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CAPÍTULO 1

UMA PROFESSORA?
CAPÍTULO 2
O DESPERTAR DE UMA PAIXÃO JUVENIL
CAPÍTULO 3
O NOVO LAR
CAPÍTULO 4
MELINDA
CAPÍTULO 5
O VALE DOS CARDOS
CAPÍTULO 6
O PRIMEIRO DIA DE AULA
CAPÍTULO 7
O SILÊNCIO DO FAZENDEIRO
CAPÍTULO 8
A DENSA NEBLINA
CAPÍTULO 9
IRRESISTÍVEL E DOCE ATRAÇÃO
CAPÍTULO 10
O FILHO DO MINISTRO
CAPÍTULO 11
A CHEGADA DOS DEBULHADORES E CONFIDÊNCIAS
CAPÍTULO 12
O PRIMEIRO BEIJO
CAPÍTULO 13
O BAILE NA ESCOLA
CAPÍTULO 14
JOGOS DE CARTA E DE AMOR
CAPÍTULO 15
O DIA DE AÇÃO DE GRAÇAS
CAPÍTULO 16
EU TE AMO!
CAPÍTULO 17
O PERFEITO CAVALHEIRO
CAPÍTULO 18
LAR É ONDE ESTÁ O CORAÇÃO
CAPÍTULO 19
UM PEDIDO
CAPÍTULO 20
O CASAMENTO
CAPÍTULO 21
KRISTIAN E PATRICIA
CAPÍTULO 22
A GRANDE NEVASCA
CAPÍTULO 23
UMA VIDA POR OUTRA
CAPÍTULO 24
ACONTECIMENTOS INESPERADOS E ESPERADOS
CAPÍTULO 25
ISABELLE LAWLER
CAPÍTULO 26
UMA NOVA VIDA
DESFECHO
JOHN WESTGAARD SOBRINHO
CAPÍTULO 1
UMA PROFESSORA?

Estados Unidos da América, ano de 1917.

Ela não estava adormecida, tampouco desperta. Linnea Brandonberg


sonhava acordada, um tipo de fantasia induzida pelo trepidar contínuo e
rítmico do barulho do trem. Sentada com decoro, ereta e com joelhos
alinhados, olhava frequentemente para seus pés no intuito de admirar os
sapatos mais bonitos que já vira, feitos de couro de cabra negro, que cobriam
não somente os pés, mas também uns quinze centímetros da panturrilha.
Tinham ponteiras, também de couro brilhantes e lisas. O espantoso era que
não possuíam fivelas nem laços, ajustando-se por meio de uma longa tira de
elástico que ia da metade da tíbia até o tornozelo. Era o primeiro par de
sapatos de salto alto que Linnea possuía e ela estava encantada, já que
acrescentava dois centímetros e meio à sua estatura e muito mais anos à sua
maturidade.
Assim ela esperava.
Perto dali, conduzindo uma elegante carruagem modelo Stanhope para
duas pessoas, puxada por dois reluzentes baios, seguia para a estação para
recebê-la um típico diretor de escola, porém de ótima aparência, daquele tipo
de tirar o fôlego. Assim que viu alguém que poderia ser ela, abordou-a: —
Senhorita Brandonberg? — perguntou e sua voz era rica e cativante, e um
sorriso deslumbrante iluminava o bonito rosto. Tirou o chapéu, deixando ver
um cabelo da cor do centeio ao entardecer.
— Senhor Dahl?
— Às suas ordens, senhorita. Estamos encantados em recebê-la. Por
fim está conosco. Como foi de viagem? Oh, por favor, me permita... levarei
sua mala!
Quando colocou as malas no bagageiro da carruagem, Linnea percebeu
quão bem se ajustava aos ombros bem formados a jaqueta preta do traje que
ele usava, e, quando se voltou para ajudá-la a subir, notou que ele usava um
colarinho de celuloide novo em honra à ocasião. Observou também que ele
tinha belas mãos, com longos e pálidos dedos que, de forma educada,
seguraram sua mão e ajudaram-na a subir.
— Agora se segure com cuidado — disse ele. — Senhorita
Brandonberg, à sua esquerda verá nosso teatro, nosso estabelecimento mais
novo, e espero que, na primeira oportunidade, possamos assistir juntos a uma
ópera — continuou; um chicote fino tocou suavemente os animais e eles
arrancaram. O cotovelo do homem roçava levemente o dela.
— Uma ópera! — exclamou, com feminina surpresa, apoiando com
delicadeza os dedos sobre o coração. — Nunca imaginei que aqui tivesse um
teatro de ópera!
— Uma aparência como a sua seria capaz de envergonhar as atrizes —
o sorriso do homem pareceu diminuir à luz do sol, enquanto examinava o
traje novo de lã que Linnea usava e seu primeiro chapéu de mulher. —
Espero que não me considere atrevido se lhe digo que tem um excelente bom
gosto ao se vestir, Senhorita Brandonberg.
— Senhorita Brandonberg? — Linnea retornou de seu mundo dos
sonhos pelo suave toque em seu ombro e pela voz do condutor.
— A próxima parada é em Álamo, Dakota do Norte.
— Oh, obrigada! — a moça aprumou-se e lhe ofereceu um sorriso.
O idoso levou a mão à viseira da boina azul, saudou-a com a cabeça e
seguiu pelo corredor do trem. Lá fora a pradaria tremulava, vasta e plana.
Linnea olhou pela janela e não viu sinal de nenhuma cidade. O trem diminuiu
a velocidade, soou o apito, e, em seguida, só se ouvia o estalo contínuo de
aço sobre os trilhos também de aço. O coração de Linnea bateu forte, ansioso,
e dessa vez não foi um sonho quando ela apoiou sua mão sobre ele. Logo
veria esse lugar que só fora, até então, um nome no mapa; logo conheceria as
pessoas que se converteriam em parte de sua vida cotidiana, como alunos,
amigos e, possivelmente, confidentes. Cada novo rosto com que topasse seria
o de um desconhecido e, pela centésima vez, desejou ter conhecido alguém
de Álamo, mesmo que fosse só uma pessoa. Mas ela disse para si mesma que
não havia nada para assustar. Que era só o nervosismo da expectativa. Passou
uma mão pela nuca, ajeitando o penteado que ainda não tinha habilidade para
fazer. Aparentemente, dentro do coque em forma de meia lua, a presilha
havia se soltado. Colocou vários grampos com dedos trêmulos, prendeu o
alfinete do chapéu, alisou a saia e olhou os sapatos para conseguir uma dose
extra de confiança, no preciso momento em que o trem lançava uma última
lufada e parava. Estremeceu.
— Mas onde está a cidade?
Arrastando a mala pelo corredor, ela olhou pelas janelas e não viu mais
que uma habitual estação de um povoado perdido. Viu uma precária
construção de madeira com janelas estreitas de ambos os lados da porta
dando para a plataforma, cuja frente apoiava-se sobre quatro mourões.
Enquanto emergia das poeirentas profundidades do vagão de passageiros para
o luminoso sol de outono, sentindo o rangido dos degraus de metal sob seus
saltos novos, ela examinou o local mais uma vez. Olhou ao redor, procurando
avistar alguém que se parecesse com um diretor de escola e descobriu uma
única pessoa, um homem de pé à sombra da galeria da estação. Linnea
sufocou sua decepção. A julgar por seu modo de vestir, não era ele quem ela
procurava, embora pudesse ser pai de algum de seus futuros alunos. Só por
causa desse pensamento, dedicou-lhe um sorriso, mas o homem permaneceu
como estava, com as mãos na jaqueta de trabalho listrada e um chapéu de
palha manchado de suor na cabeça.
Fingindo um ar confiante, cruzou a plataforma e entrou, mas só
encontrou o vendedor de passagens atrás de seu guichê gradeado, ocupado
em telegrafar uma mensagem.
— Desculpe-me, senhor — ela o abordou.
O homem se voltou, levantou o visor de celuloide verde e sorriu: —
Pois não, senhorita, O que deseja?
— Devo me encontrar aqui com Frederic Dahl. Conhece-o?
— Sei quem é, mas não o vi por aqui hoje. Sente-se, sem dúvida ele
logo chegará.
O estômago da moça se encolheu. O que farei agora? Pensou.
Como estava muito nervosa para permanecer sentada, decidiu esperar
do lado de fora. Instalou-se no lado oposto da galeria onde estava o
fazendeiro. Deixou a mala no chão e esperou. Os minutos passavam
rapidamente e não chegava ninguém. Ela olhou para o desconhecido e o
surpreendeu observando-a. Incomodada com o olhar dele, voltou sua atenção
para o trem que bufava e uivava, jogando jorros de vapor a cada exalação.
Dava a impressão de que demoraria muito tempo para entrar em movimento
outra vez. Aventurou-se a dar outra olhada no homem, mas, assim que o fez,
viu que ele olhava fixamente para a porta do trem, como se aguardasse a
chegada de algum retardatário.
Theodore Westgaard observava os degraus do trem, esperando que
descesse o novo professor, mas já haviam se passado três minutos e a única
pessoa que descera fora uma moça magra, que fingia ser mais velha com os
sapatos e o chapéu da mãe. Ela atraiu seu olhar pela segunda vez, mas
quando a moça o olhou de novo, ele se sentiu importunado e voltou sua
atenção para a porta do trem.
Vamos, Brandonberg, apareça, que tenho que trabalhar na colheita.
Pensou Theodore. Tirou um relógio do bolso da frente, olhou a hora e moveu
os pés de forma impaciente. A moça o olhou outra vez, mas, assim que seus
olhares se cruzaram, Linnea desviou os olhos novamente para o trem. Com as
mãos cruzadas sobre um casaco que dobrara sob um dos braços, tentava
mostrar uma confiança que há vários minutos se esvaíra.
Theodore examinou-a de forma dissimulada. Supôs que ela teria uns
dezesseis anos, que estava atemorizada com a própria sombra e que pretendia
que ninguém percebesse isso. Apesar daquele ridículo chapéu com penas de
pássaro na aba e do fato de que ainda deveria usar tranças e sapatos de salto
baixo, ele tinha que admitir que era linda. Para sua surpresa, ninguém mais
desceu do trem. O condutor levantou a escada portátil, colocou-a dentro do
trem e agitou um braço em direção ao maquinista. Os vagões começaram a
chiar por todo o comprimento do trem, que, lentamente, gemeu voltando à
vida, deixando um silêncio ainda mais intenso, só quebrado pelo zumbir de
uma mosca sobre o nariz da mocinha. Ela a espantou com a mão e não fez
caso da presença de Theodore Westgaard, que esbravejava por ter feito uma
viagem inútil ao povoado. Tirou o chapéu, coçou a cabeça e o pôs
novamente, baixando a aba sobre os olhos e soltando uma série de
impropérios para si mesmo. Estas pessoas da cidade não tinham ideia do
valor que um cultivador de trigo dava a cada hora de luz diurna naquela
época do ano. Irritado, ele entrou na pequena estação pisando com força.
— Cleavon, se esse moleque chegar no próximo trem, diga para ele
que... Oh, diabos, não lhe diga nada! Terei que esperar pelo maldito.
Em Álamo não havia estábulo, tampouco cavalos de aluguel. Como o
novo professor faria para chegar à fazenda?
Quando Theodore saiu outra vez, a moça estava de frente para ele, com
os ombros rígidos e uma expressão assustada. As mãos seguiam agarrando o
casaco e ela abriu a boca como se fosse falar, mas a fechou de novo, engoliu
em seco e virou-se. Embora não fosse próprio dele falar com garotas
desconhecidas, a moça lhe pareceu assustada, pronta a cair em prantos, e ele
parou para perguntar: — Alguém vem buscá-la?
Linnea se voltou para ele com um gesto quase desesperado: — Sim,
mas aparentemente se atrasou.
— Sim, aconteceu o mesmo com o sujeito que vim buscar aqui. O
nome dele é L. I. Brandonberg.
— Oh, graças a Deus! — ela suspirou, recuperando o sorriso. — Sou a
senhorita Brandonberg.
— Você?! — uma expressão carrancuda da parte dele respondeu ao
sorriso dela.
— Não pode ser. L. I. Brandonberg é um homem!
— Não é um... quero dizer, não sou um homem — ela riu, nervosa, e
depois, recordando as boas maneiras, estendeu-lhe a mão. — Meu nome é
Linnea Irene Brandonberg e, como pode ver, sou uma mulher.
Ouvindo-a, o homem deu uma rápida olhada no chapéu e no cabelo da
moça e lançou um bufo desdenhoso. Linnea sentiu que corava, mas manteve
a mão estendida e perguntou: — A quem tenho o prazer de me dirigir?
Sem aceitar a mão, o homem respondeu com rudeza: — Meu
sobrenome é Westgaard... e não pretendo aceitar nenhuma mulher em minha
casa! O conselho de nossa escola contratou um tal de L. I. Brandonberg
acreditando que era um homem.
Então este era Theodore Westgaard, em cuja casa ela se hospedaria.
Desalentada, baixou a mão que o homem seguia ignorando.
— Lamento que tenha tido essa impressão, senhor Westgaard,
asseguro-lhe que não era minha intenção enganar ninguém.
— Ora! Que tipo de mulher anda por aí fazendo-se chamar de L. I.
Brandonberg?
— Existe alguma lei que proíba as mulheres de usarem suas iniciais na
assinatura legal? — perguntou, rígida.
— Não, mas deveria existir! Sendo você uma moça da cidade, devia ter
adivinhado que o conselho escolar teria preferido um homem a uma mulher e
se dispôs a confundi-los.
— Não fiz nada disso! Assino sempre...
Mas Theodore a interrompeu de forma grosseira.
— Ensinar em uma escola desta região não é só riscar números em uma
lousa, menina. Terá que caminhar mais de um quilômetro e meio, acender o
fogo e tirar a neve. E aqui os invernos são duros! Não terei tempo de atrelar
os cavalos para transportar uma flor de estufa para a escola quando estiver
trinta graus abaixo de zero e o vento do Noroeste chegar uivando e trazendo
neve!
— Não pedirei que faça isso — ela já estava furiosa e seu semblante
expressava intenso desagrado. Como se atreviam a mandar aquele tipo de
homem para recebê-la?
— Não sou nenhuma flor de estufa!
— Ah, não?
Ele a mediu de cima a baixo, avaliando-a, perguntando-se como uma
pequena como aquela suportaria que o vento do Noroeste, vindo desde o
Alasca, esbofeteasse-lhe o rosto e a neve lhe ferroasse tão forte que não
conseguiria distinguir o calor do frio em sua testa.
— Diabos! — resmungou Theodore Westgaard, aborrecido. — Isso não
muda o fato de que não quero nenhuma mulher vivendo em minha casa.
Ele pronunciou a palavra mulher com o mesmo desdém com que um
vaqueiro se dirigia a uma serpente ou cascavel.
— Então me alojarei na casa de qualquer outra pessoa.
— E de quem?
— Eu... não sei, mas falarei com o Senhor Dahl a respeito.
O homem lançou outro bufo desdenhoso e Linnea ficou com vontade
de lhe socar o nariz.
— Não há nenhuma outra casa disponível. Sempre alojamos os
professores em nossa casa. É assim porque nossa casa é a que fica mais perto
da escola. O único que também vive perto é meu irmão John e, como é
solteiro, sua casa está fora de cogitação.
— Então o que propõe fazer comigo, senhor Westgaard? Deixar-me na
escada da estação?
Olhando-a por baixo da aba do chapéu de palha, a boca do homem se
franziu como um morango seco e as sobrancelhas uniram-se em severa
recriminação.
— Não permitirei que nenhuma mulher viva sob meu teto — afirmou
ele, cruzando os braços em teimosia.
— Perfeitamente. Mas, se não for em sua casa, é melhor que me leve à
casa de alguém menos intolerante que você. Certamente serei mais que feliz
morando sob o teto dessa outra pessoa; a não ser que queira que eu leve isso a
juízo.
A que se devia isso? Ela não tinha nem a mais remota ideia de como
processar alguém, mas precisava pensar em algo para pôr esse caipira inculto
em seu devido lugar!
— Em juízo?! — Westgaard descruzou os braços. Não lhe tinha
escapado a palavra intolerante, mas a pequena insolente lhe lançava ameaças
e insultos com tanta velocidade que ele precisava detê-los um a um.
Linnea ergueu os ombros e tratou de impressioná-lo como uma mulher
vivida e audaz.
— Tenho um contrato, Senhor Westgaard. E nele se determina que o
alojamento e a pensão estejam incluídos como parte de meu salário anual. E
mais, meu pai é advogado em Fargo, de modo que, para mim, o custo legal
seria ínfimo se eu decidisse abrir um processo contra o conselho escolar de
Álamo por quebrar o contrato e por designar você como...
— Está bem, está bem! — ele levantou as mãos grandes e endurecidas.
— Já pode deixar de ladrar, menina. Eu a deixarei na casa de Oscar Knutson
para que ele faça o que quiser com você. Como ele quer ser presidente do
conselho escolar, deixemos que se dane.
— Sou a Senhorita Brandonberg, não uma menina! — para deixar
escapar sua exasperação, Linnea deu uma breve palmada na saia.
— Sim, bom momento para esclarecer isso — ele se voltou para a
carroça e o cavalo que os esperavam, deixando-a resmungar em silêncio.
Deixar-me na casa de Oscar Knutson, céus...
A realidade caiu como uma pedra gelada sobre ela e seus românticos
sonhos. Não havia nenhuma carruagem Stanhope, nem baios puro-sangue.
Em troca, Westgaard a levou até uma carroça de granjeiro em que estavam
atrelados um par de animais troncudos, bastante velhos, e subiu sem lhe
oferecer a mão. Linnea não teve alternativa a não ser alojar-se por conta
própria na parte de trás. Para isso, teve que erguer as saias e subir sozinha no
assento, que ficava na altura de seu ombro. Justo ela que estava acostumada a
andar com os cavalheiros de chapéus altos! Este grosseirão não saberia o que
fazer com um chapéu de castor de copa alta, mesmo que este castor saltasse
sobre ele e lhe mordesse o enorme nariz! Que audácia do sujeito, tratá-la
como se ela fosse... como se ela fosse... menos que nada! Ela, que tinha
obtido com tanto esforço o título de professora na Escola Normal de Fargo!
Ela, com educação superior, enquanto ele devia ser incapaz de juntar duas
palavras sem parecer um asno ignorante...
A desilusão de Linnea seguiu até que o homem sacudiu as rédeas e
ordenou: — Arre!
Os pesados cavalos os conduziram através de um dos povoados mais
desoladores que ela já vira na vida. Teatro de ópera? Tinha acolhido a
fantasia de uma ópera? Aparentemente, o estabelecimento mais próximo de
um espaço cultural que havia no povoado era o armazém de mantimentos
gerais, que servia, ao mesmo tempo, de correio. Ali, sem dúvida, a cultura
chegaria sob a forma do catálogo da Sears Roebuck, loja de departamentos
sediada em Chicago, no estado de Illinois, fundada por Richard Sears e Alvah
Roebuck no final do século XIX. Era isso que chegava a todo canto daquele
país. Os edifícios mais impressionantes eram os silos de cereais que se viam
junto aos trilhos da ferrovia. Outros eram pequenos cubículos com falsas
fachadas, e estes, por sua vez, eram escassos. Linnea contou dois
fornecedores de ferramentas agrícolas, dois bares, um modesto restaurante, o
armazém de mantimentos gerais, um hotel, um banco e uma combinação de
barbearia e farmácia.
Seu estado de ânimo piorou. Westgaard olhava sério para a frente,
sustentando as rédeas com mãos de dedos parecidos com salsichas polonesas,
a pele igual à de um velho aborígine, tão diferente dos brancos dedos que ela
havia imaginado. Não olhava para ela, e ela, embora tenha olhado aquelas
ásperas mãos bronzeadas, fazia de tudo para não olhar para ele. Logo depois,
Linnea percebeu que o homem olhava com desdém para seus sapatos de salto
alto. Notou como se inclinou para a frente e, com o cenho franzido debaixo
daquele chapéu espantoso, media-os como se fossem as botas do próprio
capeta. Ela, assim como ele, sentava-se ereta como uma lança e contemplava
tudo com um ar suscetível por baixo daquelas ridículas penas de pássaro.
Linnea pensava em quão horrível era ficar velho e irritável.
Theodore pensava no quanto podiam ser tolas as pessoas jovens...
sempre tentando aparentar mais idade. Mas nenhum dos dois pronunciou uma
palavra. Andaram vários quilômetros para o oeste, depois viraram em direção
ao sul e a paisagem sempre era a mesma: plana, dourada e ondulante, exceto
quando passaram pelas debulhadoras. Ali, era plana, dourada e quieta.
Ao fim de meia hora de viagem, Westgaard entrou no pátio de uma
fazenda idêntica a todas por onde passaram: uma casa de madeira,
envelhecida pela inclemência do tempo, uma fila de álamos que ofereciam
amparo do vento do lado oeste, embora as árvores não estivessem totalmente
crescidas e se inclinassem um pouco em direção ao sul; um barracão de
melhor aspecto que a casa; celeiros retangulares; silos hexagonais e o único
elemento de aspecto amistoso que dominava todos os outros: o moinho de
vento, que girava lentamente, emitindo um baixo rangido.
Uma mulher apareceu à porta e acomodou uma mecha de cabelo no
coque que usava na nuca. Ergueu uma mão em saudação e esboçou um amplo
sorriso: — Theodore! — exclamou, descendo os dois degraus de madeira e
cruzando o caminho gramado, tão dourado como os campos ao redor. — Olá!
Quem você está trazendo? Acreditei que tivesse ido ao povoado para buscar o
novo professor.
— É este, Hilda. E usa saltos altos e chapéu com penas de pássaro.
Linnea se enfureceu. Como ele se atrevia a zombar de seu traje! Hilda
parou junto à carroça e olhou, com o cenho franzido, primeiro para Theodore,
depois para Linnea.
— É este?! — ela protegeu os olhos com a mão e olhou de novo. Deu-
lhe um tapinha, retraiu o queixo e sorriu com áspero humor.
— Oh, Theodore, está zombando de nós, hein?
Westgaard apontou sua passageira com o polegar.
— Não, foi ela quem zombou da gente. Ela é L. I. Brandonberg.
Antes que Hilda Knutson pudesse responder, Linnea se inclinou e lhe
estendeu a mão, outra vez irritada pela grosseria de Westgaard, que não a
apresentava como era devido.
— Muito prazer. Sou Linnea Irene Brandonberg.
A mulher aceitou a mão, embora sem entender por quê.
— Uma mulher! — exclamou novamente, perplexa. — Oscar contratou
uma mulher?
Ao seu lado, Westgaard lançou uma exclamação desdenhosa.
— Acredito que Oscar contratou uma garota vestida com a roupa da
mãe, fazendo-se passar por mulher. Ela não ficará em minha casa.
Hilda ficou séria.
— Vamos, Theodore. Você sempre alojou os professores. Quem mais a
receberá?
— Não sei, mas eu não receberei. Por isso quero falar com o Oscar.
Onde ele está? — Westgaard perscrutou o horizonte.
— Não sei com exatidão. Ele começou com o centeio no lado oeste
nesta manhã, mas é difícil saber onde está neste momento. Se for naquela
direção, talvez o encontre pelo caminho.
— Farei isso, mas a deixarei aqui. Ela não irá para minha casa, então
pode ficar aqui, com você, até que consiga encontrar outro lugar para ela.
— Aqui? — Hilda levou as mãos ao peito. — Mas eu não tenho quartos
desocupados, bem sabe. Não ficaria bem colocar a professora com os
meninos. Leve-a com você, Theodore.
— Não, senhora. Não quero nenhuma mulher em minha casa.
Linnea estava indignada. Como se atreviam a tratá-la como se fosse um
urinol que ninguém queria limpar?
— Basta! — gritou, fechando os olhos e levantando as mãos como um
policial. — Leve-me novamente para o povoado. Se não me querem aqui,
ficarei encantada em pegar o próximo tr...
— Você não pode fazer isso! Olhe o que fez, Theodore. Feriu os
sentimentos dela.
— Eu?! Oscar foi quem a contratou! Oscar foi quem nos disse que era
um homem!
— Bom, então fale com Oscar! — Hilda ergueu as mãos, chateada, e
depois, recordando as regras da cortesia, estreitou a mão de Linnea outra vez
e lhe deu uns tapinhas nas costas de uma das mãos.
— Não ligue para o que Theodore diz, ele encontrará um lugar para
você. O que acontece é que ele está preocupado, porque está perdendo tempo
e deveria estar nos campos, agora que o trigo está amadurecido. Bom,
Theodore — ordenou Hilda, voltando-se para a casa —, ocupe-se desta
jovem, como se comprometeu a fazer! — depois de dizer isso, apressou-se a
entrar.
Derrotado, não restou a Theodore alternativa a não ser empreender uma
busca por Oscar, levando junto com ele a garota, embora não quisesse. Como
acontecia com quase todas as fazendas de Dakota, a de Knutson era imensa.
Viam o horizonte por cima dos campos de trigo, de aveia e de centeio
enquanto avançavam pelo caminho de cascalho, mas não havia rastros de
outros trabalhadores e nem de Oscar. Muito alto, Westgaard esquadrinhava
esse oceano de ouro com o cenho franzido, tentando divisar algum
movimento no limite mais longínquo, mas a única coisa que se movia eram
as espigas e um bando de corvos vociferadores que voavam sobre suas
cabeças para depois aterrissar sobre a aveia.
A carroça chegou diante de um campo ceifado, com a colheita
empilhada até onde a vista alcançava. O cereal secava ao sol e enchia o ar
faiscante de uma doce fragrância. Com um sutil movimento das rédeas,
Westgaard fez virar os cavalos e passaram do caminho de cascalho a um
atalho repleto de ervas que atravessava o campo ceifado. O atalho era
irregular, pois era destinado principalmente a oferecer acesso aos campos.
Quando a carroça sacudiu, Linnea segurou o chapéu, que ameaçava cair.
Westgaard lhe lançou um olhar de soslaio e sua boca esboçou um breve
meio-sorriso, mas a jovem, que tinha o queixo baixo enquanto tentava voltar
a acomodar o alfinete do chapéu para prender o horrível objeto, não viu.
Balançando-se e sacudindo-se pelo atalho, chegaram a uma pequena elevação
do terreno, e Westgaard cantarolou: — Sooo!
Obedientes, os cavalos se detiveram e os viajantes pousaram a vista na
interminável extensão de centeio colhido de Oscar Knutson, a quem não se
via por nenhuma parte. Segurando as rédeas com uma mão, Westgaard tirou
o chapéu e coçou a cabeça com a outra, balbuciou algo em voz baixa e voltou
a colocar o chapéu com um gesto irritado. Coube agora a Linnea rir do
homem.
Alegro-me por isso, este grosseirão tem o que merece! Pensou. Como
não aceitou ficar comigo, agora tem que me tolerar, goste ou não.
— Terá que ir para minha casa até que eu consiga esclarecer isto —
lamentou Westgaard, estalando as rédeas e fazendo os cavalos virarem.
— Sim.
Theodore lhe lançou um olhar de suspeita, inquisitivo, mas a moça,
olhando adiante, estava sentada rígida e recatada sobre o assento da carroça.
Seu ridículo chapéu estava um pouco inclinado. Theodore sorriu para si
mesmo.
Eles arrancaram rumo ao sul, depois a oeste. Por todos os lados se
ouvia o som sibilante do grão seco. As pesadas cabeças das espigas se
elevavam em um momento para o céu, para depois, com seu próprio peso,
fazer reverências. Linnea e Theodore só se falaram três vezes. Já fazia quase
uma hora que viajavam quando a garota perguntou: — Senhor Westgaard, a
que distância de Álamo você vive?
— A trinta e dois quilômetros — ele respondeu.
Depois disso, tudo foi silêncio e a única coisa que se ouvia era o
chilrear dos pássaros, os grãos e o ritmo compassado dos cascos dos cavalos.
Em três ocasiões, viram máquinas colheitadeiras que se moviam ao longe,
puxadas por cavalos que pareciam minúsculos a essa distância, as cabeças
baixas, concentrados no trabalho. Linnea voltou a romper outra vez o silêncio
quando, à direita, apareceu uma construção que outrora foi branca e que tinha
um campanário. Com o olhar ansioso, tratou de captar a maior quantidade de
detalhes possíveis: longas janelas estreitas, degraus de cimento, um pátio
plano com um bosque de álamos e a bomba. Mas Westgaard não afrouxava a
marcha da parelha, que seguia sem interrupções, e ela, agarrando o lado da
carroça, esticou o pescoço para conseguir ver tudo o que queria, enquanto a
construção se afastava para trás com muita velocidade. Virou-se para
enfrentá-lo e perguntou: — Aquela é a escola?
Sem tirar a vista das orelhas dos cavalos, ele resmungou: — Sim.
Que tipo intratável e teimoso! Apertou os punhos no colo, furiosa.
— Bom, poderia ter me dito!
O homem voltou os olhos para ela e, com um sorriso sardônico nos
lábios, disse, arrastando as palavras: — Não sou guia de turismo.
Embora a raiva tenha chegado perto do ponto de ebulição, Linnea
manteve a boca fechada e guardou as réplicas.
Seguiram avançando um pouco mais pelo caminho e, quando passaram
diante de uma fazenda, Theodore se dispôs a exasperá-la ainda mais: — Esta
é a propriedade do meu irmão John.
— Que maravilha! — replicou, sarcástica, sem olhar.
Nem dez minutos se passaram desde que divisaram a escola quando
entraram em um caminho curvo que, supostamente, dava na propriedade de
Westgaard... embora este não tenha se incomodado em comunicar-lhe o fato.
O lado norte estava protegido por uma longa fileira de antigas árvores e uma
fila paralela de densos arbustos que formavam um muro verde ininterrupto.
Ao rodear o muro, a fazenda apareceu diante dela. A casa estava situada à
esquerda, em um trecho ondulado formado pelo caminho. Todas as demais
construções, parecendo armazéns, estavam à direita. Entre elas, um moinho
de vento e um tanque de água, localizado entre um enorme barracão
castigado pelo tempo e um punhado de outras construções que, conforme
deduziu Linnea, deviam ser celeiros e galinheiros. A casa de madeira era de
dois andares e necessitava de reparos, igual a todas as casas que ela vira pelo
caminho. Aparentemente, algum dia fora pintada de branco, embora, no
momento tivesse uma cor cinzenta, com uma ou outra parte de branco
surgindo aqui e acolá como lembrança de melhores tempos. Não havia
varanda nem corrimão que aliviasse o aspecto de caixa da casa, nem um
beiral que sombreasse as janelas, protegendo-as do sol da pradaria. A porta,
colocada no centro, era separada por duas janelas estreitas que lhe conferiam
a aparência de um rosto com a boca aberta para os extensos campos de trigo
que a rodeavam.
— Bom, é aqui — anunciou Westgaard sem se apressar, enquanto se
inclinava para a frente a fim de atar as rédeas ao cabo do freio.
Apoiando as mãos sobre o assento e o piso, ele saltou pelo lado e, não
fosse nesse momento ouvir-se uma voz imperiosa que chegava da casa, teria
deixado que Linnea fizesse o mesmo: — Teddy! Que maneiras são essas?
Ajude a jovem a descer!
Teddy? Pensou Linnea, divertida. Teddy?
Uma mulher minúscula, que parecia um redemoinho, avançou pelo
caminho que saía da porta da cozinha, com o encaracolado cabelo cinza preso
na nuca e uns óculos ovalados de armação metálica presos atrás das orelhas.
Ela moveu um dedo num gesto de recriminação. Theodore Westgaard,
obediente, mudou de rumo na metade do caminho, voltou à carroça e lhe
estendeu a mão, embora com uma expressão de mártir. Linnea pôs a mão na
dele e, enquanto descia, não pôde resistir à tentação de zombar dele com sua
voz doce: — Oh, obrigada, senhor Westgaard, foi muito amável de sua parte.
Ele soltou a mão imediatamente, e a mulher mandona se reuniu a eles.
Era tão baixa que fazia Linnea se sentir gigante, e ela media pouco mais de
um metro e meio. Seu nariz era do tamanho de um dedal, tinha uns opacos
olhos castanhos a que nada escapava, e lábios retos e estreitos como uma
folha de salgueiro. Com o queixo diminuto projetado para a frente, balançava
os braços quase com violência. Embora tivesse as costas um tanto
encurvadas, dava a impressão de que se inclinava para a frente a cada passo e
com grande pressa. O que lhe faltava em estatura sobrava em energia. Assim
que abriu a boca, Linnea soube que ela não era de rodeios.
— Então este é o novo professor. Não me parece um homem! — pegou
a moça pelos braços, segurou-a e a inspecionou da saia ao chapéu,
aprovando-a com uma sacudida de cabeça.
— Servirá — virou-se para Westgaard, perguntando: — O que
aconteceu com o sujeito?
— É ela — respondeu o homem, sem se alterar.
A mulher deixou escapar um chiado de risada e concluiu: — Bom, não
me haviam falado.
De repente ficou séria, esticou uma mão e estreitou com energia a de
Linnea.
— Você é justamente o que este lugar precisa, não faça caso deste meu
filho. Eu devia ter lhe ensinado melhores maneiras. Como não se deu ao
trabalho de nos apresentar, sou a mãe dele, a senhora Westgaard. Chame-me
de Nissa — a mão dela era ossuda, o aperto de mão, porém, era forte.
— Sou Linnea Brandonberg. Chame-me de Linnea.
— Então, Li-nem-a, hein? — ela pronunciou o nome à antiga maneira
camponesa. — Bom nome norueguês.
Sorriram uma para a outra, embora não por muito tempo. Linnea
começava a perceber que Nissa Westgaard não ficava parada por muito
tempo. Movia-se como um pardal, com gestos bruscos e econômicos.
— Entre — ela avançou pelo atalho, vociferando para o filho: — Bem,
não fique aí parado, Teddy, traga as coisas dela!
— Ela não ficará — murmurou o homem. Linnea pensou: Lá vai ele
outra vez com isso! Mas desta vez uma surpresa esperava por ela: Nissa
Westgaard se virou e bateu no filho do lado do pescoço com surpreendente
força.
— Como que não ficará?! Claro que ficará: portanto, tire essa ideia da
cabeça. Sei o que está pensando, mas essa garota é a nova professora e será
melhor que comece a vigiar suas maneiras para com ela ou terá que cozinhar
e lavar seus panos! Já sabe que a qualquer momento posso ir viver com o
John!
Linnea cobriu a boca com a mão para ocultar o riso. Era como ver um
galo pigmeu desafiando um urso. O alto da cabeça de Nissa só chegava até a
axila do filho, mas ela o esmurrava e ele não replicava. Ficou vermelho como
uma beterraba e esticou o queixo. Mas, antes que pudesse presenciar por mais
tempo a vergonha do homem, o galo anão deu a volta, segurou-a pelo braço e
a fez seguir avançando pelo caminho.
— Cabeça-dura, insuportável! — murmurou a mulherzinha. — Viveu
muito tempo sem uma mulher e isso o incapacita para a companhia humana.
Linnea teve vontade de dizer: Estou totalmente de acordo, mas lhe
pareceu mais prudente morder a língua. Também pensou que Nissa era uma
mulher, mas, aparentemente, nessa região não ter uma “mulher” na casa
significava viver com a mãe. Nissa a fez passar pela porta traseira, que estava
aberta, e entraram em uma cozinha que cheirava a vinagre.
— Não é grande coisa, mas é quente e seca e como só vivem aqui três
dos Westgaard, terá um quarto para você sozinha, o que é mais do que teria
tido em qualquer outro lugar.
Linnea virou, surpreendida: — São três?
— Ele não lhe falou de Kristian?
Um pouco desorientada pela velocidade e pelo tom autoritário da
mulher, Linnea limitou-se a mover a cabeça.
— O que acontece com este homem! Kristian é seu filho, meu neto.
Está lá fora, ceifando o trigo. Virá na hora do jantar.
Linnea olhou ao redor, em busca do elo perdido: a esposa, a mãe, mas
não viu ninguém. Evidentemente, tampouco lhe explicariam por quê.
— Esta é a cozinha. Espero que não repare na desordem. Estive
fazendo conservas de melão.
Em uma grande mesa redonda de carvalho, com uma perna central,
alinhados como soldados, havia uns frascos de vidro, mas Linnea quase não
teve tempo de olhar, já que a mulher seguiu avançando de um aposento ao
outro.
— Esta é a sala da frente. Eu durmo ali — assinalou a única porta que
se abria no recinto.
— E esse é o quarto do Teddy. O seu e o de Kristian estão no andar de
cima.
Conduziu-a para a cozinha e, enquanto passavam pela porta que levava
ao andar de cima, Linnea avistou Theodore, que entrava com sua mala.
Voltou-lhe as costas e seguiu a mulher para o andar de cima, com uma escada
bastante inclinada e estreita. Acima havia um patamar pequeno, que se abria à
direita e à esquerda para portas iguais. O quarto destinado à jovem era o da
direita. Nissa abriu a porta e entrou antes dela. Era o quarto mais rústico que
Linnea já tinha visto. Não havia nada firmando as paredes, porque não havia
paredes, a não ser o teto que formava um ângulo muito agudo da cobertura no
centro até os limites externos do quarto. Embaixo se viam perfeitamente os
caibros, vigas e o teto, posto que não eram cobertos por gesso ou
revestimento algum. As únicas paredes verticais eram as duas triangulares
que formavam os lados do quarto que, assim como o teto, careciam de
acabamento. Em frente à porta, olhando para o Leste, havia uma janela
pequena de quatro painéis com cortinas de renda branca, presas ao tosco
marco de madeira. A essa hora, por volta do fim da tarde, a luz que entrava
pelos vidros era escassa, mas, do diminuto patamar, o sol jorrava em torrentes
pela janela, esquentando um pouco o aposento.
O piso era coberto por um linóleo com sóbrios desenhos de grandes
flores rosadas sobre um fundo verde-escuro. Não chegava até o contorno do
quarto, mas deixava um longo pedaço de tábuas nuas. À direita da porta, sob
o ângulo do teto, havia uma cama de solteiro, de estrutura metálica pintada de
branco e coberta com uma colcha de um rosa intenso. A seus pés, havia uma
manta de retalhos dobrada e, ao lado, sobre o linóleo, um tapete feito à mão,
trançado sobre uma trama verde. Junto à cama, sobre uma mesa quadrada de
pernas torneadas, havia uma lamparina de óleo no centro de uma toalha de
mesa de crochê branco. Contra o ângulo oposto do teto, uma cômoda alta,
coberta com um caminho bordado de algodão branco, rodeado de renda, feito
à mão. No canto que ficava à esquerda da porta, aparecia da cozinha o tubo
negro do aquecedor, que se perdia atrás da cama. No outro lado, junto à
janela, sobre um pedestal baixo, havia uma jarra e uma bacia. E, na parte de
baixo, uma comporta que, sem dúvida, ocultava um “serviço para a noite”.
Na parede, junto ao lavatório, estava pendurado um espelho emoldurado em
latão, com uma barra encostada da qual pendurava uma grande toalha branca.
Junto à minúscula janela, uma enorme cadeira de balanço de carvalho, com
almofadões de percal verde e rosado no assento e no encosto.
O olhar de Linnea pousou nas ásperas vigas do teto e procurou sufocar
o desencanto. O quarto que tinha em sua casa estava decorado com papel
florido e tinha duas grandes janelas que davam para dois lugares diferentes. A
cada primavera, seu pai dava uma demão de tinta marfim no revestimento de
madeira e envernizava os pisos de carvalho para lhes dar um brilho
permanente. Em seu lar, de uma grande lareira vinha uma corrente constante
de calor e o corredor levava a um quarto de banho recém-instalado, com água
corrente. Ela contemplou o sótão escuro, de teto tosco, e procurou algo que o
tornasse agradável. As toalhas de mesa brancas, impecáveis, sem dúvida
estavam engomadas com grande cuidado, e Linnea percorreu com a vista o
tapete trançado à mão, o chão de linóleo que, aparentemente, tinha sido
colocado em honra do novo professor. E viu que Nissa, ao seu lado, esperava
algum gesto de aprovação.
— É... grande!
— Sim, é grande, mas, de todos os modos, você baterá com a cabeça
contra essas madeiras.
— É muito maior que o quarto que tenho em minha casa, que, além
disso, tenho que compartilhar com minhas duas irmãs — se alguma vez
Linnea quis ser atriz, este era o momento. Dissimulando a decepção, ela
cruzou o quarto, olhando por sobre o ombro. — Incomoda-se se eu provar
isto?
Nissa cruzou as mãos sobre o ventre, com ar agradado, observando
quando a jovem se sentou na cadeira acolchoada e se balançou, levantando os
pés no ar. Para aumentar o efeito, ela lançou uma breve gargalhada, acariciou
os braços curvos da cadeira e disse com apreciável sinceridade: — Em minha
casa, como somos três em um quarto, não fica espaço para cadeiras de
balanço — ela apontou com o queixo para a minúscula janela, como se
estivesse feliz.
— Não sei o que farei com tanto espaço para mim sozinha! — e
estendeu os braços.
Quando desceram as escadas, a mulher estava radiante de orgulho. A
cozinha estava vazia, mas Theodore tinha deixado a mala junto à porta. Ao
olhá-la, Linnea sentiu que a decepção se renovava: ele não tinha tido, sequer,
a cortesia de se oferecer para levá-la para cima como teria feito qualquer
cavalheiro.
Nissa tinha tido bastante consideração, mas, de repente, Linnea se
sentiu desanimada pelas duvidosas boas-vindas que recebera na casa.
— Nissa, não queria causar atrito entre você e seu filho. Talvez fosse
melhor se...
— Nem o diga, moça! Deixe que eu me encarregue dele — e teria
levado ela mesma a mala para cima se Linnea não se apressasse a fazê-lo.
Sozinha pela primeira vez no sótão, sob as vigas, deixou a mala sobre o
tapete e se deixou cair, abatida, sobre a cama. Fechou-se-lhe a garganta e lhe
arderam os olhos.
Ele não é mais que um homem. Um homem velho, amargurado e mal-
humorado. Sou uma professora graduada e o comitê escolar me deu sua
aprovação. Acaso isso não tem mais peso que a opinião daquele intolerante?
Mas aquilo doía.
Não foi assim que sonhou que seria ao chegar ali: os sorrisos francos,
os cordiais apertos de mãos, o respeito... isso era pelo que ela mais ansiava,
pois, com seus dezoito anos, sentia que ganhara o direito de ser respeitada,
não só como professora, mas como adulta. E ali estava ela, choramingando
como uma idiota porque as boas-vindas não alcançaram suas expectativas.
Bom, isso é o que dá quando alguém se deixa levar por sua tola imaginação.
As lágrimas respingaram sobre o contorno da mala e as rosas do tapete. Você
tinha que arruinar tudo, não é, Theodore Westgaard? Mas logo verá.
CAPÍTULO 2
O DESPERTAR DE UMA PAIXÃO JUVENIL

