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UMA PROFESSORA?
CAPÍTULO 2
O DESPERTAR DE UMA PAIXÃO JUVENIL
CAPÍTULO 3
O NOVO LAR
CAPÍTULO 4
MELINDA
CAPÍTULO 5
O VALE DOS CARDOS
CAPÍTULO 6
O PRIMEIRO DIA DE AULA
CAPÍTULO 7
O SILÊNCIO DO FAZENDEIRO
CAPÍTULO 8
A DENSA NEBLINA
CAPÍTULO 9
IRRESISTÍVEL E DOCE ATRAÇÃO
CAPÍTULO 10
O FILHO DO MINISTRO
CAPÍTULO 11
A CHEGADA DOS DEBULHADORES E CONFIDÊNCIAS
CAPÍTULO 12
O PRIMEIRO BEIJO
CAPÍTULO 13
O BAILE NA ESCOLA
CAPÍTULO 14
JOGOS DE CARTA E DE AMOR
CAPÍTULO 15
O DIA DE AÇÃO DE GRAÇAS
CAPÍTULO 16
EU TE AMO!
CAPÍTULO 17
O PERFEITO CAVALHEIRO
CAPÍTULO 18
LAR É ONDE ESTÁ O CORAÇÃO
CAPÍTULO 19
UM PEDIDO
CAPÍTULO 20
O CASAMENTO
CAPÍTULO 21
KRISTIAN E PATRICIA
CAPÍTULO 22
A GRANDE NEVASCA
CAPÍTULO 23
UMA VIDA POR OUTRA
CAPÍTULO 24
ACONTECIMENTOS INESPERADOS E ESPERADOS
CAPÍTULO 25
ISABELLE LAWLER
CAPÍTULO 26
UMA NOVA VIDA
DESFECHO
JOHN WESTGAARD SOBRINHO
CAPÍTULO 1
UMA PROFESSORA?
Então, olhou ao redor, ergueu os olhos para as vigas nuas do teto, olhou
para a janela diminuta e para a cômoda onde estava o novo lavatório.
Recordou-se de suas expectativas, aquelas que tivera durante a viagem de
trem para o novo lar e a instantânea decepção quando Theodore Westgaard
abriu a boca e declarou: “Não vou aceitar nenhuma mulher em minha casa”.
Olhou de volta para a carta, que tinha escondido os vestígios, as desilusões e
os temores de suas primeiras seis horas como “a nova professora” e, de
repente, as palavras pareceram esmagá-la. Encolheu-se feito uma bola e
chorou, desbragadamente. Oh, mamãe, papai, sinto muitas saudades! Quem
me dera estivesse em casa com vocês, onde a hora do jantar é feita de alegria,
conversa e sorrisos afetuosos. Oxalá eu pudesse pegar o pano de prato e me
queixar aos gritos por ter que ajudar Carrie e Pudge antes de obter permissão
para sair da cozinha... Queria que estivéssemos outra vez as três juntas,
amontoadas em nosso pequeno e bonito dormitório com papéis de parede de
flores e que vocês duas se unissem contra mim quando eu quisesse deixar as
luzes acesas um pouco mais. O que estou fazendo aqui, nesta pradaria
esquecida por Deus, com uma família estranha, onde imperam as feições
taciturnas, a reticência e um completo desprezo pelas boas maneiras? Deveria
ter levado em conta, papai, quando me disse que pegasse o primeiro posto
que ficasse mais perto de casa até que soubesse como me sairia sozinha. Se
estivesse aí, estaria compartilhando isto com você e com mamãe, em lugar de
ocultar minhas tristezas e chorar neste pequeno quarto do mezanino!
Entretanto, ela amava muito a família para contar a eles a verdade e
sobrecarregá-los com preocupações, sabendo que não podiam fazer nada para
consolá-la. Mais tarde, descobriu que suas lágrimas tinham caído sobre a
tinta, deixando duas manchas azuis e, então, com gesto decidido, secou os
olhos e começou a reescrever a carta, embora ainda omitisse suas desilusões.
CAPÍTULO 3
O NOVO LAR
***
A nevasca durou vinte e oito horas. Durante esse tempo caiu quase um
metro de neve. Justo antes do anoitecer do segundo dia, homens com raquetes
para a neve resgataram as crianças utilizando um tobogã. O primeiro a chegar
à escola foi Lars Westgaard. Colocando as raquetes em um aglomerado de
neve, eles abriram a porta e se depararam com rostos de expressões aliviadas,
três dos quais, seus próprios filhos, choravam de felicidade. Mas ao mesmo
tempo em que erguia Roseanne, agarrada a ele como um macaco, e afagava
as cabeças de Norma e de Skipp, que o abraçavam, encontrou o olhar
angustiado de Linnea, que esperava junto a Kristian.
— Theodore e John? — perguntou ela em voz baixa.
Lars não pôde fazer outra coisa a não ser mover a cabeça tristemente.
Uma sensação de náusea apertou o estômago de Linnea e o pânico lhe
oprimiu o peito. Entrelaçou os dedos com os de Kristian, apertando-os com
força e olhando nos jovens olhos preocupados.
— É provável que estejam na casa de alguém, no povoado,
preocupando-se conosco mais do que nos preocupamos com eles — disse
Linnea, tentando com todas as forças acreditar naquilo que sua própria voz
dizia.
Kristian tragou com dificuldade e murmurou: — Sim... é provável.
Mas nenhum deles estava convencido disso.
Os outros pais entraram, sacudindo a neve, e se aqueceram junto ao
fogo. Quando todos chegaram, fizeram-se planos para a busca dos dois,
apagou-se o fogo e a pequena escola ficou fechada. Alguém tinha levado
raquetes de neve para Linnea. Metida em um casaco que lhe deram, cachecol
e luvas, Kristian a levou para casa.
O ar já estava suavizando. Pelo lado Oeste, apareceu no céu o contorno
avermelhado e dourado do sol, piscando entre nuvens purpúreas, estendendo
grandes faixas douradas pelo mundo branco das geleiras, que tinham o
mesmo tom arroxeado que as nuvens no Oeste, que já estavam se desfazendo,
separando-se, deixando passar cada vez mais raios de sol e prometendo um
dia claro.
