- consentimento livre e esclareci-
de, nas pesquisas em coletivida- do, atestada pela presença de
de, bem como o respeito aos va- um capítulo (capítulo IV) no cor-
lores culturais; po da resolução; enfatiza-se a
· a adequação da metodologia obrigatoriedade de todos os escla-
científica às exigências básicas recimentos ao sujeito da pesqui-
nos casos de randomização; sa (em linguagem acessível), res-
guardando-se o direito à recusa e
· a necessidade de justificativa o direito de ter cópia do termo as-
para a dispensa de obtenção do sinado;
consentimento;
· a inclusão de normas para a
· a necessidade de justificativa pesquisa em pessoas com diag-
para o uso do placebo; nóstico de morte encefálica e em
· o planejamento das medidas comunidades culturalmente dife-
para o acompanhamento, trata- renciadas;
mento ou orientação, conforme o · a obrigatoriedade de análise de
caso, nas pesquisas de rastrea- riscos e benefícios, cuja relevân-
mento, com a demonstração da cia mereceu capítulo especial (ca-
preponderância de benefícios so- pítulo V);
bre os riscos e custos; · a exigência de apresentação do
· o compromisso de retorno de van- projeto de pesquisa, por parte do
tagens para o país, nos casos de pesquisador responsável, contendo,
pesquisas conduzidas no exterior; entre outros, os seguintes dados: de-
finições de atribuições, anteceden-
· a utilização de material biológi-
tes científicos, metodologia, análi-
co e dos dados obtidos na pes-
se crítica de riscos e benefícios,
quisa exclusivamente para a fina-
duração do projeto, critérios de in-
lidade prevista no protocolo; clusão e de exclusão dos sujeitos, o
· a recomendação quanto à par- compromisso de tornar públicos os
197 ticipação do pesquisador na fase resultados, a previsão de riscos, a
qualificação do pesquisador, o or- nhamento) de um banco de da-
çamento detalhado; dos referente às pesquisas em se-
res humanos, aprovadas pelos
· a obrigatoriedade de apresenta-
CEPs;
ção do projeto ao Comitê de Éti-
ca em Pesquisa (CEP) da institui- · a elaboração, por parte da
ção, para apreciação; CONEP, de normas complemen-
· a característica multidisciplinar tares nas áreas temáticas: repro-
da composição do CEP (não mais dução humana, genética huma-
do que a metade dos membros na, pesquisas em indígenas, pes-
pertencentes a mesma profissão), quisas que envolvam questões de
incluindo, obrigatoriamente, um biossegurança, pesquisas
representante dos usuários; conduzidas do exterior, pesquisas
com novos equipamentos. As nor-
· as atribuições do CEP, prevendo mas para pesquisa na área
atividades de caráter educativo, temática de novos fármacos, me-
consultivo e deliberativo; dicamentos e vacinas já foram
· a possibilidade do CEP poder aprovadas (Resolução CNS nº
contar com assessoria especi- 251/97);
alizada, ad hoc; · a responsabilidade da CONEP
· a competência para solicitar, à em instaurar sindicâncias e inter-
administração, a instauração de romper pesquisas em andamen-
sindicância; to, se necessário;
· a competência para interromper · a composição da CONEP, cons-
o projeto de pesquisa, quando tituída por treze membros titula-
julgar indicado; res e respectivos suplentes, esco-
lhidos pelo Conselho Nacional de
· a obrigatoriedade de acompa-
Saúde dentre nomes indicados
nhamento da execução da pesqui-
pelos CEPs.
sa na instituição, mediante rela-
tórios;
· a co-responsabilidade do CEP Destaque especial é dado, no
ao aprovar os projetos a ele sub- momento, aos Comitês de Ética em
metidos; Pesquisa, considerando-se o papel re-
· a total independência em rela- levante que lhes é atribuído pela Reso-
ção à direção da instituição; lução CNS nº 196/96.
A
tro lado, termos de consentimentos lon-
gos demais, traduzidos que são de ou-
Comissão Nacional de Ética
tros países, mais confundem que es-
em Pesquisa
clarecem, estando também muitas ve-
zes inadequados à nossa cultura, por
A Comissão Nacional de Ética em
serem frios e diretos.
Pesquisa foi criada pela Resolução CNS
A preocupação, muitas vezes ex-
nº 196/96, órgão de controle social, para
pressa, acerca da incapacidade dos
desenvolver a regulamentação sobre pro-
teção dos sujeitos da pesquisa e para sujeitos da pesquisa compreenderem
constituir um nível de recursos disponí- do termo pode ser enfrentada com o
veis a qualquer dos envolvidos em pes- interesse e a capacitação dos pesqui-
quisas com seres humanos. Tem também sadores para informarem adequada-
um papel coordenador da rede de Co- mente, num esforço de diálogo com a
mitês institucionais, além de se consti- sociedade.
tuir em órgão consultor na área de ética João de Freitas chama a atenção
em pesquisas. Num primeiro momento, para o uso do termo de consentimento
tem ainda a atribuição de apreciar os como instrumento de proteção dos pes-
projetos de pesquisa de áreas temáticas quisadores e estratégia de permissibi-
especiais, enviados pelos CEPs, ou seja, lidade de procedimentos que ferem a
projetos que contemplam áreas com dignidade do sujeito da pesquisa, o que
maiores dilemas éticos e grande reper- não é o espírito da Resolução CNS nº
cussão social, até que se acumulem ex- 196/96. Vale, portanto, salientar: o
periências para a elaboração de nor- objetivo fundamental do termo de con-
mas específicas, complementares às sentimento é a proteção da liberdade
existentes. e dignidade dos sujeitos da pesquisa, 202
e não dos pesquisadores ou patroci- Para crianças e pessoas em situação
nadores. de discernimento prejudicado, como
portadores de doença mental, deve ser
Uso de placebo – principalmente
requisitado o consentimento de seus
em estudos de novos medicamentos e
responsáveis legais; além disso, devem
visando evitar interferência psicogênica,
ser informadas de acordo com a sua
em alguns casos justifica-se a compa-
capacidade e consideradas suas deci-
ração entre o tratamento com a nova
sões.
droga e o tratamento onde se usa um
Exemplos de incorreções éticas
placebo (substância sem efeito
mais graves, se bem que raros, podem
farmacológico). No entanto, existindo
ser enumerados como alertadores para
tratamento minimamente eficaz para
os participantes de Comitês. Uma pes-
a doença não é eticamente correto dei-
quisa com proposta de indução de pro-
xar um grupo de pacientes sem tera-
blema respiratório em crianças, seguida
pia, sendo que o experimento deveria
de tratamento para um grupo e de
comparar, então, o novo tratamento
placebo para outro (controle), não pôde
com o tratamento existente ou padrão.
ser aceita, assim como outro projeto em
Têm sido identificados problemas nes-
que se propunha o uso de um novo me-
sa área, pois no interesse de
dicamento, controlado com grupo rece-
comercialização de novos produtos,
bendo placebo, para pacientes com in-
num mercado de grande concorrência,
suficiência cardíaca congestiva, doença
usa-se a demonstração da eficácia da
grave e com tratamento disponível. Um
droga (frente ao placebo) e não a sua
outro estudo tinha como objetivo encon-
superioridade sobre o medicamento já
trar formas de “superar barreiras éticas
existente. Muitas vezes, esse subterfú-
e legais” para uso de determinado pro-
gio não é percebido e colocam-se pes-
cedimento! Enfim, estes são casos que
soas em situação de risco à sua saú-
demonstram a relevância da proposta de
de, sem nenhum possível benefício, a
avaliação ética dos projetos de pesqui-
não ser para a contabilidade das in-
sa e a responsabilidade dos Comitês na
dústrias.
apreciação dos projetos e no desempe-
Vulnerabilidade – situações em nho de seu papel educativo com relação
que não existem as condições para o aos sujeitos da pesquisa, à comunidade
consentimento livre, sem coações ou científica e à sociedade como um todo.
pressões, devem ser cuidadosamente
analisadas, como propostas de pesqui-
sas em soldados, servidores, funcioná-
rios de laboratórios e alunos. Por ou- Bibliografia
tro lado, é preocupante a situação da
maioria dos sujeitos de pesquisa neste
país, que sem acesso assegurado à as- Annas GJ. Will the real bioethics
sistência à saúde muitas vezes buscam (commission) please stand up? Hastings
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204
Sueli Gandolfi Dallari
A evolução do conceito
de saúde
to, personificado na Organização das
Nações Unidas. Esse organismo incen-
tivou a criação de órgãos especiais des-
tinados a promover a garantia de al-
Durante a história da humanida- guns direitos considerados essenciais
de, muito já se escreveu a respeito da aos homens. A saúde passou, então, a
conceituação de saúde. Entretanto, o ser objeto da Organização Mundial da
reconhecimento de que a saúde de Saúde (OMS), que considerou sua pro-
uma população está relacionada às teção com o primeiro princípio básico
suas condições de vida e de que os para a “felicidade, as relações harmo-
comportamentos humanos podem niosas e a segurança de todos os po-
constituir-se em ameaça à saúde do vos” (1). No preâmbulo de sua Consti-
povo e, conseqüentemente, à seguran- tuição, assinada em 26 de julho de
ça do Estado, presente já no começo 1946, é apresentado o conceito de saú-
do século XIX, fica claramente estabe- de adotado: “Saúde é o completo bem-
lecido ao término da II Guerra Mundi- estar físico, mental e social e não ape-
al. Sem dúvida, a experiência de uma nas a ausência de doença”. Observa-
guerra apenas vinte anos após a ante- se, portanto, para essa conceituação,
rior, provocada pelas mesmas causas o reconhecimento da essencialidade
que haviam originado a predecessora do equilíbrio interno e do homem com
e, especialmente, com capacidade de o ambiente (bem-estar físico, mental e
destruição várias vezes multiplicada, social), recuperando a experiência pre-
forjou um consenso. Carente de recur- dominante na história da humanida-
sos econômicos, destruída sua crença de, de que são reflexos os trabalhos de
na forma de organização social, alijada Hipócrates, Paracelso e Engels, por
de seus líderes, a sociedade que sobre- exemplo.
viveu a 1945 sentiu a necessidade O conceito de saúde acordado em
205 ineludível de promover um novo pac- 1946 não teve fácil aceitação. Diz-se
que corresponde à definição de felici- Supondo-se pacífica a afirmação
dade, que tal estado de completo bem- de que os Estados contemporâneos
estar é impossível de alcançar-se e que, sejam fundados no consentimento de
além disso, não é operacional. Vários seus membros, que concordam sobre
pesquisadores procuraram, então, as regras mínimas que devem gover-
enunciar de modo diferente o concei- nar seus próprios comportamentos
to de saúde. Assim, apenas como para o bem-comum, e supondo-se que
exemplo, para Seppilli saúde é “a isso sempre foi assim, observa-se a
condição harmoniosa de equilíbrio necessidade do ar, da água, do alimen-
funcional, físico e psíquico do indiví- to e do abrigo para que Adão sobrevi-
duo integrado dinamicamente no seu vesse. A formação da família e da pe-
ambiente natural e social” (2); para quena comunidade dela decorrente –
Last saúde é “um estado de equilíbrio “Adãolândia” – percebe, então, que al-
entre o ser humano e seu ambiente, gumas atividades seriam mais bem
permitindo o completo funcionamento realizadas se o fossem em conjunto,
da pessoa” (3); e para Dejours, con- reconhece diferentes habilidades em
vencido de que não existe o estado de diversos indivíduos e desenvolve uma
completo bem-estar, a saúde deve ser estrutura onde os membros exercem
entendida como “a busca constante de funções típicas. Enquanto vivendo no
tal estado” (4). Essas exemplificações “paraíso” não havia qualquer conflito.
parecem evidenciar que, embora se Entretanto, vindo um período de escas-
reconheça sua difícil operaciona- sez apresentam-se duas opções: com-
lização, qualquer enunciado do concei- petição ou cooperação (6). Supondo-
to de saúde que ignore a necessidade se que os cidadãos de “Adãolândia”
do equilíbrio interno do homem e des- tenham decidido cooperar – sob o ar-
se com o ambiente o deformará irre- gumento de que dividindo amplamen-
mediavelmente. te o sofrimento sua quantidade total
pode ser reduzida – e que ao voltar a
prosperidade tenham proposto uma
A bioética reintroduzindo a
preocupação ética no comporta-
para evitar qualquer ameaça à ordem
socioeconômica e política estabelecida
– a liderança política e intelectual das
mento dos sistemas de saúde sociedades contemporâneas encontra
a resposta na reintrodução da preocu-
A prevalência do individualismo pação ética. Com efeito, pode-se en-
– ainda que matizado – em época ca- contrar a partir daquele período – ini-
racterizada pela rápida e crescente cialmente nas sociedades de economia
internacionalização da vida social pro- mais avançada, mas em breve atingin-
vocou a supervalorização do cresci- do, também, os Estados ditos “em de-
mento econômico, visto como o único senvolvimento” – movimentos, eventos,
caminho para a conquista da felicida- documentos, e publicações tendo por
de humana. De fato, naquele mesmo tema a ética aplicada ao exercício pro-
cenário de reconstrução do período fissional, ao comércio, ao governo, às
imediatamente após a II Grande Guer- relações internacionais, às situações
ra, a ajuda – dita “humanitária” – pres- biomédicas, etc.
tada às sociedades mais atingidas pelo Pode-se afirmar que a bioética ou
conflito bélico visava ao fornecimen- a ética aplicada aos sistemas de saú-
to, e o estímulo para a produção, dos de foi, sem dúvida, o ramo da ética
bens econômicos que o benfeitor con- aplicada que mais se desenvolveu, con-
siderava indispensáveis para a manu- siderando-se o número de eventos,
tenção de um adequado padrão de publicações, documentos internacio-
vida. Assim, tanto as sociedades que nais e disciplinas acadêmicas a ela
haviam experimentado a revolução in- dedicados. É importante, mesmo, no-
dustrial no século anterior quanto tar que a propagação do uso do termo
aquelas que – sob jugo colonial – man- bioética revela, de certo modo, a ex-
tinham uma agricultura de subsistên- pansão dessa ética aplicada. De fato,
cia adotaram o mesmo modo de pro- cunhado para traduzir a importância
dução, procurando objetos semelhan- crescente das ciências biológicas na
tes para a satisfação de suas necessi- determinação da qualidade de vida
dades. E, apesar das várias (13), o termo tem-se prestado a uma
intercorrências com reflexos fundamen- querela em busca de sua definição, em
209 talmente econômicos, foi clara a cons- diversas sociedades (14). Entretanto,
talvez o único princípio, já agora “tra- ções sociais e econômicas que promo-
dicionalmente” aceito como básico vam agressões à saúde pública. Assim,
para a discussão bioética, que não se o mercado é visto como “virtualmente
encontra esboçado no juramento sempre o melhor protetor da saúde”
hipocrático, seja aquele da autono- (17) e se esquece que muitas vezes a
mia. E isso pode ser facilmente com- doença não resulta apenas de um
preendido quando se percebe que ele subproduto mas sim do produto mes-
se refere, prioritariamente, à autono- mo do mercado, como comprovam
mia das pessoas, conceito de impos- aquelas decorrentes da afluência (die-
sível estipulação na democracia gre- tas hipergordurosas, carros velozes) ou
ga da antigüidade, onde “a harmo- da tensão social (drogas, violência).
nia entre o homem e a totalidade do Por outro lado, cresce o número dos
cosmos permaneceu como critério que acreditam que a doença seja as-
ético” (15). sunto pessoal (decisão de fumar, usar
É inegável, contudo, que a reper- capacete e cinto de segurança) e mé-
cussão da bioética provocou uma nova dico (a melhora do estado de saúde
leitura dos princípios hipocráticos, depende do acesso aos cuidados mé-
adaptando-os às situações postas pelo dicos) e que, portanto, as escolhas
avanço da ciência e da tecnologia na efetuadas são responsabilidade indivi-
área da saúde. A simples referência, dual. Eles procuram ignorar que a saú-
por exemplo, à justiça pelo seu contrá- de pública deve – necessariamente –
rio (16) dá origem à aplicação da teo- adotar uma postura ecológica, uma vez
ria da eqüidade na distribuição dos que o próprio conceito de saúde en-
bens e benefícios decorrentes do co- volve aspectos sociais e culturais, além
nhecimento biomédico no campo da dos estritamente físicos, biológicos e
saúde. E, quando se pretende exami- geográficos. Daí decorre que a deci-
nar os princípos bioéticos à luz de sua são de fumar, por exemplo, não confi-
implicação com a saúde pública, tor- gura uma escolha puramente pessoal
na-se evidente a necessidade dessa mas, principalmente, um condiciona-
nova leitura, uma vez que a mento cultural. O mesmo ocorre no que
prevalência do individualismo num concerne à opção individual. Há quem
ambiente de contestação vem provo- acredite que, por exemplo, a decisão
cando, inclusive, uma redefinição do de fumar – ainda que sabidamente
papel do Estado na promoção da saú- prejudicial à saúde – deva ser sem-
de pública. pre respeitada, uma vez que suas con-
Com efeito, a constatação da re- seqüências recaem no próprio indiví-
lativa ineficiência, seja do setor públi- duo fumante e que, portanto, a liber-
co, seja da política regulatória em saú- dade individual não deve ser limitada.
de, tem fomentado um ambiente cul- Mais uma vez se esquece que a satis-
tural de desvalorização da saúde pú- fação pessoal usada como indicador
blica que vem contaminando os pró- de saúde pública induz ao aumento de
prios sanitaristas. Muitos deles pro- gastos que resultam apenas na maior
põem, então, que as reformas do setor sensação individual de segurança (nos
caminhem no sentido de valorizar op- Estados Unidos da América, 95% de 210
todo o dinheiro que a sociedade gasta A incorporação pelo discurso político
com saúde vai para a atenção médi- e jurídico dos conceitos ali expressos
ca) (18) e provoca, também, o “para- – conseqüência do predomínio da fi-
doxo preventivo” definido por Burris losofia jusnaturalista e do
(19) como “uma medida preventiva racionalismo – decorreu da noção de
que traz grande benefício para a po- que todos os homens estão, e devem
pulação mas oferece pouco para cada estar, ligados entre si como irmãos.
membro individualmente”. Portanto, fraternidade, durante o perí-
Verifica-se, conseqüentemente, odo revolucionário, significava a
que o mesmo raciocínio empregado fraternidade universal (20). Apresenta-
para explicar a reintrodução da ética da como o resultado e a expressão
no mundo atual justifica sobremanei- desse novo elo entre o povo, a noção
ra sua especial valorização pelos pro- de fraternidade estava
fissionais de saúde pública – que vêm indissoluvelmente ligada à reivindica-
aceitando a mudança conceitual im- ção da liberdade e da igualdade. Con-
posta pelo individualismo predominan- tudo, somente a conquista política des-
te. Essa constatação é necessária não ses valores permitiu que a noção de
para menosprezar a preocupação éti- fraternidade passasse a abrigar a ela-
ca reinstalada no campo da saúde boração de leis e decretos sobre assis-
pública mas – principalmente – para tência social e solidariedade. Com efei-
que se tenha claro, na avaliação das to, como já se observou, a partir do
situações submetidas ao crivo ético, fim do século XIX a maioria dos filó-
que as alternativas correntemente sofos considera a intervenção das au-
apresentadas representam apenas toridades públicas na assistência so-
uma parte – aquela decorrente da cial não apenas necessária mas parte
aceitação inquestionada do individu- das funções do Estado. Frente ao cres-
alismo – do leque das alternativas cente aumento da pobreza o Estado
possíveis. deveria intervir e responsabilizar-se
pela organização da assistência social
porque “se a assistência for bem
216
Fermin Roland Schramm
Bioética e Biossegurança
I ntrodução
Hoje, este processo de seculari-
zação da sociedade parece irreversível,
apesar da persistência de várias for-
O humano enfrenta seu estado de mas de transcendência em seu âmbi-
necessidade e precariedade de várias to, e o bem-estar humano parece de-
maneiras, inclusive com o saber-fazer pender, prevalentemente, dos progres-
racional e operacional da tecnociência. sos da biotecnociência. Esta situação
Ademais, neste século adquiriu a com- configura uma nova condição antro-
petência biotecnocientífica, que visa pológica que não se dá sem conflitos e
transformar e reprogramar o ambien- controvérsias acerca do que é bem,
te natural, os outros seres vivos e a si bom e razoável, devido à existência de
mesmo em função de seus projetos e uma pluralidade de concepções perti-
desejos, fato que se torna, cada vez nentes, legítimas, e não necessariamen-
mais, motivo de grandes esperanças e te comensuráveis, sobre o Bem, o Jus-
angústias, consensos e conflitos, em to e o Verdadeiro (1).
particular do tipo moral. Por transformar nossas concep-
Antes da Época Moderna, que viu ções mais arraigadas acerca da vida e
surgir a ciência experimental, a cultu- da morte, saúde e doença, bem-estar
ra dos direitos humanos e o Estado e precariedade, assim como dos limi-
de direito, as fontes de legitimidade tes que podemos, ou não, ultrapassar,
do agir eram, de regra, de tipo trans- a competência biotecnocientífica é
cendente (míticas, religiosas ou na- considerada por alguns um progres-
turais), mas aos poucos foram sendo so; por outros, um perigo. Uma aná-
desconstruídas até serem substituídas lise imparcial da moralidade da
por princípios seculares, imanentes ao biotecnociência deve, portanto, con-
imaginário social, às forças políticas, siderar que esta é motivo de fascínio
econômicas e tecnocientíficas vigentes e espanto (2), mas deve também sub-
217 na sociedade. meter tais sentimentos à luz da razão,
analisando a “cogência” (cogency) dos tos e roupas. Parece, portanto, que hoje
argumentos pró e contra os fatos da só estaríamos continuando práticas
biotecnociência, evitando seja o imemoriais que, em si, não deveriam
niilismo progressista seja o ser motivo de apreensão particular pois
fundamentalismo conservador, optan- é delas que dependeram as condições
do por uma ponderação prudencial de de vida passadas e dependem, ainda,
riscos e benefícios. as presentes. Porém, a praxis do ho-
Deve-se encarar, por exemplo, os mem contemporâneo mudou de esca-
argumentos de que não existiriam limi- la, atingindo patamares nunca vistos
tes a priori ao know how tecnocientífico, antes: ela já não se limita à “reforma”
que os limites considerados outrora in- do mundo externo, mas alcança as pró-
superáveis podem tornar-se rapidamen- prias estruturas da matéria e da vida,
te obsoletos e que “em ciência nunca inclusive a estrutura da vida humana.
deve-se dizer nunca” (3), razão pela Por isso, o know how biotecnocientífico
qual doenças, moléstias, incapacida- atual levanta questões que, para mui-
des e outros transtornos, que causam tos, são inéditas, tais como a seguran-
mal-estar, poderão um dia ser ça biológica e a transmutação dos va-
minimizados ou vencidos. lores morais.