Linnea ainda estava no piso de cima quando Theodore saiu de casa a


passos rápidos e se dirigiu de novo para os campos. Mulheres! Ele pensou. Só
há uma coisa pior que ter uma por perto, e é ter duas. E havia duas nesse
momento! Enfurecia-o o modo como sua mãe o tratara diante da moça, mas
que alternativa tinha a não ser ficar ali e suportar? Quanto tempo mais teria
que tolerar que lhe dessem ordens? Seu rosto ainda ardia de vergonha. Ela
não tinha o direito de humilhá-lo desse modo! Era um homem adulto, de
trinta e quatro anos. E quanto à antiga ameaça de mudar-se para a casa de
John... Tomara que ela assim o faça! Mas na casa de John não havia ninguém
a quem repreender e ela sabia disso.
Ainda aborrecido, Theodore chegou onde se viam duas figuras guiando
seus respectivos animais, ceifando o trigo. Deteve-se e esperou ao lado de
uma fileira de feixes. Dava-lhe certa paz observar John e Kristian mudar o
aspecto do campo. As lâminas da colheitadeira cortavam os grossos caules
dos cereais, que pareciam de ouro polido, na ponta, e opacas, no lado cortado.
Iam formando sulcos paralelos. John ia um pouco mais adiante; Kristian o
seguia, deixando um desenho em escada na beira do plantio, à medida que
avançavam com passo firme e incessante. Chegou o momento em que se
converteram em dois pontos no horizonte; depois deram a volta até onde
estava Theodore, e este os via cada vez mais nítidos, a cada passo que davam
os cavalos. Quando chegaram mais perto, ele pôde ouvir o estalo contínuo
das barras de madeira ao se encontrar com as lâminas. Contemplou a queda
dos caules e respirou: não havia nada mais doce que a fragrância do trigo
secando ao sol! Também seria doce o preço que obteriam por ele naquele
outono. Graças à guerra na Europa, cada grão era como ouro puro, e não só
pela cor. Ali, sob o fluxo do sol, vendo como o abatiam as colheitadeiras,
para Theodore pareceu um sacrilégio que algo tão belo terminasse servindo
para algo tão feio como a guerra. Dizia-se que chegaria o momento em que
este trigo serviria de alimento a soldados ianques, mas, da maneira como iam
as coisas, não se vislumbrava isso nesse momento, pois, embora os campos
de treinamento norte-americanos estivessem lotados de recrutas impacientes,
comentava-se que não tinham uniformes nem armas. Treinavam em roupas
de civis com paus de vassouras. Por todo o país pessoas falavam: “Não criei
meu filho para que fosse soldado”, e a Theodore parecia que a única guerra
que devia preocupá-lo era a que travava com essa professora jovenzinha.
Ainda pensava nisso quando o irmão se aproximou. John puxou as rédeas e
gritou: — Ooooo, garotas! — para depois descer pesadamente do assento de
ferro. Os animais sacudiram as cabeças e o ar quieto da tarde se encheu do
tinido dos arreios.
— Já voltou? — perguntou John, tirando o chapéu de palha e
enxugando a testa com o antebraço onde o cabelo ia ficando ralo.
— Sim, voltei.
— Trouxe o professor?
— Sim.
Como sempre, John assentiu. Era um homem aprazível, sem muita
inteligência e despreocupado com as coisas. Aos trinta e oito anos, era um
pouco mais largo de ombros, mas muito mais lento em tudo, e às vezes ficava
com a cabeça nas nuvens. De constituição robusta, vigoroso, movia-se com
singular falta de pressa, o que lhe dava um ar ao mesmo tempo torpe e
gracioso. Tinha um corpo ao qual se adaptavam bem os aventais de trabalho,
as botas de ponteiras longas e altas e as camisas de flanela grossa. Até nos
dias de maior calor, usava a camisa abotoada até o pescoço e nos pulsos, e
jamais se queixava da quentura ou de qualquer outra coisa. Seus interesses
não iam além dos limites dos campos, onde ganhava o sustento diário em seu
próprio aprazível ritmo. Enquanto pudesse fazê-lo, não pedia muito mais da
vida.
— A ceifa vai bem — comentou. — Com nós três, acredito que
poderemos terminar essa seção antes que a noite caia — agachou-se,
balançando-se nos calcanhares, deixando vagar os olhos sobre o campo,
enquanto mordiscava um caule de trigo. Como sempre, a falta de curiosidade
do irmão pelo que acontecia ao seu redor deixava Theodore perplexo. Mas
assim era. Estava tão conformado com tudo que não lhe ocorria averiguar
nem desafiar coisa alguma. Talvez fosse precisamente essa vagareza que
fazia com que Theodore o amasse sem reticências e se sentisse inclinado a
protegê-lo de tudo.
— O que vai nessa sua cabeça quando se agacha assim, sem se mover e
fica olhando o horizonte, John? — perguntou Theodore ao irmão mais velho.
John levantou o olhar com expressão confusa, mas não disse nada.
— Só pode ser uma mulher — brincou Theodore.
— Quem é essa mulher? — Kristian, saltando do assento da máquina
com uma agilidade oposta à de seu tio, formulou a pergunta. Igual aos outros
dois, estava vestido com um avental de trabalho listrado, mas por baixo tinha
as costas nuas e não usava chapéu para proteger a cabeça. Tinha robustos
braços bronzeados com uns bíceps que só começaram a se definir na última
metade do ano. O repentino crescimento dava ao pescoço a aparência esguia,
porque o pomo-de-adão tinha crescido mais rápido que a musculatura que o
rodeava. Possuía um rosto comprido e anguloso, que a cada dia se tornava
mais bonito à medida que a estrutura óssea era preenchida de carne, em sua
transição para a maturidade. Tinha os olhos castanhos do pai, embora não a
expressão cínica que costumava aparecer neles e o lábio inferior sensual da
mãe, um pouco mais cheio que o superior. Quando falava, a pronúncia exibia
o leve sotaque de um norueguês que cresceu em um meio bilíngue: norueguês
e inglês.
— A nova professora da escola — respondeu o pai, com acento até
mais pronunciado. Fez uma pausa, pensou, e depois adicionou. — Bom, não
é exatamente uma mulher. Mas uma moça que tenta se passar por mulher.
Não parece muito mais velha que você, Kristian.
Kristian arregalou os olhos.
— Sério? — dirigiu um olhar para a casa e perguntou.
— Ela ficará? — embora nunca o houvesse dito com todas as letras,
sabia que seu pai sentia aversão pelas mulheres. Muitas vezes o ouviu falar
com os mais velhos sobre isso, quando acreditava que não havia “orelhas dos
pequenos” por perto.
— Sua avó a levou para o piso superior e lhe mostrou o quarto, então,
parece que vai ficar.
Kristian entendeu com absoluta clareza: se a avó dizia que a moça iria
ficar, então isso era dado como certo.
— Como ela é? — Kristian perguntou ao pai.
Com um gesto de desaprovação, o queixo de Theodore se ergueu: —
Ainda com o leite nos lábios e atrevida como uma gralha.
— Como é? — Kristian riu.
Theodore o olhou, sério: — O que te importa como é? O rapaz corou
um pouco. — Só estava perguntando, nada mais.
Theodore ficou mais sério ainda: — Tem um aspecto miúdo de uma
rata desnutrida — respondeu, ácido. — Tal como se espera que seja uma
professora. E agora voltemos ao trabalho.
Na época da colheita, o jantar começava tarde, pois os homens ficavam
nos campos até que desaparecia o último raio de sol e só paravam por volta
da última hora da tarde para fazer a ordenha e comer uns sanduíches que lhes
permitiriam aguentar até o jantar.
Embora Linnea tivesse tido a cortesia de oferecer ajuda, Nissa não quis
saber e a rechaçou com uma contundente afirmação: — Os professores se
alojam e fazem as refeições aqui. É parte de seu pagamento, não é certo?
Portanto, a moça decidiu explorar a propriedade, embora não houvesse
muito para ver. Depois da esquina onde ficavam os dois celeiros, encontrou
um chiqueiro que não se via da casa. O galinheiro, o abrigo das ferramentas e
o estábulo não ofereciam nada que despertasse nela um remoto interesse. O
mesmo não aconteceu com os estábulos: não foi a imensa e cavernosa
construção que a atraiu, mas sim a selaria. Nem no estábulo de cavalos para
aluguel de Fargo vira tanto couro! Dava a impressão de poder abastecer um
regimento de cavalaria inteiro. Entretanto, apesar das centenas de laços e
correias penduradas nos cavaletes e bancos, tudo estava em ordem e era
funcional. Era algo glorioso! Tinha a marca do caráter de alguém. Fragrância.
E tudo estava tão bem disposto que ela se viu forçada a interrogar-se sobre o
homem que tinha tanto esmero. Nem uma única rédea estava pendurada em
um prego de metal de modo a correr o risco de se estragar com o tempo. Cada
uma delas, ao contrário, estava meticulosamente suspensa em grossos tocos
de madeira e os lados não tocavam o chão de cimento. Havia outras correias
individuais, menores e sem reforço, enroladas como esses laços que se
usavam para amarrar o gado e não se viam nelas partes enredadas nem
irregularidades. Em uma parede, viam-se vários colares ovalados; parte do
arreio usado para distribuir a carga em volta do pescoço e dos ombros de um
cavalo ao puxar uma carroça ou arado e um par de selas cavalgavam sobre
um cavalete, envoltas em longas bandagens de couro de ovelha para proteger
a parte de baixo. Em um banco sem desbaste, havia latas com linimento,
azeite e sabão para limpar selas, colocadas com tanto cuidado quanto em uma
estante de farmacêutico. Prendedores para cascos, tesouras e escovas para
crinas jaziam em seus respectivos ganchos como se a pessoa fosse alucinada
por organização. Perto de uma janela pequena que dava para o Oeste, havia
uma velha cadeira, que de tão manchada era quase negra, com encosto e
braços em forma de fuso. No assento côncavo, viam-se duas manchas mais
claras e havia muito que os pés tinham sido reforçados com arame. De um
dos braços pendia um pano manchado, dobrado pela metade e pendurado
com o mesmo cuidado com que uma mulher pendura o pano de prato sobre
seu balcão.
Linnea deduziu que o dono era uma pessoa meticulosa, dedicada ao
trabalho; nada de jogos, imaginou. Por alguma razão era irritante encontrar
tanta perfeição em um sujeito tão irascível. Enquanto esperavam-no, a ele e a
seu filho, para jantar, com o estômago resmungando de fome, ela imaginou
de que modo o poria em seu lugar qualquer dia desses. Pensando nisso, foi
para seu quarto lavar-se e pentear-se antes do jantar. Com a escova na mão,
aproximou-se do espelho ovalado, com a moldura de metal pintado e
murmurou, como se não fosse só um reflexo: — Trata os cavalos melhor que
as mulheres. Mais ainda: trata melhor os arreios de seus cavalos que as
mulheres! — a cena imaginária a indignou e, flexionando uma mão e tocando
o coração com a palma, prosseguiu: — Senhor Westgaard, informo-o de que
fui cortejada por um ator de cinema londrino e por um aviador britânico.
Rechacei sete... ou eram oito?...
Por um momento, franziu a testa, jogou para trás a escova com
atrevimento e lançou por sobre o ombro um sorriso gracioso.
— Oh, bom — terminou, faceira. — Que importância tem uma
proposta a mais ou a menos? — riu sem fazer ruído e seguiu escovando o
cabelo que lhe caía entre as omoplatas. — O aviador britânico me levou para
dançar no palácio, a convite especial da rainha e, depois dessa noite, voou em
um avião que bombardeou um hangar de zepelins alemães em Dusseldorf.
Ergueu a saia e se balançou, inclinando a cabeça com expressão
sonhadora.
— Ah, que noite! Fechou os olhos, balançou-se para a esquerda e
depois para a direita e seu reflexo passava como um relâmpago pelo pequeno
espelho ovalado.
— No final do baile, levou-me para casa em uma carruagem que havia
trazido especialmente para a ocasião. Ficando séria, deixou cair a saia. —
Perdeu a vida por servir a pátria. Foi muito triste — lamentou por ele um
momento e depois, sentindo-se heroica, reanimou-se e acrescentou: — Mas,
pelo menos, tenho a lembrança de ter girado entre seus braços ao som de uma
valsa vienense — esticou o pescoço como um cisne e afastou o cabelo do
rosto. — Mas claro, você não sabe dessas coisas e, além disso, uma dama não
fala dos beijos que recebe.
Deixou a escova, pegou o pente e dividiu o cabelo ao meio. — E depois
veio Lawrence — girou de repente, aproximando o quadril da beira do
estrado, apoiando-o com gesto provocador. — Alguma vez falei de
Lawrence?
Mas o estrépito de porcelana quebrada a trouxe bruscamente à
realidade. O estrado cambaleou, e a jarra e a bacia já não estavam à vista. De
baixo, Nissa vociferou: — O que foi isso? Está tudo bem aí em cima?
Na escada, ouviram-se passos. Horrorizada, Linnea cobriu a boca com
as duas mãos e se inclinou sobre aquele estrado que fazia as vezes de
cômoda. Quando Nissa chegou à porta, encontrou a moça que contemplava,
no chão, os pedaços do que há poucos minutos eram a jarra e a bacia.
— O que aconteceu?
Linnea virou para o vão da porta, com uma expressão de consternação
no rosto.
— Oh, senhora Westgaard, sinto muitíssimo! Quebrei a jarra e a bacia!
Nissa irrompeu: — Como demônios isso aconteceu?
— Sem... sem querer me choquei com o estrado. Pagarei por eles com
meu primeiro salário mensal — por um segundo, perguntou-se quanto
custariam a jarra e a bacia.
— Por Deus, que confusão... Você está bem?
Linnea ergueu as saias e olhou a barra molhada.
— Só um pouco molhada.
Nissa começou a correr em direção à cômoda, mas Linnea a substituiu
imediatamente na tarefa.
— Deixe, eu limparei! — quando deslocou o móvel, deu com os
fragmentos de louça e com a água que escorria para o linóleo, molhando a
parte de baixo.
— Oh, Meu Deus... — gemeu, tapando outra vez a boca enquanto lhe
saltavam dos olhos lágrimas de vergonha. — Como pude ser tão tola? Parece-
me que também danifiquei o linóleo.
Mas Nissa já descia as escadas. — Trarei um balde e um pano.
Quando ela se afastou, Linnea ouviu vozes do lado de fora e, ao olhar
pela janela, viu que, enquanto se perdia em seus sonhos, os homens tinham
chegado. Desesperada, ficou de joelhos, tratando de juntar as partes das peças
quebradas em um monte e depois, com a mão, deter a água na borda do
revestimento. Mas o atoleiro já havia se infiltrado para baixo, então tratou de
levantar uma ponta... que resultou num erro. A água passou sobre a curva
formada no linóleo e molhou sua saia até os joelhos.
— Deixe-me fazê-lo! — ordenou-lhe Nissa, da entrada. — Jogue os
cacos no balde.
Linnea deixou a porcelana quebrada no fundo do balde com grande
cuidado, como se desse modo pudesse melhorar a situação. Conteve as
lágrimas, sentindo-se torpe, aborrecida, chateada consigo mesma por ter
deixado que um capricho infantil a fizesse se meter em problemas, como era
costume acontecer-lhe. Depois que recolheram todos os pedaços e Nissa se
sentou sobre os calcanhares, Linnea lhe tocou o antebraço, exibindo uma
expressão aflita.
— Eu... lamento tanto... — murmurou. — Foi uma estupidez e...
— Claro que lamenta. Ninguém gosta de se sentir tolo em um lugar
novo. Mas as jarras são... você se cortou? Coitadinha!
— Oh, e agora manchei o vestido! Por acaso não consigo fazer nada
direito?
— Não se aflija. Eu o lavarei. Parece-me que essa mão vai sangrar por
um tempo. É melhor ir procurar algo para enfaixá-la.
Levantou-se rapidamente e desapareceu escada abaixo. Um momento
depois, Linnea ouviu vozes na cozinha e se sentiu duplamente mortificada
sabendo que, sem dúvida, Nissa devia estar contando para os homens o
ocorrido. Mas quando a matrona retornou, não pronunciou uma só palavra de
crítica e lhe enfaixou a mão com uma tira limpa arrancada de um lençol e a
atou com firmeza antes de dirigir-se de novo à escada.
— Agora arrume o cabelo e se apresente lá embaixo em cinco minutos.
Os rapazes não gostam que os façam esperar.
Infelizmente, a moça não era tão experiente para ajeitar o novo
penteado com as duas mãos sãs; com uma machucada, então, isso resultava
impossível. Fez todo o possível, mas quando Nissa avisou que o jantar estava
pronto, ela ainda estava tentando ajeitar os cabelos. Enquanto seguia
acomodando e enfiando grampos com mãos torpes, olhou a saia: tinha a
região dos joelhos e a barra molhados e já não tinha tempo de se trocar. Com
uma olhada no espelho, constatou que a presilha na qual tinha enroscado o
cabelo estava deslocada do centro. Maldição! Deu-lhe um puxão para a
esquerda que a deslocou ainda mais e então a fixou depressa com três
grampos.
— Senhorita Brandonberg! O jantar! Os rapazes não gostam que os
façam esperar.
Linnea se rendeu e foi para a escada, esperando que seus passos
soassem decididos nos degraus. Quando emergiu das sombras da escada para
a cozinha, surpreendeu-se ao ver que havia três homens altos e robustos que a
olhavam com a boca aberta. Os rapazes? É obvio que um deles era Theodore,
a quem já tinha tido o desprazer de conhecer. Ele olhou para o rosto
ruborizado, o cabelo rebelde e a saia molhada da garota e nos cantos de seus
lábios brincou o fantasma de um sorriso. Linnea não lhe deu atenção, já que
era um caipira rústico, e voltou-se para os outros.
— Você deve ser o Kristian.
Era meia cabeça mais alto que ela e muito bonito, com uma boca muito
mais tenra e bela que a do pai, mas com os mesmos olhos castanhos intensos.
O cabelo molhado, recém-penteado, era de um castanho-dourado que, ao
secar, certamente deveria ser loiro. Tinha o rosto reluzente pela recente
lavagem e era o único dos três sem a marca branca lhe atravessando a metade
superior da testa. Linnea lhe estendeu a mão.
— Olá, sou a Senhorita Brandonberg.
Kristian Westgaard olhou para a nova professora com a boca aberta.
Miúda e com cara de rata desnutrida? Céus, do que falava seu velho? Sentiu
que lhe subia o rubor pelo peito nu. O coração deu um salto e as mãos
começaram a suar. Linnea viu que ele ficava da cor das framboesas
amadurecidas e secava as mãos nas coxas. O pomo-de-adão mexeu como
cortiça em uma onda e, por fim, ele lhe tomou a mão por um instante.
— Oh! — exclamou. — Então você será nossa nova professora?
Voltando para a mesa com uma travessa de carne, Nissa o repreendeu:
— Cuidado com suas maneiras, jovenzinho! Para você, ela é senhorita
Brandonberg — aquilo renovou o rubor no rosto de Kristian.
Linnea riu:
— Receio que sim.
Nissa interveio:
— E este é meu filho John. Vive do outro lado do campo, mas sempre
come conosco — indicou com a cabeça o Leste e voltou para a cozinha.
Linnea viu um rosto muito parecido com o de Theodore, um pouco mais
velho e com a linha do cabelo já começando a rarear. Tímidos olhos
amendoados, nariz reto, atrativo, lábios cheios... muito diferentes dos de sua
mãe, que se reduziam a uma linha estreita. Aparentemente, ele não se sentia
capaz de olhá-la nos olhos nem podia deixar de mover os pés. Debaixo da
linha do chapéu, ele ficou lívido, contrastando com o rosto bronzeado. Os
olhos tímidos pousaram em todos os lados, menos nela. Quando foi
apresentado, deu uma brusca sacudida na cabeça e decidiu lhe oferecer a
mão, mas a retirou na metade do trajeto e a substituiu por outras duas
sacudidas de cabeça. A mão de Linnea ficou pendurada entre os dois até que,
por fim, John a tomou entre suas enormes mãos e lhe deu uma só sacudida.
— Olá, John — disse a moça com simplicidade.
— Senhorita... — o homem assentiu, olhando as botas.
A voz retumbou suave, áspera e muito, muito baixa, como um trovão
que chegasse do condado vizinho. Também tinha o rosto recém-lavado ao se
apresentar para o jantar, e o cabelo castanho tinha uma onda no centro. Usava
calças negras desbotadas e suspensórios vermelhos. A gola da camisa
vermelha xadrez estava abotoada até o pescoço, o que conferia um aspecto
triste e infantil a um homem tão corpulento. No mesmo instante em que a
mão enorme devorou a sua, Linnea sentiu uma onda cálida e protetora. O
único que não lhe tinha dirigido a palavra era Theodore, mas ela percebeu
que ele a observava e decidiu não deixá-lo escapar tão facilmente. Se
acreditasse que as boas maneiras eram desnecessárias quando uma pessoa
envelhecia, demonstrar-lhe-ia que ninguém nunca era muito velho para ser
cortês.
— Olá outra vez, Senhor Westgaard — dando a volta, olhou-o
diretamente, sem lhe dar uma alternativa que não fosse aceitar a saudação.
— Sim — foi tudo o que disse, com os braços cruzados sobre a camisa
azul e os suspensórios negros. Para chateá-lo ainda mais, acrescentou,
sorrindo com doçura: — Sua mãe me conduziu ao meu quarto e me ajudou a
me instalar. Estarei muito bem ali.
Como os outros o olhassem, Theodore não teve alternativa a não ser
engolir sua réplica aguda e resmungou: — Bom, vamos ficar aqui
tagarelando a noite toda ou vamos jantar?
— O jantar está pronto. Sentemo-nos — disse Nissa, começando a
colocar o último prato com carne sobre a mesa redonda de carvalho coberta
com uma toalha branca.
— Esta será sua cadeira — Nissa indicou a Linnea a que estava entre a
dela própria e a de John, talvez esperando que uma distância um pouco maior
entre Theodore e a garota diminuísse o antagonismo entre ambos. Mas,
infelizmente, colocou-os frente a frente: já antes de sentar-se, a garota sentiu
que os olhos do homem disparavam flechas com evidente desagrado. Uma
vez que todos estavam sentados, Theodore disse: — Oremos.
Uniu as mãos, apoiando os cotovelos ao lado do prato e a testa nos nós
dos dedos. Todos o imitaram, inclusive Linnea, mas quando a voz profunda
começou a recitar a prece, ela abriu os olhos e, espiando entre os nós, olhou
surpresa: a prece era pronunciada em norueguês. Com os polegares apertados
contra a testa, viu que os cantos dos lábios de Theodore se moviam por baixo
das mãos unidas. Para seu horror, ele também a espiou! Seus olhos se
encontraram por um instante, mas, por mais breve que fosse aquele olhar,
incomodou-a que ele tivesse se fixado em sua mão enfaixada. Sentindo-se
culpada, fechou com força os olhos. Juntou o seu amém ao dos outros, e,
antes que pudesse pelo menos retirar os cotovelos da toalha, ações mais
surpreendentes aconteceram. Como se o fim da prece tivesse indicado o
começo de uma corrida, quatro pares de mãos arrebataram quatro pratos;
quatro colheres golpearam contra os pratos com estrépito. Depois, com a
precisão de um exercício militar, os pratos passavam para a esquerda e cada
um dos Westgaard tomava o que lhe chegava da direita. Linnea ficou com a
boca aberta e sua demora em pegar a travessa com milho que lhe passava
John provocou uma descontinuidade no exercício, pois, de repente, todos os
olhos pousaram nela, que tinha as mãos vazias, enquanto John equilibrava
dois pratos em suas mãos enormes. Sem falar, tocou-lhe no ombro com a
travessa de milho e, enquanto ela a aceitava, os olhos de Theodore se fixaram
outra vez em sua mão enfaixada.
— O que lhe aconteceu? — perguntou à mãe. Esta se serviu de uma
porção de batatas.
— Ela quebrou a jarra e a bacia que estavam no quarto lá de cima e
cortou a mão recolhendo os cacos.
Como se atrevem a falar de mim como se eu não pudesse responder
por mim mesma? Quando quatro pares de olhos se voltaram para ela e
examinaram a mão esquerda enfaixada que sustentava a travessa com milho,
Linnea ruborizou. A rodada foi retomada, e travessas e colheres passavam
sob seus narizes, até que, por fim, tudo terminou com a mesma brutalidade
com que tinha começado: quatro pares de mãos apoiaram os correspondentes
pratos; quatro cabeças se abateram sobre os pratos; quatro intensos
noruegueses começaram a comer com uma concentração tão rude que Linnea
não pôde fazer nada mais a não ser observá-los boquiaberta. Ela foi a última a
receber uma travessa e se sentiu observada como um palhaço em ação. Bom,
boas maneiras eram boas maneiras! E ela estava disposta a mostrar a esses
brutos como se comia à mesa: talvez seu bom exemplo desconcertasse
aqueles quatro. Terminou de compor seu prato e, sentada corretamente, usou
num ritmo tranquilo os talheres para desfrutar dos deliciosos filetes de carne,
acompanhados de um delicioso molho amadurecido com pimenta da Jamaica.
Quando não usava a faca, ela a deixava apoiada na beira do prato, como
aprendera a ferro e fogo com sua governanta. Acompanhavam o prato
principal batatas, milho, salada de couve, pão, manteiga e vários petiscos.
A despeito de suas boas maneiras, toda a família Westgaard engolia
com o pescoço esticado e os ruídos eram medonhos. Ninguém conversava,
limitando-se a afundar as colheres nos pratos com um barulho estridente,
raspá-los até que estivessem vazios e, um a um, solicitar outra vez que lhes
passassem as travessas. Suas maneiras à mesa eram abomináveis.
— Batatas! — exigiu Theodore.
Com desgosto, Linnea observou como John lhe passava as batatas sem
quase levantar os olhos do prato, cujo molho recolhia esmeradamente com
uma fatia de pão, que depois enfiava na boca com os dedos. Um instante
depois, seguiu-o Kristian: — Carne!
A avó empurrou a travessa de carne para o outro lado da mesa, e a
única que se incomodou com o modo como o fez foi Linnea. Os minutos se
passavam e continuavam se ouvindo grunhidos e sucções.
— Milho!
Linnea era a que estava mais próxima da travessa de milho e, contudo,
não percebeu. Demorou a se dar conta do que lhe pediam, e todos olhavam
para ela.
— Eu disse milho — repetiu Kristian.
— Ah, milho! — exclamou. Pegou a travessa e a passou para o outro
lado da mesa, muito perplexa para aludir ao tema na primeira noite em seu
novo lar.
Bom Deus, comeriam assim sempre?
Enquanto devoravam as porções, Linnea aproveitou para estudá-los um
por um. Nissa, com seus pequenos óculos ovalados, a cabeça grisalha e o
nariz arrebitado, também tinha a cabeça inclinada sobre o prato. Embora
como mãe e avó tivesse falhado em ensinar boas maneiras aos rapazes, era
mais do que claro que tinha controle sobre eles. Linnea estava segura de que
se essa mulher não a tivesse aprovado e dado a ela as boas-vindas, ela,
Linnea, não estaria sentada neste momento jantando com eles. Mesmo
pequena como era, sem dúvida liderava aquela casa e aqueles marmanjos.
Com John ao seu lado, parecia uma anã. Os braços com a manga rasgada da
camisa de John estavam apoiados sobre a mesa e os ombros largos
encurvavam-se para a frente como um capô. Linnea recordou a relutância
dele em lhe dar a mão e o rubor que lhe subiu ao rosto quando a saudou com
um “senhorita”. Linnea pensou que jamais teria que temê-lo.
Kristian. Não lhe escaparam os olhares furtivos que ele lhe lançava
enquanto comiam. Fazia-o desde que se sentaram. Era tão grande! Tão
adulto! Que estranho seria ser professora de um jovem que era meia cabeça
mais alto que ela e que tinha ombros tão largos quanto um potro... Nissa o
mencionara como “o filho de Theodore”, mas era tão menino quanto o tio ou
o pai e era evidente que havia se enamorado imediatamente dela. Teria que
tomar cuidado para não incentivá-lo de alguma maneira.
Por fim, havia Theodore. O que faria com um homem tão amargo e
com quem era tão difícil conviver? Mentiria se dissesse que não lhe inspirava
temor. Mas nunca lhe permitiria sabê-lo, mesmo que vivesse nessa casa
durante cinco anos e tivesse que lutar contra ele com unhas e dentes todos os
dias. Ela sabia: dentro de cada pessoa dura há uma terna; encontre-a e achará
sua alma. Sem dúvida, seria uma tarefa difícil no que dizia respeito a
Theodore, mas ela tinha a intenção de tentar. Inesperadamente, ele ergueu os
olhos, olhou-a nos olhos e ela descobriu, sobressaltada, que não era um
homem velho. Os olhos castanhos eram transparentes e o rosto não tinha
rugas, salvo uma única linha ao lado dos olhos. Linnea viu inteligência
naqueles olhos, mas também hostilidade, e se perguntou do que precisaria
para nutrir uma e sufocar a outra. Embora o cabelo não tivesse a cor do
centeio ao entardecer, como imaginara, era castanho, grosso e, à medida que
ia secando depois de ter sido lavado, projetava-se para a frente em cachos
rebeldes. Tampouco possuía um nariz muito grande. Era reto, atraente e
bronzeado, como o resto do rosto até uns milímetros da raiz do cabelo, onde
uma faixa branca o identificava como fazendeiro que trabalhava ao sol,
devido à marca deixada pelo chapéu. Diferentemente de John, usava a gola
da camisa aberta. O pescoço era vigoroso. Teimoso, negava-se a interromper
o contato visual com ela; Linnea então se sentiu incomodada e baixou os
olhos para os braços dele. A diferença dos de John é que estavam descobertos
até a metade do antebraço. Os pulsos eram estreitos, o que fazia parecerem
mais poderosos as mãos e os braços, que se alargavam para cima e abaixo.
Teria quarenta anos? Ainda não. Trinta? Era mais provável. Devia ser, afinal,
tinha um filho da idade de Kristian... Depois, com um suspiro baixo, chegou
à conclusão de que devia estar certa: sua idade estaria entre os trinta e os
quarenta anos, e isso era muito. Ao erguer outra vez os olhos, encontrou-o
com a cabeça encurvada, comendo, mas com o olhar ainda cravado nela.
Ruborizada, olhou ao redor e viu que Kristian estava observando os dois.
Dedicou-lhe um rápido sorriso e disse a primeira coisa que lhe ocorreu: —
Então será um de meus alunos, Kristian — todos os presentes deixaram de
mastigar e fez-se um silêncio repentino. Olharam-na como se lhe tivessem
crescido presas. Sentiu que corava, sem saber bem por quê.
— Disse algo de errado?
O silêncio se prolongou, até que, por fim, Kristian respondeu: — Sim.
Quero dizer, não disse nada de errado, e sim, será minha professora.
Todos voltaram à comida, baixando os olhos para os devidos pratos, e o
silêncio tomou conta da mesa, enquanto Linnea refletia. Uma vez mais,
interrompeu-os.
— Kristian, em que ano está?
Uma vez mais eles se detiveram, sobressaltados pela interrupção. Com
um olhar furtivo ao redor, Kristian respondeu: — No oitavo.
— Oitavo? — devia ter, ao menos, dezesseis anos.
— Perdeu algum ano... quero dizer, esteve doente ou algo assim?
Com olhos dilatados, fixos, olhou-a e a cor lhe subiu do queixo para
toda a face.
— Não. Não perdi nem um ano.
— Nenhum ano — corrigiu Linnea de forma automática.
— Como? — Kristian não a entendeu.
— Não perdi nenhum ano —repetiu, frisando o “nenhum”.
Por um momento, o rapaz pareceu perplexo, mas depois iluminaram-se-
lhe os olhos, e ele disse: — Ah! Bom, também não perdi nem um ano.
Linnea notou que todos a olhavam, mas não pôde imaginar o que os
assombrava tanto. Ela só desejava manter uma conversa civilizada à mesa e
fazia de tudo para levar adiante um diálogo cortês, como estava acostumada a
fazer durante as refeições. Mas nenhum deles teve a gentileza de recolher a
luva que ela jogava. O que fizeram foi guardar silêncio e seguir enchendo os
buchos. O único som que se ouvia era o ruído da mastigação e da sucção.
Theodore falou uma vez, esvaziando o prato. Encostou-se na cadeira,
expandiu o peito e perguntou: — O que tem para a sobremesa, mamãe?
Nissa lhe deu pudim de pão. Linnea viu, perplexa, como eles
esperavam em silêncio que os servissem e voltavam a comer com renovado
interesse. Olhou ao redor, estudando-os e, por fim, compreendeu: comer era
algo muito sério para eles. Ninguém profanava com falatórios o sacrossanto
ato de se alimentar! Jamais convivera com tanta grosseria à mesa. Quando
terminaram de jantar, rodeou-a um coro de arrotos e a seguir todos se
recostaram e palitaram os dentes diante das xícaras de café. E nenhum se
desculpou, nem sequer Nissa. Linnea se perguntou como reagiria a dona da
casa se lhe pedisse que, nos próximos dias, lhe levasse uma bandeja no
quarto. Realmente desagradava-lhe comer com eles e vê-los se comportarem
como porcos em um chiqueiro. Mas, aparentemente, nesse momento havia
acabado o ritual inviolável. Theodore empurrou a cadeira para trás e falou
diretamente com ela: — Amanhã vai querer conhecer a escola?
Na verdade, o que Linnea queria ver no dia seguinte era o interior de
um trem que a levasse de volta a Fargo. No entanto, ocultou sua desilusão e
respondeu com todo o entusiasmo que pôde: — Sim, gostaria de ver o
material didático de que dispõe a escola e o que precisarei pedir a mais.
— Fazemos a ordenha às cinco e tomamos o café da manhã logo em
seguida. Esteja pronta para partir assim que tivermos terminado o café da
manhã. Não posso perder tempo. Para levar você lá, corro o risco de me
atrasar e ir para os campos somente no meio da manhã e não penso em lhe
servir de guia.
— Terei muito gosto em caminhar até lá sozinha. Sei onde fica a
escola.
O homem sorveu o café, engoliu-o com um ruído e disse: — Pagaram-
me para mostrar a escola ao novo professor e, assim que chegasse aqui,
informá-lo sobre quais seriam seus deveres.
A moça sentiu que um maldito rubor lhe subia ao rosto, por muito que
se esforçasse para impedi-lo. E, embora soubesse que era preferível ignorar a
provocação, não pôde: — Professor?
— Oh... — os olhos de Theodore percorreram com insolência seu
penteado malfeito. — Professora, tinha esquecido esse pequeno detalhe.
— Isso significa que ficarei? Ou continua pensando em me deixar na
casa de Oscar Knutson quando conseguir encontrá-lo?
Com movimentos lânguidos, Theodore se reclinou, cruzou o tornozelo
sobre o joelho da outra perna e palitou os dentes de maneira a provocá-la,
sem deixar de observá-la e sem sorrir. Por fim, disse: — Oscar não tem
nenhum lugar para você na casa dele.
— Não tem nem um lugar para mim?
A frase lhe escapou, antes que pudesse controlar a vontade de baixar
um pouco a crista. O homem tirou lentamente o palito de dentes da boca,
aprumou-se com um gesto de raiva, e Linnea viu com satisfação que o rubor
também tomava conta de seu rosto. E embora soubesse que ele entendera que
ela havia corrigido sua maneira de falar, não pôde resistir a acrescentar o
insulto à injúria: — Use nem um, dessa forma, separado, quando tiver o
mesmo sentido de “nem um sequer”. E use nenhum ou nenhuma, junto,
quando puder substituir o termo por seu antônimo: algum ou alguma ou por
“ninguém” e “nada”. Portanto, é incorreto dizer que Oscar não tem nenhum
lugar.
A faixa branca que lhe atravessava a testa tornou-se de um vermelho
intenso. Levantou-se rapidamente, fazendo arrastar as pernas da cadeira
contra o chão de madeira, ao mesmo tempo em que lhe apontava o nariz com
um dedo comprido e grosso: — Não sou seu aluno, mocinha. Certamente que
não o tem, por isso tenho que me encarregar de você! Mas não cruze o meu
caminho, senhorita, entende-me?
— Theodore — chamou a mãe, embora o filho já saísse batendo a
porta.
Quando ele saiu, o silêncio na mesa foi mortal. Linnea sentiu que
lágrimas de mortificação lhe faziam arderem os olhos. Observou os rostos
que a rodeavam: o de Kristian e o de John estavam vermelhos como
beterrabas; o de Nissa, em contrapartida, branco de raiva: ela olhava para a
porta.
— Esse rapaz não conhece boas maneiras... falar assim com você! —
disse a mulher, indignada.
— Eu... sinto muito. Não deveria tê-lo provocado. Foi minha culpa. Fui
insolente. Peço seu perdão.
— Não, não é assim — replicou Nissa, levantando-se para começar a
limpar a mesa com movimentos rápidos. — É que ele ficou mau por dentro
quando... — interrompeu-se de repente e olhou para Kristian, que tinha os
olhos fixos na toalha da mesa. — Oh, é inútil tratar de endireitá-lo agora —
concluiu Nissa na medida em que se afastava. Para surpresa de Linnea, John
foi o único que fez um gesto conciliatório. Iniciou o movimento para lhe
tocar o braço a fim de tranquilizá-la. Indeciso, retirou a mão, mas lhe disse
com a voz baixa e a pronúncia lenta: — Oh, ele não quis dizer nada disso,
senhorita.
Linnea o olhou com expressão amistosa e compreendeu, de certo modo,
que a breve frase tranquilizadora de John representava toda uma oração para
ele. Tocou-o de leve no braço.
— Tentarei me recordar disso da próxima vez que cruzar minhas
espadas com a dele. Obrigada, John.
O olhar do homem pousou nos dedos da moça e ele corou demais.
Linnea se apressou em retirar a mão e se voltou para Kristian.
— Kristian, se incomodaria de me levar à escola amanhã? Assim não
terei que incomodar seu pai.
Os lábios do rapaz se abriram, mas não saiu som algum. Olhou furtivo
para o tio, mas não encontrou nenhum apoio para o que o incomodava. Por
fim, respirou fundo, deu um amplo sorriso, ruborizou ainda mais, e disse: —
Sim, senhorita.
Aliviada, Linnea suspirou sem se dar conta de que continha o fôlego.
— Obrigada, Kristian. Estarei pronta assim que acabarmos de tomar o
café da manhã.
O rapaz assentiu e viu que Linnea se levantava para recolher alguns
pratos.
— Bom, será melhor que eu ajude a Nissa com a louça.
Mas antes que pudesse ficar de pé, Nissa a repeliu.
— As professoras não limpam — disse Nissa. — As tardes são suas.
Necessitará delas para corrigir tarefas e todas essas coisas para ensinar.
— Mas ainda não tenho nada para corrigir.
— Vá, vá! — espantou-a com a mão, como se fosse uma mosca. — Eu
me ocuparei da louça como sempre tenho feito.
Linnea hesitou: — Tem certeza? Posso ajudá-la, se quiser.
Nissa a olhou por debaixo dos óculos ovalados, enquanto recolhia
xícaras e pratos vazios.
— Por um acaso passo a impressão de ser uma pessoa que não está
segura das coisas?
Isso fez Linnea sorrir outra vez.
— Muito bem, prometi a minha mãe que lhe escreveria logo que
chegasse para informar se tinha chegado sem dificuldades.
— Bem, bem! Vá fazer isso.
No andar de cima, Linnea acendeu a lamparina a óleo e contemplou
outra vez o quarto, mas a decepção se mantinha. Nissa tinha substituído o
conjunto de jarra e bacia por um lavabo pintado de azul. Ao vê-lo, Linnea
voltou a se decepcionar, não só com o quarto e a família Westgaard, mas
também consigo mesma. O que mais queria era se comportar como uma
pessoa madura. Prometeu a si mesma muitas vezes abandonar esses
rompantes infantis e rebeldes que sempre a metiam em encrencas. Mas não
estava ali nem há meia hora quando armou a primeira confusão. Conteve as
lágrimas.
De seu primeiro salário de trinta dólares mensais, teria que subtrair o
custo da jarra e da bacia, mas o pior era que se comportara como uma tola.
Isso já era bastante duro de confrontar; ter, além disso, que suportar o
antagonismo de Theodore lhe tirava as forças. Aquele sujeito era desprezível.
— Esqueça aquele sujeito — disse para si mesma. Todos lhe disseram
que tornar-se um adulto não era fácil e ela estava descobrindo que eles
tinham razão.
Para tirar Theodore da cabeça, pegou papel e lápis de uma caixa de
madeira, sentou-se sobre a cama e começou a carta: Queridos mãe e pai,
Carrie e Pudge, Cheguei sã e salva ao Álamo. A viagem no trem foi longa e
sem incidentes. Quando cheguei, observei o horizonte em busca da cidade,
mas, para meu abatimento, só vi três silos e um punhado de construções
lamentáveis a que não se poderia chamar de cidade. Sim, papai, já sei que
me tinha advertido que seria uma vila, mas não esperava que fosse tão
pequena. Na estação me esperava o Senhor Westgaard, que me acompanhou
até sua fazenda. Parece que é imensa, como a maioria das propriedades
daqui, tão grande que tentamos encontrar um dos vizinhos trabalhando no
campo e não conseguimos. O nome de batismo do Senhor Westgaard é
Theodore e ele vive com a mãe, uma pequena mulher chamada Nissa (uma
mulher quase anã, com pernas tortas, mas que me agradou de imediato).
Theodore tem um filho chamado Kristian (que será meu aluno do oitavo ano,
embora seja mais alto que eu uma cabeça). Há ainda o John, que mora em
sua própria fazenda, do outro lado do caminho, para o Leste, mas que faz
todas as refeições na casa da mãe. O primeiro jantar foi uma delícia, com
filetes em molho, batatas, milho, pão e manteiga e pudim de pão, além de
outros acompanhamentos que nunca vi na vida, e depois Nissa não me
permitiu tocar em um prato... Carrie e Pudge, sei que os deixei verdes de
inveja porque já não tenho que lavar louças nunca mais! Neste momento,
estou instalada em meu quarto, um quarto só para mim, onde ninguém me
pede para apagar a luz quando ainda tenho vontade de ler um capítulo a
mais. Imagine: um quarto para mim sozinha pela primeira vez em minha
vida!

Então, olhou ao redor, ergueu os olhos para as vigas nuas do teto, olhou
para a janela diminuta e para a cômoda onde estava o novo lavatório.
Recordou-se de suas expectativas, aquelas que tivera durante a viagem de
trem para o novo lar e a instantânea decepção quando Theodore Westgaard
abriu a boca e declarou: “Não vou aceitar nenhuma mulher em minha casa”.
Olhou de volta para a carta, que tinha escondido os vestígios, as desilusões e
os temores de suas primeiras seis horas como “a nova professora” e, de
repente, as palavras pareceram esmagá-la. Encolheu-se feito uma bola e
chorou, desbragadamente. Oh, mamãe, papai, sinto muitas saudades! Quem
me dera estivesse em casa com vocês, onde a hora do jantar é feita de alegria,
conversa e sorrisos afetuosos. Oxalá eu pudesse pegar o pano de prato e me
queixar aos gritos por ter que ajudar Carrie e Pudge antes de obter permissão
para sair da cozinha... Queria que estivéssemos outra vez as três juntas,
amontoadas em nosso pequeno e bonito dormitório com papéis de parede de
flores e que vocês duas se unissem contra mim quando eu quisesse deixar as
luzes acesas um pouco mais. O que estou fazendo aqui, nesta pradaria
esquecida por Deus, com uma família estranha, onde imperam as feições
taciturnas, a reticência e um completo desprezo pelas boas maneiras? Deveria
ter levado em conta, papai, quando me disse que pegasse o primeiro posto
que ficasse mais perto de casa até que soubesse como me sairia sozinha. Se
estivesse aí, estaria compartilhando isto com você e com mamãe, em lugar de
ocultar minhas tristezas e chorar neste pequeno quarto do mezanino!
Entretanto, ela amava muito a família para contar a eles a verdade e
sobrecarregá-los com preocupações, sabendo que não podiam fazer nada para
consolá-la. Mais tarde, descobriu que suas lágrimas tinham caído sobre a
tinta, deixando duas manchas azuis e, então, com gesto decidido, secou os
olhos e começou a reescrever a carta, embora ainda omitisse suas desilusões.
CAPÍTULO 3
O NOVO LAR

Tradicionalmente, o ano escolar começava oficialmente na primeira


segunda-feira de setembro e Linnea tinha chegado na sexta-feira anterior. No
sábado, ainda não tinha amanhecido quando um ruído longínquo a despertou.
Ainda sonolenta, esforçou-se por examinar o aposento que a rodeava na
esfumada luz de cor lavanda que iluminava o sótão. Por uns momentos, ficou
desorientada com o que viu sobre sua cabeça, as vigas do teto inacabadas.
Gemeu e rolou na cama. Ah, sim, meu novo lar, no Álamo, pensou. Não tinha
dormido bem nessa cama estranha. Sentiu a tentação de dormir uns poucos
minutos a mais, mas então ouviu a atividade no andar de baixo e se recordou
do acontecido do dia anterior.
— Bom, Senhorita Brandonberg, arraste seus ossos para fora da cama e
lhes mostre de que maneira foi criada — murmurou.
A água do lavabo estava fria. Pensou em descer para esquentá-la, mas
analisou o risco de topar com Theodore ou com Kristian. Talvez ninguém
tivesse acendido o fogo até agora. Olhando a chaminé do fogão, cujo tubo
passava por seu quarto, saiu da cama e o tocou. Estava morno. Olhou pela
janela e se convenceu de que era muito cedo. Ah, fazia algum tempo que
alguém havia levantado. Vestiu um penhoar de flanela azul abotoado até o
pescoço, atou o laço na cintura e, pegando a bacia, desceu as escadas. Ainda
que tentasse não fazer ruído, os degraus rangeram.
A cabeça de Nissa apareceu pelo vão da porta. Já tinha o cabelo preso
num coque pequeno e firme e, sobre um prático vestido de um cinza
desbotado com flores vermelhas, usava um avental branco engomado que lhe
chegava ao tornozelo.
— Já de pé? — Nissa perguntou, surpresa, ao ver a cabeça da
professora no vão da porta.
— Não... não queria que, desta vez, ninguém ficasse me esperando.
— O café da manhã não estará pronto antes de pelo menos uma hora.
Os rapazes têm que ordenhar dez vacas.
— Por acaso eles…? — Linnea, olhando por cima da cabeça da
mulher, apertou mais a bacia contra o quadril. — Já estão lá fora?
— Não há touros ao redor. Pode descer — Nissa fixou seus olhos nos
pés nus da jovem. — Não tem chinelos?
Linnea endireitou os pés e os olhou.
— Receio que não.
Não queria dizer que em sua casa ela tinha conforto e que bastava
percorrer parte do corredor para chegar ao quarto de banho.
— Bom, sem dúvida terei que tecer um chinelo para você com as
agulhas na primeira oportunidade. Veio buscar água quente, não é?
Nissa a agradava, independentemente de suas maneiras bruscas e
autoritárias. Com ela dentro, a cozinha era acolhedora. Como era seu
costume, a mulher virava de um lado para outro e lembrava a Linnea o voo
errático de um pintassilgo, equilibrando-se de um lado a outro com giros
repentinos, dando a impressão de que não tinha terminado uma tarefa e já
empreendia outra. Em um só movimento, Nissa levantou a tampa de ferro do
imenso fogão que dominava o recinto, jogou uma pazada de carvão que tirou
de um balde junto ao fogão, fechou a tampa e deu a volta para a despensa.
Linnea ficou tonta só de observar.
Em um instante, Nissa voltou com um balde de água quente, que
exalava fumaça, e o colocou sobre uma mesa longa próxima à parede.
— Aí está! Pegue a chaleira e use o quanto precisar! Cuidado para não
se queimar. Quando se trata do banho da professora, não penso nos gastos!
Rindo, Linnea pensou que, embora tivesse que lutar com certos
temperamentos irritáveis, Nissa a compensava amplamente. No andar de
cima, já de banho tomado, sem a atadura da mão, com o cabelo penteado em
uma trança impecável na parte de trás da cabeça, recuperou o otimismo.
Ela tinha trazido cinco conjuntos de roupa, sem contar o traje de
viagem de lã cinza-escuro com a blusa de seda: uma saia castanha de tecido
de Manchester; a saia bordada de veludo e uma blusa branca para fazer
contraste; uma saia de sarja de Oxford verde-escuro com três faixas
investidas na parte de trás e uma blusa xadrez Black Watch; um vestido azul-
marinho com a gola adornada de um viés branco ao redor e uma saia cinza
com uma blusa branca lisa, sem mais babados, com um par de franzidos que
caíam em ângulo do ombro até a cintura. O traje era para os domingos, nada
mais. O vestido lhe dava uma aparência infantil. O tecido de Manchester era
muito quente para essa época. E ela tinha reservado a saia verde nova para o
primeiro dia de aula, porque tinha sido um presente de seus pais e era seu
traje mais adulto. Por isso, decidiu vestir a prática saia cinza com a singela
blusa branca. Quando terminou de se vestir, observou-se com um olhar
crítico.
O cabelo estava perfeito. A saia, reta, e ela já não usava a atadura. A
vestimenta mostrava uma moça sensata, sóbria, quase própria para uma
matrona. Que defeito lhe poderia ele encontrar? De repente compreendeu no
que estava pensando e seu queixo se projetou em um ângulo teimoso. Por que
tenho que me preocupar com a opinião de um velho resmungão como o
Theodore? Ele é o dono do local onde me hospedo, não de minha vida!
Voltou a descer e viu que o café da manhã estava sendo preparado e a mesa
posta, mas os homens ainda não tinham chegado.
— Minha nossa! Como está bonita! — exclamou Nissa.
— Acha mesmo? — Linnea, hesitante, alisou a frente da blusa branca e
olhou para Nissa. — Pareço suficientemente adulta?
A mulher dissimulou o sorriso e inspecionou atentamente a moça por
cima dos óculos de aros metálicos.
— Oh, claro que parece mais velha! Bom, diria que parece ter pelo
menos... hum... dezenove.
— Não me diga!
Com muita dificuldade, Nissa conteve a risada diante da expressão de
agrado da garota. Linnea falou em tom baixo, confidencial: Preciso lhe dizer
uma coisa, Nissa. Desde que vi Kristian estive bastante preocupada. Eu não
gostaria de parecer mais jovem que meus próprios alunos.
— Ora, vamos — protestou Nissa, abaixando o queixo. — Com essa
saia tão engomada poderia até te dar vinte anos. Vire-se, deixe-me olhá-la de
costas.
Linnea girou lentamente, enquanto Nissa esfregava o queixo com ar
pensativo: — Sim! Vinte anos, seguramente! — a idosa mentiu.
A garota ficou radiante, mas, em seguida, substituiu o sorriso por uma
expressão mais sóbria, apoiou as mãos na cintura e parecia alguém que
tivesse de confessar um crime horrível: — Às vezes tenho... bem, um
pequeno problema. Refiro-me a me comportar como uma pessoa mais velha.
Meu pai estava acostumado a me repreender por ser tão sonhadora e esquecer
o que estava fazendo, mas desde que passei pela escola estive me esforçando
muito para parecer amadurecida e para não me esquecer de que sou uma
dama. Acreditei que a saia contribuiria para isso.
A jovem comoveu Nissa. Lá estava, embelezada com roupas de uma
pessoa mais velha, tratando de se comportar como se já estivesse pronta para
enfrentar o mundo, quando, na verdade, era evidente que a jovem estava
morta de medo.
— Suponho que deva sentir falta da sua família. Somos desconhecidos
e você tem que se habituar a muitas coisas estranhas para você.
— Não! Quero dizer que... bom, sim, claro que sinto falta deles, mas...
— Lembre-se disto — Nissa a interrompeu. — Não há nada de mais
teimoso que um bando de noruegueses. E somos a maioria por aqui. Mas
você é a professora. Tem um diploma que assegura que é a mais inteligente
de todos eles; assim, se começarem a se tornar insolentes, mantenha-se firme
e cuspa em seus olhos. Dessa forma eles a respeitarão.
Tornarem-se insolentes? Lamentou-se Linnea no íntimo. Acaso serão
todos como Theodore?
Como se seu pensamento o tivesse materializado, Theodore entrou pela
porta, seguido por Kristian. Ao vê-la, parou um momento e depois foi para
onde estavam o balde e o lavabo. Kristian hesitou e a olhou boquiaberto, sem
dissimular.
— Bom dia, Kristian.
— Bo… bom dia, Senhorita Brandonberg.
— Por Deus, você se levanta cedo! — Linnea exclamou.
Kristian sentiu como se tivesse engolido uma bola de algodão. Não lhe
saía uma palavra e parecia ter criado raízes no chão, admirando o rosto fresco
e jovem da professora, o bonito cabelo louro-escuro, às vezes com nuances
de castanho, e quando o sol do Álamo incidia sobre ele, brilhava como ouro
derretido; a cintura, esbelta como um ramo de salgueiro, era destacada pelo
conjunto de blusa e saia, que a deixava toda arrumada e emperiquitada.
— O café da manhã está pronto — informou Nissa. — Deixem de
tagarelar.
No lavabo, Theodore ensaboou as mãos e o rosto, enxaguou e, quando
deu a volta com a toalha na mão, viu o filho parado como um poste,
contemplando boquiaberto a nova professora, que naquela manhã parecia ter
treze anos. Até sua forma de permanecer de pé era infantil, com os recatados
sapatos plantados um junto ao outro. Entretanto, o penteado não estava mau,
preso de forma a acentuar a graça do seu pescoço longilíneo.
— O lavabo é seu, Kristian — Theodore censurou o filho com firmeza,
dando outra vez as costas para a professora sem cumprimentá-la.
— Bom dia, Theodore — disse Linnea, conseguindo fazê-lo sentir-se
um tolo por não tê-la cumprimentado primeiro. Ele se voltou novamente.
— Bom dia. Vejo que não perdeu a hora.
— É obvio. A pontualidade é a cortesia dos reis — recitou Linnea,
voltando-se para a mesa.
A pon... o quê? Pensou Theodore, sentindo-se um ignorante, sabendo
que ela o tinha posto em seu lugar com toda justiça enquanto a via se sentar.
— John não veio ajudá-los? — perguntou a jovem, obrigando-o a falar
com ela, embora seguramente não o quisesse. Com uma expressão ácida no
semblante, Theodore jogou-se na mesma cadeira que ocupara na noite
anterior.
— John tem seu próprio gado para cuidar. Kristian e eu ordenhamos
nossas vacas e ele, as dele.
— Acreditei que ele fizesse todas as refeições aqui.
— Chegará dentro de alguns minutos — respondeu Theodore, mal-
humorado.
Nissa trouxe uma travessa com toucinho fresco, outra com torradas e
cinco terrinas com algo que parecia mingau quente. Enquanto Theodore
pronunciava a oração, outra vez em norueguês, Linnea observava o conteúdo
de sua terrina, perguntando-se o que seria. Não tinha aroma, nem cor, nem
atrativo algum. Quando ele acabou a prece, ela observou os outros para ver o
que tinha que fazer com sua mistura pegajosa. Viu que untavam as suas com
creme e açúcar em abundância e o decoravam com manteiga, de modo que os
imitou e, com cautela, provou da mistura, deliciosa. Tinha um sabor parecido
com pudim de baunilha.
John chegou logo depois de a refeição ter começado. Todos se
saudaram, mas ela foi a única que fez uma pausa para adicionar um sorriso. O
homem ruborizou e se sentou com rapidez em sua cadeira, sem arriscar outro
olhar em direção à jovem. Como na noite anterior, a comida foi acompanhada
por grandes estalos de língua, mas nada de conversa. Para provar sua própria
teoria, Linnea disse em voz alta e clara: — Isto está muito bom!
Todos ficaram tensos e as colheres se detiveram a meio caminho das
bocas. Ninguém pronunciou uma palavra sequer. Ao ver que as mandíbulas
reiniciavam o trabalho, perguntou: — O que é isso?
Olharam-na como se ela fosse uma idiota e Theodore riu e engoliu
outro bocado.
— Como assim, o que é? — replicou Nissa. — É Rommegraut.[1]
A jovem inclinou a cabeça em direção a Nissa: — O quê?
Desta vez foi Theodore quem respondeu: — Rommegraut — apontou
para sua terrina com a colher. — Não sabe o que é o Rommegraut?
— Se soubesse não teria perguntado.
— Nenhum norueguês precisa perguntar o que é o Rommegraut —
disse ele.
— Bem, mas eu pergunto. Só sou descendente de um pai norueguês.
Como quem cozinhava era minha mãe, a maior parte da comida era sueca.
— Sueca! — exclamaram três pessoas em uníssono.
Se acaso existisse algum norueguês que não se considerasse melhor que
qualquer sueco, não estava nessa cozinha.
— É mingau de farinha de cereal — Nissa explicou.
Como tinham pressa em continuar com a tarefa do dia, terminada a
refeição, Linnea se resignou à rodada de arrotos, assim que as terrinas e os
pratos ficaram vazios. Theodore empurrou a cadeira para trás e anunciou,
friamente: — Agora vou levá-la à escola. Coloque as penas de pássaro se
necessitar delas.
Linnea se enfureceu. O que havia com esse homem para sentir tanto
prazer em persegui-la? Por sorte já tinha uma resposta pronta, que adorou
dar.
— Não se incomode; pedi a Kristian que me levasse.
As sobrancelhas de Theodore elevaram-se inquisitivas e ele direcionou
o olhar para outro lado.
— Kristian, hein?
O rosto do rapaz se acendeu como um farol e ele mexeu os pés
incomodado.
— Não demorarei muito e me apressarei para voltar ao campo assim
que a deixar lá.
— Então faça-o. Assim me poupará o trabalho — sem acrescentar nada
mais, Theodore saiu da casa. Linnea o seguiu com o olhar e uma expressão
irritada e, quando se voltou, comprovou que Nissa a olhava com
desconfiança, embora só tenha dito: — Precisará de material de limpeza e de
uma escada para alcançar as janelas e já preparei o almoço para você. Irei
buscá-lo.
Kristian a levou até a escola na mesma carroça em que ela havia
viajado com Theodore. Não avançaram nem três metros pela estrada e ela já
havia se esquecido por completo de Theodore. Era uma manhã maravilhosa.
O sol tinha subido no céu a largura de um dedo e aparecia por de trás de uma
faixa púrpura, que o dividia como uma bandagem brilhante, intensificando a
cor alaranjada com seus raios que passavam por cima e por baixo. Em ângulo
oblíquo, iluminavam as plantações de trigo, conferindo-lhes um luminoso
dourado e convertendo o trigal em uma massa sólida, imóvel para um dia sem
vento. O ar estava impregnado de sua fragrância. E tudo estava tranquilo e
quieto.
Um som vindo das plantações chegou até eles com a nitidez de um
clarim e os cavalos ergueram as orelhas, mas seguiram avançando com
ritmos parecidos. Em um campo à esquerda, elevavam-se as cabeças
douradas de vários girassóis.
— Oh, olhe! — Linnea os apontou. — Girassóis. Não são bonitos?
Amo girassóis.
Kristian a olhou inquisitivamente.
— Meu pai os detesta.
Linnea voltou-se para ele, assombrada: — Por quê? Olhe-os, mais altos
que todos elevando suas faces para o sol.
— Nesta região, eles são uma praga. Se invadirem um campo semeado
de trigo, ninguém se livra mais deles.
— Oh — murmurou a jovem, pensando no quanto era ignorante
quando o assunto era plantações.
Seguiram avançando. Depois de um minuto, a moça disse: —
Aparentemente, tenho muito que aprender a respeito de fazendas e coisas
assim. Terei que confiar em você para me ensinar, Kristian.
— Eu? — assombrado, Kristian voltou para ela os olhos castanhos.
— Bom, espero que não se incomode — respondeu Linnea.
— Mas você é a professora.
— Na escola. Fora da escola, acredito que tenho muito que aprender
com você. O que é aquilo?
— Uma espécie de cardo[2] — respondeu Kristian, seguindo a direção
do dedo que ela apontava para uma área com flores verde-claras.
— Ah! — ela digeriu a informação e, depois de um momento,
acrescentou: — Espere, isso também aborrece Theodore, certo?
— É uma praga pior que os girassóis — disse ele.
Linnea as seguiu com a vista, fixando-se nas flores enquanto a carroça
seguia em frente.
— Mas pode-se achar beleza em muitas coisas, mesmo que sejam
pragas. O que precisamos fazer é olhar outra vez. Possivelmente farei com
que os meninos desenhem e pintem os cardos antes que chegue o inverno.
Kristian não soube como reagir diante do que disse a professora. Achar
belas aquelas flores?! A vida toda ouviu as pessoas amaldiçoarem-nas e, por
estranho que parecesse, virou-se e esticou o pescoço para olhá-las. Linnea o
surpreendeu, deu-lhe um sorriso radiante e o rapaz adotou um ar confuso.
— Essa é a propriedade de John — mostrou Kristian quando passaram
diante dela.
— Isso já me disseram.
— Tenho tias, tios e primos esparramados por toda a região — ele lhe
contou, surpreso consigo mesmo, pois até o momento lhe era difícil conversar
com as garotas. — São cerca de vinte, sem contar os mais velhos.
— Os mais velhos?
— Tios-avós. Também tenho alguns.
— Diabos! — ela exclamou. — Vinte?
Kristian girou bruscamente a cabeça e sorriu. Jamais teria imaginado
uma professora de escola dizendo diabos desse modo. A moça percebeu o
que deixara escapar e tapou a boca com a mão. E quando percebeu que tapara
a boca, tirou a mão, olhou para o colo e alisou nervosa a saia.
— Acredito que terei que me controlar, não é? Às vezes esqueço que já
sou professora.
Por um momento, Kristian também esqueceu. Para ele, era só uma
garota a quem queria ajudar a descer da carroça quando entraram no pátio da
escola. Mas nunca fizera aquilo; portanto, não estava seguro de como devia
proceder um homem. Pediria que ela ficasse onde estava enquanto ele dava
a volta para o seu lado? E se ela risse? Algumas das garotas que conhecia
ririam dele... elas riam das coisas mais inusitadas. A perspectiva de tomar a
mão da Senhorita Brandonberg lhe causava calor e lhe produzia uma
comichão no estômago. Por fim, como demorou muito pensando, Linnea
saltou para o chão com agilidade, prometendo a si mesma que faria algo a
respeito das maneiras dos varões Westgaard, embora fossem os únicos
vivendo naquele lugar.
Kristian tirou a escada da parte de trás da carroça e seguiu a jovem, que
levava um balde e um pano de chão, cruzando o terreno da escola. Ao chegar
à porta, ela virou-se para o rapaz.
— Oh, esquecemos a chave!
Ele a olhou, perplexo. — A porta não está trancada. Aqui ninguém
tranca com chave. Inclinando-se, apoiou a escada contra a parede.
— Não? — Linnea olhou outra vez para a porta. Na cidade, as portas
eram fechadas a chave.
— Não. Está aberta, pode entrar.
Quando esticou a mão para a maçaneta, seu coração deu um salto.
Esperara por aquele momento durante muito tempo. Desde os oito anos, sabia
que queria ser professora. E não em uma escola da cidade, e sim em uma
como aquela, onde o edifício fosse todo para ela, onde tivesse a
responsabilidade da educação de seus alunos.
Abriu a porta e entrou: era um salão pouco profundo que percorria toda
a largura da construção, com chão de madeira sem acabamento e uma só
janela em cada extremidade. À frente, duas portas fechadas. À esquerda e à
direita das portas, bancos desgastados de madeira e, sobre eles, cabides de
metal para pendurar os casacos e jaquetas. No canto da esquerda, o mais
afastado, uma mesa quadrada, pintada de azul-claro e, sobre ela, uma jarra de
barro com o desenho de asas vermelhas esmaltadas em um lado. Junto, uma
torneira de madeira, semelhante às dos barris de vinho. Sob a torneira, o piso
já estava cinzento, por receber, anos após anos, as gotas.
Ela olhou para a direita. No canto, havia uma vassoura e em um prego,
pendurada pelo cabo de madeira, uma grande escova. Olhou para cima e,
sobre sua cabeça, pendurado pela cúpula por uma corda com um grosso nó na
ponta, estava o sino. Pousou o balde com movimentos lentos. Também muito
lentamente abriu as portas e ficou por um momento enlevada. Reinava o mais
absoluto silêncio. O local cheirava a pó de giz e a desafiou e, embora Linnea
Brandonberg pensasse como uma menina em vários aspectos, assumiu toda a
responsabilidade de uma adulta feita e responsável por seus alunos.
— Oh, Kristian, olhe...
O rapaz tinha visto a sala de aula milhares de vezes e o que observou
foi a nova professora, que, com olhos ansiosos e dilatados, percorria o salão.
O sol se derramava pelas janelas longas e estreitas, iluminando as fileiras de
carteiras atarraxadas a umas guias de madeira. Entre as janelas, pendiam
lamparinas com refletores de latão. No centro, com sua chaminé reluzente,
havia um fogareiro de ferro com dois fornos, que atravessava o teto revestido
de madeira. Na frente do salão, havia um assoalho elevado em que, para
decepção da moça, não havia escrivaninha, só uma grande mesa retangular
onde se apoiava apenas uma lamparina a óleo. Havia uma cadeira de madeira
e, depois dela, uma pequena prateleira com livros, cujos volumes tinham as
lombadas desbotadas, até chegar a tons de rosado, azul e verde. Havia um
globo terrestre, um mapa bem enrolado, e lousas sobre a parede da frente,
com bancos para recitar a cada lado. O coração de Linnea acelerou com
entusiasmo. Parecia-se com milhares de outras salas de aula em milhares de
povoados rurais. Mas era a sala dela!
A professora Senhorita Brandonberg.
A ideia a aturdiu e ela atravessou o salão, fazendo levantar uma fina
capa de pó com as saias. Suas passadas assustaram um camundongo que ia
correndo para ela e que se precipitou na direção contrária. Linnea parou,
sobressaltada, e respirou profundamente.
— Oh, olhe! Parece que temos companhia.
Kristian nunca vira uma moça que não gritasse nem se assustasse ao
ver um rato.
— Trarei uma ratoeira de casa e a colocarei aqui.
— Obrigada, Kristian. Temo que, se não o fizermos, ele coma os livros
e os papéis... se já não o tiver feito.
Ela escolheu um livro ao acaso, dos que havia na prateleira, e o abriu
em uma página qualquer. Sem fazer caso dos buracos que o camundongo
deixara nas bordas das páginas e de frente para Kristian, leu em voz alta: —
Petróleo: de acordo com a observação de Horace Greeley, aquele que faz
crescer duas folhas de grama onde antes crescia uma é um benfeitor da
humanidade, diz o analogista afirmando que aquele que aumenta, na prática,
o término da vida humana, acrescentando as horas em que o homem pode
trabalhar ou desfrutar, também é um benfeitor. O curso do século dezenove
está marcado por grande quantidade de invenções, descobrimentos e
melhoras tendenciosas a promover a civilização e a felicidade humanas em
maior medida do que qualquer outro período anterior e possivelmente não há
nenhum outro aspecto mais significativo ou benéfico que a melhora nos
métodos para iluminar nossas moradas, que permitiu a divulgação de seu uso
através da praticidade de um grande gerador de luz, o petróleo.
Ela fechou o livro de repente e o som retumbou no salão, enquanto a
garota, aprumada como uma espada, fazia uma profunda inalação. Kristian a
contemplava, perguntando-se como era possível que uma pessoa aprendesse a
ler semelhantes palavras e ainda mais entendesse seu significado. Chegou à
conclusão de que jamais conhecera uma moça mais inteligente nem mais bela
na vida e até lhe agradou a sensação de comichão no estômago que ela lhe
provocava.
— Adorarei trabalhar aqui — ela disse com tranquila intensidade,
cravando no moço um radiante olhar de olhos azuis, transbordante de
firmeza.
— Sim, senhorita — respondeu Kristian, pois não lhe ocorria nenhuma
outra coisa a dizer. — Vou lhe mostrar o resto e depois terei que voltar para
os campos.
— O resto?
— A parte de fora. Venha. — Dando a volta, ele a antecedeu na saída.
— Kristian.
Para ouvi-la, ele se virou.
— Nunca é tarde para começar a ensinarmos coisas um ao outro, não é
verdade?
— Não, Senhorita Brandonberg, acredito que não.
— Bom, então comecemos com uma das regras mais antigas: primeiro
as damas.
O rosto do rapaz ficou da cor das rosas silvestres, e, metendo o polegar
no bolso traseiro da calça, retrocedeu deixando-a passar primeiro. Enquanto
saía, Linnea lhe disse com amabilidade: — Obrigada, Kristian. Pode deixar a
porta aberta. Está com cheiro de mofo.
Lá fora, ele lhe mostrou a bomba e o abrigo para carvão, agora vazio e
não maior que um beiral que sobressaía da parede oeste da construção.
Plantações de trigo ocupavam o terreno da escola pelo Norte e pelo Leste. A
Oeste, havia uma fileira de altos álamos, atrás da qual estavam as latrinas de
madeira com telas de treliça na entrada. No parque infantil, havia dois
balanços de corda que pendiam de uma viga de madeira grossa e uma
gangorra, também de fabricação doméstica, com assentos sem acabamento.
Na área leste da construção, havia uma parte plana, coberta de grama,
aparentemente usada como um campo de futebol. Depois de ter explorado
todo o quintal da escola, Linnea elevou a vista para o topo da cúpula e disse,
num impulso: — Toquemos o sino, Kristian, só para ouvir como soa.
— Creio que não deve fazer isso, Senhorita Brandonberg. Se o fizer,
todos os fazendeiros dos arredores saltarão a seus transportes e correrão para
socorrê-la.
— Ah, é um sinal para pedir ajuda?
— Sim, senhora. Igual ao sino da igreja, embora a igreja fique a uns
cinco quilômetros na outra direção — ele apontou para o Oeste.
Linnea se sentiu uma menina por ter feito semelhante sugestão.
— Neste caso, terei que esperar até segunda-feira. Quantos alunos
terei?
— Oh, isso é difícil de calcular. Doze. Talvez quatorze. A maioria é de
primos meus.
— Sua vida deve ter sido muito diferente da minha, com tantos
parentes por perto. Todos os meus avós morreram e não há tios nem tias nesta
parte do país, assim, somos meus pais, minhas duas irmãs e eu, nada mais.
— Tem irmãs? — Kristian perguntou, surpreso. Sentiu-se honrado por
ela lhe confiar algo tão pessoal.
— Duas. Uma é da sua idade, a Carrie. A outra, quatro anos mais nova.
Chama-se Pauline, mas está na idade em que as meninas às vezes têm um
aspecto roliço — Linnea fez uma pose, inflando as faces com uma grande
lufada de ar até que seus lábios quase desapareceram e se moveu como se
tivesse uma grande barriga. — Por isso nós a chamamos de gorducha.
Kristian riu e a moça o imitou. Não, ele não sabia muito das mudanças
que as meninas sofriam, porque nunca tinha prestado muita atenção a elas,
salvo para evitá-las.
Até esse momento.
A Senhorita Brandonberg ficou séria e prosseguiu: — A minha irmã
não gosta que façamos brincadeiras e acredito que às vezes exageremos um
pouco, mas tanto Carrie quanto eu, já passamos pela mesma fase e também
tivemos que as suportar, e isso não nos fez mal.
— Oh, você jamais era gorda.
— Foi gorda — Linnea o corrigiu automaticamente e disse: — Oh, sim,
fui. Alegro-me de que não tenha me visto naquele tempo!
De repente, Kristian percebeu que fazia muito tempo que estava ali,
vagabundeando, perdendo tempo conversando com ela. Olhou para os
campos, enganchou os polegares nos bolsos traseiros e engoliu em seco.
— Bom, se não necessitar de mais nada, eu... tenho que voltar para
ajudar papai e o tio John.
— Oh, claro, Kristian. Já posso me arrumar perfeitamente. Tenho
muito que fazer e estarei atarefada. Obrigada por me trazer e por me mostrar
o lugar — Linnea virou-se e fez um gesto de que ele podia ir.
Quando o rapaz se foi, ela voltou para dentro e ficou trabalhando,
ansiosa. Passou a manhã varrendo e esfregando o chão, tirando o pó das
carteiras e lavando as janelas. Ao meio-dia, fez uma pausa e se sentou nos
degraus de entrada para comer o almoço que Nissa preparara para ela e havia
posto em um pequeno pote feito de uma lata de melaço. Mordiscando um
delicioso sanduíche feito com certa carne misteriosa, que até então nunca
provara, relaxou ao sol sonhando com a segunda-feira, com o quão
maravilhoso seria quando estivesse à frente de seu primeiro grupo de alunos.
Imaginou que alguns estariam ansiosos e receptivos; outros, tímidos,
necessitados de estímulo, e outros, atrevidos, aos quais teria que impor
limites. Pensando nisso, recordou-se de John e Theodore, tão diferentes entre
si. Não estrague o seu dia pensando em Theodore, repreendeu-se. Entretanto,
quando foi até a bomba para se servir de um gole de água fria para ajudar a
descer o sanduíche, sem se dar conta, olhou a Oeste. Até onde alcançava a
vista, os campos pertenciam a eles dois. Ali, em alguma parte, eles deviam
estar cortando trigo, junto com Kristian.
A terra era vasta e quase sem árvores. Alguns a chamariam de
desolada, mas ela, contemplando o claro céu azul e a planície imensa, só via
abundância e beleza. Sua mãe estava acostumada a dizer que ela possuía o
dom de ver o lado bom de tudo. Possivelmente, aquilo tinha a ver com sua
imaginação. Nos piores momentos, sempre contava com uma verve de
escape. Mas, ultimamente, em total acordo com seu pai, sua mãe afirmava
que já era hora de abandonar essas imaginações infantis. Entretanto, para
Linnea a fantasia era mágica, transportando-a para lugares que jamais veria
de outra maneira, levando-a a viver sensações que jamais experimentaria de
outro modo. E isso a fazia feliz.
Enxugou a água fria dos lábios com o dorso da mão e deu uns passos de
dança através do quintal da escola. Sentou-se rapidamente no balanço,
fazendo-o mover-se, impulsionando-o para trás e para a frente, deslizando
outra vez para seu mundo mágico.
— Bom, olá, Lawrence. Não esperava voltar a vê-lo tão cedo. —
Lawrence estava vestido como um dândi, com um elegante chapéu de palha,
uma camisa de listras vermelhas e brancas e faixas vermelhas nas mangas.
Com esse modo de andar, jogando todo o peso sobre uma perna e um quadril
inclinado, estava acostumado a lhe provocar um bater de cílios agitado.
— Vim te buscar para lanchar no campo.
— Oh, não seja tolo... não posso ir brincar contigo pelo campo. Tenho
que ensinar na escola e, além disso, da última vez você me meteu em uma
confusão que tive que me explicar. Fiquei muito chateada com você.
Ela fez a expressão mais graciosa possível.
Lawrence se pôs atrás do balanço e a deteve, pondo as mãos em sua
cintura, para fazê-la descer do assento de madeira.
— Conheço um lugar onde ninguém nos encontraria — disse, em tom
baixo e insinuante.
Linnea se aferrou às cordas e riu, provocadora, e sua risada flutuou
através do prado...
O diretor da escola, Frederic Dahl, guiou sua carroça puxada por um
cavalo pelo atalho da entrada da escola pública e, ao fazê-lo, topou com um
quadro cativante. Uma esbelta jovem, embelezada com uma larga saia cinza e
blusa branca, aferrava-se à corda de um balanço, balançava-se, girando para a
esquerda e para a direita. Pareceu-lhe ouvir uma gargalhada que chegava
flutuando sobre a grama, mas depois de uma rápida olhada, comprovou que
ali não havia ninguém mais. O balanço parou e a moça baixou os joelhos para
fazê-lo balançar-se, deixando depois cair a cabeça para trás. Ele tinha certeza
de que estava falando com alguém, mas com quem? Freou seu cavalo, atou as
rédeas e desceu da carroça. À medida que se aproximava, comprovou que a
moça era mais velha do que tinha suposto, pois pôde distinguir a forma dos
seios.
— Olá! — saudou-a em voz alta.
Linnea se ergueu de repente e olhou por sobre o ombro. Diabos, tinha
sido surpreendida outra vez!
Desceu rapidamente, alisou as saias e ruborizou. — Estou procurando o
senhor Brandonberg — informou Frederic Dahl.
— Sim, aparentemente todos o procuram, mas terá que se conformar
comigo. Sou a Senhorita Brandonberg.
No semblante do homem, refletiu-se a surpresa, mas não o desagrado.
— E eu sou o diretor Dahl. Cometi o engano de não esclarecer esse
ponto em nossa correspondência. Esta sim é que é uma surpresa agradável!
— exclamou o diretor. O rosto de Linnea ardeu mais e ela começou a enrolar
as mangas da blusa.
— Oh, diretor Dahl, sinto muito. Não me dei conta de que era o senhor.
— Vim lhe trazer provisões e me certificar de que consiga instalar-se
sem dificuldades.
— Oh, sim, é obvio. Entre. Eu... — riu, nervosa e limpou a saia um
pouco manchada.
— Eu estava limpando e lhe peço que desculpe meu aspecto.
Limpando? Pensou o homem, olhando por sobre o ombro, enquanto se
dirigiam à sala de aula. Entretanto, voltou a comprovar que não havia
nenhuma outra pessoa. Dentro, havia uma escada apoiada contra a parede e o
chão de madeira ainda estava úmido. A moça girou para ele, espremendo as
mãos e exclamando: — Adorei! É minha primeira sala de aula e estou
entusiasmada! Queria lhe agradecer por me recomendar ao conselho escolar.
— Você obteve seu diploma, não me agradeça por isso. Está de acordo
com seu alojamento na casa dos Westgaard?
— Eu... hum... — ela não queria dar a impressão de que tinha
contratado uma queixosa. — Sim, está tudo ótimo. Está tudo bem.
— Muito bem. Tenho a obrigação de fazer uma inspeção anual da
propriedade nesta época, de modo que você pode seguir trabalhando e me
reunirei com você assim que terminar.
Linnea o viu se afastar, sorrindo para o verdadeiro Senhor Dahl, que
não se parecia em nada com o vistoso apaixonado que ela imaginara. Media
um metro e meio de altura, era tão redondo quanto um barril de água de
chuva e tão perfeitamente calvo que parecia tosado. O que restava de cabelo
tinha uma intensa cor ferrugem, e lhe aderia como uma grinalda festiva sobre
as orelhas. Quando o homem saiu, ela apoiou um braço no estômago, tapou a
boca sorridente com a mão e sufocou uma risada. Valentes cavalheiros de
brilhantes armaduras, os que imaginava a Senhorita Brandonberg. Primeiro,
Theodore Westgaard, e depois, o senhor Dahl.
O diretor inspecionou a parte exterior da construção, a carvoeira e até
as privadas e depois entrou outra vez para fazer o mesmo com o interior.
Quando terminou, perguntou: — Theodore Westgaard lhe falou sobre o
carvão?
— Carvão? — ela perguntou por sua vez, sem entender.
— Desde que a nevasca de 1888 surpreendeu algumas escolas não bem
providas, ditou-se uma lei pela qual deve haver suficiente lenha ou carvão à
mão antes de meados de outubro, para que dure até a primavera.
Linnea não tinha nem ideia da questão.
— Sinto muito, não sabia. É o Senhor Westgaard que providencia o
carvão?
— Até agora o tem feito sempre devido a um acerto que fez com o
conselho escolar. Pode pagar a quem quiser para que traga o carvão, mas
tenho o dever de me assegurar de que isso esteja previsto.
— O Senhor Westgaard está trabalhando no campo. O senhor poderia
encontrá-lo para falar com ele a respeito.
O homem anotou algo em um caderno que levava e respondeu: — Não,
não é necessário. Dentro de duas semanas darei outra volta e tomarei nota
para me lembrar de comprová-lo nessa ocasião. Enquanto isso, eu lhe
agradeceria se você o lembrasse a ele.
Na realidade, não queria lembrar nada a Theodore Westgaard, mas
assentiu e assegurou ao Senhor Dahl que se encarregaria do assunto. O
diretor lhe levara provisões: gizes, tinta e um livro de registros novo.
Recebeu-o com gesto reverente, acariciando a dura capa vermelha com a
mão. Observando-a, o diretor percebeu que, apesar da moça frívola que
surpreendera sonhando no balanço quando chegou, ela era também uma
professora devotada.
— Como deve saber, a escola funciona das nove da manhã até as
quatro da tarde, Senhorita Brandonberg, e entre suas tarefas se incluem
acender o fogo para que o local esteja aquecido quando chegarem as crianças,
manter isso aqui sempre limpo, afastar a neve se for necessário e se tornar
parte integrante da comunidade da região, a ponto de conhecer as famílias das
crianças que serão seus alunos. Este último será o mais fácil: todos são boas
pessoas. Honestas e trabalhadoras. Acredito que terão uma disposição de
cooperar e de lhe serem úteis. Se alguma vez necessitar de algo e não puder
se comunicar comigo, peça a eles. Você descobrirá que, neste povoado,
ninguém é mais respeitado que o professor.
Uma vez que seja homem, pensou, embora, é óbvio, não o tenha dito.
Despediram-se, e Linnea o observou subir na carroça. Mas, antes de ele
subir, ela protegeu os olhos com a mão e o chamou: — Oh, Senhor Dahl.
— Sim? — o homem parou e se voltou.
— O que aconteceu aos professores e aos alunos que ficaram sem
combustível durante a nevasca de 1888?
Sob o sol benévolo de começo do outono, o diretor a olhou nos olhos.
— Não sabe? Muitos deles congelaram e morreram antes que chegasse
o auxílio.
Linnea estremeceu e recordou a advertência de Theodore quando se
enfrentaram na estação de trem: Ensinar em uma escola não é só rabiscar
números em uma lousa, Senhorita! Terá que caminhar mais de um
quilômetro e meio e por aqui os invernos são duros!
De modo que não foi uma tentativa de assustá-la. A advertência tinha
fundamento. Linnea deixou vagar os olhos pelos trigais que balançavam,
tratando de se imaginar nessas planícies cobertas de neve, o vento do Ártico
assobiando do Noroeste e as quatorze crianças cujas vidas dependeriam dela
até que lhes chegasse ajuda. Em tal situação, não poderia procurar refúgio na
fantasia. Teria que apelar para toda sua lucidez e manter a mente calma se
isso acontecesse. Mas era difícil imaginar aquilo, de pé sobre os degraus, com
o sol lhe aquecendo o cabelo enquanto os esquilos listrados brincavam de se
esconder em seus buracos, os pássaros brincalhões cantavam, os tentilhões
alimentavam-se com sementes de cardo e as espigas balançavam lentamente.
Contudo, decidiu falar imediatamente com Theodore sobre o carvão e
pedir a Nissa alguns alimentos de emergência para armazenar na escola... no
caso de precisarem.
CAPÍTULO 4
MELINDA