Formou-se uma caravana de busca com os quatro tobogãs puxados por
Ulmer, Lars, Trigg e Kristian, e Raymond caminhando ao lado. Com a
intenção de facilitar as coisas, decidiu-se que as crianças Westgaard iriam
todas para a casa de Nissa, que era a mais próxima, de maneira que os
homens pudessem se dedicar a procurar os irmãos Westgaard perdidos. Até
no curto trajeto da escola até a casa eles estavam alertas, vigilantes, cada um
de posse de um pedaço de pau, e se detinham e o enfiavam em cada
montículo de neve em variados lugares. De cada vez, Linnea observava os
rastros gradeados de suas raquetes, formando rastros como bordados de cruz
sobre a neve, escutava as vozes dos demais e temia o que pudessem
encontrar. Observava com horrorizada fascinação como os paus se
afundavam, abraçando a barriga para proteger a criança não nascida da
aflição e pronunciava uma silenciosa oração.
Pobre Kristian! A própria Linnea estava esgotada além do que podia
imaginar e ele também devia estar. Mesmo assim, movia-se junto aos tios
sobre as elevações de aparência suspeita e via desaparecerem os paus uma e
outra vez na neve, deixando-a como tocas de animais. De todas as vezes,
retornava junto ao tobogã em que estava Linnea, recolhia a corda e seguia os
outros, acompanhado pelos gemidos fúnebres dos trenós sobre a superfície
antiga da neve.
Quando chegaram à casa de Nissa, os homens tiveram que tirar a neve
da porta com uma pá. Enquanto trabalhavam, ouviam os mugidos
permanentes das vacas, que estavam perto do barracão, em meio à neve, com
os úberes doloridos de tão cheios esperando serem ordenhadas desde a noite
anterior, àquela mesma hora. Mas havia assuntos de maior urgência e as
vacas ficaram sem ser atendidas. Era evidente que Nissa não tinha dormido.
Também se via que ela era daquelas pessoas que funcionavam bem sob
tensão, que seus pensamentos eram iluminados em proporção direta com a
necessidade de ter ideias claras. Ela já havia preparado pacotes com
equipamentos para a equipe de busca dos filhos: mantas enroladas e enfiadas
em sacolas, café fumegante e sopa em frascos de conserva envoltos em um
pano; sanduíches envoltos em papel encerado, tijolos no forno e brasas
prontas para serem transportadas em latas. Embora tivesse uma aparência
esgotada, movia-se ágil e autoritária pela cozinha, executando os preparativos
para quando os rapazes estivessem prontos para sair de novo. Reconhecendo
o valor do tempo, não o perdia em inúteis lamentos. A única pausa foi
quando Kristian e Raymond insistiram em ir. Os homens se olharam entre si;
e finalmente os incluíram: — Estão certos disso? — perguntou Ulmer.
— Meu pai está lá fora — respondeu Kristian sem titubear.
— E eu acompanho Kristian — afirmou Raymond.
Ulmer concordou com a cabeça e a questão foi resolvida. Minutos
depois de ter chegado, já voltavam a sair. Nissa não se lamentou nem os
observou sair com suas raquetes para a neve. Ao contrário, concentrou sua
atenção nos netos, para os quais tinha preparado uma espessa sopa de galinha
com macarrão. Também havia pão fresco e uma rodada de biscoitos recém-
assados, evidências de que não tinha estado ociosa durante o tempo em que
estivera sozinha, preocupando-se.
Enquanto Linnea admirava a pequena senhora, não mais alta que seus
netos de oito anos, ela não diminuía a atividade nem por um instante. Movia-
se como um relâmpago, sem sorrir. E, todavia, as sete crianças sabiam, por
instinto, que ela os amava enquanto os atendia e eles tagarelavam a respeito
da noite que tinham passado na escola. De algum modo Linnea pôde ouvir a
voz de Roseanne por cima das demais, aguda e sussurrante: — Não sabe,
avó! A tia Linnea me fez comer passas, e eu as comi. Estou com muita
vontade de contar isso para a minha mamãe — o rostinho expressivo ficou
repentinamente triste. — Mas perdi minha marmita do almoço e certamente
mamãe vai me dar uma surra por isso.
O falatório continuou, enquanto as tigelas de sopa foram se esvaziando
e voltaram a se encher. Quando ficaram satisfeitas, pareceu que as crianças
caíam no sono todas ao mesmo tempo, pois minutos depois estavam todas
adormecidas no andar de baixo.
A casa ficou silenciosa. De fora, chegou o ruído da neve que derretia e
caía do telhado, gotejando ritmicamente, embora o sol já tivesse se
escondido. Nissa, sentada na dura cadeira da cozinha, apertou os joelhos. A
desbotada saia se lhe pendurava entre as coxas como uma rede. Dava a
impressão de que fazia muita falta um bom suspiro, mas ela falou com muita
severidade.
— Bom, acredito que será melhor que eu alivie um pouco essas vacas.
— Vou ajudá-la — ofereceu-se Linnea.
— Não acredito que seja necessário. Ordenhar as vacas é mais pesado
do que parece.
— Bom, pelo menos gostaria de tentar.
— Como quiser.
Nissa vestiu o casaco sem dar o mais remoto indício de autocompaixão.
Sua atitude parecia dizer: “Se há algo a fazer, terá que ser feito”. Linnea
sentia uma grande segurança mantendo-se junto à teimosa e decidida idosa.
Enfiadas nos aventais de trabalho de Theodore e de Kristian, que ficavam
imensos, abriram caminho entre a neve para o estábulo. Tal como havia dito
Nissa, ordenhar era mais difícil do que parecia e Linnea era um fracasso total.
Por isso, enquanto a sogra ordenhava, ela se ocupou de limpar a neve com a
pá no caminho entre o celeiro e a casa. Carregaram juntas os baldes cheios de
leite e espuma, lavaram as tigelas de sopa dos meninos e depois enfrentaram
a angustiosa responsabilidade de esperar com as mãos ociosas.
Nissa procurou ocupação para si. Encontrou um novelo de lã e se
sentou na cadeira de balanço da cozinha para se aquecer e tricotar. A cadeira
de balanço rangia cada vez que ela se movia. Lá fora, o céu parecia se abrir,
viam-se algumas estrelas e uma lua fina como a lâmina de uma espada. Não
corria nenhuma brisa, como se as vinte e oito horas de nevasca jamais
tivessem acontecido. A cadeira de balanço seguia rangendo.
Linnea tentou tricotar, mas suas mãos tremiam e ela necessitava de
firmeza para fazer bem os pontos. Olhou para a idosa na cadeira de balanço,
com suas mãos sulcadas repletas de veias azuis sob uma pele translúcida, que
trabalhavam de maneira automática, tricotando o que quer que fosse. Talvez
já intuísse que seria avó novamente e já tricotasse o primeiro sapatinho do
segundo filho de Theodore. Linnea observou que a lã era da mesma cor que a
touca que ela havia tricotado para Teddy no Natal. Estaria pensando na touca,
guardada com naftalina junto com outros objetos de lã de Theodore e de
John?