Mas existem também argumentos A biossegurança, enquanto nova
contrários, como aquele de que existi- disciplina científica, e a bioética, en-
riam riscos inerentes à prática quanto nova disciplina filosófica, se
tecnocientífica e biotecnocientífica, preocupam com esta situação (aparen-
tais como: 1) os riscos biológicos as- temente) inédita, tentando ponderar os
sociados à biologia molecular e à en- prós e os contras e, se for o caso, pro-
genharia genética, às práticas por leis, normas e diretrizes com o in-
laboratoriais de manipulação de agen- tento de minimizar riscos, abusos, con-
tes patogênicos e, sobretudo, aos Or- flitos e controvérsias, sem prejudicar,
ganismos Geneticamente Modificados entretanto, os avanços biotecnocien-
(OGMs), que podem estar na origem, tíficos. Nesse sentido, a biossegurança
por exemplo, do surgimento de novas e a bioética parecem ter o mesmo tipo
doenças virais ou do ressurgimento de de objetivo ou “vocação”.
antigas doenças infecciosas mais vi- Mas cada disciplina opera também
rulentas, por um lado, e 2) os riscos a partir de seus pontos de vista específi-
ecológicos resultantes da introdução de cos e com suas ferramentas próprias e
OGMs no meio ambiente ou da redu- legítimas, em princípio diferentes. Isto não
ção da biodiversidade, por outro. impede que, respeitando determinadas
Ambos os tipos de argumentos condições, exista uma cooperação inter
são pertinentes mas, provavelmente, e transdisciplinar entre as duas discipli-
não são totalmente novos. Com efeito, nas, sobretudo se consideramos que
o homem adapta e transforma seu existem preocupações comuns, tais como
meio natural há milhares de anos, ten- a qualidade do bem-estar presente e
do aprendido a domesticar, selecionar, futuro dos seres humanos e não-huma-
cruzar animais e plantas e a utilizar nos; o grau de aceitabilidade das vári-
microorganismos para fabricar alimen- as formas de risco; a legitimidade de 218
intervir no dinamismo intrínseco dos todas as espécies de seres vivos, inclu-
processos biológicos em geral e da vida sive da espécie humana.
humana em particular, etc. Tais pro- Esta competência é recente e ain-
blemas são complexos e polêmicos e da rodeada por incertezas, mas pode-
parece que nenhuma disciplina, sozi- se razoavelmente supor que veio para
nha, possa dar conta deles. ficar. Por isso, ela é hoje objeto de es-
Mas, mesmo aceitando esta argu- peranças, temores e controvérsias
mentação no plano dos fins, bioética morais.
e biossegurança devem ter, cada uma, Historicamente, as raízes do
suas ferramentas específicas, condição paradigma biotecnocientífico se encon-
necessária para uma autêntica coope- tram na segunda metade do século
ração interdisciplinar. Em suma, XIX, quando surgiram a teoria da evo-
ambas se preocupam com uma série lução de Darwin (4) e a teoria genéti-
de referentes comuns (a probabilida- ca de Mendel (5). De fato, existem
de dos riscos e de degradação da qua- raízes mais antigas: as da ciência ex-
lidade de vida de indivíduos e popula- perimental ou Moderna do século XVII,
ções) e legítimos (a aceitabilidade das nascida da aliança entre o saber raci-
novas práticas), mas a biossegurança onal da epistéme e o fazer operacional
o faz quantificando e ponderando ris- da téchne que, dos Gregos até à Re-
cos e benefícios, ao passo que a nascença, haviam sido rigorosamen-
bioética analisa os argumentos racio- te separadas devido a um profundo
nais que justificam ou não tais riscos. preconceito contra os “artesões”, con-
Em nossa apresentação aborda- siderados com desdém tanto por
remos, de forma introdutória, duas Platão e Aristóteles quanto pelos
questões: 1) a emergência do Escolásticos (6).
paradigma biotecnocientífico e o Entretanto, é somente após a Se-
surgimento das biotecnologias moder- gunda Revolução Biológica, ocorrida
nas, responsáveis pela evolução do com a descoberta da estrutura do DNA
conceito de biossegurança; 2) os dife- por Watson e Crick (1953)(7), e a con-
rentes papéis de biossegurança e seqüente aplicação prática operada
bioética na avaliação de riscos e be- pela engenharia genética dos anos oi-
nefícios da biotecnociência. tenta, que se pode falar em emergên-
cia stricto sensu do paradigma
biotecnocientífico. Com efeito, é a partir
P aradigma biotecnocientífico,
biotecnologias e biossegurança
deste momento que se criam as condi-
ções para que a forma de saber-fazer
racional e técnico dos engenheiros não
se limitasse mais aos objetos físicos e
O paradigma biotecnocientífico químicos, mas fosse também aplicado
emerge, progressivamente, a partir da aos organismos biológicos com o ob-
segunda metade do século XX, graças jetivo de reprogramá-los de acordo
aos espetaculares avanços na compe- com projetos de melhoria do bem-estar
tência em analisar e manipular a in- humano. Em outros termos, com a Se-
219 formação genética de praticamente gunda Revolução Biológica torna-se
possível uma aliança entre o saber-fa- pode, em princípio, ser aplicada aos
zer dos engenheiros e aquele dos bió- humanos.
logos, e é então que surge o biotecno- Eis a razão porque crescem os
logista e a biotecnociência se torna um temores acerca dos novos poderes e de
paradigma científico (8). eventuais abusos que a engenharia
A vigência deste paradigma am- genética tornaria possíveis e que – se-
plia quantitativa e qualitativamente o gundo alguns – quase certamente se
poder humano de atuação, logo tam- realizarão, a menos que renunciemos
bém a probabilidade dos riscos liga- a ela, por consenso ou por lei.
dos a suas práticas. Com isso, trans- Em particular, cresce a suspeita
forma-se também a responsabilidade acerca da incapacidade dos humanos
humana em pelo menos dois sentidos: em controlar seus efeitos daninhos,
a) porque o saber-fazer do que seriam cumulativos, irreversíveis,
biotecnologista afeta a própria identi- de longo alcance e em escala planetá-
dade do homem, ou sua “natureza”, ria. Neste caso, utiliza-se o assim cha-
graças à intervenção programada nos mado argumento do possível deslize
seus genes ou “programa”; b) porque (slippery slope argument), segundo o
transforma-se a própria autocom- qual deveríamos renunciar a fazer algo
preensão que o humano tem de si, de mesmo que isso fosse, em determina-
suas práticas e de sua posição no mun- das circunstâncias, positivo, porque
do. Assim, o novo know how torna-se seria o primeiro passo rumo a um pos-
objeto das mais variadas especulações sível dano futuro.
e motivo de controvérsias morais. Preocupação e suspeita são legí-
Este é o caso, por exemplo, da timas, pelo menos se considerarmos
engenharia genética (9), que consiste em conta aquilo que muitos especia-
na “transformação da composição ge- listas consideram um gap crescente
nética de um organismo, resultante da entre a competência biotecnocientífica
introdução direta de material genético e a competência moral, sendo que esta
de um outro organismo, ou construído seria incapaz (pelo menos nas suas
em laboratório” (10) e que torna com- formas tradicionais) de dar conta dos
petente um organismo em fazer “arti- novos desafios. Esta perplexidade foi
ficialmente” o que um outro organis- sintetizada por Hans Jonas com a ex-
mo sabe fazer “naturalmente” (por pressão “vazio ético” (ethical
exemplo, uma proteína como a insuli- vacuum), resultante do fato de a ci-
na). Isso é objeto de preocupações tan- ência contemporânea ser essencial-
to por parte de leigos quanto por parte mente reducionista, mecanicista e
dos especialistas, sobretudo tendo em despreocupada com os anseios atu-
conta que se esta tecnologia foi inici- ais acerca do futuro da vida sobre a
almente aplicada a microrganismos e Terra (12).
plantas hoje é aplicada a animais su- Mas porque utilizar o termo
periores (como foi o caso recente das “biotecnociência” e não o sinônimo
duas ovelhas transgênicas produtoras “biotecnologias”? O que é que os distin-
do Fator IX, uma proteína utilizada no gue? Afinal de contas, a biotecnologia é
combate contra a hemofilia) (11) e “a aplicação da biologia para fins 220
humanos, que implica em utilizar or- fico da análise bioética, a distinção
ganismos para prover aos humanos entre primeira e segunda ordem é im-
alimentos roupas, medicamentos, e portante porque evita, por exemplo, a
outros produtos” (13). confusão entre os sentimentos e valo-
De fato, embora sinônimos, os res morais intuitivos do senso comum
dois termos têm um sentido técnico (que todos nós temos na medida em
diferente, sendo que o termo que possuímos uma moral) e a análise
“biotecnociência” indica a vigência de racional e imparcial da consistência
um paradigma científico, ao passo que dos argumentos em jogo numa dispu-
o termo “biotecnologias” indica o con- ta moral (que em princípio só um pro-
junto de práticas e produtos que o fissional da análise moral, filósofo ou
paradigma torna possíveis, tais como não, possui).
a engenharia genética ou a repro- Feita esta distinção, consideremos
dução artificial, por um lado, e os as “biotecnologias”. Com este termo
OGMs ou clones, por outro. Em indicam-se tanto as tecnologias bioló-
outras palavras, trata-se de concei- gicas da engenharia genética
tos de ordens lógicas diferentes, pois (tecnologia do DNA recombinante,
as biotecnologias e seus produtos são clonagem, fertilização in vitro, dentre
objetos conceituais de primeira ordem, outras) quanto tecnologias biológicas
ao passo que a biotecnociência é um mais antigas ou “tradicionais” (que
objeto de segunda ordem que define o remontam a milhares de anos a.C.),
espaço conceitual da análise tais como a seleção, a criação e o cru-
epistemológica de tais ciências e téc- zamento de animais e plantas, a utili-
nicas. Os problemas abordados nos zação de microrganismos para produ-
dois casos são diferentes: a descrição zir pão, vinho, cerveja, iogurte e quei-
e compreensão dos fenômenos, assim jo, razão pela qual poder-se-ia afirmar
como seu campo de aplicabilidade, por que a própria genética “é provavelmen-
um lado; a consistência e a fidedigni- te uma ciência muito mais antiga do
dade dos conceitos e métodos adotados que se pense” (15).
pelas primeiras, por outro. Um argumento a favor desta afir-
Esta distinção é importante não mação é que as biotecnologias tradi-
só para o filósofo da ciência, que lida cionais certamente implicaram na
com objetos de segunda ordem, isto é, transferência de genes que alteraram
com paradigmas, mas também para o o patrimônio genético de determina-
filósofo moral, que distingue um obje- das espécies, e que provavelmente não
to de primeira ordem como a moral e teria ocorrido naturalmente. Este foi o
um objeto de segunda ordem como a caso do trigo que, atualmente, contém
ética (ou bioética), sendo que a moral aproximadamente três vezes mais
é o conjunto de códigos de valores e genes que o trigo cultivado no Oriente
princípios vigentes num momento his- Médio há dez mil anos.
tórico determinado, ao passo que a Mas, embora a seleção e o cruza-
ética analisa a consistência dos argu- mento possam ter sido, em alguns ca-
mentos morais, quer dizer, objetos de sos, conscientes e racionais, é mais
221 primeira ordem (14). No caso especí- provável que fossem baseados na
experiência prática sem uma teoria ra- fármacos, novos organismos e
cional abrangente, que só se tornará reprogramar o próprio patrimônio
possível a partir da genética e da bio- genético humano em vista de uma
logia molecular. Por isso, é correto fa- melhor adaptação a condições
zer a distinção entre biotecnologias tra- adversas futuras e da prevenção
dicionais e biotecnologias modernas, de doenças e incapacidades de
sendo que estas só se tornaram de fato origem genética.
possíveis nas últimas décadas, quan-
A magnitude do know how
do surgiram práticas disciplinares tais
biotecnológico moderno tem, portan-
como a cultura de células, de micror-
to, um significado importante para a
ganismos, de tecidos e, em princípio,
análise moral, como veremos apresen-
de órgãos e organismos inteiros; a
tando os diferentes papéis de
transferência de embriões; a engenha-
biossegurança e bioética.
ria genética e, recentemente, a
clonagem. Nesse sentido, somente as
B
“biotecnologias modernas” seriam,
estritamente falando, biotecnologias iossegurança e bioética:
como as entendemos hoje, quer dizer, limites e argumentos
resultantes da vigência do paradigma
biotecnocientífico. Antes de apresentar os diferentes
Biotecnologias tradicionais e mo- papéis de biossegurança e bioética, é
dernas se distinguem em pelo menos preciso lembrar que os artefatos das
três aspectos: biotecnologias modernas são objeto de
a) o cruzamento efetuado pelas preocupação de ambas as disciplinas,
primeiras acontecia entre espéci- tanto os artefatos já produzidos, como
es próximas, ao passo que as se- OGMs e clones animais, quanto os
gundas permitem que seja feito ainda não produzidos, mas virtualmen-
em princípio entre qualquer tipo te possíveis, como os clones humanos.
de espécie, independentemente O caráter “atual” ou “virtual” de tais
de sua distância genética; artefatos não é relevante para a pon-
deração de seus riscos e benefícios,
b) o tempo necessário para a atu- pois estes sempre serão computados
ação das primeiras era muito mais em termos de probabilidades.
longo (em geral numa escala de Por outro lado, os enfoques de
anos), ao passo que o tempo ne- biossegurança e bioética são diferen-
cessário às segundas é muito me- tes, sendo que a bioética se preocupa
nor (podendo chegar a poucas com os argumentos morais a favor ou
semanas); contra, e a biossegurança visa estabe-
c) o campo de aplicação das pri- lecer os padrões aceitáveis de seguran-
meiras era bastante reduzido, ao ça no manejo de técnicas e produtos
passo que “a biotecnologia mo- biológicos. A biossegurança é, portan-
derna é muito mais ambiciosa” to, “o conjunto de ações voltadas para
(15), pois pretende controlar a a prevenção, minimização ou elimina-
poluição ambiental, criar novos ção de riscos inerentes às atividades 222
de pesquisa, produção, ensino, desen- Asilomar (Califórnia, 1975) (17) mas
volvimento tecnológico e prestação de que, desde então, deve ser considerada
serviços, riscos que podem comprome- um mero clichê moral, “em substituição
ter a saúde do homem, dos animais, a um pensamento moral sério” (18).
do meio ambiente ou a qualidade dos Em Asilomar discutiu-se a legiti-
trabalhos desenvolvidos” (16). Em midade da utilização da tecnologia do
suma, seu objeto é a segurança, que DNA recombinante e foi proposta a
deve ser entendida tanto em sentido elaboração de normas para o novo
objetivo, isto é, associada à probabili- campo de atividades, o que de fato
dade aceitável do risco que pode ser aconteceu em 1976, quando o
medida ou inferida, quanto em senti- National Institute of Health (NIH) nor-
do subjetivo, quer dizer, associada ao te-americano promulgou as primeiras
sentimento (feeling) de bem-estar. Os diretrizes de biossegurança. Contudo,
dois sentidos, embora logicamente dis- tais diretrizes referiam-se unicamente
tintos, não devem ser dissociados pois à segurança laboratorial e a agentes
ambos são necessários para uma po- patogênicos para os humanos, e é com
lítica de segurança legítima e eficaz. esse espírito que a iniciativa norte-
Em outros termos, bioética e americana repercutiu em outros paí-
biossegurança se preocupam com a ses como o Reino Unido, França, Ale-
legitimidade, ou não, de se utilizar as manha e Japão (19,20,21,22). Assim
novas tecnologias desenvolvidas pela sendo, a concepção sobre o papel da
engenharia genética para transformar biossegurança era bastante limitada,
a qualidade de vida das pessoas. Mas devido essencialmente ao conceito,
a natureza e a qualidade dos objetos muito restrito, de risco, utilizado para
e dos argumentos de cada disciplina implementar as normas e políticas de
são diferentes: a bioética preocupan- prevenção.
do-se com a análise imparcial dos Desde então, o conceito de risco
argumentos morais acerca dos fatos tornou-se mais complexo e abrangente,
da biotecnociência; a biossegurança graças sobretudo às análises da
ocupando-se dos limites e da seguran- epidemiologia e das demais ciências
ça com relação aos produtos e técni- da Saúde, vindo a ser concebido como
cas biológicas. uma verdadeira característica estrutu-
A nova competência representada ral das sociedades pós-industriais (23).
pela biotecnociência é encarada, mui- Esta transformação do conceito de ris-
tas vezes, como tendo um poder pelo co afetou a própria concepção do pa-
menos ambíguo, senão daninho, que pel da biossegurança, que veio incluir,
precisa portanto ser considerado caute- inicialmente, a segurança contra ou-
losamente, ou até rejeitado. O argumen- tros riscos presentes nas atividades de
to utilizado é de que este poder estaria laboratório, tais como riscos físicos,
interferindo na assim chamada “ordem químicos, radioativos, ergonômicos e
natural” das coisas ou na “ordem divi- outros, e em seguida integrou os ris-
na” das mesmas, como indica a metá- cos ambientais, o desenvolvimento
fora “brincar de Deus” (playing God), sustentado, a preservação da biodiver-
223 utilizada desde a Conferência de sidade e a avaliação dos prováveis
impactos advindos da introdução de exemplo, uma competência
OGMs no meio ambiente. Pode-se reprodutiva impossível por outros
assim dizer que, desde então, consti- meios e, evidentemente, após pon-
tui-se uma “nova lógica [da] deração dos riscos e benefícios;
biossegurança [que] passa a ser uma
b) para seus detratores esta im-
das premissas que alicerçam os Pro-
plicaria em riscos praticamente
gramas de Gestão da Qualidade”, ra-
imponderáveis, tais como a
zão pela qual “a biossegurança sai de
eugenia positiva e a discrimina-
uma discussão apenas no contexto
ção, razão pela qual dever-se-ia
laboratorial, onde medidas preventivas
– conforme a lógica do slippery
buscavam preservar a segurança do tra-
slope argument – impor uma pru-
balhador e a qualidade do trabalho, para
dente moratória, senão uma proi-
uma necessidade mais complexa de pre-
bição tout court. Em outros ter-
servar as espécies do planeta”(24).
