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Paisagem e interdisciplinaridade

Guilherme Maciel Araújo1

O presente trabalho tem como objetivo discutir a necessidade de uma abordagem interdisciplinar
da paisagem no campo da conservação de bens culturais, buscando apontar suas limitações e
possibilidades, com vistas à sua melhor operacionalização. Contudo, acreditamos ser necessário
compreender o conceito de paisagem, buscando duas diferentes abordagens nas áreas de
conhecimento científico. Para tento, partiremos de uma revisão bibliográfica onde pretende-se
apontar respostas para três questões primordiais: O que é a paisagem? Como conhecê-la? E como
preservá-la? Parece-nos ser necessário, primeiramente, entender o aparecimento do interesse pela
paisagem na sociedade ocidental, compreendendo o porque e como os indivíduos ou grupos
voltaram seus olhares para o mundo exterior; em segundo lugar, parece-nos igualmente importante
compreender como a paisagem vai se tornando objeto de conhecimento, destacando o papel e as
contribuições das ciências, em duas diversas áreas de conhecimento; em terceiro lugar,
buscaremos compreender como o conceito de paisagem aparece no campo da conservação dos
bens culturais, apresentando-se essencialmente um conceito multifacetado.

Nos últimos tempos, podemos notar uma crescente preocupação da sociedade com a temática da
paisagem. Vivemos cercados por paisagens. Conforme Maderuelo (2005), vivemos num mundo em
que nos achamos rodeados de objetos e numa enorme quantidade de cenários diferentes.
Estamos constantemente submergidos em meios cuja morfologia diferenciamos e insistimos em
classifica-las como paisagens. Segundo o autor, esta imersão na paisagem nos assegura que
vivemos numa “cultura paisagística”. Nesse contexto, segundo o autor, torna-se premente
esclarecer o que estamos tratando como paisagem, pois, segundo o autor, o conceito sobre um
grande desgaste e ampliação semântica. Dentro dessas cultura, destaca-se a conservação de
bens culturais, que vem se constituindo como um campo interdisciplinar de pesquisa, provocando,
devido à natureza complexa dos bens culturais, mudanças em modelos tradicionais de gestão e
clamando pela criação de novos instrumentos de proteção e preservação, além de novos conceitos
e novos métodos de abordagem. Nessa trajetória, nos parece ser interessante analisar o
aparecimento do conceito de paisagem, sua consolidação no campo do patrimônio cultural.

Em seu livro “A invenção da Paisagem”, Anne Cauquelin aponta como a prática do olhar a
paisagem vai se constituindo em nossa sociedade ocidental. Para a autora, a paisagem “se

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Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Ambiente Construído e Patrimônio Sustentável da
Universiade Federal de Minas Gerais.

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instalaria definitivamente em nossos espíritos com a longa elaboração das leis da perspectiva”
(Cauquelin, 2007, p. 35). Seriam as leis da perspectiva aplicadas à pintura que contribuiriam para a
legitimação da paisagem. Nessa mesma perspectiva, podemos notar o pensamento de Georg
Simmel (2009), a partir de seu ensaio de 1913 intitulado “Filosofia da Paisagem”, onde este autor
buscar compreender o “processo spiritual” que compõe a paisagem.

Quando se fala em paisagem, o que nos vem à mente é tudo aquilo que nossa visão alcança.
Contudo, a paisagem também abarca os odores, sons, dentre outros aspectos invisíveis. No campo
disciplinar da Geografia, segundo Milton Santos, “a dimensão da paisagem é a dimensão da
percepção, o que chega aos sentidos” (SANTOS, 2007, p. 68). Nessa perspectiva, paisagem é
aquilo que percebemos. Contudo, a paisagem também pode ser compreendida como “um conjunto
de formas heterogêneas, de idades diferentes, pedaços de tempos históricos representativos das
diversas maneiras de produzir as coisas, de construir o espaço”, que está em constante mudança
dada pelas condições políticas, econômicas e culturais (SANTOS, 2007, p. 74), ou seja, a
paisagem representa os movimentos da sociedade. Aqui, a paisagem é entendida como um reflexo
da sociedade, deixando no espaço suas marcas. Tal visão objetiva da paisagem está presente no
trabalho do geógrafo Carl Sauer, quanto este aborda o conceito de paisagem cultural. Na definição
deste autor, “a paisagem cultural é criada a partir de uma paisagem natural e um grupo cultural.
Cultura é o agente, o ambiente natural é o meio, a paisagem cultural é o resultado” (SAUER, 1983,
p.343). Desta maneira, percebemos que a paisagem pode ser lida como expressão da ação
humana sobre o espaço, sendo passível de uma leitura objetiva pelas ciências. Nessa mesma
perspectiva, Paul Vidal de La Blache (1845-1918), no final do século XIX buscou trabalhar com a
diferenciação das paisagens. Para o autor, a análise dos gêneros de vida mostraria a forma como
as paisagens refletiriam a organização social do trabalho e as diferentes formas de relação entre o
homem e seu meio (CLAVAL, 1999, p. 33). A cultura, para Vidal de La Brache, é “aquilo que se
interpõe entre o homem e o meio e humaniza as paisagens (CLAVAL, 1999, p. 35).