— Nissa — Linnea a chamou e a anciã a olhou sobre os óculos. —
Quero que saiba que vou ter um filho do Teddy.
As duas sabiam o motivo pelo qual Linnea escolhera aquele momento
para falar. Se Teddy não sobrevivesse, seu filho sobreviveria. Mas Nissa se
limitou a replicar: — Então não podia ter retirado toda aquela neve.
Nesse momento. Roseanne apareceu na entrada da cozinha, esfregando
os olhos e o ventre.
— Meu estômago está doendo, vovó. Acho que comi muito.
A lã azul perdeu toda a importância.
— Venha, Rosie, fique aqui com a avó.
A sonolenta menina se enfiou nos braços abertos da avó e se deixou
abraçar no aconchegante e quente colo, encolhendo-se sob o queixo da idosa.
Os velhos ossos da cadeira de balanço rangeram na cozinha.
— Vovó, pode me contar de novo de quando era menina, lá na
Noruega?
Durante vários minutos, só a cadeira falou, com seu rangido rítmico.
Depois, Nissa começou a evocar a história que, sem dúvida, tinha sido
relatada infinitas vezes ao longo dos anos, mas era nova aos ouvidos de
Linnea.
— Meu pai era colono, um homem forte, com mãos tão calejadas
quanto os cascos dos cavalos. Vivíamos em uma pequena e bonita clareira.
Nossa casa e o estábulo das vacas estavam unidos sob um telhado de turfa
verde e, às vezes, na primavera, as violetas floresciam sobre ele, sobre o...
— Sei, avó — a menina a interrompeu. — Tinha flores no telhado.
— Isso mesmo, meu anjo — Nissa continuou —, havia quem
considerava aquilo pouca coisa, mas tinha um chão firme que sempre estava
limpo, e mamãe me mandava sair para recolher ramos verdes de zimbro[25]
para espalhar em cima depois de ter varrido. E junto da nossa porta principal
havia um fiorde...[26] — Nissa olhou para a neta. — Você se lembra o que é
um fiorde, Rosie?
— Um lago, vovó?
— Correto, é um lago e, ao fundo, estavam as montanhas roxas.
Subindo as montanhas, via-se uma colina que dava para os bosques e as
restingas e também a aldeia de Lindegaard. Às vezes nosso papai nos levava
lá. Vestíamos tecidos escuros, feitos em casa, e os homens usavam chapéus
de veludo e lá íamos, a Whitsunlide, por exemplo, quando os arbustos mal se
tingiam de verde-claro e os campos nus cheiravam a esterco. A cor mais
escura que a noite assumia era um tom de azul-claro. Por isso, a Noruega é
chamada... — Nissa esperou.
— A terra do sol da meia-noite — completou Roseanne.
— Outra vez correto. Havia alísios, bétulas e urzes… sempre muitas
urzes.
Roseanne ergueu os olhos e apoiou uma das mãos no pescoço da avó.
— Conte-me da vez que o avô te levou urzes, vovó.
— Ah, sim — Nissa soltou uma risada gutural. — Bom, isso foi
quando eu tinha quinze anos. Seu avô recolheu um ramo tão grande que uma
garota não podia carregá-lo com os dois braços. Levou-me para dentro de
uma carroça de duas rodas, puxada por uma égua de pelo escuro.
— Lembro o nome da égua, vovó — interveio a menina, ansiosa.
— Como se chamava, então? — Nissa a olhou através dos óculos
ovalados.
— Else.
— Isso mesmo, menina esperta. Chamava-se Else. Nunca me
esquecerei de quando vi seu avô conduzindo aquela pequena égua, chegando
para me visitar. É obvio, teve que se sentar e conversar com minha família
por um bocado de tempo. E mamãe serviu creme espesso com bolachas
doces, assadas com açúcar por cima. Era como se ele tivesse ido a nossa casa
unicamente para comer o doce.
Com ar melancólico, Nissa apoiou o queixo na cabeça da neta,
enquanto a menina retorcia um botão do vestido da avó.
— Ele era pescador, como o seu pai. E a pesca tinha fracassado quatro
anos seguidos lá em Lofoten, e se falava muito sobre a América do Norte. Às
vezes, quando ia me visitar nas noites, sentávamo-nos juntos na porta que
dava para o jardim e falávamos disso, mas, caramba, nunca sonhamos vir
para cá. Oh, aquelas noites eram tão belas! Havia dois galos negros que
cantavam das cerejeiras em flor e, quando o sol descia atrás das montanhas
coroadas de neve, as janelas da cabana ardiam como se estivessem se
incendiando — Nissa se balançava com suavidade, com uma expressão
nostálgica na face enrugada. — Para o Norte, os bosques davam para um
turfal e, na primavera, o ar se enchia com o aroma dos fogos de turfa e de
grãos de café torrados, e sempre se sentia o cheiro do mar.
— Fale-me da pedra de afiar, vovó.
Nissa passou de um sonho a outro: — Havia uma pedra de afiar no
fundo do estábulo, onde meu pai afiava...
— Sei, avó — interrompeu-a outra vez a menina, jogando a cabeça
para trás para ver o rosto que se inclinava sobre ela. — Onde seu papai afiava
as ferramentas e fazia um ruído que parecia ser de centenas de abelhas.
Nissa sorriu, afável, estreitou a neta em seus braços, e prosseguiu: — E
tinha um cão da Lapônia que... — a avó esperou, sabendo que era isso o que
tinha que fazer.
— Chamava-se King — completou Roseanne. — E teve que deixar o
velho King quando se casou com o avô e veio para a América do Norte no
navio.
— Isso mesmo, pequena.
O tratamento carinhoso despertou uma chama no coração de Linnea,
pois assim era como a chamava Theodore às vezes, e agora sabia de onde ela
tinha tirado.
Sonny e Norma também se levantaram de seus ninhos e rodearam a
avó, que tirou forças para si daqueles rostos sonolentos. Apareceram um por
um, como que atraídos por um chamado que ninguém podia adivinhar, de
maneira similar ao retorno dos cavalos quando os campos necessitavam
deles. Os netos saíram de suas camas acolhedoras para se reunir aos pés da
avó, que recorreu ao passado à procura de consolo. Rodearam a cadeira,
alguns sentando-se sobre os braços de madeira, outros ajoelhados, apoiando
as faces nas pernas da idosa. Os dedos de Nissa brincavam com os cabelos
sedosos de cada um deles. Contemplando-os, escutando, Linnea sentiu que se
lhe formava um nó na garganta. Como nunca, até então, compreendera o real
significado de uma família? Uma geração que passava para a outra seus
costumes e histórias, de carne para carne, do passado ao futuro.