mos, a possibilidade de abusos
Paralelamente à complexificação
seria razão suficiente para a proi-
do conceito de risco e à ampliação do
bição da nova tecnologia
campo de aplicação da prevenção dos
reprodutiva mesmo que esta, em
riscos (abordadas pela biosse-
alguns casos, pudesse ser consi-
gurança), houve também um recrudes-
derada como um bem para deter-
cimento dos sentimentos morais impli-
minadas pessoas como, por
cados pelas novas biotecnologias. Um
exemplo, casais não férteis ou
claro exemplo desse “clima” são as
portadores, atuais ou potenciais,
reações que acompanham as experi-
de doenças e incapacidades de
ências de clonagem animal, motivo de
origem genética.
fascínio para alguns, de espanto para
outros, porque estariam supostamen- Mas o slippery slope argument,
te abrindo o caminho para a clonagem muito utilizado em situações de rápi-
do homem como um todo, quer dizer, das transformações (como é o caso da
não só de órgãos e tecidos (como pa- engenharia genética), deve ser
rece provável e desejável) mas também logicamente distinguido de outros tipos
de inteiros organismos humanos (que de argumentos, como os de tipo
poderiam servir de “reservatórios” de probabilístico, que ponderam os efei-
órgãos e tecidos) e até de sua perso- tos a médio e longo prazo de determi-
nalidade (o que é impossível, pouco nadas práticas, ou aqueles sobre seus
rentável e não desejável) (25,26). efeitos colaterais. Com efeito, os argu-
Assim sendo, do ponto de vista mentos probabilísticos são em princí-
moral delineiam-se claramente dois pio de tipo racional, ao passo que os
campos antagônicos: primeiros “não são muito racionais,
mas expressão de sentimentos de in-
a) para os defensores da nova quietação acerca de tendências exis-
biotecnologia esta seria certamen- tentes na sociedade”, apesar de serem
te legítima desde que fosse em muito utilizados em debates públicos
prol de uma melhoria do bem-es- graças a seu poder retórico, mais do
tar humano, propiciando, por que argumentativo, acerca de aspec- 224
tos controvertidos da realidade e de justificado (28). Mas pode-se perguntar,
possíveis desdobramentos futuros (27). também, se tais receios não estariam,
Existem também outros tipos de de fato, reconfigurando o campo das
perplexidades e críticas, como aque- lutas ideológicas e políticas, agora di-
las – de matriz foucaultiana – que es- vidido entre defensores do progres-
tigmatizam a medicalização da vida e so biotecnocientífico (ou “progressis-
o assim chamado “biopoder”, pois este tas”) e seus detratores (ou “tradiciona-
estaria transformando as pessoas em listas”). Se isso for verdade, estaríamos
objetos de políticas eugênicas, racistas e reproduzindo o tipo de atitude que
autoritárias, ou aquela – de tipo sempre acompanhou as revoluções ci-
neodarwiniano – acerca da ameaça à entíficas desde o século XVII e que, em
variabilidade genética, ou biodiversidade, muitos casos, atrasou o desenvolvimen-
indispensável para que os sistemas vi- to científico de muitas nações.
vos continuem evoluindo dentro dos Seja como for, bioética e biosse-
parâmetros estabelecidos pelas assim gurança deverão assumir papel de des-
chamadas leis naturais. taque neste debate, pois ambas têm um
Existe ainda uma crítica vinda forte componente normativo que as
dos defensores dos Direitos Humanos. aproxima, apesar de suas diferenças.
Neste caso – argumenta-se – a pessoa Ou seja, tanto uma como outra dizem
humana se tornaria um mero instru- respeito às práticas da engenharia ge-
mento em mãos de terceiros, contra- nética, mas a bioética as enfoca a par-
dizendo o princípio de benevolência tir do método da análise racional e
kantiano que estabelece que a pessoa imparcial dos argumentos morais pró
nunca pode ser considerada como e contra a aplicação de tais discipli-
mero meio mas deve ser considerada nas, e tentando caracterizar quais são
também como fim em si. Em outros os “bons” argumentos, ao passo que
termos, a engenharia genética seria a biossegurança refere-se às medidas
uma potencial ameaça aos Direitos práticas que visam ao controle dos ris-
Humanos porque poderia vir a ser um cos de tais disciplinas, impondo-lhes,
potente fator de limitação da autono- quando necessário, limites no tocante
mia pessoal e da eqüidade na alocação ao controle e minimização. Assim sen-
de recursos, aprofundando assim as do, seria um erro pretender que a
desigualdades sociais já existentes. bioética deva impor limites à
Tais argumentos são em parte tecnociência e à biotecnociência pois,
pertinentes, visto que seria “ingênuo neste caso, atribuir-se-ia à bioética
acreditar que as multinacionais que uma tarefa que, de fato, é da biosse-
controlam hoje o desenvolvimento das gurança.
biotecnologias queiram promover, de Em outros termos, entre as duas
forma voluntária, o bem-estar geral e disciplinas existem pontos em comum,
a justiça global”, e que os próprios como o caráter normativo e prescritivo
biotecnologistas não tenham interesses de suas conclusões e a ponderação
pessoais envolvidos (prestígio acadê- entre riscos e benefícios prováveis, mas
mico, recursos, etc.), razão pela qual cada uma tem seu método específico,
225 um certo pessimismo seria mais do que condição sine qua non da cooperação
entre os especialistas das duas disci- “bem”, mas isso só distingue as várias
plinas. teorias conseqüencialistas entre si, tais
Por outro lado, quando se afirma como as utilitaristas (que consideram
que a bioética é a análise racional e um “bem” a felicidade ou o bem-estar
imparcial dos argumentos pró e con- da maioria); o conseqüencialismo
tra os fatos da biotecnologia, pode-se hedonista (que considera um “bem” o
entender dois tipos de argumentos di- prazer pessoal independente das con-
ferentes: os intrínsecos e os extrínsecos. seqüências para a coletividade); o
Os argumentos intrínsecos dizem conseqüencialismo altruísta (uma va-
respeito àquilo que, em princípio, é riante do utilitarismo que considera um
bom ou mau em si, ou seja, referem- “bem” sacrificar os interesses pesso-
se à natureza da ação ou ao caráter ais em nome dos interesses da coleti-
do agente; os extrínsecos, ao contrá- vidade), e outros (29). Mas estas são
rio, referem-se às conseqüências, boas distinções internas ao próprio campo
ou más, da ação. Se, por exemplo, afir- conseqüencialista.
mo que uma coisa ou uma ação é boa Em outros termos, se utilizo argu-
ou má em si, não existem, em princí- mentos do tipo extrínseco, uma ação é
pio, outras considerações morais per- boa ou má dependendo das suas con-
tinentes, e nada poderá reverter meu seqüências, fato que será avaliado por
primeiro julgamento. alguém (em princípio um espectador
Argumentos intrínsecos e imparcial) que terá a sua concepção
extrínsecos têm uma estrutura lógica sobre aquilo que deve ser considerado
diferente e configuram, portanto, teo- um “bem”. No caso de riscos biológi-
rias morais diferentes: as deontológi- cos, o “bem” será minimizar a proba-
cas, por um lado, as teleológicas ou bilidade dos riscos e dos danos possí-
conseqüencialistas, por outro. No caso veis. O papel do observador consisti-
dos argumentos deontológicos as con- rá, assim, em avaliar não a priori mas
seqüências não são pertinentes, ao por assim dizer a posteriori qual das
passo que no caso de argumentos previsões tem mais probabilidade de
teleológicos sim, visto que os argumen- se realizar, ou qual é a relação entre os
tos deontológicos lidam com obriga- riscos e os benefícios que efetivamen-
ções (do grego deon, “obrigação”, te se realizarão. Em suma, contraria-
“dever”) que devem, em princípio, ser mente aos argumentos intrínsecos –
obedecidas sem ter em conta as que valem ou não em si e por si – os
conseqüências, ao passo que os argu- argumentos extrínsecos valem por com-
mentos teleológicos (do grego telos, paração.
“fim”, “finalidade”) lidam com acon- Acredito que no caso da engenha-
tecimentos ou probabilidades de acon- ria genética, e considerando que vive-
tecimentos, tendo em vista suas con- mos num mundo prevalentemente se-
seqüências ou resultados. cular, onde existe uma pluralidade de
Porém, no caso das “conseqüên- “bens” legítimos, somente os argumen-
cias” consideradas “boas” ou um tos de tipo conseqüencialista sejam
“bem” deve-se, ainda, estabelecer o pertinentes. Este é, aliás, um possível
que pode ser considerado como um ponto de convergência entre 226
biossegurança e bioética, visto que a que toda a diversidade biológica tenha
biossegurança lida com a relação entre a mesma importância funcional para
riscos e benefícios (amplamente enten- a evolução dos sistemas vivos, a pre-
didos) e a bioética com argumentos servação da saúde humana e de seu
morais acerca das conseqüências po- meio. Entretanto, esta é uma suposi-
sitivas ou negativas. ção inferida a partir de alguns indíci-
Em particular, a biossegurança os, que não prova sua validade, como
ocupa-se atualmente com a pondera- bem demostrou Popper na sua crítica
ção de riscos e benefícios referentes aos ao indutivismo (32). Ademais, num
OGMs. Para tanto, alguns países, estudo recente questiona-se a própria
como o Brasil, dotaram-se de instru- consistência do conceito de
mentos legais específicos, interditando biodiversidade e deixa-se entender que
por exemplo sua produção industrial e nem todas as espécies teriam a mes-
liberação no meio ambiente (30). Con- ma importância funcional para a pre-
tudo, não entraremos no mérito deste servação dos delicados equilíbrios
aspecto legal, tarefa que caberia a um ambientais e, conseqüentemente, para
especialista em biodireito. O que nos o bem-estar presente e futuro dos hu-
interessa aqui destacar são os argu- manos. Existiria, de fato, uma
mentos morais. Vejamos. biodiversidade “boa” e necessária
Um dos argumentos mais co- para o bem-estar humano e a saúde
muns contra a Engenharia Genética do planeta, e uma outra que seria
(EG) em geral e os OGMs em particu- irrelevante (33). Esta hipótese deverá,
lar é que tais práticas seriam necessa- evidentemente, ser testada pelos espe-
riamente de risco, como bem mostra- cialistas que trabalham neste campo,
riam as catástrofes ecológicas já ocor- pois é sempre possível que aquilo que
ridas neste século XX. hoje é considerado como irrelevante se
Um outro argumento é que a ma- torne relevante mais tarde. Mas, mes-
nipulação genética, sendo não “natural”, mo não podendo dirimir esta questão,
seria também prejudicial à preservação podemos, no entanto, analisar a consis-
da biodiversidade, necessária para que tência dos argumentos morais racionais
continue o processo evolutivo dos orga- a favor e contra utilizados nas discus-
nismos e meios biológicos. Em outros sões da biossegurança.
termos, a EG seria uma “ecological Existe ainda o argumento dos Di-
roulette” (31) que, como a roleta russa, reitos Humanos, baseado na possibi-
teria uma chance mínima de não aca- lidade da engenharia genética vir a ser
bar numa catástrofe, resultante da redu- o primeiro passo para o eugenismo
ção da biodiversidade. Este argumento universal, devido à instrumentalização
é de tipo intuitivo, não demonstrativo, e coisificação do humano. Como já
portanto frágil, e sua fragilidade reside alertava Rifkin, “se continuarmos nes-
na utilização do próprio conceito princi- te caminho, podemos acabar por re-
pal da biossegurança: o conceito de duzir a espécie humana a um produto
biodiversidade. tecnologicamente projetado” (34). Este
Com efeito, quando se utiliza o argumento é ainda muito utilizado hoje,
227 argumento da biodiversidade supõe-se mas, contra ele, pode-se argumentar que
numa sociedade de risco estrutural, dade dos benefícios esperados,
como é a sociedade contemporânea, sabendo, no entanto, que o risco,
é de fato impossível provar que um mesmo reduzido, sempre estará
evento seja 100% seguro. Em suma, o presente e que surgirão outros ris-
risco sempre fez parte da condição cos, resultantes da interferência
humana do passado, quando o poder nos processos naturais;
do homem sobre a natureza era
2) defesa de seu trabalho profis-
irrelevante, e ele continua a fazer par-
sional contra interferências e res-
te mutatis mutandis da condição hu-
trições não relacionadas às ativi-
mana atual, só que por causas parci-
dades de pesquisa, pois estas são
almente diferentes, ou seja, não mais
necessárias para sua sobrevivên-
somente devido à impossibilidade de
cia num mundo competitivo e vi-
controlar a totalidade complexa das
tais para a própria espécie huma-
interações entre seres vivos e meio
na.
ambiente, mas também pela interferên-
cia biotecnológica na dinâmica inter- Concluindo, para reduzir um ris-
na desta complexidade. Mas, neste co atual é preciso, muitas vezes, correr
caso – pode-se perguntar – a novos riscos, que tentar-se-á reduzir
biotecnociência não constituiria de novamente, criando outros riscos e
fato um aumento da complexidade dos assim por diante. A consciência deste
sistemas vivos, ao invés de sua redu- fato já é um passo importante na abor-
ção? Esta pergunta justifica-se se con- dagem do risco de viver num mundo
siderarmos que a prática humana sem- natural em permanente transformação,
pre interferiu nos processos naturais e, que muda não só devido à sua
na maioria das vezes, com sucesso, “processualidade” intrínseca mas tam-
melhorando as próprias condições bém à contínua e necessária interven-
naturais nas quais os humanos vive- ção humana, quer dizer, devido à sua
ram e vivem ainda. transformação biotecnocientífica e
Com isso não se quer dizer que a biotecnológica. Em suma, uma “exces-
existência atual do risco estrutural re- siva prudência não elimina necessaria-
duza a responsabilidade com o bem- mente o risco de catástrofes futuras”
estar de indivíduos e populações hu- (35) e a prudência excessiva e conser-
manas, inclusive preservando as con- vadora pode eliminar a possibilidade
dições das gerações futuras. Em parti- de nos protegermos contra ameaças
cular, a existência de fato do risco não futuras, inclusive contra catástrofes
desresponsabiliza quem trabalha com naturais de grande magnitude.
OGMs. Ao contrário, só aumenta tal A análise moral racional e impar-
responsabilidade e, de uma certa ma- cial, propiciada pela teoria
neira, a define melhor. conseqüencialista, pode ajudar a pon-
Em síntese, a responsabilidade do derar, com responsabilidade e prudên-
cientista é dupla e diz respeito à: cia, e dentro das condições objetivas
existentes, as soluções que tenham a
1) redução da probabilidade do melhor (ou a menos ruim) relação entre
risco e ao aumento da probabili- custos e benefícios para o bem-estar de 228
indivíduos e populações, dentro dos 9. A engenharia genética é conhecida tam-
valores e princípios vigentes, sobre os bém como “biotecnologia moderna”,
“manipulação genética”, “modificação
quais não existe necessariamente con- genética” e, com sentido mais restrito e
senso. específico, de “tecnologia do DNA
recombinante”.
230
Dalmo de Abreu Dallari
Erro Médico
I ntrodução
além de estudar o próprio médico
como agente exclusivo do ato médico,
do seu universo de trabalho e da sua
O presente capítulo tem como eventual propensão para erros e acer-
preocupação central estudar a natureza tos na profissão, crime, castigo, glória
do erro médico, estimar seus e miséria.
determinantes essenciais e buscar os A segunda questão, de natureza
meios de conjurá-los, se não reduzi-los judicante/punitiva, em princípio, pare-
à expressão mínima. Em segundo lugar, ce mal situada quando considera a
pretende avaliar a atitude dos Conselhos formulação sobre o maior ou menor
comos órgãos fiscalizadores e julgadores rigor das punições. Essa formulação
da classe médica, no sentido de averi- oferece nuances da suspeição pela to-
guar sua tolerância na fiscalização e lerância, ou seja, que os Conselhos não
punição do erro médico; particularmen- atuariam com rigor máximo, ungidos
te, aferir se os Conselhos punem com ri- de um espírito repressivo marcial. Ri-
gor os desvios de conduta do médico que gor no presente caso deve ser conside-
resultam em danos para o paciente. E rado como severidade máxima ou sen-
em que medida isto contribui para a tença desproporcional à infração (para
profilaxia do erro médico. mais, é claro). Esse tipo de indagação
O último desafio enseja um natu- advém quase sempre da imprensa lei-
ral aprofundamento das reflexões ofe- ga, isto é, da mídia, e traduz uma pro-
recidas com base em estatísticas de vocação e oferece a presunção da cul-
Conselhos de Medicina e, sobretudo, pa médica sem pena, pouco apenada
numa recente pesquisa de cunho cien- ou não apenada.
tífico sobre o perfil do médico no Bra- Basta ferir um destes artigos,
sil, a qual oferece elementos técnicos como se vê no gráfico abaixo, se não
consistentes para uma avaliação rigo- dois ou mais artigos combinados ou
243 rosa e desapaixonada do erro médico, seqüenciais para alcançar o núcleo do
algoritmo que configura o erro/dano. por paralelismo ou então composição
É possível, ainda, admitir a dupla ação mista para o erro médico.
D efinição
co deve ser separado do resultado ad-
verso quando o médico empregou to-
dos os recursos disponíveis sem obter
Erro médico é o dano provocado o sucesso pretendido ou, ainda,
no paciente pela ação ou inação do diferenciá-lo do acidente imprevisível.
médico, no exercício da profissão, e O que assusta no chamado erro médi-
sem a intenção de cometê-lo. Há três co é a dramática inversão de expecta-
possibilidades de suscitar o dano e tiva de quem vai à procura de um bem
alcançar o erro: imprudência, imperí- e alcança o mal. O resultado danoso
cia e negligência. Esta, a negligência, por sua vez é visível, imediato na mai-
consiste em não fazer o que deveria oria dos casos, irreparável quase sem-
ser feito; a imprudência consiste em pre e revestido de sofrimento singular
fazer o que não deveria ser feito e a para a natureza humana. Muitos ou-
imperícia em fazer mal o que deveria tros erros, de outras profissões, passam
ser bem feito. Isto traduzido em lingua- despercebidos. Menos os erros dos
gem mais simples. médicos.
A negligência ocorre quase sem-
pre por omissão. É dita de caráter
omissivo, enquanto a imprudência e a
imperícia ocorrem por comissão.