Se por um lado, a paisagem é percepção, por outro, devemos lembrar, segundo algumas
abordagens disciplinares, que a própria percepção pode ser entendida como uma construção
social. Portanto, a paisagem poderia ser vista também como uma construção social. Nessa
perspectiva, é significativa a perspectiva da Geografia Cultural, no qual a paisagem também pode
ser entendida como um “texto” ou como “construção social”, dada sua condição de espaço que é
ao mesmo tempo produzido, contemplado, interpretado e muitas vezes consumido,
necessariamente precisando da interação com um ou mais indivíduos ou grupos para sua
existência. Enquanto “texto”, o próprio mundo pode ser visto como um conjunto de paisagens que
modificam seu significado, de acordo com quem está diante delas ou por causa das intenções de
quem as produziu. Como aponta James Duncan (1990), as paisagens nunca têm um único

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significado, sempre há a possibilidade de diferentes leituras. Desta forma, nem a produção, nem a
leitura de paisagens são isentas de interesse, todas são políticas no sentido mais amplo do termo,
uma vez que estão inextricavelmente ligadas aos interesses materiais das várias classes e
posições de poder dentro da sociedade. Nesse mesmo sentido, Cosgrove (1998, p.13) afirma que
“a paisagem não é meramente o mundo que vemos, é uma construção”, ou, dito de outra maneira,
“a paisagem é uma forma de ver o mundo”. Assim, nesse entendimento, a paisagem seria um
conceito unificador derivado da interação entre um sujeito e um objeto material. Conforme aponta
Terkeni,

implicit in this definition and landscape philosophy are questions of signification,


decodification and operationalization of the ways and arrangements whereby
landscapes are both materially and perceptually constructed; ways through which
the experience of richly textured landscapes finds its way into other cultural forms
and processes, as well as ways in which discursive and ideological struggles over
place are played out in concrete physical settings and many others, much
complicating and enriching the analysis of landscape as a concept and as a
construct. (TERKENLI, 2001, p.199)

Ainda na Geografia, para Ausgutin Berque, a paisagem resulta da interação complexa entre o
homem, o meio e a história. Por um lado, a paisagem, como resultado desse processo, pode ser
lida como a “impressão” da sociedade no espaço e no tempo. Por outro lado, a paisagem é uma
“matriz” porque participa dos esquemas de percepção, concepção e ação, canalizando a relação
da sociedade com o espaço e a natureza. Segundo o autor,

en tant que manifestation concrète, le paysage s'offre naturellement à


l'objectivation analytique de typepositiviste; mais il existe d'abord dans sa relation
à un sujet, un sujet collectif: la société qui l'a produit, le reproduit et le transforme
en fonction d'une certaine logique. Chercher à définir cette logique pour essayer
de comprendre le sens du paysage, c'est le point de vue culturel qu'on a indiqué
plus haut.

Le paysage est une empreinte, car il exprime une civilisation; mais c'est aussi une
matrice, car il participe des schèmes de perception, de conception et d'action —
c'est-à-dire de la culture — qui canalisent en un certain sens la relation d'une
société à l'espace et à la nature, donc le paysage de son oecoumène. Et ainsi de
suite, par d'infinies boucles de co-détermination. (Berque, 1984, p.33)

Dentro da cultura paisagística da sociedade ocidental moderna, destaca-se o tratamento que se


tem dado à paisagem enquanto um patrimônio da coletividade. Assim, na conservação de bens
culturais, quando buscamos datar o aparecimento do conceito de paisagem cultural, vamos
perceber que ela nos leva, de alguma forma, ao ano de 1972, quando, na 17ª sessão da
Conferência Geral da UNESCO, especialistas se reuniriam em Paris e adotariam a Convenção
sobre a Proteção do Patrimônio Cultural e Natural. Nas discussões ocorridas com o
desenvolvimento do conceito de paisagem cultural, percebe-se que a tentativa de estabelecimento
de uma nova abordagem buscaria superar a separação entre os bens culturais e os naturais. Em

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1992, na 16a Sessão do Comitê, seriam adotadas as categorias de “paisagem cultural” e revisados
os critérios de inclusão na Lista, visando assegurar o reconhecimento efetivo das “obras
conjugadas do homem e da natureza” de excepcional valor universal, conforme vimos no artigo 1 o
da Convenção. A distinção entre as três categorias busca englobar três diferentes concepções da
paisagem, onde a “paisagem evoluída organicamente” traria uma forte perspectiva evolucionista,
com ênfase nas transformações na paisagem pelo homem ao longo do tempo, numa relação
próxima à noção saueriana. Por outro lado, a “paisagem associativa” buscaria pensar as
associações culturais que são feitas a estas paisagens, e a “paisagem claramente definida”
apresentaria uma abordagem ligada à tradição do paisagismo (RIBEIRO, 2007).