Ela disse em silêncio para o filho que trazia no ventre: “Ouça a história
de sua família, pois se trata de sua maior herança”.
O relato prosseguiu, permeado de palavras misteriosas: pão ázimo e
restingas, arándanos – uma espécie de amora – e sarças. Muitas horas depois,
pelo lado Leste, ela viu as luzes das lanternas balançando. Parou diante da
janela com a garganta contraída pelo temor, o sangue lhe zumbia nos ouvidos
e ela pensou que ia desmaiar. Forçou a visão para ter certeza de que eram
eles, para avisar a Nissa de que estavam chegando, mas hesitou. Ela era idosa
e lhe concederia todo o tempo possível antes de dar a ela uma má notícia,
pois Linnea intuía que algo de muito ruim se abateria sobre aquela
maravilhosa família. Seu coração murchou.
Não havia cavalos. Onde estavam os cavalos? A não ser um par de
tobogãs transportando duas formas escuras. Viam-se as cabeças à luz dourada
dos lampiões. Linnea se desesperou. Oh, Deus, Oh. Deus, os dois não! Alheia
ao desespero da nora, a voz de Nissa continuou: — Havia fogos nas colinas
de Whitsuntide, e ardiam boa parte da noite...
Linnea finalmente falou. Sua voz era muito baixa, muito serena,
embora sentisse que estava morrendo a cada segundo que passava.
— Estão chegando.
O relato de Nissa foi interrompido. A cadeira de balanço se imobilizou.
Os pequenos foram retirados com suavidade do seu colo. Lá fora, seus filhos
e netos se arrastavam de volta para a casa; como um passeio noturno pela
neve banhada pela lua, mas traziam com eles uma carga nas costas. Um pavor
como nunca tinha experimentado esmagou o coração de Linnea e ela
inconscientemente gemeu de dor. Quando a porta se abriu, o primeiro a entrar
foi Lars, cujos olhos aflitos pousaram primeiro na idosa em pé diante da
cadeira de balanço.
— Mãe... — murmurou com voz rouca e abatida.
Nissa jogou o corpo para frente, com a dor se agitando em seus olhos.
— Os dois? — perguntou.
— Não, mãe... o John. Quanto a Teddy, chegamos a tempo.
As faces enrugadas de Nissa pareceram se converter em linhas de
tristeza. Seu grito atravessou o ambiente.
— Oh não! Oh, John... meu filho, meu filho...
Rodeou seu próprio corpo com um braço, tapou a boca com uma das
mãos e se balançou em breves movimentos curtos. As lágrimas, que ficaram
presas na borda inferior dos óculos, para depois achar seu leito nos vales de
desespero de seu rosto, rolaram até o queixo, pingando no chão.
— Mãe… — conseguiu pronunciar outra vez Lars, apoiando-se em
cima de um joelho diante da mãe. Eles lamentaram juntos. Presenciando a
cena, Linnea sentiu que a gratidão e a tristeza lutavam em seu peito: Teddy
estava vivo, mas John... O terno John... Das comissuras de seus olhos
começaram a emanar lágrimas e seus ombros tremeram. Os meninos, calados
e inseguros, passavam o olhar inquisidor da avó para a professora e ambas
choravam. Alguns deles compreendiam, mas duvidavam. Outros ainda
acreditavam que a pior consequência de uma nevasca era a obrigação de
comer uvas-passas.
Entraram os homens, carregando os tobogãs como beliches. Apoiaram
junto ao fogão os corpos envoltos em mantas e atrás deles entrou Kristian,
com o rosto abatido e pálido. Seu olhar angustiado se voltou imediatamente
para Linnea.
— Krist... — ela o chamou, mas o nome não lhe saiu dos lábios.
O rapaz a pegou nos braços, fechando os olhos, esforçando-se por
controlar as lágrimas que já não podia conter.
— Papai está vivo — conseguiu dizer em um sussurro.
A única coisa que Linnea fez foi assentir contra o ombro do jovem,
pois tinha um nó na garganta que a impedia de falar. Kristian se soltou do
abraço e a mulher viu Raymond junto a eles, tão abatido como todos os
outros. Abraçou-o com força, enquanto se ouvia o pranto baixo de Nissa e de
Ulmer, ajoelhados no chão junto aos tobogãs.
— Que alguém leve as crianças daqui — ordenou Nissa, com voz
trêmula.
Controlando a necessidade de comprovar com seus próprios olhos que
Teddy estava vivo, Linnea fez o que sabia que se precisava com a maior
urgência.
— Venham, crianças — passou a mão pelos olhos para secar as
lágrimas. — Venham comigo para cima.
Eles resistiram, percebendo a desgraça, mas ela os fez subir à frente
dela pelos degraus rangentes, para a penumbra do aposento superior onde ela
mesma dormia.
— Esperem aqui. Irei buscar uma lamparina.
O que ela viu quando desceu para buscar a lamparina paralisou-a:
Ulmer tinha tirado as mantas deixando descoberto o corpo de Theodore,
enroscado em posição fetal, com as mãos cruzadas apertando os ombros.
Tinha o cabelo esmagado contra o crânio e as roupas grudadas no corpo com
uma asquerosa mescla de sangue coagulado e tripas. Tinha sobre o rosto e as
mãos um rastro de um líquido que parecia azeite vermelho. Os olhos estavam
fechados e os lábios abertos, como se afogando em uma eterna exclamação,
mas não movia um só músculo. Dava a impressão de que ele estava morto.
De sua garganta brotou um grito. Ulmer ergueu os olhos.
— Leve as crianças para cima, Linnea — ordenou-lhe, severo.
Mas Linnea estava horrorizada e engessada ali, com o queixo se
movendo sem controle e a boca aberta.
— O quê...?
— Ele está vivo. Cuidaremos dele, agora pegue a lamparina e suba —
disse-lhe Ulmer.
Com o estômago revolto, ela saiu do cômodo.
Em cima, as sete crianças se instalaram em sua antiga cama com os
joelhos cruzados, os olhos dilatados, assustados. Linnea sentiu-se impotente.
Queria gritar, chorar e ainda estava nauseada. Theodore. Oh, Deus querido, o
que aconteceu? O que ele suportou lá fora, em meio à fúria da tormenta?