Algumas vezes, Linnea recordava-se de que havia guerra, mas a


irritação ou a fantasia romântica coloriam esses pensamentos. A irritação
vinha quando tinha que prescindir das coisas de que mais gostava: açúcar,
pão, carne assada, e a fantasia romântica cada vez que pensava em soldados
despedindo-se com beijos de suas amadas enquanto o trem ia saindo da
estação, em noivas que recebiam cartas amassadas, manchadas,
transbordando de palavras de um amor sem fim... em enfermeiras com cruzes
vermelhas nos xales, sentadas junto aos leitos dos feridos, segurando-lhes as
mãos.
Nesse dia, quando voltava caminhando da escola, recordou o conflito
que se desenvolvia na Europa. O presidente Wilson convocara os norte-
americanos a passarem “sem trigo e sem carne” um dia por semana em
contribuição para que as provisões fluíssem para a França. Olhando ao redor
para os infinitos hectares de trigo e os grandes rebanhos de vacas que via ao
longe, Linnea pensou: Que tolice, isso nunca nos faltará aqui!
Como sempre, até uma reflexão tão breve com respeito à guerra era
muito inquietante, de modo que tirou aquilo da cabeça, deixando lugar para
pensamentos mais agradáveis. Os esquilos e os cães da pradaria se dedicavam
com entusiasmo às suas brincadeiras e era um deleite observar seus pulos e
vê-los escapulir com grande barulho. Andando a passo vivaz, ela examinou a
lista de alunos que achou dentro do livro de registro. Kristian não exagerava
quando lhe dizia que a maioria era de primos dele. Dos quatorze que
integravam a lista, oito eram Westgaard! Estava impaciente por interrogar
Nissa a respeito de cada um deles e quis chegar logo à casa.
Antes de percorrer a metade da distância, percebeu que os sapatos
novos eram mais elegantes que práticos. Parecia-lhe sentir cada seixo do
caminho através da sola e os saltos faziam-na torcer os tornozelos quando
pisava nas pedras. Quando, por fim, entrou no atalho que levava à casa, não
só lhe doíam os pés, mas também tinha ganhado uma bolha no pé esquerdo,
onde a costura da união do elástico e do couro lhe roçava o osso do tornozelo.
Nissa a viu coxear e apareceu na porta da cozinha.
— A caminhada foi um pouco mais longa do que pensava?
— São esses sapatos novos, que ainda me apertam um pouco.
A mulher os observou enquanto Linnea subia os degraus e entrava na
cozinha.
— Tudo bem que sejam elegantes, mas aqui é preferível que sejam
resistentes.
— Começo a entender isso — reconheceu, jogando-se em uma cadeira
com um suspiro de alívio. Apoiou o tornozelo sobre o joelho e fez uma
careta. Nissa cruzou os braços e sacudiu a cabeça.
— Fez-lhe uma bolha, hein? — disse a idosa, e a moça levantou a
cabeça e assentiu, abatida. — Bom, tire isso e eu olharei.
Era difícil tirá-los, pois eles se ajustavam mais no tornozelo que as
botas novas de um vaqueiro. Quando terminou de lutar e retorceu os pés para
descalçar-se, Nissa riu, divertida.
— Não sei como você faria se tivesse que tirar isso depressa. Tem
outro calçado?
No rosto da moça, uma expressão de pesar.
— Receio que não.
— Bom, parece-me que será conveniente conseguir um par para você.
Ela apressou-se até o próprio dormitório e voltou com um par de
grossas sapatilhas tecidas com lã negra e um catálogo da loja de
departamentos Sears Roebuck.
— Bem, vejamos essa bolha.
Para mortificação da garota, os homens voltaram da ordenha justo
quando Nissa tinha ido procurar gaze e unguento para colocar na bolha.
Linnea estava sentada, com o pé descalço apoiado no colo, examinando com
cuidado a grossa bolha, quando notou que alguém a observava. Ao levantar
os olhos, encontrou-se com Theodore na porta e viu que uma das comissuras
de sua boca se elevava em um sinal de diversão. Baixou o pé tão rapidamente
que este se enredou na saia longa e ela ouviu quando a costura se rompeu. O
sangue amontoou-se-lhe no rosto e, cobrindo um pé com o outro, olhou
desafiadora para o homem impertinente.
— Vim buscar os baldes para o leite — disse ele e entrou na cozinha,
dirigindo-se à despensa.
Nissa chegou do dormitório com um pote de unguento e se apoiou em
um joelho diante de Linnea. Theodore perguntou, saindo da despensa: — O
que lhe aconteceu?
— Ela fez...
— Os sapatos novos me provocaram uma bolha! — replicou Linnea,
sem se importar que seu rosto estivesse vermelho, e dirigiu a Theodore um
olhar furioso. — E possuo um diploma de professora da Escola Normal de
Fargo, em que se diz que sou perfeitamente capaz de interpretar perguntas e
respondê-las eu mesma, caso isso lhe interesse! — irritada, arrebatou o
unguento e a gaze das mãos de Nissa. — Posso fazer isso sozinha, Nissa,
obrigada.
Com movimentos exasperados, tirou a tampa do pote, levantou a planta
do pé e, sem fazer caso das testemunhas, aplicou o unguento.
Theodore e Nissa trocaram olhares surpreendidos. Depois a mulher
ficou de pé, entregou-lhe uma agulha e lhe aconselhou, secamente: — Já que
é assim, aconselho-a a que a estoure antes de tapá-la.
Linnea aceitou a agulha sem levantar os olhos para além das mãos da
anciã e depois se ocupou da desagradável tarefa. Nissa olhou para o filho e
viu que ele observava Linnea com um sorriso torto e divertido na boca.
Quando Theodore ergueu os olhos, topou com o olhar da mãe e sacudiu a
cabeça, como se dissesse “é um caso perdido” e saiu da cozinha balançando
os baldes um de cada lado. Quando se foi, a planta do pé da jovem golpeou o
chão com um ruído e seu olhar furioso se cravou na porta.
— Esse homem me irrita muito!
De repente, percebeu que estava falando com a mãe dele e se abrandou
um pouco.
— Sinto muito, Nissa. Eu não devia ter dito, mas é... às vezes ele é tão
exasperante! Eu seria capaz de... de...!
— Não me ofende. Diga o que tem que dizer.
— Theodore faz-me sentir como se ainda fosse uma colegial — abriu
os braços, expressando seu aborrecimento. — Foi assim desde o primeiro
instante em que foi me buscar na estação e zombou de meu chapéu e de meus
sapatos. Dei-me conta de que ele me via quase como uma menina vestida
com roupa de adulta. Bom, não sou uma criança!
— Claro que não. Isto foi só um infortúnio, nada mais. A qualquer um
poderia acontecer sair uma bolha. Não faça caso de Teddy. Lembra-se do que
eu disse com relação a quão teimosos são os noruegueses e como deve tratá-
los? Bom, faça isso, Teddy necessita de uma boa correção.
— Mas por que ele está sempre... de tão mau humor?
— Há muito ele vem sendo assim. Não tem nada a ver com você. É
assim, simplesmente. E agora, ponha essa atadura e deixe que eu vá preparar
uns sanduíches para eles. Quando chegam, não gostam de perder tempo.
Enquanto Nissa preparava os sanduíches, Linnea lhe contou a visita do
diretor Dahl e leu para ela a lista de nomes do livro de capa vermelha; a anciã
lhe deu informações sobre cada um. O primeiro nome da lista era Kristian
Westgaard, de dezesseis anos.
— Kristian eu já conheço — disse Linnea. — O que me diz do
seguinte... Raymond Westgaard, de dezesseis?
— É o filho do Ulmer, meu filho mais velho. Ele e Kristian são muito
amigos. Amanhã, na igreja, você conhecerá o Ulmer e sua esposa Helen,
assim como todos os outros. Eles vivem perto da prefeitura.
Linnea leu os dois nomes seguintes: — Patricia e Paul Lommen, de
quinze anos.
— São os gêmeos Lommen. Vivem do outro lado da propriedade do
Ulmer. Esses dois são muito inteligentes. Estão sempre competindo, o que é
natural sendo eles gêmeos. No ano passado, Patricia ganhou o concurso de
ortografia.
A moça anotou o comentário junto ao nome e seguiu lendo.
— Anton Westgaard, quatorze anos.
— É o pequeno Tony. Também é filho do Ulmer e da Helen. É tímido
como o tio John, mas tem um coração imenso. Sofreu febre reumática quando
era menor e ficou um pouco fraco, mas de todos os modos tem uma boa
cabeça sobre os ombros.
Linnea anotou o nome familiar e a informação sobre a saúde do
menino.
— Allen Severt, quinze anos.
— Allen é o filho do ministro. Vigie-o, é um briguento.
A professora, com a testa franzida, elevou os olhos.
— Briguento?
— Às vezes acredito que ele está convencido de que pode sair fazendo
o que quer, porque a única pessoa que aqui que se respeita mais que ao
professor é o ministro. Se os professores que tivemos durante anos lhe
tivessem dado o devido castigo e contado ao Reverendo Severt algumas das
diabruras de Allen, talvez ele não tivesse se convertido em semelhante
problema.
— Que tipo de diabruras?
— Oh, empurrar os meninos mais jovens, zombar das meninas de
maneira nada divertida, mas nada que se possa considerar grave. No que se
refere a coisas graves, ele é bastante hábil para apagar seus rastros, de modo
que não lhe possam acusar de nada. Convém vigiá-lo. É respondão e atrevido.
Nunca me agradou, mas formará sua própria opinião quando o conhecer.
Linnea lhe assegurou que o faria e seguiu com outro nome: — Libby
Severt, onze anos.
— É a irmã de Allen. É bastante ignorada, porque Allen se encarrega
de atrair toda a atenção da família. Parece uma garota bastante agradável.
— Frances Westgaard, dez anos.
— Também é do Ulmer e da Helen. Ela tem um lugar especial em meu
coração e acredito que é porque é mais lenta que os outros. Mas você jamais
conhecerá uma menina mais bem disposta nem mais carinhosa. Espere que
chegue a época do Natal: ela será a primeira a dar a você um presente e será
um presente muito bem pensado.
Linnea sorriu e desenhou uma flor junto do nome.
— Norma Westgaard, dez anos.
— Norma é filha de meu filho Lars e de sua esposa, Evie. É a mais
velha dos cinco e sempre está cuidando dos menores como uma mãe. Mais
adiante, achará na lista o Skipp e a Roseanne, os irmãos menores de Norma
— Nissa ficou pensativa por um momento e depois prosseguiu, como se
respondendo a uma pergunta tácita. — Acredito que Roseanne começará a
escola este ano. Todos são boas crianças. Lars e Evie os criaram bem, como
todos os meus filhos criaram os deles.
A subjetividade da avó a fez sorrir e ela baixou o rosto para que Nissa
não o visse. O nome seguinte da lista era Skipp, cujo nome uniu com
colchetes aos dos irmãos e comprovou que, além de Skipp, havia outros dois
de oito anos na lista: os de terceiro grau seriam seus alunos mais velhos.
— Bent Linder e Jeannette Knutson.
— Bent é filho de minha filha Clara, a mais nova. Está casada com um
bom moço chamado Trigg Linder e eles têm mais dois menores e esperam o
terceiro para fevereiro — o olhar de Nissa se prendeu a um ponto remoto e
suas mãos se aquietaram por um instante. — Deus, como o tempo passa!
Parece-me que foi ontem que a própria Clara terminou a escola — suspirou.
— Ah, bom. Quem segue?
— Jeannette Knutson.
— É filha de Oscar e Hilda... conhece-os? Ele é o presidente do
conselho escolar.
— Oh, claro. E tem dois de sete anos: Roseanne e Sonny Westgaard.
— Primos. Já lhe disse que Roseanne é filha de Evie e Sonny, do
Ulmer. Tem o nome do pai, mas sempre lhe chamamos de Sonny.
As anotações de Linnea começaram a se tornar confusas, como ela
mesma, e sua expressão o demonstrou. Rindo, Nissa deixou um prato com
sanduíches sobre a mesa e voltou para a cozinha limpando as mãos no
avental.
— Entenderá melhor quando conhecê-los todos. Em muito pouco
tempo os chamará por seus nomes de batismo e saberá a que família
pertencem. Aqui todos conhecem todos e você também os conhecerá.
— Então muitos deles são seus netos — disse Linnea, com certo
assombro na voz.
— Tenho treze netos. Serão quatorze quando nascer o de Clara. Sempre
penso em quantos mais seriam se John se casasse e se Melinda não tivesse…
Mas neste instante os homens irromperam casa adentro e Nissa parou
de falar. Dirigiu um olhar cauteloso para Theodore e se apressou a ir à
despensa guardar a faca de açougueiro.
Quem será Melinda? Perguntou-se Linnea. A esposa de Theodore? A
mãe de Kristian? Se Melinda não tivesse… o quê?
Linnea, de forma dissimulada, observou pai e filho que entravam.
Tentou imaginar Theodore com uma esposa. Como seria? Levando em conta
o cabelo de Kristian, ela devia ser loira. E supôs que devia ser bela, a julgar
pelos harmoniosos traços do rapaz. Kristian teria herdado dela o lábio inferior
cheio e a boca bem formada? Muito provavelmente, pois a de Theodore era
bem diferente: longa, muito definida, mas não tão curvada. Custava imaginá-
la curvada em um sorriso, pois ela jamais o tinha visto sorrir.
De onde estava sentada junto à mesa, viu-o cruzar a cozinha em direção
ao balde de água. Observou-o jogar a cabeça para trás enquanto bebia água.
De repente, ele deu a volta e a surpreendeu. Seus olhares se encontraram e
Theodore deixou a caneca em cima do balde com gestos lentos e secou a
boca com o dorso da mão, com gestos ainda mais lentos. No peito de Linnea,
passou algo estranho. Uma fugaz opressão, uma tensão que a fez baixar os
olhos para a lista de nomes no livro aberto sobre a mesa da cozinha.
— Vim buscar os sanduíches — disse o homem, sem se dirigir a
ninguém em particular. De repente, Nissa surgiu diante deles com um monte
de grossos sanduíches.
— Pode ir — disse Nissa.
— Nós nos vemos no jantar — disse o homem.
— Sim, nós nos vemos no jantar — respondeu Linnea.
Mas Theodore não a saudou e se limitou a sair. Linnea se perguntou o
que era que a tinha impactado. Conjecturou que poderia ser o desconforto,
pois, de certo modo, esse homem possuía a capacidade de sacudi-la cada vez
que os dois estavam a uma distância suficiente para se falarem.
Nissa voltou, apoiou a cafeteira na parte mais quente do fogão e olhou
para a porta por onde acabava de sair Theodore. Para buscar ânimo, Linnea
inspirou profundamente e perguntou: — Quem é Melinda?
— Quer encomendar os sapatos ou não? — Nissa indicou com uma
sacudida de cabeça o catálogo que estava sobre a mesa.
— Dentro de um minuto... — fez uma pausa e repetiu, em voz baixa —
Quem é Melinda?
— Era a esposa do Teddy, mas ele não gosta de falar dela.
— Por quê?
Nissa tirou os óculos, sustentou-os pela ponta do nariz e soltou o
fôlego. Levantou o avental e se concentrou em limpá-los, enquanto
respondia: — Porque ela fugiu, deixando-o com um menino de um ano e
jamais voltamos a vê-la por aqui.
Linnea teve que se esforçar para sufocar uma exclamação. — Co…
com um menino de um ano?
— Foi isso o que eu disse, não?
— Refere-se a Kristian?
— Não vejo nenhum outro filho do Teddy por aqui, e você?
— Quer dizer que ela... os abandonou? — em seu interior algo se
retorceu, um aperto de piedade, a compulsão de saber mais.
Nissa se sentou para folhear as grossas páginas com o polegar e o
catálogo se abriu. Ela molhou um dedo na boca e com duas passadas
encontrou a página correta.
— São estes — ela esticou o pescoço para observar a fila de desenhos
em preto e branco. — Estas botas de chuva para dama, com cordões, são
adequadas. Estas lhe servirão.
Nissa mostrou a página com o indicador. A pele daquele dedo estava
muito enrugada e ele já não se esticava completamente. Com gesto suave,
Linnea cobriu a mão da anciã e falou com muita doçura: — Gostaria que
você me falasse sobre Melinda.
Nissa levantou os olhos assustados. Os óculos ovalados aumentavam os
opacos olhos castanhos, acentuados pelas rugas das pálpebras. Ela
contemplou a moça em silêncio, como avaliando-a. Veio de fora o grito de
um corvo e o som dos cascos de cavalos que se afastavam. Ela olhou para o
pátio da fazenda, onde já não se via o filho, e retirou a mão da de Linnea para
empurrar o catálogo para trás com os polegares.
— Está bem. Se quer saber... Vou contar até onde sei. Você se
aborreceria se primeiro eu me servisse de uma xícara de café?
Era imaginação sua ou Nissa parecia abatida pela primeira vez?
Apoiando as mãos nos joelhos, ficou de pé, encontrou uma xícara e a encheu.
Quando voltou para a mesa, não era só abatimento o que lhe pesava nos
ombros: em seus olhos, havia uma indubitável expressão de tristeza.
— Foi no verão de 1900. Meu marido, meu Hjalmar, pensava que
Theodore Roosevelt era a pessoa mais grandiosa que pisara a terra. Na região,
todos amavam o velho Quatro-Olhos, sabe? Chegaram a considerá-lo um
filho do lugar porque teve um rancho em Medora por um par de anos.
Acrescente-se a isso o fato de que ele acabara de estar em Cuba com os
Rough Riders,[3] com os que cavalgaram até San Juan Hill e era virtualmente
um herói nacional. Mas ninguém o admirava tanto quanto meu Hjalmar.
Naquele verão, Roosevelt se apresentou como candidato a vice-presidente
com o McKinley. Hjalmar soube que isso aconteceria em Williston no trem
de campanha. Nunca esquecerei o dia em que ele entrou como uma furação
na casa, vociferando: “Senhorita” (estava acostumado a me chamar assim
quando estava excitado): “Senhorita”, gritou, “faz as malas, vamos para
Williston ver o Roosevelt!” Caramba, eu não podia acreditar. Disse-lhe:
“Hjalmar, do que está falando? Outra vez esteve provando a nova cerveja de
centeio do Helgeson?” (Helgeson preparava uma cerveja caseira e os dois
sempre afirmavam que “precisavam prová-la”) ...
Os olhos de Nissa se suavizaram com a luz da lembrança e o fantasma
de um sorriso brincou em seus lábios. De repente, ela aclarou a voz, bebeu
um gole de café e voltou para o ponto principal do relato.
— Hjalmar dizia que nenhum filho ao qual pusesse o nome de Teddy
Roosevelt devia perder a oportunidade de ver seu xará em pessoa, já que ele
estava a menos de cem quilômetros de distância, e assim foi quando nós três
fomos a Williston esperar o trem.
Nissa apertou o punho e o golpeou brandamente sobre o catálogo.
— Bom, isso foi o que fizemos. Fomos até Williston os três, ocupamos
um quarto no hotel Manitou e todos nos emperiquitamos com nossas roupas
de domingo e fomos à estação para ver chegar esse trem — ela balançou
lentamente a cabeça.
— Foi algo digno de se ver, asseguro-lhe — levou a mão ao coração.
— Havia uma grande banda tocando marchas e colegiais agitando bandeiras
norte-americanas, e então chegou o trem, todo adornado com bandeiras e
faixas, e lá estava o Senhor Roosevelt, de pé no último vagão, com as mãos
levantadas e as faces tão vermelhas como as listras das bandeiras, na cor do
uniforme da banda que fazia muito barulho com as canções patrióticas.
Lembro-me de que, ao levantar os olhos, vi meu Hjalmar com um sorriso no
rosto. Meu marido tinha um bigode igual ao do Roosevelt e lá estava ele, com
o braço sobre os ombros do Teddy, acenando para o grande homem e
gritando algo na orelha de Teddy.
Na expressão da mulher, Linnea podia ver e ouvir toda a cena. Nesse
instante, Nissa ergueu os olhos e, ao se dar conta de que se deixara levar
pelas lembranças, baixou a mão e sustentou a xícara. Fungou para limpar
algo mais que apenas o nariz.
— Bom, ela estava em alguma parte daquele trem. Seu pai tomava
parte no comitê de campanha do McKinley e Roosevelt e, como a mãe tinha
morrido, ela ia a todos os lugares com o pai. Disso resultou que eles ficaram
em Williston mais tempo que o trem. Aparentemente, havia um sujeito rico
ali, de nome Hagens, que tinha feito importantes doações para a campanha. Ia
acontecer uma reunião política, na qual os fazendeiros teriam oportunidade
de falar com os candidatos e obrigá-los a cumprirem certas promessas.
Depois houve um jantar no Manitou e as peças-chave do candidato foram
distribuídas pelas mesas para responder às perguntas. Então Melinda e seu
pai se sentaram conosco.
Nissa suspirou. Linnea não a interrompeu. A velha senhora estava
muito distante dali: — Não me recordo muito daqueles instantes, mas talvez
tenha sido culpa minha e do Hjalmar por não prestar muita atenção a esses
jovens. O que aconteceu foi que Hjalmar estava falando de política e eu
estava deslumbrada pelo que via naquele hotel tão luxuoso. Lembro-me de
que a banda tocava outra vez e de que dei uma cotovelada no Hjalmar e disse:
“Olhe ali”, porque lá estava nosso Teddy dançando com essa moça. Claro
que Hjalmar estava envolvido em uma discussão sobre os méritos e defeitos
do novo sistema de serviço civil proposto pelo Senhor Roosevelt. Logo
depois, não me recordo a hora exata, Teddy se aproximou e nos disse que ele
e a moça iriam dar um passeio. Claro que fiquei surpresa, mas, no fim das
contas, Teddy já tinha dezessete anos.
Linnea tentou imaginar Teddy aos dezessete e não conseguiu. Tentou
imaginá-lo dançando, mas também não pôde. Tentou imaginá-lo levando uma
moça pelo braço para dar um passeio, e tampouco conseguiu ver essa cena
em sua mente. Como só tinha conhecido seu lado irascível, essas imagens
pareciam desconectadas da pessoa dele.
— Mas tendo dezessete ou não, antes que a manhã seguinte chegasse,
Teddy tinha provocado um grande reboliço. Esperamos, esperamos e fomos
perguntar ao pai de Melinda, mas ela tampouco havia retornado. O relógio
batia cinco da manhã quando os dois entraram no vestíbulo de mãos dadas —
Nissa olhou por sobre os aros dos óculos e cruzou os braços sobre o peito. —
Já viu alguma vez o que acontece quando uma doninha escapole dentro de
um galinheiro? Bom, foi assim que parecemos quando os surpreendemos no
vestíbulo. Voaram plumas em todas as direções e algumas foram lançadas
por mim. Asseguro-lhe de também ter participado da arruaça e nunca escutei
semelhantes chiados e gritos como os que lançou Melinda quando seu pai a
levou arrastada para o quarto. Gritava como se a matassem, exclamando que
não tinha feito nada do que se envergonhar e que, se vivesse em uma casa e
pudesse ficar quieta como outras moças, não teria que ficar fora toda a noite
para fazer amigos novos — Nissa, inconscientemente, passou uma das mãos
na boca, pois o café frio tinha deixado um gosto ruim. — Jamais perguntei
onde estiveram todo aquele tempo nem o que tinham feito. Para falar a
verdade, acredito que não queria saber. Levamos Teddy para nosso quarto e
fechamos a porta com um golpe, ouvindo que a garota seguia gritando como
uma gata selvagem. Todo o hotel foi despertado, só se viam as cabeças
desgrenhadas aparecendo nas portas. Por Deus, foi horrível!
Nissa suspirou.
— Bom, acreditamos que tudo tinha acabado. Pela manhã, tiramos o
Teddy dali sem pousar os olhos outra vez sobre Melinda. Mas não se passara
nem uma semana quando a garota se apresentou à porta de minha cozinha,
audaz e atrevida. Naquele tempo, vivíamos na casa do John. Lá era nosso lar
e a garota disse que queria ver Teddy, e se eu podia, por favor, lhe dizer onde
encontrá-lo — Nissa agitou a cabeça, como se não pudesse acreditar naquilo.
— Ainda posso vê-la, com o rosto que dava a impressão de não ter vergonha
na cara, de pé no vão de minha porta, pedindo para ver meu rapaz. Não fazia
sentido o modo como se comportou e o que resultou disso. Suponho que
devia ser uma daquelas épocas de loucura pelas quais, às vezes, passamos na
vida quando nos rebelamos e acreditamos que já é hora de nos tornarmos
independentes.
Nissa voltou a perder-se nas lembranças e ficou em silêncio, pensativa.
— O que aconteceu depois? — perguntou Linnea.
A mulher levantou o olhar, soltou um suspiro profundo e prosseguiu:
— O que aconteceu foi que ela foi para o campo à procura do Teddy. Ele
estava ceifando trigo com o Hjalmar e os rapazes. Ela disse a ele que tinha
decidido vir e se casar com ele, como tinha sido conversado. Nunca lhe
perguntei, mas me pareceu que a aparição da garota dizendo isso foi uma
surpresa para Teddy, como foi para todos nós. Mas ele nunca deixou
transparecer isso e pelo rosto de Melinda era fácil imaginar que ele estava
louco de amor por ela. Resultado: casaram-se e bem depressa. Hjalmar lhes
deu estas terras e todos os rapazes ajudaram a construir esta casa. Todos nos
perguntávamos no que aquilo daria, embora esperássemos o melhor. Depois
soubemos que ela tinha discutido com o pai com respeito a viajar no trem
com ele, e deduzimos que, na realidade, o que havia por trás disso era só uma
moça jovem a quem lhe ordenaram fazer uma coisa e que havia decidido não
obedecer. Então ela se casou com meu filho. Mas nunca se adaptou.
Nissa balançou a cabeça lentamente, negando: — Nunca. Ela era da
cidade e nunca entendi por que quis um rapaz fazendeiro. O primeiro sinal de
que alguma coisa estava errada é que percebemos que ela esperava alguém da
sua família, como que para resgatá-la. Ainda posso vê-la diante da janela,
com os olhos perdidos no trigal, dizendo que aquilo a enlouquecia. Senhor,
como ela amaldiçoava esse trigo... Árvores? Dizia que não havia árvores
aqui. E que não havia ruídos. O sol a queimava, as moscas a enlouqueciam e
o cheiro do curral lhe dava dor de cabeça. Nunca pude compreender como
Teddy pensou que uma moça como aquela poderia ser a esposa de um
fazendeiro. Não tinha aptidão para cuidar da horta. Não gostava de sujar as
unhas de terra, não sabia cuidar das verduras, absolutamente nada! — a anciã
lançou uma exclamação desdenhosa. — Oras — negou outra vez com a
cabeça e cruzou os braços. — Uma mulher assim... — concluiu o relato,
ainda perplexa com a escolha do filho.
— Eu percebia o que acontecia, mas não podia fazer nada. De início,
Teddy estava muito feliz. E quando soube que esperava um filho, foi a glória.
Entretanto, pouco a pouco, as queixas foram se convertendo em silêncio e ela
começou a se comportar como se estivesse ficando doente. No princípio,
depois do nascimento de Kristian, vi que ela se esforçava para ser uma boa
mãe, mas em vão. Embora Teddy nunca dissesse nada, Clara, acostumada a
vir brincar com o menino, contava-nos que Melinda chorava o tempo todo.
Nunca deixava de chorar, mas o que podia fazer Theodore? Não podia
converter todo o trigal em um bosque. Não podia instalar uma cidade aqui, no
meio da fazenda, para ela. Então, um dia, ela simplesmente se levantou e se
foi. Deixou um bilhete pedindo que disséssemos a Kristian que o amava e
que lamentava, mas nunca o vi nem chamar por ela. Clara foi quem me falou
a respeito.
Uma vez mais, invadiram-na as lembranças.
— E a partir de então a senhora cuidou de Kristian?
Nos olhos de Nissa apareceu uma renovada tristeza.
— Clara e eu. Naquele ano, meu marido morreu, meu Hjalmar, sabe?
Uma noite de primavera, tínhamos estado na igreja para ajudar a limpar o
cemitério, como fazíamos todas as primaveras. Chegamos em casa,
estávamos de pé junto à porta da cozinha e lembro-me de que Hjalmar tinha
as mãos nos bolsos. Ele levantou os olhos para ver a primeira estrela que
aparecia naquela noite e me disse: “Nissa, temos muitas coisas pelas quais
agradecer. Amanhã será um dia ensolarado”. Nesse mesmo instante, dobrou-
se e caiu sobre a soleira da porta. Ele sempre estava acostumado a me dizer:
“Nissa, queria morrer trabalhando”, e cumpriu-se o seu desejo... Trabalhou
até o último minuto, quando caiu morto nos meus pés. Sem dor. Sem
sofrimento. Um homem abençoado. Que mais pode desejar uma mulher que
ver seu homem morrer de uma maneira tão bela como essa, não é mesmo?
Fez-se um silêncio prolongado, interrompido apenas pelo som
crepitante das brasas que se desfaziam dentro do fogão. As mãos velhas de
Nissa se apoiavam, cruzadas, sobre o colo. Nos olhos que não enxergavam,
pousados no oleado de cores vermelhas que cobria a mesa, brilhava a luz da
lembrança. Linnea estava com um nó na garganta. A morte era algo abstrato,
sobre a qual ela jamais tinha pensado e muito menos considerado bela.
Contemplando os olhos baixos de Nissa, de repente compreendeu a beleza
que encerrava um compromisso de toda uma vida que, para as pessoas como
Nissa, ia além da morte. Nissa levou a xícara aos lábios, sem novamente se
dar conta de que o café estava frio.
— Nossa casa já não era a mesma sem o Hjalmar. Por isso deixei John
e vim para cá cuidar do Teddy e do pequeno, e desde então estive aqui.
— E Melinda? Onde está agora? — perguntou Linnea em voz suave,
contendo o fôlego sem saber muito bem por quê.
Ficou imóvel à espera da resposta.
— Melinda foi atropelada por um bonde na Filadélfia e morreu quando
Kristian tinha seis anos.
Ah, entendo. Linnea não pronunciou tais palavras, embora elas
zumbissem em sua mente, ao mesmo tempo em que soltava o ar que havia
retido em pequenos sopros cuidadosos, relaxando pouco a pouco os ombros.
O único som que se ouvia era o tamborilar suave e distraído dos dedos de
Nissa sobre o catálogo esquecido. O avental pendurava-se entre os seus
joelhos separados e o sol da tarde acendia a tênue penugem de suas faces. De
repente, pareceu-lhe que se faziam presentes na cozinha duas pessoas há
muito mortas. Linnea esforçou-se por distinguir seus semblantes, embora a
única coisa que conseguisse ver fosse um longo bigode branco de um e os
ombros decaídos de outra. Deixando vagar os olhos pela janela para a
imensidão do trigal onde, naquele momento, Theodore estava ceifando o
cereal, suspirou.
Ainda com os olhos presos à janela, pensava no motivo da amargura de
Theodore. Ele era muito jovem e feriram-no profundamente. Linnea sentiu
um espasmo de culpa por ter sido tão impaciente com ele, por ter se zangado
com o homem. Quem lhe dera pudesse desfazer o fato, mas, mesmo que
pudesse, do que serviria? Não modificaria o que ele tinha sofrido no passado.
E pobre do Kristian, crescendo sem o amor da mãe!
— Kristian sabe? — perguntou, com simpatia.
— Que sua mãe fugiu? Sabe. Mas é um bom rapaz. Tem a mim, a sua
tia Clara e a um monte de outras tias. Sei que não é o mesmo que se tivesse
tido sua verdadeira mãe, mas graças a Deus saiu um bom rapaz. Bom... — o
encanto foi quebrado e Nissa olhou para o catálogo.
— Vamos escolher esses sapatos, não?
Escolheram um par de botas para chuva, de couro negro, que se atavam
na frente até a metade da perna, e enquanto Linnea preenchia o formulário
para enviar pelos correios, Nissa acrescentou mais um comentário à sua
história: — Peço a você que não diga ao Teddy que lhe contei isso. Ele não
fala muito dela e bom, já sabe como os homens são, às vezes. Pareceu-me
que, sendo a professora de Kristian, tinha que sabê-lo.
Mas Linnea não sabia como os homens eram: só agora começava a
saber. De qualquer modo, a história lhe causou um grande impacto e ela
prometeu tratar Theodore com mais paciência dali em diante.
Outra vez os homens chegaram tarde e, quando entraram arrastando os
pés, Linnea se surpreendeu observando Theodore como se esperasse ver
alguma mudança em sua aparência física. Mas estava tudo do mesmo jeito de
sempre: corpulento, sombrio e desventurado. Ao longo de todo o jantar,
percebeu que ele se esforçava para não olhar para ela; tampouco falara com
ela desde que o tinha repreendido, no começo da tarde. Quando todos se
colocaram em seus lugares junto à mesa, John a saudou como de costume
com sua sacudida de cabeça cortês e tímida, seguida de um “Olá, senhorita”.
E Kristian lhe lançava olhares furtivos de soslaio, depois de havê-la saudado
em meio a hesitações. Mas Theodore se concentrou em seu prato, sem fazer
caso de nada mais. No meio do jantar, Linnea já não pôde suportar a
indiferença e se sentiu dominada pela necessidade de acabar com a inimizade
entre eles. A bem da verdade, possivelmente o que ela queria era compensá-
lo em parte por Melinda, em parte por tê-lo tratado tão mal. Theodore estava
a ponto de engolir um bocado de purê de batatas com molho quando a moça
fixou os olhos nele e disse em meio ao silêncio: — Theodore, queria lhe pedir
desculpas pelo modo como lhe falei esta tarde.
As mandíbulas deixaram de se mover e o olhar do homem pousou nela
pela primeira vez naquela noite, ao mesmo tempo em que tentava dissimular
uma expressão de absoluta surpresa. Impetuosa e adotando um ar de
ingenuidade, Linnea prosseguiu: — Asseguro-lhe de que me alegro de que
nenhum de meus alunos tenha estado presente, porque não teria dado a eles
um bom exemplo. Mostrei-me sarcástica e mordaz, e esse não é modo de
tratar as pessoas, pois é mais simples pedir as coisas da forma certa. Por isso
peço com bons modos desta vez: daqui por diante, Theodore, por favor, fale
comigo diretamente quando estivermos no mesmo recinto, ao invés de falar
como se eu não estivesse presente.
Theodore ficou olhando para ela por um momento e depois lançou dois
olhares distintos, para Nissa e para Kristian. Kristian tinha parado de comer e
olhava, surpreso, para a Senhorita Brandonberg, que baixara a crista de seu
pai com a mais fria cortesia, olhando-o diretamente, de tal modo que
Theodore não conseguia suportar. E mais: a professora estava falando no
meio do jantar, e ninguém gostava de conversar com o estômago vazio. O
rapaz dava-se conta de que seu pai estava impaciente para continuar a comer
em paz. Mas Linnea não parava de olhá-lo, segundo a segundo, sentada muito
ereta, reta como um esquilo listrado e, sob seu olhar, o rosto do homem ia
ruborizando. A moça prosseguiu, em tom benevolente: — Por alguma razão,
parece que você e eu começamos com o pé esquerdo, não é verdade? Estou
convencida de que poderíamos nos comportar de maneira mais adulta, não
acha?
Theodore não soube o que responder. A pentelha havia se desculpado.
Segundo se recordava, era a primeira vez em sua vida que uma mulher lhe
pedia desculpas, e, entretanto, ela dava a impressão de que o estava
chamando de infantil. Ele! Mas se tinha idade suficiente para ser seu pai?!
Engoliu em seco e ficou pensando o que significava a palavra “sarcástica”.
Nissa, John e Kristian observavam e escutavam imóveis: Theodore tinha que
dizer algo.
Ele engoliu saliva e teve a impressão de que as batatas o tinham
engasgado. Observou o rosto fresco, de olhos grandes da senhorita,
comprovando o quão jovem e bela era.
— Sim, poderíamos fazê-lo. Agora coma — e, aliviado, voltou a
atenção para seu prato.
Por fim, Linnea tinha ganhado uma rodada. Quando compreendeu isso,
sentiu o olhar assombrado de John fixado nela. Dirigiu-lhe um amplo sorriso,
deixando-o tão incomodado que ele se apressou a afundar outra vez a colher
na comida.
Esta senhorita era uma novidade para John. Alguém capaz de fazer
Teddy ruborizar e lhe fazer frente, quando ninguém conseguia fazê-lo, salvo
a mãe. Mas era muito diferente o jeito que a mãe empregava se comparado ao
da pequena professora. Com seu cérebro lento, John se perguntou como elas
conseguiam aquilo. Ele se recordava de que apenas uma mulher teve a
capacidade de suavizar Teddy: Melinda. Essa Melinda, sim, é que fora
especial, bela e miúda, com olhos enormes como os de um potro recém-
nascido. Bastava que ela voltasse para Teddy aqueles enormes olhos para que
lhe subisse um rubor no pescoço, muito parecido ao que lhe acontecia quando
a pequena senhorita falava com ele com suavidade, ou séria, e o olhava de
frente. E Melinda também costumava conversar à mesa. Sempre dizia que
não podia entender os costumes noruegueses, como eram reservados e como
jamais falavam do que na verdade importava.
John, que nunca falava muito, jamais a tinha entendido. Ao levantar os
olhos novamente, topou com o olhar da mãe, como que dizendo: você está
vendo como eu as coisas acontecerem de novo, John? Era o que estava
pensando Nissa. Era desse modo que ele estava acostumado a reagir diante de
Melinda. A anciã voltou os olhos para a direita e observou a moça que comia
com boas maneiras, completamente alheia às emoções latentes que havia
despertado, e depois olhou para Teddy, que estava concentrado no jantar,
fixando, porém, a vista no prato com a testa franzida. Meu rebelde filho,
acredito que encontrou a fôrma de seu sapato. Pensou Nissa.
Era sábado à noite. Nissa encostou a banheira galvanizada no fogão e
começou a enchê-la com água fervendo.
— Nós nos alternaremos — anunciou. — Quer ser a primeira?
Linnea olhou a banheira com a boca aberta, contemplou a cozinha
aberta, a porta que dava para a sala de onde vinham as vozes de John e de
Theodore com toda clareza, e depois pousou outra vez os olhos na banheira
junto ao fogão.
— Preferiria levar um pouco de água para cima, para a minha banheira.
Ela encheu um pequeno balde e quando o levou para seu quarto, deu-se
conta de que a água era insuficiente. Mesmo assim, o banho lhe resultou
glorioso. Enquanto estava se lavando, ouviu John partir. A casa se tornava
cada vez mais silenciosa. Secou-se, vestiu a camisola e se sentou na cadeira
de balanço para reler as anotações que escrevera junto aos nomes dos alunos.
Nissa se banhou primeiro e sua voz foi ouvida com toda clareza quando
chamou Kristian, anunciando-lhe que era sua vez. Linnea o ouviu descer a
escada levando a roupa limpa e, depois de um momento, ouviu-o subir, supôs
que vestido. Ouviu que se desenvolvia o terceiro banho e, tratando de
imaginar aquelas longas pernas dentro da pequena banheira, sorriu. Poucos
minutos depois, ouviu que Theodore ordenava a Kristian que o ajudasse a
levar a banheira para fora. Depois, só silêncio.
John, Nissa, Kristian e Theodore... a partir de agora são minha família
substituta. Pensou Linnea. Cada um tão único, cada um provocando nela uma
reação distinta. Todos a agradaram imediatamente, exceto Theodore. Então
por que era nele que ela pensava mais tempo? Por que aquele rosto sério e o
humor hostil permaneciam em sua mente até depois de ter apagado a
lamparina e não conseguir conciliar o sonho? Por que eram as pernas dele as
que ela imaginava saindo da banheira?
A casa estava em silêncio. Quando Theodore e o filho levaram a
banheira para o pátio, perdurava na penumbra da cozinha a mescla de aromas
do jantar e do sabão de lixívia feito em casa. Depois de ter jogado a água,
Theodore ficou um momento olhando para o céu, contemplando-o. Depois de
um momento, disse em tom pensativo: — Kristian.
— O quê?
Repassou com cuidado a palavra antes de pronunciá-la tal como ela o
tinha feito: — Você sabe o que quer dizer sarcástico?
— Não, pai, não sei. Perguntarei à Senhorita Brandonberg.
— Não! — exclamou Theodore, tentando dissimular a ansiedade em
sua voz. — Não, não tem importância. Não vá perguntar em meu nome.
Ficaram na escuridão, ouvindo o concerto dos primeiros grilos do
outono no meio da noite. Theodore segurava a banheira, que agora estava
leve. A lua estava em três quartos, branca como leite fresco no céu repleto de
estrelas, projetando sombras longas e profundas.
— Ela é linda, hein? — murmurou Kristian. — Você acha?
— Quem? A lua? — perguntou Theodore, mas sabendo que o filho se
referia à professora.
— Não, a senhorita Brandonberg — respondeu o inocente rapaz. —
Bom, é certo que não é miúda e nem como uma ratinha, como você disse. Por
que a chamou de ratinha?
— Chamei?
— É claro que sim. Mas se ela for pequena e .... — ele hesitou, mas
continuou: — Isabelle também é e aparentemente você gosta de Isabelle.
Theodore soltou um bufo desdenhoso.
— Parece-me que você deveria reparar melhor em Isabelle. Faça isso
quando ela vier com sua carroça.
— Bom, tudo bem, Isabelle é muito mais encorpada, se comparada com
a senhorita Brandonberg, mas, mesmo assim, ela não é pequena nem como
uma ratinha. Ela parece muito bem para mim.
Theodore olhou para o filho com expressão intrigante, distinguindo
com clareza o perfil juvenil sob a luz brilhante da lua.
— Seria conveniente que não dissesse isso, tendo em conta que é sua
professora.
— Sim, acredito que tenha razão — disse Kristian, abatido, baixando
os olhos para o chão escuro. Ficou um momento pensativo, até que, por fim,
levantando o rosto, perguntou mais animado: — Quer saber algo divertido?
— O quê?
— Para ela os cardos parecem bonitos! Disse que nos levaria ao campo
para que os pintássemos!
Theodore resmungou e soltou uma gargalhada, seguido por Kristian.
— Bom, ela é uma garota da cidade. Sabe que elas não são muito
espertas com respeito a certas coisas da roça.
Entretanto, mais tarde, deitado na cama grande onde dormia sozinho há
quatorze anos, Theodore tentou imaginar os cardos em flor e se deu conta de
que, na realidade, não sabia que aspecto tinham. Embora tivesse visto
milhares e milhares ao longo de seus trinta e quatro anos, jamais os tinha
olhado com nada além de desdém. Resolveu que, da próxima vez, daria uma
segunda olhada.
CAPÍTULO 5
O VALE DOS CARDOS

Linnea não estava preparada para a mudança que ocorreu em Kristian e


em Theodore no domingo pela manhã. Quando voltaram das tarefas matinais
para tomar o café da manhã, estavam como sempre. Mas depois Nissa a
chamou dos degraus: — Venha logo, a carroça está esperando!
Linnea desceu correndo e encontrou pai e filho embelezados com trajes
negros, de gravatas engomadas e camisas brancas, sentados um junto do
outro no assento dianteiro da carroça para quatro passageiros. Deteve-se em
seus passos vendo o chapéu negro de Theodore e o cabelo recém-penteado de
Kristian, ainda úmido e brilhando ao sol. Os dois traziam as golas muito
apertadas e dava a impressão de que lhes cortavam as mandíbulas.
— Mas que elegantes! — exclamou, detendo-se junto à carroça.
O rosto de Kristian se iluminou e o olhar lânguido de Theodore pousou
sobre o ridículo chapéu alto da moça para depois baixar até os pés e
comprovar que ela estava com os sapatos de salto alto. Ele daria seis semanas
de vida para aquele sapato naqueles caminhos pedregosos. Entretanto, a
nenhum dos dois ocorreu ajudar as damas a subir. Quando Nissa se dispôs a
fazê-lo sem ajuda, Linnea a deteve com a máxima discrição possível.
— Kristian, se incomodaria de ajudar sua avó a subir? Esta manhã lhe
doem um pouco os joelhos.
— Meus joelhos estão perfeitos...
— Vamos, Nissa — insistiu Linnea com um leve toque no braço. —
Lembra-se de que me disse nessa manhã que tinha a sensação de que seus
joelhos pareciam desconjuntados? Além disso, um jovem como Kristian terá
grande prazer em demonstrar suas boas maneiras e ajudar as damas a subir.
Rapidamente, acompanhado por um amplo sorriso, o rapaz desceu para
ajudá-las a se acomodarem no assento traseiro; primeiro Nissa, logo em
seguida Linnea. Theodore girou a cabeça para observar, mas não pronunciou
uma palavra sequer. Permaneceu sentado observando como essa moça
exercia sua astúcia com seu filho, que trabalhava em excesso para agradá-la.
Uma vez que todos estavam acomodados, Theodore capturou o olhar da
pequena senhorita, arqueou uma sobrancelha com expressão sardônica,
depois voltou-se e estalou a língua, sacudiu as rédeas, sem elevar a voz,
ordenou que a parelha seguisse: — Ei, vamos, Crib, Toots.
O balanço da espécie de charrete, um tipo de carroça parecida com uma
carruagem, ficou constante e logo depois os cavalos arrancaram num trote.
Embora a viagem estivesse agradável, Linnea ficou assombrada diante do
silêncio com que iam aquelas pessoas, visto que, se fosse sua família, em
ocasiões semelhantes, estariam todos conversando amigavelmente. Mas o dia
estava cheio de ânimo. Uma brisa suave dobrava o capim ao longo do
caminho e o sol do meio da manhã era como uma carícia dourada. E a
fragrância...! Pura, limpa, como imaginava que devia ser o cheiro lá em cima,
entre as nuvens. Linnea elevou a vista. Uns flocos semelhantes a merengue
flutuavam no alto, para o Norte; mas para diante, a Oeste, o céu era de um
azul intenso, tão forte que surpreendia. Contra esse fundo, ela viu o branco
campanário, muito antes que chegassem. Dava a impressão de apoiar-se no
ombro direito de Theodore. O ribombar do sino flutuou para eles, levado pelo
suave vento de outono. Soou outra vez mais forte, e outra vez menos
estrondoso, e suas reverberações aumentavam ou diminuíam ao capricho do
vento. Soou doze vezes, até que seu canto pareceu conduzi-los até o átrio.
A igreja, assim como a escola, estava rodeada de plantações de trigo
espalhadas entre os numerosos cavalos e carruagens atadas aos troncos. O
átrio estava cheio de fiéis, todos aproveitando os últimos minutos da
maravilhosa manhã. Os homens estavam reunidos em grupos, com os
polegares enfiados nos bolsos dos coletes, certamente falando do clima e das
colheitas. As mulheres, com os chapéus balançando sobre suas cabeças,
falavam de culinária, de como faziam suas conservas. Os meninos, com as
botas recém-lustradas já cobertas por uma camada de pó, perseguiam-se ao
redor das saias das mulheres, que os agarravam, advertindo-lhes de que
sujariam os sapatos. Quando a carroça parou, Linnea não precisou recordar a
Kristian as boas maneiras. Com a maior presteza, ele ajudou as duas
mulheres a descer, imbuído de um novo sentido de orgulho. Mas, quando
caminharam para a escada da igreja, Nissa se apropriou do braço do neto e
Linnea teve que caminhar junto a Theodore. Não lhe tomou o braço,
tampouco ele o ofereceu, mas passou em meio à multidão ao seu lado,
obsequiando fugazes sorrisos quando seu olhar se encontrava com os dos
estranhos. Em seguida, notou que as pessoas lhe abriam caminho com uma
respeitosa distância e a observavam dirigir-se para a entrada. Ali Theodore a
apresentou ao ministro, o reverendo Martin Severt, um indivíduo
parcimonioso e bonito, de uns trinta e cinco anos, e sua esposa, uma mulher
angulosa, bem-vestida, de dentes proeminentes e sorriso aberto. Os Severt
pareciam um casal encantador, com seus calorosos apertos de mãos e suas
boas-vindas sinceras, e ela não pôde deixar de duvidar do que Nissa lhe
contara a respeito do travesso filho do casal: seria verdade?
Lá dentro, John já os esperava em seu banco. Quando se sentaram,
Linnea acabou ficando entre Kristian e seu pai. Quando começou o culto,
Kristian ia acompanhando com seu livro de orações, mas Theodore
permaneceu quase todo o tempo com os braços cruzados sobre o peito, até
que começou o hino. Assombrou a moça escutá-lo cantar com uma voz clara
e ressonante de barítono, tão nítida quanto o som de um diapasão.[4] Uniu-se
a ele com sua voz de soprano e aventurou um cauteloso olhar para ele.
Chegou à conclusão de que a ninguém seria possível se comparar a ele
quando cantava um hino. Pela primeira vez, viu esse rosto como poderia ser.
Os lábios, muito abertos para o canto, pareciam menos duros que de costume.
O queixo, muito baixo para poder sustentar uma nota, tinha perdido o gesto
obstinado. E os olhos, iluminados pela luz matinal que entrava em torrentes
pela janela em arco, brilhavam com expressão suavizada. Com os ombros
erguidos, tamborilava com oito dedos no respaldo do banco da frente, unindo
sua sólida voz às dos que os rodeavam.
Theodore olhou e surpreendeu a jovem, que também cantava,
observando-o. Por um instante fugaz, seus olhos irradiaram o sorriso que,
aparentemente, seus lábios não podiam desenhar. Embora não houvesse
dúvida de que ele soubesse de cor os versos, era um momento muito perfeito
para oferecer o ramo de oliva e não se podia deixar passar a oportunidade.
Para Linnea, bastou mover levemente o braço para a esquerda e levantar o
livro de hinos para compartilhá-lo com Theodore. Seu cotovelo se chocou
com o braço dele e uma corrente perpassou seu copo, arrepiando os pelos de
sua pele. Percebeu que ele fez uma pausa, hesitou, mas optou por inclinar o
corpo na direção dela. Segurou com os dedos a outra parte do livro e
terminaram o hino juntos. Nesses minutos, com suas vozes mesclando-se e
subindo ao céu, a moça sentiu uma aceitação relutante, mas quando terminou
o canto, havia caído uma barreira. Quando disseram amém, Theodore
aguardou que ela iniciasse o movimento para se sentar para depois imitá-la.
Começou o sermão e Linnea teve que se esforçar para se concentrar nele e
não na fragrância de sabão de lixívia e fixador do cabelo que lhe chegava da
esquerda.
O culto terminou com um anúncio do reverendo Severt: — Agrada-nos
ter hoje conosco a nova professora, a Senhorita Linnea Brandonberg. Por
favor, dediquem um minuto para saudá-la, apresentem-se e façam com que
ela se sinta bem-vinda.
Dúzias de cabeças se voltaram para ela, que só teve consciência de uma
delas, a que estava junto dela, à esquerda. Sabendo que Theodore a observava
de tão perto pela primeira vez, pensou se estaria o chapéu bem colocado, a
gola em seu lugar, o cabelo preso. Mas um instante depois a igreja começou a
esvaziar e ela se viu arrastada para fora, para o luminoso dia de outono.
Esqueceu sua aparência e se concentrou nos novos rostos e nomes. Embora
fossem pessoas bastante comuns, ela encontrou nobreza nessa condição. Os
homens eram corpulentos e fortes, de mãos robustas e longas, todos vestidos
com severidade, de preto e branco. As mulheres se vestiam com
simplicidade, mais preocupadas com a comodidade que com a elegância. A
diferença do traje dela era que os chapéus eram lisos e baixos e os sapatos,
práticos. Mas, no geral, demonstraram-lhe um indiscutível respeito. As
mulheres sorriam com acanhamento, os homens manuseavam os chapéus e os
meninos ruborizavam quando eram apresentados à “nova professora”.
Conheceu todos os seus alunos, mas os que mais reteve na memória quando
se afastaram foram o garoto Severt e Frances Westgaard. O primeiro era
bonito como o pai, mas com um ar de inquieto nervosismo, e Frances, que
Nissa lhe havia dito padecer de um leve atraso. Possivelmente era sua
vocação inata de professora que a fazia inclinar-se para ajudar qualquer
criança que necessitasse de mais ajuda: o certo foi que lhe bastou uma só
olhada para a menina magra, sardenta, com uma coroa de tranças, para sentir-
se comovida com ela.
Entretanto, eram tantas as crianças de sobrenome Westgaard, que logo
desistiu de recordar a que família pertencia cada um. Com os adultos era um
pouco mais simples. Ulmer e Lars eram fáceis de distinguir, pois se pareciam
muito com Theodore, embora Ulmer, o mais velho, estivesse perdendo o
cabelo e Lars tivesse um sorriso mais pronto.
Depois vinha Clara, enorme em sua gravidez, rindo de algo que lhe
havia dito ao ouvido seu marido. Seus olhos sorriam, mesmo que os lábios
não o fizessem. Tinha cabelos cor de café e uma pele bonita, embora não a
clássica beleza de feições dos irmãos. O nariz era um pouco longo e a boca
um pouco larga, mas quando sorria ninguém se fixava nessas imperfeições,
porque Clara possuía algo muito mais duradouro: a beleza da felicidade. No
mesmo instante em que seus olhares se encontraram, Linnea soube que iria
gostar dessa mulher. Clara sustentou com firmeza sua mão e um sorriso
cúmplice brincou nas comissuras de seus lábios.
— Então foi você que pôs meu irmão em seu lugar. Muito bem.
Acredito que ele precisava disso.
Linnea se surpreendeu tanto que não lhe ocorreu nenhuma resposta.
— Sou a Clara.
— S... sim — os olhos de Linnea se pousaram na barriga arredondada.
— Eu pensei que fosse.
Clara riu, acariciou o ventre e atraiu seu marido até ela.
— E este é meu Trigg.
Talvez fosse o modo como disse “meu Trigg” que aumentou a simpatia
de Linnea por ela: em sua voz, vibrava o orgulho e ela tinha bons motivos
para isso. Trigg Linder era possivelmente o homem mais bonito que ela tinha
visto. Seu cabelo resplandecia ao sol como cobre recém-polido, seus olhos
azuis da cor do céu tinham aquele tipo de cílios que as mulheres invejavam e
seus traços nórdicos alardeavam impecáveis simetria e beleza. Mas o mais
notável para ela com respeito a Trigg Linder, o que mais reteve na memória,
foi que enquanto sua esposa falava ele mantinha uma mão apoiada em sua
nuca e dava a impressão de não poder tirar os olhos do rosto de sua mulher.
— Então Teddy fez você passar maus momentos? — indagou Clara.
— Bom, ele, não foi exatamente...
Clara riu.
— Não tem por que justificá-lo diante de mim. Conheço o nosso Teddy
e sei que é capaz de ser uma dor de dente norueguesa. Cabeça-dura,
teimoso... — Clara apertou a mão de Linnea. — Mas tem suas qualidades.
Dê-lhe tempo para adaptar-se a você. Enquanto isso, se a irritar muito, vai me
visitar e deixe escapar um pouco de vapor em minha casa. Sempre tenho café
e asseguro que a companhia me faz muito bem.
— Bom, obrigada, eu o farei — disse Linnea com um grande sorriso.
— E o que me diz da mamãe? Trata-a bem?
— Oh sim. Nissa é maravilhosa.
— Amo cada um de seus cabelos frisados, mas às vezes ela me
enlouquece, de modo que se às vezes ela lhe der muitas ordens e você sentir
vontade de amarrá-la e amordaçá-la, vai me ver também. Vou contar a você
todas as vezes que estive a ponto de fazê-lo — Clara já estava indo, mas se
virou e acrescentou: — Ah, adorei o seu chapéu!
De repente, Linnea caiu na gargalhada.
— Eu disse algo engraçado?
— Sobre isso contarei a você quando for tomar um café em sua casa.
Mesmo grávida, Clara se movia com agilidade e, quando se foi, era
Linnea que estava quase sem fôlego. Mas não pôde deixar de admirar a
mulher que estivera mais próxima de Theodore quando ele precisou de ajuda.
Aquela que conheceu Melinda e lhe dera sua amizade. Linnea não tinha a
menor dúvida de que aceitaria o convite de Clara.
Nesse momento, apareceu Kristian e anunciou: — Papai pediu que eu
viesse e lhe perguntasse se ainda vai demorar muito.
Olhando para o outro lado do átrio, Linnea viu que Nissa já estava na
carroça e Theodore de pé ao lado, com expressão de desagrado, dando
pequenos chutes de impaciência.
— Oh! Estou atrasando vocês?
— Bom… é pelo trigo. Aqui, quando o tempo está bom e o trigo está
amadurecido, trabalhamos todos os dias da semana.
— Ah! Permita que eu me despeça do reverendo Severt.
Linnea o saudou com brevidade; mesmo assim, enquanto se
aproximava da carroça de Theodore, viu a irritação em seu semblante. Havia
de novo jogado lenha na fogueira de seu anfitrião.
— Lamento tê-lo atrasado, Theodore. Não sabia que hoje iriam para os
campos.
— Alguma vez ouviu dizer que se trabalha no feno enquanto brilha o
sol, senhorita? Suba e partamos.
Segurou-a pelo cotovelo e a ajudou a subir com um empurrão tão
grosseiro que absolutamente não foi de grande ajuda. Magoada por essa
mudança tão brusca depois da aproximação que sentira na igreja, Linnea fez a
viagem de volta em um estado de confusão. Assim que chegaram, houve um
rápido rebuliço quando trocaram de roupa. Linnea estava em seu quarto
tirando o alfinete do chapéu quando se lembrou do carvão. E, embora a
última coisa do mundo que desejava fosse trazer o assunto à tona e irritá-lo
ainda mais, não tinha alternativa. Interceptou-o quando ele saía do dormitório
para o vestíbulo, com um avental de trabalho recém-lavado e engomado e
uma camisa azul limpa e desbotada. Estava colocando o velho chapéu de
palha quando parou de repente ao vê-la. Baixou o braço com lentidão e
ficaram se olhando por um longo momento. Linnea recordou-se de como
tinham compartilhado o livro de hinos na igreja e de que naqueles momentos
ele parecia diferente. Abordável. Agradável. De repente, foi difícil lhe falar,
até que por fim recuperou a voz.
— Compreendo o quanto deve estar atarefado nesta época do ano, mas
prometi ao senhor Dahl que falaria com você sobre o carvão para a escola.
— Dahl está convencido de que na metade de setembro soprará uma
nevasca e de que perderá o emprego se a carvoeira não estiver cheia. Mas ele
não teve nenhum trigo para ceifar.
— Não tem trigo que ceifar — ela o corrigiu.
— O quê? — as sobrancelhas do homem se uniram.
— Que não tem... — ela cobriu os lábios com os dedos. Oh. Linnea,
acaso sua língua será sempre mais rápida que seu cérebro?
— Nada. N... nada, eu prometi ao diretor que lembraria a você e o fiz.
Lamento havê-lo retido.
O que tinha esse homem que, às vezes, a deixava tão nervosa?
— Se Dahl voltar a chateá-la com isso, diga-lhe que o levarei quando a
neve chegar. Enquanto o sol brilhar, cuidarei do meu trigo.
Depois disso, passou junto a ela e saiu da casa.
A tarde se estendia interminável diante dela e por isso decidiu ir à
escola. Agora que já sabia mais sobre seus alunos, que podia atribuir rostos
aos nomes, sentou-se e preparou os planos para a primeira semana de aulas,
folheando seus limitados livros de texto. Havia um silabário de Samuel
Worcester;[5] um livro de leitura de McGuffey;[6] um de Aritmética mental de
Ray; Geografia de Monteith e McNally[7] e uma Gramática de Clark. Os
outros livros que havia na prateleira versavam sobre temas variados e,
aparentemente, foram doados ao longo dos anos pelas famílias. A maioria,
como o que tinha escolhido no dia em que leu para Kristian, intitulado
Economia dos Novos Tempos, eram muito avançados para ser de muita
utilidade para seus alunos, sobretudo para os mais novos. Mas havia algo
para o qual as crianças nunca eram muito jovens: as boas maneiras, à mesa e
no geral. Para ensiná-las a esse respeito, ela não necessitava de livros. E
aquilo estava em um dos primeiros lugares de sua lista de prioridades.
Quando terminou com os planos das aulas, desdobrou a bandeira norte-
americana e a pendurou em seu suporte; escreveu na lousa O Juramento de
Fidelidade e seu nome em grandes letras de forma: SENHORITA
BRANDONBERG. Retrocedeu e o contemplou sorrindo satisfeita, sacudindo
o giz dos dedos, quase aturdida diante da ideia de fazer soar o sino às nove da
manhã do outro dia e de chamar à ordem o seu primeiro grupo de alunos.
Estava no meio da tarde e ela não tinha nenhum desejo de sair do edifício da
escola. Impulsionada por uma súbita inspiração, sentou-se e se dispôs a
desenhar uma série de grandes tabelas alfabéticas para aumentar o material
disponível e, em cada uma, uma figura que representasse a letra. No “E”
desenhou um esquilo. No “B” uma bandeira. No “C” um cavalo. Como
gostava de desenhar, não percebeu que as horas passavam, totalmente
distraída do que fazia, pensando escrupulosamente que símbolo representaria
cada letra. No esforço por desenhar elementos que os meninos pudessem
reconhecer, fez uma fada para o “F”, que por falta de experiência não saiu
muito boa, embora tentasse caprichar. No “M” desenhou o matagal que
abundava pela região e no “S” um instrumento usado pelos camponeses na
ceifa. Com um sorriso, decidiu trocar a do “C” por um cardo... Quando se
dispunha a fazê-lo, percebeu que precisava ver a planta para captá-la com
precisão. Andou pelo caminho sentindo o sol sobre a cabeça, deixando-se
levar por devaneios. Os choupos vibravam na suave brisa vespertina e ao ver
um brilhante seixo de cor âmbar na metade do caminho, agachou-se, o pôs na
palma da mão e ficou assim por um longo momento, com o queixo sobre os
joelhos, desfrutando da temperatura da pedra, detectando sua textura e seu
peso. Em algumas partes, ela brilhava, e, no centro, via-se um raio
translúcido que lhe lembrou a cor dos olhos de Theodore. Fechou os seus e
recordou o contato de seu braço na igreja, com a sensação de cumplicidade
que percebeu quando cantaram juntos. Até então, nunca tinha estado em um
culto religioso com um homem. Esfregou a pedra com o polegar, colocou-a
na boca gostando de seu calor e de seu gosto de terra, cuspiu-a em sua mão e
observou a faixa marrom, agora molhada, brilhante, a cor intensificada, ainda
mais semelhante à dos olhos de Theodore. Sorriu, sonhadora, ainda agachada
no meio do caminho.
— Lawrence — murmurou em voz alta — não ria. Tanto tempo faz que
o conheço e nunca tinha notado a cor de seus olhos — levantou-se, apertando
a pedra na mão. Olhou Lawrence nos olhos: — Oh — notou, decepcionada
— são verdes. — Adotou uma expressão corajosa. — Oh, bom. Vamos... —
pegou-o pela mão —, mostrar-lhe-ei os cardos.
Encontrou um em uma valeta, disposto no caminho. Crescia em forma
de bola. No inverno, rodava pela pradaria empurrado pelo vento e ficava
apanhado em cercas de arames farpados, provocando grandes amontoamentos
ao redor. Com a chegada da primavera, teriam que desenganchá-los com a
mão. Mas, no presente, no início do outono, era uma esfera perfeita de
diminutas flores verdes. Um par de moscas verde-azuladas zumbia ao redor e
uma gorda abelha foi pousar nas flores. Linnea apoiou o caderno de desenho
na cintura e começou a desenhar.
“Diga-me, Lawrence, não acha essa planta bonita? Olhe como a abelha
bebe o néctar dela!”
Ao chegar ao topo de uma pequena colina no trigal, ao Nordeste da
escola, Theodore ergueu os olhos para o pequeno edifício que se via ao longe.
Dali não parecia maior que uma casa de bonecas, mas enquanto os cavalos
avançavam em um suave trote, distinguiu o abrigo do carvão, os balanços, o
sino que o sol fazia reluzir. Percebeu um movimento e notou uma figura a
certa distância da escola, parada junto a um vale num canto mais afastado do
campo. Sem perceber, aprumou as costas para ver mais. Sob a aba do chapéu,
os olhos castanhos se suavizaram e um breve sorriso curvou-lhe os lábios.
O que estaria fazendo lá a pequena senhorita? Com a grama até os
joelhos, sustentava nas mãos algo que ele não conseguia distinguir. Uma
menina, vagabundeando junto à valeta, como se não tivesse nada melhor para
fazer. Deixou escapar uma risada baixa, indulgente. Soube imediatamente
que ela o avistara. Ergueu-se, alerta, e levantou o que tinha na mão para fazer
sombra aos olhos. Uma estranha euforia o percorreu quando a moça ergueu
os braços e os agitou, riscando amplos arcos e saltando várias vezes. Sacudiu
um pouco a cabeça e sorriu, ao mesmo tempo em que voltava para sua tarefa,
mas sem deixar de contemplá-la.
Apenas uma menina, pensou ele.
Linnea viu as três lâminas da colheitadeira que atravessavam o campo
em direção a ela, mas estavam muito longe para distinguir quem a conduzia.
Era um quadro assombroso e ela desejou ter a destreza para captá-lo em uma
pintura, com seus intensos amarelos e azuis para o trigo e o céu. De homens e
cavalos transcendia certa magnificência, tão pequenos contra a majestade da
terra que se estendia diante dela como um vasto oceano ondulante e amarelo.
Que fossem eles os que o controlassem e dele tirassem proveito não fazia
mais que aumentar sua admiração. Algo lhe oprimiu o coração com incrível
ferocidade e lhe vieram com absoluta clareza as palavras da canção...