Além do conceito de paisagem cultural, no campo do patrimônio aparece nas últimas décadas a
noção de paisagem urbana histórica. Embora tenha sido discutida e foi submetido a várias
revisões, essa noção foi proposta como um método de abordagem para reinterpretar os valores do
patrimônio cultural nas áreas urbanas (BANDARIN, 2012). A noção foi elaborada no Memorando
de Viena em 2005, e formou a base para a Declaração sobre a Conservação da Paisagem Urbana
Histórica, aprovada em 2011 pela UNESCO, em seu encontro para o desenvolvimento sustentável
na governança das cidades históricas. O Memorando de Viena apontou algumas das limitações da
abordagem tradicional do patrimônio cultural nas cidades, buscando uma definição de áreas
urbanas históricas não como uma "soma" de monumentos e tecido urbano, mas como um sistema
abrangente, marcado por suas relações históricas, geomorfológicas e sociais e seu ambiente, além
de poder ser entendida como uma sobreposição complexa de significados e expressões. O
Memorando definiu a noção de paisagem urbana histórica, como os conjuntos de qualquer tipo de
edifícios, estruturas e espaços abertos, em seu contexto natural e ecológico, incluindo sítios
arqueológicos e paleontológicos, constituindo assentamentos humanos em um ambiente urbano
durante um período de tempo relevante, cuja coesão e valor são reconhecidos a partir do ponto de
vista arqueológico, arquitetônico, pré-histórico, histórico, científico, estético, sociocultural ou
ecológico.

Desta forma, pode-se dizer que o conceito de paisagem utilizado na conservação de bens culturais
é bastante abrangente e caminha em direção a uma abordagem interdisciplinar, pressupondo a
análise de seus aspectos culturais, sociais, econômicos e ambientais, mas sobretudo políticos.
Quando analisamos o conceito na conservação de bens culturais, podemos observar que este traz
novos desafios e possibilidades. Entendemos, com Paul Claval (2008), que a paisagem se
apresenta em múltiplas definições, seja como uma realidade humana, uma realidade ecológica,
uma realidade jurídica, um texto ou uma arena política. Assim, reconhece-se a natureza complexa
desse bem cultural, como resultado da interação dos diferentes sistemas (por exemplo, político,
econômico e cultural) que foram a sociedade.

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Por fim, entende-se a paisagem como um fenômeno cultural, ou seja “a paisagem é um constructo,
uma elaboração mental que os homens realizam através dos fenômenos da cultura”
(MADERUELO, 2005). Sua construção provem de contribuições de várias áreas de atividade
humana e envolve as expressões materiais e as representações sociais, as quais não podem ser
desconsideradas pela pesquisa científica e pelos formuladores das políticas públicas de
conservação de bens culturais. Conhecer a paisagem é ir além da percepção que, afinal de contas,
é feita de forma sempre seletiva. Assim como existem diversas verões sobre o mesmo fato,
existem diversos entendimentos sobre o que é a paisagem. Como aponta Milton Santos (2007),
nossa tarefa é ira além da percepção da paisagem para descobrir seu significado, ou seja, “a
percepção não é o conhecimento, que depende de sua interpretação, e esta será tanto mais válida
quanto mais limitarmos o risco de tomar por verdadeiro o que é só aparência” (SANTOS, 2007,
p.68).

Referências

BANDARIN, Francesco. From paradox to paradigm? Historic urban landscape as an urban


conservation approach. In: Managing Cultural Landscapes. London: Routledge, 2012.

BERQUE, Augustin. Paysage-empreinte, paysage-matrice: éléments de problé- matique pour une


géographie culturelle. In: L’Espace Géographique, v. 12, n. 1, 1984, p. 33-34.

CAUQUELIN, Anne. A invenção da paisagem. São Paulo: Martins, 2007.


CLAVAL, Paul. A Geografia Cultural. Florianópolis: EdUFSC, 1999.

CLAVAL, Paul. The idea of landscape. In: The 23rd Session of the PECSRL “Landscapes, Identities
and Development”, Lisbon/Óbidos, Portugal, Sep. 2008.

COSGROVE, Denis. Social formation and simbolic landscape. The University of Wisconsin Press:
Madison, 1998.

DUNCAN, James. The city as text. The politics of landscape interpretation in the Kandyan Kingdom.
Cambridge: Cambridge University Press, 1990.

MADERUELO, Javier. El Paisaje: génesis de un concepto. Madrid: Abada Editores, 2005.

SIMMEL, Georg. A Filosofia da paisagem. Covilhã: Universidade da Beira Interior, 2009.

RIBEIRO, Rafael Winter. Paisagem cultural e patrimônio. Rio de Janeiro: IPHAN, 2007.

SANTOS, Milton. Paisagem e Espaço. In: Metamorfoses do espaço habitado. São Paulo: Editora
da Universidade de São Paulo, 2007.

SAUER, Carl Ortwin. Land and life: a selection from the writings of Carl Ortwin Sauer. University of
Califórnia Press: Berkeley and Los Angeles, 1983.

TERKENLI, Theano S. Towards a theory of the landscape: the Aegean landscape as a cultural
image. Landscape and Urban Planning. 57 (2001), p.197-208.

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