Como ele deve ter lutado para se manter vivo em meio à tempestade de neve.
Lutara com dentes e garras. Linnea tratou de recordar em que parte tinha a
pele rasgada, mas havia tanto sangue que era impossível saber onde tinha se
ferido. Os tremores sacudiram seu corpo, enquanto se sentava na beira da
cama e se abraçava, balançando-se.
Que tipo de animal caçava pessoas e atacava no meio de uma
nevasca? Por favor, oh, por favor, que alguém me explique o que lhe
aconteceu. Que me digam que ele viverá.
O contato de uma mão pequena nas costas e uma voz assustada e débil
a tiraram do desesperado devaneio.
— Tia Linnea.
Ao se voltar, viu Roseanne ajoelhada atrás dela. Viu o temor nos
grandes olhos castanhos e na expressão angustiada da boca da menina, assim
como nos rostos de olhos arregalados, inquisidores, e nas faces tensas. Então
compreendeu que, naquele momento, eles contavam com ela para que lhes
desse segurança.
— Oh, Roseanne, minha pequena — abraçou a menina, deu-lhe um
beijo na face, estreitou-a contra o peito, e compreendeu melhor ainda porque
Nissa permanecera com as crianças na última hora de vigília.
— Venham... — abriu os braços para incluir a todos e, embora não
coubessem, encolheram-se o mais perto que puderam dela procurando
consolo. — Sei que vocês querem saber o que aconteceu... — com olhos
aflitos, observou os rostinhos ansiosos. — Agora, vamos todos nos dar as
mãos.
Como haviam feito no Dia de Ação de Graças, quando tinham tanto
para agradecer, formaram um círculo de contato humano, e Linnea lhes
contou a verdade do ocorrido: — O tio John está morto. Ontem, quando
voltavam do povoado, foram pegos pela nevasca. Ele não aguentou o frio.
Lamento muito, pois todos nós o amávamos muito.
— E o tio Teddy também virou estrelinha no céu? — perguntou a
inocente Roseanne. — Mamãe me contou que todos que dormem aqui na
terra viram estrelinhas no céu e que não devemos chorar nem se um gatinho
dormir para sempre, porque podemos olhar para o céu e acenar para ele.
Linnea, por um instante, não soube o que dizer, mas alguém voltou a
lhe perguntar sobre Theodore.
— O tio Teddy está... bom, mas está muito doente. Temos que ser
muito fortes e ajudar a vovó Nissa, Kristian, e os seus pais e mães, porque
estarão muito tristes... — ela não pôde continuar. Deixou que as lágrimas
jorrassem sem impedi-las, agarrando duas mãos pequenas como se fossem
seus salva-vidas. Viu que os semblantes passavam do medo ao respeito, e
então compreendeu que era a primeira vez que enfrentavam a morte de um
ser humano. Mas a grande surpresa foi o modo como consolaram a professora
angustiada. Vê-la chorar os entristecia mais que qualquer outra coisa.
Tentaram confortá-la e Linnea percebeu que o laço de amor entre eles se fez
mais sólido.
No andar inferior, Nissa deixou sua tristeza de lado e se dedicou aos
vivos. Insistiu em ser ela mesma a banhar Teddy, lavando-lhe o cabelo
enquanto ele ainda estava deitado sobre o tobogã, junto ao fogão que ardia
com um fogo muito alto. Depois permitiu que os irmãos o vestissem,
erguessem-no e o levassem para a cama, onde ela colocara tijolos quentes
para aquecê-la. Durante todo esse tempo, Theodore permaneceu inconsciente,
guardado na segurança protetora dessa fuga natural. Já se aproximava a
alvorada quando Kristian subiu para o andar de cima para procurar os primos
menores. No antigo quarto de Linnea, as crianças menores, exaustas, tinham
enfim adormecido, encolhidas sobre a cama, entrelaçadas como uma bola de
lagartas da primavera. No centro estava sentada Linnea, com as costas
apoiadas na cabeceira, os braços ao redor de Bent e de Roseanne, e os outros
entrelaçados o mais perto que podiam dela. Kristian se sentiu inseguro por ter
que despertá-la.
— Linnea?
Tocou em seu ombro.
As pálpebras de Linnea tremeluziram. Ela levantou a cabeça, olhou
para ele e parecia acordada, mas deixou cair outra vez a cabeça em um
ângulo estranho, e adormeceu de novo. Estaria sonhando? Pensou Kristian.
— Linnea — sacudiu-a com delicadeza. Desta vez, ela abriu os olhos
lentamente e manteve a cabeça erguida.
Desorientada, olhou para Kristian. Pouco a pouco, começou a se
lembrar dos detalhes: não fora um pesadelo, era real. A mão do rapaz em seu
ombro, as crianças adormecidas ao redor, a luz pálida do amanhecer que
entrava pela janela. Avivou-se e tratou de se levantar.
— Oh, não, eu não queria adormecer. Eu tinha que ter descido assim
que as crianças...
— Está tudo bem. A avó se encarregou de tudo.
— Kristian — sussurrou Linnea —, como ele está?
— Não sei. Ele ainda não se moveu. Lavaram-no e o colocaram na
cama. Agora, Ulmer e Lars estão ordenhando as vacas e depois terão que ir
para suas casas. Helen e Evie devem estar preocupadas com as crianças.
Endireitou-se e olhou para os meninos adormecidos.
— Quero ir vê-lo — disse Linnea.
Kristian se sentou pesadamente sobre a cama. — Ele tem um aspecto
horrível.
Linnea sentiu o mesmo medo doentio da noite passada, mas tinha que
saber.
— Kristian, o que lhes aconteceu?
O rapaz inspirou profunda e tremulamente, passou uma das mãos pelo
cabelo, e falou em um tom que refletia o horror da noite passada.
— Aparentemente, foram alcançados primeiro pela nevasca, e
certamente derrubaram a carroça para se abrigar sob ela e se protegerem do
vento. Quando isso não bastou, não bastou... — ele tragou novamente com
dificuldade, e Linnea lhe segurou a mão e a apertou com força. — Continue,
Kristian, por favor.
— Eles mataram a tiros os cavalos, tiraram-lhes as... tripas e se
enfiaram dentro da carcaça para se protegerem.
O horror que se via no rosto do rapaz se refletiu na face de Linnea.
— Oh, meu Deus! Cub e Toots? Os preferidos de Theodore. Oh, não...