Ó bonitos céus espaçosos, Como ondas âmbar de grãos, Para


majestades da montanha roxa Acima da planície frutífera!
América! América! Deus derramou sua graça sobre ti E a coroa com
fraternidade Do mar ao mar resplandecente!...[8]

Como era possível que estivesse se desenrolando uma guerra, se diante


dela só se estendiam generosidade e beleza? E dizia-se que a guerra acontecia
precisamente para preservar o que ela estava contemplando. Pensou na
bandeira que acabava de pendurar e nas palavras que tinha escrito na lousa.
Contemplou os três homens que guiavam os animais através de um espesso
trigal. Fez uma profunda inspiração e saltou três vezes, por puro entusiasmo.
E os saudou com os braços e um deles lhe devolveu a saudação.
CAPÍTULO 6
O PRIMEIRO DIA DE AULA

Linnea foi deitar-se naquela noite em total estado de excitação e


expectativa. Despertou com o canto do galo ao alvorecer para sua primeira
manhã como professora rural. O amanhecer que surgia pela pequena janela
prometia um dia claro. No andar de baixo, embora fosse muito cedo, Nissa já
fazia ruídos na cozinha. Ela saltou agilmente da cama, impaciente por
começar, finalmente, com o mais importante. Penteou-se com grande
cuidado, partindo o cabelo no meio e formando um coque em formato de
meia lua. Vestiu a saia verde nova, a blusa xadrez que fazia par com ela e a
abotoou até o pescoço. Pegou as finas fitas da cintura e deu um belo laço na
parte de trás. Ao terminar, ficou nas pontas dos pés para verificar o resultado
no espelho.
A saia era bem ajustada na frente, mas as pregas da parte de trás eram
profundas e amplas, dando-lhe um volume que lhe dava a aparência de ter
ancas que elevavam a aba da blusa. Vendo seu reflexo, achou-se adulta e
confiante. Ainda nas pontas dos pés, compôs uma pose com os braços
elevados e as mãos graciosamente flexionadas.
— Bom, obrigada, Lawrence. Quem me dera eu pudesse, mas, como
pode ver, hoje é o meu primeiro dia de aula e tenho que ir a um edifício cheio
de crianças... — de repente, olhou para seu peito e riu. — Oh, caramba,
esqueci o relógio. Terá que me desculpar, vou buscá-lo.
Abandonando a pose extravagante, aproximou-se da penteadeira e
ergueu um delicado pendente de ouro que tombava de um alfinete em forma
de arco. A joia estava revestida de uma lâmina de ouro fina como papel, que
tinha um desenho de uma gravura de rosas. Era o presente de graduação de
seus pais e o primeiro relógio que possuía na vida. Colocou-o na parte mais
alta do seio esquerdo e, orgulhosa, voltou a contemplar-se.
“Sim. Estou mesmo com o aspecto da senhorita Brandonberg, a
professora”. Com um sorriso, desceu para tomar café da manhã.
Os homens já estavam sentados à mesa, e Nissa ia e vinha da mesa à
cozinha.
— Bom, bom dia a todos! Humm! Isso está cheirando deliciosamente,
Nissa! — seu tom era tão alegre quanto o do galo matinal e seu caminhar era
saltitante quando se dirigiu à cadeira de costume.
John girou, inspecionou-a mais tempo que o habitual e ficou da cor de
um presunto recém-curado, sem conseguir pronunciar sequer uma palavra.
— John — Linnea o saudou, flexionando os joelhos em uma breve
reverência. — Kristian — girou para o rapaz com um sorriso alegre e viu que
ele estava de boca aberta.
— Bom… — mas a voz lhe falhou e ele teve que recomeçar. — Bom
dia, senhorita Brandonberg.
— Theodore — Linnea dedicou-lhe o sorriso mais radiante, mas ele
quase não a olhou enquanto enchia o prato. Apenas balbuciou: — Bom dia.
E agora, o que fiz? Perguntou-se. Certamente nada. Theodore estava
como sempre: mal-humorado e amargo. Mas ela estava encantadora e
radiante e ele não pôde deixar de notar.
— Parece que teremos um dia bonito para o começo das aulas — disse
Linnea.
Ninguém respondeu uma palavra, salvo Nissa, que, reunindo-se com
eles à mesa, comentou: — É claro que sim. Já estamos todos aqui, então,
oremos.
Uma vez mais, Theodore pronunciou a prece em norueguês e, embora
Linnea tentasse várias vezes romper a barreira do silêncio ao longo da
refeição, não obteve muito êxito. Ela felicitou Nissa pelo café da manhã e
depois comentou sobre o almoço do dia anterior.
— Se continuar comendo assim, engordarei muito em breve. O
sanduíche de sábado também estava delicioso. De que era feito? — Linnea
olhou para Nissa.
— Era de língua.
Linnea sentiu que o estômago se lhe revolvia.
— L… Língua?
— Língua de vaca — esclareceu Nissa.
— Língua de v...
Mas não pôde terminar a frase. Engoliu e sentiu umas leves náuseas,
enquanto quatro pares de olhos se voltavam para ela.
— Alguma vez comeu língua? — Nissa perguntou.
— N... não, felizmente.
— Acredito ter ouvido que tinha gostado.
— Pensei que havia gostado, mas... língua?
— Por acaso não está inteirada? Há uma guerra. Por aqui não
desperdiçamos nenhuma parte do animal, não é certo, rapazes?
Sob os olhares divertidos de todos eles, Linnea sentiu-se uma tola e,
assim, não pôde fazer nada menos que perguntar: — Da outra vez que me
preparou o sanduíche... era com isso também?
— De fato, sim. Era a única carne fria que tínhamos. Claro que posso
fritar para você um ovo e preparar o sanduíche com ele se você...
— Oh, não... Não — insistiu Linnea, sem alternativa. — Não quero lhe
dar trabalho. A língua está bem.
Pela primeira vez naquela manhã, os olhos de Theodore posaram nela
por mais tempo, mas tinham um brilho divertido quando ele disse: — Espere
até provar o guisado de coração que mamãe faz.
Uma interrupção, como uma onda de risadas sufocadas, percorreu a
mesa; depois os Westgaard voltaram para as suas refeições, mas ela não pôde
comer nem um bocado mais. Levantou-se e disse, sem muita convicção: —
Se me desculparem, tenho que preparar algumas coisas para levar para a
escola.
Fez um gesto largo para a escada e se retirou. Entretanto, nem mesmo a
perspectiva dos sanduíches de língua bastou para amargurá-la quando, mais
tarde, olhou o relógio e viu que, por fim, era hora de caminhar até a escola.
Nissa a esperava para saudá-la. Kristian devia estar em seu quarto
trocando de roupa e os outros dois já tinham saído para o campo. Na porta, a
anciã lhe disse: — Kristian me pediu que desse isto a você. Pus uma fatia de
queijo em seu almoço.
Quando olhou, Linnea viu que era uma armadilha para ratos e,
aceitando-a com vivacidade, colocou-a sobre o livro de registro.
— Oh! — recordou. — Quando o vir, agradecerei. — Levantou os
olhos, sorriu, inspirou profundamente, reteve o ar por uns segundos e disse:
— Bom, lá vou eu. Deseje-me sorte, Nissa.
— Não acredito que precise de sorte. Bastará que os faça entender
quem manda e se sairá bem.
Com passos rápidos, porém graciosos, ela fez a caminhada de vinte
minutos sobre o cascalho rangente. Estava muito ansiosa, mas feliz. Ao lado
do caminho, as gramas altas estavam molhadas pela umidade, brilhando sob o
sol ainda baixo; arqueavam-se flexíveis para ela, como se a
cumprimentassem, e quase não estremeciam no amanhecer sem vento. Do
outro lado das valetas, o grão cortado secava nos vastos campos como uma
mulher com o cabelo recém-lavado. Por todos os lados emanava a fragrância
da colheita, como o aroma das nozes misturado ao aroma poeirento da palha
esmiuçada que pendia ao sol como bolinhas douradas.
Uma águia de cauda vermelha elevou-se em uma corrente ascendente,
com as asas tão quietas como as gramas: a única coisa que se torcia de vez
em quando era a cauda, que a ave fazia girar em círculos em busca do café da
manhã. O mundo resplandecia silencioso, pois, pela manhã, os sons da noite
tinham cessado. O sol era uma bola de chamas, quente e ofuscante, que
aquecia seu corpo de frente, deixando-a fria por trás. Por mais que
entrecerrasse os olhos, não podia distinguir o campanário da escola, a
oitocentos metros de distância.
Passou diante da propriedade de John e observou a pequena casa
desconjuntada, depois da fileira de altos cedros. Junto ao celeiro, havia
muitas vacas brancas e negras. Um bando de pardais revoava ao redor do
guindaste gradeado do moinho de vento, cujo terço inferior estava coberto
por uma espessa trepadeira de glória-da-manhã, que elevava suas trombetas
azuis para o céu, comumente azul. Na metade do caminho entre a casa e o
moinho havia um antigo tanque de água que transbordava de petúnias rosadas
e brancas. Será que ele as teria plantado? E as glórias-da-manhã? Ela sentiu
uma pontada de desolação por aquele homem tímido e calado. Viu um gato
malhado sentado no degrau da parte de trás da casa, que lavava a cara branca
com uma pata cinza e, por alguma razão, sentiu-se melhor.
John era um homem tão simples e adorável! Pensou Linnea. Já
Theodore... Ela franziu a testa. Theodore era uma criatura mais complexa e
nada adorável. Como era possível que dois irmãos tivessem personalidades
tão diferentes? Se pudessem homogeneizar suas personalidades... ao John
cairia bem um pouco da coragem e do ímpeto do irmão; e seria muito bom se
Theodore tivesse um pouco do acanhamento de John. Mas era muito
estranho: Linnea não sabia se a razão pela qual pensava mais em Theodore se
devia à grosseria dele. Ou seria só por causa dela? O que ela sabia é que não
conseguia deixar de pensar nele. Em algumas ocasiões, detectava certa veia
de humor nele: contudo, ele sempre a escondia. Quantos dias poderia passar
uma pessoa sem sorrir? Sem rir? Alguma vez teria ele se permitido sentir
alegria? Certamente teria experimentado quando mais jovem, por ocasião de
seu relacionamento com Melinda. Espere só, Theodore, seu velho
desmancha-prazeres. Verá como o farei sorrir.
Com essa promessa, Linnea chegou à escola. Deteve-se no atalho para
desfrutar da cena: a construção branca, o céu azul, os álamos verde-
esmeralda, o trigo dourado, pássaros que cantavam entre as espigas, a brisa
que a acariciava, nem uma alma por perto. Era como se ela fosse a única
pessoa acordada. Minha escola, pensou, gravando a lembrança, prometendo-
se que jamais esqueceria aqueles momentos preciosos. Subiu os degraus de
cimento, tocou o frio corrimão de aço e abriu a porta de madeira. Minha... por
fim. Cruzou o vestíbulo e parou ao transpor as portas: tudo estava tal qual ela
havia deixado. Com as mãos unidas sob o queixo, gozou da expectativa de
seu primeiro dia de aula. Uma luz dourada se derramava pelas longas janelas
limpas da sala de aula. As sombras das mesas eram nítidas e escuras contra o
chão de carvalho sem tratamento, ao qual a limpeza do sábado arrancara o
aroma de madeira fresca. As cortinas se balançavam, lânguidas, e as argolas
projetavam sombras ovaladas que se moviam como ondas sobre uma fileira
de carteiras. Entre as janelas, brilhava a lamparina, juntamente com a lareira.
A bandeira pendia, imóvel. O fogareiro recém-pintado de negro esperava que
se acendesse o primeiro fogo; os tinteiros, que os enchessem; as palavras
escritas na lousa, que as lessem pela primeira vez. E o camundongo estava
sentado no meio do chão, expectante. Linnea riu e o ruído afugentou o
animal.
— Bom, também desejo a você um bom dia — Linnea viu que ele
escapulia pelo chão rangente e desaparecia depois da prateleira de livros. —
Então é esse o seu esconderijo — disse, apoiando-se sobre um joelho para
olhar detrás das prateleiras. Ficou de pé, sacudiu as mãos e disse em voz alta:
— Em breve o apanharei e, enquanto isso, não apareça. Está me escutando,
senhor camundongo?
Sentou-se diante da escrivaninha, levantou a tampa de sua marmita e
encontrou o pedaço de queijo que Nissa tinha colocado. Pegou-o e foi montar
a armadilha para pegar o camundongo. Entretanto, sentindo-se mal, olhou
para a estante e de novo para a mortífera mola de aço, voltando-se outra vez
para o móvel onde o animal se escondia. Por último, murmurou: — Está bem,
um dia a mais — e desativou a ratoeira e a deixou no chão, sem lhe tirar o
queijo. Depois foi lá fora e encheu o balde de água, transportou-o para dentro
e passou a água para a panela de barro. Por último, encheu os tinteiros e,
impaciente, olhou para o relógio: faltavam ainda quinze minutos. Olhou para
as portas fechadas e inclinou a cabeça, pensativa. Depois correu e abriu as
portas, tanto as de dentro quanto as de fora, para que dessem as boas-vindas.
Da porta, observou sua própria mesa. Então, de sua mesa, observou a
porta. Sentou-se e uniu as mãos sobre a velha mesa de carvalho,
contemplando o espetáculo: o pátio ocidental, a fileira de álamos que se
resguardava do vento, emoldurado por muros brancos e fragmentado pelo
negro tubo do fogareiro. E assim estava sentada quando apareceram as três
primeiras cabeças, que saíram de trás do fogareiro.
— Bom dia.
Linnea ficou de pé imediatamente e se aproximou deles: eram os filhos
de Lars e de Evie. Cada um deles trazia um caderno de estudos e um pote de
lata de melaço, e os três olharam para ela. O menino era sardento, com o
cabelo dividido de um lado e esmagado severamente para trás. Uns
suspensórios cinza seguravam sua calça azul-escura, e as ponteiras de suas
botas não tinham um só arranhão. A mais alta das meninas levava pela mão a
menor, que tratava de se esconder atrás do ombro de sua irmã. As duas
meninas estavam vestidas de maneira semelhante, com vestidos de algodão
florido que chegavam à altura de suas botas marrons de cano alto que, sem
dúvida, eram tão novas como as do irmão. A menina menor trazia um avental
branco engomado sobre o vestido. As duas usavam os cabelos partidos ao
meio e estirados para trás em duas tranças atadas com finas fitas amarelas.
— Bom dia, Senhorita Brandonberg — cantarolaram os dois maiores
em uníssono.
Enquanto tentava desesperadamente recordar seus nomes, o coração de
Linnea martelava. Mas só se recordou de um deles: — Você é a Norma,
acertei? Norma Westgaard.
— Ahã. E estes são Skipp e Roseanne.
— Olá, Skipp — cumprimentou Linnea.
O menino assentiu e corou, enquanto Roseanne enfiou o dedo na boca e
deu a impressão de que estava a ponto de começar a chorar.
— Olá, Roseanne — a professora repetiu o gesto.
Norma a empurrou um pouco com o joelho e a pequena recitou uma
saudação, obviamente ensaiada: — Bom dia, Senhorita Brandonberg.
Norma se inclinou sobre ela e lhe tirou o dedo da boca, ordenando-lhe:
— Agora, fale direito.
— Bom dia, Senhorita Brandonberg.
Desta vez a garotinha pronunciou com mais clareza, mas com o mesmo
receio cativante da primeira vez. O coração de Linnea se derreteu e ela se
aproximou, embora não muito, por temor de espantá-la.
— Bom, Roseanne, disseram-me que este é seu primeiro dia de aula.
A menina ficou vermelha, mas assentiu, sem tirar os olhos de Linnea.
— Sabia que para mim também? Vocês são meus primeiros alunos. E
se me prometerem não dizer a ninguém, contarei um segredo — Linnea,
unindo as mãos, apertou-as entre os joelhos, enquanto se inclinava e lhes
confidenciava: — A ideia de conhecê-los me deixou um pouco nervosa.
Roseanne tirou o dedo da boca e ergueu os olhos para Norma, que lhe
sorriu, tranquilizadora. Nesse preciso momento, apareceu alguém à porta. Era
Frances Westgaard, trazendo seu irmão pequeno. Linnea os reconheceu: eram
os filhos do Ulmer e de Helen, e ela esperava que os irmãos maiores se
unissem a eles momentaneamente. Mas, quando os meninos entraram para
saudá-la, não apareceu nenhum irmão mais velho.
Depois dos cumprimentos, todos saíram para a área externa: os
meninos, para o parque infantil e Linnea, para os degraus da entrada para
receber os alunos que chegassem. Manteve o olhar fixo no caminho, para ver
se aproximarem as crianças que faltavam. Mas os minutos se passavam e o
mais velho que chegou foi Allen Severt, que seguiu para o parque infantil,
onde, sem perder tempo, ficou a chatear as meninas maiores e a empurrar os
pequenos nos balanços.
Às nove em ponto, ainda faltavam os quatro alunos varões de mais
idade e por isso Linnea entrou para revisar a lista e certificar-se de que não se
equivocara a respeito dos que esperava. Mas ela não podia ter se enganado
quanto a Kristian! Onde estaria? Buscando em sua memória, recordou um
rosto que associava a Raymond Westgaard, um rapaz alto e anguloso que se
tinha apressado a partir imediatamente depois que os apresentaram no
domingo. E a filha dos Lommen já tinha chegado: era uma bonita menina de
longo cabelo na cor de mogno e assombrosos cílios longos, mas onde estaria
seu irmão gêmeo? Quem mais faltava? Ah, sim. Linnea repassou a lista:
Anton. Tony, como tinha chamado Nissa, tinha anotado o apelido à margem.
Também faltava Tony Westgaard, de quatorze anos. Respirou fundo e
percebeu a tensão no estômago. Acaso os rapazes maiores a estariam pondo à
prova, de certo modo? Chegariam tarde no primeiro dia para ver qual seria a
reação da nova professora? Pensou em Kristian e lhe pareceu impossível que
se prestasse a semelhante manobra. Mas já eram nove e dez e ela ainda não
fizera soar o sino. Por fim, abrangeu com a vista todos os alunos e escolheu
quem lhe pareceu mais sensato e digno de confiança.
— Norma, posso falar com você um momento? — chamou-a na
extremidade do parque infantil. Norma se apartou imediatamente dos outros e
se aproximou dela.
— Sim, Senhorita Brandonberg.
— São nove e dez e me faltam quatro alunos. Todos os rapazes
maiores. Saberia me dizer onde estão?
A expressão da menina se tornou perplexa.
— Oh, não sabe?
— Saber? Saber o quê?
— Não virão.
— Não virão? — repetiu Linnea, sem poder acreditar.
— Não. Não virão até que o trigo esteja coberto e a debulha terminada.
Confusa, Linnea repetiu: — O trigo? Hoje, quer dizer? Hoje alguém
está debulhando?
— Não, senhora. Não só hoje, mas também todos os dias, até o fim da
temporada. Os rapazes têm que ajudar com a colheita.
Assim que conseguiu compreender, Linnea temeu ter entendido muito
bem.
— A colheita. Refere-se a tudo, em geral? — com um gesto abrangeu
os extensos campos que rodeavam a escola. — Tudo isso?
Norma olhou nervosa para as mãos da professora e de novo ergueu os
olhos.
— Bom, necessitam dos meninos; do contrário, quem colherá tudo e
debulhará antes que caia a neve?
— Antes que caia a neve? Ou seja, pensam em manter os meninos
longe da escola todo esse tempo?
— Bom... sim, senhora — respondeu a menina, com uma expressão
preocupada.
Ao perceber que estava deixando Norma incomodada, Linnea
dissimulou seu descontentamento e respondeu, em tom brando: — Obrigada,
Norma.
Mas quando dirigiu a vista para o Noroeste, na direção em que os
rapazes estavam ceifando no dia anterior, estava furiosa. Não via uma alma.
E quando entrou no vestíbulo e puxou o grosso nó da corda, fez soar o sino
com tal veemência que, ao elevar-se, seus pés se separaram do chão!
Que começo tão desastroso para o dia que tinha imaginado com tanto
idealismo... Seria certo que se ativessem a esse costume todos os anos?
Tiravam dos meninos mais velhos o valioso tempo de frequentar o colégio
para que os ajudassem a colher seu precioso trigo? Bom, seria conveniente
que mudassem de atitude porque este ano estava presente a senhorita
Brandonberg e as coisas seriam um pouco diferentes!
O incidente estragou toda a jornada. Embora se seguisse com todas as
atividades planejadas e se dedicasse a conhecer seus tutelados, cada vez que
as crianças estavam atarefadas e ela não, assaltavam-na amargos
pensamentos; estava impaciente por voltar para casa e conversar com
Theodore. Distribuiu os assentos e fez um cartão com os nomes; depois fez
com que todos que soubessem recitassem o “Juramento de Fidelidade” ao
começar o dia. Depois, por turnos, parou junto às carteiras e eles disseram
seus nomes, idades e onde aproximadamente pararam os estudos ao terminar
o ano escolar anterior, ao trabalhar nos diversos temas. A maioria dos livros
que usavam não tinha nenhuma marca que indicasse o grau. Em um esforço
por se familiarizar com cada aluno, tanto do ponto de vista pessoal como
acadêmico, deu aos maiores a tarefa de escrever uma breve redação sobre
cada membro de sua família; os que estavam nos graus intermediários
deveriam escrever uma lista de dez palavras que acreditassem descrever sua
família, e aos menores pediu que desenhassem a família. Enquanto isso,
reuniu ao seu redor os alunos iniciantes: Roseanne e seu primo, Sonny
Westgaard, e começou a lhes ensinar o alfabeto com os cartões que tinha
preparado. Descobriu que era difícil manter um ritmo com níveis de ensino
diferentes ao mesmo tempo e em certas ocasiões acreditava ter dado tarefa a
um par de alunos com duração de uma hora... quando já haviam terminado e
estavam preparados para a lição seguinte antes que ela tivesse acabado com o
outro grupo. O descanso no meio da manhã foi um alívio, assim como o do
meio-dia para comer, embora não conseguisse comer o sanduíche de língua.
Ao final, descartou-o discretamente e passou o resto da tarde sentindo que lhe
grunhia o estômago.
Como as crianças faziam as tarefas sozinhos boa parte do tempo, era
fácil determinar quem se aplicava e quem não, quem podia brincar sem
vigilância contínua e em quem não podia confiar.
Allen Severt era o pior de todos. Sua tarefa escrita era desleixada, sua
atitude beirava a insolência e tratava os outros com grosseria e
desconsideração. Durante a pausa do almoço, saiu para sufocar esquilos.
Linnea se inteirou de que havia muitos, de modo que caçá-los era a atividade
preferida dos varões ao meio-dia — e ele não só trouxe duas caudas, mas
também uma diminuta pata peluda, que pôs silenciosamente sobre o ombro
de Frances Westgaard quando retornaram para a sala de aula. Quando a
menina percebeu, desatou a gritar, assustando o resto da classe, levantando-se
rapidamente e tirando-lhe a tapas para jogá-la ao chão.
— Allen! — ordenou Linnea — peça imediatamente desculpas a
Frances e leve essa porcaria para fora e a jogue lá!
Curvando-se no assento com ar indiferente, o menino perguntou: —
Por quê? Eu não a pus aí.
— Não foi você quem caçou os esquilos ao meio-dia?
Em lugar de responder, sem apagar a careta desdenhosa de sua boca,
levantou-se lentamente, inclinou a cintura com atitude descarada e levantou a
pata de esquilo do chão.
— Como queira, professora — disse, arrastando as palavras.
Ele pronunciou a palavra “professora” como uma bofetada no rosto de
Linnea. Ela teve que apelar para toda a sua força de vontade para não lhe dar
o golpe que ele merecia. Seus olhares se encontraram: o dele, lânguido e
vitorioso, o dela, enérgico. Colocando o polegar no bolso traseiro, o menino
começou a dar a volta.
— Primeiro as desculpas — ordenou Linnea.
O menino parou com um ombro mais baixo que o outro, como em
atitude de açoitado, e, quase sem apartar a vista de Linnea, disse: — Sinto
muito, desgraçada.
— Fora da minha sala de aula agora! — retrucou Linnea, sem deixar
escapar a importância psicológica de dar a última palavra.
O menino saiu com passo lento, com impudicos movimentos
preguiçosos, arrastando os pés de maneira a que ressoassem no chão oco. Por
sorte, o incidente ocorreu perto do final da aula, pois Linnea ficou tremendo
de raiva. Esforçou-se por dissimulá-lo quando Allen entrou outra vez com o
mesmo passo e voltou a sentar-se com a atitude aborrecida de antes. Faltava
meia hora para fazer soar o sino e dar por finalizadas as aulas e ela se sentou
à mesa para revisar as lições do dia. Allen, que integrava o grupo dos mais
velhos, ao qual dera a tarefa de escrever as redações, tinha decidido escrever
a lista de palavras. Mais encolerizada por sua teimosia, leu a lista sem
repreendê-lo por ter desobedecido às suas indicações. A lista revelava a
mesma atitude desafiadora do menino: aborrecido, estúpido, orações, peste
(irmã), negro, incômodo... Para surpresa de Linnea, ele acrescentou três
palavras que não tinham a menor relação com as demais: biscoitos de
chocolate. Erguendo a vista por cima do papel, ela descobriu Allen estendido
sobre a carteira, com o queixo apoiado no punho fechado, olhando-a. O que
na realidade devia estar fazendo era ler, mas tapava com as mãos o livro
aberto. Biscoitos de chocolate. Os biscoitos de chocolate que fazia sua mãe?
No fim das contas, haveria algo que esse menino soubesse apreciar? Mas o
que significaria a palavra incômodo? Estava muito chateada para deduzir e,
virando a folha, passou para a seguinte. Sentiu que os olhos de Allen lhe
perfuravam o alto da cabeça, até que já não pôde suportá-lo mais e voltou a
olhar o relógio.
A tampa do relógio era retrátil e a mola estava aparente atrás do arco de
ouro. Quando o puxou e fez saltar a tampa, voltou a sentir o incômodo
escrutínio. Ao levantar os olhos, encontrou o olhar de Allen fixo em seu seio,
onde o tecido da blusa, contornado pela corrente, formava um bico. Um
estremecimento percorreu suas costas e ela sentiu que corava, mas nesse
momento o olhar desinteressado do menino se voltou para a janela. Não seja
tola. Não é mais que um menino de quinze anos, pelo amor de Deus!
Observou-o com discrição um minuto a mais. Era magro e esguio, alto e de
ombros desproporcionalmente largos, como um edifício alto com vigas
sólidas que esperava que se preenchessem as paredes; não tinha nada da
corpulência que via desenvolver-se em Kristian, coisa compreensível, tendo
em vista que não fazia o mesmo trabalho esforçado que os filhos dos
fazendeiros. Mesmo assim, nos ossos do rosto anguloso de Allen, se via
aparecer a virilidade, bem como no irônico lábio superior, que já estava
recortado por uma fina sombra de bigode, similar à penugem que adornava os
ocos das faces. Também dava a impressão de que estavam engrossando suas
sobrancelhas, como se fossem se unir sobre a ponte do nariz. Mas, ao pensar
no que seria Allen como homem, estremeceu de novo e se apressou a deixar
baixar os olhos quando viu que a cabeça do menino girava outra vez em sua
direção.
— Crianças, é hora de arrumar as carteiras. Por favor, devolvam os
livros aqui e lavem as plumas no balde que está no guarda-volumes. Iremos
por graus: Jeannette, Bent e Skipp, vocês primeiro.
Uma vez ordenado o salão, ela se despediu com uma boa tarde e foi até
o vestíbulo tocar o sino. Mas, quando tinha os braços levantados sobre a
cabeça e os meninos foram saindo, o único que se atrasou foi Allen Severt.
Ele foi rebolando para ela, arrastando os pés, e desta vez não cabia dúvida;
olhava-lhe abertamente os seios. Ela soltou imediatamente a corda do sino,
olhando-o com a maior firmeza que pôde reunir.
— Adeus, Allen. Proponho que você e eu tentemos ter um dia melhor
amanhã.
O menino soltou um ruído carente de humor e passou junto a ela sem
dizer uma palavra. Isso não contribuiu em nada para melhorar seu ânimo para
o encontro com Theodore.
Quanto a este último, preocupava-se com a quantidade de tempo que
dedicava pensando na senhorita Brandonberg. Pensar muito era típico de sua
atividade. Quantas horas de sua vida tinha passado atrás dos cavalos que
puxavam o arado, pensando? Que outra coisa se podia fazer enquanto ia
atrás, contemplando as garupas reluzentes e as grandes cabeças que se
balançavam? Quando menino, trabalhando para seu pai, frequentemente
cochilava ao ritmo parecido dos cavalos. Quando adolescente que
amadurecia, tinha sonhado com o compasso do roçar da terra contra a lâmina
do arado. Como marido desiludido, angustiava-se ouvindo o rumor das
sementes caindo pelo tubo de grão. E como pai novato, abandonado com um
filho de um ano, ruminava sua ira do mesmo lugar.
Durante anos, seus olhos avistavam a mesma coisa: cavalos, colheita e
o horizonte. Viveu quase que exclusivamente para a terra e os animais
durante tanto tempo que se tornou introspectivo e áspero; tinha se esquecido
de como comunicar-se com os seres humanos. Claro que existiam Nissa,
John, e inclusive Kristian, mas também eles geralmente só gozavam de sua
própria companhia. Entretanto, aquela pequena senhorita era algo especial:
sempre tagarelando, borbulhante. Não havia dúvida de que ela não sabia
fechar a boca. O sujeito que se casasse com ela deveria estar preparado para
uma boa dose de atrevimento. Por que o enfurecia tanto? Por que o fazia
afrouxar a língua? Fazia-o pensar em tolices como as flores dos cardos e em
significado de palavras estranhas.
Sorriu imaginando a surpresa da moça quando Kristian não se
apresentasse na escola. Sim, sem dúvida viria para cima dele com palavras
difíceis na primeira ocasião que tivesse. Bom, que fizesse, Kristian já estava
inquieto e jogava olhadas para a escola cada vez que chegava ao topo da
colina. Theodore não estava cego: até um tolo teria se dado conta de que o
rapaz estava apaixonado pela professorinha e que, assim que tivesse
oportunidade, soltaria as rédeas e correria a praticar sua ortografia. Amor de
cachorrinho. Esboçou um sorriso torcido, que se apagou pouco depois ao
recordar-se de que não era muito mais velho que Kristian quando teve esse
fatal tropeço na cidade e conheceu Melinda. Melinda. Vestida de amarelo-
claro, o cabelo negro formando um nó, os olhos verdes relampejando,
aprovadores. Do momento em que a tinha visto naquele vagão, não pôde
apartar a vista dela. Remexeu-se inquieto e passou as rédeas para a outra
mão. Que diabo se apropriou dele para começar a pensar em Melinda?
Melinda era coisa do passado, e quanto menos pensasse nela, melhor. Fazia
anos que sabia disso. Acomodou-se melhor no assento de ferro e entrecerrou
os olhos quando foi para o Oeste. Hora de ordenhar. Fazendo flexões e giros,
massageou a nuca e pensou em quão bom seria sair do veículo e estirar as
pernas. Tirou o relógio do bolso do avental de trabalho, olhou a hora e o
guardou de novo. Ah, a mãe devia ter preparado uns sanduíches e uma xícara
de café quente. Fez gestos aos outros, aproximou-se dos confins do campo e
soltou os cavalos do arado. E, enquanto guiava a junta para o moinho da
família para receber o merecido descanso, perguntou-se se a pequena
senhorita já teria retornado da escola.
Ela estava de pé junto à porta, esperando para lhe saltar em cima, com
os braços cruzados, quando Theodore e Kristian entraram no pátio a pé, com
os cavalos atrás. Theodore a observou sob a aba do chapéu de palha, mas não
deu sinais de ter tomado ciência de sua presença. Ela gritou: — Ei, vocês,
parem — quando os cavalos apressaram o passo ao ver o tanque de água.
De propósito, conduziu Crib e Toots muito perto da moça, não fazendo
caso de sua presença no caminho deles.
— Senhor Westgaard! — ela o abordou, girando para olhar com
seriedade os ombros largos quando ele passou junto dela sem pronunciar
palavra.
Theodore se aproximou o suficiente para ver as faíscas que cintilavam
nos olhos azuis.
— Senhorita Brandonberg? — repetiu, com deliberada frieza, enquanto
ela o seguia inclinando-se adiante, com os punhos apertados e passos
furiosos.
— Quero falar com você!
— Fale.
— Hoje seu filho não foi à escola.
Theodore soltou as rédeas e se inclinou para soltar os arreios.
— É obvio que não. Estava no campo, comigo.
— Peço-lhe que me diga o que estava fazendo ali.
— O que qualquer pessoa fisicamente apta faz nesta região. Ajudar
com a colheita.
— Por ordem sua?
Theodore se ergueu, no preciso momento em que Kristian chegava com
seu par de animais, mas teve a sensatez de manter a boca fechada.
— Num dei ordens. O rapaz sabe que necessito dele e isso basta.
— Não lhe dei ordens — corrigiu Linnea. — Tente escutar-se um
pouco — apontou para o peito de Theodore. — Você tem uma gramática
lamentável, e quer que seu filho cresça falando desse modo? Isso é o que
acontecerá se não o deixar ir à escola — para enfatizar, Linnea agitou um
dedo sob o nariz do homem.
Theodore corou e sua boca se converteu em uma linha fina. Com quem
ela achava que estava falando?
— O que importa como ele fala, uma vez que saiba como dirigir uma
fazenda? Isso é o que ele fará por toda a vida.
— Ah, sim? E ele? O que pensa a respeito? — com uma expressão
colérica, voltou-se para Kristian e depois para o pai. — Muito bem, tem algo
a dizer a respeito? — de repente, voltou-se para confrontar diretamente o
rapaz. — O que diz, Kristian? Isso é o que pensa fazer pelo resto da vida?
O rapaz estava tão surpreso que não atinou com o que responder.
— Veja! — continuou a jovem. — Arrancou-lhe o cérebro de tal modo
que nem sequer pode pensar por si mesmo!
— Menina... será melhor que... — Theodore foi interrompido.
— Quando se dirigir a mim como professora de seu filho, meu nome é
senhorita Brandonberg!
Theodore a olhou, carrancudo, endireitou os ombros e repetiu: —
Senhorita Brandonberg... — fez uma pausa zombadora e continuou: — Há
um par de coisas que será melhor esclarecer. Aqui vivemos de acordo com as
estações, não com um calendário estabelecido por algum soberbo e sarnento
diretor de escolas. Temos que colher o trigo, e quando este estiver trilhado e
guardado nos celeiros, será o momento de os rapazes irem à escola —
levantando um dedo, apontou para o horizonte. — Aqui não estamos
trabalhando no jardim de uma solteirona, sabe? O que está olhando são
campos divididos em seções, não em hectares. Quando diabos você crê que
poderá usar todas essas palavras elegantes quando a terra lhe pertence? Aos
cavalos não importa como você fale — apontou Theodore com o polegar para
a cabeça dos cavalos que bebiam água. — A única coisa que lhes importa é
que lhes dê de comer, de beber e que os sele como é devido. Vacas, cavalos,
porcos e trigo! Isso é o que importa aqui, e será melhor que não se esqueça
disso antes de começar a pregar sobre educação!
Erguendo-se, Linnea levantou as mãos.
— Então para que me contrataram? Se isso for a única coisa que
importa, pode dizer-me! Pensei que meu trabalho consistisse em que as
crianças fossem letradas, em prepará-las para o mundo além do Álamo,
Dakota do Norte — terminou, com um tom agudo.
Se letrados significava aquilo em que ele acreditava, a pequena
jovenzinha o tinha posto outra vez em seu lugar e ele já tinha suportado tudo
o que podia de uma cachorrinha dezesseis anos mais nova que ele.
— Álamo, Dakota do Norte, é seu mundo e sempre o será, de modo que
se conforme tendo-o seis meses ao ano ao invés de nenhum.
Ele deu a volta, mas Linnea o provocou: — Então pensa em apartá-lo
da escola outra vez na primavera?
Em lugar de lhe responder, Theodore se encaminhou para o celeiro.
Indignada, a moça correu atrás dele e o agarrou pelo braço.
— Não se atreva a me dar as costas... pedaço irascível... — procurando
a palavra adequada, ao final lhe cuspiu: — Cínico!
Theodore não tinha ideia do que aquilo significava e isso o enfureceu
ainda mais.
— Cuidado a quem insulta, pequena senhorita. — Liberou o braço com
um puxão.
— Responda-me! — gritou Linnea. — Também pensa em tirá-lo da
escola para que o ajude a semear?
O queixo de Theodore adotou um gesto teimoso.
— Seis meses para mim, seis para você. É justo, num é certo?
— Para sua limitada informação, não existe a frase “num é certo”, e não
estamos falando do que é justo para mim e para você! Referimo-nos aqui ao
que é justo para o seu filho. Quer que ele saiba escrever e ler corretamente
quando for mais velho?
— Já sabe o suficiente para se virar.
— Virar-se? — irritada além dos limites, ela apertou as têmporas e
girou depressa. — Senhor, como pode alguém ser tão estúpido?
Theodore explodiu e ficou da cor escarlate.
— Se eu não for inteligente o bastante para seu gosto, pode procurar
outro que mantenha um teto sobre sua cabeça. Asseguro-lhe que o conselho
escolar não me paga o suficiente para a comida que come e muito menos para
aquecer o andar de cima.
Theodore deu a volta outra vez e desta vez ela o deixou ir. Quando o
homem desapareceu dentro do celeiro, Linnea tomou consciência da presença
de Kristian, de pé junto aos cavalos, as rédeas esquecidas nas mãos, com ar
envergonhado. De repente, deu-se conta do que tinha feito.
— Kristian, sinto muito. Não era minha intenção que presenciasse isto.
Foi... foi muito incorreto de minha parte ofender assim seu pai. Por favor, me
perdoe.
Kristian não sabia para onde olhar. Fixou os olhos nas rédeas, depois
outra vez em Linnea e depois nas correias que percorriam a garupa de Nelly.
— Num importa — balbuciou, passando a mão distraída no lombo do
animal.
— Não importa — corrigiu-o Linnea, sem perceber. E acrescentou: —
Sim, importa. Eu não tinha direito de perder a calma desse modo, nem de
chamá-lo de estúpido — ela dirigiu um olhar furioso para o celeiro, apertou
os punhos e golpeou as coxas. — O que acontece é que não sei como fazê-lo
compreender a importância da educação, visto que ele pensa que se saiu bem
sem ela.
— Ele tem razão, sabe? — Kristian a olhou nos olhos. — Num irei a
nenhum lugar. Aqui é onde vou viver por toda a minha vida, certamente.
Amo esta fazenda.
Desta vez, ela não se incomodou em corrigi-lo. Desesperada pela
inutilidade de seus esforços, viu-o afastar-se para o celeiro, de cujo lado mais
afastado chegava a voz de Theodore, gritando.
— Vem, patrão... — enquanto juntava as vacas para as ordenhar.
Ajeitando as dobradiças da porta do barracão, quase sem perceber o que
fazia, sobrevoavam em sua mente palavras cujo significados ele quase não
conhecia: cínico, letrado, sarcástico. Pensando nelas, sentiu-se ignorante e
impotente. Quantas vezes tinha desejado poder ler em inglês? Crescera
ouvindo falarem norueguês ao seu redor. Sua mãe lhe tinha ensinado a ler
quando era menino, mas naqueles dias não fazia falta nenhum outro idioma
na região. Entretanto, as coisas tinham mudado. As leis tinham mudado. No
presente, os meninos conheciam o idioma da nova pátria mais que o da antiga
e só os mais velhos se apegavam ao da terra natal.
Como pode alguém ser tão estúpido? O sangue lhe subiu de novo à face
ao recordar a frase da professora. Fechou com violência a porta do barracão,
voltou para a selaria, soltou com um golpe a lata e arrancou com um puxão
uma correia de couro da parede. Enganchou-a no braço da cadeira e
encontrou uma agulha grossa, mas quando a enfiou lhe tremeram as mãos. A
frustração e a impotência voltaram, mais fortes que nunca, e, atirando a
agulha e o fio, fechou os olhos e deixou cair a cabeça para trás, apertando as
mãos contra o banco de trabalho. Estúpido. Estúpido. Estúpido. Era verdade.
Ela era quase uma menina e já sabia mais do que ele saberia em toda a sua
vida. Mesmo assim, como se atrevia a jogar-lhe isso na cara?
Embora seguissem lhe tremendo as mãos, controlou-as para enfiar a
agulha. Deixou-se cair na cadeira velha, tomou a correia e a pôs no chão,
entre seus pés. A costura do couro se abriu, deixando descoberta uma linha de
madeira no meio. Fixou nela os olhos com ar ausente durante um longo
tempo e depois, com paciência, ficou a costurar. Não existe uma frase como
num é certo. O que tinha de errado com sua frase? Pensou. Talvez ela tivesse
razão, mas todos diziam num é certo, inclusive Kristian, que já tinha feito até
o sétimo grau da escola.
— Ela não me fará sentir de novo como um asno — prometeu-se em
voz alta —, porque não falarei com ela e não lhe darei atenção.
Seus dedos se imobilizaram e ele olhou para a correia sem vê-la. A luz
da lamparina caía sobre o chapéu de palha, sobre seus ombros caídos, e
projetava sombra sobre suas mãos e suas botas. Lá fora, os grilos seguiam
cantando. Dentro, tudo era silêncio. Titubeando, começou a falar outra vez
em voz alta: — Ela... num me... — mas se interrompeu, recordou os
professores do passado, a maneira como falavam. — Ela não me fará sentir
outra vez como um asno, porque não... porque não penso em lhe dar atenção.
Ficou pensando um momento a mais, levantou a correia de couro,
apoiou-a sobre os joelhos cruzados e seguiu arrumando-a.
— Ainda num secou o leite nos lábios — disse para a correia e logo se
corrigiu. — Se... ainda não... secou... o leite nos lábios.
Apareceu-lhe com clareza o rosto da moça, suas sobrancelhas
arqueadas, seus olhos azuis intensos, brilhantes, quando avançava para ele
com ardente indignação, e pronunciava Álamo, Dakota do Norte, como se
fosse o sedimento da terra. A professora era muito boa para o Álamo, hein?
Igual a Melinda, embora ele tivesse que reconhecer que nunca se havia posto
fastidioso com isso. E agora o que isso importava? Ela já não estava ali.
O que mais o exasperava era que a chegada da professora fizera-o
reviver dolorosas lembranças de Melinda, que tinha conseguido manter à
margem durante anos. Teria que ter feito caso a seus primeiros impulsos e ter
dado um chute no belo e pequeno traseiro de Linnea Brandonberg quando
teve oportunidade. Cortou a tralha, pendurou de novo a correia e deixou a
agulha no lugar correto. Bom, se formos ao fundo da questão, não importa. A
professora só estará aqui um ano, como todos os outros. Ela não voltará.
Podia ignorá-la durante um ano... não é certo?
CAPÍTULO 7
O SILÊNCIO DO FAZENDEIRO