O mal provocado pelo médico no
E rro médico – definição e
distinção
exercício da sua profissão, quando
involuntário, é considerado culposo, Erro médico é a conduta pro-
posto não ter havido a intenção de fissional inadequada que supõe uma
cometê-lo. Diverso, por natureza, dos inobservância técnica capaz de produ-
delitos praticados contra a pessoa hu- zir um dano à vida ou à saúde de ou-
mana, se a intenção é ferir, provocar o trem, caracterizada por imperícia, im-
sofrimento com dano psicológico e/ou prudência ou negligência.
físico para negociar a supressão do Cabe diferenciar erro médico
mal pela maldade pretendida. oriundo do acidente imprevisível e do
A Medicina presume um compro- resultado incontrolável. Acidente
misso de meios, portanto o erro médi- imprevisível é o resultado lesivo, 244
adviado de caso fortuito ou força mai- to erro médico. Conta-se que “a man-
or, incapaz de ser previsto ou evitado, do de Alexandre Magno foi crucifica-
qualquer que seja o autor em idênti- do Clauco, médico de Efésio, por ha-
cas circunstâncias. Por outro lado, o ver este sucumbido em conseqüência
resultado incontrolável é aquele decor- de uma infração dietética enquanto o
rente de situação incontornável, de médico se encontrava num teatro”. Em
curso inexorável, próprio da evolução Roma, à época do Império, os médi-
do caso – quando, até o momento da cos pagavam indenização pela morte
ocorrência, a ciência e a competência de um escravo e com a pena capital a
profissional não dispõem de solução. morte de um cidadão quando consi-
derados culpados por imperícia (Lei
Aquília). Na Idade Média, a rainha
A
o que me magoa,
quero confessar, questão mais crucial: como
é que me tratam como caso
avaliar os deveres de conduta
do médico?
mas, por favor,
eu sou é uma pessoa” Os deveres de conduta do médi-
co constituem predicados essenciais na 248
construção das virtudes inerentes à uma hipótese remota ou absurda.
qualidade do ato médico. Se observa- Mais discutida ainda é a possibi-
dos a contento, e mais do que isto, se lidade do médico responder por erro
estimulados e desenvolvidos, contribu- de prognóstico. É claro que não se
em de forma primorosa para ameni- pode exigir dele o conhecimento de
zar ou reduzir ao mínimo a possibili- tudo o que venha a acontecer em
dade do erro médico. Daí porque en- imponderáveis desdobramentos. O que
tendemos sua inserção neste capítulo se exige é prudência e reflexão.
que trata do erro médico, em suas pos- Já os erros de conduta podem
sibilidades e matizes, como fator pre- ocorrer – e são os mais comuns –, mas
ventivo. convém que sejam analisados criterio-
Qualquer que seja a forma de samente pois, nesse sentido, há
avaliar a responsabilidade de um pro- discordâncias sobre a validade de cada
fissional em determinado ato médico, método e conduta.
no âmbito ético ou legal, é imprescin- Enfim, para a caracterização da
dível que se levem em conta seus de- responsabilidade médica basta a
veres de conduta. voluntariedade de conduta e que ela
Entende-se por responsabilidade seja contrária às regras vigentes e
a obrigação de reparar prejuízo decor- adotadas pela prudência e pelos cui-
rente de uma ação onde se é culpado. dados habituais, que exista o nexo de
E por dever de conduta, no exercício causalidade e que o dano esteja bem
da medicina, um elenco de obrigações evidente. As regras de conduta
a que está sujeito o médico, e cujo não argüídas na avaliação da responsabi-
cumprimento pode levá-lo a sofrer as lidade médica são relativas aos deve-
conseqüências previstas normati- res de informação, de atualização, de
vamente. vigilância e de abstenção de abuso.
Desse modo, responsabilidade é
o conhecimento do que é justo e ne-
cessário por imposição de um sistema
de obrigações e deveres em virtude de D ever de informação
dano causado a outrem.
Discute-se muito se o médico res- São todos os esclarecimentos na
ponde por erro de diagnóstico ou por relação médico-paciente que se con-
erro de conduta. A maioria tem se pro- sideram como incondicionais e obri-
nunciado admitindo que o erro de diag- gatórios, tais como:
nóstico não é culpável, desde que não a) informação ao paciente. É fun-
tenha sido provocado por manifesta damental que o paciente seja in-
negligência; que o médico não tenha formado pelo médico sobre a ne-
examinado seu paciente ou omitido as cessidade de determinadas con-
regras e técnicas atuais e disponíveis; dutas ou intervenções e sobre os
que não tenha levado em conta as aná- seus riscos ou conseqüências.
lises e resultados durante a emissão do Mesmo que o paciente seja me-
diagnóstico, valendo-se do chamado nor de idade ou incapaz, e que
249 “olho clínico”, ou que tenha optado por seus pais ou responsáveis tenham
tal conhecimento, ele tem o direi- bora de indivíduos considerados civil-
to de ser informado e esclarecido, mente incapazes, devem ser respeita-
principalmente a respeito das pre- das principalmente quando se avaliam
cauções essenciais. O ato médi- situações mais delicadas. Assim, por
co não implica num poder excep- exemplo, os portadores de transtornos
cional sobre a vida ou a saúde do mentais, mesmo legalmente incapazes,
paciente. O dever de informar é não devem ser isentos de sua capaci-
imperativo como requisito prévio dade moral de decidir.
para o consentimento. O consen- Sempre que houver mudanças
timento pleno e a informação bem significativas nos procedimentos
assimilada pelo paciente configu- terapêuticos deve-se obter o consenti-
ram numa parceria sólida e leal mento continuado, pois a permissão
sobre o ato médico praticado. dada anteriormente tinha tempo e atos
definidos (princípio da temporalidade).
Com o avanço cada dia mais elo-
Admite-se, também, que em qualquer
qüente dos direitos humanos, o ato
momento da relação profissional, o
médico só alcança sua verdadeira di-
paciente tem o direito de não mais
mensão e seu incontestável destino
consentir uma certa prática ou condu-
com a obtenção do consentimento do
ta, mesmo já consentida por escrito,
paciente ou dos seus responsáveis le-
revogando assim a permissão outorga-
gais. Isso atende ao princípio da auto-
da (princípio da revogabilidade). O
nomia ou da liberdade, onde todo in-
consentimento não é um ato inexorável
divíduo tem por consagrado o direito
e permanente.
de ser autor do seu próprio destino e
de optar pelo rumo que quer dar a sua b) Informações sobre as condições
vida. precárias de trabalho. Ninguém
Se o paciente não pode falar por desconhece que muitos dos maus
si ou é incapaz de entender o ato que resultados na prática médica são
se vai executar, estará o facultativo originados pelas péssimas e pre-
obrigado a obter o consentimento de cárias condições de trabalho,
seus responsáveis legais (consenti- mesmo que se tenha avançado
mento substituto). Mesmo assim é tanto em termos propedêuticos.
importante saber o que é represen- Nesse cenário perverso, que
tante legal, pois nem toda espécie de pode parecer desproposital e
parentesco qualifica um indivíduo alarmista, é fácil entender o que
como tal; importante saber também pode acontecer em certos locais
de trabalho médico onde se
o que se pode e o que não se pode
multiplicam os danos e as víti-
consentir.
mas, e onde o mais fácil é cul-
Deve-se considerar, ainda, que a
par os médicos.
capacidade do indivíduo consentir não
reflete as mesmas proporções entre a Por tais razões, não se pode ex-
ética e a lei. O entendimento sob o pris- cluir dos deveres do médico o de in-
ma ético não tem a mesma inflexibili- formar as condições precárias de tra-
dade da lei, pois certas decisões, em- balho, registrando-as em locais próprios e 250
até omitindo-se de exercer alguns atos mo, das cópias de atestados e das so-
eletivos da prática profissional, tendo, licitações de práticas subsidiárias de
no entanto, o cuidado de conduzir-se diagnóstico.
com prudência nas situações de urgên-
d) informações aos outros profis-
cia e emergência.
sionais. Em princípio, o médico
Deve o médico manifestar-se sem-
não pode atuar sozinho. Muitas
pre sobre as condições dos seus ins-
são as oportunidades em que a
trumentos de trabalho, para não ser
participação de outros profissio-
rotulado como negligente tendo em
nais de saúde é imprescindível.
conta a teoria subjetiva da guarda da
Para que essa interação transcorra
coisa inanimada, principalmente se o
de forma proveitosa para o paci-
dano verificou-se em decorrência da
ente, é necessário não existir so-
má utilização ou de conhecidos defei-
negação de informações conside-
tos apresentados pelos equipamentos.
radas pertinentes.
c) informações registradas no
Essa exigência não representa
prontuário. Uma das primeiras
apenas simples cortesia entre colegas,
fontes de consulta e informação
nem requisito de caráter burocrático.
sobre um procedimento médico
São práticas recomendadas em favor
contestado é o prontuário do pa-
dos alienáveis interesses do paciente.
ciente. Por isso, é muito importan-
Deixar de enviar informações sobre o
te que ali estejam registradas to-
tratamento e meios complementares de
das as informações pertinentes e
diagnóstico é uma forma de deslize
oriundas da prática profissional.
grave nos deveres de conduta do mé-
Infelizmente, por questão de há-
dico.
bito ou de alegada economia de
O censurável, no entanto, é a
tempo, os médicos têm se preo-
omissão de informações julgadas im-
cupado muito pouco com a do-
portantes em determinado quadro clí-
cumentação do paciente, com
nico e cuja não revelação possa trazer
destaque para a elaboração mais
irreparáveis danos ao paciente, pois o
cuidadosa do prontuário.
alvo de toda atenção do médico é a
Entende-se por prontuário mé- saúde e o bem-estar do ser humano.
dico não apenas o registro da Muitas vezes essas informações são
anamnese do paciente, mas todo sonegadas por simples capricho do
acervo documental ordenado e con- profissional, que não se conforma em
ciso, referente às anotações e cui- ter seu paciente transferido para outro
dados médicos prestados e aos do- colega.
cumentos anexos. Consta do exame Outro fato, nesta mesma linha de
clínico do paciente, com suas fichas raciocínio, é a falta de informações aos
de ocorrências e de prescrição tera- substitutos do plantão sobre pacientes
pêutica, dos relatórios da enferma- internados, principalmente os mais gra-
gem, da anestesia e da cirurgia, da ves, seja de forma verbal ou através
ficha de registro dos resultados de do registro circunstanciado em livros
251 exames complementares e, até mes- de ocorrências.
D ever de atualização
exercem a profissão. Ou seja, se ele
não se credenciou para o que ordina-
riamente se sabe na profissão, ou se
O regular exercício profissional poderia ter evitado o dano caso não
do médico não requer apenas uma lhe faltasse o mínimo conhecimento
habilitação legal. Implica também no para exercer suas atividades.
aprimoramento continuado, adquirido
por meio dos conhecimentos mais re-
centes de sua profissão, no que se re-
fere às técnicas de exame e aos meios
de tratamento, seja nas publicações
D ever de vigilância
C onclusões
recusa em procedimentos de maior
risco, contribuindo, assim, para a
consolidação de uma “medicina de-
A despeito de tudo, de uma re- fensiva”. Essa posição tímida do
lação médico-paciente que se apro-
médico, além de constituir um fator
xima da tragédia e de um número as-
de diminuição na assistência aos
sustador de demandas judiciais, os
pacientes de risco, o expõe a uma
que exercem criteriosamente a me-
série de efeitos secundários ou a um
dicina prefeririam estar próximos de
agravamento da saúde e dos níveis
seus assistidos por compromissos
morais, gravados na consciência de de vida do conjunto da sociedade. Se
cada um pelo mais tradicional de não houver, desde logo, um trabalho
seus documentos – O Juramento de bem articulado, os médicos, num fu-
Hipócrates. Por sua vez, a sociedade turo não muito distante, vão traba-
espera do profissional o respeito à lhar pressionados por uma mentali-
dignidade humana como forma de dade de inclinação litigiosa, voltada
manter uma tradição que consagrou para a compensação, toda vez que
a medicina como patrimônio da hu- os resultados não forem, pelo menos
manidade, desde os tempos sob aquela ótica, absolutamente per-
imemoriais. feitos.
Com o passar dos anos, os im- Finalmente, deve-se conscientizar
perativos de ordem pública foram a sociedade mostrando que além do
pouco a pouco se impondo como erro médico existem outras causas que
conquista da organização social. Foi- favorecem o mau resultado, como as
se vendo que a simples razão de o péssimas condições de trabalho e a
médico ter um diploma não o exime penúria dos meios indispensáveis no
de sua responsabilidade. Por outro
tratamento das pessoas. Afinal de con-
lado, o fato de se considerar o médi-
tas, muitos dos pacientes não estão
co, algumas vezes, como infrator, di-
morrendo nas mãos dos médicos, mas
ante de uma ou outra conduta
desabonada pela lex artis, não quer nas filas dos hospitais, a caminho dos
dizer que o prestígio da medicina está ambulatórios, nos ambientes miserá-
comprometido. veis onde moram e na iniqüidade da
O pior de tudo é que as possibi- vida que levam. Desse modo, ignoran-
lidades de queixas, cada vez mais do tais realidades o mais simples é sem-
255 crescentes, começam a perturbar pre condenar os médicos.
Bibliografia
256
Marco Segre
Cláudio Cohen
268
Carlos Fernando Francisconi
José Roberto Goldim
Aspectos Bioéticos da
Confidencialidade e Privacidade
I ntrodução
to em um hospital, posto de saúde ou
consultório privado, assim como os
resultados de exames e procedimentos
A confidencialidade, embora um realizados com finalidade diagnóstica
dos preceitos morais mais antigos da ou terapêutica, são de sua proprieda-
prática médica, continua um tema ex- de. Durante muito tempo houve o en-
tremamente atual no exercício da re- tendimento de que estas informações
lação médico-paciente. O mais das ve- pertenciam ao médico assistente ou à
zes o seu exercício não apresenta difi- instituição. Desta visão é que surgiram
culdade maior para os profissionais da as denominações “prontuário médico”
saúde, haja vista que a imensa maio- e “arquivo médico”. Esta maneira de
ria tem uma idéia do significado e va- tratar as informações do paciente deve
lor da preservação dos segredos em ser atualizada. Os profissionais e as
medicina. Não é difícil, para um mé- instituições são apenas seus fiéis de-
dico, entender que a confidencialidade positários. Os médicos, enfermeiros e
é um dos pilares fundamentais à sus- demais profissionais de saúde e admi-
tentação de uma relação médico-pa- nistrativos que entram em contato com
ciente produtiva e de confiança. É esta as informações têm apenas autoriza-
garantia que faz com que os pacientes ção para o acesso às mesmas em fun-
procurem auxílio profissional quando ção de sua necessidade profissional,
necessitam, sem medo de repercussões mas não o direito de usá-las livremen-
econômicas ou sociais que possam te. Dessa forma, os profissionais so-
advir de seu estado de saúde (1). mente deverão ter acesso às informa-
As informações fornecidas pelos ções que efetivamente contribuam ao
269 pacientes, quando de seu atendimen- atendimento do paciente.
A garantia da preservação do se- maneira diferente em relação a qual-
gredo das informações, além de uma quer princípio. É este um valor que
obrigação legal contida no Código Pe- deve ser precocemente transmitido e
nal (2) e na maioria dos Códigos de exemplificado aos alunos dos cursos
Ética profissional (3), é um dever pri- médicos através de uma atitude corre-
ma facie de todos os profissionais e ta por parte dos professores quando do
também das instituições. Este concei- seu exercício docente-assistencial nos
to foi proposto por Sir David Ross, em hospitais universitários. As populações
1930 (4). Ele propunha que não há, vulneráveis devem ser protegidas por
nem pode haver, regras sem exceção. políticas extremamente claras sobre o
O dever prima facie é uma obrigação uso das informações geradas ao longo
que se deve cumprir, a menos que de seu atendimento pelo sistema de
conflite, numa situação particular, com saúde.
um outro dever de igual ou maior por- Muitos autores e códigos utilizam
te. Por exemplo, como veremos poste- indistintamente os termos sigilo e se-
riormente, existem situações que cla- gredo. A palavra segredo pode ter o
ramente constituem exceções à preser- significado de mera ocultação ou de
vação de segredos devido ao risco de preservação de informações. Os segre-
vida associado ou ao benefício social dos dizem respeito à intimidade da
que pode ser obtido. pessoa, portanto devem ser mantidos
A preservação de segredos profis- e preservados adequadamente. A pa-
sionais é um direito do paciente e uma lavra sigilo tem sido cada vez menos
conquista da sociedade (5). Esta rela- utilizada. A sua utilização em diferen-
ção de confiança se estabelece entre o tes idiomas tem caracterizado cada vez
paciente e seu médico, e se estende a mais os aspectos de ocultação e me-
todos os demais profissionais das áre- nos os de preservação.
as de saúde e administrativa, incluin- A omissão de informações é uma
do-se as secretárias e recepcionistas situação que permite verificar a dife-
que tenham contato direto ou indireto rença entre segredo e sigilo. Não raro
com as informações obtidas. Muito do familiares de pacientes solicitam aos
vínculo que se estabelece pode ser cre- médicos que omitam informações ou
ditado a esta garantia. mintam aos mesmos, principalmente
A preservação das informações é na situação de diagnóstico de doen-
um compromisso de todos e para com ças malignas. Neste caso, o médico
todos. Algumas vezes observamos que estará mantendo uma informação em
os médicos têm mais facilidade em sigilo, quando deveria comunicá-la a
manter a confidencialidade de seus quem de direito. Os pacientes também
pacientes mais abonados, sendo mais pedem para que os médicos omitam
“flexíveis” em deixar escapar informa- ou mintam para as suas famílias, pe-
ções de seus pacientes mais empobre- los mais diferentes motivos. A primei-
cidos tanto social como intelectualmen- ra circunstância, omitir informações a
te. No entanto, é moralmente inaceitá- pedido do paciente, pode ser encarada
vel que os médicos, em função de va- como um claro exercício de sua auto-
riáveis socioeconômicas, ajam de nomia, preservando sua intimidade e 270
segredos. A segunda solicitação – men- ganado, ou seja a veracidade, é um
tir – pode constituir-se em um ato eti- dos princípios básicos sobre os quais
camente inadequado. Recomenda-se se estabelece a relação médico-paci-
ao médico muita prudência nestas si- ente.
tuações. Ele deverá entender bem os A preservação de segredos está
aspectos psicodinâmicos envolvidos e associada tanto à questão da privaci-
discuti-los claramente com a família ou dade quanto da confidencialidade. A
com o paciente, conforme o caso, an- privacidade, mesmo quando não há
tes de tomar uma decisão séria como vínculo direto, impõe ao profissional os
esta: enganar deliberadamente a al- deveres de resguardar as informações
guém. que teve contato e de preservar a pró-
A veracidade, a exemplo da pria pessoa do paciente – pode ser con-
confidencialidade, é também um de- siderada como sendo um dever
ver prima facie. Desta forma, a única institucional. A confidencialidade, por
justificativa moralmente aceitável para sua vez, pressupõe que o paciente re-
que o médico omita a verdade é a de vele informações diretamente ao pro-
que o bem maior para o paciente, na- fissional, que passa a ser o responsá-
quela circunstância específica, é não vel pela preservação das mesmas.
ter acesso a uma dada informação. A
caracterização deste caráter de exce-
ção deve ser feita pelo próprio médi-
co, em função dos argumentos de fa- C onfidencialidade
miliares próximos e baseando-se essen-
cialmente em sua observação e julga- A confidencialidade é uma carac-
mento. terística presente desde os primórdios
Esta situação é peculiar às cultu- das profissões de saúde. O juramento
ras latinas, que têm caráter mais cole- hipocrático, do século V a.C., estabe-
tivo em suas relações familiares (6). lecia que: “qualquer coisa que eu veja
Muitas vezes as informações médicas ou ouça, profissional ou privadamente,
são primeiro relatadas às famílias e, que deva não ser divulgada, eu man-
posteriormente, aos pacientes. Nos terei em segredo e contarei a ninguém”
países anglo-saxãos, de formação mais (7). Thomas Percival, em seu livro
individualista, o paciente, de maneira Medical Ethics, de 1803, também rei-
quase que obrigatória, terá primeira- terava a importância da garantia da
mente acesso às informações e, então preservação das informações para
decidirá se alguém mais compartilha- uma adequada relação médico-paci-
rá das mesmas. ente (8). Confidencialidade, desta for-
O dilema ético, na realidade, não ma, é a garantia do resguardo das in-
está situado entre revelar ou não o formações dadas em confiança e a
diagnóstico, ao paciente, ou qualquer proteção contra a sua revelação não
outra informação relevante, mas sim autorizada (9).
na forma e momento de revelar. Vale A confidencialidade não é uma
relembrar que a garantia recíproca de prerrogativa dos pacientes adultos, ela
271 comunicar a verdade e de não ser en- se aplica a todas as faixas etárias.
As crianças e os adolescentes têm, pessoa, bem como do acesso à pró-
como um adulto, o mesmo direito de pria pessoa e à sua intimidade. É a
preservação de suas informações pes- preservação do anonimato e dos se-
soais, de acordo com a sua capacida- gredos (12). É o respeito ao direito de
de, mesmo em relação a seus pais ou o indivíduo manter-se afastado ou per-
responsáveis (10). Com relação aos manecer só. É o direito que o paciente
pacientes idosos, especial atenção tem de não ser observado sem sua
deve ser dada à revelação de informa- autorização. O artigo XII da Declara-
ção aos familiares e, especialmente, ção Universal dos Direitos Humanos,
aos cuidadores. Estes deverão receber proposta pela ONU em 1948, já esta-
apenas as informações necessárias ao belecia o direito à não interferência na
desempenho de suas atividades (11). vida privada pessoal ou familiar (13).