— de repente, Linnea sentiu que seu estômago se revolvia. Por sua mente
passaram milhares de imagens dos animais trotando, balançando a cabeça em
uma clara manhã do Dia da Árvore, a caminho do povoado; o plantel
correndo em liberdade, enquanto Cub e Toots alardeavam de dentro do
curral, as incontáveis ocasiões em que Theodore lhes tinha acariciado os
narizes. Oh, como deve ter sido dolorido para ele sacrificar os animais que
tanto amava, e o que deve ter sido para Kristian encontrá-los naquele
estado... Ela apertou a face do rapaz: — Oh, Kristian, que horrível foi para
você!
O jovem se manteve imóvel, enquanto as lágrimas caíam lentamente
por seu belo rosto, uma mescla de Theodore e Melinda, com os olhos fixos
em algum ponto mais à frente do ombro de Linnea. Ela lhe secou as lágrimas
com carinho de mãe. Em uma voz sufocada, Kristian continuou: —
Aparentemente, o tio John estava den...tro de T...Toots, mas não pô...de
su...portar ficar lá, porque o en...contramos sentado junto à égua na ne...ve,
como se... Oh, Jesus... ele... ele... não suportava lugares fechados e... amava
demais os cavalos, preferiu a morte a...
Os soluços o sufocaram e ele se dobrou para a frente, afundando o rosto
entre as mãos. Chorava tanto que seus ombros eram sacudidos violentamente.
Linnea também chorava, ao mesmo tempo em que abraçava Kristian,
tentando consolá-lo. Abraçou Kristian por trás, apoiando-lhe a face nas costas
estremecidas, estreitando-o com força.
— Shh... shh... está tudo bem.
Kristian achou uma das mãos de Linnea, entrelaçou os dedos nos dela,
e os apertou com força contra o coração dolorido.
— Nunca poderei... esquecer toda aquela neve... vermelha... de
sangue...
Linnea sentiu sob sua mão o pesado pulsar do coração do rapaz.
— Kristian... — ela não sabia o que dizer para consolá-lo, pois também
estava desolada. — Kristian... — repetiu com amor. Suas lágrimas deixaram
manchas escuras nas costas da camisa azul de Kristian. Calaram-se e
deixaram fluir a tristeza, consolando-se mutuamente em silêncio.
Em dado momento, Kristian exalou um longo suspiro trêmulo, e Linnea
o soltou. O rapaz assoou o nariz, e a mulher secou os olhos com a manga.
— A avó está com o papai e ela precisa descansar um pouco — pediu,
quase como implorando.
— E você também. Parece que está a ponto de desmoronar. Vá
descansar um pouco.
O rapaz esboçou um sorriso pesaroso. — Desmoronar seria
maravilhoso.
— Ajude-me a despertar as crianças, e depois poderá ir se deitar —
disse Linnea.
Arrastando alguns, carregando outros, desceram com as sonolentas
crianças, que teriam que viajar pelos longos trajetos em um tobogã até suas
respectivas casas, atrás de seus esgotados e angustiados pais, que entre as
dezenas de tarefas do dia tinham os acertos para o funeral do irmão, a busca
de uma carroça derrubada com dois cavalos e depois seu enterro. A única
coisa boa, se é que havia algo de bom naquilo tudo, era que a neve já derretia.
Parecia uma ironia do destino.
O sol de primavera nasceu, aquecendo a pradaria com seu calor tardio,
colorindo o céu e a neve com intensos tons de rosa e laranja, majestoso em
um céu viçoso, claro como uma cascata. Entrava quente pela janela leste do
quarto de Theodore quando a vacilante Linnea apareceu na porta. Junto à
cama, Nissa estava afundada na dura cadeira da cozinha com o queixo
apoiado no peito e os dedos entrelaçados sobre o ventre. Linnea passou o
olhar pela cama e sufocou uma exclamação. Theodore parecia tão agastado,
macilento e inegavelmente velho! Em lugar da cor saudável de costume, tinha
a cor da cera. A carne que rodeava os olhos fechados tinha um leve tom
azulado. Suas maçãs do rosto pareciam ter murchado. As faces estavam
afundadas, e sobre elas brilhavam manchas claras, sinais do congelamento
que havia necrosado a pele. Tinha barba de — quanto tempo? — dois, quase
três dias. Linnea teve a sensação de que fazia anos que, do terreno da escola,
tinha acenado com a mão para a carroça. Pelo menos Theodore envelhecera
na aparência coisa de uns vinte anos. Contemplando o queixo com a barba e
as costeletas crescidas, voltou a lhe causar tristeza tudo por que ele tinha
passado. Olhou para Nissa, a pobre mãe angustiada. Que trágico era
sobreviver e ver um filho morrer! Linnea entrou no quarto e tocou o ombro
abatido.
— Nissa.
A cabeça da idosa se ergueu. Os óculos tinham escorregado pelo nariz.
— Piorou? — a assustada mãe perguntou, olhando rapidamente para o
filho.
— Não. Está igual. Por que não vai para seu quarto se deitar um pouco?
Ficarei cuidando dele para você descansar. Precisa repousar, Nissa.
Nissa curvou os ombros, colocou os dedos sob os óculos e esfregou os
olhos.
— Não... estou bem.
Linnea compreendeu que seria inútil discutir.
— Está bem, então lhe farei companhia.
— Agradeço a companhia e, como não há mais cadeira aqui, terá que...
— Este servirá — Linnea arrastou um pequeno tamborete de bordado
para perto da cadeira de Nissa. Sentou-se nele e colocou os braços nos
ombros de Nissa em um abraço afável. O quarto cheirava a cânfora e a
linimento. Lá fora, o galo cantava e um pintarroxo chamava a manhã. Dentro
do quarto, ouvia-se o ritmo regular da respiração de Theodore, depois somou-
se a isso o suave ronco de Nissa. Linnea percebeu que a sogra estava a ponto
de cair da cadeira. Despertou-a com delicadeza.
— Vamos, Nissa. Não pode manter os olhos abertos, e assim não faz
nenhum bem a Teddy. Vá se deitar um pouquinho só.
Nissa não resistiu e Linnea a acompanhou até o dormitório ao lado.
— Está bem... só por alguns minutos — sem sequer tirar os óculos,
Nissa deixou-se cair sobre a cama e se apoiou no travesseiro. Enquanto
Linnea tirava os óculos do nariz da idosa, ela balbuciou: — ...Sopa de frango
na cozinha.
— Shh, querida. Eu me ocuparei dele. Agora descanse um pouquinho
só.