Theodore tentou recordar a ocasião em que havia se sentido tão


zangado. Muito tempo atrás, possivelmente quando Melinda o abandonou e
ao seu filho. Então, como agora, havia se sentido estúpido, e sua discussão
com a professorinha não fez mais que aumentar sua cólera. Milhares de
pensamentos indignados pelejavam por se libertar, mas ele tinha muita
prática em dissimular as iras. Durante o jantar, fez o que tinha se decidido a
fazer: ignorou a moça. Não podia, sobretudo, olhá-la sem sentir uma
sufocante sensação de inferioridade. Então, que fosse dessa forma. À mesa,
voltou a reinar o silêncio e, por Deus, assim era que devia ser! Já tinha
suportado o máximo da altiva conversa da professora e não pensava em
dirigir uma só palavra cortês a uma garota de língua ferina como aquela, que
não tinha noção do devido respeito aos mais velhos.
Assim que terminou o tenso jantar, Theodore procurou refúgio no lugar
que mais amava. Levantou-se da mesa e, sem dirigir palavra a ninguém,
pegou o chapéu do gancho que havia atrás da porta, acendeu a lamparina e
caminhou para o estábulo na escuridão. A noite palpitava com os chiados dos
grilos, mas ele não os escutava. A lua estava quase cheia, mas ele não a
enxergava. Com a cabeça encurvada, o andar automático, andava pela noite
pulsante. A porta do estábulo chiou quando ele a abriu e esse foi o primeiro
som que sua mente aflita registrou. Cruzou o estábulo, abriu a porta da selaria
e ergueu a lamparina para ver melhor. Olhou as paredes caiadas onde se
penduravam os arreios como grinaldas de grosso couro, em uma ordem tão
meticulosa como a que tinha uma mulher em sua despensa. Esse era seu
domínio. Ali ele tinha o controle total. Ali ninguém ria dele nem o
considerava estúpido. Quando se esticou para pendurar a lamparina em um
gancho alto, sua face pareceu de ouro, salvo onde estava a sombra do chapéu
que obscurecia os olhos hostis. Deu livre curso à fúria que o consumia,
enquanto por fora mantinha a calma, tocando os objetos familiares do lugar.
Encontrou uma lata de azeite e retornou para seu assento. Entretanto, depois
de haver ficado na selaria até que a melancolia se apropriasse de sua alma,
descobriu que era impossível ignorar a moça: afinal, ela era hóspede em sua
casa. Caminhando pelo pátio, Theodore olhou para a pequena janela do sótão.
Embora estivesse escuro, ainda havia luz na cozinha. Deteve-se, enervado
diante da ideia de topar com ela no andar inferior. Num irá... não iria permitir
que aquela insignificante sabichona o fizesse vacilar quando quisesse se
mover por sua própria casa. Decidido, seguiu andando e passou diante do
moinho em direção ao retângulo dourado que projetava uma franja oblíqua de
cor sobre o pátio. Mas, quando viu que todos tinham ido dormir, soltou um
suspiro de alívio. Teria sido sua mãe que tinha deixado a lamparina a óleo
sobre a mesa da cozinha para ele?
Levou-a para seu aposento, mas parou um momento na entrada. O
quarto era simples, doméstico, de móveis sólidos, velhos, mas bem
conservados. Havia uma penteadeira com espelho e gavetas. Do mesmo estilo
era a pesada cabeceira da cama e ambos os móveis eram do tom escuro da
nogueira. A cama estava forrada com um dos cobertores feitos à mão por
Nissa, com retalhos vermelhos e azuis. Os tapetes de crochê alegravam as
longas tábuas de pinheiro do chão, que eram da cor do café negro. Sobre a
única janela, penduravam-se cortinas franzidas de renda da cor do café com
leite. Theodore foi até a penteadeira, cuja tampa estava protegida por uma
toalha de mesa bordada com uma orla de crochê azul-escuro. Fixou os olhos
nele por um longo momento antes de apoiar a lamparina e tocar a toalha azul
bordada, recordando as mãos finas de uma mulher que sujeitaram a agulha e
o tempo, costurando e tentando esquecer a solidão com aquele bordado.
Passou os dedos pela borda matizada até que um fio se enganchou em
um calo, franzindo o caminho percorrido. Subjugado pela tristeza, Theodore
alisou o tecido com movimentos lentos, abriu a gaveta superior da
penteadeira, procurando entre as roupas a fotografia que não tinha visto havia
anos. Ela estava em um porta-retratos de madeira, com um vidro saliente e,
em contraste com sua mão longa e calosa, parecia ridiculamente feminino. O
delicado retrato de uma bela mulher lhe sorria de uma imagem em tons de
sépia, tão descolorida quanto as lembranças dos dois anos em que viveram
juntos. Uma dor pungente lhe oprimiu o peito. Melinda. Ai, Melinda!
Acreditei que a tinha conquistado. Mas...
Ele deixou o retrato sobre o tecido cheio de flores que ela tinha bordado
e a contemplou enquanto passava os suspensórios pelos ombros e se despia
metodicamente. Afastou o cobertor, o áspero lençol branco, apagou a luz,
empilhou os travesseiros de pena de ganso um sobre o outro e deitou-se com
as mãos sob a cabeça. Na escuridão, podia ver o rosto sorridente, que o atraía
como o de nenhuma outra mulher antes nem depois. Fechou os olhos,
respirou com dificuldade, esforçando-se por permanecer como estava,
enterrando as mãos sob a cabeça em lugar de passá-las pela parte vazia da
cama. A solidão era algo que estava acostumado a aceitar com o estoicismo
próprio de seu povoado e de seu modo de vida. Mas naquela noite ela se
instalou furtiva, fazendo-lhe pulsar o coração com uma dor pesada que ele
não podia controlar. Só tinha trinta e quatro anos. Vivera três quartos de sua
vida? A metade? Teria que viver outros trinta e quatro sozinho nessa grande
cama? Retornar do campo ao finalizar a jornada para compartilhar a mesa
sem outras pessoas que não fossem a mãe, o filho e o irmão? E quando sua
mãe e Kristian já não estivessem ali para compartilhá-la, e então? Ninguém,
salvo John, a quem evidentemente amava, mas que não podia preencher o
vazio deixado por Melinda. Eram raras as ocasiões em que ele desejava que
houvesse uma mulher para substituí-la. O sentido comum lhe dizia que,
embora quisesse, não havia nenhuma pelos arredores, pois a metade das
mulheres do condado estava aparentada com ele e a outra metade já estava
casada ou era velha o bastante para ser sua mãe. Theodore não entendia por
que havia começado a pensar em mulheres. Não entendia por que tinha se
tomado de tristeza em meio à temporada de colheita, que costumava
preenchê-lo de plenitude e alegria. Não entendia muitas coisas, e isso era algo
que fazia Theodore Westgaard sentir-se estúpido. Desejou que houvesse
alguém com quem pudesse falar sobre Melinda, sobre a dor que lhe tinha
causado havia tantos anos e sobre o imenso vazio que se seguia a essa dor,
embora ele acreditasse tê-la superado. Entretanto, com quem poderia falar?
Que homem falava de seus sentimentos dessa maneira? Ninguém que ele
conhecesse poderia cumprir esse papel.
Em seu quarto, no andar de cima, Linnea escutava os ruídos que fazia
Theodore no andar de baixo, preparando-se para dormir. Recordou a fria
atitude dele durante o jantar e a solidão que sentira vendo-se tratada daquela
forma. Sem que ela compreendesse bem por que, veio-lhe a vontade de
chorar. Theodore estava equivocado e ela tinha razão. Não era motivo
suficiente ter tido uma briga com uma mula de cabeça-dura como ele para
chorar até dormir. Decidida, afundou o rosto no travesseiro para deter a
ardência nos olhos. Mas tudo parecia em vão, a ardência continuava, e mais
do que a ardência, a dor. Recordou a conversa que tivera com Nissa
imediatamente depois de seu confronto com Theodore. Estava convencida de
que Nissa ficaria de seu lado, mas a idosa não lhe dera muito ânimo.
— Não lhe dissemos que os rapazes não iriam à escola porque
sabíamos que isso a indignaria — disse Nissa. — E, de todos os modos, isso
não fará Teddy mudar de opinião. Teve a mesma discussão com cada um dos
professores que veio. De fato, por isso nenhum deles veio um segundo ano
consecutivo. Seria conveniente que se conformasse. Os rapazes não irão à
escola até que a colheita e a debulha tenham terminado.
— E quando será isso?
— Oh, mais ou menos em meados de outubro. Assim que chegarem os
peões contratados, as coisas vão rápido.
— Peões contratados?
De onde tirariam peões, se já estavam ocupados todos os homens e
rapazes disponíveis da região? E se Theodore podia permitir-se contratar
gente, por que não o fazia já, quando beneficiaria Kristian?
— Assim que terminar a colheita em Minnesota, esses rapazes vêm
aqui e se empregam. Todos os anos vêm quase os mesmos.
E assim Linnea ficou sozinha na luta por obter que os meninos mais
velhos recebessem os nove meses de educação que mereciam. Kristian já
tinha dezesseis anos e só tinha chegado ao oitavo ano. Acaso não entendiam
que não podiam completar um período em apenas seis breves meses?
As lágrimas se amontoaram em seus olhos. Atribuiu-as ao
desapontamento e à frustração de suas expectativas, ao dia difícil que tinha
tido, com a classe diminuída e os enfrentamentos com Allen Severt e com
Theodore. Mas, quando as lágrimas se converteram em soluços, já não podia
atribuí-las a problemas acadêmicos, a ausências na escola ou a Allen Severt,
mas a Theodore Westgaard, que entrava na cozinha, sentava-se à mesa, comia
toda a sua comida e saía da casa sem lhe voltar um só olhar, sem sequer
reparar em sua existência.
Todavia, obtivera o mesmo tratamento durante vários dias, cada vez
que seus caminhos se cruzavam. A única vez em que ele lhe falou foi quando
ela o obrigou, saudando-o primeiro. Mas jamais levantava os olhos. E, se ela
estava em um cômodo, ele saía o mais rápido possível. No domingo, ficaram
um junto ao outro na igreja e Linnea percebeu o cuidado que ele tomava para
que sua manga não roçasse a dela. Naquele exato momento, a hostilidade de
Theodore se converteu em um peso sobre o coração de Linnea. Cada vez que
ele a tratava com frieza, ela tinha vontade de lhe agarrar o braço e lhe
implorar que compreendesse que, em sua posição de professora, não podia
adotar nenhuma outra atitude além da que adotara. Queria abrir sua alma e
confessar que se sentia profundamente desventurada vivendo com aquele frio
tratamento. Queria vê-lo outra vez amistoso, para que se esvanecesse a tensão
na casa.
Até então, jamais lhe tinha acontecido algo assim na vida. Nunca um
amigo se convertera em inimigo, embora, com efeito, Theodore nunca tivesse
sido seu amigo. Mas essa antipatia à queima-roupa estava muito longe da
neutralidade que tinham obtido até que ela o chamasse de estúpido. Sentar-se
junto a ele e sentir seu desprezo fazia definhar seu coração.
O reverendo Severt anunciou o hino número 203. Soaram os primeiros
acordes do órgão, a música tomou o recinto e a congregação pôs-se de pé.
Parecia providencial que só houvesse um livro de hinos para cada duas
pessoas. Linnea tomou um e deu uma cotovelada no braço de Theodore. O
homem endureceu. Ela o espiou por debaixo das penas de pássaro de seu
chapéu e lhe ofereceu um sorriso inseguro. Theodore compreendeu que lhe
oferecia muito mais do que compartilhar um livro de hinos. Também tomou
consciência de que estavam na Casa do Senhor... não era lugar para
hipocrisias. Quando ele tomou uma parte do caderno, não tinha como
propósito enganá-la, fazendo-lhe acreditar que podia ler os versos. Embora a
antipatia parecesse diminuir na igreja, durante o almoço do domingo
tampouco ele disse nada. Comeu em silêncio e saiu da cozinha para vestir a
roupa de trabalho. Quando estava prestes a sair, viu que Linnea o olhava
fixamente do outro lado da sala e parou. A moça retorceu os dedos e abriu os
lábios, como se se esforçasse por falar. Ele esperou, sentindo uma estranha
indigestão no estômago, uma expectativa que pareceu cravar-se no lado de
seu coração. Os olhos azuis eram grandes e temerosos. Duas manchas de cor
brilhantes acendiam suas faces. Pareceu que o instante se dilataria pela
eternidade, mas então Linnea baixou os cílios. Abriu e fechou os lábios.
Decepcionado, Theodore cruzou o cômodo sem pronunciar palavra.
Linnea passou a tarde em seu quarto, corrigindo lições e planejando a
semana de aulas. No andar de baixo, Nissa foi para seu quarto fazer a sesta. A
casa ficou em silêncio e o dormitório do sótão se tornou sufocante. Lá fora, o
sol se ocultava e o céu tinha um tom cinza-esverdeado, enquanto para o Norte
ribombavam os trovões. Imersa na tristeza e sentindo-se cada vez mais
equivocada, sua concentração se desviou da tarefa escolar. Ao olhar pela
janela, notou a mudança do clima. Pela enésima vez seus pensamentos
derivaram para a discussão com Theodore e o antagonismo que resultara dela
e a que nenhum dos dois parecia ser capaz de dar fim. Ela não tinha com
quem falar e decidiu contar para Lawrence: — Lembra-se de Theodore?
Bom, temo que ele e eu ainda estejamos como dois inimigos. Tivemos uma
terrível briga e agora ele não fala comigo e nem me olha!
Vestida somente com sua combinação e as anáguas, Linnea se olhou no
espelho, apertando uma mão contra o peito, tocando a zona da pulsação na
garganta e adotando uma expressão de profunda consternação.
— O que eu posso fazer, Lawrence? — interrompeu-se, agitou os dedos
e replicou: — Bom, suponho que nós dois tenhamos culpa. Ele é um cabeça-
dura e eu... eu fui muito intratável com ele.
De repente, ela arqueou as costas e ergueu o queixo em um gesto de
defesa.
— Bom, ele mereceu, Lawrence. É uma mula teimosa — ela se afastou
rapidamente, cuidando, desta vez, para não tropeçar na cômoda.
— Ele está convencido de que o resto do mundo está equivocado por
desejar uma educação melhor que a sua, enquanto ele... — interrompeu-se de
repente e se voltou outra vez para o espelho: — Bom, sim, eu... eu... —
ergueu as mãos, chateada com a obstinação de Lawrence ao negar-se a jogar
a culpa em quem merecia. — Por isso o chamei de estúpido. E o quê?
Ela aproximou-se da pilha de papéis que estava corrigindo e brincou
com a borda de um deles, para logo se virar, com os olhos muito abertos: —
Desculpar-me? Não está falando sério, Lawrence! Mas se é ele que tem que
me pedir desculpas...
No primeiro ribombar do trovão, Theodore se voltou para a
extremidade do campo. Tinha o traseiro apoiado sobre o metal sólido e estar
no meio de um trigal faria dele um alvo perfeito em uma tormenta elétrica.
Um pálido raio amarelo acendeu outra vez no horizonte cinza e ele contou os
segundos até que o trovão chegasse aos seus ouvidos. Olhou o relógio.
Quatro em ponto e seria o primeiro dia em mais de três semanas que paravam
tão cedo. O recesso faria bem a todos, embora o cair da chuva atrasasse a
secagem do trigo que já estava cortado.
Já na casa, Theodore deixou que Kristian tratasse dos cavalos. Entrou
na cozinha vazia e foi imediatamente até o fogão para ver se havia água
quente. Deteve-se com a chaleira na mão, aguçando o ouvido: quem
demônios a podia estar visitando em seu quarto? Ele esperou ouvir outra voz,
mas não houve nenhuma. Havia pausas e depois os tons sufocados da voz da
professora. Do dormitório de baixo, vinha o suave som dos roncos de Nissa e,
com expressão intrigada, Theodore foi, nas pontas dos pés, até o vão da
escada, com a chaleira esquecida na mão.
— Não sei o que faria sem você, Lawrence. É... é o melhor amigo que
jamais tive. Bom, me passe a blusa, de repente fez frio.
Theodore esperou, mas, depois disso, tudo ficou em silêncio. Ouviu o
ruído dos passos de Linnea e os seguiu com o olhar pelo teto. Lawrence?
Quem diabos seria Lawrence? E o que estaria fazendo no quarto dela?
Inclinou outra vez a cabeça, esperando ouvir uma voz masculina que
respondesse, mas os minutos se passaram e não se ouvia nada. O que
estariam fazendo com tanto silêncio? Colocou água na bacia e se esfregou
mais silenciosamente do que nunca em sua vida, ainda tomado pela
curiosidade, escutando. Mas pouco depois chegou Kristian do estábulo,
fazendo a porta bater e despertando Nissa, que saiu um pouco cambaleante,
acomodando os óculos atrás das orelhas e comentando o triste tempo.
Theodore voltou secando o rosto e murmurou: — Quem está lá em cima com
ela?
Nissa parou.
— Lá em cima? Ninguém além de Linnea.
— E então com quem ela está falando?
Nissa prestou atenção por um momento.
— Num está falando com ninguém.
— Oh, pareceu-me ouvir vozes — disse Theodore, intrigado.
Só quando seguia a caminho da selaria foi que Theodore percebeu que
a mãe havia dito num está. Colocou as mãos dentro do bolso do avental de
trabalho, adquirindo o ar de um velho monge sábio e, enquanto caminhava, a
corrigiu: — Não está falando com ninguém.
O bater da porta e a conversa que chegava de baixo fizeram Linnea
voltar para a realidade. De repente, percebeu quão escuro estava lá fora.
Apoiando as mãos no marco da janela, olhou para fora e viu um reluzir de luz
para o Norte. Isso significava que os homens tinham retornado cedo e que
não sairiam outra vez depois da ordenha. Deixou-se cair na beirada da cama e
uniu os dedos, balançando-os entre os joelhos. Fazendo girar os polegares,
observou-os por um longo momento.
— Será melhor que tenha razão. Lawrence — disse, levantando-se para
se arrumar.
Não precisava perguntar onde estaria Theodore: de algum modo, ela
sabia. Quando saiu para o estábulo, os relâmpagos cintilavam e já caíam os
primeiros pingos da chuva. A porta exterior se abriu sem ruído. Quando a
fechou atrás de si, parou, deixando que seus olhos se habituassem à
penumbra. À sua esquerda, uma longa fileira de janelas só deixava passar
uma tênue luz, mas bastava para comprovar que Theodore mantinha o
estábulo escrupulosamente em ordem e que ali era seu pequeno domínio
privado no exterior da casa principal. A porta estava aberta e por ela difundia-
se uma luz alaranjada de lamparina, que mostrava que ele estava lá dentro.
Linnea viu só a metade das costas de Theodore. Ao retornar da igreja, ele
vestira o avental de trabalho por cima da camisa branca e era com ela que
estava naquele momento. Ela o viu sentado na velha cadeira com os ombros
largos esticando a camisa. Seu corpo estava inclinado para a frente, os
suspensórios caídos, e os cotovelos apoiados nos joelhos separados. Tinha
algo na mão e, aparentemente, estava lustrando-o, pois os ombros se
sacudiam ritmicamente. Theodore se agachou e colocou a mão em uma lata
que mantinha entre as pernas, enquanto Linnea avançava nas pontas dos pés
até tê-lo por completo à vista. Quando o homem voltou à tarefa, ela observou
os movimentos dos músculos do braço debaixo da manga enrolada. De seus
dedos pendia uma tira de couro negro e, enquanto trabalhava, a ferramenta
produzia um ruído repetido. O recinto era apertado, quente e cheirava a
sabão, montarias de couro, azeite e cavalos. Ele parecia confortável ali, com
tudo tão ordenado como quando ela o tinha inspecionado da primeira vez.
Mas também parecia solitário. As mãos deixaram de se mover, embora ele
permanecesse sentado como antes, como se examinasse, distraído, o pano que
tinha nas mãos. Linnea conteve o fôlego e se manteve imóvel. Podia ouvi-lo
respirar e se perguntou no que pensaria ali sentado sozinho, com a cabeça
encurvada.
— Theodore?
Ele saltou na cadeira e virou-se bruscamente para olhá-la, empurrando
a lata para o lado e quase deixando a cadeira cair. Antes que ele a apoiasse
outra vez no chão, Theodore já tinha corado.
— Estou perturbando?
Claro que o incomodava, pois estivera sentado justamente pensando
nela e, de repente, ela aparecia em pessoa e silenciosamente atrás dele, como
um fantasma. Linnea, com uma expressão decidida, tinha as mãos nas costas,
o que fazia sobressaírem os seus seios e, embora Theodore mantivesse os
olhos presos aos dela, captou uma piscada do relógio de ouro que se
pendurava da parte mais proeminente do seio esquerdo.
— Não.
— Eu não queria assustá-lo.
— Não me assustou. Mas eu não sabia que você tava aí.
— Estava — Linnea disse num rompante, antes que pensasse em retê-
lo, e mordeu o lábio por dentro.
— O quê?
— Nada — agora foi ela quem corou.
Fez-se outra vez um silêncio denso, como no momento em que se
cruzaram na cozinha.
— Posso ficar aqui? — ela perguntou.
— Oh, bom — ele sacudiu o pano com um gesto nervoso. — Sim,
claro. Mas num... — remexeu os pés. — Não há muito espaço aqui —
corrigiu-se a tempo.
A autocorreção deixou incomodados tanto Linnea quanto Theodore.
— É o suficiente para mais um? — perguntou a moça. Como ele não
lhe respondesse, entrou no recinto com ar despreocupado, os braços na
cintura, observando a parede enfeitada com couro.
— Então este é o lugar onde você passa o tempo livre — ela disse,
sorrindo.
— Num... — ele tentou pensar no modo correto, mas a presença dela
parecia nublar sua mente.
— Não há tal coisa em uma fazenda... tempo livre.
— Ah... — desta vez Linnea observou os arreios cuidadosamente
pendurados, sem fazer caso de sua gramática, embora ele mesmo tenha se
corrigido.
— E o que estava fazendo? — ela perguntou.
— Lustrando um arreio.
— Oh, por quê?
Theodore ficou olhando a cabeça de Linnea, que estava ereta para
observar os objetos pendurados no alto. Que pergunta... E ela o considerava
estúpido! Pensou.
— Porque se não for lustrado, o suor dos cavalos o apodrecerá e se não
for isso, os vapores de... os vapores do lado de fora o apodrecerão.
Ele fez um gesto com a cabeça para a parte principal do estábulo.
— Sério? — girou o rosto para ele, com os olhos arregalados. —
Jamais o teria imaginado. Isso é muito interessante.
Até o momento, para Theodore aquilo jamais parecera interessante,
mas apenas um fato.
— Claro, você deve saber tudo o que tem que saber para tocar uma
fazenda.
Ela avançou para dentro da habitação, sob o olhar fascinado de
Theodore, que não imaginava o motivo de ela ter ido até ali. Aproximou-se
do cavalete, roçou um dedo no forro de pele de ovelha e, de repente, mudou
de ideia.
— Oh, quase me esqueci! — voltou-se, tirando uma armadilha para
ratos de trás das costas.
— Tenho uma visita não desejada na escola. Kristian me conseguiu
essa ratoeira, mas parece que não fui muito afortunada instalando-a. Poderia
me mostrar como se faz?
Theodore olhou para a armadilha, depois para a moça e, por uma fração
de segundos, Linnea acreditou que fosse sorrir. Mas não o fez. O que fez foi
pensar, pela segunda vez em três minutos, que para ser uma mulher educada
também tinha seus momentos de estupidez.
— Não sabe como colocar uma armadilha?
A moça encolheu os ombros.
— Na loja o meu pai sempre a preparava, assim, nunca tive que fazê-lo
até agora. Nissa me pôs um pouco de queijo na marmita do almoço, mas cada
vez que tentei, a mola saltava e me deu medo de prender um dedo.
— Que loja?
— Meu pai tem um armazém em Fargo. Os ratos adoram fazer buracos
nos sacos de farinha.
O homem entrecerrou um pouco os olhos.
— Acredito que disse que seu pai fosse advogado.
A moça o olhou, muda, apanhada em sua própria mentira. Baixou os
olhos para a armadilha e, quando por fim falou, o fez em tom contrito: — Foi
uma invenção. Você... você me desconcertou de tal modo que foi necessário
pensar rapidamente em algo, porque tinha... — ela ergueu os olhos com
expressão suplicante e os baixou outra vez.
— Inventei essa mentira porque fiquei com receio de que não me
deixasse ficar aqui com você e não sabia o que dizer para fazê-lo mudar de
ideia. Desculpe-me.
De modo que a pequena correta não era tão correta assim, no fim das
contas. As faces de Linnea exibiam manchas brilhantes como peônias
vermelhas e ela se concentrava na armadilha como se tivesse medo de voltar
a erguer os olhos. Ele observou que ela tinha as unhas bem cortadas e
lustradas e com elas tocava o desenho da madeira. Theodore estendeu a longa
palma da mão.
— Dê-me isso. Deixe-me ensinar algo que é uma novidade para você.
Linnea levantou a cabeça e seus olhos se encontraram. Para alívio da
moça, nos de Theodore existia um sinal de diversão. Ela colocou a armadilha
na mão dele e ele se esticou para desprender a lamparina do gancho do teto e
a levou à mesa de trabalho, dando-lhe as costas. Entretanto, tendo chegado
até esse ponto, Linnea duvidou de aproximar-se muito. Theodore olhou sobre
o ombro: — Bem, você vai vir?
— Oh... sim.
Estavam lado a lado e à jovem lhe ocorreu que jamais tinha visto mãos
tão grandes quanto as que via agora ao manipular a armadilha. Theodore tirou
uma parte de couro para usar em lugar do queijo.
— Primeiro coloca a isca aqui.
— Já sei. Não sou tão estúpida.
Theodore olhou para baixo, ela, para cima. Os dois estiveram a ponto
de sorrir. Linnea percebeu que havia tirado a gravata da camisa, que estava
aberta no pescoço e que, para um homem, ele tinha uns cílios muito longos.
Ele notou que nas profundidades dos olhos azuis havia diminutas bolinhas
cor de ferrugem, quase tão brilhantes quanto o resplendor da lamparina,
refletindo-se no relógio de ouro que ela trazia ao peito. Eles tiveram que se
esforçar para concentrar-se na demonstração.
— Mantenha-a abaixada e puxe o arco para trás, do outro lado.
— Puxar o arco para trás — repetiu Linnea, erguendo os olhos. — O
nome disso é arco?
— Sim.
— Por quê?
Theodore cometeu o erro de olhá-la outra vez nos olhos e a armadilha
se soltou e saltou para o chão, caindo da mesa. Linnea sufocou uma risada e
Theodore sentiu arder seu rosto.
— Isso eu também posso fazer — brincou a moça.
Ela se agachou para recolher a armadilha e a entregou, com expressão
de zombadora tolerância. Irritado, Theodore a pegou e começou de novo,
procurou o quadrado de couro, pô-lo em seu lugar e empurrou o arco para
trás.
— Ponha a barra de segurança em seu lugar, embaixo da pequena
borda... — retirou com cuidado as mãos.
— Assim — com alívio comprovou que desta vez o tinha feito certo.
Ele pegou uma chave de fenda de uma lata com ferramentas e tocou a
armadilha com ela. — Agora, tente você.
Colocou de novo a chave de fenda na lata e empurrou a armadilha para
ela.
— De acordo.
Theodore observou as mãos da moça que desenvolviam a lição,
pensando em que, se por acaso a armadilha saltasse, poderia machucá-la e até
romper um dedo tão pequeno. Mas ela armou tudo muito bem, e logo a
armadilha estava colocada sobre a bancada de trabalho. Lá fora, a tormenta
havia aumentado. No pequeno vidro da janela, refletiam-se os rostos dos dois
contra o fundo do céu azul-escuro e, de repente, na selaria reinou o silêncio.
A fragrância de couro, cavalos e madeira velha parecia lhes dar abrigo.
— Theodore — Linnea disse em voz tão fraca que podia ser um eco. A
chuva açoitava a janela, mas dentro estava iluminado e seco. Não tanto
quanto a garganta de Theodore que, de repente, falhou, enquanto os dois
seguiam olhando as mãos um do outro. — Na realidade, não vim aqui para
que me ensinasse a preparar uma armadilha para ratos. Na segunda tentativa
eu já sabia como fazê-lo. Foi só uma desculpa.
Ele se voltou para olhá-la, mas só se encontrou com seu cabelo. Com a
cabeça baixa, Linnea continuou: — Vim pedir perdão.
Theodore seguiu sem saber o que dizer.
— Acredito que o magoei muito no outro dia, quando zombei de sua
maneira incorreta de falar e o qualifiquei de estúpido. Lamento muito ter feito
isso, Theodore.
Ao ver que ela erguia o queixo, ele se apressou em apartar a vista para
que seus olhares não se encontrassem.
— Oh, não importa — respondeu ele.
— Não? Então por que não conversou comigo e nem me olhou desde
então?
Ele não soube o que responder e cravou os olhos no pedaço de couro
colocado na armadilha e, neste instante, retumbou um terrível trovão que fez
sacudir o sólido estábulo. Nenhum dos dois deu a impressão de ter notado.
— Para mim foi muito duro compartilhar a mesa com você, passar ao
seu lado na cozinha e receber aquele tratamento gelado. Minha família é
muito diferente da sua. Conversamos, rimos juntos e compartilhamos coisas.
Desde que cheguei aqui, sinto muitas saudades disso. Durante toda a semana,
cada vez que você se mostrava frio e ríspido e me dava as costas, eu tinha
vontade de chorar, porque jamais até agora tinha tido um inimigo. E hoje, na
igreja, acreditei... bom, tinha esperanças de que você se suavizasse um pouco,
mas quando pensei um pouco mais compreendi que, certamente, você estaria
profundamente magoado e que, se eu quisesse recuperar sua amizade, devia
lhe pedir desculpas. Poderia... poderia me olhar, por favor? — seus olhos se
encontraram, os dele, incômodos; os dela, contritos. — Sinto muito. Você
não é estúpido e eu jamais poderia ter dito isso. Deveria ter sido mais
paciente com sua gramática. Mas sou professora, Theodore.
Sem aviso prévio, levou uma das mãos e tocou-lhe o braço, adotando
uma expressão suave. Algo estranho passou no coração de Theodore e ele
sentiu que esse leve contato lhe queimava a pele. Quis apartar o olhar e não
pôde.
— Sabe o que significa isso? — os olhos de Theodore soltaram faíscas.
Pensou, desesperado, que ela se poria a chorar. — Significa que não sou só
professora quando estou na sala de aula. Não posso me dividir em duas
pessoas diferentes: uma que ensina quando está a um quilômetro e meio de
distância e outra que se esquece por completo disso quando volta para casa.
Fez um amplo gesto e, por sorte, Theodore se viu livre do contato e da
ameaça das lágrimas.
— Oh, já sei que às vezes sou impetuosa. Mas é algo automático:
quando ouço as pessoas falando errado, corrijo-as. Quando entrei aqui, o fiz
de novo sem sequer pensar e vi o quão incomodado isto o deixou.
Theodore iniciou o movimento de dar a volta para recolher o pano e
fingir-se atarefado, mas Linnea lhe agarrou a borda da manga da camisa e o
forçou a ficar onde estava. — E o farei outra vez... e outra vez... antes de ter
esgotado sua paciência. Você me entende?
Ele a olhou fixamente, mas sem falar.
— Que mal pode haver nisso, se você souber que não o faço para
diminuí-lo? Não existe nenhuma regra que diga que só devo ensinar às
crianças, não é verdade?
Como ele não fez nenhum comentário, ela lhe torceu a manga
impacientemente, e insistiu: — Não é verdade?
Essa moça era um enigma. Theodore não estava habituado a debater
com uma pessoa tão direta, e uma pausa muito prolongada se fez, enquanto
ele tratava de decidir o que falar. Então Linnea, irritada, soltou-lhe o braço.
— Theodore, você está se mostrando teimoso outra vez. E já que
tocamos no assunto, decerto que não é um bom exemplo para seu filho
quando você anda carrancudo por aí e não fala comigo. O que acredita que
Kristian pensa de um pai que trata assim sua professora? Deveria me
respeitar!
— Faço-o — ele conseguiu dizer, finalmente.
— Oh, claro que o faz — Linnea cruzou os braços e moveu um ombro.
— Até agora, tentou me deixar nas mãos dos Dahl e congelou-me com sua
frieza. Não posso viver assim. Theodore... não estou acostumada a este tipo
de inimizade.
De repente, Theodore admitiu algo que jamais tinha imaginado que
admitiria.
— Não sei o que significa inimizade.
— Ah! — a admissão chegou diretamente ao coração de Linnea.
Suavizou seus olhos e deixou de lado a pose de guerreira.
— Significa hostilidade... que somos inimigos, entende? Não seremos
inimigos nos próximos nove meses, não é?
Theodore não pôde voltar a falar. A única coisa em que podia pensar
era no quanto ela estava cativante à luz da lamparina, e no quanto se lhe
iluminavam os olhos azuis com essas faíscas douradas e no quanto ele
gostava da curva de seu nariz. Linnea sorriu e acrescentou: — Porque, se
assim for, muito antes disso estarei com os olhos completamente inchados.
O que podia dizer um homem a um pequeno foguete como essa
mulher?
— Você fala muito, sabe?
Linnea riu e, de repente, cruzou a selaria e montou em uma das selas
que estavam sobre os cavaletes. Escarranchada, cruzou as mãos sobre os
seios e encurvou os ombros.
— E você fala muito pouco.
— Que belo par formamos! — disse Theodore.
— Oh, e eu não sei? No princípio, quando cheguei, você me tratava
mal, mas depois nos dávamos bem. Literalmente você é o transgressor... —
ela esboçou um sorriso provocador. Ele estava extasiado. Apoiando-se na
mesa de trabalho, cruzou os braços sobre o bolso de seu avental de trabalho.
— E o que significa transgressor?
Erguendo o nariz, Linnea ordenou-lhe: — Procure saber.
Em algum lugar da casa devia haver um dicionário inglês/norueguês.
Possivelmente poderia deduzir o significado ou tropeçar com a palavra.
— Sim, talvez o faça — ele respondeu.
E talvez visse se podia encontrar algo a respeito das outras palavras
com as que ela o chateava. Linnea inspirou profundamente, inflou as
bochechas e soprou para cima: — Uh, sinto-me muito melhor!
Desenhou um sorriso contagioso, e Theodore se sentiu em risco ao
devolver o sorriso. Com seus modos volúveis, a jovem deu uma palmada na
sela.
— Ei, isto é divertido. Arre! — ela esporeou duas vezes com os
calcanhares. — Não montei muitas vezes a cavalo em minha vida. Como
vivo na cidade, não tenho um próprio, e cada vez que viajamos meu pai aluga
um carro. A boca de Theodore se suavizou com um quarto de sorriso e ele se
apoiou, contemplando-a, escutando-a. Mas essa moça era capaz de tagarelar
sem descanso! E, no fim das contas, a bem da verdade, era somente uma
menina. Nenhuma mulher passaria a perna sobre uma montaria desse modo
enquanto visitava um homem em uma selaria e ficaria falando de qualquer
coisa que lhe viesse à mente.
— Sabe, pequena senhorita, para as selas num é bom... não é bom usá
assim, quando não está colocada sobre o cavalo.
— Usar ou usá-la — ela o corrigiu.
— Usar, usá-la — repetiu ele, obediente.
Linnea fez uma careta, olhou para suas saias, depois ergueu os olhos
para ele e sua expressão se converteu em um sorriso travesso.
— Ah, num está bom? — sem aviso, seu pé se elevou no ar e ela
aterrissou com um salto. — Nesse caso, da próxima vez será melhor que haja
um cavalo debaixo, não lhe parece? — depois disso, foi depressa para a
porta, girou e, agitando dois dedos, disse-lhe: — Adeus, Theodore. Foi uma
conversa divertida.
Deixou-o com os olhos cravados no vão da porta, enquanto ela corria
sob a chuva. Sozinho, Theodore se perguntou quem seria Lawrence.
CAPÍTULO 8
A DENSA NEBLINA

Na manhã do dia seguinte, após o pedido de perdão de Linnea, a chuva


se converteu em uma névoa baixa, que encobria a paisagem, impregnando-se
na pele e nas roupas, impossibilitando a ceifa do trigo. Até o linóleo estava
úmido. Kristian se levantou tremendo e espirrou duas vezes quando colocou
os pés ao lado da cama. Sobre os calções longos, vestiu grossas calças de lã,
uma camiseta de manga longa e uma camisa de flanela grossa. Abriu a porta
do dormitório para descer ao mesmo tempo em que Linnea Brandonberg
descerrava a porta do seu. De repente, Kristian sentiu o sangue ferver. Linnea
ainda não havia penteado o cabelo e ele caía solto em ondas pelas costas e
pelos ombros. Tinha olhos de quem estava com sono e ajeitava a gola do robe
com uma das mãos enquanto com a outra carregava a bacia.
— Bom dia — ela o cumprimentou.
— Bom dia — respondeu Kristian, com os olhos presos à bela moça.
Em um instante, sua voz passou do tenor ao soprano. Envergonhado,
percebeu que tinha a camisa abotoada pela metade e começou
apressadamente a terminar de fechá-la.
— Faz frio, hein? — comentou Linnea.
— E, além disso, está úmido — ele respondeu.
Kristian jamais havia visto nenhuma mulher, além da avó, vestida
daquela maneira, de robe e descalça. Ver a professora com roupa de dormir
lhe causou uma estranha sensação na garganta e, quando se deu conta disso,
não soube bem onde pousar os olhos.
— Suponho que hoje não poderão sair para trabalhar — disse Linnea.
Kristian gaguejou, mas disse: — Ahh... Não, é verdade... Suponho que não.
— Então poderá ir à escola.
Kristian encolheu os ombros, naquele instante ignorando como seu pai
reagiria a isso.
— Um dia não servirá de muito e é provável que amanhã o sol saia —
disse ele.
— Em um dia se podem fazer muitas coisas. Pense sobre isso — ela
respondeu. Virou-se e desceu depressa as escadas, permitindo que Kristian
apreciasse melhor a cascata de cabelos que balançava a cada passo. O que
estaria acontecendo com ele? Perguntou-se Kristian. Não estava acostumado
a notar tais coisas: os olhos das garotas, o que vestiam ou se estavam ou não
penteadas. As garotas não eram mais que meninas fastidiosas, que sempre
queriam estar com eles caçando esquilos ou nadando no Little Muddy Creek.
Se um deles assim permitia, sempre arruinavam os bons momentos deles.
Intrigado, o rapaz desceu as escadas atrás dela e fingiu não ver quando
ela saudou Nissa, encheu a bacia e voltou para o andar de cima para tomar
seu banho matinal. Imaginou-a banhando-se e sentiu como se lhe afundasse o
peito. É a professora, seu pedaço de asno! Não pode pensar assim da
professora! Mas no caminho para o estábulo para ajudar com a ordenha do
rebanho, seguia pensando em quão bonita ela estava no patamar. Ainda não
tinha amanhecido, mas o sol logo sairia sem fazer alarde. A fazenda, envolta
na neblina, cheirava aos aromas que se desprendiam dos animais e das
plantas. Bois, porcos, galinhas, barro e feno, ali estava tudo isso, permeando
as úmidas sombras da manhã. O ar espesso amortecia todos os sons, salvo os
cacarejos das galinhas em seu prelúdio de despertar. Sobre o esgoto do
moinho, condensavam-se as gotas, tremeluziam e depois escorriam para um
atoleiro. Depois da alta torre, uma fila de janelas douradas resplandecia,
acolhedora. Ao abrir a porta do estábulo, Kristian espirrou novamente.
Quando entrou, comemorou o fato de estar resguardado da umidade. Àquela
hora da manhã, o estábulo era tão quente e acolhedor que podia atenuar o
mau humor matinal de um homem, sobretudo quando o tempo estava ruim.
Até quando a neve ou o frio intenso se apertavam contra as janelas, dentro,
sob as grossas vigas cobertas de teias de aranha, e as portas bem fechadas,
nunca fazia frio. As vacas emanavam um calor reconfortante, que dissipava
até a mais densa umidade, a penumbra mais opressiva.
Theodore já havia colocado o rebanho para dentro e, dóceis, as vacas
esperavam sua vez, ruminando ritmicamente em seu balido alimentício, e o
ruído da mastigação unia-se ao crepitar dos lampiões, que se penduravam das
toscas vigas. Os gatos do barracão — selvagens e indomáveis —, que tinham
optado por não caçar ratos sob a chuva, observavam de uma distância segura,
esperando pela sobra de leite morno. Kristian pegou o tamborete de ordenhar
e se instalou entre dois grandes ventres brancos e negros. Quando se sentou e
apoiou a testa contra a velha vaca Katy, sentiu-se ainda mais aquecido.
Encheu as latas de sardinhas com leite, colocou-as uma ao lado da outra e
começou o eterno jogo de esperar para ver se conseguia domesticar os
cautelosos gatos. Mas eles não se aproximaram. Mantiveram-se em seus
lugares, com a característica paciência felina.
— Está dormindo ou o quê? — escutou a voz de Theodore de algum
ponto da fileira, acompanhada pelas pulsações líquidas do leite caindo em um
balde quase cheio. Kristian se encolheu e percebeu que estivera sonhando
com a professora, cujo cabelo tinha a mesma cor de caramelo de um dos
gatos.
— Oh... Sim, acredito que sim — meio sem graça, como se tivesse sido
pego cometendo um pecado, Kristian respondeu.
— Tirou de Katy mais de duas latas cheias? — Theodore insistiu.
— Oh, sim... Bom... Estou tirando.
Sentindo-se culpado, Kristian dispôs-se a trabalhar, unindo seus
movimentos de mãos ao ruído do leite caindo no balde. Durante longos
minutos, só se ouviu o ritmo cadenciado do barulho do leite contra o metal,
do leite caindo sobre o leite, dos potentes dentes das vacas moendo a
forragem, dos fôlegos dos animais que esquentavam o estábulo a cada
exalação de suas enormes panças. Kristian e Theodore trabalharam em
cordial silêncio por um tempo, até que irrompeu a voz do pai: — Ocorreu-me
que poderíamos ir à casa do Zahl buscar carvão.
— Hoje? Com essa garoa? — respondeu o rapaz. Lá se foi a aula com a
sua professorinha.
— Estive esperando por um dia chuvoso para fazer isso. Não quero
desperdiçar um dia de sol.
— Então suponho que quer eu prepare a carroça.
— Assim que terminarmos o café da manhã.
Kristian seguiu ordenhando por mais alguns minutos, sentindo os
músculos dos antebraços quentes e tensos. Depois de pensar um momento,
disse: — Pai.
— O quê?
O rapaz afastou a testa do lado morno de Katy e suas mãos se
aquietaram.
— Depois que atrelar a carroça, estaria tudo bem se eu levasse a
senhorita Brandonberg à escola?
Nesse momento, as mãos de Theodore também pararam de ordenhar.
Recordou-se de que advertira à senhorita Brandonberg de que ele não teria
tempo para levá-la à escola. Evocou a imagem da moça sobre o arreio, como
a havia visto na noite passada e sentiu que lhe subia certo calor ao pescoço.
Estava disposto a admitir que, naquele momento, ela não parecia uma flor de
estufa. Parecia... Ahhh, parecia...
Ao evocar a imagem de Linnea, algo passou em seu coração. Um
homem de sua idade não tinha por que sentir semelhantes coisas por uma
jovenzinha como ela. Decidido, Theodore seguiu ordenhando.
— Disse-lhe quando ela chegou aqui que eu não teria tempo de levá-la
à escola quando o tempo estivesse ruim. Tenho tarefas para você, Kristian.
— Mas quando ela chegar à escola estará toda molhada!
— Peça para sua avó que lhe dê uma capa impermeável.
Kristian apertou os lábios e, com veemência, voltou à ordenha.
Maldito seja o velho. Não necessita de mim e ele sabe disso. Posso
usar dez minutos para levá-la à escola. Mas Kristian sabia que não adiantava
insistir no assunto.
Linnea já estava vestida para ir tomar o café da manhã quando ouviu os
passos de Kristian subindo os degraus de dois em dois. Na porta, soaram dois
golpes fortes e, quando ela abriu a porta, encontrou-o no patamar, quase sem
fôlego. Pela segunda vez naquela manhã, ele tinha essa expressão, que fez
Linnea perceber a conveniência de manter a relação deles muito impessoal.
— Ah, olá. Estou atrasada para o café da manhã?
— Não. A avó está servindo neste momento. Eu... Ehhh — pigarreou e
clareou a voz. — Só queria que soubesse que eu a levaria à escola se pudesse,
mas papai disse que precisa de mim depois do café da manhã. Mas a avó
conseguiu uma capa impermeável para a senhorita. E também um guarda-
chuva.
— Bom, obrigada, Kristian, agradeço-lhe por isso — Linnea sorriu-lhe
outra vez, tratando de demonstrar apreço, sem lhe dar encorajamento.
— Bom, eu... Hum... Tenho que tomar banho. Vejo a senhorita lá
embaixo.
Quando Linnea fechou a porta, apoiou as costas nela e soltou um
enorme suspiro. Deus, aquilo era um problema que ela não tinha previsto.
Pelo amor de Deus, Kristian era seu aluno! Se a atração do moço por ela
continuasse aumentando, como o conduziria? Embora fosse um garoto doce e
atraente, no fim das contas não era mais que um menino, e tudo o que ela
podia lhe oferecer era a mesma simpatia que oferecia aos outros alunos.
Mesmo assim, não pôde evitar comover-se diante do atual cavalheirismo do
rapaz, seu evidente nervosismo e o fato de que tivesse pedido permissão para
levá-la à escola. Tampouco podia evitar ressentir-se com a negativa de
Theodore.
Uns minutos depois, no café da manhã, ela observou Theodore de
forma dissimulada. Tinha esperanças de que a rudeza da noite passada tivesse
sido a última, mas aparentemente não era assim. Bom, ele, pelo visto,
continuava agindo de forma grosseira. Mas ela não o temia e disse: — Hoje
há muita umidade para se trabalhar no campo, portanto, não há motivo para
que Kristian não possa ir à escola.
Theodore deixou de mastigar e lhe cravou um olhar severo, enquanto
ela seguia besuntando a geleia de framboesas sobre a torrada com ar inocente.
— Kristian num irá... não irá hoje à escola. Temos outras coisas para
fazer, além de ceifar o trigo.
A moça o olhou severamente e apertou os lábios como os cordões de
uma bolsa se fechando. Seus olhares se encontraram e se chocaram durante
longos segundos, até que ela, sem dizer uma palavra, atirou a torrada sobre os
ovos fritos, o guardanapo sobre a torrada, e levantou-se da cadeira. Enquanto
subia furiosa a escada, fez o máximo de ruído que pôde. Atrás dela, seguiram
os olhares atônitos de John, de Kristian e de Nissa; Theodore, entretanto,
seguiu comendo os ovos com toucinho, imperturbável.
Menos de quinze minutos depois, Kristian a viu partir com dificuldade
pelo caminho, sob a fina garoa, e voltou a desejar poder ir com ela.
Ainda ofegante, colocou os arreios em Cub e Toots, subindo ao assento
da carroça para esperar por seu pai em zangado silêncio. Espirrou duas vezes,
encurvou-se para diante e voltou-se para a frente quando Theodore saiu da
casa vestido com uma capa impermeável de borracha negra e o velho chapéu
de palha. O assento da carroça se inclinou quando ele subiu e Kristian voltou
a espirrar.
— Pegou um resfriado, rapaz?
Kristian não respondeu. Que diabos lhe importava se ele estava ou não
doente? Sim, tinha pegado um resfriado! E daí? E aquilo não importava a
ninguém mais que não ele mesmo.
Antes que seu pai se sentasse, o rapaz lançou um agudo assobio e
estalou as rédeas com mais força do que o necessário. Os animais saíram
disparados, fazendo Theodore cair bruscamente sentado. Ele lançou um olhar
para o filho, mas Kristian, furioso, baixou mais o chapéu sobre os olhos,
encurvou os ombros e fixou os olhos no caminho. O dia, úmido e triste, se
harmonizava com seu lúgubre ânimo. Os cavalos trotavam com dificuldade
no meio do campo empapado, descolorido e despojado de vida. Os campos já
ceifados tinham um aspecto melancólico, os caules recortados pareciam
mechas de cabelo de um cão amarelo velho. As espigas que ainda não
estavam cortadas inclinavam-se sob o peso da chuva, parecendo as costas de
anciãos, que tinham que enfrentar outro duro inverno. Quando Kristian não
pôde seguir mais naquele silêncio sepulcral, sem preâmbulos confrontou a
teimosia do pai: — Por que não me deixou levá-la à escola? Não custava
nada.
Theodore observou o filho com cautela e viu o gesto de rebeldia que se
manifestava no seu perfil, com os lábios apertados de desgosto. Quando foi
que o rapaz aprendera a ser tão insistente em sua atitude cavalheiresca para
com a professora?
— Desde o primeiro dia, avisei a ela que aqui não é terra de flores de
estufa.
Kristian dirigiu ao pai um olhar sério.
— O que tem contra ela?
— Não tenho nada contra ela.
— Bom, demônios, é evidente que ela não o agrada.
— Será melhor cuidar dessa língua, hein, rapaz?
No semblante do menino, apareceu uma expressão de intolerância e de
desgosto.
— Oh, vamos, pai, tenho dezessete anos e se...
— Não, num tem!
Levado pela ira, Theodore compreendeu que cometera um erro e isso o
irritou ainda mais.
— Dentro de dois meses o terei.
— Então se supõe que está tudo bem soltar uma réstia de maldições?
— Dizer demônios não é, precisamente, soltar uma réstia de maldições.
Além disso, um homem tem direito de amaldiçoar se estiver furioso.
— Ah, então está se achando um homem feito?
— Não me pergunta isso quando me manda fazer um trabalho de
homem.
A verdade da afirmação do filho o irritou mais ainda.
— Por que está tão irritado? E me passe essas rédeas. Num tá... não está
fazendo nenhum bem às bocas dos cavalos.
Arrebatou-lhe as rédeas das mãos e o rapaz ficou com os olhos fixos
entre as orelhas dos animais. A umidade se condensava na aba curvada do
seu chapéu e lhe gotejava sobre o nariz.
— Nunca me perguntou, pai; nunca me deu a possibilidade de decidir
se queria ou não ir à escola. Possivelmente é lá onde eu gostaria de estar
neste momento.
Theodore decidiu confrontá-lo: — Para estudar?
— Claro que é para estudar. Para que seria, se não para isso?
— Diga-me você.
Kristian jogou um olhar agudo para o pai, depois fixou a vista no
brumoso horizonte e engoliu com esforço. Theodore o observou e relembrou
com clareza os fatos do seu amadurecimento. Obrigando-se a manter a voz
serena, perguntou sem rancor: — Sente algo pela professora, não é assim,
rapaz?
Surpreso, Kristian lhe lançou outro olhar, encolheu os ombros, e voltou
outra vez a vista para a frente.
— Não sei. Pode ser. O que diria se fosse assim?
— Dizer? Não posso dizer grande coisa. Sentimentos são sentimentos.
Como Kristian esperava uma explosão, a calma de seu pai o
surpreendeu. Pensando que encontraria reticência nele, sua aparente boa
disposição para conversar o deixou despreparado. Mas eles nunca
conversavam, ao menos não sobre essas coisas. Era difícil encontrar as
palavras. Nos últimos tempos, Kristian se sentia confuso a respeito de muitas
coisas. Sua ira diminuiu bastante e grande parte de sua confusão juvenil se
refletiu na voz.
— Como pode alguém saber?
— Não sei se posso responder isso. Suponho que é diferente para cada
pessoa.
— Não consigo parar de pensar nela, sabe? Por exemplo, quando estou
deitado na cama, de noite, penso em algo que ela disse, no aspecto que tinha
durante o jantar e me ocorrem coisas que gostaria de fazer por ela.
Theodore compreendeu que, embora seu filho estivesse apaixonado,
seria bom pisar no terreno com delicadeza.
— Ela é dois anos mais velha que você.
— Sei disso.
— E, além disso, é sua professora.
— Sei, sei!
Kristian olhou para suas botas. A água caía da aba do chapéu e a chuva
lhe molhava a nuca.
— Foi bastante rápido, não? Faz só um par de semanas que ela está
aqui.
— Quanto tempo levou no caso de minha mãe e você?
O que ele poderia responder? Não havia dúvidas de que, se o rapaz
fazia essas perguntas, era porque estava crescendo. A verdade era que ele
tinha direito de fazê-lo.
— Não muito... asseguro-lhe. Vi-a ali de pé, naquele trem, junto ao pai
dela, com um chapéu da cor da manteiga e literalmente não tirei mais os
olhos dela.
— Então por que você diz que comigo aconteceu rápido?
— Mas não tem muito mais que dezesseis anos, filho.
— E você, quantos tinha?
Os dois sabiam a resposta: dezessete. Dois meses depois, Kristian teria,
precisamente, dezessete anos. Chegaria antes que qualquer dos dois estivesse
preparado.
— Pai, como foi quando soube o que sentia por minha mãe?
Como ontem à noite, quando olhei a pequena senhorita em cima da
sela.
Para consternação de Theodore, a resposta veio imediatamente e ele
não encontrou a melhor maneira de dizer aquilo, diante da iminente
hombridade do filho.
— Como foi? — para ganhar tempo, Theodore repetiu, mas a sensação
vivia nele, nova e fresca. Ele tinha que responder alguma coisa, então disse:
— Como um forte murro no estômago.
— E acredita que ela sentiu o mesmo?
— Não sei dizer, filho. Ela dizia que sim.
— Dizia que o amava?
Um pouco envergonhado, Theodore assentiu.
— Mas então por que ela não ficou?
— Ela tentou, filho; sim, ela tentou. Mas desde o começo odiou este
lugar. Dava a impressão de que estava triste o tempo todo e depois de seu
nascimento, a coisa só piorou. Não era que ela não o amasse, ela o amava, e
muito. No meio da tarde ela ficava deitada na cama ao seu lado, brincando
com seus pés, conversando com você. Mas eu sabia que por baixo daquela
falsa alegria havia tristeza, como algumas mulheres costumam ficar depois do
parto. Aparentemente, nunca se recuperou. Depois que você tinha um ano, ela
continuava olhando os trigais e dizia que ver o trigo ondulando a deixava
louca. Dizia que não havia nenhum ruído — Theodore agitou a cabeça,
desconsolado. — Mas nunca se esforçou por ouvir nada. Para ela, ruídos
eram os que faziam os bondes e os carros a motor, aquela barulheira das ruas
pavimentadas, os gritos dos vendedores ambulantes, o martelar dos ferreiros
e o apito do trem que atravessava a cidade. Ela nunca ouvia o vento nos
álamos, nem as abelhas zumbindo nos arbustos — ele olhou para a vasta
pradaria e continuou a falar: — Nunca os ouvia, absolutamente. Odiava o
modo como se movia o trigo; dizia que depois de um tempo odiava isso mais
que viajar naquele trem, com o pai. Vi como se apagava qualquer sopro de
vida nela, como desaparecia a risada e soube... — ele contemplou os pingos
de chuva que deslizavam pelo seu casaco impermeável. — Bom, soube que
eu não era o tipo de homem capaz de devolver-lhe isto. Naquela noite, em
que dançamos e conversamos no Dickinson, possivelmente ela acreditou que
eu fosse alguém que não era. Para ela, foi como uma espécie de conto de
fadas, mas isso não era real e ela nunca conseguiu se acostumar aqui.
Kristian espirrou. Sem falar, Theodore enfiou a mão em um bolso, tirou
um lenço e o entregou ao filho. Depois que ele assoou o nariz, o pai
prosseguiu: — Ela não fazia nada mais que olhar para os trigais e ia ficando
cada vez mais triste, mais calada e depois tinha aqueles olhos turvos e... bom,
muito diferentes de como eram no dia em que a vi pela primeira vez naquele
trem. Então, certo dia ela se foi. Simplesmente foi embora.
Theodore apoiou os cotovelos nos joelhos e sacudiu a cabeça. Estava
triste.
— Nunca me esquecerei daquele dia. Acredito que foi o pior dia de
toda a minha vida — fez um gesto, como se tentasse afastar a lembrança, e
seguiu em tom neutro. — Ela se foi... Isso é tudo. Mas eu tenho certeza de
que lhe doeu ter que deixá-lo. Ela escreveu: “Diga ao Kristian que o amo.
Diga-lhe quando for mais velho, que vai me entender”.
Embora Kristian já tivesse ouvido aquilo dezenas de vezes, seu coração
se dilatou. Sempre compreendeu que sua família sem mãe era diferente das
de seus primos e companheiros de sala de aula e, embora não tivesse
conhecido o amor maternal, sempre tivera Nissa. Entretanto, de repente
sentiu falta de uma mãe que não tinha conhecido. Nesse momento, à mercê
da virilidade, desejou tê-la para conversar com ela.
— Você... você a amou, não é mesmo, pai?
Theodore suspirou e seguiu com os olhos fixos nas garupas dos
animais.
— Oh, claro que eu a amava — respondeu. — Há ocasiões em que um
homem não pode evitar amar uma mulher, embora não seja a mulher
apropriada.
Seguiram em silêncio no meio daquele dia chuvoso, com as últimas
palavras de Theodore reverberando na mente dos dois. E, se aquelas palavras
evocavam nas mentes deles, Linnea, e não Melinda, nenhum dos dois podia
controlar isso.
Por fim, chegaram à jazida de carvão do Zahl. Theodore parou a
carroça junto à balança e freou os cavalos com a velha expressão norueguesa
que, naquela ocasião, por algum motivo era reconfortante para Kristian.
— Pr-r-r — ordenou e a onomatopeia se fundiu com a chuva que caía,
expressando o ânimo provocado pela história.
Não havia ninguém. Apenas o cheiro do carvão úmido e o gotejar da
água serviam de companhia. Theodore voltou-se para o filho, apoiou uma das
mãos no seu ombro e disse: — Bom, concordo que ela é bonita, admito isso
— de repente, sua feição mudou: — Está disposto a carregar oito toneladas
de carvão, rapaz?
Kristian não estava; a cada momento se sentia pior. Os espirros vinham
um após o outro, parecendo uma corrida para ver quem caía mais rápido, se o
chapéu ou o nariz.
— Num tenho muita alternativa, certo?
Theodore repreendeu-o com suavidade: — A expressão num tenho não
existe, rapaz.
Ele saltou para fora da carroça e foi procurar o velho Tveit para que
pesasse o carvão e pudessem começar a carregá-lo.
As extensas terras que provocaram tal depressão em Melinda
Westgaard, a ponto de obrigá-la a abandonar o marido e o filho, estavam tão
lúgubres quanto ela o via no mais melancólico de seus dias. A chuva caía
sobre as planas jazidas de carvão do Zahl e nem uma árvore rompia a
monotonia do horizonte vazio. Em um sentido estético, a natureza não tinha
sido muito generosa com Dakota do Norte. Mas, embora a tivesse despojado
de árvores que pudessem usar como valioso combustível, em troca lhe tinham
deixado algo: carvão. Uma jazida de mais de setenta e dois quilômetros
quadrados de brando linhito, tão acessível que ao homem lhe bastava afastar
a fina cobertura superficial do chão e recolher o combustível com picaretas e
pás. Assim o recolheram Theodore e Kristian naquele úmido dia de setembro.
O tempo era tão inóspito que o velho Tveit não tinha enganchado sequer sua
parelha de bois, que puxava o carro de boi, à escavadora, e lá estava a
carroça, imóvel, acumulando água de chuva no vão. Trabalhando lado a lado
com o pai, Kristian parava frequentemente para assoar o nariz e espirrar. O ar
frio e úmido lhe subia pelas pernas e penetrava-lhe o casaco impermeável.
Seu pescoço estava molhado e um tremor o sacudia até os ossos.
Quando terminaram de carregar a carroça, Kristian se sentia muito mal,
e ainda o esperava um trajeto de meia hora até sua casa. Muito antes de
chegar, já se sentia esgotado de tanto espirrar. O lenço úmido lhe tinha
deixado o nariz em carne viva e os calafrios lhe sacudiam o corpo. Na metade
do caminho, um sol tímido começou a separar as nuvens, aparecendo como
um olho amarelado, mas não bastava para aquecê-lo.
— Será que está tão mal quanto parece, Kristian? — perguntou
Theodore.
O rapaz tinha a boca aberta, os olhos fechados e lhe tremiam as ventas
do nariz ante a expectativa de outro espirro. Quando o espirro saiu, o corpo
de Kristian curvou-se e seus olhos lacrimejaram.
— Vou deixar você em casa antes de ir à escola para descarregar.
— Posso ajudar — Kristian se sentiu obrigado a insistir, embora sem
muito ardor.
— O melhor lugar para você é a cama. Posso me arranjar sozinho e
descarregar esse carvão.
Kristian não objetou, e Theodore o deixou bem agasalhado na cama,
enquanto Nissa trabalhava em excesso ao redor, como uma mamãe gata.
Theodore chegou à escola já perto do fim da tarde. O sol tinha
afugentado as nuvens e se estendia majestoso sobre o trigo como uma
bênção. Preocupado, Theodore repassou a conversa com o filho e pensou:
Será conveniente que eu também me ponha freios no que se refere à pequena
senhorita? Kristian não tem nem ideia de que ela também acendeu uma
faísca dentro de mim. Diabo de professorinha arrogante!
Quando freou os cavalos diante dos degraus, o pátio da escola estava
vazio.
— Pr-r-r — ordenou aos cavalos com suavidade, observando a porta
enquanto atava as rédeas e descia rapidamente. Ao passar diante da carroça,
acariciou distraído o nariz de Cub e se dirigiu à entrada. A porta se abriu sem
ruído. No vestíbulo, não havia ninguém e a porta interna estava entreaberta.
As marmitas do almoço não estavam sob os bancos e no local apenas uma
gota de água caía do teto em um balde, causando um preguiçoso ping. O
grosso nó da corda do sino balançava diante de seus olhos e Theodore o
afastou com o dorso da mão. De repente, ouviu a voz feminina e zangada da
senhorita Brandonberg. Theodore parou com a mão na maçaneta.
— ...da próxima vez que eu pegá-lo fazendo alguma de suas maldades,
contarei para os seus pais. De qualquer modo, visitarei os lares de todos.
Certamente quererá que conte algo de bom aos seus pais com respeito a você,
não é mesmo, Allen?
Então lá dentro estava o menino dos Severt com ela.
— Você me fez ter outro dia horrível. Você e Theodore.
As sobrancelhas do dito cujo se elevaram e ele baixou o queixo e
franziu o cenho. Que relação ele tinha com o maldito menino Severt? E o que
estava acontecendo entre ele e a professora?
— Não entendo aquele homem. Não lhe teria feito o menor dano deixar
que Kristian viesse hoje à escola — acrescentou Linnea com uma voz mais
serena. — Mas suponho que este assunto não lhe interessa, não é Allen? Pode
ir, mas amanhã, quando vier à escola, será melhor que venha com uma
melhor disposição ou nem venha.
Theodore retrocedeu, afastando-se da porta, dispondo-se a dar a
impressão de que acabava de entrar no vestíbulo quando Allen saísse. Mas
não se ouviu nenhum passo. E Allen também não apareceu. A única coisa que
Theodore escutou foi o raspar e o tamborilar do giz contra o quadro-negro.
— Muito bem, Theodore, ele já se foi e podemos discutir em paz — a
voz de Linnea foi ouvida lá dentro.
Theodore ficou rígido. Inquietava-o a perspectiva de que o
surpreendessem escutando às escondidas. Estava a ponto de entrar na sala de
aula quando ouviu outra vez a voz dela: — Oh, está bem, já sabe o que quero
dizer.
De repente, Theodore compreendeu que ela não tinha a menor ideia de
que ele estava ali e sorriu. Então era isso que ela fazia? Praticava sozinha
para depois discutir com ele? Era o que parecia, porque o tom foi veemente
ao dizer: — Você não morreria se deixasse Kristian vir hoje à escola, mas
não, é muito teimoso para deixar que eu vença uma única vez, não é? E no
que o mantém ocupado? — o tom de voz dela se tornou sarcástico: — Em
lustrar arreios na selaria?
O giz chiou contra o quadro-negro e a moça começou a pronunciar
palavras soltas: — Rato, Casa, Chão, Aragem, Carroça, Girassol, Relógio,
Parede, Camelo...
O homem sorriu e se aproximou da porta devagar. Sem fazer ruído,
abriu-a mais um pouco e entrou. Linnea continuava com sua lista de palavras
na lousa e colocava os pontos em algumas com um golpe de giz irritadiço.
Rindo, Theodore pensou que ela estilhaçaria o quadro com aquele ímpeto.
Contemplou suas costas esbeltas, o movimento da mão e das saias quando
colocou uma barra horizontal sobre uma letra. Depois, começou outra longa
fileira de palavras. “O relógio pendurado da parede”, escreveu, murmurando
cada palavra. Depois, escreveu: “O camelo tinha a cauda azul”. Linnea
endireitou-se e pareceu estudar, pensativa, o que tinha acabado de escrever no
quadro. Depois, com movimentos vivazes e decididos, escreveu,
pronunciando com clareza: — Eu queria bater em Theodore.
O sorriso de Theodore se alargou e ele teve que se esforçar para não
soltar uma gargalhada. Linnea retrocedeu e observou a frase, sublinhou com
força cada palavra, colocou as mãos nos quadris e riu.
— Ah, se pudesse fazê-lo — repetiu, prazerosamente em antecipação.
Entretanto, ao escrever a próxima frase, Linnea decidiu não repeti-la
em voz alta e o sorriso do homem que observava se apagou, ao mesmo tempo
em que se perguntava, intrigado, por que não tinha aprendido a ler o inglês.
Linnea voltou a retroceder e sufocou umas risadas, sem dúvida desfrutando
de seus gestos. Depois se inclinou outra vez para a lousa. Quando terminou
outra frase, tapou a boca com as mãos e riu com tanta força que seu corpo se
dobrou para a frente.
— Olá, professora — disse Theodore, arrastando as palavras.
Linnea, mortificada, virou-se. Lá estava ele, apoiado contra a parede,
com um polegar metido dentro da fivela do cinto. O rosto da moça adquiriu o
aspecto de uma fatia de melancia e, voltando-se depressa para a lousa, ela
começou a apagar, desesperada, o que tinha escrito.
— Theodore, por que está se escondendo aí desse modo?
Ela apagou o quadro com tanta força que Theodore acreditou que
derrubaria a parede dianteira da escola.
— Escondendo-me? Vim conduzindo um par de cavalos que fazia
barulho suficiente para despertar até os mortos, mas aqui dentro havia tanto
ruído que você não teria ouvido passar uma tropa de mulas.
Linnea girou para olhá-lo, as mãos apoiadas sobre a bandeja com giz às
suas costas.
— O que quer, Theodore? Estou ocupada — concluiu, altiva.
O homem demorou os olhos no quadro-negro e depois os pousou na
mulher enquanto açoitava a coxa com as luvas de couro sujas.
— Sim, posso ver que você está muito ocupada preparando a lição de
amanhã — ironizou.
— Sim. É isso mesmo que eu fazia até que você me interrompeu com
tanta grosseria.
— Grosseria? — levou as luvas ao coração, como quem era acusado
injustamente. — Sou grosseiro, eu, que venho me oferecer para levá-la para
casa?
Isso a deixou embaraçada e Linnea franziu as sobrancelhas como uma
velha coruja.
— Que boa hora você escolheu para se propor a me levar para casa!
Agora que parou a chuva! Onde estava sua generosidade esta manhã, quando
impediu que Kristian me trouxesse para a escola?
— Ele lhe disse isso?
— Não houve necessidade de que me contasse. Bastou que me dissesse
que ele quis fazê-lo. Você não me engana nem por um segundo, Theodore.
Não veio aqui para levar esta... esta flor de estufa para casa; o que está
fazendo aqui?
Theodore se afastou da parede, percorrendo lentamente o corredor da
esquerda, colocando as luvas sem deixar de olhá-la.
— Estou esperando que me bata. Não foi isso o que você disse que
queria fazer?
Ao chegar à extremidade do assoalho, ele abriu as mãos. — Aqui estou.
A vergonha da moça foi duplicada, mas seu sentido teatral veio em sua
ajuda. Apontando a porta com gesto imperioso, disse: — Bem, pode dar a
volta e sair imediatamente! Não quero vê-lo nem pensar em você até que
mude de atitude com respeito à frequência de Kristian na escola.
— Meu filho vem à escola quando eu disser e nem um minuto antes!
Linnea esqueceu a atuação e a ira a dominou.
— Oh, você é... insuportável!
Golpeou o chão com o pé, fazendo o pó de giz formar redemoinhos ao
redor da saia. Apoiando uma bota na parede e cruzando as mãos sobre um
dos joelhos, Theodore disse: — Sim. E não se esqueça de dizer cabeça-dura.
— Você é, Theodore Westgaard, um cabeça-dura.
— Sim, você já me disse isso, mas não fui eu quem atirou o
guardanapo e saiu da cozinha como uma criatura malcriada essa manhã. Não
deu um exemplo muito bom a seu aluno.
A recriminação era justa, e Linnea se voltou para a lousa e começou a
apagar melhor antes de voltar a escrever a lista de palavras.
— Se veio para me criticar, pode ir. E quanto antes, melhor.
— Não vim só para isso. Trouxe a carga de carvão.
— Fez-me falta esta manhã — resmungou —, pois quando cheguei
aqui meus pés gelavam e o salão parecia uma câmara frigorífica.
O deslizar do giz foi o único som que se ouviu até que Theodore disse:
— Sinto muito.
A mão parou sobre o quadro-negro. Olhando por sobre o ombro,
Linnea quis comprovar se ele falava a sério ou se a estava provocando. Mas
parecia que ele falara a sério, pois olhava para os pés da moça com ares de
pesar. Linnea voltou-se para ele outra vez, sacudindo o giz das mãos. Quando
seus olhares se encontraram, no dele ela só viu arrependimento. Olhou para
as luvas dele manchadas e até o aspecto velho e usado do couro lhe pareceu
fascinante pela única razão de que envolvia as mãos dele. Como podia lhe
resultar ser tão irritante em um momento e tão atraente no seguinte?
— Tudo bem. Você me fez tanta raiva que me deu vontade de bater em
você, Theodore.
Foi nesse momento que ela conseguiu seu objetivo: Theodore se
inclinou para trás e explodiu em sonoras gargalhadas como até então nunca o
tinha visto rir. Linnea não estava preparada para o impacto. Era uma imagem
incrível: ele havia mudado por completo. Ela contemplou o rosto
resplandecente com a sensação de ter presenciado uma grande descoberta.
Linnea não sabia que os dentes desse homem eram tão bonitos, a boca, tão
bela; o queixo, tão perfeito; o pescoço, tão bronzeado; os olhos, tão
faiscantes. As gargalhadas dele encheram a ensolarada sala de aula e a
imagem do homem penetrou no coração da moça. De repente, sentiu-se
profundamente feliz. De sua garganta escapou o primeiro gorjeio de diversão,
o segundo, e depois ela se uniu às gargalhadas dele. Quando se fez o silêncio,
eles seguiram sorrindo, mutuamente assombrados. Sobre o seio de Linnea, o
relógio subia e baixava muito rápido e Theodore imaginou que, se
aproximasse e pusesse a mão em cima, o aparelho estaria aquecido pela pele
dela.
Tentou engolir e não pôde. Linnea tratou de pensar em algo para dizer e
não conseguiu. Theodore tentou pensar nela como uma menina, mas não
pôde. Linnea quis vê-lo como um velho, mas fracassou. Ele disse a si mesmo
que era a moça pela qual seu filho estava se apaixonando, mas foi inútil. Ela
disse a si mesma que ele era o pai de um aluno, que viviam na mesma casa,
mas não serviu de nada. Nada importava. Nada. O bom senso apareceu e
Theodore retirou o pé da parede. Com gestos vivazes, ajustou as luvas.
— É melhor que eu descarregue o carvão.
Vendo-o percorrer a sala, notando pela primeira vez que os quadris do
homem eram muito mais estreitos que os de uma mulher, que os braços que
apareciam nas mangas enroladas eram subjugantes, e as mãos metidas em
brandas luvas velhas que o acompanhavam durante horas e horas de trabalho
pareciam muito poderosas. As palavras de Linnea ficaram engasgadas.
Depois que ele saiu, Linnea tratou de voltar às frases que estivera
escrevendo, mas uma e outra vez a imagem de Theodore descarregando o
carvão com a pá, que via pela janela, a distraía. Ela se aproximou mais da
janela. Daquele lugar privilegiado, via os ombros e a parte superior de sua
cabeça e contemplava cativada aquele homem entregue à sua tarefa. Que
ombros largos, que movimentos habilidosos, que músculos fortes! Theodore
fez uma pausa, apoiando as mãos cruzadas sobre o cabo da pá, e Linnea deu
um passo para trás, ocultando-se na sombra. O sol radiante caía plenamente
sobre o cabelo cor de mogno dele e então ela percebeu que raramente o via
sem o chapéu de palha. Deduziu que o teria molhado na chuva daquela
manhã e que o tinha deixado em casa secando sobre um cabide na cozinha.
Piscando os olhos, Theodore olhou ao redor. Seu rosto já estava coberto por
um rastro de pó de carvão e ele estava suando. Linnea viu quando uma gota
deslizou pela borda do cabelo, juntando-se ao pó negro em seu caminho. Ele
retirou uma luva, procurou um lenço no bolso traseiro e, como não o
encontrou, enxugou a testa com a manga da camisa. Reatou a tarefa, criando
um ruído rítmico ao chocar a pá com o carvão. Ele era um homem feito, mais
amadurecido que qualquer um dos rapazes que a tinham atraído. E se sentia
atraído por ela; naquela tarde, ela tomara ciência disso, coisa que não tinha
imaginado. Por um fugaz momento, ela o tinha visto nos olhos com a mesma
clareza com que agora via o pó de carvão que cobria o rosto bonito. Enquanto
se contemplavam, uma faísca saltara entre eles. Desejo? Era isso que sentiam
um pelo outro? O impacto provocou em Linnea um soco no coração e ainda
sentia o impacto disso. A intensificação da consciência. A atração. A
insistência. Mas quando viu uma espécie de cortina sobre os olhos de
Theodore, Linnea compreendeu que ele ainda a via como uma menina. Quase
sempre.
CAPÍTULO 9
IRRESISTÍVEL E DOCE ATRAÇÃO