Confidencialidade tem origem na As instituições têm a obrigação de
palavra confiança, que é a base para um manter um sistema seguro de proteção
bom vínculo terapêutico. O paciente con- aos documentos que contenham regis-
fia que seu médico irá preservar tudo que tros com informações de seus pacien-
lhe for relatado, tanto que revela infor- tes. As normas e rotinas de restrição
mações que outras pessoas, com as de acesso aos prontuários e de utiliza-
quais convive, sequer supõem existir. ção de senhas de segurança em siste-
Os deveres do terapeuta para com mas informatizados devem ser conti-
a preservação dos dados de um paci- nuamente aprimoradas. Por sua vez,
ente não cessam com a morte deste, o acesso de terceiros envolvidos no
nem com o fato de ser uma pessoa atendimento, como seguradoras e ou-
pública. O profissional não deve sequer tros prestadores de serviços, deve me-
confirmar uma informação que já é de recer especial atenção.
domínio público. Os familiares, por sua Em média, durante uma
vez, não têm o direito de acesso e, internação clínica habitual em hospi-
muito menos, de obrigar o terapeuta a tais norte-americanos, 75 diferentes
fornecer estas informações, que devem pessoas lidam com o prontuário de um
permanecer resguardadas. Neste tipo paciente (14). Estes dados são seme-
de situação o profissional somente lhantes aos verificados no Hospital de
poderá dizer à família, ou a qualquer Clínicas de Porto Alegre. Os médicos,
outra pessoa que solicitar informações, psicólogos, enfermeiros e outros pro-
que está impedido de atender a estes fissionais de saúde, assim como todos
pedidos por motivos morais e legais, os demais funcionários administrativos
justificando a sua conduta sob o pon- (secretárias de unidade, funcionários
to de vista da adequação ética. do setor de arquivo de prontuários, de
setores de internação, da área de
faturamento e de contas de pacientes,
P rivacidade
entre outros) que entram em contato
com as informações têm o mesmo
comprometimento, ou seja, apenas au-
A privacidade é a limitação do torização para o acesso às mesmas em
acesso às informações de uma dada função de sua necessidade profissional, 272
mas não o direito de usá-las livremen- de inconsciência e, até mesmo, após
te. Cabe às instituições e profissionais sua morte.
responsáveis pelo atendimento dos Algumas vezes os médicos se
pacientes, especialmente aos médi- vêem em uma situação difícil, quando
cos, um importante papel educativo o paciente, fazendo uso de sua auto-
no processo de manutenção das in- nomia, toma alguma decisão que não
formações (15). visa ao seu melhor interesse biomédico
A garantia da preservação da pri- e exige a preservação destas informa-
vacidade deve limitar o acesso à própria ções, por parte do médico, quanto às
pessoa, à sua intimidade. Deve impedir razões que o levam a tal decisão. Não
que um paciente seja observado sem a havendo qualquer elemento que leve a
devida autorização. Isto é extremamen- pensar em prejuízo do exercício da
te importante no atendimento de paci- autonomia do paciente e não haven-
entes em Ginecologia, por exemplo, ten- do qualquer razão moral que justifique
do em vista o tipo de exposição a que a quebra da confidencialidade, estas
são submetidas na maioria dos exames informações deverão ser preservadas,
físicos realizados de rotina. Muitas ve- por mais difíceis sejam os problemas
zes, o espaço de intimidade destas paci- que porventura surjam no contato com
entes é invadido por diferentes pessoas os familiares do paciente.
com as quais nunca tiveram qualquer Uma vez estabelecido um trato
contato prévio. Esta situação se agrava com o paciente, ou seja, a concordân-
quando o atendimento ocorre em um cia do médico em seguir a vontade do
hospital de ensino, onde, além dos pro- paciente, ele deve resistir a todas as
fissionais, também os alunos partici- pressões de familiares ou de outras
pam dos procedimentos (16). pessoas – como amigos, colegas, su-
periores hierárquicos e imprensa –
para manter a confidencialidade da in-
A s diferentes formas de
quebra de privacidade e
formação médica. Vale ressaltar que
nem mesmo a morte do paciente de-
sobriga o médico a preservar as infor-
confidencialidade mações privilegiadas, isto é, ele não
pode tornar pública quaisquer informa-
As quebras de privacidade ou de ções biomédicas de pacientes, tanto
confidencialidade podem surgir na vivos como mortos, se com eles assu-
relação do terapeuta com terceiros, miu um compromisso. Recomenda-se
tais como com a família, cuidadores que estas situações sejam discutidas
ou empresas seguradoras. Em todas com os pacientes para que eles orien-
estas relações deve ficar claro que o tem o médico como proceder em rela-
dever de lealdade do terapeuta é para ção a quem deve ou pode ter acesso
com o paciente. A este cabe a deci- às informações médicas.
são de quais dados devem ser reve- Mesmo segredos podem, em algu-
lados ou não. É extremamente impor- mas situações específicas, por força de
tante que este compromisso seja pre- obrigação legal, ser comunicados sem
273 servado, esteja o paciente em estado que haja quebra de confidencialidade
(17), constituindo-se em uma exceção temente da solicitação de privilégio por
à preservação de informações. parte dos pacientes.
A exceção à preservação de in- O profissional de saúde, ao ser
formações pode existir, desde que por chamado para testemunhar em uma
justa causa e com amparo na legisla- Corte Judicial, deve comparecer peran-
ção, em circunstâncias tais como: te a autoridade e declarar-se impedi-
do de revelar qualquer informação,
- testemunhar em corte judicial,
pois está moralmente comprometido
em situações especiais previstas
com a preservação das informações.
em leis e compatíveis com a gra-
Existem opiniões, contudo, que admi-
vidade;
tem que um juiz pode assumir a res-
- comunicar, à autoridade com- ponsabilidade de inquirir a revelação
petente, a ocorrência de doença, de informações, mesmo contrariando
procedimento ou situação de in- o código de ética profissional, desde
formação compulsória, de maus- que isto fique claramente configurado
tratos em crianças ou adolescen- nos autos do processo. Desta forma
tes, de abuso de cônjuge ou ido- estaria caracterizada uma exceção –
so – ou de ferimento por arma de e não uma quebra à confidencialidade.
fogo ou de outro tipo, quando Essa alternativa pode contemplar os
houver a suspeita de que esta le- aspectos legais do ato de revelar infor-
são seja resultante de um ato cri- mações tidas como confidenciais, po-
minoso. rém não atende plenamente ao aspec-
tos morais envolvidos.
Nesses casos o profissional fica
As situações de abuso ou maus-tra-
desobrigado de cumprir com o dever
tos devem ser avaliadas com cautela. No
de preservar as informações,
Brasil, existe a obrigação legal de comu-
objetivando beneficiar a sociedade
nicar essas ocorrências quando consta-
como um todo. É o exemplo de quan- tadas em crianças ou adolescentes (20).
do um dever maior se sobrepõe a um As demais situações de abuso de cônju-
outro, constituindo-se em um novo ge ou idoso da família não estão previs-
dever prima facie. Porém, mesmo nes- tas em lei, mas podem ser equiparadas,
tas situações existem diferentes abor- desde o ponto de vista moral, às
dagens. Na legislação norte-america- verificadas em menores. Nestes casos é
na há o conceito de “informações pri- bom contatar um Comitê de Bioética ou
vilegiadas” – aquelas dadas em confi- alguma outra estrutura de defesa dos di-
ança a um advogado, médico, clérigo reitos dos pacientes porventura existen-
ou cônjuge, que não podem ser reve- te na própria instituição. No caso de tra-
ladas em corte judicial se este privilé- balho em consultório privado a situação
gio for solicitado pelo cliente, pacien- fica mais delicada, pois as decisões são
te, fiel ou cônjuge. No Brasil, os códi- mais solitárias. Nessa circunstância
gos de ética profissional dos médicos pode ser solicitada uma consultoria ou
(18) e dos fonoaudiólogos (19) impe- supervisão formal a algum colega com
dem a estes profissionais prestar infor- experiência nesta área ou ao Conse-
mações mesmo a um juiz, independen- lho Regional de Medicina do estado. 274
Em todos estes episódios os profissionais As quebras de confidencialidade
envolvidos também passam a ser soli- ou de privacidade, conforme o caso,
dários na manutenção da confiden- podem ocorrer em situações muito
cialidade e privacidade do caso. comuns entre os profissionais de saú-
A comunicação de doença de no- de, por exemplo, quando realizam co-
tificação compulsória (21) ou da supo- mentários sobre pacientes em elevado-
sição de preenchimento dos critérios de res, corredores, restaurantes, cantinas
morte encefálica (22), assim como de ou refeitórios. Uma pesquisa (26) re-
situações com possíveis desdobramen- velou que em 13,9% das situações
tos judiciais como, por exemplo, lesão observadas em elevadores houve co-
por arma de fogo, tem por base o prin- mentários inadequados, dos quais
cípio da beneficência, tomado no seu metade claramente revelavam infor-
sentido mais amplo e utilitarista, isto é, mações confidenciais.
como beneficência expandida ou bene- Devem ser estabelecidas medidas
ficência social. O indivíduo não tem be- para evitar que pessoas sem qualquer
nefício pessoal, mas a sociedade, poten- envolvimento com o paciente, ou que
cialmente, sim. Uma situação de notifi- não necessitam saber detalhes impres-
cação compulsória, porém, não se en- cindíveis à sua atividade profissional,
quadra nesta justificativa: é a referente venham a ter informações sobre o
aos procedimentos de esterilização cirúr- mesmo. Estas informações só devem
gica (23), cuja comunicação não tem be- ser utilizadas no próprio local de tra-
nefício social. balho, para o cumprimento específico
Com relação à comunicação de da tarefa de cada profissional. A polí-
crimes, o médico tem o dever legal de tica a ser seguida deve tomar por base
comunicá-los à autoridade competen- a questão: “quem necessita saber, pro-
te, salvo, segundo Nelson Hungria (24), fissionalmente, o quê, de quem?”
quando esta revelação possa vir a pre- Uma situação de igual risco é o
judicar seu paciente. uso de dados para exemplificar situa-
Resumindo, a exceção de ções clínicas ou administrativas. Essa
confidencialidade pode ser eticamen- utilização, que pode ser necessária
te aceitável desde que o paciente dê a para ensino, por exemplo, deve ter sem-
sua permissão; que a lei obrigue a re- pre o cuidado de descaracterizar ple-
velação; que haja risco de vida ou namente a identificação do paciente,
possibilidade de dano físico ou psico- preservando, assim, as informações.
lógico para uma ou mais pessoas Na área administrativa, a utilização de
identificadas (25). dados para fins de auditoria ou avali-
Podemos fazer a distinção entre ação da qualidade do atendimento
quebra de privacidade e quebra de prestado pode expor desnecessaria-
confidencialidade: a primeira consiste mente um ou mais pacientes. Nas ati-
no acesso desnecessário ou uso de in- vidades de pesquisa, muitas vezes são
formações sem a devida autorização utilizados dados constantes em pron-
do paciente; a segunda, é a ação de tuários e bases de dados. Essa utiliza-
revelar ou deixar revelar informações ção deve ser resguardada e permitida
275 fornecidas em confiança. apenas para projetos previamente
aprovados por um Comitê de Ética em las que pudessem ter repercussões gra-
Pesquisa, desde que plenamente ves como as deste caso; os outros dois
descaracterizada a identificação do propuseram que existiam motivos su-
paciente, inclusive quanto as suas ini- ficientes para que as informações fos-
ciais e registro hospitalar. Mesmo nas sem reveladas.
publicações científicas não deve ser pos- A partir principalmente deste caso,
sível identificar os pacientes através de Junkerman e Schiedermayer (28), da
fotografias ou outras imagens. Em caso Universidade de Wisconsin/EEUU, es-
de necessidade imperiosa, isto será per- tabeleceram critérios que devem ser ob-
mitido apenas com o consentimento, por servados para lidar com situações deste
escrito, dos mesmos – o que tem ampa- tipo. A quebra de confidencialidade, isto
ro na própria Constituição Federal, em é, a revelação não autorizada de infor-
seu Art. 5º, item X (27). mações fornecidas em confiança, so-
O Caso Tarasoff, que ocorreu na mente é eticamente admitida quando:
Universidade da Califórnia, em
- um sério dano físico a uma pes-
Berkeley/EEUU, em 1969, provocou
soa identificável e específica tiver
grande discussão sobre a adequação
alta probabilidade de ocorrer
da quebra de confidencialidade. O
(não-maleficência);
desfecho judicial só ocorreu sete anos
após, em 1976, na Suprema Corte da - um benefício real resultar desta
Califórnia. Neste caso, um paciente quebra de confidencialidade (be-
atendido por um psicólogo em um neficência);
ambulatório universitário, sob a super- - for o último recurso, após ter sido
visão de um psquiatra, revelou que iria utilizada a persuasão ou outras
matar sua ex-namorada. O psicólogo abordagens (autonomia);
recomendou formalmente a internação
compulsória do paciente. As providên- - este procedimento for genera-
cias, contudo, não foram seguidas pela lizável, ou seja, o mesmo será no-
segurança do campus universitário, vamente utilizado em outra situa-
responsável pelos procedimentos de ção com características idênticas,
internação nessas circunstâncias. O independentemente da posição so-
paciente não foi internado, por ter sido cial do paciente envolvido (justiça,
considerado mentalmente capaz pelos tomando por base o imperativo
seguranças, e veio a matar a ex-namo- categórico de Kant (29)).
rada. Os pais desta processaram a Mesmo quando estes quatro crité-
universidade por não avisá-los do ris- rios estiverem contemplados é prudente
co que sua filha corria, pois desta for- apresentar o caso ao Comitê de
ma poderiam ter tomado medidas pre- Bioética, se houver, a um colega ou ao
ventivas que impedissem o trágico des- Conselho Regional de Medicina de seu
fecho. Os três juízes da Suprema Cor- estado, em situação formal de
te do Estado da Califórnia/EEUU, en- consultoria, esclarecendo adequada-
carregados do caso, se dividiram: um mente os fatos e a situação encontrada.
defendeu o direito de preservar total- Em suma, o fundamental é com-
mente as informações, mesmo aque- preender a importância do respeito que 276
merecem todas as informações dos Nessas situações, os seus representan-
pacientes e o desenvolvimento de es- tes legais assumem este direito.
tratégias de como lidar com as mes- As recentes propostas de
mas de forma eticamente adequada. compartilhamento de informações en-
tre diferentes instituições de saúde,
com o objetivo de permitir o rápido
O prontuário do paciente
acesso às informações de um pacien-
te, independentemente de se ele foi
atendido localmente ou não, agregam
Os documentos com as informa- novas questões. A principal delas tal-
ções obtidas com ou sobre o paciente vez seja a da garantia da preservação
são armazenados no prontuário. O das informações durante a transmis-
prontuário é um arquivo, em papel ou são dos dados. A utilização de linhas
informatizado, cuja finalidade é facili- telefônicas convencionais pode facili-
tar a manutenção e o acesso às infor- tar o uso indevido das informações,
mações que os pacientes fornecem, mesmo que os dados estejam
durante o atendimento, seja em uma criptografados e existam sistemas de
área de internação ou ambulatorial, segurança para acesso às bases de
bem como os resultados de exames e dados.
procedimentos realizados com finali- A consulta aos prontuários de
dade diagnóstica ou de tratamento. O pacientes pode ser necessária para fins
prontuário é de propriedade do paci- de comprovação de realização de pro-
ente. O hospital ou outra instituição de cedimentos. Esta verificação deverá ser
saúde detém a guarda destes documen- feita apenas por auditores creden-
tos visando preservar o histórico de ciados, preferencialmente médicos, no
atendimento de cada paciente. próprio estabelecimento de saúde. Os
Como já citado anteriormente, em prontuários não podem ser retirados da
um hospital universitário, durante o pe- instituição, pois poderiam acarretar pre-
ríodo de uma internação média de oito juízos na eventualidade de um atendi-
dias, pelo menos 75 diferentes pessoas mento ao próprio paciente.
podem lidar com o prontuário do paci- As autoridades policiais não têm
ente. Deve-se ressaltar que tanto os mé- acesso aos dados constantes no pron-
dicos como os enfermeiros e demais pro- tuário, pois isto caracterizaria uma in-
fissionais de saúde, assim como todos vasão de privacidade. No caso de au-
os funcionários administrativos que en- toridade judicial, devidamente
tram em contato com as informações por justificada e solicitada por escrito em
dever de ofício, têm autorização para o documento oficial, as informações po-
acesso às mesmas apenas em função da derão ser fornecidas, mas não envia-
necessidade profissional. Vale salientar dos os documentos originais do pron-
que qualquer outra pessoa, que não o tuário.
paciente, não tem o direito de usar as Os alunos e professores também
informações do prontuário livremente, utilizam os dados do prontuário com
salvo no caso de pacientes menores de finalidade educativa, essencial à
277 idade ou declarados como incapazes. formação de novos profissionais de
saúde. Este acesso é eticamente ade- exposto a outra situação de risco, a
quado, desde que especificamente vin- quebra da confidencialidade seria ime-
culado às atividades de ensino-apren- diata. Não se provou, até o momento,
dizagem; qualquer outro uso implica que este tipo de medida é eficiente no
quebra de privacidade. controle da epidemia da AIDS e, por
Para as atividades de pesquisa outro lado, uma política desta natureza
como já dito, o pesquisador somente pode ter o efeito perverso de afastar dos
pode acessar o prontuário após ter ela- centros de saúde pacientes de risco pelo
borado um projeto e o mesmo ter sido medo da quebra de confidencialidade de
aprovado pelo Comitê de Ética em informação tão delicada (32).