Antes de sair do quarto, Linnea tirou-lhe os sapatos negros de cano alto
e pôs um cobertor sobre ela.
Retornou ao quarto de Theodore e parou junto à cama, examinando o
rosto desvanecido do marido. Tocou-lhe brandamente com dois dedos as
sobrancelhas e as têmporas. Beijou a comissura da boca: a pele estava fria e
seca. Tocou uma mecha de cabelo limpo, porém desordenado, que começava
a se enrolar nas pontas. Observou como subia e baixava seu peito. As mantas
lhe cobriam o torso e, por baixo, via-se a camisa de inverno, abotoada até a
garganta. As mãos jaziam sobre os lençóis. Linnea tomou uma delas, que
estava relaxada, com sua pele calosa e dura. Evocou na mente essa mão
arrumando o arreio, acariciando a barriga de uma égua prenha, baixando a
orelha de Cub para lhe sussurrar algo... e depois agarrando o cabo de uma
faca para eviscerar seus amados animais. Uma vez mais, as lágrimas lhe
queimaram as pálpebras e, desta vez, quando lhe beijou a têmpora, demorou-
se aspirando a fragrância de sua pele, do cabelo, sentindo o batimento do
coração tranquilizador sob os lábios. Oh Teddy, Teddy, nosso bebê e eu
estivemos tão perto de perdê-lo... Eu estava muito assustada. O que teria
feito sem você?
Deitou-se junto dele sob as mantas, apertando o estômago contra a
lateral do marido, passando-lhe um braço pela cintura e, por um momento,
dormiu com o filho aconchegado entre os dois. A tosse de Theodore a
despertou. Sentou-se, escutando para descobrir sinais de congestão, e,
erguendo-se, subiu as mantas até as orelhas. Sentou-se na cadeira que havia
ao lado da cama para cuidar dele. Theodore permaneceu inconsciente quase
todo o tempo, salvo uma vez, em que mudou de lado, não agitado, mas com
movimentos lentos e enfraquecidos, como alguém muito esgotado para se
mover rápido. Não pronunciou uma palavra sequer, nem um só grito
inconsciente viera dos horrores que ele tinha passado. Parecia em paz.
Despertou perto do meio-dia, tão discretamente como tinha dormido.
Deitado de costas com as mãos sobre o estômago, abriu os olhos e virou o
rosto. Parecia desorientado, tentando entender onde estava, e, por fim, seu
olhar caiu sobre Linnea. Ao falar, sua voz soou muito rouca, quase inaudível.
A primeira coisa que ele perguntou quando se lembrou do ocorrido, foi pelo
irmão.
— John?
Linnea sentiu que um nó lhe bloqueava a garganta. Seu peito parecia
sufocar de compaixão. Ela temia ser a pessoa que tivesse que dar a notícia a
ele e, entretanto, talvez fosse melhor que Nissa e Kristian economizassem a
tristeza de responder.
Ela segurou a mão dele e disse, com sua voz mais cálida possível: —
John não aguentou.
— Eu disse para você se enfiar sob essa carroça, John — disse
Theodore, decisivo e autoritário. Apoiando-se com esforço nos cotovelos,
como se estivesse sonhando, ordenou: — John, se enfie aí — e depois fez um
movimento para se levantar e ver se o irmão lhe obedecia.
Linnea se levantou rapidamente, empurrou-o para trás e lutou para
conter as lágrimas.
— Durma... por favor, Teddy... shh... shh... durma.
Ele se deixou cair outra vez na cama, fechou os olhos e virou para a
parede, para os benditos braços do sono.
Ainda dormia profundamente quando Nissa entrou para substituir
Linnea. À tarde, quando os homens voltaram para combinar os acertos do
funeral, ela ainda dormia. Linnea tomou outra vez o lugar da sogra, e estava
sentada junto à cama quando Lars e Ulmer a chamaram suavemente na porta
do quarto. Lars perguntou: — Como ele está?
— Ainda dorme.
Os dois homens entraram em silêncio e contemplaram o irmão
adormecido. Ulmer esticou a mão para afastar o cabelo da testa de Teddy, e
depois se voltou e apoiou a mão no ombro da cunhada.
— E você como está, pequena senhorita?
— Eu? Oh, estou bem. Não se preocupe comigo.
— Mamãe nos disse que você está grávida.
— De pouco tempo — respondeu Linnea.
— Tempo suficiente. Vá com calma, certo? Não queremos que Teddy
se depare com mais más notícias quando despertar.
Ele lançou outro olhar para o irmão na cama, enquanto Lars se
inclinava para dar um beijo no rosto de Teddy.
— Parabéns, Linnea. E que tal respirar um pouco de ar fresco? — disse
Lars.
Linnea olhou para Theodore.
— Prefiro não deixá-lo, Lars.
— Viemos com uma parelha e trouxemos algo esculpido na carroça que
pensamos que deveria ver — disse Lars.
— Limpamos um pouco a carroça e a trouxemos. Está junto ao moinho
— complementou Ulmer.
Deixaram-na ir sozinha. A sombra do moinho se estendia sobre a neve
que derretia com rapidez. No crepúsculo, Linnea andou rapidamente para a
carroça verde de rodas vermelhas. Era fácil distinguir as palavras, pois
Theodore mantinha tudo em perfeitas condições, até a grossa pintura verde da
caixa da carroça. Embora as letras estivessem um pouco dispersas, podia-se
ler: Lin, sinto muito.
Mais lágrimas? Como era possível sentir mais compaixão, mais amor
do que ela já sentia? E, contudo, sentiu uma dor tão pungente enquanto lia a
mensagem como a que Theodore devia ter sentido ao escrevê-la. Passou os
dedos sobre a pintura raspada e o imaginou estendido sob a carroça derrubada
esculpindo as palavras, temeroso de morrer sem lhe pedir perdão por tê-la
magoado e rejeitado o filho deles. O amor transbordou, misturado com
tristeza, com desespero e esperança, uma combinação de emoções provocada
por aquela mão do destino que elegia uma vida e destruía outra.
Naquela noite, quando estava sentada junto ao leito, Teddy abriu os
olhos e ela viu, imediatamente, que ele estava lúcido.
— Linnea — chamou ele, quase como um grasnido, estendendo a mão.
Tomou sua mão, e os dedos dele se retorceram e a sacudiram. — Teddy...
Oh, Teddy!
— Venha aqui.
Linnea se sentou junto a ele.
— Não... dentro — disse ele.
Assim como ela estava, com suéter, avental e sapatos, enfiou-se sob as
mantas, onde estava quente e ele a esperava para abraçá-la, colocar uma
perna sobre o ventre dela e apertá-la como se ele fosse um náufrago e ela uma
sólida madeira.