Uma vez cheio o depósito de carvão, Theodore jogou a pá sobre a


carroça vazia e empertigou-se, suas costas estavam fatigadas. Secou a testa
com o braço, olhou para a mancha cinza da manga da camisa, retirou as luvas
e atravessou o pátio da escola rumo à bomba de água. Tirou os suspensórios,
que ficaram pendurados, tirou a camisa e a jogou de lado e começou a
bombear. Com os pés bem separados, inclinou-se sobre o jorro de água pura e
fria que salpicava a terra. Alternadamente, bombeava e lavava o rosto; lavou
também o peito, os braços e o pescoço e depois bebeu com as mãos em
concha.
Quando se ergueu, virou-se e surpreendeu Linnea de pé sobre os
degraus observando-o. Ela estava imóvel, com os dedos de uma das mãos
ligeiramente apoiados sobre o corrimão de ferro e a outra, na altura do peito.
Seus olhares se encontraram e se sustentaram e ele secou lentamente a boca
com o dorso da mão, até tomar consciência de seu peito nu e molhado e dos
suspensórios pendurados sobre as coxas.
Inclinando-se, recolheu a camisa de flanela do chão, secou-se, colocou-
a e começou a abotoá-la, sem deixar de desejar que ela se movesse ou que, ao
menos, deixasse de observá-lo.
Mas aquele homem a intrigava. Em algumas ocasiões, vira o peito nu
de seu pai, mas os dele possuíam muito menos pelos que o de Theodore. E,
embora seu pai também usasse suspensórios, nunca os pendurava à altura dos
joelhos, como rédeas soltas. Além disso, ver seu pai lavar-se não era o
mesmo que ver Theodore fazer o mesmo com tanta despreocupação, fazendo
a água voar, escorrer pelo peito e gotejar das têmporas até os cotovelos.
Entretanto, a despreocupação dele cessou assim que a viu.
A rapidez com que vestiu a camisa e a abotoou deixou Linnea
reflexiva. Ela tombou a cabeça para o lado enquanto ele colocava a barra da
camisa dentro das calças, puxava os suspensórios e penteava o cabelo com os
dedos. Por fim, perguntou: — Está pronta para ir? Linnea lhe dedicou um
sorriso atrevido.
— E você?
Teria jurado que Theodore ruborizou levemente, embora tenha
dissimulado e feito de tudo para cobrir-se com o pulso ao passar outra vez a
mão pelo cabelo e se pôr a andar com passos decididos.
— Trarei a carroça aqui.
Quando já estavam sentados um ao lado do outro, no caminho para
casa, o silêncio reinou entre eles. Theodore guiava a carroça com as costas
arqueadas e os cotovelos nos joelhos, pensando no estranho desconforto que
o tinha assaltado quando se virou e a surpreendeu olhando para ele enquanto
se lavava. Linnea equilibrava o livro sobre os joelhos e olhava a paisagem do
campo passar, pensando no escuro e encaracolado que era o cabelo da nuca
dele quando estava molhado. Nenhum deles olhou diretamente para o outro
nem disse uma palavra até depois de ter passado pela propriedade de John.
Então, de repente, Theodore comentou: — Kristian pegou um resfriado. Por
isso não veio me ajudar a descarregar o carvão.
Linnea girou a cabeça, mas ele olhava para a frente e não disse nada
mais. Que estranho ele ter acreditado ser obrigado a explicar o motivo pelo
qual ele havia ido sozinho! Ela tentou pensar em algo para preencher o
incômodo silêncio, mas seus pensamentos estavam embaralhados pela
lembrança da água deslizando através dos pelos do peito do homem ao seu
lado.
— Oh, pobre Kristian! É uma época do ano muito propícia a se pegar
um resfriado, não é mesmo? — disse, por fim. Com um imperceptível giro de
cabeça, Theodore viu como a moça contemplava a paisagem, aspirando com
avidez o ar úmido, como se cada inalação fosse uma bênção. Ocorreu-lhe que
ela contemplava o trigo de uma maneira muito diferente de Melinda.
De volta para casa, ele parou perto do moinho de vento. Uma brisa
suave virou as palhetas e uma tábua solta balançou ritmicamente acima de
suas cabeças. Linnea se esticou para olhar para cima.
— O moinho tem algo de tranquilizador, não acha?
— Tranquilizador?
O olhar de Theodore seguiu a mesma direção dela.
— Ahã. Não lhe parece?
Theodore sempre pensara assim, mas nunca se atreveu a dizê-lo por
temor de parecer um tolo.
— Suponho que sim — admitiu, incomodado pela proximidade da
moça.
— Vi que John plantou glórias-da-manhã ao redor do moinho dele —
recordou Linnea, enquanto ambos olhavam para cima com dificuldade, para
as lâminas giratórias atrás das quais o céu estava tingido do mesmo azul
vívido das flores de John.
— Lembro-me de que John e eu ajudamos papai a construir este
moinho.
O olhar de Linnea desceu pela torre e o descobriu ainda olhando para
cima. Entreteve-se em pensar que aspecto ele teria naquele tempo, certamente
a época anterior à plena maturidade, antes de ter costeletas e músculos e o
suscetível desapego que ora sustentava. Agora o queixo, elevado, tinha o
ângulo de um bumerangue. Os lábios estavam um pouco entreabertos,
conforme ele olhava para o céu, e as finas linhas brancas das comissuras
estavam ocultas. Os cílios eram longos como a grama da pradaria,
enegrecidas, e projetando rígidas sombras no rosto dele.
— Ele é lindo — murmurou baixinho Linnea, referindo-se a Theodore,
mas ela sabia que ele pensaria que se tratava do moinho.
— Melinda sempre dizia... — de repente hesitou, baixou bruscamente a
cabeça e lhe dirigiu um cauteloso olhar de soslaio. O prazer tinha
desaparecido de seu semblante.
— Tenho que fixar essa tábua solta — balbuciou.
Atou as rédeas e desceu rapidamente pelo lado da carroça. Linnea
desceu atrás dele e ficou parada, com o livro apertado contra o peito.
— Quem é Melinda?
Sem olhá-la, ele afrouxou os arreios para que os animais pudessem
beber.
— Ninguém.
A moça passou a unha do polegar sobre a capa vermelha do livro e
balançou brandamente os ombros.
— Ah... Melinda sempre dizia. Mas Melinda não é ninguém?
Theodore se ajoelhou para fazer algo debaixo da barriga de um dos
cavalos. No alto de sua cabeça, o cabelo estava esmagado, desordenado,
opaco pelo pó do carvão e ainda úmido na têmpora e na nuca. Linnea quis
tocá-lo para animá-lo a confiar nela, mas ele dedicou muito tempo a ruminar
a decisão. Por fim, ficou de pé.
— Melinda era minha esposa — admitiu, ainda sem olhá-la nos olhos,
enquanto lutava com o arreio do cavalo.
Os ombros da moça ficaram quietos.
— E Melinda sempre dizia...
As mãos de Theodore pararam o movimento, com os dedos bem
separados sobre o pescoço morno de Cub. Essa mão, quase tão escura quanto
a pele do alazão, atraiu o olhar de Linnea e lhe pareceu mais longa do que ela
se recordava e mais forte.
— Melinda sempre dizia que os moinhos eram melancólicos — disse
em voz fraca.
Na mente de Linnea brotaram inúmeras perguntas, enquanto ouvia o
ruído da tábua solta lá em cima. Com o ombro junto ao de Theodore, ela via
os contundentes dedos pentearem, distraídos, a crina de Cub. Perguntou-se o
que ele faria se ela cobrisse a mão dele com a sua e se passasse um dedo pela
curva interna do polegar, onde a pele estava áspera por anos de trabalho duro.
Claro que não podia fazer isso. O que ele pensaria dela? Mas o que a fazia
pensar coisas tão loucas a respeito de um homem dessa idade?
— Obrigada por me contar isso, Theodore — disse Linnea em voz
suave e depois, envergonhada, voltou-se para a casa.
Olhando-a, Theodore se perguntou se existiria outra mulher que
pudesse dar as costas a um assunto sem fazer mais perguntas. E soube que ela
o via como um homem, do mesmo modo que ele a via como uma mulher.
Mulher? Uma garota de dezoito anos quase não era uma mulher. Esse era
precisamente o problema.
Naquela noite, durante o jantar, Kristian esteve ausente, mas Linnea
anunciou: — Decidi visitar a casa de todos os meus alunos. O diretor Dahl
me disse que eu deveria conhecer a todos pessoalmente.
Theodore olhou para o rosto dela pela primeira vez desde que estiveram
na sala de aula.
— Quando? — ele perguntou.
— Assim que me convidarem. Mandarei cartas através dos alunos
dizendo-lhes que eu gostaria de conhecer as famílias e depois esperarei para
ver o que acontece.
— É época de colheita. Não verá os homens, a não ser que vá ao
anoitecer.
A moça encolheu os ombros, olhou para Nissa e para John e depois
outra vez para Theodore.
— Nesse caso, conhecerei as mulheres — colocou na boca uma
colherada de caldo, engoliu e acrescentou: — Ou irei depois que escurecer.
Theodore concentrou sua atenção na terrina de sopa e ela o imitou.
Durante alguns minutos, tudo foi silêncio e depois, para surpresa da jovem,
ele falou de novo: — Espera ficar nas casas para o jantar?
— Bem, não sei. Acredito que, se me convidarem, ficarei.
Sem desviar a atenção da sopa, Theodore declarou: — Nesta época
escurece cedo. Necessitará de um cavalo.
Linnea olhou-o, surpreendida: — Um... um cavalo?
— Para montar — respondeu Theodore, encarando-a, mas assim que
seus olhos se encontraram, ele afastou os seus imediatamente.
— Se as crianças podem caminhar, também posso — refutou Linnea.
— Clippa seria uma boa montaria para você — ele prosseguiu, como se
ela nada tivesse falado.
— Clippa?
John e Nissa observavam a conversa com interesse mal dissimulado.
— É o melhor cavalo que temos para montar. Acalme-se.
— Ah.
De repente, Linnea tomou consciência de que tinha as mãos apertadas
entre os joelhos e de que não havia tornado a pegar a colher. Com um gesto
brusco, levantou-a e a afundou outra vez na sopa de verduras, ao mesmo
tempo em que em sua mente a expressão “flor de estufa” ressoava.
— Alguma vez montou um cavalo? — perguntou Theodore. Eles se
aventuraram a um rápido intercâmbio de olhares.
— Não.
Ele esticou o braço, pegou uma fatia de pão com o garfo, passou
manteiga e não voltou a olhar para ela. Alguns minutos de silêncio depois,
Theodore disse: — Depois do jantar, vá ao estábulo e a ensinarei.
Linnea ficou muito surpresa e emudeceu.
Enquanto ia ao estábulo, ainda restava um pouco de luz desvanecendo
no céu. Através da pradaria, Linnea distinguiu a silhueta do moinho de John
e, de longe, chegou o mugido de uma vaca. As galinhas já tinham se instalado
para dormir e já era possível sentir o ar fresco da noite.
A porta exterior do estábulo estava aberta e, ao entrar, ela sentiu os
aromas mesclados, agradáveis e fecundos, que já lhe eram familiares.
— Olá, aqui estou — disse ela em voz alta, aparecendo pela entrada da
selaria, mas sem entrar.
Theodore estava de pé junto à parede, esticando-se para pegar uma das
peças do conjunto dos arreios. Estava vestido como antes, com calças pretas,
uma camisa de flanela vermelha, suspensórios e sem chapéu. Olhou por sobre
o ombro, baixou um cabresto e o entregou a ela.
— Pegue. Você levará isto.
Tirou as duas selas menores do cavalete, fez um gesto com a cabeça
para a porta, e disse: — Vamos.
— Aonde?
— Primeiro temos que ir procurar o cavalo.
Linnea o precedeu até a parte principal do estábulo, olhando-o
interrogativamente por sobre o ombro. Theodore esboçou um sorriso. Deixou
os arreios no chão, fez um laço com uma tira de couro que tinha na mão e lhe
ordenou: — Traga o balde.
Linnea pegou o balde galvanizado com aveia e o seguiu na direção do
crepúsculo tomado pela penumbra. Cruzaram o curral ao lado do estábulo,
com seu forte cheiro de esterco e terra úmida. Theodore abriu uma grande
porta de madeira, deixou-a passar e depois a fechou atrás deles. Já estavam
sobre chão mais firme, onde crescia uma grama baixa e amarelada. A pouca
distância de uma cerca de arame farpado, agrupavam-se, pastando, cerca de
doze cavalos. Theodore lançou um agudo assobio entre dentes e as cabeças
dos animais se elevaram. Mas nenhum deles deu um passo.
— Clippa, vem! — gritou ele, parado atrás de Linnea com a rédea
pendurada nas costas.
Sem lhe prestar atenção, os cavalos estiraram os pescoços e seguiram
mordiscando a grama.
— Acredito que perdeu a prática — brincou a moça.
— Tente você, então.
— Está bem. Clippa! — chamou Linnea, inclinando-se adiante e
estalando os dedos. — Venha aqui, rapaz!
— Clippa é uma garota — informou Theodore, azedo. Linnea se
endireitou e abraçou o balde com ambas as mãos.
— Bem, como eu ia saber?
Theodore sorriu, zombeteiro: — Basta olhar.
— Nasci e me criei na cidade.
Atrás dela, ouviu-se o fantasma de uma risada e sobre seu ombro
apareceu um braço comprido.
— Cub — ele observou, assinalando para o grande alazão a que Linnea
nunca tinha prestado atenção. — Ele é um macho.
Desta vez, ela o observou com atenção, e sentiu que as faces lhe
queimavam como as estrias coloridas que restaram no céu, ainda antes que
Theodore retirasse o braço.
— Clippa, venha aqui, garota — ela tentou de novo. — Desculpe-me se
ofendi você. Estou certa de que, caso se aproxime, Theodore não lhe fará mal
com essa corda que tem oculta nas costas. Só quer levá-la para o estábulo.
O animal seguia declinando o convite.
Novata, pensou Theodore divertido, vendo-a inclinada para a frente,
falando com a égua como se ela fosse um de seus alunos e, certamente,
temerosa de que, ao fim, o animal decidisse se aproximar. Ele percorreu com
a vista as costas esbeltas e seus quadris. Sem dúvida, poderia lhe ensinar
muitas coisas, refletiu, e não só como pegar cavalos.
A moça se endireitou e afirmou, petulante: — Ela não quer vir.
— Bata a alça do balde — murmurou o homem, quase em sua orelha.
— Sério? — ela girou a cabeça, surpreendendo-o, e eles estavam tão
próximos que a têmpora de Linnea quase se chocou com o queixo dele. A
proximidade fez o seu coração dar um salto. Por que isso? Ela pensou.
— Tente.
— Venha Clippa, venha garota — Linnea fez o que ele mandou.
Ao primeiro ruído do choque metálico, a égua se aproximou trotando
com o nariz ao vento, balançando a cabeça. Quando afundou a boca no balde,
pegou despreparada a novata e a empurrou para trás, contra Theodore. Com
um gesto instintivo, ele elevou as mãos para segurá-la e eles riram juntos,
vendo o animal afundar o nariz aveludado no cereal. Mas, quando as risadas
cessaram e Linnea olhou por sobre o ombro, Theodore percebeu que ainda
mantinha as mãos na cintura dela e baixou-as rapidamente, contornando-a
para colocar a rédea em Clippa e lhe passar a correia da guia.
Um de cada lado da égua, levaram-na para o estábulo. Dentro, as
sombras haviam se intensificado. Theodore acendeu a lamparina e a
pendurou no teto para se concentrar na lição, ao invés de pensar nessa moça,
capaz de distraí-lo com muita facilidade. De pé perto dele, Linnea o
observava com atenção, franzindo a testa e assentindo à medida que ele lhe
explicava.
— Antes de começar, amarre sempre o animal, pois, embora Clippa
seja mansa, são animais, e cavalos são imprevisíveis. Às vezes não gostam da
cilha ou do cabresto e ficam teimosos; se estiverem amarrados, não se vão...
não se vão para nem um lugar.
— Para nenhum lugar. Prossiga — sem nem perceber, Linnea o
corrigiu.
Ele lhe lançou um olhar invocado, mas aparentemente ela não estava
consciente de tê-lo corrigido. Estava muito concentrada na lição que estava
recebendo e corrigir os alunos era algo que ela fazia quase no automático.
— Se estiverem amarrados, eles não vão para nenhum lugar —
Theodore repetiu, obediente, para depois continuar: — Lembre-se de colocar
bem a manta, passando a brida, de modo que abranja toda a montaria e não
escorregue.
Depois de tê-la acomodado, ele apoiou-se em um joelho, passou uma
bandagem sobre o assento dos arreios e levantou os olhos. — Quando jogar
os arreios em cima, certifique-se de que a cilha[9] não esteja retorcida por
baixo, pois, nesse caso, teria que tirá-la e voltar a colocá-la. Suponho que não
quererá fazê-lo duas vezes, posto que será a parte mais difícil para você —
ele apontou com a cabeça para a égua. — Não é tão alta quanto os outros
cavalos, de modo que poderá conduzi-la.
Endireitou-se com os arreios na mão e colocou a sela sobre a égua
como se ela não pesasse mais que a manta.
— Tome a correia da cilha... — agachou-se e, com a face apoiada no
lado do animal, passou a mão através de sua barriga — ...e a passe por esta
argola; depois para cima pelos arreios, tantas vezes quantas for necessário,
até que só fique um comprimento suficiente para atá-la. Amarre aqui em
cima... olhe — Linnea se aproximou um pouco mais. — Primeiro leve-a para
trás, depois ao redor e depois a passe de través. Procure deixar o nó sempre
plano, vê? — disse ele. — Depois lhe dê um puxão.
Bastaram uns poucos movimentos destros e o nó foi dado. Um forte
puxão o ajustou e depois a ponta solta foi presa embaixo do animal.
— Pronto. Acredita que pode fazê-lo? — ele perguntou. Quando
baixou os olhos, descobriu-a observando o nó que ele fizera com uma
expressão abatida.
— Tentarei.
Theodore repetiu o processo e depois se afastou para observar. Era a
primeira vez que a via tão nervosa. Como ele passou a vida familiarizado
com os cavalos, não se recordava de que eles podiam ser tão intimidadores
para outras pessoas. Sorriu com dissimulação, vendo-a se aproximar
cautelosamente de Clippa.
— Ela sabe que você está aqui. Não tem sentido ficar escondida —
brincou ele.
— É grande, hein? — Linnea estava apavorada.
— Em comparação com outros cavalos, é pequena. Não tenha medo.
Ela é dócil.
Mas, quando ela esticou a mão sob a barriga de Clippa, a égua notou
algo estranho e se afastou com um salto, girando o olho para ver quem era.
Linnea pulou para trás e imediatamente Theodore se adiantou, tomou a rédea
e esfregou a testa da égua.
— Pr-r-r.
O som suave e familiar tranquilizou o animal. Linnea viu que o pelo
castanho da égua estremecia e tratou de dominar o medo ao ver quão fácil
fora para Theodore acalmá-la. Sem soltar a rédea, com expressão mais suave,
o homem disse: — Você é desconhecida para ela. Familiarize-se com ela
primeiro. Continue. Agora ela ficará quieta.
Linnea fez uma segunda tentativa com grande precaução, esticando a
mão sob a volumosa barriga. Entretanto, tudo seguia sem dificuldades até que
chegou o momento de fazer o nó. Tentou-o uma e duas vezes, até que
levantou os olhos com uma expressão contrita.
— Esqueci como se faz.
Theodore lhe ensinou outra vez como se fazia. Parada junto a ele, ela
observou os dedos fortes e bronzeados que manuseavam o couro: os longos
polegares pressionavam o nó antes de passar por debaixo a ponta da correia e
lhe dar o puxão final. Quando ele se aproximou outra vez dos arreios, os
braços de ambos se roçaram. Nenhum dos dois falou enquanto ela pegava a
cilha e começava a desfazer o que tinha feito. Theodore a estudava com
atenção. Ele notou que ela colocava a língua entre os dentes, concentrada no
que estava fazendo. Errou e se amaldiçoou em voz baixa.
— Alguma vez você deu nó em uma gravata? — ele perguntou.
Os dedos dela ficaram quietos e ela o olhou: — Não.
A luz dourada da lamparina lhe iluminava o rosto. Pela primeira vez,
Theodore notou as sardas salpicadas sobre as maçãs do rosto que, junto com
os olhos escuros, atentos, davam-lhe o ar inocente da juventude. Se a moça
estivesse rindo ou zangada, talvez não lhe tivesse dado um soco no coração.
Mas estava séria, como se fizesse a lição com muita seriedade e isso recordou
a ele o quão jovem e inexperiente ela era... tanto que jamais tinha selado um
cavalo e, certamente, era muito inexperiente para ter feito o nó de uma
gravata masculina. Ele obrigou-se a concentrar sua atenção no nó triangular.
— Deve ter observado seu pai, não?
— Sim.
— Mantenha-o plano com os polegares. Comece de novo.
Linnea mordeu a ponta da língua e começou de novo. Quando estava
pela metade, o polegar de Theodore se apoiou sobre o seu.
— Não... pressionando — ordenou-lhe. Com a outra mão sobre o dorso
da dela, fez-lhe trocar o ângulo. — Em outra direção — explicou.
Linnea sentiu que lhe corria um fogo pelo braço e mordeu a língua com
mais força do que queria. Mas as mãos do homem se afastaram
imediatamente e ela se convenceu de que ele não fazia ideia do modo como a
tinha afetado.
— Agora lhe dê um bom puxão com as duas mãos.
Linnea segurou a correia, deu-lhe um puxão e obteve um nó perfeito.
— Consegui! — exclamou exultante, sorrindo.
Quando viu o sorriso de Theodore, sentiu-se aturdida. Os ossos se lhe
converteram em manteiga e o coração dançou-lhe no peito. Se esse tivesse
sido um de seus sonhos, a heroína teria sido recompensada com um abraço de
aprovação. Mas não foi assim, e Theodore não fez outra coisa além de lhe dar
uns golpes com o dedo na ponta do nariz e brincar: — Sim, conseguiu,
pequena senhorita. Mas não se envaideça muito até que o tenha feito sem
ajuda.
Pequena senhorita! Ao se sentir tratada como uma adolescente com
acréscimos, Linnea enrubesceu de indignação. Girou para a égua, com um
gesto altivo do queixo e a resolução impressa em cada movimento.
— Posso fazê-lo, e o farei sem sua ajuda!
Theodore deu um passo atrás e a observou, sorrindo. Viu que ela não só
desatava a cilha, mas também tirava os arreios e a manta do lombo da égua.
Quando seus braços receberam o peso da sela, Linnea esteve a ponto de cair
de nariz no chão. Divertido, ele cruzou os braços e se dispôs a olhar o
espetáculo. Em voz que denotava irritação, Linnea foi relatando o que fazia,
sem olhá-lo.
— A manta bem esticada. Os arreios em cima... — ela se queixou do
peso ao tentar levantar a sela do chão... — ...e certificar-se... — empurrou-a
com o joelho, mas não deu. Theodore conteve o sorriso e a deixou lutar. —
Certificar-se de que a cilha esteja... esteja...
Empurrou outra vez os pesados arreios com o joelho e falhou de novo,
embora quase lhe soltasse os braços das juntas.
— Deixe que eu faço! — disse ele. Mas ante o olhar furioso da moça,
ficou sério, contemplando a boca franzida, e retrocedeu, fazendo um gesto de
assentimento sem falar. Os ombros dela só chegavam até o lombo de Clippa,
mas, se a teimosa e intratável moça queria demonstrar que podia fazê-lo, ele
não impediria. Na selaria, havia um tamborete forte sobre o qual ela podia
subir, mas decidiu deixá-la sofrer até que se cansasse e pedisse ajuda.
Enquanto isso, ele aproveitaria o espetáculo, vendo sua boca adorável
franzida de irritação e os olhos escuros relampejando como vaga-lumes em
uma noite limpa. Para seu assombro, os arreios caíram sobre o lombo de
Clippa na segunda tentativa, e em seus olhos apareceu uma expressão de
respeito. Por um instante, Linnea se pendurou no estribo descansando,
ofegando, e depois se inclinou para amarrar a cilha. Fez um nó plano perfeito,
deu-lhe dois puxões e girou o rosto para o homem com os braços cruzados.
— Pronto. E agora?
Suas pupilas capturaram a luz da lamparina. Tinha a respiração agitada
pelo esforço, e Theodore se perguntou o que diria a lei a respeito de pais
amadurecidos que cortejavam as juvenis professoras de seus filhos. Com
forçada lentidão, cobriu o espaço entre ele e Clippa e afastou a moça com o
cotovelo. Passou dois dedos entre a cilha e a pele do animal.
— Isto poderia estar mais ajustado. Quando começar a correr, você
ficará de cabeça para baixo, pequena senhorita.
— Theodore, já disse para não me chamar assim!
Sem tirar os dedos da cilha, o homem lhe lançou um olhar de soslaio.
— Certo. Bom, Senhorita Brandonberg.
Os olhos da moça brilharam mais e apertou com mais força os punhos
nos quadris.
— Tampouco me chame assim. Pelo amor de Deus, não sou sua
professora. Não pode me chamar de Linnea?
Sem se alterar, Theodore desfez o nó de Linnea e o ajustou.
— Possivelmente não. Não seria correto... já que você é professora.
Neste lugar num chamamos as professoras... não as chamamos pelo nome de
batismo.
— Oh, isso é completamente ridículo.
O homem se voltou de frente para ela e, ao passar a mão sobre seu
ombro, os batimentos do seu coração se aceleraram. Mas o único movimento
que fez foi tomar a rédea que estava sobre a estaca da baia às suas costas.
— O que é que a exaspera tanto? — perguntou-lhe em tom frio.
— Não estou exasperada!
— Ah, não? — com irritante calma ele foi até a cabeça de Clippa. —
Devo ter me equivocado. Pegue. Quer aprender o resto?
Linnea olhou o pedaço metálico que tinha na palma da mão e o
recolheu com gesto irado.
— Limite-se a me ensinar o que tenho que fazer.
Theodore sorriu pela última vez ante essa encantadora demonstração de
fogoso temperamento e depois lhe mostrou como colocar o freio na boca de
Clippa, como ajustar o cabresto, passar as orelhas do animal pela tira que
sujeitava a testa e fechar a fivela do pescoço — Muito bem, está pronta para
montar.
Para surpresa dele, Linnea deixou cair a cabeça e não disse nada.
Theodore contemplou os ombros afundados e foi até ela.
— O que acontece?
A moça levantou lentamente os olhos.
— Theodore, por que brigamos constantemente?
Ele sentiu que lhe fechava a garganta e o sangue lhe amontoou em
partes do corpo que não tinham direito de voltar à vida diante de uma moça
dessa idade.
— Não sei.
Mentira, Theodore Westgaard. Ele pensou.
— Esforço-me muito por não me zangar com você, mas nunca consigo.
Sempre termino vaiando como uma gata cada vez que você está por perto —
disse Linnea.
Theodore colocou as mãos nos bolsos traseiros e fez o que pôde para
adotar um ar tranquilo.
— Não me incomoda — ele respondeu por fim.
Era óbvio que não; ter diante de si uma Linnea exasperada era muito
mais seguro que a sua situação nesse momento. Desconsolada, a moça fixava
os olhos na rédea pendurada em sua mão e os cílios pareciam leques sobre as
faces lisas.
— Quem me dera acontecesse o mesmo comigo.
Entre os dois se instalou um silêncio muito pesado. Theodore apertou
as nádegas dentro dos bolsos e esticou os músculos das pernas. Como sabia
que corria risco de tocá-la, soube que devia dizer algo... algo que o
resguardasse de sua própria loucura.
— Quer montá-la? — indicou com a cabeça para Clippa. Abatida,
Linnea respondeu: — Acredito que não. Esta noite, não.
— Bom, convém que suba uma vez para que eu possa ajustar os
estribos na sua medida. São os estribos que lhe darão equilíbrio ao montar.
Por uns segundos, ela permaneceu quieta e silenciosa, até que por fim
deu a volta e pôs a mão no pomo da sela. Era uma distância longa e ainda se
acrescentava a isso a dificuldade das saias. Então Linnea as elevou e, saltando
sobre um pé, fez várias tentativas frustradas, enquanto Theodore continha a
vontade de lhe pôr as mãos no traseiro e lhe dar um empurrão.
Linnea perseverou e, ao fim, conseguiu ficar escarranchada na égua,
mas as saias ficaram enganchadas, prendendo-lhe as pernas. Quando tentou
acomodar-se para soltá-las, os pés erraram os estribos por uns cinco
centímetros. Sentou-se, esperou e baixou os olhos para a cabeça de Theodore,
enquanto este ajustava um dos estribos, dava a volta e ajustava o outro.
Linnea desejou ter mais experiência para saber o que fazer com os
sentimentos que emergiam dentro dela, provocando-lhe inquietação. Queria
tocar o cabelo brilhante do homem, elevar-lhe o queixo e observar seus olhos
de perto, ouvir sua risada e sua voz, falando-lhe com suavidade do que mais
lhe importava. Queria ouvir seu nome nos lábios dele. E, sobretudo, que a
tocasse, mesmo que fosse só uma vez, para comprovar se seria tão
embriagador quanto ela imaginava.
Theodore encurtou os estribos com a maior lentidão que pôde, com o
desejo de prolongar o tempo que compartilhavam, de poder lhe fazer outros
favores. Fazia anos que não sentia essa compulsão para o cavalheirismo.
Estava convencido de que isso um homem só sentia quando era jovem e
impaciente. Que confusão sentir isso na sua idade... Notou que o olhar da
moça seguia seus movimentos ao redor do cavalo e conteve o desejo de
erguer os olhos. Fazê-lo teria sido desastroso. Quando não soube mais o que
fazer por ela, ficou contemplando o delicado pé da moça. Quanto tempo fazia
que não desejava tanto tocar uma mulher? Mas essa não era uma mulher. Ou
sim? E se a tocasse...? Um simples roçar, uma só vez... o que teria de errado?
Fingindo se certificar de que o pé dela estava firme no estribo,
Theodore apoderou-se do tornozelo dela. Sentiu-o morno e firme através do
couro negro das botas novas. Rodeou com o polegar os tendões do calcanhar
e os esfregou com delicadeza. Era impossível confundir esse roçar com outra
coisa que ele desejava imensamente fazer, uma demorada carícia. Tampouco
era impossível ignorar o fato de que ela permanecia sentada, com a respiração
agitada, esperando que ele levantasse os olhos, que desse um passo a mais,
que levantasse as mãos para ajudá-la a descer. Theodore pensou em seu
nome: Linnea, que se negava a se permitir usar, com o risco de derrubar as
barreiras que era melhor manter intactas. Se o dissesse, se erguesse o olhar, já
sabia o que aconteceria. Um erro.
— Theodore — murmurou Linnea.
De repente, o homem soltou o pé e recuou, compreendendo sua
loucura, e colocou as mãos nos bolsos traseiros. Quando levantou os olhos,
seu rosto era tão impessoal quanto de costume.
— Pronto, tudo ajustado. Não se esqueça de guardar de novo os arreios
na selaria depois de cavalgar. Deixarei Clippa pastando perto, de modo que
não tenha que ir tão longe para buscá-la.
Mas fracassara na tentativa de aliviar a atmosfera, pois entre os dois
ardiam muitas coisas.
— Obrigada — a voz de Linnea exibia uma leve agudeza.
Theodore assentiu e se voltou para a selaria com a desculpa de procurar
algo, temeroso de, em ficando, erguer as mãos para a esbelta cintura para
ajudá-la a desmontar e terminar cedendo a outros desejos.
Quando voltou, ela já estava tirando os arreios.
— Dê-me, guardarei. Volte para casa agora. Certamente deve ter
tarefas que fazer para a escola.
Quando ela se foi, Theodore puxou Clippa e em seguida levou os
arreios para seu lugar. Depois de colocá-los sobre o cavalete, ficou
contemplando a sela por um longo momento. Tocou a curva do couro onde
ela havia se sentado, e que ainda estava morna.
Ela tem só dezoito anos e é a professora de seu filho. Está mais
próxima da idade dele que da sua, Teddy, seu grande tolo. O que poderia
querer uma garota como ela com um homem quase em idade para ser seu
pai?
Pouco tempo depois, em seu quarto sob as vigas, invadida por uma
estranha sensação, Linnea se preparava para se deitar. Acaso só estivera
imaginado todo esse dia com ele? Não, não imaginou. Ele também o tinha
notado. E na sala de aula? Não fora sua fértil imaginação. Quando ela o viu
se lavar. E essa noite, no estábulo, quando lhe acariciou o tornozelo? Foi
horrível. Ah, não, foi maravilhoso, cada toque foi indelével. Foi... ela estava
mais segura agora, foi puro desejo.
Apagou a lamparina e se enfiou na cama para pensar em tudo.
Estendida de costas, agasalhou-se nas mantas, apertando-as contra os seios
até que estes lhe doeram, como se quisesse reter a sensação para que não lhe
escapasse. Confinado em seu peito, sentia o batimento do coração forte e
rápido. Evocou as costas nuas de Theodore quando se inclinou para jogar
água nos ombros... no peito, quando ele deu a volta e a água jorrou pelo peito
coberto por uma fina pelagem negra… o cabelo espesso quando se movia ao
redor do cavalo, sem querer levantar a vista para não a olhar nos olhos.
O desejo se centrava em suas regiões imaculadas. Ele também o havia
sentido. Por isso tinha medo de olhá-la, de pronunciar seu nome, de
responder quando ela lhe falava. Fechou os olhos e calculou trinta e quatro
menos dezoito: dezesseis anos. Ele tinha vivido quase o dobro dela e
experimentado quase o dobro de coisas. Eram muitas as coisas que queria
saber e que a imaturidade lhe impedia de conhecer ou entender.
De repente, invadiu-a uma forte onda de raiva pela diferença de idade.
Sendo um indivíduo tão teimoso, era pouco provável que fizesse caso de seus
instintos. Desassossegada, girou, apoiou-se em um cotovelo e contemplou a
mancha branca do travesseiro na escuridão.
— Teddy? — inquiriu, com voz suave e ofegante. Abraçou com ternura
o travesseiro e pousou seus lábios nele.
CAPÍTULO 10
O FILHO DO MINISTRO

As cartas de Linnea foram respondidas com convites imediatos para


visitar os lares dos alunos e antes que acabasse a semana ela começou as
visitas. Decidiu ir primeiro à casa de Ulmer e de Helen Westgaard, porque
era a família que tinha mais crianças na escola; além disso, Ulmer era irmão
de Theodore. Sua curiosidade com respeito a tudo o que se relacionasse a ele
era cada vez maior.
Desde o momento em que pousou os pés na cozinha, ela sentiu a
presença do amor. A casa era muito similar à de Theodore, mas com seis
crianças era muito mais alegre e movimentada. Quando chegou, os três
varões maiores estavam nos campos, ajudando o pai, enquanto os menores
ajudavam a mãe na cozinha. Mas, para sua surpresa, os que estavam
trabalhando no campo voltaram para jantar com a convidada.
Ela observou que comer era um assunto tão sério ali quanto na casa de
Theodore. Conversava-se e ria-se antes da comida e depois. Mas quando se
comia, apenas se comia. Entretanto, no decorrer do jantar, várias vezes, ao
erguer os olhos, Linnea cruzou com o olhar do mais velho dos meninos, Bill,
observando-a com atenção. Menino? Não era nenhum menino. Era um
homem bem desenvolvido, forte, que podia ter uns vinte e um anos e lhe
dedicava a mais desconcertante avaliação. Doris, a irmã de dezoito anos,
também vivia na casa, embora estivesse comprometida e pensasse em se
casar em janeiro. Aparentemente, as bodas, tanto quanto a educação, teriam
que ocorrer depois da temporada da colheita. Raymond e Tony, os alunos de
Linnea, trataram-na com ar distante, como se já tivessem sido advertidos de
que lhe desgostasse que não fossem à escola. Os dois menores, Frances e
Sonny, sorriam e riam dissimuladamente cada vez que ela os olhava e ela
suspeitava de que se sentiam muito honrados de que a professora tivesse ido
em primeiro lugar a sua casa.
Ela esperou até depois da sobremesa para aludir ao tema do calendário
escolar e, quando o fez, apresentou com calma o caso, deixando-o aberto à
discussão. Não houve discussão. Disseram-lhe com amabilidade, mas com
firmeza, que os meninos iriam à escola quando o trigo estivesse guardado.
Toda a família saiu para o pátio para se despedir dela, mas Bill se
separou dos outros e se aproximou da cabeça de Clippa para deter Linnea.
— Senhorita Brandonberg?
— Oh... esqueci algo?
— Não. Só queria que soubesse que não é nada pessoal contra você,
mas é que os meninos têm que ajudar com a colheita. Sempre foi assim,
sabe?
— Sim, eu sei. Mas nem por isso é justo. Os meninos necessitam de
todo o ano escolar, igual às meninas.
Linnea estava farta de sustentar a mesma discussão. Entretanto,
enquanto esperava que ela continuasse, Bill deixou aquilo de lado por
completo. Ficou olhando-a, com uma mão sobre a rédea de Clippa e os
atraentes olhos verdes lhe enviavam uma mensagem de interesse não
dissimulado.
— Você dança? — perguntou ele.
Por um momento, ela ficou muito perplexa para responder.
— Se... danço?
— Sim... um pé, o outro, já sabe.
Linnea sorriu.
— Sim... bom, um pouco.
— Bom, então a verei em um ou outro barracão quando vierem os
debulhadores. Nessa época há um monte de bailes.
Pelo que Linnea podia recordar, ninguém nunca lhe demonstrara um
interesse tão aberto. A contemplação não dissimulada a incomodou,
sobretudo porque a família os observava, esperando que ela se afastasse.
Frances e Sonny riam com as cabeças juntas. Linnea gaguejou: — S-sim,
suponho que sim. Bom, boa noite.
Enquanto voltava cavalgando para casa e o ar da noite lhe refrescava o
rosto, ela avaliou Bill Westgaard. Cabelo loiro desbotado pelo sol, olhos
verdes como os trevos da primavera, nariz bem arrebitado e um sorriso que
exibia dentes um pouco tortos. Era uma estranha mescla de feições de menino
e robustez viril. O que achou dele? Pareceu-lhe bonito? Um pouco. Atraente?
Sim. Audaz? O rapaz mais aguerrido que ela já conhecera. Iria dançar com
ele? Possivelmente. Mas, ao se imaginar dançando, era com Theodore que ela
dançava.
Tinha decidido deixar o lar dos Severt para o final, com a esperança de
dar tempo a Allen de adotar uma atitude mais cooperativa, fazendo assim
com que seus próprios sentimentos não fossem tão negativos quando a visita
fosse feita. Mas Allen seguia sendo o que mais provocava problemas em sala
de aula. Quando se pronunciavam as preces, ele incomodava tamborilando
com o lápis ou com a bota contra a mesa. Chateava os pequenos, tomando-
lhes as bolachas e as mordendo, para depois chamá-los de chorões e
devolver-lhes se decidisse fazê-lo. Como se soubesse que Frances e Roseanne
eram duas das preferidas de Linnea, perseguia-as mais que aos outros.
Provocava Frances chamando-a de tola e, às vezes, levantava-lhe a saia para
lhe olhar os calções. Quando a menina ia à privada, fazia girar o bloco de
madeira e colocava uma cobra pelo buraco em forma de lua. O estalo de
histeria que provocava enchia-o de regozijo pelo resto da tarde cada vez que
conseguia exasperar algum de seus companheiros ou a professora.
Embora Linnea temesse a visita à casa de Allen, decidiu passar por ela
o quanto antes. No dia da visita, saiu mais cedo da escola e por isso faltava
bastante para a hora do jantar quando chegou ao lar dos Severt. Para sua
surpresa, Allen saiu e lhe pediu para cuidar de Clippa. O reverendo Severt
estava ocupado em seu escritório, mas Linnea passou um momento agradável
com a esposa enquanto ela concluía os preparativos para o jantar.
Lillian Severt era uma mulher meticulosamente arrumada, com o
cabelo negro recolhido no alto da cabeça e presos com pentes de tartaruga
marinha sem adornos. Tinha uma pele marfim impecável e um rosto que só
era afetado pelo nariz com fendas muito grandes. Entretanto, as pessoas
estavam acostumadas a se esquecer de seu nariz diante dos olhos claros
amendoados, e a boca, e o queixo de linhas enérgicas. Em lugar do comum,
usava um vestido engomado, com uma gola branca de organdi e um elegante
colar de cor âmbar. E usava brincos: era a única em Álamo que os usava.
Eram pequenas gotas de macieira de ouro, com diminutas pedras no centro. À
diferença da maioria das esposas de fazendeiros, que cheiravam a sabão de
lixívia caseiro e à comida que estivessem preparando, Lillian Severt cheirava
a penteadeira, a hortelã e a outras ervas aromáticas que tinha misturado na
tradicional composição.
A casa também era diferente. No vestíbulo de entrada, um tapete cobria
quase todo o chão. Na cozinha, havia uma despensa com uma peneira para
incorporar farinha. Também havia uma sala de jantar formal, com armários
de portas de vidro para porcelana e uma arcada apoiada sobre colunas que o
separava do vestíbulo. A mesa era de madeira de cerejeira coberta de renda
de cor crua, a comida era servida em uma sopeira coberta, os guardanapos
estavam bordados em renda belga. Quando Lillian Severt se sentou, tinha
deixado o avental na cozinha.
Allen, que na escola era um patife, na casa era muito diferente. Na
presença de seus pais, era tão amável que quase parecia querer se reconciliar
e até afastou a cadeira de sua mãe quando começaram a comer. Depois dos
agradecimentos, inclinou a cabeça com ar reverente e maneiras impecáveis;
em sua voz, já não se percebia a petulância que mostrava na escola. Para
surpresa de Linnea, quando terminou o jantar, Martín Severt ordenou: —
Allen, ajude Libby a retirar a mesa e depois os dois podem ir.
Em voz bem modulada, a senhora Severt replicou: — Vamos, querido,
já sabe que ocupar-se da baixela não é tarefa para homens. Libby o fará.
Os dedos do reverendo apertaram com mais força a asa de sua xícara.
Ele enfrentou com o olhar a esposa e, por um instante, na sala de jantar, a
tensão se fez evidente. Allen apertou o ombro da mãe, deu-lhe um beijo na
face, e disse: — O jantar estava delicioso. Ninguém faz como você o bolo de
abóbora, mãe.
A mulher riu, acariciou-lhe a mão e lhe ordenou: — Fora, adulador.
Antes que ele pudesse escapar, o pai o interrogou: — Encheu a lenheira
quando voltou da escola?
Allen já saía da sala.
— Não tive que fazê-lo, porque já estava cheia.
Seus passos soaram nas escadas que partiam do vestíbulo de entrada,
sem dúvida até seu quarto. Então, Libby recolheu a mesa e também
desapareceu.
— Quer mais café? — perguntou a senhora Severt, enchendo outra vez
as três xícaras.
O silêncio tomou conta da sala de jantar. Linnea tratou de reunir
coragem para abordar o assunto que mais a preocupava. Bebeu um gole de
café e teve a impressão de que havia uma grande distância entre a bebida e o
seu estômago tenso.
— Senhor e senhora Severt — assim que começou, perguntou-se se
devia ter se dirigido a ele como reverendo. Mas rechaçou a dúvida e se dispôs
a cumprir com sua tarefa, por mais desagradável que fosse. — Pergunto se
poderíamos conversar um pouco a respeito de Allen.
A Senhora Severt ficou radiante. O reverendo Severt franziu o cenho.
— O que acontece com Allen? — perguntou ele e Linnea pensou como
iria contar para os pais sobre o comportamento do filho na escola.
— Percebi hoje que o comportamento de Allen em casa é muito
diferente do dele no colégio. O... bem, aparentemente ele não se dá muito
bem com as outras crianças, e pensei que possivelmente vocês poderiam me
dar algum dado que me oriente com respeito ao que poderíamos fazer para
ajudá-lo.
— Nós? — assombrou-se a senhora Severt, erguendo uma sobrancelha.
— Allen não tem problema com ninguém em nenhum lugar. Se tiver
dificuldades, sem dúvida a culpa é da escola.
A insinuação era clara: escola significava Senhorita Brandonberg.
Enquanto a professora tentava absorver a réplica, a mãe de Allen prosseguiu:
— Interessar-me-ia saber o que chama exatamente... dar-se bem — a inflexão
da voz era suspeita.
— Do ponto de vista social, significa que ele não tenta confraternizar
com os outros, participar dos jogos, fazer amigos. Do ponto de vista
acadêmico, ele nem sempre aceita as regras. Está acostumado a... ignorar as
indicações e fazer as coisas de outro modo.
— Confraternizar com quem, Senhorita Brandonberg? Não tem com
quem, até que os varões mais velhos cheguem à escola. Não pretende que um
rapaz de quinze anos queira jogar amarelinha com crianças de segundo e
terceiro grau.
A voz da senhora Severt era como um quebrador de gelo que
estilhaçava a autoestima de Linnea. Arrepiou-se em zonas onde ignorava que
tivesse pelos. Desejou estar em casa, com Nissa, onde ninguém falava à
mesa. Tremendo por dentro, esforçou-se por manter a voz calma.
— Talvez confraternizar não seja o termo exato — Linnea pensou em
outro, mas como não lhe ocorreu nenhum, resmungou: — Allen provoca
muito as outras crianças.
— Todos os meninos provocam. Eu o fazia quando menina. Estou
segura de que Martin também, não é mesmo, querido?
Mas a nem todos os meninos isso dá tão perverso prazer, pensou
Linnea, sabendo que não podia dizer isso ao ministro e à esposa.
O reverendo Severt não respondeu à pergunta de Lillian e formulou
outra: — De concreto, o que é que ele tem feito?
Embora a moça não tivesse a intenção de mencionar feitos concretos,
era evidente que a senhora Severt era cega no que se referia ao filho. Se
pretendia ajudar Allen, tinha que ser franca.
Linnea então relatou o incidente da cobra com Frances.
Lillian Severt perguntou: — Alguém viu Allen pôr a cobra pelo
buraco?
— Não, mas...
— Então pronto — encostou-se na cadeira com ar satisfeito. Cada vez
mais zangada, Linnea atacou de novo: — Allen era o único que não
participava do jogo de bola que se desenvolvia no pátio naquele momento. E
aconteceu imediatamente depois que Frances veio se queixar que ele lhe tinha
tomado uma bolacha do almoço.
O senhor Severt começou: — Nosso Allen roubou...?
— Frances? — voltou a interrompê-lo a esposa. — Está se referindo a
Frances Westgaard, a filha retardada de Ulmer e de Helen?
Sob a mesa, Linnea apertou os punhos no colo.
— Frances não é retardada. Só um pouco lenta.
Lillian Severt bebeu um gole de café com gesto afetado.
— Ah, lenta, claro — disse, com ar conhecedor, e voltou a colocar a
xícara sobre o delicado pires. — E você crê na palavra de uma menina como
essa, e não na do filho do ministro? — erguendo uma sobrancelha com
expressão de reprovação, deixou por uns segundos a pergunta no ar e depois
o rosto se iluminou. — De todo modo — dedicou um sorriso ao marido e
outro à professora —, não há nenhuma razão para que Allen roube bolachas
dos outros. Eu mesma lhe preparo um abundante almoço todos os dias e,
como ouviu, ele está mais do que encantado com as guloseimas que preparo
aqui. Admito que adora as bolachas, mas sempre me ocupo de que esteja bem
provido.
Martin Severt se inclinou para frente.
— Senhorita Brandonberg, não seria possível a senhorita ter se
equivocado com respeito ao que Allen tenha roubado?
Linnea se voltou para ele com renovadas esperanças.
— Desta vez, temo que não. Tirou-a quando todos os outros estavam
juntos e a engoliu antes que a menina pudesse recuperá-la. Em outras
ocasiões, seu filho arquitetou dar dentadas nas bolachas e deixá-las nas
caixas.
Uma vez mais, a senhora Severt saiu em defesa do filho: — Senhorita
Brandonberg, talvez você qualifique isso de roubo, mas para mim é uma
travessura infantil.
— Por minha vocação — interveio o ministro —, poderá imaginar que
tanto para a senhora Severt como para mim o ensino dos Dez Mandamentos
teve a maior importância na criação de nossos filhos. Sei que Allen não é
perfeito, mas o roubo é uma acusação séria contra um menino que foi
educado ouvindo a Bíblia todas as noites.
Linnea recordou a lista de palavras de Allen: aborrecido, estúpido,
preces, bolachas de chocolate e compreendeu que lhe tinham revelado mais
sobre o menino do que perceberam nesse momento. Começava a antever cada
vez mais de que tinha motivos para se preocupar com sua conduta.
Nesse momento, diante desses pais, com a sensação de que a
repreendiam e de que não podia fazer nada, não pôde menos que pensar o que
diriam se ela lhes tivesse contado diretamente que seu filho dedicava uma
quantidade de tempo insólita a lhe olhar os seios. Sem dúvida, Lillian
deduziria que a senhorita Brandonberg fazia algo para provocá-lo. Tendo
presenciado a amostra de como era essa mulher, Linnea não estava segura de
que não fosse capaz de causar a perda do trabalho de um professor sobre
bases muito menos graves que essa. Até ter reunido provas mais substanciais
das maldades de Allen, pareceu-lhe prudente empregar o tato.
— Senhor e senhora Severt, não vim aqui para criticar o modo como
educam seus filhos. Não teria semelhante pretensão, embora quisesse, sim,
que estivessem advertidos de que, para Allen, as coisas não vão bem na
escola. Será preciso que mude de atitude antes que se meta em maiores
dificuldades e quando lhe dou uma ordem, espero que se cumpra.
— Que ordens em particular ele não cumpriu? — perguntou a Senhora
Severt.
Linnea relatou o incidente com a redação e a lista com a qual a tinha
substituído o menino.
— E essa lista não diz a você nada... agora que viu como é o lar?
— Sim, mas esse não é...
— Senhorita Brandonberg, a questão é que Allen é um menino muito
brilhante. Dizem-nos isso desde que começou a escola. E os meninos
brilhantes necessitam de um desafio constante para render ao máximo.
Possivelmente, sob sua tutela, ele não está recebendo suficiente desafio.
Linnea sentiu que suas faces coravam e o aborrecimento se
multiplicava, enquanto a senhora Severt prosseguia em tom indulgente: —
Você é nova aqui, Senhorita Brandonberg. Está há muito pouco tempo entre
nós e já classificou Allen de encrenqueiro. Ele já teve outros cinco
professores, todos mais velhos e com mais experiência que você... e eu
deveria acrescentar que eram homens. Não é de se estranhar que não
tenhamos tido notícias de que nosso filho é um bagunceiro, se for certo que o
é?
— Lillian, não acredito que a Senhorita Brandonberg...
— E eu não acredito — Lillian interrompeu o marido com um olhar
que fez Linnea supor que um trovão atravessaria o teto — que a Senhorita
Brandonberg se deu ao trabalho de procurar traços positivos em nosso filho,
Martin.
Se sua frase não tivesse bastado para fazer calar o ministro, sem dúvida
sua expressão o teria feito: — Possivelmente ela necessita de mais tempo
para fazê-lo. Esperemos que da próxima vez que vier jantar, o relatório que
nos traga seja menos prejudicial.
Linnea teve que reconhecer, em favor de Martín Severt, que ele se
remexeu e corou, e não soube para onde olhar, tampouco quanto tempo
demoraria para sair dali para se livrar da fúria que já ameaçava explodir.
— Sim, esperemos — admitiu Linnea em voz baixa, dobrando o
guardanapo e afastando-se da mesa. Acrescentou: — A comida estava
deliciosa, senhora Severt. Obrigada pelo convite.
— De nada. Venha quando quiser. A porta da casa de um ministro está
sempre aberta.
Ofereceu-lhe a mão e, embora Linnea tivesse preferido tocar numa
serpente, aceitou-a e se despediu com toda a elegância possível.
No andar de cima, no dormitório que ficava sobre a sala de jantar,
Allen estava estendido de barriga para baixo sobre o chão de linóleo, com a
cara grudada no regulador da calefação. Através das ranhuras adaptáveis do
metal, via e ouvia com clareza o que acontecia na sala de baixo.
— Allen, vou contar! — sussurrou Libby da entrada. — Já sabe que
não pode escutar pelo regulador! Prometeu ao papai que não o faria.
Allen se afastou lentamente do ralo para fazer com que o chão não
rangesse.
— Sim, mas a safada está lá embaixo sentada, contando-lhes todo tipo
de malditas mentiras ao meu respeito, tentando convencê-los de que provoco
confusões na escola.
— Não precisa ofender nem xingar as pessoas. Vou contar para o
papai.
De um só passo, ele transpôs a distância que o separava da irmã e lhe
torceu o braço com uma das mãos.
— Sim, pode tentar, nariz de porco, e verá o que te acontece.
— Não pode me fazer nada, ou direi ao papai e ele te fará recitar
versículos.
Allen torceu com mais força.
— Ah, é, sabichona? O que te pareceria molhar com óleo a cauda de
teu gato? Os gatos dançam muito bem quando têm óleo no traseiro. E quando
um fósforo se aproxima deles... bum!
O queixo de Libby tremeu e nos largos olhos azuis se formaram
lágrimas ao mesmo tempo em que ela tentava se soltar.
— Ai, Allen! Solte-me. Está me fazendo mal.
— Sim, recorde-se disso quando quiser ir contar intrigas para o velho.
Já chega que a professora comece a inventar mentiras ao meu respeito, não é
culpa minha o que acontece na escola — ele olhou furioso para o regulador e
chiou os dentes. — Em todo caso, quem vai acreditar nela?
Então, como se a irmã já não lhe servisse mais, jogou-a para o lado.
— Lawrence, juro-te que nunca, jamais estive tão furiosa em toda
minha vida! Aquela... aquela velha altiva, mal orientada! Por Deus, juro-o,
Lawrence, se ela tivesse feito só mais um comentário malicioso, eu teria
esmagado aquele nariz chato até que lhe saísse por detrás da cabeça!
Sacudindo-se ao ritmo do trote de Clippa, Linnea ia tão furiosa que lhe
saltavam as lágrimas e um nó de raiva na garganta se formou.
— Diminui a velocidade, Clippa, velho pônei sarnento! E você,
Lawrence, volte aqui!
Mas Lawrence fora embora e ela necessitava de alguém onde pudesse
descarregar suas emoções. Talvez fosse casual que, uns quarenta metros
depois, passasse diante da caixa de correios de Clara e de Trigg.
— Pare!
Olhou para o jardim, viu as luzes que brilhavam nas janelas, recordou-
se do convite de Clara e chegou à conclusão de que nunca, até então, tinha
necessitado tanto de uma amiga como naquele momento.
Quem lhe abriu a porta foi Trigg.
— Caramba, Senhorita Brandonberg, que surpresa! — olhou por trás
dela e franziu o cenho. — Aconteceu algo com o Teddy?
— Não, está tudo bem com ele. É que...
— Entre, entre!
Nesse momento, apareceu Clara atrás do marido.
— Linnea! Oh, que maravilha! — ela a puxou pela mão e a arrastou
para dentro. — Os pequenos se sentirão muito decepcionados, pois já estão
dormindo.
— Oh, não é uma visita formal. Eu estava passando e recordei-me de
que disse que o café sempre estava quente e... — de repente, interrompeu-se,
engoliu e começou a piscar rapidamente, quase chorando.
— Aconteceu algo de errado... O que foi? — perguntou Clara,
assustada.
— Acredito que... necessito de uma amiga.
A cozinha era aconchegante, amarela e acolhedora, e a recepção,
entusiasta. As frustrações contidas de Linnea subiram à superfície e, sem lhe
dar tempo para contê-las, as lágrimas apareceram em seus olhos. Clara
passou um braço ao redor da jovem e a levou até uma mesa redonda de
carvalho, onde a luz de uma lamparina iluminava os pratos e xícaras de café
da manhã do dia seguinte, já preparados, postos de boca para baixo. Enquanto
Clara insistia para que ela se sentasse em uma cadeira, Trigg foi em busca da
cafeteira.
— Suas mãos estão frias. Esteve vagando lá fora?
Clara se sentou à sua frente e esfregou-lhe as mãos entre as suas.
— Lamento vir deste modo e... e chorar em seu ombro, mas estou
muito alterada e... e...
— Trata-se de Teddy?
— Não, de Allen Severt.
Clara se recostou na cadeira, com expressão séria.
— Ah, aquele pequeno excremento...
Inesperadamente, Linnea riu. Ao olhar de lado para Clara, sentiu que
lhe tirava um peso do peito. As lágrimas que ameaçavam cair evaporaram de
repente e as coisas já não lhe pareceram tão exasperantes. Sabia que amaria
essa mulher.
— Na verdade, ele é isso mesmo. Quem sabe quantas vezes eu mesma
quis chamá-lo assim.
— Bent me conta quase tudo o que acontece na escola. O que fez Allen
desta vez?
— Neste momento, não se trata tanto dele, mas sim de seus pais —
Linnea sacudiu a cabeça, irritada. — Da mãe dele.
Com um sorriso torto, Clara pegou três xícaras de café e serviu.
— Então você conheceu a doce Lillian? — Linnea estalou outra vez em
gargalhadas ante a escandalosa franqueza de Clara. Clara inclinou a cabeça e
sorriu: — Bom, alegra-me que ainda possa rir. Sente-se melhor agora?
— Imensamente — respondeu Linnea, aliviada.
— Então nos conte o que aconteceu.
Linnea relatou as partes principais do enfrentamento e viu como
aumentava a ira de Clara.
— Como ela qualificou a nossa Frances? — perguntou Clara.
— Chamou-a de retardada. Imagina, a esposa de um ministro dizendo
isso!
— Lillian acha que ser a esposa de um ministro a exime de um monte
de pecados, como criticar os outros para se sentir superior. Deveria ouvi-la no
Círculo das Damas — Clara fez um gesto, como se afastasse a lembrança. —
Bom, não quero me meter nisso, mas por aqui não encontrará ninguém que
tenha algo bom a dizer dela. Desde o primeiro domingo em que ficou junto
ao ministro na escada da igreja, ninguém a engoliu. E pensar que teve a
audácia de dizer que você é que não está cumprindo sua tarefa na escola,
quando esse diabo de filho esteve deixando loucos todos os professores
durante anos. Sei de mais de um que não ficou por causa de Allen. Mas essa
não é a questão: os pais precisam escutar o que seus filhos contam em suas
casas sobre a escola, isso é o certo. E a maioria escuta, não se esqueça disso.
Lillian esteve toda a vida encobrindo a veia perversa daquele malcriado do
filho dela. E seguirá assim, até um dia em que esse menino cometa algo que
não possa dissimular — Clara se interrompeu, refletiu por um momento e
perguntou: — Contou isto ao Teddy?
A pergunta surpreendeu Linnea e seus olhos se dilataram.
— Não.
— Bom, se Allen continuar assim, acredito que deveria contar.
— Não, não creio. Theodore não gosta de ser incomodado com os
assuntos da escola — Linnea fez que não com a cabeça.
— Ah. Ele esteve resmungão, ultimamente, hein? Bom, não se deixe
enganar por isso. Por baixo daquela aparência, ele se importa mais do que
deixa transparecer. Dou-lhe a minha palavra de que, se Allen continuar assim,
convém falar com o Teddy.
— De acordo. Vou pensar.
A cafeteira estava vazia, e Trigg sufocou um bocejo.
— É tarde — disse Linnea. — Sinto-me à vontade, mas, na verdade,
tenho que ir.
À porta, Clara e ela trocaram as amabilidades da despedida, mas no
último momento, sem poder conter-se, trocaram um impetuoso abraço.
— Agora tome cuidado até chegar em casa.
— Tomarei — disse Linnea.
— Venha quando quiser.
— Virei. E você faça o mesmo.
Ao chegar à casa, entrando no estábulo, estava escuro e em silêncio.
Acendeu uma lamparina, acatando todas as indicações de Theodore em
relação a guardar os arreios e levar Clippa ao próximo curral. Nem bem
acabara de desfazer o nó da rédea, sem fazer ruído, Theodore apareceu às
suas costas.
— Chegou tarde.
Ela se sobressaltou e girou sobre os calcanhares, levando uma das mãos
ao coração.
— Oh, Theodore, não sabia que estava aí.
Ele estivera preocupado. Ficara de um lado para outro, aguçando o
ouvido para ouvir os cascos do cavalo, perguntando-se o que lhe teria
acontecido. Ao vê-la chegar sã e salva, ficou aliviado e, junto com isso, uma
cólera irracional.
— Não tem juízo, ficando fora até tão tarde? Poderia ter lhe acontecido
alguma coisa.
— Fui visitar Clara e Trigg.
Embora ele estivesse tão perto de tocá-la, seu rosto era uma máscara de
desgosto.
— Aqui não é como na cidade, sabe?
— S... sinto muito. Não sabia que ficaria acordado me esperando.
— Eu não estava acordado te esperando.
Mas sim, ele estava, e ambos sabiam. Sob o olhar sério, Linnea
experimentou outra vez uma sensação maravilhosa, que lhe encheu o peito
até quase explodi-lo.
Maldição, moça, não me olhe assim, pensou o homem, contemplando
aquele rosto que quase não ocultava nada do que sentia. O coração dele
martelava. As mãos queimavam de vontade de tocá-la. Quis dizer que
lamentava haver gritado com ela... que nada estava relacionado ao fato de ela
ter chegado tarde, mas em vez disso, apropriou-se do nó da rédea.
— Vá para casa — ordenou-lhe em tom mais suave. — Cuidarei de
Clippa.
— Obrigada, Theodore — respondeu com serenidade.
Quando o homem se virou, ela ficou olhando para ele, mas Theodore já
tinha se fechado para ela. Por que tem tanto medo do que está começando a
sentir? Ela se perguntou. Não havia nada a temer. Ele estivera esperando que
ela chegasse sã e salva em casa. Sim, Theodore estava, embora não tenha
admitido. Mas Linnea guardou esses pensamentos para si e saiu do estábulo
sem fazer ruído, deixando-o debater-se com suas emoções.
Nos dias que seguiram, Linnea foi visitar os lares dos alunos que
faltavam; compartilhou jantares e começou a conhecer as pessoas, cujas vidas
estavam tão intimamente entrelaçadas. Viu que se tratava de gente simples,
trabalhadora, bastante introvertida — a efervescente Clara era uma exceção
—, porém atenta e cordial com a nova professora... sem levar em conta as
maneiras à mesa.
Os gêmeos Lommen tinham um encanto que lhes era próprio, surgido
da benigna rivalidade constante entre os dois. Era um impulso positivo em
suas vidas, que os incitava a agradar, não só na escola, mas também na casa.
No lar dos Knutson, Linnea descobriu com assombro que a casa estava
tão bagunçada que dava a impressão de que eles viviam entre montanhas de
lixo. Intimamente, tomou nota para marcar um dia em que iria revistar as
carteiras e tentar mostrar a Jeannette a importância da ordem. A visita foi um
sucesso. Não só desfrutou de uma deliciosa refeição, mas também teve a
oportunidade de conversar sobre outros assuntos, tais como a peça de teatro
para o Natal, os concursos de ortografia do condado e um baile para reunir
recursos a fim de comprar uma verdadeira escrivaninha.
A segunda visita à casa de Clara e Trigg cimentou a amizade entre as
duas mulheres: quando saiu, Linnea já considerava Clara uma confidente.
À medida que fazia a rodada de visitas aos Westgaard, seu respeito pela
mãe deles ia aumentando. Nissa tinha criado filhos sensatos e carinhosos,
com a possível exceção de Theodore, que aparentemente era o menos
agradável e afetuoso de todos, sobretudo depois daquela noite no estábulo.
Depois disso, conversaram muito pouco e se mantiveram afastados; no
entanto, o fato de que os meninos mais velhos ainda seguissem sem assistir às
aulas era como um aguilhão sob a pele de Linnea. Cada vez que se sentava à
mesa na frente de Theodore, queria repreendê-lo e lhe exigir que liberasse o
filho e o deixasse sob sua custódia. Mas, em outubro, chegou o frio e os
rapazes continuaram ausentes.
Na escola, Allen Severt seguia perseguindo Rosie e Frances mais que a
outros, mas sempre de maneira furtiva para não ser surpreendido. Escondia a
lancheira do almoço de Rosie, às vezes comia dela o que desejava e depois
jogava a culpa em outro. E quando a menina corria chorando para contar para
a professora, Allen a provocava imitando seu modo de falar, com a língua
presa, em voz cantante.
Dedicava-se sistematicamente a cortar a ponta da trança esquerda de
Frances. Só a esquerda. Fazia de tal maneira que não se podia notar e de
algum modo engenhava para não cortar mais que uns milímetros, sem deixar
o cabelo cortado como evidência nem bruscas mudanças na aparência que
chamassem a atenção sobre o que estava fazendo. Ela só percebeu quando as
fitas das tranças de Frances começaram a cair.
Certo dia, durante o recreio do meio-dia, Linnea encontrou a menina de
dez anos chorando no salão. Com o ar abatido por causa do repúdio, ela
estava sentada sobre um dos bancos longos e rompia o coração vê-la tão
desolada, com as tranças penduradas e as omoplatas ossudas que
sobressaíam, enquanto soluçava com o rosto escondido nas mãos.
— Frances, o que aconteceu, querida?
Frances girou para a parede e ocultou o rosto em uma jaqueta que
estava pendurada no cabide. Mas seus ombros tremiam e Linnea não pôde se
conter, fazendo-a voltar-se para tomá-la entre os braços. Por pouco
aconselhável que fosse ter alunos preferidos, ela não podia resistir a Frances.
Era uma menina doce, tranquila, nada turbulenta, que se esforçava por
agradar de todas as maneiras possíveis, por difícil que lhe resultasse a parte
acadêmica. Como se compreendesse suas deficiências nesse aspecto, tentava
compensar com pequenos gestos bondosos: deixava sobre o livro uma das
bolachas preferidas de Linnea; uma brilhante maçã vermelha posta em um
canto da mesa; oferecia-se para recolher os cadernos ou amarrar os cordões
das botas dos menores que ainda não sabiam fazê-lo.
— Diga-me o que é que te deixa tão triste?
— Não p... posso — soluçou.
— Por que não pode?
— P... porque... pensam que sou retardada.
Linnea apertou com doçura as costas de Frances e contemplou o rosto
retorcido.
— Aqui ninguém pensa que é retardada. Foi o Allen — S... sim. Todo o
t... tempo ele me chama de retardada, de tola e burra.
A cólera de Linnea aumentou e surgiu o impulso protetor.
— Você não é tola, Frances. Tire isso da cabeça. Isso é o que te faz
chorar? O que Allen disse para você?
Triste, Frances negou com a cabeça.
— O que foi? — Linnea insistiu, com carinho.
Por fim, Frances resmungou o segredo que a “professora” não devia
saber, mas que em parte, já conhecia. O maior desejo de Frances era ser um
anjo na peça de Natal, porque os anjos usavam longas túnicas brancas e
levavam o cabelo solto, com um faiscante halo sobre a cabeça. Mas, em vez
de crescer, o cabelo cada vez estava mais curto e não só temia perder a
oportunidade de ser anjo, mas também de ficar calva.
Linnea teve que apelar para todo o seu controle para não rir da
assombrosa revelação. Abraçou Frances com força, e depois a afastou para
lhe secar as faces. Compondo uma expressão séria, falou-lhe.
— Acaso ouviu falar de meninas que ficam calvas? Só os avós perdem
o cabelo.
— Então, p-por que meu c... cabelo cada vez está m… mais curto?
Linnea a fez girar para comprová-lo.
— Não me parece que esteja mais curto.
— Está. Só um dos meus rabos de cavalo.
— Só um?
— Este.
Frances passou o esquerdo pelo ombro.
Examinando-o melhor, resultou evidente que o cabelo tinha sido
cortado... E não com muito cuidado. Linnea o puxou pela ponta e roçou com
ele a ponta do nariz de Frances...
— Não terá comido isso? Não é isso o que faz de chupeta quando está
resolvendo os problemas de aritmética?
Frances cravou o queixo no peito e esboçou um sorriso tímido que não
conseguiu conter, embora ainda tivesse lágrimas nos olhos.
— Tenho uma ideia — disse Linnea adotando um ar pensativo. — Até
que descubra se vai ficar calva ou não, e até que averigue por que ocorre só
de um lado de sua cabeça, por que não pede a sua mãe que lhe prenda os
rabos de cavalo em um coque como o meu? Assim, veja.
Linnea girou, mostrando para a menina a parte de trás da cabeça e
depois a olhou de frente outra vez, levantando os rabos castanhos para
mostrar para a menina como ficaria.
— Não precisa mais que um par de presilhas para prendê-los bem e
assim ninguém saberá se estão curtos ou longos.
No dia seguinte, Frances apareceu mostrando, orgulhosa, uma coroa de
tranças que Allen Severt já não podia cortar. A mudança atacou o sintoma,
mas não o problema, pois dois dias depois alguém perfurou um buraco na
parede traseira da privada das meninas. Linnea estava convencida de que o
vilão era Allen, mas não tinha provas. E quando as maldades foram se
mostrando mais graves, ela teve a inquietante sensação de que ele gostava de
ver os outros sofrerem.
E decidiu falar com Theodore a esse respeito.
CAPÍTULO 11
A CHEGADA DOS DEBULHADORES E CONFIDÊNCIAS