Pesquisa. No Hospital de Clínicas de Os critérios que serviram de base
Porto Alegre foi baixada uma norma para a elaboração da Resolução nº
específica sobre este tema, que obriga 1.358/92, do Conselho Federal de Me-
os pesquisadores a assinarem um Ter- dicina, relativa a situações que envol-
mo de Compromisso para Uso de Da- vam pacientes com AIDS, foram os
dos (30). Este documento formaliza o mesmos utilizados por Junkerman e
dever de preservar os dados e o ano- Schiedermayer (1993) com base no
nimato dos pacientes estudados – este caso Tarasoff. Esta resolução estabe-
procedimento foi adotado, posterior- lece que o segredo profissional deverá
mente, em outras instituições. ser rigorosamente cumprido, mesmo
após a morte do paciente, inclusive
com relação à família. O diagnóstico
S ituações especiais
de que o indivíduo é HIV+ será in-
formado a seus parceiros sexuais ou
usuários de seringas em comum quan-
HIV-AIDS do o paciente se negar a fazê-lo, desde
que observados todos os critérios para
A AIDS trouxe um desafio ao prin- a quebra de confidencialidade.
cípio da confidencialidade, na medi-
da em que um valor mais alto, no caso Crianças e adolescentes
a vida das pessoas que têm contato
direto com o paciente, surge na dis- As crianças e os adolescentes, sob
cussão. Na prática, estamos obrigados o ponto de vista legal, são considera-
tanto moralmente como legalmente a dos incapazes. Porém, moralmente,
informarmos ao cônjuge/companheiro podem ser considerados como porta-
do nosso paciente a sua situação de dores de autonomia crescente e, segun-
doença (31). É igualmente compulsó- do vários autores, a partir dos doze
ria a notificação da doença às autori- anos de idade, como não passíveis de
dades de saúde. É ainda controversa distinção de um adulto capaz (33).
e, portanto não universalmente acei- Os responsáveis legais têm o di-
ta, a atitude de informar contatos do reito de acessar as informações cons-
caso mesmo garantindo-se o anonima- tantes no prontuário de seus dependen-
to do caso-índice. Obviamente, na si- tes. O Código de Ética Médica de
tuação de contato monogâmico e não 1988, em seu artigo 103, consagra que 278
o médico deve respeitar a confidencia- em alguns casos, podem ainda não ter
lidade dos pacientes menores de sido discutidas com ele. Este acesso
idade, desde que capazes de avaliar e indiscriminado poderia mudar o cur-
conduzir adequadamente o problema so de seu tratamento e, talvez, de sua
abordado. Estes pacientes, em uma própria vida. Esta questão pode talvez
pesquisa realizada com oncologistas e ser incluída na discussão anteriormente
cirurgiões pediátricos, tiveram a sua feita sobre a questão da veracidade.
autonomia considerada como igual a Na área da Terapia de Família
de um adulto a partir dos 10 anos, com pode surgir outro problema, que é o
mediana de 16 anos (34). de estabelecer os critérios de acesso ao
O atendimento de pacientes ado- prontuário de família. Qualquer dos
lescentes, especialmente na área gine- membros da família atendida pode
cológica, pode levar a situações de solicitar uma cópia do prontuário ou é
conflito de fidelidade do médico com necessária a autorização ou solicita-
sua paciente, com a eventual respon- ção coletiva de todos os participantes?
sabilidade de informar seus pais ou Como os dados foram gerados em con-
representantes legais. junto, a alternativa mais adequada tal-
As crianças e adolescentes têm o vez seja a de sua liberação pelo grupo,
direito de ter a sua imagem e identida- e não como um exercício de direito
de preservadas. A confidencialidade individual de seus participantes. Por
de seus dados, assim como o acesso prudência, estes critérios devem ser
aos mesmos, também deve ser garan- estabelecidos com todos os participan-
tida (35). tes desde o início do processo
psicoterapêutico. O registro de infor-
Pacientes psiquiátricos mações de atendimentos individuais
em prontuários de família, prática uti-
Todo paciente tem o direito de lizada em algumas instituições, pode
acessar seus dados pessoais. Uma trazer riscos adicionais à confiden-
questão ética que emerge é se este di- cialidade. Um deles é o compartilha-
reito também se aplica de forma inte- mento indevido de informações entre
gral ao paciente psiquiátrico. Por terapeutas de diferentes membros da
exemplo, algumas vezes este não tem família, simultaneamente ou em mo-
conhecimento de seu próprio diagnós- mentos distintos. Isto poderia se cons-
tico, apesar de o mesmo já estar regis- tituir em quebra de confidencialidade
trado no seu prontuário ou ficha de e de privacidade.
atendimento. Com o acesso aos regis- Na área psiquiátrica, a supervi-
tros, o paciente poderia ter conheci- são é um eficiente meio de aprendiza-
mento de uma informação-chave, do especialmente em psicoterapia. O
agravada pelo fato de que, algumas importante é ressaltar que os pacien-
vezes, o psiquiatra pode anotar, no tes atendidos durante a etapa de for-
prontuário, observações com relação mação do terapeuta não devem ser vis-
à interpretação de elementos da histó- tos apenas como um instrumento di-
ria, que dizem respeito ao inconscien- dático, mas como a finalidade des-
279 te de seu paciente. Estas informações, ta atividade. O uso de informações
confidenciais, pelo terapeuta, deve ser médicos, imagem dos pacientes e pro-
feito com extrema cautela. As situações cedimentos médicos tanto invasivos no
envolvidas em supervisões devem ser sentido orgânico quanto psicológico.
cercadas de cuidados formais para Com muita freqüência, podem ser vis-
com o comprometimento do supervisor tos diapositivos ou vídeos com imagens
na preservação de todas estas infor- radiológicas, endoscópicas ou
mações. O objetivo de revelar informa- anatomopatológicas com o nome por
ções a um supervisor, além do apren- extenso de pacientes. Muitas vezes o
dizado com o caso, deve ser o de pres- paciente não tem conhecimento desta
tar o melhor atendimento possível ao utilização indevida de seu nome ou
paciente (36). imagem, tanto por omissão quanto por
Estas recomendações também engano deliberado.
são válidas para digitadores e datiló- A utilização de registros de aten-
grafos contratados por tarefa. Muitas dimentos através de gravações em
vezes, os terapeutas e, principalmen- áudio ou vídeo devem ser expressa-
te, os alunos em período de formação mente autorizadas pelos pacientes. As
ou estágio supervisionado utilizam-se gravações devem ter sua finalidade
destes serviços na transcrição de aten- previamente estabelecida, inclusive
dimentos psicoterápicos e na forma- com a indicação do destino a ser dado
tação de relatórios. ao material após este uso. As grava-
ções em vídeo, assim como as fotogra-
Demonstrações médicas fias ou outros métodos de registros de
imagem pessoal, devem ser realizadas
Na área da psicoterapia é muito após a obtenção de uma Autorização
comum a prática da observação atra- para Uso de Imagem, semelhante a um
vés de janelas espelhadas, com visão Termo de Consentimento Informado.
unidirecional. O paciente tem o direi- Caso o projeto já venha a utilizar este
to de ser informado sobre esta obser- instrumento, a obtenção das imagens,
vação por terceiros. Previamente, deve a sua utilização e o destino dos regis-
ser solicitada a sua autorização para tros devem constar, de forma explíci-
que este tipo de atividade ocorra. O ta, entre os procedimentos que serão
fato do atendimento ser realizado em realizados.
uma instituição de ensino não pressu- A utilização de vídeos, em espe-
põe a autorização implícita para a cial, requer alguns cuidados adicionais.
observação. Nas fichas de arquivamento dos ma-
Uma prática cada vez mais utili- teriais as pessoas não devem ser
zada para fins pedagógicos é a de- identificadas por seus próprios nomes,
monstração de atos médicos tanto em ou qualquer outra forma que possa ser
transmissões ao vivo quanto com a decodificada como tal, por exemplo:
utilização de diferentes recursos iniciais, números de registros ou ou-
audiovisuais. Não é difícil imaginar tras características pessoais peculiares.
com que freqüência quebra-se a A preservação da identidade pessoal
confidencialidade ou a privacidade no próprio vídeo pode ser feita através
nestas situações: expõem-se dados de processos de edição, que quando 280
bem utilizados não descaracterizam a os membros da equipe é fundamental,
situação a ser apresentada. A citação pois o projeto ainda não foi apresen-
de terceiros deve ser igualmente tado. Da mesma forma, os Comitês de
descaracterizada, pois os mesmos não Ética em Pesquisa, em todas as ins-
foram consultados a este respeito e, se tâncias, e os Comitês Assessores das
o fossem, isto, por si só, caracterizaria agências financiadoras assumem o
uma situação eticamente inadequada. compromisso com a preservação das
Devem ser fornecidos apenas os da- informações a eles submetidas. Quan-
dos necessários à compreensão da si- do forem utilizados consultores ad hoc,
tuação a ser apresentada, sendo pre- esta característica deve constar formal-
servadas todas as demais informações. mente na solicitação do parecer (37).
Não devem ser permitidas cópias Durante a execução do proje-
dos vídeos para qualquer outra pessoa, to devem ser mantidas todas as
mesmo alunos em processo de forma- propostas contidas no mesmo, ou
ção, salvo prévia autorização pelos seja, a não identificação dos indiví-
pacientes, de forma explícita, indican- duos pesquisados, a preservação de
do a finalidade específica de tal pro- suas imagens, o uso específico para a
cedimento. Os cuidados devem ser re- finalidade do projeto. Os pesquisado-
dobrados quando são utilizados servi- res, entre si, devem, igualmente ter uma
ços de outros profissionais em qualquer garantia sobre as informações duran-
das etapas de produção dos vídeos. te a execução do projeto. Nenhuma
Estes profissionais também têm deve- informação pode ser divulgada por
res para com a preservação da priva- membros isolados, mesmo que sob a
cidade dos pacientes, sendo obrigação forma de “cartas a editor” ou “temas
do pesquisador ou terapeuta enfatizar livres”, salvo quando a toda a equipe
tais obrigações. Além disso, estes autorize tal situação.
vídeos não poderão ser utilizados como Na divulgação, o importante é a
demonstração ou propaganda dos ser- garantia de que todos os participantes
viços prestados por estes profissionais. tiveram as suas identidades preserva-
das na íntegra. Os editores de revistas
Pesquisa científicas, por sua vez devem garantir
a preservação dos contéudos, durante
A realização de um projeto de a tramitação do artigo. Novamente, to-
pesquisa envolve aspectos de dos os consultores e membros do Cor-
confidencialidade e privacidade em po Editorial estão comprometidos for-
todas as suas etapas. Desde o plane- mal e solidariamente.
jamento até a divulgação, o pesquisa-
dor e todas as demais pessoas que vie-
rem a se envolver têm o compromisso
de resguardar as informações, ou seja, C onsiderações finais
de impedir que as mesmas sejam utili-
zadas de forma inadequada. Inúmeros novos desafios estão sen-
Durante a fase de planejamento do propostos. O uso crescente de re-
281 a preservação das informações entre cursos de transmissão de dados sobre
pacientes, utilizando telefone, fax, redes Referências bibliográficas
de computadores, podem se constituir
em novas situações de quebra de confi-
dencialidade ou de privacidade. 1. Edwards RB. Confidenciality and the
A nova medicina preditiva traz professions. In: Edwards RB, Graber GC.
consigo questões complexas como a Bio-Ethics. San Diego: Harcourt Brace
Jovanovich, 1988: 74-7.
forma de registrar estas novas informa-
ções e seu risco de acarretar danos, 2. Brasil. Código Penal Brasileiro 1941.
muitas vezes irreparáveis, ao pacien- Violação do segredo profissional: Art.
te. Outra importante questão, ainda na 154. Revelar alguém, sem justa causa,
segredo de que tem ciência em razão de
área da genética, é a do tempo ade-
função, ministério, ofício ou profissão, e
quado para revelar informações a um cuja revelação possa produzir dano a
paciente que ainda terá vários anos de outrem: Pena – detenção, de 3 (três)
vida antes que sua doença genética meses a 1 (um) ano, ou multa.
venha a se expressar. O profissional
3. Conselho Federal de Medicina (Brasil).
deve revelar esta informação ou, ba-
Código de Ética Médica. Resolução CFM
seado na não-maleficência, deve evi- nº 1.246/88. É vedado ao médico: Art.
tar causar um dano deliberado? 102 - Revelar fato de que tenha conheci-
A telemedicina também é um de- mento em virtude do exercício de sua pro-
safio, pois o médico e o paciente esta- fissão, salvo por justa causa, dever legal
ou autorização expressa do paciente.
rão em locais diferentes, muitas vezes
sem qualquer contato pessoal anterior 4. Ross W.D. The right and the good.
ou futuro. Este novo tipo de vínculo não Oxford: Clarendon, 1930: 19-36.
alterará o compromisso do profissio-
nal para com seu paciente, porém sem- 5. França GV. Comentários ao Código de
Ética Médica. Rio de Janeiro:
pre haverá a participação de outros Guanabara-Koogan, 1994: 103.
profissionais mediando a relação en-
tre ambos. Isto por si só poderia ser 6. Hofstede G. Cultures and organizations.
caracterizado como sendo uma que- New York: McGraw-Hill, 1997: 67.
bra de privacidade.
7. Lloyd GER. Hippocratic writings.
Estes e outros novos desafios de- London: Penguin, 1983: 67.
vem ser enfrentados com sabedoria,
entendida como o conhecimento ne- 8. Percival T. Medical ethics. Manchester:
cessário para lidar com o próprio co- Russel, 1803: 101.
nhecimento. Novas situações exigem
9. Bioethics Information Retrieval Project.
novas soluções, que muitas vezes res- Bioethics thesaurus. Washington:
gatam antigas proposições, apenas Kennedy Institue of Ethics, 1995: 9
adequando-as ao novo contexto. O
fundamental é reconhecer que as pes- 10.Conselho Federal de Medicina (Brasil).
Código de Ética Médica. Resolução CFM
soas sempre possuem dignidade, inde-
nº 1.246/88. É vedado ao médico: Art.
pendentemente de sua idade ou capa- 103 - Revelar segredo profissional refe-
cidade, merecendo, desta forma, todo rente a paciente menor de idade, inclu-
o nosso respeito e cuidado para com sive a seus pais ou responsáveis legais,
as informações a elas pertinentes. desde que o menor tenha capacidade 282
de avaliar seu problema e de conduzir- 19.Conselho Federal de Fonaudiologia.
se por seus próprios meios para Código de Ética do Fonaudiologo. O art.
solucioná-lo, salvo quando a não re- 31 estabelece que este profissional “não
velação possa acarretar danos ao pa- revelará, como testemunho, fatos de que
ciente. tenha conhecimento no exercício de sua
profissão, mas intimado a depor, é obri-
11.Goldim JR. Bioética e envelhecimento. gado a comparecer perante a autorida-
Gerontologia 1997;5(2):66-71. de para declarar-lhe que está preso à
guarda do sigilo profissional”.
12.Bioethics Information Retrieval Project.
Bioethics thesaurus. Washington: 20.Estatuto da Criança e do Adolescente:
Kennedy Institue of Ethics, 1995: 38. Lei nº 8.069/90. Brasília: Ministério da
Saúde, 1991. Art. 2 - Considera-se cri-
13.Goldim JR. Pesquisa em saúde: leis, ança, para os efeitos desta Lei, a pes-
normas e diretrizes. Porto Alegre: HCPA, soa até doze anos de idade incomple-
1997: 77. tos, e adolescente aquela entre doze e
dezoito anos de idade. (...) Art. 13 - Os
14.deBlois J, Norris P, O’Rourke K. A Primer casos de suspeita ou confirmação de
for health care ethics. Washington: maus-tratos contra crianças ou adoles-
Georgetown, 1994: 30-32. centes serão obrigatoriamente comuni-
cados ao Conselho Tutelar da respecti-
15.Conselho Federal de Medicina (Brasil). va localidade, sem prejuízo de outras
Código de Ética Médica. Resolução CFM providências legais.
nº 1.246/88. Art. 107, veda ao médico
“deixar de orientar seus auxiliares e de 21.Brasil. Ministério da Saúde. Port. MS/GM
zelar para que respeitem o segredo pro- nº 1.100, de 24 de maio de 1996. Especi-
fissional a que estão obrigados por lei”. fica quais as doenças de notificação com-
pulsória. Brasília: Diário Oficial da União,
16.Goldim JR, Matte U, Francisconi CF. n. 154, p. 15131, 9 ago. 1996. Seção 1.
Bioética e ginecologia. In: Freitas F, As doenças de notificação compulsória
Menke CH, Rivoire W, Passos EP. Roti- são as seguintes: Cólera, Coqueluche, Den-
nas em ginecologia. 3ed. Porto Alegre: gue, Difteria, Doença meningocócica e
Artes Médicas, 1997: 162-7. outras meningites, Doença de Chagas (ca-
sos agudos), Febre amarela, Febre tifóide,
17.Junkerman C, Schiedermayer D. Hanseníase, Leishmaniose tegumentar e
Practical ethics for resident physicians: visceral, Oncocercose, Peste, Poliomielite,
a short reference manual. Wisconsin: Raiva humana, Rubéola e síndrome da
MCW, 1993. rubéola congênita, Sarampo, Sífilis con-
gênita, Síndrome de imunodeficiência
18.Conselho Federal de Medicina (Brasil). adquirida (AIDS), Tétano, Tuberculose,
Código de Ética Médica. Resolução CFM Varíola, Hepatites virais, Esquistossomose
nº 1.246/88. O item b, do art. 102, es- (exceto nos estados do Maranhão, Piauí,
tabelece que mesmo quando do depoi- Ceará, Rio Grande do Norte), Filariose
mento como testemunha continua ve- (exceto em Belém e Recife) e Malária
dado ao médico revelar fato que tenha (exceto na região da Amazônia Legal).
conhecimento em virtude de sua profis-
são, salvo por justa causa, dever legal 22.Brasil. Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro
ou autorização expressa do paciente. O de 1997. Estabelece os critérios para a
médico comparecerá perante a autori- remoção de órgãos, tecidos e partes do
dade e declarará seu impedimento, mes- corpo humano para fins de transplante
mo que os fatos já sejam de conheci- e tratamento. Brasília : Diário Oficial da
mento público e/ou o paciente tenha União, p. 2191-3, 5 fev. 1997. Seção 1.
283 falecido.
23.Brasil. Lei n º 9.263, de 12 de janeiro 32.Francisconi CF. AIDS e Bioética.
de 1996. Regula o artigo 7 da Consti- URL:http://www.ufrgs.br/HCPA/gppg/
tuição Federal, que trata do planejamen- aids.htm
to familiar. Brasília: Diário Oficial da
União, v.134, n.10, 15 jan. 1996. Se- 33.Goldim JR. A ética e a criança hospita-
ção 1. lizada. In: Ceccim RB, Carvalho PRA,
organizadores. Criança hospitalizada.
24.Liberal HSP. Sigilo profissional. In: Porto Alegre: UFRGS, 1990.
Assad JE, coordenador. Desafios éticos.
Brasília: CFM, 1993: 97-103. 34.Goldim JR, Matte U, Antunes CRH.
Paciente menor de 18 anos: autonomia
25.Edwards RB. Op.Cit. 1988: 81. e poder de decisão na opinião de cirur-
giões e oncologistas pediátricos. Revista
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Peters-Stefani D, Arnold RM. Elevator
talk: observational study of inappriate 35.Brasil. Ministério da Justiça. Conselho
comments in a public space. Am J Med Nacional dos Direitos da Criança e do
1995;99:190-4. Adolescente. Resolução nº 41, de 13 de
outubro de 1995. Aprova na íntegra o tex-
27.Brasil. Constituição da República Fede- to da Sociedade Brasileira de Pediatria, re-
rativa do Brasil-1988. Brasília: MEC, lativo aos direitos da criança e do adoles-
1989. cente hospitalizados. Brasília: Diário Oficial
da União, 17 out. 1991. Seção 1. O assun-
28.Junkerman C, Schiedermayer D. to é abordado nos artigos 16 e 18.
Practical ethics for resident physicians:
a short reference manual. Wisconsin: 36.Goldim JR. Psicoterapias e bioética. In:
MCW, 1993. Cordioli AV. Psicoterapias: abordagens
atuais. Porto Alegre: Artes Médicas,
29.Kant E. Fundamentos da metafísica dos 1998: 119-33.
costumes. Rio de Janeiro: Ediouro, sd:
70. O imperativo categórico de Kant
37.Conselho Nacional de Saúde (Brasil). Re-
propõe que todo indivíduo deve agir “so-
solução nº 196, de 10 de outubro de 1996.
mente, segundo uma máxima tal, que
Aprova normas regulamentadoras de pes-
possas querer ao mesmo tempo que se
quisa envolvendo seres humanos. Brasília:
torne lei universal”.
Diário Oficial da União, p. 21082-5, 16
out. 1996. Seção 1. Item VII.13.c, sobre
30.Goldim JR. Pesquisa em saúde. Op.Cit.
as atribuições dos Comitês de Ética em
1997: 71-2.
Pesquisa: “manter a guarda confidencial
de todos os dados obtidos na execução
31.Conselho Federal de Medicina (Brasil).
de sua tarefa e arquivamento do protoco-
Parecer nº 14/88, aprovado em 20 de
lo completo, que ficará à disposição das
maio de 1988. Analisa aspectos éticos
autoridades sanitárias”.
da AIDS quanto à discriminação na re-
lação médico-paciente, instituições. me-
dicina do trabalho e pesquisa. Relator:
Antonio Ozório Lemos de Barros, Guido
Carlos Levi.