— Sinto tanto, Linnea... tanto... não acreditei que...
— Shh.
— Deixe-me dizê-lo. Necessito falar.
— Mas já li o que esculpiu na carroça. Eu já sei, meu amor. Eu já sei...
— Pensei que morreria, e que você seguiria acreditando que eu não
queria a criança, mas quando estava deitado sob a carroça pensando que não
voltaria a vê-la, eu... convenci-me de que o bebê era um dom de Deus, e que
eu tinha sido muito teimoso para reconhecer isso. Oh, Lin, Lin... que tolo eu
fui...
Nenhum abraço lhe bastava, nem podia beijá-la com suficiente força
para lhe expressar tudo o que sentia. Mas ela o compreendeu bem quando o
marido colocou sua mão em seu ventre, onde sua semente crescia sã e forte.
— E pensei que você morreria na nevasca e que eu não teria
oportunidade de lhe dizer que eu já sabia que você não falava a sério. Mas
você está vivo... Oh, Teddy meu querido...
— É tão bom senti-la, é tão ardente, tão quente. Quanto frio eu senti
debaixo daquela carroça. Abrace-me, meu amor. Abrace-me.
Linnea o abraçou até que os tremores passassem. Por fim, ela
sussurrou: — Teddy, John...
— Eu já sei — disse com voz amortecida contra o peito da mulher. —
Sei.
Sacudiu-o uma convulsão, e depois suas mãos agarraram o suéter de
Linnea e a atraiu com força para ele, enquanto ela embalava sua cabeça, com
os lábios colados em seu cabelo. Ela não sabia o que dizer naquele momento,
e não o tentou. Deixou-o inalar seu corpo morno e vivo, agarrar-se a ele,
extrair forças dela, até que o pior tivesse passado. Quando, por fim, Theodore
falou, o fez pelos dois: — Se for um varão daremos a ele o nome de John.
Uma vida por outra. De certa forma encontraram consolo nesse
pensamento.
CAPÍTULO 24
ACONTECIMENTOS INESPERADOS E ESPERADOS
FIM!
FICHA CATALOGRÁFICA Copyright © 2021 by Pedrazul Editora Ltda.
Todos os direitos reservados à Pedrazul Editora.
Texto adaptado à nova ortografia da Língua Portuguesa, Decreto n° 6.583, de 29 de
setembro de 2008.
[1]. Rommegrot, também conhecido como Rommegraut e Römmegröt, é um mingau norueguês feito
com creme de leite, leite integral, farinha de trigo, manteiga e sal. (N.T.)
[2]. Espécie de planta com flores espinhosas e cores variadas, que crescem muito rápido e são
consideradas uma praga para a lavoura. (N.T.)
[3]. Rough Riders foi o Primeiro Regimento de Cavalaria Voluntária dos Estados Unidos durante a
Guerra Hispano-Estadounidense, criada em 1898 pelo então futuro presidente Theodore Roosevelt.
(N.T.)
[4]. Diapasão é um instrumento metálico em forma de forquilha, que serve para afinar instrumentos e
vozes através da vibração de um som musical de determinada altura. (N.T.)
[5]. Samuel Austin Worcester (1798 –1859), foi um missionário do Cherokee, tradutor da Bíblia,
impressor e defensor da soberania do Cherokee. (N.T.)
[6]. William Holmes McGuffey (1800 –1873), foi um professor universitário e presidente, mais
conhecido por escrever o McGuffey Readers, a primeira série amplamente usada de livros didáticos de
nível fundamental nos USA. (N.T.)
[7]. Manual de Geografia, combinado com História e Astronomia, de James Monteith. (N.T.)
[8]. Durante o verão de 1893, uma professora chamada Katherine Lee Bates teve uma visão que nunca
esqueceria. Como ela contou: “Um dia, alguns dos outros professores e eu decidimos fazer uma
viagem ao Pikes Peak, no Colorado. Alugamos uma carroça da pradaria. Perto do topo, tivemos que
deixar a carroça e seguir o resto do caminho em mulas. Eu estava muito cansada. Mas quando vi a
vista, senti uma grande alegria. Todas as maravilhas da América pareciam exibidas lá, com a extensão
como o mar”. (N.T.)
[9]. Cinta larga, de couro ou de tecido reforçado, que cinge a barriga das cavalgaduras para apertar a
sela ou a carga. (N.T.)
[10]. Ferrugento. (N.T.)
[11]. Martha Jane Canary-Burke (1852-1903), mais famosa pela alcunha de Calamity Jane, era uma
famosa mulher aventureira que viveu nos tempos do Velho Oeste nos Estados Unidos; uma guia ou
batedora profissional que lutou contra os ameríndios. (N.T.)
[12]. Casca da abóbora depois de seca. (N.T.)
[13]. Fiordes, situados principalmente na Noruega, são grandes canais marítimos entre altas
montanhas rochosas, originados pela erosão do gelo glacial. (N.T.)
[14]. Saskatchewan ou Sascachevão é uma das dez províncias do Canadá, parte das províncias das
pradarias está localizada no centro-oeste do Canadá, e essa é a única província sem fronteiras naturais.
(N.T.)
[15]. É um jogo de cartas com quatro participantes agrupados em dois pares. Os participantes se
revezam revelando os passos de uma jornada épica, com zeladores zelosos e até interesses amorosos
virtuosos. Para superar cada desafio, os jogadores usam cartas de cavalheirismo para realizar grandes
feitos, como matar gigantes assustadores ou duelar com seus rivais. O jogador que tiver realizado o
maior número de talentos até o final do jogo ganha. (N.T.)
[16]. Linie Aquavit é um licor norueguês com uma receita secreta de especiarias e sabor distinto. A
aguardente nórdica é amadurecida em tonéis de xerez oloroso e é uma bebida potente. (N.T.)
[17]. Aspic é um líquido utilizado na culinária na preparação de mousses e patês. É também utilizado
em forma de gelatina no consomê, que pode ser cortado em formas decorativas para guarnição. (N.T.)
[18]. Prato tradicional da Noruega feito à base de peixe branco seco e soda cáustica. (N.T.)
[19]. Pão norueguês semelhante na forma a uma tortilha mexicana, confeccionado com batata, leite ou
natas e farinha e assado numa chapa. (N.T.)
[20]. No idioma inglês há diferentes pronúncias das vogais. (N.T.)
[21]. No inglês beijo é Kiss. (N.T.).