Naquela mesma noite, Linnea procurou por Theodore e o encontrou no


galpão das ferramentas, montando uma nova lâmina para o moinho. Tinha
sobre um dos joelhos uma tábua de madeira, apoiada sobre um barril, e estava
com o rosto inclinado para o chão quando ela se aproximou.
Linnea se deteve junto à porta de alta soleira e observou como se
flexionavam seus ombros, logo a seguir percorrendo com o olhar o interior do
galpão. Ali, como no estábulo, reinava a arrumação. Observou o quase
obsessivo esmero, sorrindo para si mesma: Hilda Knutson podia aprender
com Theodore. O lugar era acolhedor. O calor da lamparina bastava para
aquecer o diminuto espaço sem janelas, que cheirava a pinheiro recém-
coberto e a azeite de linhaça. Um canto estava ocupado por uma pilha de latas
de pintura. Da parede, penduravam-se sapatos para a neve, armadilhas e
vários guarda-chuvas de pele. Havia dois pequenos barris de pregos e um
cilindro de arame farpado. Em outro canto próximo, estava uma vassoura
muito usada. Ela pousou os olhos na serragem que caía sobre uma das botas
de Theodore e ela o imaginou varrendo, tão logo tivesse terminado a tarefa.
Sua tendência à ordem já não a irritava como quando tinha chegado,
parecendo-lhe agora admirável.
— Theodore, poderia falar um minuto com você?
O homem girou com tal rapidez que a tábua caiu no chão com estrépito
e as faces ficaram vermelhas.
— Parece que você e eu estamos destinados a nos sobressaltarmos —
comentou Linnea.
— O que está fazendo aqui?
Ele não quisera falar com ela daquela forma brusca, mas fazia muito
esforço para evitá-la. Ao vê-la, sentiu a palma da mão escorregar no cabo da
serra.
— Posso me sentar? — Linnea fingiu que não percebeu a brusquidão.
— Aqui não há muito espaço — disse ele, levantando a tábua caída e
voltando ao trabalho.
— Aqui está muito bom para mim.
Ela entrou e sentou-se sobre um barril que estava de cabeça para baixo.
— Theodore, tenho um problema na escola e pensei que talvez pudesse
contá-lo a você. Necessito de um conselho.
A serra parou, e o homem levantou os olhos. Ninguém jamais lhe tinha
pedido conselhos e menos ainda uma mulher. Sua mãe era uma ditadora, e
Melinda não se deu ao trabalho de lhe comunicar que iria aparecer na soleira
de sua porta, esperando se casar com ele. Tampouco lhe informara que, dois
anos depois, fugiria. E ali estava Linnea, sacudindo-o com sua mera presença,
instalada sobre o barril como uma ninfa, com as mãos apertadas entre os
joelhos. Os olhos estavam sérios e ela queria o conselho dele. Theodore
interrompeu o trabalho e prestou toda a atenção nela.
— A propósito de quê?
— Allen Severt.
— Allen Severt? — franziu o cenho. — Ele está lhe causando
problemas?
— Sim.
— Por que veio até mim?
— Porque você é meu amigo.
— Sou? — perguntou, surpreso.
Linnea não pôde conter a risada.
— Bom, acreditei que fosse. E Clara disse que, se Allen seguisse se
comportando mal, eu deveria falar com você.
Até então Theodore jamais tinha tido um amigo. Seus únicos amigos
eram seus irmãos e sua irmã, e eles estavam casados. A perspectiva de ter
uma amiga era bem-vinda, embora não estivesse muito seguro de como
resultaria ser amigo da Senhorita Brandonberg. Mas, se Clara pensava que ele
a ajudaria, então a escutaria. Guardou a serra, sentou-se escarranchado no
barril e cruzou os braços.
— O que Allen esteve fazendo?
— Não muitas coisas que eu possa provar, mas muitas que não posso. É
um encrenqueiro desde o primeiro dia de aula: perturba os menores, desafia-
me abertamente, cria arruaças e tem pequenas atitudes irritantes: esconde as
lancheiras dos almoços dos colegas, mordisca as bolachas. E persegue
Frances, e eu...
— Frances? Refere-se a nossa pequena Frances?
Seus ombros se ergueram e ele descruzou um pouco os braços. Assim,
eriçado e na defensiva, sua aparência se tornou mais masculina e imponente.
Então Frances era uma das coisas que importava para ele! Pareceu a Linnea
comovedor que se referisse à menina como nossa.
— Todo o tempo ele a chama de atrasada, de retardada. É muito
eficiente para detectar as debilidades das crianças e de provocá-las por esse
meio. E isso não é o pior. Suspeito que foi ele quem esteve cortando o cabelo
de Frances e um dia a trancou na privada, passando uma cobra pelo buraco da
porta. Agora as meninas encontraram um buraco na parede traseira da
construção. Não posso prová-lo, mas há algo em Allen que...
Linnea ergueu os ombros, esfregou os braços e estremeceu.
A expressão zangada de Theodore se acentuou. Fazendo um esforço
para permanecer sentado, apertou as palmas das mãos sobre a extremidade do
barril, entre suas coxas.
— Tem feito algo a você?
Linnea levantou os olhos: não tinha tido a intenção de dizer tanto, pois
os equívocos pessoais relacionados com Allen eram muito vagos para pô-los
em palavras. Além disso, se sentiria muito tola em contar para Theodore que
o menino olhava para seus seios. Todos os rapazes chegavam a uma etapa em
que o desenvolvimento das moças começava a interessar a eles. No caso de
Allen, não era o fato de olhar, mas a forma como o fazia: resultava-lhe difícil
descrevê-lo com palavras.
— Oh, não, não tem feito nada. Tampouco se trata do que faz aos
outros. Até agora, foram coisas sem importância. O que acontece é que as
coisas só pioram. E o que mais me aflige é que estou convencida de que
desfruta de ser... bom, de ser malicioso... de fazer com que as pessoas sofram.
Theodore se levantou em um impulso só. Deu a impressão de que
queria andar, mas, naquele espaço exíguo, não podia fazê-lo. Enrugou a testa
e encarou Linnea.
— Quando foi jantar na casa de seus pais, contou-lhes isto?
— Tentei-o. Mas soube imediatamente que a mãe não acreditaria em
uma só palavra do que eu dissesse a respeito de seu menino mimado. Mimou-
o tanto e está tão enganada que não há modo de convencê-la. Por um
momento, acreditei que talvez obtivesse certa colaboração por parte do
reverendo Severt, mas — Linnea encolheu os ombros —, aparentemente, ele
pensa que basta Allen ler a Bíblia todos os dias para ser um santo.
Com os olhos voltados para o chão, Theodore soltou uma risada
amarga.
— Martin não é mau sujeito. O que acontece é que faz tanto tempo que
sua esposa o leva pelo nariz que já não sabe lhe fazer frente.
— Não saberia — Linnea corrigiu, distraída.
— Não saberia — repetiu Theodore sem pensar. Linnea o olhou com
expressão suplicante.
— Não sei como dirigir Allen sem a ajuda de seus pais.
Em seu íntimo Theodore teve um sexto sentido e apertou mais as mãos
sob as axilas.
— Você o teme?
— Se o temo? — Linnea sustentou por um instante seu olhar e depois o
afastou. — Não.
Não acreditou nela. Não de todo. Havia algo que ela não lhe dizia, algo
que não queria que ele soubesse. E, mesmo que lhe contasse tudo, teria que
pensar na pequena Frances, que sempre tinha sido uma das suas preferidas, a
que nunca esquecia do tio Teddy no Natal. Um ano tinha-o presenteado com
um frasco de perfume... nada menos que um perfume! Theodore tinha
cheirado o feminino objeto e se perguntou o que pensariam seus irmãos se ele
aparecesse com o avental de trabalho limpo, cheirando a laranja e a cravo.
Enfiou-o na última gaveta da cômoda, até que, certa vez, Frances o visitou e
ele passou o perfume. A menina sentiu a fragrância de fruta e especiaria e lhe
dedicou um amplo sorriso desdentado de aprovação. Só então o tirou da
gaveta. Tendo a lembrança fresca na mente, tomou uma decisão.
— Quero que conte para Kristian tudo o que acaba de me contar e
depois lhe atribua uma carteira, porque na segunda-feira pela manhã ele
estará na escola. A partir de então, convirá a Allen tomar cuidado se lhe
ocorrer perseguir Frances. Antes da segunda-feira, não posso prescindir dele.
A surpresa deixou Linnea boquiaberta.
— K... Kristian? — repetiu ela.
Theodore, obstinado, era algo digno de se ver! Obscureceram-se-lhe os
olhos até chegar ao tom do carvão úmido do Zahl, ele projetou o queixo para
a frente e seu peito adquiriu um aspecto tão invencível como o de um
gladiador romano, com os ombros jogados para trás e os lábios apertados.
— O que necessita esse pequeno encrenqueiro do Severt é que alguém
maior que ele lhe baixe a crista de vez em quando.
Linnea ficou olhando-o e lentamente seu rosto se iluminou com um
sorriso.
— Caramba, Theodore!
— Caramba, Theodore, o quê? — resmungou. — Seria capaz de
prescindir de uma ajuda no campo para proteger a alguém que ama?
Ele abandonou a pose de guerreiro e a olhou, inquisitivo.
— Não adote esse ar de satisfação, professora. Um ano, Frances deu de
presente a mim um perfume no Natal e...
— Um perfume?
Linnea sufocou uma gargalhada.
— Apague esse sorriso de seu rosto, mocinha. Nós dois sabemos que
Frances não é tão inteligente como outras crianças, mas tem um coração de
ouro. Queria sacudir eu mesmo aquele malcriado do Severt uma ou duas
vezes por incomodá-la. Mas não se preocupe: a partir de agora, Kristian
estará lá para vigiar.
Na segunda-feira, não só Kristian, mas também todos os outros rapazes
mais velhos, se apresentaram na escola. Dava a impressão de que certa força
mística os tinha liberado simultaneamente do trabalho rural.
Com eles na sala de aula houve uma mudança notável. Linnea estava
grata por vê-la tão cheia, por estar tão atarefada, eis que era uma nova
excitação. Isso se notava em tudo, nos alunos menores, para quem os grandes
eram ídolos. Havia uma camaradagem inesperada e maravilhosa entre os
meninos velhos e os mais novos. Em lugar de afastar os pequenos, os grandes
os incluíam, ajudavam-nos, consolavam-nos quando caíam e se machucavam
e, em geral, toleravam as imaturas preocupações dos meninos com o bom
aspecto.
No parque infantil, havia mais animação. A caça aos esquilos tinha
terminado, e não era estranho ver toda a escola, inclusive a professora,
envolvida em um jogo de bola durante o recreio do meio-dia.
Linnea estava encantada. O ambiente de uma escola rural era muito
diferente do de uma escola na cidade, e ela nunca tinha experimentado algo
semelhante. Era uma experiência rica, saudável, algo semelhante a uma
grande família. Era gratificante ver como um menino de dezesseis anos
levantava uma menina de sete, que chorava aos gritos, e a sacudia para lhe
tirar o pó que tinha ficado grudado nela ao jogar pirata vermelho. E ver como
uma menina mais velha ensinava a uma mais nova as complicações inerentes
a uma trança francesa a fazia sorrir. Certo dia, observando-os, descobriu algo
assombroso. Eles estavam aprendendo a ser pais! E, enquanto o estivessem
fazendo, era preferível que aprendessem direito. Agora que todos os meninos
estavam presentes, abordou o tema que tanto ansiava por explicar: —
Shakespeare teria dito: “Refeições apressadas dão má digestão”, mas me
atrevo a dizer que Shakespeare nunca se sentou à mesa com um bando de
noruegueses famintos. Hoje nos ocuparemos do comportamento à mesa, que
inclui o aspecto social de adotar uma conversa agradável durante a refeição.
Os rapazes se olharam e dissimularam uma risada. Sem fazer pausas,
Linnea seguiu passeando de um lado ao outro da sala de aula, as mãos
apertadas na altura da cintura.
— Mas, antes de chegar a isso, começaremos com a questão dos
arrotos.
Quando cessaram as gargalhadas, os alunos perceberam que a
Senhorita Brandonberg não ria com eles. Estava parada, com ar severo, e
esperava, paciente. Quando falou de novo, nem um único aluno presente
duvidou de sua sinceridade.
— Quero que entendam muito claramente: os arrotos que se ouviram
nesta sala de aula serão os últimos que escutarão enquanto eu for a professora
aqui.
Nem cinco segundos de silêncio tinham transcorrido quando, de onde
estava, Allen Severt soltou uma forte sequência de arrotos que estremeceu até
as vigas. A isto se seguiram gargalhadas, mais fortes que antes. Linnea
caminhou pelo corredor, deteve-se junto à carteira de Allen, e com um
movimento tão rápido como o de uma cascavel, esbofeteou-o na cara com
tanta força que quase o fez cair do assento.
As risadas cessaram, como se alguém acabasse de baixar a guilhotina.
A professora falou com seu tom mais suave.
— Senhor Severt, as palavras corretas são: “Peço-lhe que me perdoe”.
Diga-as para seus companheiros, por favor.
— Peço-lhe que me perdoe —, repetiu como um papagaio, muito
atônito para fazer qualquer outra coisa. Com efeito, foi o último arroto que
Linnea ouviu na sala, mas Allen não esqueceu a bofetada.
Outubro chegou trazendo as primeiras geadas e os primeiros peões
contratados. Uma tarde, Linnea saiu de casa e se encontrou com um
desconhecido conversando com Nissa, junto ao moinho.
— Linnea, aproxime-se! Quero lhe apresentar o Cope.
Ela descobriu que Cope trabalhava para os Westgaard fazia doze anos.
Rechonchudo e corado, o camponês polonês proveniente da zona central de
Minnesota era chamado assim devido à lata de Copenhague que sempre se
podia ver no bolso de sua jaqueta. Tirando uma boina de lã, ele apertou a mão
de Linnea, dizendo-lhe algo como “pequena e bonita sitka”, em meio a um
jorro de suco de tabaco marrom, e depois perguntou onde estavam os outros.
Depois da chegada de Cope, vieram Jim, Stan e outros seis. Cinco deles
eram habituais; três eram novos para os Westgaard. Um dos que surgiram
pela primeira vez era um jovem mestiço a índio que estivera percorrendo
Montana com botas de vaqueiro gastas, um maltratado chapéu Stetson e um
cinturão com uma fivela de prata do tamanho de uma travessa, em que se via
uma cabeça do tipo de gado de chifres longos. Tinha o cabelo escuro e
reluzente como ônix e o sorriso provocador como o vento quente que
chamavam de Chinook. Como acontecera com Cope, da primeira vez que
Linnea o viu ele estava conversando com Nissa. Foi uma tarde, quando ela
voltava da escola com o livro e os papéis e os encontrou do lado de fora,
perto da porta da cozinha.
— Oh, temos visitas, quem é ela? — perguntou o homem, arrastando as
palavras, ao vê-la aproximar-se.
— Ah, é a Senhorita Brandonberg, a professora da escolinha. Hospeda-
se conosco — Nissa apontou o homem. — Este é Rusty Bonner, que acaba de
ser contratado, Linnea.
Por um momento, os olhos de Linnea se encontraram com os do sujeito
e a moça corou. Jamais em sua vida tinha conhecido um homem com uma
sexualidade tão flagrante.
— Senhorita Brandonberg — falou, com um sotaque lento como mel
frio. — Que prazer em conhecê-la, senhorita!
Quando falou, sentiu-se o cheiro de Artemísia e couro. Com um
polegar, ele empurrou o chapéu para trás, exibindo uns arrebatadores olhos
negros que se enviesavam abaixo nas comissuras, ao mesmo tempo em que
sorria e umas indomáveis mechas negras lhe caíam sobre a testa. Com um
movimento lento, o homem estendeu uma das mãos e, ainda antes de tocá-la,
Linnea soube quais sensações lhe daria aquela mão magra, forte e rígida.
— Senhor Bonner — saudou-o, tratando de que o aperto fosse breve.
Mas ele reteve sua mão por mais tempo do que o exigia a estrita cortesia,
esfregando aquela aspereza contra a dela, muito mais suave.
— Chamam-me de Rusty[10] — disse ele, com o mesmo sotaque lento.
Como aquele seu apelido o descrevia! O sol tinha bronzeado sua pele
até lhe dar um matiz intenso, quase na cor de mogno, que lhe emoldurava o
lânguido sorriso de um modo capaz de ter deixado um rastro de corações
destroçados do Texas a Montana e até a fronteira canadense. Era uma cabeça
mais alto que Linnea, magro como se passasse fome e parecia unido só pelos
tendões.
— Rusty — repetiu Linnea, esboçando um sorriso nervoso, que dirigiu
primeiro ao sujeito e depois a Nissa.
— Bom, asseguro-lhe que é uma mulher muito bonita, senhorita
Brandonberg. Faz-me lamentar o que perdi quando deixei a escola para me
dedicar aos rodeios.
Ruborizada, Linnea baixou os olhos pousando-os nas botas gastas e nas
mantas de dormir que estavam no chão, junto dele. Ele adotava a pose de
quadril flexionado típica dos sedutores, um joelho dobrado, sorrindo
debilmente com endiabrados olhos que pareciam calcular as dimensões do
corpo da moça e sua idade. Nissa percebeu o desconforto de Linnea e
ordenou: — Pode ir colocar as mantas de dormir no barracão. Vai se alojar no
celeiro com os outros rapazes. Haverá água quente para se banhar uma hora
antes do amanhecer e o café da manhã será servido na cozinha até que chegue
a carroça de refeições.
Como estava acostumado a seduzir, Rusty Bonner não se fixava em
quem derramava seu encanto, desde que fosse mulher. Voltou os olhos para
Nissa sem mudanças perceptíveis na expressão, tirou o chapéu e disse: —
Bom, obrigado, senhora. É muito gentil de sua parte.
Continuando, deu a volta sem pressa para recolher a bolsa com as
mantas penduradas no ombro, sujeitando-a com um dedo. Baixando a aba do
chapéu sobre os ombros, dirigiu-se ao estábulo, balançando os quadris como
um pinheiro agitado pelo vento.
— Ufa! — soprou Nissa, movendo a cabeça.
— Ufa, mesmo! — ecoou Linnea, observando como ondulavam os
bolsos traseiros de Rusty, embainhados nas ajustadas calças Levi Strauss
azuis.
Voltando-se para a jovem, Nissa afirmou: — Acredito que talvez eu
tenha cometido um grande erro contratando esse homem — e, olhando para
Linnea, Nissa apontou o nariz com um dedo. — Você se mantenha afastada
dele, ouviu-me?
— Eu? — os olhos de Linnea se dilataram, dando-lhe um ar inocente.
— Não fiz nada!
— Não é preciso que uma mulher faça algo com sujeitos desta espécie
— disse Nissa, retornando à cozinha bastante chateada. Esse sujeito vai
causar problemas. A velha senhora previu em pensamentos.
Era domingo, o último domingo de calmaria antes que o estrépito do
vapor das debulhadoras irrompesse na pradaria. No fundo do vale, os álamos
já deixavam cair suas moedas de ouro no curvar do trigal. As lebres de cauda
branca estavam gordas como budas e os ratos almiscareiros estavam aqui e
acolá enchendo seus depósitos subaquáticos, com as peles tão espessas que
lhes arrepiavam como babados ao redor do pescoço.
Se alguém estivesse exposto ao vento sentiria frio, mas protegido no
milharal não cortado, em um tipo de altar privado, Kristian e Ray vadiavam
como um par de sabujos satisfeitos, com as barrigas voltadas para o sol. Os
dois tinham corpos similares, compridos e angulosos, com muito osso
proporcionalmente aos músculos que tinham desenvolvido. Com as cabeças
apoiadas nos braços e os cotovelos para cima, contemplavam as nuvens
brancas que pintavam o céu azul-cobalto.
— Este ano irei caçar visons.
Algo no tom de Kristian fez com que Ray girasse a cabeça para olhar
seu primo por entre as pálpebras entreabertas.
— Para que quer caçar visons?
Kristian fechou os olhos e balbuciou: — Para nada.
Ray o observou um pouco mais e voltou para a posição inicial, olhando
para o céu. De longe chegou um som abafado, como se arrancassem pregos
velhos de madeira fresca. O som foi aumentando até chegar o inconfundível
chiado áspero dos gansos canadenses, que voavam para o Mississipi. Os
rapazes os contemplaram até que só viam uns pontos quando se converteram
em um bando.
— Ray, alguma vez você pensa na guerra? — perguntou Kristian.
— Às vezes, sim.
— Há aviões, montanhas. Não seria maravilhoso voar em um daqueles
aviões, sobre as montanhas? — continuou Kristian.
Um bando de aves sobrevoou sobre eles com os pescoços apontando
para a Flórida, movendo as asas com uma graça que provocou nos rapazes
um silencioso respeito. Olharam e escutaram, sentindo-se mexidos com
aquele som que lhes fazia pulsar alto o coração. O som se converteu em um
clamor que encheu o ar sobre o campo de milho e depois se afastou
flutuando, cada vez mais difuso, até que as elegantes criaturas desapareceram
e o único som que se ouviu foi o sussurro do vento entre a grama e o palpitar
de seus respectivos pulsos nas nucas.
— Algum dia verei o mundo lá de cima — se iludiu Kristian.
— Quer dizer que pensa ir lutar na França só para voar em um avião?
— Não sei. Pode ser.
— Que estupidez! Além disso, não tem idade suficiente — Ray ralhou
com o primo.
— Bom, logo terei.
— Bem, continuará sendo um estúpido se pensa em ir para a guerra só
para voar.
Kristian pensou por um momento e chegou à conclusão de que talvez
Ray tivesse razão. Possivelmente era uma estupidez, mas ele estava
impaciente para crescer e se tornar um homem.
— Ray — chamou Kristian, alguns passos à frente dele.
— Hein?
— Alguma vez você pensa nas mulheres?
Ray soltou uma gargalhada tão rouca quanto os grasnidos dos gansos,
voltou-se para Kristian e disse: — Acaso um urso caga no bosque?
Riram juntos, sentindo-se viris, com a magnífica sensação de poder
falar do proibido, que há tão pouco tempo tinham começado a experimentar.
— Alguma vez ocorreu a você dar de presente algo a uma mulher que
se distinguiu das demais para você? — perguntou Kristian, meio adormecido.
— O que, por exemplo? — Ray perguntou.
Ficaram em silêncio por um longo momento. Kristian dirigiu ao primo
um olhar cauteloso e, depois de voltar para a contemplação das nuvens,
sugeriu: — Um casaco de vison.
A cabeça de Ray se ergueu por cima do milho.
— Um casaco de vison?! — com as mãos no estômago, soltou uma
sonora gargalhada. — Acha que apanhará animais suficientes para fazer um
casaco de vison?
Ray uivou mais forte e girou sobre si como uma tartaruga dando voltas,
até que por fim Kristian se levantou e lhe deu um murro na barriga.
— Oh, cale-se. Sabia que não devia lhe contar isso. Se você contar algo
para alguém, vou esmagá-lo até deixá-lo mais plano que a Dakota do Norte!
Ray seguia rindo, sem fôlego.
— Um ca… casaco de vison! — exagerando, estendeu as mãos e as
flexionou diante do sol. — Quando conseguir suficientes visons, será tão
velho quanto seu pai.
Kristian entrelaçou os dedos sobre a barriga, cruzou os tornozelos e
dirigiu o olhar para cima, com o cenho franzido.
— Bom, não era mais que uma fantasia, seu pedaço de asno. Sei que
não vai, quero dizer, que não vou conseguir o suficiente para um casaco, mas
talvez pudesse obter o bastante para um par de luvas.
De repente, Ray compreendeu que seu primo falava a sério. Ergueu-se
sobre um cotovelo e prestou toda a atenção em Kristian: — Para quem?
Kristian tomou um talo de milho seco e o dividiu com a unha do
polegar.
— Para a Senhorita Brandonberg.
— A Senhorita Brandonberg? — Ray se levantou, apoiando o peso em
um quadril e levantando um joelho. — Está louco? Ela é nossa professora!
— Já sei, mas tem só dois anos a mais que nós.
Muito assombrado para tomar aquilo como brincadeira, Ray olhou
boquiaberto para o primo: — Está louco, Kristian!
Kristian jogou o talo de milho e cruzou as mãos atrás da cabeça.
— Bom, não há nada de mau em pensar nela, não é mesmo?
Ray ficou olhando para Kristian como se lhe tivessem brotado chifres.
Depois de um longo instante de silêncio, deitou-se de costas e exclamou: —
Merdaaaa! — em uma exalação de excitação.
Permaneceram estendidos, imóveis, pensativos, contemplando o céu
em uma atitude que os fazia parecer indiferentes ao tempo; mas, por dentro, o
sangue lhes corria mais rápido que as águas do Little Muddy Creek.
No fim, Ray rompeu o silêncio.
— Era a isso que se referia quando perguntou se eu pensava em
mulheres? Pensa na professora... desse modo?
— Às vezes.
— Kristian, isso pode colocá-lo em encrenca — declarou Ray, severo.
— Não disse a você que a única coisa que faço é pensar?
Transcorreram os minutos. O sol se escondeu atrás de uma nuvem e
logo reapareceu, esquentando-lhes a pele e os pensamentos.
— Kristian — Ray falou em um tom confidente.
— O quê?
— Alguma vez... bom, lhe aconteceu algo enquanto pensava... em
mulheres?
Kristian se remexeu um pouco, como se quisesse acomodar melhor as
omoplatas e, quando por fim respondeu, esforçou-se por parecer indiferente:
— Bom... sim. Às vezes.
— O quê? — quis saber Ray.
Kristian pensou por um longo momento, redigindo respostas e as
desprezando antes de pronunciá-las. Olhou de soslaio e viu que Ray tinha
girado a cabeça em sua direção: sentiu que os olhos do primo o
esquadrinhavam, esperando a verdade. Ele o encarou.
— O que acontece com você? — aliviado, jogou a responsabilidade
para Ray.
O milho sussurrava sobre suas cabeças. As nuvens riscavam o céu em
silêncio. Na comissura da boca de Ray apareceu um lento sorriso: Kristian,
em resposta, sorriu de volta. E os sorrisos se alargaram.
— É grandioso, não? — comentou Kristian.
Ray fechou o punho, deu um murro ao ar, agitou um pé e lançou um
alarido: — Uhuuuuu!
Caíram os dois de costas e riram, gargalharam, gozando o fato de terem
dezesseis anos e de estarem transbordantes de energia e entusiasmo. Depois
de um momento, Kristian perguntou: — Alguma vez você beijou uma
garota?
— Uma vez.
— Quem?
— A Patricia Lommen.
— Patricia Lommen?! Aquele pequeno inseto?
— Oh, não foi tão ruim — respondeu Ray.
— Duvido. E como foi?
— Nada do outro mundo, e já faz um tempo. Não me incomodaria em
voltar a beijá-la, pois a Patricia é a única por aqui que não é minha prima,
mas acredito que ela preferiria beijar a você e não a mim.
— A mim? — surpreso, Kristian se levantou.
— Abra os olhos, Westgaard. Cada vez que você entra na sala de aula,
ela o fica olhando com a boca aberta, como se você fosse a oitava maravilha
do mundo.
— Sério?
— É claro que sim.
Ray soava um tanto invejoso.
Kristian encolheu os ombros, inflou o peito como um galo e bateu as
asas. Ray lhe deu um murro que o fez dobrar-se. Trocaram uma rodada de
carinhosos murros e depois, já que tinham quebrado o gelo, voltaram às
confidências.
Kristian perguntou, curioso: — Alguma vez imaginou seus pais
juntos...? Você sabe... —, quero dizer, fazendo aquilo?
— Ohooo… não sei. E você já imaginou seu pai com uma mulher?
—Possivelmente não, porque acredito que meu pai... — como Kristian
se interrompesse, Ray se voltou, todo ouvidos.
— O quê? Vamos, me diga— insistiu Ray.
— Bom, não sei com certeza, mas estive pensando em todos os
outonos, quando Isabelle chega.
— Isabelle?! — Ray pareceu horrorizado. — Refere-se àquela gorda
que conduz a carroça de alimentos?
— Ela não é gorda.
— Acredita que seu papai faz aquilo com ela? Mas eles sequer são
casados?!
— Oh, não seja infantil, Westgaard. Não precisa ser casado para fazer
isso. Lembra-se da garota que vivia lá do outro lado da propriedade do
Sigurd, a que ficou grávida e ninguém sabia quem a tinha deixado naquele
estado?
— Bom, sim, mas... aquela era uma moça e... bom... — Ray ficou
confuso enquanto tentava esclarecer. — De verdade, acredita que seu pai faz
isso com Isabelle?
— Não sei, mas todos os anos, durante a debulha, quando ela está aqui
com sua carroça de alimentação, meu pai não fica em casa à noite, ou chega
para dormir muito tarde. Lembro-me de que ele não entrava quase até a hora
de ordenhar e, quando o fazia, ou, se não estou muito enganado, entrava às
escondidas. Onde ele passava as noites se não era na carroça de Isabelle?
Consideraram essa possibilidade por um longo tempo, até que o sol se
ocultou e o refúgio em que estavam se esfriou. Pensaram nas mulheres...
aquelas criaturas misteriosas que, de repente, já não lhes pareciam uma
chateação. Pensaram em voar em aviões, tão alto como os gansos selvagens
que tinham visto passar. Perguntaram-se quando seriam homens de verdade
para poderem fazer tudo isso.
CAPÍTULO 12
O PRIMEIRO BEIJO

A carroça de alimentação de Isabelle Lawler, conduzida por ela mesma,


chegou na manhã seguinte. De aspecto desmantelado, mais longa que as
carroças dos fazendeiros, mas tão incômoda quanto elas, aparecia no caminho
como um vagão de trem desmantelado que saiu dos trilhos. Do teto
sobressaía o tubo negro da cozinha e, nas laterais, balançavam baldes e bacias
cantarolando como órgãos cada vez que a carroça passava por uma
depressão. Quando o veículo de pranchas sem envernizar passava,
balançando-se pelo caminho de cascalho em meio aos campos, todos
voltavam a cabeça para olhar. Os peões saudavam Isabelle com a mão, que ia
na carroça, encurvada para a frente, os joelhos bem separados e um velho
chapéu sobre os encaracolados cabelos que ondulavam ao sol com o mesmo
tom e a mesma resistência de um incêndio na pradaria.
Diziam que ela se parecia com a famosa Calamity Jane[11], que tinha
percorrido muitas vezes a região com o espetáculo do Selvagem Oeste na
década de 1890. Havia quem assegurasse que Isabelle e Jane teriam sido
espíritos gêmeos caso tivessem se conhecido. A única coisa feminina em
Isabelle era o nome. Descalça, media mais de um metro e setenta. Somando o
cabelo frisado de quase dez centímetros, dava a impressão de ultrapassar a
maioria dos homens. Possuía a força de um cavalo de corrida, era invencível
como uma mula e tinha menos graça que qualquer dos dois, e tudo isso fazia
com que os homens a tratassem como um deles. Viajava sozinha e afirmava
que a pradaria era seu único lar; terminada a época da colheita, ninguém sabia
onde se refugiava durante o inverno. Quando lhe perguntavam por suas
origens, vociferava, escandalosa: — Engendrou-me o demônio quando se
enredou em amores com um búfalo-fêmea — e jamais deixava de provocar
estrondosas gargalhadas quando tirava o chapéu, exibia seu cabelo e
grasnava. — O diabo me deu o fogo e o búfalo, a forma!
Para finalizar, golpeava o ombro de algum homem com o disforme
chapéu de feltro, metia-o sobre a cabeleira e adotava uma pose desafiadora,
as mãos nos quadris carnudos, enquanto as gargalhadas retumbavam ao
redor. Só uma mulher como Isabelle podia fazer o que ela fazia. A carroça
que guiava era composta de duas mulas mal-humoradas; o veículo que
puxavam não só era uma cozinha móvel, mas também seu lar. Conduzir a
desajeitada carroça com esse par de criaturas obstinadas teria acovardado
muitos homens. Isabelle, entretanto, administrava tudo isso, do mesmo jeito
que conduzia a tarefa monumental de proporcionar quatro substanciosas
refeições por dia à equipe de debulhadores, que podia chegar a vinte homens
famintos. Em quase todas as fazendas, essa tarefa era cumprida por um
exército de cozinheiros, mas Isabelle fazia tudo sozinha, levando a comida
aos trabalhadores em vez de eles irem até ela. O café da manhã e o jantar
eram servidos em qualquer lugar, perto do estábulo ou do barracão, mas a
comida do meio-dia e os sanduíches da tarde eram servidos ao ar livre, nos
vastos trigais, perto da máquina a vapor, economizando assim valiosas horas
de trabalho. Os que contratavam seus serviços proviam-na de carne e
verduras, que ela cozinhava e servia na carroça, sobre a longa mesa que
ocupava boa parte do interior.
Fazia nove anos que ela ia à fazenda de Theodore. Não só os
Westgaard sorriam ao ver o cabelo cor de cenoura e os joelhos separados com
as saias penduradas no meio como uma rede, mas também os peões
contratados, que tinham compartilhado com ela muitas refeições e muitas
risadas.
Quando a carroça apareceu dando saltos pelo caminho irregular no
campo, onde a máquina já estava soprando, Theodore jogou o chapéu para
trás. Apoiou a mão no cabo da forquilha e ficou olhando-a avançar, com uma
expressão benévola nos lábios.
— Belle voltou — comentou John, girando para observar a carroça.
O estrépito das ferragens era amortecido pelos bufos da máquina a
vapor atrás deles.
— Sim, Belle voltou — concordou Theodore.
— Como cozinha bem essa Belle! — elogiou John, com simplicidade.
Belle freou as mulas, ficou de pé com as rédeas em uma das mãos
enquanto, com a outra, agitava com veemência o chapéu. Os peões estalaram
em uma cacofonia de gritos, zurros e assobios.
— Ei, Belle, querida! Continua os gostosos “pernil” deste lado das
Rochosas?
Belle, olhando para suas coxas, vociferou em uma voz que parecia um
violão feito de uma tábua metálica: — Se quer falar de minhas coxas, vem
aqui, onde eu possa dar uma bofetada nessa sua cara, pequeno verme
sarnento!
— Pernil de boi, Belle! — replicou o homem, também aos gritos.
— Pernil de boi, meu traseiro! Refere-se ao búfalo, bem sei!
Muito ereta na alta carroça, com os braços cruzados, recortada contra o
céu azul-claro, naquele momento não havia homem que não a adorasse.
— Ei, Belle, ainda não encontrou um homem que possa jogá-la sobre o
ombro como um saco de grãos?
— Diabos, não! Sigo solteira. Da última vez que os encontrei, eu, sim,
joguei alguns deles sobre os ombros — gargalhou com a própria brincadeira,
a que se uniram os homens, até que alguém exclamou: — Reivindico a
primeira dança, Belle. Prometeu-me isso o ano passado.
— Ao diabo as promessas! Ficará na fila com os outros.
— Belle. Já aprendeu a fazer pastéis de batatas?
— Quem está falando? — protegeu os olhos do sol e se inclinou para a
frente: —É você, Cope, pequena formiga bêbada?
— Sou eu, Belle!
— Ainda tem esse pestilento pedaço de esterco de vaca grudado na
cara? Parece-me que posso cheirá-lo daqui.
Cope se agachou e cuspiu um jorro escuro, para logo gritar: — Assim o
é. E ainda posso acertar um gafanhoto a mais de três metros.
Belle se inclinou para trás e deu uma estrondosa gargalhada, elevando
um dos joelhos e dando uma palmada com bastante força para desconjuntá-
lo. Depois gritou: — Ei, Theodore! Acaso paga a esses inúteis para ficar
brincando com a cozinheira?
Theodore, que estava parado desfrutando do atrevido intercâmbio,
limitou-se a olhar para o chão e sacudir a cabeça; acomodou o chapéu e,
sorrindo, voltou ao trabalho seguido pelos outros, todos alegres e dispostos.
Todos os anos, quando Belle chegava, acontecia o mesmo: tanto o
trabalho quanto a diversão começavam no ápice. O trabalho fatigante
resultava aliviado pela camaradagem que a mulher suscitava em todos eles.
Aproximava-se o inverno e depois eles retornariam para seus lares, isolados
pela neve. Mas, no momento, havia o ronco rítmico da máquina e a promessa
de comida substanciosa e risada abundante em volta da mesa de Belle.
Também haveria bailes, mais brincadeiras e, ao terminar, bolsos cheios. Por
isso trabalhavam sob o sol de outono, animados por um só propósito, pela
intensa jovialidade que despertava Belle com tanta naturalidade.
Embora o dia tivesse amanhecido frio devido à geada, muito antes do
meio-dia os homens suavam sob o sol, alimentando com os feixes de trigo a
máquina que separava o grão da palha e os cuspia em duas direções distintas.
De vez em quando, afastava-se do campo uma carroça carregada de trigo, em
direção aos celeiros da fazenda. A cada carga que se afastava, cresciam os
montes de feno.
Ao meio-dia, Belle saiu da carroça e golpeou uma frigideira com a
colher de madeira. Os trabalhadores deixaram as forquilhas, enxugaram a
testa e foram para as bacias com água quente que ela deixava perto da
carroça. Lavavam-se sob o sol, tentados pelos aromas que flutuavam para
eles através das portas horizontais levantadas de ambos os lados do veículo,
oferecendo uma vista do interior. Na frente, Belle trabalhava em excesso ao
redor da negra e enorme cozinha, vociferando com sua voz estridente: —
Cope, cospe esse tabaco mastigado antes de pôr um pé em minha cozinha!
Porque se não o fizer vou desaparecer com meu purê de passas e você não
gostará de onde o colocarei.
Cope obedeceu, recebendo as cotoveladas dos companheiros, que
sorriam. Outra vez se ouviram as escandalosas ordens de Belle: — E não
quero ouvir falar mais em pastéis de batatas, ouviu-me, Cope? Se quando
tiver terminado o que eu servir na mesa ainda conseguir comer um pastel de
batatas, eu mesma o carregarei sobre os ombros e o levarei ao salão de baile
no sábado à noite.
Quando se agruparam dentro da carroça, os homens ainda riam.
Encheram os bancos que abrangiam todo o comprimento da mesa e se
dedicaram à generosa comida, entre brincadeiras amáveis e gargalhadas.
Havia porco e boi assado, purê de batatas com um suculento molho, ervilhas
verdes e milho amarelo, rangentes pastéis redondos recheados com couve,
bolos de maçã e café forte. E, enquanto tudo isso desaparecia, havia a
presença constante de Belle movendo-se entre os bancos, instando-os a
comer, lançando réplicas atrevidas, enchendo uma e outra vez os pratos,
dando uma palmada no ombro de um e um puxão de orelhas em outro.
Ela tratava Theodore igual aos outros. Ele também recebia sua porção
de brincadeiras, de palmadas nas costas e algum outro jogo de palavras de
áspero humor. Mas, naquela noite, quando os outros já haviam se deitado no
celeiro sobre o feno novo de doce fragrância, Theodore levou para o estábulo
um balde de água fria e uma barra de sabão, fechou a porta, banhou-se e
vestiu roupa limpa. Enquanto abotoava a camisa azul, perguntou-se se os
outros suspeitariam do que existia entre ele e Belle. Depois afastou essa ideia
da cabeça, acomodou os suspensórios sobre os ombros e colocou uma jaqueta
de lã xadrez para se proteger do ar fresco da noite.
Quando saiu do estábulo, a luz da carroça de Belle ardia brandamente
entre os arbustos. Theodore já sabia que a mulher teria baixado as portas
horizontais, prendendo-as com um gancho na parte de baixo, deixando só um
quadrado de luz que passava através da janela da porta traseira.
Bateu suavemente e colocou as mãos nos fundos bolsos da jaqueta,
com os olhos fixos no degrau que lhe chegava à altura do joelho. Abriu-se a
porta e ele ergueu a cabeça. A luz forte passava entre os cabelos de Belle,
dando-lhe a cor do entardecer, para depois cair sobre o rosto de Theodore,
voltado para cima. A mulher tinha posto um robe de musselina e estava
envolta em um xale verde-claro, que lhe caía sobre os seios. Seu rosto estava
na sombra quando apareceu para lhe abrir a porta e fazê-lo passar. Já não
havia mais rastros da Maria-macho vociferadora. Em seu lugar, havia uma
mulher doce, que tinha trocado a fachada rústica por uma tranquila dignidade,
nem tímida nem atrevida.
— Olá, Belle — disse Theodore, em voz baixa.
— Olá, Ted — respondeu. — Eu o estava esperando.
O homem lançou um breve olhar por cima do ombro para a fazenda
silenciosa.
— É uma bonita noite e pensei que poderíamos conversar um pouco.
— Entre.
Afastou-se para deixá-lo passar e Theodore subiu o degrau e entrou,
fechando a porta sem ruído atrás de si, lançando um olhar ao redor com as
mãos ainda nos bolsos. Os bancos tinham sido colocados embaixo da mesa,
que estava contra uma das paredes. Sobre a mesa, a roupa de cama: dois
grossos edredons de penas de ganso e um travesseiro macio. Assim, com as
persianas fechadas, o interior da carroça era acolhedor e íntimo. Um bule
chiava brandamente na cozinha, e junto à porta de entrada havia uma
lamparina apoiada sobre a única cadeira.
— Está tudo igual — disse ele, passando os olhos pela mulher e depois
seguindo com a inspeção.
— Está igual. Nada mudou. Sente-se.
Ela fez o gesto de se sentar, mas, ao ver a lamparina, endireitou-se
outra vez.
— Vem, tirarei isto — disse Belle, roçando-o ao passar para levantar a
lamparina e apoiá-la em um dos bancos, que tirou de sob a mesa e aproximou
da parede oposta.
Theodore se sentou na cadeira e Belle, na borda da cama improvisada.
Por um minuto inteiro, nenhum dos dois pronunciou palavra.
— Como tem passado? — perguntou, por fim, a mulher.
Theodore lhe lançou um olhar nervoso, com os cotovelos apoiados
sobre os joelhos separados.
— Bem... bem. Foi um bom ano.
Voltou a cravar os olhos no chão, em seus próprios pés.
— Sim. Para mim também foi um bom ano. Vi que tem de novo quase
os mesmos rapazes.
— Sim, Cope e os outros são bons trabalhadores. Entretanto, há alguns
que são novos.
Ele continuou com a vista baixa.
— Já os vi. E como estão se saindo?
— Bem... — depois, mais baixo, assentindo com a cabeça: — estão se
saindo muito bem.
— Seu filho, sim, é que cresceu.
Theodore aventurou-se a um breve encontro de olhares, sorrindo com
contido orgulho.
— Sim, um pouco mais e será tão alto quanto eu.
— Ele se parece cada vez mais com você.
Theodore riu silenciosamente, um pouco tímido.
— Notei que ele não foi trabalhar na debulha até a tarde — disse Belle.
Theodore clareou a voz e, por fim, olhou-a nos olhos: — Não, já
começaram as aulas. A nova professora se enfureceu porque eu o mantinha
afastado da escola; assim, no final, deixei-o ir.
— Ah, entendo.
Theodore se apressou a acrescentar: — Claro que assim que retorna da
escola ele tem que ajudar.
O assunto acabou e, como a nenhum dos dois ocorreu um novo tópico,
Theodore voltou a baixar os olhos. Depois de alguns instantes, esfregou a
nuca. Ao notar isso, Isabelle explicou: — Aqui dentro, quando fecho, fica um
pouco quente. Quer tirar a jaqueta, Ted?
O homem ficou de pé para fazê-lo e se encontrou com Belle atrás dele,
ajudando-o. Quando se voltou para deixar o objeto sobre o banco,
contemplou os ombros e o lado do seio adornado pelo xale verde. Quando a
mulher se endireitou e se voltou, olhou-o diretamente nos olhos.
— Pensei em você, Ted.
— Também pensei em você.
— Ainda não se casou? — perguntou.
— Não — Theodore negou com a cabeça e baixou os olhos. — Se eu
decidisse abandonar esta vida enlouquecida e me assentar, já o teria feito.
— Oh, Belle...
— Fecha a cortina, Ted.
Ted levantou os olhos e seu pomo-de-adão subiu e desceu. Sem mais
rodeios, foi até a porta traseira e correu a cortina com desenhos azuis e
vermelhos por meio da corda. Quando olhou outra vez para Belle, encontrou-
a sentada na beira da cama, ainda com o xale posto.
— Sabe o que sempre gostei em você, Ted? — ela não esperava
resposta e não a obteve. Só os escuros olhos incertos que apanharam a luz
alaranjada da lanterna e depois piscaram. — Você nunca me deixa segura.
Theodore se aproximou dela, levou uma de suas grandes mãos à
têmpora da mulher e tocou o cabelo colorido, que ela puxara para trás e
prendera na nuca com uma fina fita branca. Estava úmido, como se tivesse
acabado de lavar e Belle cheirava ao único perfume que usava: extrato de
baunilha comum. Sem falar, tirou-lhe o xale dos ombros, dobrou-o pela
metade e o deixou com cuidado sobre sua jaqueta. Tomou a fita com os dedos
e desfez o coque. Quando deixou a fita branca em cima do xale, o fez com
tanto cuidado quanto se aquela fita fosse uma tiara de joias.
Voltou para junto da cama, tomou o rosto de Belle com as mãos,
ergueu-a e apoiou a boca sobre a dela com singular parcimônia. Quando o
beijo acabou, Theodore ergueu os olhos outra vez para o rosto sem
maquiagem.
— Quando a gente dá segurança a outra pessoa, isso resulta em mágoa
— foi sua resposta.
Beijou-a outra vez e sentiu que as mãos dela foram em direção aos
suspensórios, baixaram-nos e lhe abriram a camisa para depois atraí-lo para
si, deitando-se sobre os edredons de plumas, onde juntos encontraram o
alívio.
Depois, relaxados e lânguidos, Theodore descansou, com a cabeça de
Belle em seu ombro. A mão repousava sobre o peito dele e ele subia e descia
as pontas dos dedos pelo braço da mulher.
— O que acontece com as mulheres daqui? Por que nenhuma delas o
fisgou?
— Não quero me deixar fisgar.
— Que pena, porque você é magnífico naquilo que acabamos de fazer.
— Theodore sorriu para o teto.
— Sou?
— Claro que sim. Acaso acredita que para algum desses fantoches
importa o que sinto? Quão solitário é viver nesta carroça lotada noite após
noite, ano após de ano!
— Então por que não se casa, Belle?
— E você me pergunta isso, Ted? — a mão deixou de se mover sobre o
braço da mulher e ela lhe deu um tapa brincalhão no peito. — Oh, não fique
tão tenso, só estava brincando. Já sabe que uma cigana como eu nunca se
decidiria a parar quieta. Mesmo assim, de vez em quando sonho fazendo-o.
Às vezes, uma mulher gosta de se sentir como uma.
A mão masculina deu uma leve passada por seu seio.
— Eu lhe asseguro que você é uma mulher.
Belle riu e ficou contemplando distraída a tênue luz da lamparina:
lançou um suspiro sobre o peito dele.
— Ted, alguma vez parou para pensar que você e eu somos muito mais
diferentes por fora que por dentro?
— Já fiz isso um par de vezes.
— Acredito que não exista nenhum outro homem que veja em mim
outra coisa além de duas mangas fofas, um monte de cabelos avermelhados e
muita insolência. Faz anos que penso em agradecer a você por ter tido o
trabalho de olhar um pouco mais a fundo.
Ele a envolveu com os braços, beijou-a no alto da cabeça e disse: — É
uma boa mulher, Belle. E ultimamente dei para pensar que talvez seja a única
amiga que tenho além de meus irmãos.
Belle levantou o queixo e o observou: — Sério?
Theodore sorriu para ela e a estreitou um pouco nos braços: — Sério.
— Crê que é um indício de que estamos ficando velhos? Porque eu
também estive refletindo sobre o mesmo assunto. Nunca fiquei tempo
suficiente em um lugar para fazer amigos. Suponho que esse seja o motivo
pelo qual sempre fico impaciente para voltar aqui todos os anos.
— E eu estou sempre aqui, esperando.
Belle acomodou outra vez a cabeça no ombro dele, refletiu em silêncio
um pouco mais e perguntou: — Ted, pensa que o que fazemos está errado?
Ted ficou olhando a mancha circular que deixava a lamparina no teto e
que formava um trêmulo anel.
— No Bom Livro diz isso. Mas a quem prejudicamos, Belle?
— A ninguém, que eu saiba. A menos que seu filho descubra. Talvez
não seja muito bom para ele. Você acha que ele suspeita?
— Esta noite, antes de vir para cá, pensei nisso. Ele está crescendo em
muitos aspectos. Esteve sonhando com a nova professora e, quando se
começa com isso, os moços não prestam muita atenção em pássaros e
abelhas.
— Imagino por que sonha com ela. É bonita, não?
Por mais estranho que fosse, a observação de Isabelle lhe sacudiu o
coração com mais força que qualquer das coisas que a mulher dissera ou
fizera aquela noite.
— Suponho que sim. Na realidade, nunca olhei para ela.
— Ah, não me diga, Ted. O que está acontecendo com seus olhos?
Uma mulher como eu daria os dentes sãos que lhe restam para ter a aparência
dela, embora fosse só por um dia.
Enquanto Ted ria entre dentes, Belle se esticou sobre seu peito para
alcançar a mesa e pegou um bloquinho de papel de cigarros e um saquinho de
tabaco.
Deitada de costas, com as mãos experientes, segurou um cigarro,
enrolou-o, passou a língua, fechou a corda do saco com os dentes e depois se
estirou outra vez por cima de Theodore para pegar um fósforo e um cinzeiro.
Acendeu o fósforo contra a borda da mesa, sob os edredons que se
penduravam, e se recostou de novo com o cinzeiro sobre o peito,
contemplando pensativa a fumaça que flutuava para o teto.
Theodore aguardou paciente até que ela se acomodou e comentou em
tom seco: — Belle, seus dentes não têm nada de ruim, tampouco seu rosto.
Sorrindo, a mulher formou um perfeito anel de fumaça.
— Por isso gosto de você, Ted; porque nunca percebe o que eu tenho
de errado.
Theodore a viu fumar meio cigarro, esforçando-se por impedir que as
imagens de Linnea brotassem em sua mente e o obrigassem a compará-las.
Mas não pôde e, tirando o cigarro dos lábios de Belle, pô-lo entre os seus e
deu uma profunda tragada. Resultou-lhe tão desagradável como sempre e o
apagou, fazendo mover o cinzeiro sobre o seio de Belle.
— Isabelle, tenho que recuperar um pouco o tempo e estou me pondo
impaciente.
Deixou o cinzeiro no chão, estendeu-se de costas e viu que Belle lhe
sorria, com as pálpebras entreabertas. Enquanto o atraía para si com seus
fortes braços e pernas, afirmou com sua áspera voz de contralto: — Sim,
senhor, por aqui há algumas mulheres muito estúpidas, mas espero que nunca
consigam, porque se o fizessem, Ted...
— Feche a boca, Belle — disse ele, pousando a sua sobre a da mulher.
Era a noite do sábado. O primeiro baile da temporada da colheita
começaria às oito no barracão de Oscar Knutson, que tinha o celeiro mais
vazio. Linnea tinha dedicado toda a tarde a se preparar para o acontecimento.
Poderia ter empregado menos tempo se Lawrence não a tivesse interrompido
a cada instante, fazendo-a girar ao redor do quarto ao som de violinos que
tocavam valsas vienenses... e ela apenas de anáguas. Naquele exato instante,
Lawrence estava sentado na cadeira de balanço da moça, observando como
ela prendia o cabelo com dois pentes, provando diversas maneiras e olhando-
se, séria, no espelho.
— Imagino que será a mais bela do baile. Certamente dançará com o
Bill, com Theodore, com Rusty e...
— Rusty? Oh, não seja tolo, Lawrence. Não é porque tenha sorrido e
me considerado bonita que isso significa... — inclinou-se mais para o
espelho, passou quatro dedos pelo queixo e examinou seu reflexo com ar
crítico. — Pareço-lhe bonita, Lawrence? Sempre acreditei que meus olhos
eram muito separados e isso me faz parecer um bezerro — apontou um
incisivo com o polegar. — E tem este dente torto. Sempre o odiei.
Fechou os lábios e sorriu, franzindo outra vez a testa diante do que via
no espelho.
— Não está procurando elogios, não é verdade?
Linnea girou, com os braços cruzados.
— Não estou procurando elogios. E se vai começar a zombar de mim,
pode ir embora — girou outra vez para o espelho. — De todos os modos, será
melhor que vá, pois do contrário jamais terminarei de arrumar meu cabelo.
Tinha-o lavado e enxaguado com vinagre e agora, já seco, frisava-o
com as pinças que tinha esquentado sobre a lamparina, cantarolava e provava
distintos penteados. Experimentou recolhê-lo todo sobre o alto da cabeça,
deixando pequenos cachos soltos, mas era muito comprido e o peso das
mechas desfazia os cachos e os deixava com a aparência de rabo de vaca.
Depois o levantou em um nó frouxo, deixando finas mechas ao redor do rosto
e da nuca. Mas era difícil fazer um coque frouxo que não se desfizesse todo:
imaginou-se girando pela pista de baile, desprendendo os grampos em todas
as direções. Quando terminou de provar, teve que voltar a formar os cachos.
Dessa vez se decidiu por um penteado singelo, quase de menina, solto na
parte de trás e recolhido dos lados bem alto com uma fita azul-escura.
Examinando o resultado, sorriu e passou à decisão seguinte: o que vestir?
Repassando seu limitado guarda-roupa, descartou os objetos de lã, que
seriam muito quentes, e escolheu a blusa branca com corpete e a saia verde
com as três pregas atrás, que se ondularia quando ela girasse pela pista de
baile. Colocou no rosto um pingo de creme de amêndoas, que reservava para
ocasiões muito especiais. Sobre os lábios e as faces estendeu três gotas de
ruge líquido. Endireitou-se, olhou-se e riu entre dentes. Parece uma
prostituta, Senhorita Brandonberg. O que irão pensar os pais de seus
alunos?
Tentou tirar o ruge, mas já se lhe tinha impregnado na pele. A única
coisa que conseguiu foi irritar as faces e deixá-las mais rosadas. Lambeu e
chupou os lábios, mas também haviam se tingido. Soou uma batida na porta e
Linnea se olhou no espelho, perplexa. Agora não só tinha os lábios
vermelhos, mas também inchados! Como faziam as mulheres para
amadurecer e estarem seguras de si mesmas? Compreendeu que era muito
tarde para arrumar o rosto e foi abrir a porta.
— Ah, Kristian! Que bonito! Você também vai?
Ali estava ele, embelezado com as calças dos domingos, uma camisa
branca, os sapatos reluzentes e o cabelo penteado para trás com brilhantina,
formando um topete como uma crista de galo. O cheiro era horrível! Como a
sala de um funeral, cheia de cravos. Fosse o que fosse que tinha usado,
exagerara, e Linnea conteve a vontade de apertar o nariz.
— Claro que sim. Comecei a ir em novembro, quando completei
dezesseis.
— Por Deus, aqui todos começam a dançar tão jovens?
— Sim. Meu pai começou aos doze. Mas, quando eu fiz doze, disseme
que as coisas eram muito diferentes e que Ray e eu teríamos que esperar até
que temos dezesseis.
— Que tivéssemos.
O rapaz corou, revolveu os pés e repetiu, submisso: — Até que
tivéssemos dezesseis.
Notando o desconforto do menino, ela lhe deu uma palmada na mão.
— Oh, maldição! Sempre tenho que me comportar como uma
professora de escola? Espera um minuto para eu pegar o casaco.
Kristian a viu se afastar.
Por Deus, que mulher! Que cabelo... todo solto e encaracolado. Se ele
pusesse um dedo naqueles cachos, enroscar-se-ia e apertaria como o punho
de um recém-nascido. E o rosto... o que ela teria feito no rosto? Estava todo
rosado, suave, e tinha os lábios inchados como se estivesse esperando que
alguém plantasse um beijo neles. Kristian tratou de imaginar o que diria um
homem em uma ocasião semelhante, para fazer saber a uma mulher que
gostava mais dela que de uma chuva primaveril, mas tinha a mente em
branco e o coração martelava no peito.
Quando retornou, Linnea captou sua expressão fascinada e pensou: Oh,
não! E agora, o que faço? Seguia sendo a professora, e não havia dúvidas de
que Kristian precisava aprender coisas, uma das quais era ajudar uma mulher
a colocar o casaco e que isso não constituía um gesto de intimidade, de modo
que o faria.
— Kristian, ajude-me, por favor.
O rapaz ficou olhando o objeto de lã, sem se atrever a tocá-la.
— Oh! — deu um salto e tirou as mãos dos bolsos. — Oh, claro.
Até então, nunca tinha ajudado uma mulher a vestir um casaco. Viu
como ela o punha e depois tirava o cabelo de dentro da gola... não havia
dúvidas de que as mulheres se moviam de maneira diferente dos homens.
Com passo ágil, Linnea baixou a chama da lamparina e desceu a escada
à frente de Kristian.
No andar de baixo uniu-se a eles Nissa. Outra surpresa para Linnea.
— Você também vai?
— Desafio alguém a tentar me impedir. Minhas pernas não estão
endurecidas e dançar é mais divertido que se balançar.
Estava embelezada por um vestido azul-marinho com gola de renda
branca fechado na frente por um broche espantoso. E estava impaciente para
ir. Lá fora, Theodore estava sentado no assento de uma carroça de quatro
rodas, cheia de homens risonhos e a chamativa cozinheira ruiva, que lhes
contava um estrepitoso conto sobre um indivíduo chamado Ole, capaz de
peidar à vontade.
Quando os três se aproximaram vindos da casa, Rusty Bonner desceu
rapidamente, com um meio sorriso. Tocou a aba do chapéu e colocou os
polegares atrás da reluzente fivela do cinturão.
— Boa noite, Senhora Westgaard, Senhorita Brandonberg. Permitem-
me? — ofereceu em primeiro lugar a mão a Nissa.
— Fazer o quê? — grasnou a velha senhora e, sem aceitar a mão,
informou-lhe: — Irei na frente com Theodore. Estes velhos ossos ainda
podem dançar, mas encolher-me aí sobre o feno poderia danificar-me as
juntas.
Entre as risadas dos homens, a anciã subiu na parte dianteira da
carroça, deixando Linnea de frente para Rusty, que ainda tinha a mão
estendida para ela.
— Senhorita? — disse com seu sotaque miserável.
Que alternativa tinha a não ser aceitar?
Theodore observou os procedimentos com uma expressão ameaçadora,
notando que Bonner punha em jogo seu encanto e, com gestos fluidos como
manteiga derretida, puxava-a pela cintura e, erguendo-a, depositava-a sobre a
palha. Continuando, com um salto de suas longas pernas, demonstrou sua
agilidade. O fazendeiro franziu o cenho enquanto Bonner se colocou o mais
perto que podia de Linnea.
Theodore se voltou.
— Arre!
Não tinha por que se importar se Rusty Bonner paquerava qualquer
mulher; olhou de soslaio para a mãe. Mas a pequena senhorita seria um fruto
fácil de colher para um tipo que se movia com tanta fluidez quanto Bonner.
Ela não tinha o pai por perto para cuidar dela: assim, era responsabilidade
sua. Bonner a jogaria sobre o feno mais rápido do que uma doninha salta no
pescoço de uma galinha, e ela não se daria conta do que ele pretendia até que
fosse muito tarde.
Durante o trajeto, Linnea sentiu que o quadril e a coxa de Rusty Bonner
se apertavam contra ela. Do outro lado da carroça, a ruidosa cozinheira
relatava uma história que descrevia o modo de cortar um peixe com os
dentes. Os homens riam estrondosamente. Mas, da direita, chegava-lhe a
ardente fúria de Kristian contra Bonner. Sentados com as costas apoiadas nos
lados da carroça, tinham os joelhos levantados. Linnea tentou mover um par
de centímetros para se afastar de Bonner, mas se encostou em Kristian, e essa
não era a solução. Ficou no centro o melhor que pôde, embora Bonner
permitisse que sua perna se sacudisse, apertando a dela. Linnea via que era o
único dos homens que vestia uma calça de vaqueiro tão justa que resultava
indecente. Aquilo contribuía para lhe dar uma aparência fibrosa e sublinhava
a sexualidade contida que a fazia se sentir incômoda e um pouco assustada.
Percebeu que ele a observava por baixo do chapéu de vaqueiro, com os
ombros caídos em pose indolente, os joelhos separados e as mãos
balançando-se, preguiçosas, contra a virilha.
Recordou com clareza as palavras de Nissa: — Com sujeitos deste tipo,
não é preciso que uma mulher faça algo.
Quando chegaram ao barracão de Oscar, Linnea sentia o estômago
saltar. Rusty se precipitou para ajudá-la a descer. Mas, assim que a depositou
no chão, afastou-se corretamente e tocou o chapéu em gesto de saudação.
— Peço-lhe que não se esqueça de me reservar uma dança, senhora.
Quando Linnea não teve mais que ver esse sorriso enervante, sentiu um
grande alívio.
Theodore se ocupou dos cavalos e entrou no barracão no mesmo
momento em que Linnea subia a escada para o celeiro. Observou com
dissimulação que Rusty Bonner ficara para trás, olhando-lhe as saias e os
tornozelos enquanto a moça subia. Theodore apertou as mãos sob as axilas e
esperou até que Bonner também tivesse subido, subiu atrás dele e procurou
imediatamente John.
— Tenho que falar com você — puxou-o pelo braço e o separou da
multidão. — Mantenha-se vigiando Bonner.
— Bonner? — repetiu John.
— Acredito que ele esteja interessado na pequena senhorita.
— A pequena senhorita? — repetiu John.
— Ela é muito jovem, John. Não tem nada que ver com um homem
como esse.
O semblante de John era um livro aberto; quando estava aborrecido,
podia se notar isso com clareza.
— Ela está bem? — ele perguntou a Theodore.
— Sim, está bem. Mas se o vir perseguindo-a, avise-me, sim?
Talvez John não fosse inteligente, mas quando se tratava de lealdade,
era inamovível. Gostava de Linnea e amava Theodore e nada do que Rusty
Bonner tentasse escaparia ao seu vigilante olhar.
A banda já estava afinando os instrumentos: violino, acordeão e gaita, e
pouco depois a música soou a todo vapor. Para alívio de Theodore, o
primeiro que convidou Linnea para dançar foi seu sobrinho, Bill. Viu que o
rosto da moça se iluminava enquanto conversavam por alguns momentos.
Olá de novo — disse Bill.
— Olá.
— Quer dançar?
Linnea seguiu com a vista um casal que deslizava corretamente.
— Não sou muito boa, terá que me ensinar.
Sorrindo, o rapaz a puxou pela mão.
— Venha. Esta dança é fácil.
Quando já estavam na pista, acrescentou: — Duvidei de que você
viesse.
— A que outro lugar eu poderia ir? Todos estão aqui — Linnea olhou
ao redor. — Como se inteiraram de onde seria o baile?
— Correu-se o boato. Como tem passado?
— Ocupada. Ui! — tropeçou no pé dele e perdeu o ritmo. — Oh... sinto
muito — gaguejou, sentindo-se tola e enrubescendo ao ver que Theodore
estava parado ao lado, observando-a. Baixou os olhos e olhou para os pés. —
Não me ensinaram a dançar passos difíceis como estes.
— Então eu lhe ensinarei — disse Bill, muito feliz.
O rapaz suavizou os giros, diminuiu os passos e lhe deu tempo para se
adaptar ao seu estilo.
— Se for verdade o que diz Kristian, terei muito trabalho para me pôr
em dia. Ele disse que alguns de vocês começam aos treze anos.
— Em meu caso, quatorze. Mas não se preocupe, está dançando muito
bem.
Por um tempo, Linnea observou os pés de ambos, e depois Bill lhe deu
uma sacudida brincalhona.
— Se relaxar, desfrutará mais.
Tinha razão. Quando a dança terminou, seus pés riscavam os passos
com mais fluidez e, terminada a música, ela sorriu e aplaudiu entusiasmada.
— Oh, que divertido é isto!
— E que tal se dançarmos a próxima? — propôs Bill, sorrindo
aprovador.
Bill era um bailarino ágil e destro. Logo Linnea ria e desfrutava do
baile com ele.
Na metade da segunda dança, ao girar nos braços do rapaz, ela se
deparou com Theodore, que, a menos de dois metros dançava com a
cozinheira ruiva. Linnea sabia que tinha ficado com a boca aberta, mas não
pôde fechá-la. Quem teria imaginado que Theodore era capaz de dançar
assim? Parecia flutuar sobre os calcanhares como um navio bem equilibrado,
levando... como se chamava aquela... Isabelle... Isabelle Lawler. Guiava
Isabelle Lawler com uma graça que transformava os dois. Ao surpreender
Linnea olhando-os, cumprimentou-a com a cabeça, sorridente, e se afastou
girando enquanto ela fixava os olhos nos suspensórios cruzados sobre os
ombros incrivelmente largos, com o braço sardento de Isabelle Lawler
estendido sobre eles. Um instante mais e se perderam entre as pessoas.
Seguiu-os com a vista até que só pôde captar uma sombra do braço direito
estendido de Theodore, com a manga branca enrolada até acima do cotovelo.
Depois isso também desapareceu.
A música terminou. Em seguida, Linnea dançou com um desconhecido
chamado Kenneth, que tinha uns quarenta anos e uma barriga como um
caldeirão. Depois com Trigg, que afirmou que sua esposa só dançava músicas
alternadas porque se fatigava com facilidade. Linnea viu Clara olhando e a
saudou com um aceno. Clara respondeu à saudação e elas trocaram sorrisos
carinhosos. Tinha intenção de falar com ela quando terminasse a dança, mas
apareceu Kristian, secando as palmas nas coxas enquanto a convidava para
dançar. Deus! Seria correto que a professora dançasse com um de seus
alunos? Olhou para Clara em busca de ajuda, e ela encolheu os ombros,
elevando as mãos, e lhe sorriu.
Ao dançar com Kristian, Linnea se convenceu de que aqueles
noruegueses nasciam com senso de ritmo. Até ele, que só tinha um ano de
experiência, a fazia sentir-se como uma desajeitada principiante.
— Caramba, Kristian, é tão bom bailarino quanto seu pai!
— Ah, já dançou com ele?
— Não! Não... quero dizer que vejo que ele é muito bom.
Nesse momento, Theodore estava dançando com uma mulher de dentes
salientes, rindo de algo que ela lhe dizia, e a moça sentiu uma leve pontada de
ciúmes. Então passou outro casal, distraindo-a.
— Oh, olhe a Nissa!
Seguiram Nissa, que girava nos braços de John.
— Por Deus, John também!
Kristian rompeu em gargalhadas ante o assombro de Linnea.
— Num... — desta vez, ele mesmo se interrompeu. — Não há grande
coisa para se fazer aqui durante o inverno, além de dançar e jogar cartas.
Somos muito bons nas duas coisas.
À medida que o baile avançava, Linnea fazia par com todos os varões
Westgaard, um após o outro, com seus peões, com o violinista (que teve um
descanso), com vários vizinhos que não tinha conhecido e até com o chefe do
conselho escolar, Oscar Knutson. Todos dançavam bem, mas nenhum como
Theodore, e ela morria de vontade de dançar com ele. Mas ele tirou para
dançar todas as mulheres, menos ela.
Uma vez, em um intervalo entre duas peças, eles quase se chocaram.
— Está passando bem? — perguntou-lhe Theodore.
— Maravilhosamente! — respondeu Linnea, forçando um sorriso.
Se estava passando maravilhosamente bem, por que tinha que forçar o
sorriso? Dançou com John, quase tão bom bailarino quanto Theodore, mas
nem tanto; depois, mais duas vezes com Bill, e com Raymond. Estava com
Clara, enquanto a cozinheira ruiva estava outra vez na pista com Theodore.
Seus olhos se encontraram com os dele em meio ao agitado celeiro, e
ela lhe lançou o que supunha ser um inocente sorriso de convite, mas ele se
limitou a fazer girar sua companheira em sentido contrário.
Maldito seja, Theodore, aproxime-se aqui e me convide!
Quando acabou a dança, com efeito, ele caminhou em direção a ela,
fazendo saltar seu coração, mas foi até Clara e a conduziu à pista de dança.
Depois tirou outra vez a mulher dos dentes proeminentes. Essa mulher é
capaz de comer milho através de uma cerca! Acaso pensa me ignorar toda a
noite?
Enquanto fervia de fúria, apareceu diante dela Rusty Bonner,
inclinando o chapéu e lhe dedicando seu sorriso enviesado com as comissuras
dos olhos para baixo.
— Dança comigo, senhorita?
Linnea tinha estado sem dançar durante duas músicas, e Theodore a
ignorava de maneira evidente. Olhe isto, Theodore!
— Sim. Parece-me divertido.
Quando a atraiu para seus braços, Rusty aproximou-se dela mais que
outros e, em vez de ater-se ao passo básico da valsa, ia de um pé ao outro em
um lânguido movimento de balanço que lhe sacudia brandamente o braço
flexionando a cintura e com os cotovelos levantados de modo tal que Linnea
se sentia no ar. Esse homem era diferente dos outros. Até os ombros pareciam
diferentes, embainhados em uma moderna jaqueta de vaqueiro que fazia par
com as calças. Por baixo, usava uma camisa xadrez vermelha e branca e um
lenço vermelho amarrado no pescoço. Quando a olhou nos olhos, seu rosto
estava tão perto do dela que Linnea podia contar os pelos de seus cílios.
Tinha um modo de entreabrir as pálpebras, que fazia com que o estômago se
lhe embrulhasse. Dedicou-lhe um sorriso trêmulo, e Rusty mudou a posição
dos braços, fechando as mãos na parte baixa das costas de Linnea. Ela sentiu
que a fivela de prata lhe penetrava a cintura e murchou a barriga ao máximo.
— Está desfrutando do baile, Senhorita Brandonberg? — perguntou-
lhe, com seu tom lânguido.
Linnea teve a sensação de que zombava dela.
— Sim, sim.
— Você dança muito bem.
— Não, não é certo. As outras mulheres o fazem muito melhor que eu.
— Para falar a verdade, não as observei muito; assim, na realidade, não
sei.
— Senhor Bonner...
— Rusty — esboçou um sorriso suave e pressionou as coxas da moça
contra as dele. — Qual é seu nome de batismo?
— Linnea.
— LIN-NE-A — fê-lo rodar com a língua sílaba a sílaba, como se o
saboreando. — É lindo!
Tudo o que rodeava aquele indivíduo a fazia sentir-se como se alguém
lhe tivesse metido um dedo no oco da garganta, e pensou: Theodore, eu o
amaldiçoo por me obrigar a fazer isto!
Surpreendeu-se quando se ouviu falar com fluidez.
— Rusty, você é da região?
— Não, senhorita. Vim de Montana, e antes passei por Idaho e
Oklahoma.
— Caramba... isso sim é viajar!
Rusty riu, exibindo por um instante uns dentes retos e brancos, jogando
a cabeça para trás e depois deixando escorregar seu olhar indolente outra vez
pelo rosto de Linnea.
— O que mais faço é participar de rodeios. É uma vida vagabunda,
Linnea.
— E o que faz aqui, na colheita de trigo?
— A temporada de rodeio terminou. E necessito de uma cama seca e de
três refeições por dia.
De repente, compreendeu por que possuía esse corpo tão magro: com a
vida que levava, era quase certo que em muitas ocasiões não tivesse essas três
refeições. Desconfiou que ele devia dançar assim com mulheres
desconhecidas em cada um dos estados do Oeste da União.
— Diga-me, você ganha nesses rodeios?
— Sim, senhorita — ele falava em um sotaque cada vez mais lento,
rouco e provocador, enquanto se aproximava mais, de modo que os seios da
moça roçassem sua jaqueta. — Quando eu a soltar, olhe a fivela de meu
cinturão. Ganhei montando novilhos em El Paso, na última temporada.
Linnea quis se afastar, mas não conseguiu; estava tão perto que teve
que jogar a cabeça para trás para lhe ver o rosto.
— Viu alguma vez um homem montar novilhos? — perguntou.
Linnea engoliu e tentou respirar normalmente.
— N... não.
— Alguma vez viu um homem montar em algo?
— S... só cavalos — gaguejou.
— Selvagens?
Negou com a cabeça com movimentos nervosos, enquanto o sujeito
seguia derramando sobre ela aquele sorriso sensual, muito próximo.
— N... não. Só cavalos já domados.
— Viu a fivela de meu cinturão?
Linnea sentiu um nó na garganta e seu rosto ficou da mesma cor da
camisa do homem. Os braços eram fortes e autoritários; os ombros, duros
como nogueira. Os dedos lhe percorriam as costas, disparando tremores de
advertência pelas coxas. Rusty lançou uma risada gutural, rouca, e acomodou
o queixo contra a têmpora dela... os seios contra seu peito... a cabeça de
chifres longos do cinturão contra o estômago da jovem.
Theodore, por favor, venha me tirar daqui!
Sem se precipitar, Rusty jogou os ombros para trás e lhe sorriu,
olhando-a nos olhos, deixando os quadris acomodados nos dela.
— Tem as faces todas rosadas. Está com calor?
— Um pouco — conseguiu dizer, em voz fraca.
— Lá fora está mais fresco. Quer comprová-lo? — perguntou.
— Não acredito que...
— Não acredita? Siga-me. Contaremos as estrelas.
Embora não quisesse, Theodore estava rindo de novo com Isabelle; e,
antes que Linnea pudesse inventar uma desculpa, Rusty a tinha puxado até a
escada. Desceu primeiro e depois levantou a vista.
— Ei! Venha.
Olhando para baixo, viu-lhe o rosto e se perguntou se Theodore sentiria
falta se ela desaparecesse. E se perguntaria onde ela tinha estado.
Que doce seria poder lhe dizer que estivera lá fora, contemplando as
estrelas com Rusty Bonner. Rusty era lindo e ela tinha uma chance de deixar
Theodore com ciúmes. Uma tênue chance, pensou ela.
— Ei, vem ou não?
A um metro do chão, Linnea sentiu que Rusty a puxava pela cintura e a
descia. Lançou um grito de surpresa quando se sentiu suspensa pelas mãos
fortes. Continuando, apoiou-a contra seu quadril, passou-lhe um braço pelo
ombro e a levou para a porta.
Lá fora, a lua parecia sorrir tão intensamente que fazia empalidecer as
estrelas. Era agradável sentir o ar fresco contra as faces acaloradas.
— Oh, senti calor dançando — suspirou, cobrindo o rosto com as
palmas e afastando o cabelo para trás.
— Acreditei que havia dito que era principiante.
— Oh, sou. O que acontece é que você... bom, resultou-me fácil segui-
lo.
— Que bom! Então me siga um pouco mais — ele agarrou a mão e a
puxou, levando-a para a lateral do barracão, onde não os iluminaria a lua. Ele
se deteve à sombra do edifício, agarrou-a pela parte superior dos braços e a
virou para ele, balançando-a um pouco.
— Então... não dançou muito. E nunca viu um homem montar um touro
ou um cavalo selvagem. Diga-me, Senhorita Linnea Brandonberg, pequena
professora de escola rural... alguma vez a beijaram?
— Cl... claro que me beijaram, mais de uma vez! — mentiu, excitada
diante da perspectiva de descobrir, finalmente, como se beijava de verdade.
— Nesse caso, suponho que deve fazê-lo muito bem.
— Suponho — respondeu Linnea, tratando de parecer segura.
— Demonstre-me, então.
Seu coração deu um salto e sensações desconhecidas e proibidas
percorreram seu corpo como um golpe quando o homem inclinou lentamente
a cabeça e a boca dele tocou a dela. Era morna, firme e nada desagradável.
Pousou com leveza sobre seus lábios fechados durante certo tempo, até que
Rusty se afastou só uns milímetros. Linnea abriu os olhos e a única coisa que
viu foi a sombra negra do rosto e a parte de baixo da aba do chapéu.
— Mais de uma vez? — murmurou zombador, fazendo com que
corasse.
Uma vez mais, cobriu a boca de Linnea com a sua e agora a ponta
quente e úmida de sua língua a roçou. O que ele estava fazendo? Oh, por
piedade, ele a estava lambendo? O choque a percorreu até os pés. Afastou-se
para trás de maneira instintiva, mas o homem lhe segurou a cabeça com as
mãos, sobre as orelhas, e entrelaçou os dedos em seu cabelo fazendo-a ficar
quase nas pontas dos pés. Passou a língua por todo o contorno de seus lábios
até deixá-los úmidos e escorregadios. Linnea o empurrou pelo peito, mas
Rusty abandonou sua boca apenas tempo suficiente para lhe ordenar: — Abre
os lábios... vamos, ensinar-te-ei mais...
— Não... — tratou de discutir, mas a língua, imperiosa, achou a união
dos lábios e se meteu dentro.
Linnea lutou, mas ele a esmagou contra a fria parede de pedra do
barracão e lhe apertou um seio para que não se movesse. Empurrou-lhe a
mão, mas era resistente como uma cerca de arame nova, e o pânico se
apoderou dela, ao mesmo tempo em que Rusty Bonner lhe oprimia sem
cessar o peito, e ela gemia contra a língua que a invadia, apertada contra a
pedra que lhe fazia doer o crânio.
— Basta... — tratou de dizer, e a boca do homem sufocou uma vez
mais a súplica. Lutou de novo e conseguiu liberar a boca. — Basta! O que
está fazendo? — gritou.
Rusty lhe agarrou os cotovelos, apertou-os com força contra a parede e
balançou seus quadris contra os dela até fazê-la sentir-se suja e mais
assustada do que nunca na vida. Debateu-se como louca para se soltar, mas
para Rusty Bonner, que tinha domado cavalos selvagens e touros, uma miúda
professora de escola não era nada.
— Disse que já a tinham beijado mais de uma vez...
Mortificada pelo que lhe faziam os quadris do homem, sentiu que as
lágrimas lhe queimavam os olhos.
— Menti... Por favor, me solte.
Mas ela não pôde deslocar as mãos duras, de tendões fortes. —
Calma... calma. Verá, vai gostar disto…
Sufocou um soluço enquanto as mãos do homem apertavam seus seios,
enchendo-se com eles e quase a levantando no ar.
Nisso, ouviu a voz de Theodore.
— Senhorita Brandonberg, é você?
A pressão sobre seus seios desapareceu, e os calcanhares de Linnea
voltaram a pousar. O alívio foi tão grande que ela teve vontade de chorar e de
se refugiar contra o corpo sólido de Theodore. Ao mesmo tempo, a vergonha
a fez querer desaparecer da face da terra.
— S… sim, Theodore, sou e…eu.
— O que está fazendo aqui fora?
A voz de Rusty respondeu, imperturbável, ao mesmo tempo em que
dava a volta, indolente: — Só estamos conversando a respeito de montar
touros no Texas. Alguma objeção, Senhor Westgaard?
De repente, Theodore se jogou para a frente, agarrou Linnea pela mão e
a puxou com tanta força que a moça acreditou que ele lhe tinha deslocado o
ombro.
— Pequena tola! Como lhe ocorreu vir aqui para fora com um tipo
como este? Não lhe importa o que vão pensar as pessoas?
— Vamos, vamos, um minuto, Westgaard! — falou lentamente o
texano.
Theodore girou para Bonner, ainda sem soltar a mão de Linnea.
— Ela tem dezoito anos, Bonner! Por que não procura alguém de sua
idade?
— Ela não se negou — replicou Bonner, com o mesmo tom indolente.
— Ah, não? Não é o que a mim me parece. E se ela não se negou, eu
nego. Terminou por aqui, Bonner. Recolha seu pagamento pela manhã, não
quero voltar a vê-lo.
Bonner ergueu os ombros e avançou para passar junto a Theodore e
voltar para o baile.
— E não entre outra vez ali. Não quero que nenhum dos presentes
suspeite que ela esteve com você — girou sobre os calcanhares, arrastou
Linnea atrás de si e lhe ordenou: — Vamos.
— Theodore, me solte — ela tentou se soltar, mas as passadas furiosas
reverberaram em seu braço e lhe sacudiram a cabeça.
— Só depois que tiver aprendido a ter um pouco de bom senso; por ora,
venha comigo. Voltaremos para o salão e os faremos acreditar que você
esteve aqui fora conversando comigo e se fizer algo que os faça acreditar em
outra coisa, que Deus me ampare, eu a levarei ao armazém de ferramentas de
Oscar e lhe sacudirei o traseiro, que é o que faria o seu próprio pai se
estivesse aqui!
— Theodore Westgaard, me solte neste mesmo instante!
Indignada por esse tratamento digno de se aplicar a uma menina
malcriada, Linnea tentou separar o polegar dele de sua mão, mas foi inútil.
Theodore atravessou em direção ao barracão e lhe deu um puxão que quase
lhe esmagou o nariz contra o terceiro degrau da escada.
— E agora suba ali e se comporte como se não estivesse a ponto de
explodir em lágrimas.
Furiosa, ela subiu a escada, enrolando-se com as saias e praguejando
em voz baixa. A única coisa que conseguira foi trocar um bruto por outro.
Que direito tinha Theodore Westgaard de lhe dar ordens?
Ao chegarem, agarrou-a pelo cotovelo com tanta força que lhe deixou
uma marca, empurrou-a para a pista, colocou-a de frente para ele e iniciou
uma valsa sem sequer lhe pedir para dançar. Linnea se moveu como uma
bengala, e Theodore estampou no rosto um sorriso como de cera e comentou
entre dentes: — Move-se como um espantalho. Finja que está se divertindo.
— Linnea relaxou, tratou de seguir os passos e compôs um sorriso.
— Não posso, Theodore. Deixe-me ir, por favor.
— Dançará, pequena senhorita. E sigamos.
Linnea desejara dançar com ele, mas não daquele modo, tinha o
estômago embrulhado. Nos olhos, um brilho perigoso. A vontade de chorar a
sufocava. Sentia nas costas a mão de Theodore, rígida de fúria, enquanto a
outra lhe apertava os dedos com contida exasperação. Mas os pés de ambos
se moviam ao ritmo da música, e as saias revoavam ao compasso dos giros
que lhe imprimia, ambos fingindo que estavam maravilhosamente bem.
Linnea aguentou tudo o que pôde, mas, quando o nó na garganta foi
muito grande para contê-lo, quando as lágrimas ameaçavam transbordar,
rogou-lhe com voz trêmula: — Por favor, Theodore, por favor, deixe-me ir.
Se não começarei a chorar e nós dois ficaremos muito envergonhados. Por
favor...
Sem acrescentar outra palavra, ele a fez girar pelo cotovelo e a
conduziu diretamente para onde Nissa estava.
— Linnea não se sente bem. Vou levá-la para casa, mas retornarei.
Um momento depois, Linnea estava outra vez ao pé da escada,
atravessando o barracão com Theodore grudado em seus calcanhares. Andou
o mais rápido que pôde em direção à porta de saída, quase correndo, e
quando estava do lado de fora, escondeu o rosto entre as mãos e um soluço
brotou de sua garganta. Vacilante, Theodore parou atrás, ainda zangado, mas
comovido pelas lágrimas mais do que tinha desejado. Por fim, tocou-lhe o
ombro, mas ela se afastou, escondendo o rosto em um braço e se apoiando
contra a parede do barracão.
— Linnea, vamos sair daqui.
Ela se sentia muito desventurada para perceber que ele a tinha chamado
por seu nome pela primeira vez. Conduziu-a ainda soluçando para um grupo
de álamos, onde esperavam as carroças. Com a cabeça vergada, Linnea
continuava chorando, e Theodore continha o desejo de abraçá-la e de
consolá-la.
— Pela manhã ele partirá. Já não tem nada a temer.
— Oh, Th... Theodore, é... que estou tão en... envergonhada...
O homem afundou com força as mãos nos bolsos.
— É jovem. Não acredito que soubesse o que estava fazendo.
Ela levantou o rosto e Theodore viu os rastros prateados das lágrimas
em seu lindo rosto e percebeu o tom suplicante da voz.
— N... não. Oh, Theodore, de verdade, não sabia.
Theodore sentiu como se uma cinta lhe espremesse o coração. Tremeu
por inteiro e sentiu que a fúria se dissipava.
— Acredito em você, pequena. Mas deve tomar cuidado com os
desconhecidos. Seus pais não ensinaram isso a você?
— S... sim. — deixou cair a cabeça, e o cabelo lhe cobriu o rosto. —
Estou... sinto muito, Theodore. Ele disse que s... só sairíamos para nos re...
refrescarmos, mas de... depois me beijou e... a única coisa que eu queria era
saber como era isso — um soluço lhe ergueu os ombros e lhe sacudiu a
cabeça. — P... por isso...
Ao recordar o que se seguiu, cobriu o rosto com as mãos e apoiou a
testa contra o peito do homem. Theodore tirou as mãos dos bolsos e lhe tocou
os ombros.
— Shh... cale-se, pequena. Não tem por que chorar. Aprendeu uma
lição.
Linnea resmungou contra seu peito: — Mas to... todos saberão, e eu
sou a professora da escola. Supõe-se que devo dar um bom exemplo.
— Ninguém saberá. Pare de chorar — acariciou-lhe os braços com os
polegares, porém manteve-se ereto, com o peito inclinado para trás, tratando
de manter uma distância entre os dois. A cada soluço, as mãos de Linnea lhe
golpeavam o peito. Em sua camisa, uma mancha úmida se formou e, quando
lhe molhou a pele, a coragem de Theodore se evaporou. Ele sufocou uma
risada.
— Tenho pouca prática nisso de consolar mulheres que choram, sabe?
Por trás da cortina de cabelo veio uma suave gargalhada sufocada:
envergonhada, Linnea tratou de secar o rosto.
Meu rosto está um desastre. Tem um lenço?
Theodore retirou um do bolso traseiro, colocou-o na mão dela e deu um
passo para trás. Depois que secou o rosto, ela se sentiu mais tranquila. Por
fim, Linnea levantou o rosto. À luz salpicada da lua, seus olhos e lábios
estavam inchados e o cabelo, revolto. Theodore pensou no canalha do
Bonner, imaginou sua boca e suas mãos sobre ela e sentiu ânsias assassinas.
Sem aviso, Linnea jogou os braços no pescoço de Theodore e apertou
sua face úmida contra a dele.
— Obrigada, Theodore — murmurou. — Nunca em minha vida me
senti tão feliz em ver alguém como quando você apareceu ali, junto ao
barracão.
O homem fechou os olhos. Sufocou um gemido e a estreitou com força
contra seu peito. A moça o segurou, muito apertado, abraçando-lhe o corpo.
As mãos de Theodore se apossaram das costas dela, que cheirava a
amêndoas, e o suave cabelo revolto apertava-o contra o queixo e os seios,
contra o coração palpitante. Ele enrijeceu e a afastou com suavidade.
— Venha, vou levá-la para casa.
Obediente, Linnea se afastou, mas cravou os olhos por um longo
momento no chão, entre os dois. Por fim, levantou a cabeça para encará-lo, e
a penumbra não conseguiu ocultar a grave expressão interrogativa de seu
olhar, antes até que falasse.
— Por que não me tirou para dançar?
Theodore pensou em uma resposta, mas não podia dizer a verdade.
— Dançou com todas menos comigo, e por isso saí com Rusty. Para
deixá-lo com ciúmes.
— Eu?
— Por que não me convidou? — insistiu Linnea.
— Dançamos, não é mesmo? — defendeu-se Theodore.
— Aquilo não foi dançar, foram duas pessoas chocando suas cabeças
— esperou, mas Theodore deu um passo para trás. — Está bem, então por
que me resgatou? — ela avançou um passo e o homem estendeu as mãos para
detê-la.
— Linnea — era uma advertência.
— Por quê?
— Você sabe por que, e não é bom para nenhum dos dois.
— Por que, Teddy? Diga-me por quê.
O nome o percorreu como um relâmpago de fogo.
— Linnea... — a única coisa que pretendia era estender as mãos para
detê-la.
— Por quê? — um murmúrio. Ela estava tão perto que ele podia sentir
o perfume das amêndoas em sua pele, mostrava-se tão veemente que podia
sentir o estremecimento de seus braços sob as mãos. Ela era tão inocente que,
ele sabia, inclusive enquanto suas mãos se fechavam e a erguiam, esse seria
um dos maiores erros que cometeria.
— Porque...
Pousou os lábios na boca que o esperava, e seu coração se voltou louco
dentro do peito. Os braços de Linnea se ergueram e seus corpos se fundiram,
íntimos, quentes e firmes. Ainda é uma menina. Nem sequer sabe beijar. Mas
os seios jovens se esmagavam contra ele, os dedos se enlaçavam em seu
pescoço, os doces lábios fechados, inexperientes, eram seus no momento.
Deixou-se invadir pelas sensações e quando, por fim, o bom senso se
fortaleceu, encontrou forças para afastá-la. Duas respirações entrecortadas
subiram na noite outonal.
— Não f... foi assim quando me beijou Rusty Bonner.
— Shh. Não.
— Por favor, me beije outra vez, Teddy.
— Não!
— Mas...
— Eu disse que não! Não deveria tê-lo feito.
— Por quê?
— Tem algumas horas de seu tempo? Dar-lhe-ei toda uma lista —
pegou-a pelo cotovelo e a fez girar ao redor da carroça. — Agora suba aí —
ordenou. Mas sua voz estremeceu de emoção.
— Theodore...
— Não. Por favor, limite-se a subir na carroça.
Não perceberam que esqueceram os casacos até que estavam no meio
do caminho, em meio à noite gelada. Linnea tremeu e se abraçou.
Theodore baixou as mangas da camisa e abotoou os punhos.
— Quer que voltemos para buscar seu casaco?
— Não, me leve para casa.
E, embora o fizesse sofrer vê-la se encolher, tremendo, quando poderia
havê-la rodeado com um braço e protegê-la do frio e do mundo, não o fez.
Por tudo o que era sagrado, não o fez!
CAPÍTULO 13
O BAILE NA ESCOLA