284
Guido Carlos Levi
Antonio Ozório Leme de Barros
Ética Clínica:
a AIDS como Paradigma
I ntrodução
humano. No pensamento de Kant esse
objetivo se impõe como fundamento de
um princípio prático supremo,
A palavra ética deriva do grego estabelecedor da humanidade como
ethos, que significa hábito, comporta- fim em si mesma (3).
mento. Afirma Aristóteles que as virtu- Parte significativa dos comporta-
des éticas provêm do hábito: “não se mentos que uma determinada socieda-
geram nem por natureza nem contra a de pretende ver observados será orga-
natureza, mas nascem em nós, que, ap- nizada sob a forma de regras jurídicas,
tos pela natureza a recebê-las, nos tor- dotadas de força coercitiva destinada
namos perfeitos mediante o hábito” (1). a lhes garantir a observância. Há que
Admitindo que a filosofia material se ter em vista que o Direito consiste
relaciona-se com determinados obje- num conjunto de técnicas (ou ferramen-
tos e com as leis a que estes estão sub- tas) destinadas a regular sociedades
metidos, Kant define a Ética como a sob uma determinada visão de mun-
ciência das leis da liberdade, aceitan- do, voltando-as para a realização de
do também que se a compreenda como determinados objetivos; não se confun-
a teoria dos costumes (2). de, portanto, com o conceito de Justi-
Importante, para nós, é reconhe- ça, que é fundamentalmente um valor
cer que a Ética encontra sua razão de (admite-se, mesmo, que se diga que o
ser fundamentalmente nas relações Direito pode ser, ou não, um instrumen-
humanas, pois nestas deposita o seu to de realização da Justiça).
caráter teleológico; volta-se, assim, em Há que se entender que a Ética
suma, para a criação de condições que discute o comportamento desejável dos
285 visem à afirmação da dignidade do ser seres que integram uma determinada
sociedade, tendo em vista os valores que podem ser classificados, a fim de
(dentre estes a Justiça) que a orientam; se buscar parâmetros éticos que per-
volta-se, conseqüentemente, para a mitam sejam reguladas situações aná-
formulação de uma teoria dos costu- logas. Dois desses aspectos assumem
mes, da qual nos fala Kant. particularíssima importância, por se-
Do debate de temas éticos resul- rem inevitavelmente relevantes para a
tará sempre, portanto, sob o ponto de higidez da relação profissional: a in-
vista prático, um conjunto de precei- formação que é devida ao pacien-
tos de conduta social destinados a tor- te e a preservação de sua intimi-
nar as relações humanas mais harmô- dade.
nicas e agradáveis, o que implica, Quando se cuida da informação a
substancialmente, o respeito à pessoa que tem direito o paciente, trata-se de se
em sua integralidade. Não se perca de garantir a ele o poder de decidir sobre o
vista que esses preceitos estão sujeitos próprio destino, permitindo, ou não, que
a constantes modificações, decorren- o profissional da saúde realize em seu
tes da natureza dinâmica dos valores favor determinado procedimento (exer-
sociais. cendo o paciente o que se convencionou
Dessa linha de raciocínio deflui a chamar de consentimento informa-
conclusão de que a Ética pode regular do); para que possa tomar essa decisão,
campos específicos de atividades so- necessitará o paciente de informações
ciais; trata a Ética Clínica das condu- pormenorizadas sobre as hipóteses
tas desejáveis no âmbito da relação diagnósticas de seu problema, bem como
que se forma entre profissionais da acerca dos procedimentos destinados
área da saúde e seus pacientes, crian- à complementação ou à confirmação
do-se, com isso, condições para que, desses diagnósticos, os tratamentos
por um lado, os valores pessoais dos possíveis (e suas conseqüências) e o
seres humanos envolvidos sejam pre- prognóstico.
servados e respeitados e, por outro, a A preservação da privacidade do
prestação do serviço que constitui o paciente, por seu turno, está vincula-
objeto especial dessa relação possa da ao princípio de que tudo que diz
alcançar a máxima eficácia possível. respeito à sua intimidade lhe perten-
Pode-se afirmar com segurança ce, e somente ele poderá dela dispor;
que a parte mais importante dos códi- a proteção dessa intimidade se dá por
gos éticos que regulam os comporta- meio da adoção do sigilo, que torna a
mentos dos profissionais da saúde é a circulação de informações relaciona-
que trata das relações com os seus das à intimidade do paciente restrita
pacientes, já que estas constituem o apenas ao círculo integrante da rela-
eixo de suas atividades. ção profissional.
A relação entre o profissional e Evidentemente, tais institutos —
seu paciente se dá dentro de riquíssima o consentimento informado e o sigilo
e variada gama de matizes profissional — se aplicam a todas as
comportamentais que tornam cada si- hipóteses possíveis que ensejem a ocor-
tuação única e inigualável. Há, toda- rência da relação entre profissionais e
via, múltiplos aspectos dessa relação pacientes. 286
Quando se toma a síndrome da te (ou de seu responsável legal) a fim
imunodeficiência adquirida (AIDS) de que se proceda à coleta de material
como paradigma para este trabalho, destinado à realização de exame
leva-se em consideração que não ocor- sorológico para diagnóstico de infec-
reu, propriamente, o surgimento de al- ção pelo vírus da imunodeficiência
guma nova situação para o campo da humana (HIV).
Ética Clínica; problemas éticos Muitos, entretanto, se rebelaram
concernentes à AIDS já haviam sido, contra essa orientação, argumentando
de algum modo, identificados no que não ser procedimento habitual pedir-
tange a outras moléstias transmissíveis. se autorização para outros exames
A eclosão da AIDS implicou, na diagnósticos. Tal insurgência revela,
verdade, que alguns aspectos éticos da em primeiro lugar, eventual precarie-
relação profissional fossem profunda- dade de comunicação entre o profissi-
mente revistos e exaustivamente onal da saúde e o paciente, deixando
rediscutidos, seja em decorrência de este de receber informação, por resu-
aspectos epidemiológicos da infecção, mida que seja, acerca dos procedimen-
seja em razão do caráter dramático tos diagnósticos a que está sendo sub-
que reveste o aparecimento dessa metido (inclusive em circunstâncias em
pandemia, seja em conseqüência do que isso se reveste de especial impor-
prognóstico sombrio que se desenha tância, como, por exemplo, na realiza-
para o portador do agente etiológico ção de rotinas diagnósticas pré-natais);
da doença. em segundo lugar, evidencia uma cer-
Veremos, a seguir, os pontos que ta falta de percepção da gravidade com
se nos afiguram mais importantes com que repercute, em múltiplos aspectos
relação ao consentimento informado e da vida do paciente, o diagnóstico de
ao sigilo profissional. infecção pelo HIV, sobretudo quando
se tem em vista a carga de desconhe-
cimento, incompreensão e preconcei-
C onsentimento informado
to que ainda cerca essa patologia, o
que implica a necessidade da adoção
de cuidados éticos especiais na sua
Guardando-se, sempre, a pers- investigação.
pectiva de que se tem, aqui, a AIDS A propósito dessa carga franca-
como paradigma deste breve estudo de mente discriminatória que envolve essa
pontos relevantes da Ética Clínica, ver- infecção, é oportuno lembrar que cer-
se-á que o consentimento informado é tas instituições, até mesmo algumas de
um dos mais importantes aspectos que excelente qualidade técnica, exigiam,
permeiam o atendimento clínico dos até recentemente, investigação
pacientes. sorológica do HIV como condição
O Conselho Federal de Medicina para a internação de pacientes, sob a
(CFM), interpretando a codificação alegação de que isso permitiria prote-
ética em vigor para os médicos do País, ção mais adequada não apenas dos
estabeleceu (4,5) que é necessária a infectados como também dos de-
287 autorização (oral e escrita) do pacien- mais internados e dos profissionais
da saúde. A ignorância e o preconcei- vezes, o profissional da saúde se vê
to que permeiam esse tipo de exigên- tentado a suprimir explanações que
cia são evidentes, bastando verificar possam dificultar a realização de eta-
que outras patologias também poten- pas práticas da investigação.
cialmente transmissíveis por contato Esses exemplos, como se vê, de-
com sangue ou fluidos corporais monstram a importância do consenti-
infectantes — em alguns casos, até mento informado no campo da Ética
muito mais facilmente que a própria Clínica. Quando se tem em vista a
infecção pelo HIV, como, por exemplo, AIDS, as dificuldades encontradas para
a hepatite B — nunca foram alvo des- se cuidar do consentimento informa-
se tipo de triagem. Hoje em dia, feliz- do revelam, talvez, a ponta do iceberg
mente, o reconhecimento de que a ado- constituído pela magnitude desse pro-
ção de cuidados universais constitui o blema ético na prática clínica.
melhor procedimento profilático impli- Relacionado ao tema do consen-
cou a sua ampla aceitação, tornando timento informado — ainda que como
sem sentido qualquer exigência referen- corolário —, há um interessante pro-
te a triagem sorológica nas circunstân- blema que o advento da AIDS fez
cias supramencionadas, restringindo- emergir: quando profissionais da saú-
a a casos excepcionais. de e instituições começaram a
No âmbito de várias especialida- condicionar o atendimento de pacien-
des médicas, a orientação do CFM no tes ao prévio conhecimento de seu
sentido de se observar a regra do con- status sorológico, estes passaram a ter
sentimento informado produz signifi- conduta recíproca, vindo a solicitar —
cativos efeitos: no campo da medici- ou mesmo a exigir — que aqueles, so-
na do trabalho, torna inaceitável (como bretudo os cirurgiões, revelassem sua
se verá mais adiante) a realização, pelo condição sorológica.
profissional da saúde, de triagem Embora, num primeiro momento,
sorológica de empregados (6); na pe- tenha havido, por parte de algumas
diatria (mormente na área da associações de especialistas e alguns
neonatologia), leva o profissional da dirigentes de instituições, endosso a tal
saúde a solicitar a autorização dos postura dos pacientes, em pouco tem-
pais ou dos responsáveis legais para po deu-se praticamente o seu abando-
que se efetuem exames sorológicos nas no por vários motivos, destacando-se
crianças; na infectologia — campo em entre estes o fato de que a divulgação
que o exame sorológico é, do resultado positivo do exame
freqüentemente, a chave para a formu- sorológico para detecção da infecção
lação do diagnóstico —, exige, igual- pelo HIV, ao qual se houvesse subme-
mente, do profissional da saúde, que tido o profissional da saúde, poderia
solicite a autorização do paciente para atentar contra o direito individual ao
que se proceda à investigação trabalho (já que a pessoa infectada se
sorológica. É importante ressaltar que exporia a prejuízos de difícil repara-
essa orientação valerá, ainda, para as ção em sua atividade profissional);
atividades de pesquisa (inclusive ademais, concluiu-se pela inocuidade
epidemiológica), nas quais, muitas da medida, pois seria impossível 288
proceder-se continuamente à investi- personalidade, nos quais se incluem,
gação sorológica de toda a comunida- além desses já mencionados, os direi-
de de profissionais da saúde; além dis- tos à vida, à integridade física, às par-
so, haveria outras patologias também tes destacadas do corpo, ao cadáver,
transmissíveis por contaminação com à honra, à identidade pessoal e à pro-
sangue que não seriam detectadas. teção autoral.
Prevaleceu o bom-senso de se re- Um ilustre mestre do direito pe-
comendar aos profissionais realizado- nal brasileiro, Paulo José da Costa
res de práticas invasivas (particular- Júnior, assevera que na sociedade,
mente aquelas de maior risco de aci- “para solver determinados problemas,
dentes pérfuro-cortantes para os que faz-se necessário socorrer-se de pes-
as realizam) que, se pertencentes a al- soas dotadas de determinada capaci-
gum grupo com comportamento de ris- dade técnica ou funcional, ou voltadas
co, submetam-se periodicamente, em a ministérios peculiares, às quais se
caráter voluntário, a exames para confiam segredos da intimidade pes-
detecção de doenças transmissíveis soal ou doméstica. Convertem-se as-
pelo sangue. Caso o profissional da sim o médico, o advogado, o sacerdo-
saúde tenha exame sorológico cujo te nos chamados confidentes necessá-
resultado venha a ser positivo para al- rios. Via de conseqüência, ficam eles
guma patologia cuja erradicação do vinculados ao dever de guardar segre-
agente etiológico ainda não é possível, do, honrando a função, ministério, ofí-
será desejável seja ele realocado para cio ou profissão que exercem e
outro tipo de atividade na qual não correspondendo à confiança neles de-
haja risco para o paciente; nunca, po- positada” (9).
rém, deverá ser impedido de exercer a Estão os profissionais da saúde
sua profissão. presos à guarda de tudo aquilo que se
acha incluído na esfera da intimidade
do paciente e que lhes chega ao co-
S igilo profissional
nhecimento mediante a observação
clínica e os exames subsidiários; o
paciente lhes entrega certas informa-
A proteção da intimidade do pa- ções (ou lhes permite o acesso a elas)
ciente se dá por meio do reconheci- a fim de que possam desempenhar
mento daquilo que o Direito identifica suas atividades com a diligência dese-
como direito ao resguardo (defini- jada. O objeto da proteção gerada
do o resguardo pelo jurista italiano pelo instituto do segredo profissional é
Adriano de Cupis como “o modo de matéria que pertence, pois, ao pacien-
ser da pessoa que consiste na exclu- te, não ao profissional da saúde.
são do conhecimento pelos outros da- Em anterior trabalho nosso, já
quilo que se refere a ela só” (7)) e di- sustentávamos que o sigilo que se pro-
reito ao segredo (compreendido em tege “é aquele que pertence ao paci-
suas diversas formas: epistolar, do- ente. Base da confiança que deve re-
cumental, profissional, etc. (8)), inte- ger a relação profissional, é fundado
289 grantes dos chamados direitos de nele que o paciente revela ao médico
aspectos de sua privacidade essenci- vo, que geralmente variam da adver-
ais ao perfeito equacionamento do pro- tência reservada à cassação do regis-
blema. Além daqueles que o próprio tro profissional (punições que devem
paciente expõe, através de sua ação, ser proporcionais, evidentemente, à
o médico toma conhecimento de ou- gravidade da infração).
tros pormenores que pertencem exclu- Como já se disse alhures, a AIDS
sivamente ao âmbito do recato pesso- não trouxe, efetivamente, nenhuma
al. Se tais dados não fossem obtidos inovação para a abordagem sob o pon-
pelo médico, certamente ele estaria im- to de vista ético da atividade dos pro-
pedido de exercer o seu mister. Toda- fissionais da saúde; acarretou, entre-
via, não tem o médico o direito de re- tanto, importante revisão e
velar a outrem aquilo que sabe a res- aprofundamento de certos conceitos.
peito de seu paciente, sob pena de A eclosão dessa pandemia trou-
comprometer irremediavelmente a qua- xe à tona, por exemplo, a discussão
lidade da relação profissional” (4). acerca da importância do combate aos
No ordenamento jurídico brasilei- chamados comportamentos de ris-
ro, o sigilo profissional recebe prote- co para redução da incidência da in-
ção por meio de norma penal (regra fecção; se esse fator de controle não
do art.154, do Código Penal), punin- era desconhecido no que tange ao
do-se com pena privativa de liberdade enfoque preventivo de doenças, certa-
ou multa aquele que revelar, sem justa mente adquiriu uma relevância nunca
causa, segredo, de que tem ciência em antes conhecida no campo da
razão de função, ministério, ofício ou epidemiologia, já que a letalidade da
profissão, e cuja revelação possa pro- AIDS, associada à pequena eficácia
duzir dano a outrem. Assim a preser- dos tratamentos então disponíveis para
vação, pelo profissional da saúde, do as suas múltiplas manifestações, pu-
segredo que lhe é confiado pelo paci- nha em primeiro plano a prevenção da
ente será a regra, admitindo-se a que- infecção, vista como a única defesa
bra do sigilo somente quando houver possível à ação do HIV, agente causa-
justa causa (da qual trataremos mais dor dessa moléstia.
adiante). A perplexidade em que mergulha-
Além das conseqüências no cam- ram os profissionais da saúde com o
po penal, a violação da intimidade advento da AIDS, atingidos pela
pode dar ensejo à busca, pelo prejudi- desconfortável sensação de impotên-
cado, da reparação judicial dos danos cia em face desse novo desafio,
materiais e morais eventualmente cau- ensejou discussões acerca da suposta
sados pelo profissional da saúde que necessidade de afrouxamento das re-
revele, sem justa causa, matéria pro- gras de proteção do segredo profissio-
tegida pelo instituto do segredo. nal, sob a premissa de que não mais
Nesse diapasão seguem os códi- fazia sentido a guarda de sigilo diante
gos de ética dos profissionais da área da ameaça que a pandemia represen-
da saúde, estabelecendo, para os in- tava para a humanidade.
fratores das regras de proteção do si- Reações de verdadeiro pânico le-
gilo, sanções de caráter administrati- varam, por exemplo, administradores 290
a exigir que funcionários de suas em- se relacionam à infecção pelo HIV e,
presas fossem submetidos, sem que em segundo lugar, de sua progressiva
soubessem, a exames para detecção de marginalização, conseqüência de uma
anticorpos anti-HIV, cobrando dos pro- postura obscurantista assumida por
fissionais integrantes de seus departa- grupos sociais que não aprenderam a
mentos médicos que os resultados lhes lidar com essa nova realidade.
fossem diretamente comunicados; por Vale a pena analisar alguns tópi-
outro lado, houve quem defendesse a cos que se relacionam ao conceito de
identificação pública dos portadores do justa causa para o rompimento do se-
HIV, com o seu subseqüente isolamen- gredo profissional.
to compulsório, em campos de concen- Sob o ponto de vista jurídico, a
tração ou ilhas em que viessem a ser justa causa consiste num fator (ou con-
privados de qualquer contato com pes- junto de fatores) que retira o caráter
soas não infectadas... ilícito da quebra do sigilo pelo profis-
O tratamento sereno dessas ques- sional que deveria, em tese, protegê-
tões permitiu, entretanto, o afastamen- lo. Em outras palavras, havendo justa
to de idéias delirantes e propostas causa para rompimento do sigilo pro-
açodadas do bojo das discussões de fissional o profissional que o fizer não
natureza ética. A infecção pelo HIV cometerá crime, tampouco estará su-
não reduz em nada o respeito devido jeito (sempre em tese) a indenizar da-
à pessoa por ela atingida; sua digni- nos materiais ou morais decorrentes
dade permanece intacta. Nem pode- dessa ruptura.
ria ser diferente: infectados são, essen- Quanto ao aspecto ético da ques-
cialmente, vítimas e como tais devem tão, não é diverso o tratamento da
ser tratados e protegidos pelos demais matéria: não comete infração o pro-
membros da comunidade. fissional que, fundado em justa causa,
Não há motivo de ordem técnica, quebra o segredo de que é portador.
científica, jurídica ou moral que auto- Pode-se ir além: na ocorrência de jus-
rize o tratamento da intimidade pes- ta causa, o dever do profissional será
soal de modo diferente quando se está o rompimento do segredo (visto esse
diante de paciente infectado pelo HIV. rompimento não como um fim em si
Outras doenças infecciosas conheci- mesmo, mas como meio para prote-
das há mais tempo pela medicina têm ção de um bem de maior relevância).
características epidemiológicas que Não será possível arrolar todas as
guardam analogia com a AIDS; nem hipóteses em que a justa causa possa
por isso houve ruptura do instituto do se configurar. Isso não nos impede,
segredo ante tais casos. todavia, de examinar algumas situações
O sigilo profissional é, portanto, de ordem prática que se manifestam,
regra em relação a pacientes infectados com alguma freqüência, na atividade clí-
pelo HIV, não exceção; não seria justo nica dos profissionais da saúde.
com tais pacientes impor-lhes mais um A primeira delas diz respeito à
sofrimento, decorrente, em primeiro necessidade de notificação compulsó-
lugar, dos preconceitos que ria dos casos de AIDS aos órgãos res-
291 freqüentemente os estigmatizam e que ponsáveis pelo controle epidemiológico
da doença. Evidentemente, o propósi- prego para outras finalidades que não
to dessa medida é, em síntese, o reco- aquelas que dão fundamento ao cará-
lhimento de dados sobre a evolução da ter compulsório da notificação.
incidência e da prevalência da infec- Outra situação com a qual os pro-
ção, o que permitirá um planejamento fissionais da saúde podem se deparar
mais adequado das ações de saúde é aquela em que se configura a resis-
destinadas, por um lado, a reduzir o tência do paciente a revelar, a seus
impacto da pandemia sobre as popu- parceiros sexuais, sua condição de
lações (orientando as medidas de pre- infectado. Essa situação assume con-
venção) e, por outro, a racionalizar os tornos verdadeiramente dramáticos
recursos para o tratamento adequado quando se tem em vista a insuficiente
dos doentes. informação levada à população acer-
Sobrepõe-se, nessas circunstân- ca dos mecanismos de transmissão do
cias, o interesse de toda a coletividade HIV e dos meios para a prevenção da
à proteção da intimidade do paciente; infecção. Muitas vezes, a uma atitude
se houver conflito entre esses dois bens de revolta dos pacientes (e até mesmo
jurídicos — bem-estar da sociedade e a um desejo indiscriminado de vingan-
privacidade do paciente — e um deles ça) — observável com freqüência
tiver que ser sacrificado em favor do quando eles tomam conhecimento da
outro, será preservado o de maior re- sua condição de infectados — se so-
levância, que beneficia um número brepõe um sentimento de resignação
indeterminado de pessoas e tende a e de solidariedade para com seus par-
assegurar qualidade de vida para as ceiros sexuais que os leva a informá-
gerações atuais e futuras. Em tais ca- los de seu estado, bem como a adotar
sos, ao comunicar à autoridade sani- cuidados de prevenção da transmissão
tária a ocorrência de um caso de noti- do vírus.
ficação compulsória, estará o profissio- Infelizmente, nem sempre isso
nal, em conformidade com a ordem ocorre; mesmo exaustivamente orien-
jurídica, agindo em estrito cumpri- tados pelos profissionais da saúde
mento do dever legal; a lei penal que os atendem, alguns pacientes se
brasileira, aliás, pune com pena pri- recusam terminantemente a informar
vativa de liberdade, além de multa, o sua condição de infectados a seus par-
médico que deixar de denunciar à au- ceiros sexuais e a adotar métodos pre-
toridade pública doença cuja notifica- ventivos. Em tais situações, esgotados
ção é compulsória (regra do art.269 do os meios para que esses pacientes ajam
Código Penal). corretamente, será lícito que o profis-
Registre-se que as autoridades sional da saúde tome a iniciativa de
sanitárias, por sua vez, estarão presas fornecer tais informações aos parcei-
ao dever de resguardar a intimidade dos ros sexuais daqueles.
pacientes cujos dados os profissionais Nesse caso, o conflito se instala
da saúde lhes entregaram; o uso de tais entre a proteção da saúde — até mes-
informações deve se restringir exclusi- mo da vida — de uma pessoa e a pro-
vamente ao âmbito das ações de saú- teção da intimidade de outra; inega-
de pública, sendo vedado o seu em- velmente, a proteção da vida e da saúde 292
de uma pessoa deverá preponderar pido e o diagnóstico venha a ser reve-
sobre o outro bem em jogo. Admite-se lado pelo profissional da saúde, a não
que, nessas circunstâncias, esteja o ser que o paciente consinta no forne-
profissional da saúde agindo, em tese, cimento da informação pedida (afinal,
em legítima defesa de terceiro, hipó- é ele o verdadeiro titular dessa in-
tese que, do mesmo modo que o estri- formação e o único que pode dela
to cumprimento do dever legal, exclui dispor).
a configuração do crime de violação Cabe consignar que a morte do
do segredo profissional, já que presen- paciente não autoriza a divulgação,
te a justa causa. pelo profissional da saúde, do diagnós-
Assinale-se que idênticas soluções tico de seu paciente, já que a proteção
são preconizadas pela Ética Clínica da imagem, da honra e da intimidade
quando se está diante de pacientes do paciente subsiste mesmo depois do
infectados pelo HIV que se recusam a seu desaparecimento.
informar sua condição às pessoas que Essa dificuldade de proteção da
com eles, eventualmente, compartilhem intimidade da pessoa se torna sensi-
seringas e agulhas no uso de drogas velmente aumentada quando o paci-
injetáveis. Evidentemente, não se des- ente é figura de grande notoriedade,
conhece a enorme dificuldade para que ocasião em que ocorre forte pressão
o contato do profissional da saúde com de jornalistas em busca de informações
esses co-usuários possa ser estabe- sobre o seu estado de saúde, visando,
lecido; tampouco se ignora que há fa- freqüentemente, à obtenção da notícia
tores culturais próprios do meio de usu- de grande impacto sobre o público;
ários de drogas injetáveis que dificul- muitas vezes, a luta pela informação é
tam bastante a aceitação de quaisquer feroz e nem sempre respeita os limites
informações relativas à infecção; en- éticos e legais que devem ser observa-
tretanto, o profissional da saúde deve dos; cabe ao profissional da saúde,
orientar-se pela permanente expecta- nesses casos, zelar para que a privaci-
tiva de que a informação, nesses ca- dade do paciente seja mantida intacta,
sos, possa salvar a vida e a saúde de levando à opinião pública apenas os
pessoas até então desavisadas. esclarecimentos que esteja autorizado
Muitas vezes, parentes e amigos a prestar.
dos pacientes, freqüentemente movidos Encerrando esta breve ordem de
por natural aflição diante do estado considerações, registre-se a necessida-
clínico destes, procuram o profissional de de se preservar, no âmbito das em-
da saúde em busca de informações presas, as informações obtidas dos fun-
relativas ao diagnóstico; ainda que a cionários pelos profissionais dos depar-
proximidade familiar e afetiva dessas tamentos de saúde. Não há justificati-
pessoas possa justificar tal iniciativa, va para a realização indiscriminada de
há que se ter em mente que a proteção testes para a detecção de portadores
da intimidade se estende, também, às do HIV nas empresas; tampouco se
relações de parentesco e de estreita admite que informações que violem a
amizade; não se admite, nessas cir- intimidade dos empregados sejam
293 cunstâncias, que o segredo seja rom- fornecidas por profissionais da saúde
a seus patrões — a estes é devida, ape-
nas, a informação acerca da aptidão,
ou não, temporária ou permanente,
para o desempenho de determinada
atividade, de funcionário submetido a
exame pelo departamento de saúde.
Também na empresa, a relação entre
o profissional da saúde e o paciente
está revestida pelo manto do segredo
que tutela a intimidade da pessoa.
Referências
294
Parte V - Posfácio
Sérgio Ibiapina Ferreira Costa
Volnei Garrafa
Gabriel Oselka
U m tema emergente
engenharia genética, benefícios
co que afetem o genoma (...) é obriga-
tório o consentimento prévio, livre e es-
clarecido da pessoa envolvida”, além
e distorções de que “será respeitado o direito de
cada indivíduo de decidir se será ou
Diferentemente de Baudrillard (4), não informado dos resultados de seus
que entende que neste século aconte- exames genéticos e das conseqüênci-
ceu uma verdadeira banalização do as resultantes”. O artigo 6º cita, ain-
corpo humano, interpretamos os últi- da, que: “Ninguém será sujeito à dis-
297 mos cem anos como aqueles que trou- criminação baseada em características
genéticas que vise infringir ou exerça série de questionamentos éticos, des-
o efeito de infringir os direitos huma- de a indicação de um aborto até uma
nos, as liberdades fundamentais ou a futura limitação de um cidadão na sua
dignidade humana”. Apesar do tema atividade laboral. Algumas doenças
ser tão novo e dos testes genéticos te- relacionadas com certas mutações ge-
rem sido introduzidos com segurança néticas, como a betatalassemia (uma
apenas recentemente, os dois artigos forma de anemia hereditária que incide
acima citados já vêm sendo freqüen- em certas populações mediterrâneas),
temente desrespeitados em variadas a anemia falciforme (que por longo tem-
situações, em diferentes países. po causou problemas em Cuba) ou a
Não por acaso, a IAB estabeleceu doença de Tay-Sachs (que causa gra-
“Informação genética: aquisição, aces- ves distúrbios neurológicos entre judeus
so e controle” como tema oficial de sua da América do Norte e Israel) são
reunião de diretoria, realizada na exemplos positivos de como testes
University of Central Lancashire, em confiáveis, simples e baratos podem
Preston, na Inglaterra, entre 5 e 7 de trazer resultados positivos. O que não
dezembro de 1997. Nessa reunião, as se pode é generalizar, seja no que se
duas principais conferências tiveram refere a testes de aplicação individual
títulos interrogativos e provocatórios: ou coletiva, seja no período pré-natal
“Nós somos capazes de aprender da ou na idade adulta.
eugenia?” e “ Os testes pré-natais são O perigo que ronda todo este con-
discriminatórios com relação aos defi- texto é a transformação de um “risco
cientes?” (6). Enfim, toda esta já lon- genético” na própria doença, alteran-
ga introdução é para reforçar nossa do perigosamente o conceito de “nor-
convicção de que os testes e os diag- mal” e de “patológico”, tão bem já es-
nósticos preditivos em genética guar- clarecido por Ganguilhem, com suas
dam relação direta com as liberdades conseqüências indesejáveis de toda
individuais e coletivas, com os direi- ordem, especialmente sociais. A mai-
tos humanos, com a cidadania e com oria das chamadas “doenças genéti-
a própria saúde pública. cas” são conhecidas por terem parte
Na verdade, o domínio de técni- de suas causas relacionadas com o
cas relacionadas com o melhor conhe- meio ambiente, desde cânceres e dia-
cimento do DNA passou a possibilitar betes até afecções cardíacas e anemi-
o diagnóstico pré-natal de problemas as. De modo geral, o termo “doença
genéticos e a identificação dos porta- genética” vem se constituindo nos
dores de genes de risco, ou seja, genes meios médicos internacionais, nos
sadios mas que podem dar origem a últimos anos, numa escolha que su-
crianças com alguma doença genéti- perestima o fator genético e subestima
ca. Se, por um lado, esses exames ou as implicações dependentes do meio
testes preditivos permitem o ambiente. Afora algumas poucas do-
aconselhamento a casais que devido enças em que o gene, isoladamente,
a antecedentes familiares ou indivi- desenvolve a patologia de modo
duais correm o risco de gerar uma cri- inexorável (como no caso da doença
ança deficiente, por outro criam uma ou coréia de Huntington), são raras as 298
situações onde não ocorra uma seguro-saúde como possível portado-
interação entre os genes e o meio am- ra do problema. O diagnóstico do seu
biente. Trata-se, portanto, além de pai foi estampado na capa do seu pron-
uma análise adequada do que seja ou tuário, no banco de dados nacional das
não “normalidade”, também de uma companhias seguradoras, sediado em
decisão com relação a “valores”. O Boston, alijando-a da possibilidade de
aprofundamento e melhor interpreta- acesso a qualquer tipo de seguro-saú-
ção de questões como esta exigem de. Este incidente levou a sra. Morelli
cada vez mais a atenção da bioética. a contactar entidades de Direitos Hu-
Um livro publicado nos EUA so- manos, denunciando com vigor a uti-
bre pontos de vista opostos em bioética lização discriminatória dos testes ge-
trata exatamente das dificuldades aci- néticos pelos empregadores e compa-
ma apontadas. Em um dos capítulos, nhias seguradoras.
Catherine Hayes, diretora de uma en- Em 1996, o pesquisador Christian
tidade norte-americana que congrega Munthe publicou através do Centro de
famílias que possuem membros porta- Pesquisas Éticas de Gotemburgo, um
dores da doença de Huntington, defen- interessante estudo intitulado “Raízes
de ferrenhamente os benefícios indivi- morais dos testes pré-natais”, que tra-
duais e familiares dos testes preditivos ta do desenvolvimento histórico do
(7). Sua base argumentativa inspira- tema na Suécia (9). O autor baseia sua
se no alívio que os exames geram na- análise em três perspectivas: a primei-
quelas pessoas que recebem resultados ra, que ele chama de “visão oficial”, a
negativos e na possibilidade de aque- perspectiva típica abraçada pelos mé-
les que tenham um resultado positivo dicos especialistas, na qual o diagnós-
virem a organizar os anos que lhes res- tico pré-natal é a base para o
tam, e mesmo assim com a esperança aconselhamento genético; esta pers-
da descoberta providencial de uma te- pectiva não dá espaço à coerção (no
rapêutica salvadora. A doença de sentido da definição de um possível
Huntington se desenvolve insidiosa- aborto, por exemplo), pressões ou ma-
mente entre os 30 e os 50 anos de ida- nipulação, caracterizando-se pelo res-
de, levando o paciente à morte após peito à autonomia da paciente. A se-
10-15 anos do diagnóstico, com dege- gunda perspectiva é chamada de
neração crescente dos tecidos cere- “meta preventiva” e tem como propó-
brais – que leva à demência. sito prevenir o nascimento de crianças
Uma posição oposta a esta é de- com defeitos genéticos sendo, portan-
fendida no capítulo seguinte da mes- to, muito controvertida dos pontos de
ma obra pela procuradora Theresa vista filosófico e moral. A terceira pers-
Morelli, cujo pai teve um diagnóstico pectiva, denominada “motivos econô-
da doença de Huntington (8). Embora micos”, analisa os testes pré-natais a
ela não apresentasse nenhum sintoma partir da ótica da redução de custos
da doença e sequer tivesse realizado que significa para a sociedade evitar
exames preditivos, seu nome foi auto- crianças com desordens genéticas. O
maticamente incluído na “lista negra” que mais chamou a atenção do au-
299 das companhias norte-americanas de tor, que desenvolveu sua pesquisa a
partir da análise de 64 artigos publi- resultantes são da maior seriedade so-
cados por estudiosos suecos do assun- cial, pois empregadores e empresas se-
to entre os anos 1969/77, foi que “os guradoras, como já foi dito, e também
aspectos éticos não constituíram pre- escolas e mesmo cortes de justiça, bus-
ocupação freqüente nas apresentações cam respostas de alta eficácia, com
dos especialistas”, demonstrando o custos mais baixos e menores riscos.
pouco interesse por este viés da ques- Para tanto, utilizam cada vez mais a
tão, mesmo num país freqüentemente técnica dos testes.
citado como exemplo em questões de Desta forma, os testes preditivos
direitos humanos. passam a ir além dos procedimentos
Lucien Sfez é um cientista social médicos, criando verdadeiras catego-
francês que teve sua principal obra rias sociais, empurrando o indivíduo
traduzida no Brasil em 1995: o livro para quadros estatísticos. Os proble-
chamado “A saúde perfeita – crítica de mas sociais são reduzidos às suas di-
uma nova utopia”(10). Para ele, as mensões biológicas. As doenças men-
mudanças genéticas possíveis – vege- tais, a homossexualidade, o gênio vio-
tais, animais e humanas – alteraram o lento ou o próprio sucesso no trabalho
transcurso da história. A história, que são atribuídos à genética. As dificul-
tinha uma narrativa longa, foi substi- dades escolares – antes explicadas pe-
tuída por pequenas narrativas curtas, las desigualdades culturais ou
fragmentadas. Estamos, portanto, lon- nutricionais – são hoje imputadas a
ge do “fim da história” desenhado por desordens psíquicas de origem genéti-
Francis Fukuyama. A engenharia ge- ca, excluindo quase que completamente
nética nos devolve uma nova história. os fatores sociais com elas relaciona-
Reinventa e renova a história. O peri- dos. Após testes pré-natais, companhi-
go, no entanto, reside no fato de a téc- as seguradoras ameaçam não cobrir
nica vir a dominar o mundo, a socie- as despesas médicas de uma criança
dade, a natureza, sem mediação cien- cuja mãe teria sido alertada que um
tífica e sem conflitos sociais. dia esta criança seria vítima de um
Nesse sentido, um exemplo problema genético. Entre números, es-
paradigmático é exatamente aquele do tatísticas e exames, os empregadores
uso cada dia maior dos testes genéti- já valem-se de testes para previsões
cos na vida quotidiana das pessoas. orçamentárias a longo prazo. O indi-
Questões como o aborto passam a ser víduo-cidadão passa a ser descon-
colocadas não somente nos casos de siderado e criam-se “categorias de in-
mal-formações, mas também de ano- divíduos”, os pacientes/coletivos da
malias cromossômicas. Para os adul- nova medicina (10). Mesmo na ausên-
tos surge a questão da notificação do cia de sintomas, o risco genético é
defeito (ou “doença”) genética. A no- endeusado como a própria doença.
tificação deve ser feita somente ao in- Assim, já existem registros de recusas
divíduo portador de genes “ruins”, ou para a concessão de empregos em tal
também à sua mulher, aos seus filhos, ou qual casos, para a obtenção de car-
irmãos e demais parentes? Principal- teira de motorista ou para inscrição no
mente nos EUA, as conseqüências seguro-saúde, como dito anteriormente. 300
C onsiderações finais
e outro no qual estas questões devam
ser mais rigidamente sancionadas e,
portanto, codificadas. O primeiro as-
Apesar de toda a forte argumen- pecto se refere ao pluralismo, à tole-
tação acima exposta com relação a rância e à solidariedade, prevalecen-
alguns abusos relacionados à utiliza- do a idéia de legitimidade. O segundo
ção dos testes preditivos em genética diz respeito à responsabilidade e à jus-
humana, não é nossa intenção assu- tiça, onde prevalece a idéia de legali-
mir posições fechadas mas, sim, alertar dade (12).
para os perigos do endeusamento da Ao encerrarmos este livro deve-
técnica e da radicalização irracional mos dizer que o controle social sobre
do seu uso. qualquer atividade de interesse públi-
Assim, faz-se necessário que se- co e coletivo a ser desenvolvida é sem-
jam estabelecidas normas e compor- pre uma meta democrática. Nem sem-
tamentos moralmente aceitáveis e pra- pre ele é fácil de ser exercido. No caso
ticamente úteis, os quais requerem tan- da saúde pública, da eqüidade, da
to o confronto quanto a convergência engenharia genética e do projeto
das várias tendências e exigências. Ou genoma humano, entre outros te-
seja, tornam necessário o exercício da mas da problemática bioética, a
tolerância e da pluralidade. A tolerân- pluriparticipação é indispensável
cia deve ser total, se entendida como para a garantia do processo. O con-
respeito aos pensamentos e opiniões trole social – através do pluralismo
alheias, mas o mesmo não pode se afir- participativo – deverá prevenir o difí-
mar acerca dos atos que muitas vezes cil problema de um progresso científi-
as acompanham. A intolerância e a co e tecnológico que submeta o cida-
unilateralidade, porém, são fenômenos dão a novas formas de escravidão, à
freqüentes tanto nos comportamentos exclusão social, aos altos custos de téc-
quotidianos quanto nas atitudes em nicas fantásticas porém inacessíveis à
relação aos problemas de limites que maioria populacional.
surgiram mais recentemente e que cres-
cem todos os dias (11).
Um ponto que ainda merece des-
taque diz respeito à possibilidade de Referências bibliográficas
surgirem propostas de proibições com
relação às pesquisas e práticas cientí-
ficas. Nesse sentido, é indispensável
1. Garrafa V. O diagnóstico preditivo de
que as regras e leis que dispõem sobre doenças genéticas e a ética. Conferên-
o desenvolvimento científico e cia; Encontro Internacional Sobre Ética
tecnológico sejam cuidadosamente ela- e Genética. Rio de Janeiro, Instituto
boradas. Conforme já foi dito em ca- Fernandes Filgueira/Fundação Oswaldo
Cruz; novembro 1997, 8 p. (mimeo).
pítulo anterior, existe um núcleo de
questões que precisam ser recondu- 2. Campbell A. The president’s column.
zidas dentro de regras de caráter mo- IAB News, 6:1-2, 1997.
301 ral, e não sancionadas juridicamente;
3. Garrafa V, Oselka G, Diniz D. Saúde 9. Munthe C. The moral roots of prenatal
pública, bioética e eqüidade. Bioética diagnosis. Ethical aspects of the early
(CFM), 5(1):27-33, 1997. introduction and presentation of
prenatal diagnosis in Sweden.
4. Baudrillard J. A transparência do mal: Gothenburg, Centre for Research Ethics,
ensaio sobre os fenômenos extremos. 1996, 88 pp.
Campinas, Papirus, 2a. ed., 1995, 185 p.
10.Sfez L. A saúde perfeita - crítica de uma
5. UNESCO. Declaração Universal do nova utopia. São Paulo, Ed. Loyola,
Genoma Humano e dos Direitos Huma- 1996, 402 p.
nos. Folha de São paulo, 15/11/1997,
p. 18. 11.Berlinguer G , Garrafa V. O mercado
humano - estudo bioético da compra e
6. Conference Announcement. IAB News, venda de partes do corpo. Brasília, Edi-
6:10, 1997. tora UnB, 1996, 212 p.
302
Índice Remissivo
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