Na manhã seguinte, Nissa ficou na cama até mais tarde do que de


costume, e Theodore subiu ao piso superior para despertar Kristian justo
quando Linnea se dispunha a descer para buscar água. Os dois se detiveram
ao mesmo tempo. Theodore ergueu os olhos e o coração se acelerou. Ela
baixou os olhos e o mesmo lhe aconteceu. Nesse instante, eles reviveram o
impacto do único beijo que tinham compartilhado na noite passada, e nenhum
dos dois soube o que dizer. Ficaram se olhando por um longo momento.
Linnea estava descalça e segurava a gola do robe. Theodore notou que
ela acabara de sair da cama e o coração se acelerou mais ainda diante desse
pensamento.
Ele vestia a grossa jaqueta de lã, tinha o nariz rosado e ainda não havia
se barbeado. Linnea deduziu que havia saído para fazer as tarefas matinais e
vê-lo assim, todo desalinhado e másculo, impulsionou-a a apertar os dedos
dos pés na borda do degrau.
De repente, os dois se deram conta de que estavam de pé na estreita
escada, olhando-se boquiabertos como se tivessem se convertido em estátuas
de sal. Linnea foi a primeira a recuperar o uso da voz.
— Bom dia — sussurrou.
— Bom dia — sussurrou ele, em resposta.
— Já esteve lá fora?
— Fiz as tarefas sozinho para deixar Kristian dormir.
— Ah.
Que tolice. Não podiam passar um junto do outro nas escadas sem
ficarem nervosos?
— Como se sente? — perguntou.
— Cansada. Não dormi muito bem ontem à noite. E como está você?
— Um pouco lento — perguntou-se o que a teria impedido de dormir.
Teria ficado como ele, durante horas pensando naquele beijo?
— Ontem à noite chegamos tarde. E me parece que mamãe e Kristian
estão do mesmo jeito. Mas será melhor que despertem, pois, do contrário,
ficará tarde para ir à igreja.
Quando ele seguiu subindo e ela descendo, os corações de ambos
pulsavam mais forte. Quando finalmente passaram um junto ao outro,
asseguraram-se de que nem um fio de suas roupas se roçasse. Ao chegar ao
último degrau, Theodore disse, em voz baixa: — Linnea.
A moça girou e ergueu a vista. Ocorreu-lhe que jamais se cansaria de
ouvi-lo pronunciar seu nome de batismo nesse tom. Theodore tinha uma das
mãos na maçaneta da porta de Kristian. Ela tratou de imaginar o que
aconteceria se ele algum dia chegasse a sua porta assim e a chamasse, como
tinha feito há instantes.
— Sim?
— Bonner partiu.
Mas Bonner já era uma lembrança imprecisa para ela, eclipsado pelo
homem imponente que tinha diante de si. Sentia-se capaz de olhá-lo o dia
todo. Mas ele se virou, abriu a porta de Kristian e desapareceu dentro do
quarto, onde parou, cravando a vista em suas botas. Recordou à moça de que
ela estava descalça e de robe, com aspecto morno, desalinhado e sonolento.
Teve que apelar para todas as suas forças para passar junto a ela na escada
sem tocá-la. Exalou um pesado suspiro. Tão jovem... Na noite anterior,
quando a arrebatou dos braços de Bonner, tratou de se convencer de que agia
no lugar do pai, mas isso não era verdade. Toda sua fúria não tinha sido
provocada por um impulso de amparo paternal.
Oh, demônios, Westgaard, você não passa de um sujeito de meia-idade
que sente que está bebendo da fonte da juventude cada vez que ela está perto.
Esquece que é cinco anos mais velho que Rusty Bonner e que foi você quem
a aconselhou a escolher alguém da idade dele?
Suspirou e olhou para a cama. Kristian dormia tranquilamente. Tinha
os braços jogados para trás e a manta lhe deixava o peito meio descoberto,
onde já se via um bom tufo de pelos. Quando isso tinha acontecido? No mês
seguinte ele completaria dezessete anos. Já dezessete, e Theodore não podia
senão admitir que os dezessete de Kristian em relação aos dezoito de Linnea
causavam menos espanto que os dezesseis anos que a separavam dele.
Recordou-se da insólita franqueza com que o filho lhe confessou o que
sentia pela moça, e sentiu o estranho impulso de se sentar na borda da cama e
lhe confessar que na noite passada a tinha beijado, e lhe pedir para que o
perdoasse. Culpa. Fazia só um mês que ela estava ali e já o fazia se sentir
culpado. Era uma estupidez. Ou não? Kristian tinha se interessado por ela
antes e confiou o suficiente em seu pai para lhe confessar o que sentia.
Avaliou as possíveis consequências se o filho descobrisse o que acontecera
na noite anterior. Senhor, e se isso acontecesse e as pessoas começassem a se
perguntar o que estaria se passando ali, para que o pai e o filho desejassem a
mesma moça? Não se converteria isso em uma confusão tremenda?
Westgaard, se começar algo com ela, se meterá em uma boa confusão,
pensou. Ela é muito jovem para você, sabe disso, o modo como seu filho a
deseja... comporte-se como alguém de sua idade.
Na noite seguinte, quem se apresentou à porta senão Bill Westgaard,
todo arrumado e penteado com brilhantina? Os homens já tinham retornado
do campo e já se haviam retirado os pratos do jantar quando bateram à porta e
Kristian foi abrir. Quando Bill entrou na cozinha, eles supuseram que era só
uma visita familiar. Sentaram-se ao redor da mesa, Nissa serviu café e bolo
de tâmaras e perguntou por Ulmer e Helen e o resto da família. Bill os
brindou com um atualizado relatório, enquanto dava conta do lanche.
Falaram a respeito da guerra, a lei de serviço militar do presidente
Wilson, e de como discutia o povoado norte-americano por todos os lados.
Poucos acreditavam que a nação pudesse alistar uma força capaz de ser
levada para o campo de batalha na França a tempo para impedir um desastre
aliado, e Theodore estava de acordo com essa postura. Bill, em troca,
argumentava que já que os exércitos alemães tinham levado a Rússia à beira
do colapso, e que as forças invasoras alemãs e austríacas infligiam derrotas
terminantes aos italianos na Batalha de Caporetto, os americanos tinham que
respaldar os esforços de Wilson de forma total.
Os olhos de Linnea se dilataram ao comprovar até que ponto entendiam
o que acontecia do outro lado do mar. Até Kristian participou da discussão,
demonstrando um vivo interesse no tema dos aviões e nas batalhas que
tinham lugar no ar. Quando se esgotou o assunto, passaram a falar das
armadilhas que se colocavam no inverno, de uma raposa que esteve matando
galinhas na região e das possibilidades de que nevasse cedo. Esgotaram uma
série de temas impessoais, até que Bill anunciou: — Trouxe a carroça. Pensei
que gostaria de dar um passeio comigo, Linnea.
Fez-se um silêncio incômodo. Linnea procurou o olhar de Theodore e,
por um instante, viu nele assombro e desaprovação, sentimentos que ele se
apressou em apagar. O que podia dizer?
— Um passeio. Oh... bom...
— Poderíamos ir ao longo do Holman’s Bridge. Junto ao rio é muito
agradável, quando há lua fica maravilhoso.
— Está fazendo frio — esquivou-se Linnea.
— Trouxe uma manta para seus joelhos — disse o esperançoso Bill.
Linnea voltou a olhar para Theodore, que cuidou de adotar uma expressão
neutra, mas tinha os nódulos brancos apoiados sobre o ventre.
Nissa disse: — Claro, vocês são jovens, vão. Saiam por um momento.
— O que me diz, Linnea? — insistiu Bill.
E o que ela podia dizer?
— Parece maravilhoso. Irei buscar meu casaco.
Andaram na noite clara e fresca para o Holman’s Bridge e foram
contando as tocas de ratos-almiscarados que tinham visto abaixo. Bill era
uma companhia agradável, cortês e de conversa fácil. Perguntou-lhe sobre
seus planos para o feriado de Natal, sobre a família, sobre o que pensava
fazer no verão seguinte. Ela lhe perguntou por seus planos para o futuro,
assombrou-se ao saber que ele pensava em se alistar no exército. A guerra,
que parecia tão remota, cada vez se aproximava mais. Embora fizesse pouco
que conhecia Bill, ele era um ser de carne e osso, que fazia parte da família
Westgaard. E pensava em partir para lutar!
— Roosevelt disse que era nosso dever, que tínhamos que nos unir aos
Aliados e declarar guerra à Alemanha. Agora que já o fizemos, quero
participar.
Nessa região, as pessoas faziam mais caso de Roosevelt que de Wilson.
— Mas você está participando. É fazendeiro.
— Há muitos homens para cultivar trigo. Do que precisam é de mais
homens para lutar.
Linnea imaginou Bill em uma trincheira, com a baioneta na mão... ou
no coração... e estremeceu. Em um gesto cândido, passou o braço pelo dele, e
o moço riu, encantado.
— Bom, ainda não vou, Linnea. Ainda não disse aos meus pais.
— Queria que você jamais fosse. Não quero que vá qualquer um dos
que conheço.
Menos de uma hora depois, estavam de novo no atalho para a casa.
Quando os cavalos se detiveram, a mão enluvada de Bill cobriu a dela.
— No sábado que vem, à noite, haverá outro baile. Virá comigo?
— Eu...
O que devia responder? Sem perceber, estava comparando o nariz
arrebitado de Bill com o longo e magro de Theodore; os claros olhos verdes
com os castanhos de Theodore, o cabelo loiro com o castanho e curto do
outro. O nariz de Bill lhe pareceu muito infantil, os olhos muito claros, o
cabelo muito ondulado para seu gosto. Desde que Theodore tinha aparecido
em sua vida, nenhum outro podia se comparar a ele. Era com Theodore que
ela queria dançar, embora houvesse poucas esperanças de que o conseguisse.
— O que responde, Linnea?
Sentiu-se flagrada. Que desculpa lógica podia dar a Bill? Além disso,
possivelmente chegar com ele ao baile provocaria alguma reação em
Theodore, e então aceitou.
Bill a acompanhou até a casa com a atitude de quem não tem pressa de
chegar. Junto à porta dos fundos, puxou-a pelos ombros e lhe deu um beijo
despojado de exigências, embora bastante longo para que voassem faíscas, se
elas estivessem destinadas a voar. Nada. Não aconteceu absolutamente nada.
— Boa noite, Linnea.
— Boa noite, Bill.
— Nós nos vemos no sábado à noite.
— Sim. Obrigada pelo passeio.
Quando se foi, Linnea suspirou, comparando esse beijo com o de
Theodore. Não era justo que o beijo de um homem resmungão a excitasse
mais que o de um jovem varão interessado nela, como estava Bill.
Do lado de dentro, só tinham deixado sobre a mesa da cozinha uma
lamparina com o fogo baixo. Sentiu-se cansada e desanimada, cheia de
perguntas sem fim com respeito ao curso de sua vida. E o que se passava com
aqueles que lhe importavam? Será que Bill realmente partiria para a guerra?
Fariam o mesmo os outros jovens que ela conhecia? Abstraída, caminhou ao
redor da mesa e pousou as mãos no respaldo da cadeira de Theodore; Graças
a Deus, se chegasse a isso ele seria muito velho para ser convocado.
— Teve um passeio agradável?
O som da voz que chegou das sombras, do outro lado da cozinha,
acendeu-lhe o sangue. Voltando-se, Linnea viu Theodore apoiado contra a
entrada da sala, com os braços cruzados frouxamente. Vestia calças e
suspensórios negros sobre a parte superior da roupa que usava para dormir.
Preenchia a roupa como uma maçã preenchia sua casca, e a que usava
enfatizava cada vulto e depressão por baixo. Ele tinha as mangas enroladas
sobre o cotovelo e exibia grossos antebraços musculosos, sombreados de pelo
escuro. Mais pelo aparecia pela abertura da gola. Era muito mais homem que
Bill.
— Sim — respondeu, mantendo-se ereta e calma.
Theodore aguardou em silêncio, debatendo-se contra o ciúme,
ordenando a seu coração que se acalmasse. A luz da lamparina dava a sua
pele um matiz de pêssego. Os lábios de Linnea estavam entreabertos e em
seus olhos se via um desafio. Não fez o menor esforço para dissimular que
estava acariciando a cadeira em que estava acostumado a se sentar. Essa
maldita garota não sabia o que estava insinuando?
— Fomos até o rio.
Theodore sabia perfeitamente a que se propunha e se reclinou contra o
vão da porta com fingida indolência, como se dentro dele tudo não se
retorcesse, como se não estivesse se perguntando o que mais teriam feito.
— É muito bonito à noite.
Pedaço de norueguês obstinado! Não adivinha o que sente meu
coração?
— Convidou-me para ir ao baile no sábado à noite.
— Ah, é mesmo? E o que lhe respondeu?
— Aceitei.
Theodore cravou o olhar nela por um longo tempo, sem se mover. Bill
era jovem, tinha direito. E, entretanto, isso não era mais fácil de aceitar. Por
último, obrigou-se a afastar os olhos dela.
— Que bom — disse ele, afastando-se da porta. Linnea sentiu vontade
de chorar.
— S… sim — soltou um profundo suspiro e perguntou um pouco alto
demais, pois ele já saía: — Você irá?
Theodore fez como se pensasse por um longo momento antes de
responder: — Suponho que sim.
— Desta vez dançará comigo?
— É preferível que dance com os mais jovens.
Linnea levantou uma mão em gesto suplicante.
— Teddy, não...
— Boa noite, Linnea — girou rapidamente e a deixou ali, de pé na
cozinha.
Quando Theodore estava dentro do dormitório, sentou-se na beirada da
cama com a cabeça entre as mãos. O rosto de Linnea ardia diante dele, aquele
belo rosto jovem que não ocultava nada, com aqueles olhos azuis de longos
cílios, incapazes de esconder a verdade. Deitou-se para trás com os olhos
fechados e os braços abertos. Senhor. Senhor. Era ele quem tinha mais idade,
mais sabedoria. Deveria ser o responsável por mantê-la à distância dele. Mas
como?
Na semana que se seguiu, o tempo esfriou e os celeiros começaram a se
encher. Em uma quinta-feira, Oscar Knutson passou para informar a Linnea
que o baile do sábado seria na escola.
— Na escola?
— Aqui há fogareiro, e bastará que empilhemos as carteiras contra uma
parede. Faremos quase todos os bailes aqui até que os celeiros se esvaziem
outra vez e isso é só na primavera. Queria comunicar-lhe que diga às crianças
que esvaziem os tinteiros. Geralmente, Theodore acende o fogareiro e prepara
tudo.
Outra vez Theodore. Não lhe tinha dirigido nem duas palavras desde
que ela disse que iria ao baile com Bill, e a última coisa que ela queria era lhe
pedir que fosse à escola acender o fogareiro antes do baile.
— Tenho que lhe pedir?
— Não, já está tudo organizado.
Todos chegaram cedo: Bill e Linnea na carroça. Theodore, Nissa,
Kristian e os peões em outra, e se encarregaram de acender o fogo, encher a
cisterna de água e afastar as carteiras.
De noite, a escola tinha um aspecto acolhedor, com a escuridão
infiltrando-se pelas janelas e os lampiões acesos no interior. Linnea colocou a
mesa contra o quadro-negro para que a orquestra pudesse se instalar sobre o
assoalho. Nissa instalou uma mesa com lanches no vestíbulo, cortando um
bolo de limão, ao que se somariam outros bolos e sanduíches quando as
demais mulheres chegassem. Kristian pulverizou farinha de milho pelo chão.
Theodore acendeu o fogo e logo percorreu o salão com a cabeça inclinada,
observando a fileira de desenhos infantis pendurados da parede com uma
corda vermelha. Ouviu às suas costas uma voz tranquila: — Flor de cardo.
Olhando por sobre o ombro, viu que Linnea o observava com os braços
cruzados. Tinha posto um vestido azul-marinho na altura das panturrilhas e
não parecia mais velha que as meninas que tinham feito aqueles desenhos.
— Supus isso, mas em alguns casos é difícil sabê-lo.
Deu a volta para seguir observando as torpes obras de arte, com os
polegares enganchados nos broches dos suspensórios e um sorriso benévolo
nos lábios. Linnea acompanhou seu passeio ao longo da fila.
— Os do Halloween são um pouco melhores — ela apontou. —
Espigas de milho... Cabaças,[12] fantasmas...
Quanto mais avançavam, mais aumentava a qualidade dos trabalhos,
até que passaram de ser grandes desenhos a composições escritas com
pequenas ilustrações na parte de cima.
— Kristian não é muito bom desenhando, mas no que se refere à
redação tem grandes condições. Veja. Esta é dele — Linnea tirou um alfinete
reto de uma borda do papel e o entregou a Theodore, com expressão de
orgulho. — Leia e verá.
Lê-la? Boquiaberto, olhou primeiro para o papel e depois para a moça,
sem saber o que fazer. Como não lhe ocorreu nenhuma outra coisa, aceitou a
composição do filho com gestos rígidos e ficou olhando para ela, com Linnea
junto a ele, resplandecente de orgulho. Ficou ali por longos minutos,
sentindo-se ignorante. Perguntou-se o que diria o papel. A negra letra sobre a
página branca lhe evocou filas paralelas de tocos de cereal que se
sobressaíssem da neve fresca, mas além disso não significavam nada para ele.
Tinha trinta e quatro anos, e seu filho era mais inteligente que ele. E agora ela
saberia. Linnea inclinou a cabeça e assinalou uma parte da página.
— Vê o que escolheu para comentar? Não acredita que isso revela uma
mente curiosa?
Theodore sentiu que o sangue lhe amontoava no peito, subindo-lhe para
o pescoço. Chegou às orelhas e sentiu que estavam tão quentes que
queimariam o cabelo que as rodeava. Baixou a cabeça, tragou e cravou a vista
no papel, mortificado.
Alegre, a moça cruzou os antebraços às costas, esperando que ele
terminasse de ler e fizesse algum comentário. Como não o fez, ergueu o rosto
e lhe dedicou um sorriso vivaz: — Bom, não lhe parece maravilhoso?
Com uma só olhada, soube que algo de errado acontecia. Theodore
ficara vermelho e não levantava os olhos.
— Suponho que sim — por fim gaguejou.
— Bom, não parece... — Linnea passou o olhar do rosto do homem
para o papel, depois outra vez para o rosto, e suas palavras foram freando
como uma máquina que perdia o vapor. — ...muito impre... — sua mente
tropeçou em algo. Tirou uma das mãos de trás e tapou os lábios.
— Oh... — exalou, por fim compreendendo a verdade. — Oh,
Theodore... não sabe ler em inglês?
Estavam perto, tão perto que ela o ouviu engolir convulsivamente,
enquanto, com a unha do polegar, alisava a margem direita do papel. Negou
com a cabeça vergada.
Oh, meu querido, teimoso, Theodore. Por que não me disse isso?
Sentiu-se envergonhada por ele. Derreteu-lhe o coração e sentiu que ela
também corava. Estavam os dois envoltos em uma capa de desconforto que
os apertava sem piedade, ao mesmo tempo em que, às suas costas, a orquestra
tinha começado a afinar os instrumentos. Lentamente lhe devolveu o papel e
seus olhares se encontraram: Theodore estava ruborizado até a raiz do cabelo.
— M... mas e os hinos na igreja? — sussurrou Linnea.
— Conheço-os de cor. Já faz mais de trinta anos que os canto.
— E as frases na lousa?
Rememorou sua própria confusão naquele dia em que a surpreendeu
zombando dele com aqueles escandalosos insultos. Nesse momento, quando
era ele o surpreso, simpatizou com ele. O olhar de Theodore, firme, pousou
no dela.
— A única coisa que entendi foi que você queria bater em Theodore.
— Ah! — Linnea olhou as pontas dos sapatos. — Nesse dia, quando o
ouvi às minhas costas, acreditei que estivesse lendo todo o tempo o que eu
escrevia e quis morrer.
— Não tanto quanto o desejo agora.
Linnea elevou o rosto e seus olhos se encontraram, já dissipada parte da
mortificação. A orquestra começou a tocar a primeira peça.
— Theodore, eu não tinha ideia. Sério.
— Quando eu era menino, aqui não havia escola. Mamãe me ensinou
um pouco a ler em norueguês, mas ela nunca aprendeu inglês, de modo que
tampouco pôde ensinar a nenhum de nós.
— E por que não me disse? Não acha que eu acredito que seja menos
por isso.
— Depois que discutimos pela frequência de Kristian na escola? Não
podia lhe contar a respeito.
— Ah! — comentou Linnea, perspicaz — é por orgulho. — Esticou-se
e voltou a pendurar a folha de papel. — Os homens têm ideias muito
absurdas. É verdade que Kristian sabe um pouco mais que você do idioma
inglês. Mas você sabe muito mais que ele em muitas outras coisas — olhou
para ele, destacando a si mesma. — Nesse sentido, você sabe muito mais que
eu sobre muitas outras coisas. Na outra noite, quando estavam falando a
respeito da guerra... Bom, não tinha nem ideia de que soubesse tanto do que
está acontecendo lá. E sabe como arrumar moinhos de vento, instalar
armadilhas para ratos, e... ensinou-me sobre os cavalos, sobre como selá-lo...
— Selá-la — ele a corrigiu.
Seus olhos voltaram a se encontrar e algo de bom se passou entre eles.
Algo quente, rico, radiante, que continha a promessa de gozo. Nos lábios dos
dois se formaram sorrisos. Linnea fez uma reverência, inclinando a cintura.
— Aceito a correção, cavalheiro. Isso demonstra o que eu estava lhe
dizendo. Caramba, não tem por que se sentir...
— Está aqui, Teddy! — era Isabelle, que apareceu para interromper o
instante de harmonia. — Coçam-me os pés, e só há um remédio — disse
Isabelle, sem se incomodar em pedir desculpas pela interrupção, e apoderou-
se de Theodore e o arrastou para a dança.
O humor de Linnea azedou. Com expressão zangada, fixou a vista na
escandalosa ruiva que não parecia obedecer a nenhum código de normas
sociais. Como se atrevia essa... esse hipopótamo de cabelo alaranjado a
mandar em um homem desse modo e, além disso, trombetear como um
elefante? Queria que assistisse a minha aula de etiqueta só um dia. Só um!
De repente, Linnea registrou algo mais: Teddy. Tinha-o chamado de
Teddy!
— Venha, me deve uma dança — era Bill, que fora reclamar sua dança.
A jovem se forçou a sorrir e a ficar alegre, mas seguiu espionando Ted e o
elefante, e isso quase lhe arruinou a noite. Como da vez anterior, tivera
muitos parceiros de dança... com a única exceção óbvia. Girando e girando ao
redor do tubo do negro fogareiro, lançando ocasionais olhares furtivos em
direção ao homem. Sem dúvida, Theodore era o melhor bailarino do lugar
(maldito fosse ele), e dançava com essa atrevida de cabeça vermelha até que
gastaram o chão da escola! Mas não era capaz de dançar com a pequena
senhorita nem sequer para salvar sua alma. Depois do acontecido entre eles
no sábado anterior e nessa mesma noite, mais cedo, tinha a esperança de que,
por fim, ele começasse a considerá-la uma adulta. Mas, aparentemente, não, e
estava farta de que ele a considerasse como se ainda não lhe tivesse secado o
leite nos lábios. Bom, ela não possuía a corpulência de um arado de elefante.
Tampouco tinha cordas vocais como as de um carreteiro. Nem o cabelo da
cor de um galo de Rhode Island. Com gesto petulante, tratou de fazer vista
grossa aos dois, mas não conseguiu. Por fim, depois de havê-la ignorado
quase até o fim do baile, compondo sua melhor postura e sua expressão mais
altiva, cruzou a pista e cutucou a ruiva no ombro.
— Desculpe-me, Senhorita Lawler. Posso interromper?
Para vergonha de Linnea, essa tola mulher exclamou, com voz alta o
bastante para despertar os mortos: — Bom, diria que não! Quando ponho as
mãos em cima de um homem, aproveito-o bem antes de soltá-lo — para
confirmar o que dizia, abraçou Theodore em um apertão mortal e girou as
costas para Linnea...
Linnea quis morrer ali mesmo. Que alternativa lhe restava, a não ser
retroceder até a extremidade do salão e queimar de raiva? O que via ele nessa
prostituta pomposa? Era grosseira, suarenta, e arrastava Theodore pela pista
de baile soprando como um cavalo de corrida muito pesado.
Que fique com ela... é o que merece.
Ainda estava nessa pose petulante, na extremidade da pista, quando
terminou a dança. Viu que Theodore dizia algo a Isabelle e a acompanhava
até o vestíbulo. Por um momento, reapareceu sozinho, procurou entre as
pessoas, e foi diretamente até ela. A moça fixou o olhar no violinista e
apertou os lábios como se acabasse de comer uns picles em mau estado.
— Venha, pequena senhorita, agora é sua vez.
A vez dela! Como se tivesse ficado plantada durante todo o baile,
esperando que ele tivesse um lugar livre.
— Não se incomode, Theodore.
Altiva, virou-lhe o rosto.
— Bom, queria dançar comigo, não?
Olhou-o zangada, exasperada pela impotência que sentia contra suas
zombarias. Dê a esse homem algumas cervejas e um par de danças com
aquela ruiva, e ele se tornava jocoso de uma maneira nociva.
— Apague de seu rosto essa expressão de complacência para com você
mesmo, Theodore Westgaard. Não, não queria dançar com você. Tinha algo a
lhe dizer, isso é tudo.
Com muita dificuldade, Theodore conseguiu conter a risada diante da
pequena lança-chamas. Era tão especial quando se enfurecia e erguia o
atrevido nariz desse modo... além disso, não parecia ter mais de quatorze
anos. Apesar de ter se convencido a manter distância no que se referia à
pequena senhorita, não havia nada de mal em fazê-la dar um par de voltas
pela pista de dança, diante de toda a família. De fato, podia despertar mais
suspeitas dançar com todas as mulheres, exceto com ela.
— Então venha. Pode me dizer isso agora.
Ele não lhe deu alternativa. Guiou-a pela pista com graça e fluidez,
sorrindo com um ar de diversão muito irritante.
— O que queria me dizer?
Que você morra e o vento o leve... junto com aquela suarenta ruiva!
Linnea fechou a boca e olhou, displicente, por sobre o ombro de Theodore.
Ele inclinou a cabeça, flexionou os joelhos e seus olhos ficaram no mesmo
nível dos dela.
— Agora que já me tem, os ratos comeram-lhe a língua?
— Oh, deixe de me tratar como uma menina. Não gosto que seja
condescendente comigo.
Theodore se endireitou e executou um círculo perfeito, advertindo-a
com ar alegre: — Terá que me explicar isso.
Linnea lhe deu um murro no ombro.
— Oh, Theodore, você é exasperador! Às vezes eu o detesto.
— Sei. Mas eu sei dançar.
Acaso este indivíduo tinha que ser brincalhão quando ela queria seguir
irritada com ele? Tremeram-lhe os lábios, ameaçados com um sorriso.
— É um fastidioso presunçoso! E, se estivéssemos em aula, neste
mesmo momento eu lhe daria o castigo de ficar de pé no canto do vestíbulo
por me haver tratado com tanta grosseria.
— Você? É verdade? — perguntou-lhe, com um sorriso endiabrado.
Incapaz de continuar séria por mais tempo, Linnea explodiu em
gargalhadas. E Theodore a acompanhou. Esqueceram-se todas as rixas e
dançaram. Por todos os céus, como dançava bem esse homem! Até dava a
impressão de que ela também dançava bem! Sustentava-a afastada dele, mas
a guiava com tanta destreza que o ritmo e os passos saíam sem esforço. Como
era diferente na pista de dança de qualquer outro lugar! Difícil acreditar que
este fosse o mesmo Theodore que a tinha recebido no dia em que chegou,
embainhado no avental de trabalho, com o amassado chapéu de palha, e que a
tinha tratado tão mal que quase a mandara de volta.
— Bom, vai me dizer ou não?
Os dois se inclinaram para trás, enquanto os pés deslizavam sem
esforço.
— Dizer o quê?
— O que queria me dizer quando golpeou Isabelle no ombro.
— Ah, isso! — levantou o queixo com ar inacessível. — Vou ensiná-lo
a ler.
Theodore sorriu.
— Então vai fazer isso, hein?
— Sim, farei isso, hein? — imitou-o.
— Vou parecer um grande tolo tentando colocar os joelhos sob uma
dessas carteiras.
— Aqui não, seu bobo, em casa.
— Em casa? — repetiu, sarcástico.
— Bom, acaso tem algo melhor em que se ocupar nas longas noites de
inverno?
Theodore deu uma risada e ergueu um pouco uma das sobrancelhas.
— Está certa de que quer se ocupar de mim? Os homens de minha
idade estão acostumados a ser bastante cabeças-duras e esquecidos. É
provável que não pesque as coisas tão rápido como seus alunos de primeiro e
segundo grau.
— Sério, Theodore, fala como se já estivesse senil.
— Quase.
Linnea olhou-o, intrigada.
— Os homens senis têm reumatismo. Você não dança como se tivesse
reumatismo.
— Não, por Deus, meus ossos estão muito bem, não é certo?
Girou e admirou seu próprio cotovelo.
— Fique direito e sério! — repreendeu-o, tratando de não rir entre
dentes. — Quando a professora está falando, não pode fazer jogos de
palavras.
O olhar divertido do homem se encontrou com o seu enquanto seguiam
dançando com fluidez, cada vez mais à vontade um com o outro.
— E se eu continuar fazendo, o que fará a pequena intrometida?
— Intrometida? — replicou indignada, golpeando-o com o pé. — Não
sou uma intrometida.
Mas, nesse mesmo instante, terminou a música. Fez-se silêncio e as
palavras de Linnea flutuaram no ar como um sino por cima de um fiorde.[13]
Várias cabeças giraram, inquisitivas, na direção deles. Linnea sentiu que
começava a corar, mas, por sorte, Theodore a tirou da pista, tomando-a pelo
cotovelo. Entretanto, ao se separar dela, acrescentou a ofensa, dizendo-lhe: —
Obrigado pela dança, pequena senhorita. Não fique fora até muito tarde.
Por dois centavos ela teria chutado com gosto o traseiro dele.
Ainda estava tensa e encrespada como uma corda nova quando Bill a
acompanhou até a casa. Assim que parou a carroça, o moço lhe passou o
braço pelos ombros, apertou-lhe as costas contra o assento de couro e a
beijou. Ainda estava muito zangada com Theodore para capitular e rogou ao
céu que o beijo despertasse alguma reação em seu coração. Mas não
despertou nada.
— A noite toda estive desejando fazer isso.
— Sério?
— Ahã. Você se importaria se o fizesse outra vez?
— Acredito... acredito que não.
Se Theodore continuar me tratando como uma menina... possivelmente
isto se tornará mais divertido. Mas aconteceu exatamente o contrário: quando
a língua de Bill entrou em sua boca e, apoiando-se sobre um quadril, ele
tentou colocar o joelho entre suas pernas, Linnea se jogou para trás e lançou
um chiado.
— Bill, não!
— Por que não?
— Eu disse que não!
— Tenho que entrar.
— Tão cedo?
— Sim, agora mesmo.
— Ninguém fez isto antes? Por Deus! Quantas mãos tinha?
— Basta!
Empurrou-o com tanta força que ele golpeou a cabeça contra a capota.
— Bom, está bem! Não precisa me empurrar!
— Boa noite, Senhor Westgaard!
Dando um puxão à frente do casaco, desceu rapidamente.
— Linnea, espera!
Interceptou-a na metade do caminho da casa, mas ela sacudiu o braço
para se livrar de sua mão.
— Não gosto que me maltratem, Bill.
— Sinto muito... escuta, prometo a você que...
— Não é necessário fazer promessas. Não voltarei a sair com você.
— Mas, Linnea...
Deixou-o resmungando, de pé no caminho. Dentro, na cozinha, fechou
a porta e apoiou as costas nela, aliviada. Subiu a escada, despiu-se na
escuridão e se encolheu sob as mantas, tremendo.
Tinha muita vontade de chorar, mas as lágrimas não caíam com tanta
facilidade como estavam acostumadas a fazer. Acaso essa não devia ser uma
etapa despreocupada e divertida da vida? Mas por certo não carecia de
preocupações nem era muito divertida. O que ela fazia beijando sujeitos
como Rusty Bonner e Bill Westgaard, quando o único que queria beijar era
Theodore?
Nos dias seguintes, Theodore a tratou como a uma menina. Nada mais
que uma menina. Uma manhã, pouco depois, quando Linnea despertou,
assobiava um vento que chegava desde Saskatchewan com um frio que
prometia neve. Então vestiu uma roupa íntima quente, de algodão, e longas
meias de lã e, mesmo assim, a caminhada à escola pareceu o dobro da
distância de onde se podia ver as colheitadeiras ao longe.
Ao chegar ali, deteve-se na entrada do vestíbulo, contemplando o
familiar entorno. Que estranho o modo como a escola adotava diferentes
personalidades segundo as diferentes situações. Nas manhãs ensolaradas não
havia lugar mais alegre. Na noite do baile, nenhum lugar mais excitante. Mas,
nesse dia, despojado por completo de vozes infantis e com as nuvens cinza
que se viam pelas longas janelas nuas, o pequeno recinto lhe deu um calafrio.
Saiu depressa para procurar carvão. O vento formava um funil perto da
porta da carvoeira e levantava as pontas da sua echarpe. Linnea se perguntou
quanto tempo faltaria para a primeira nevada. Voltou a entrar e, sem tirar as
luvas, encheu o fogareiro e acendeu o fogo; na escola vazia, o alarido das
janelas e do telhado tinham um som fantasmagórico. Por último, relutante,
Linnea voltou para o vestíbulo e viu que no recipiente de água havia se
formado uma crosta de gelo. Resolveu aquilo retirando a parte congelada e
voltou para o lado de fora para olhar a bomba, notando outra vez a enorme
diferença que era fazer as rotineiras tarefas em uma ensolarada manhã
outonal e em uma lúgubre, de prelúdio do inverno.
Quando Kristian chegou, ajudou-a nas tarefas que ainda faltavam. Os
dois levaram a mesa com o recipiente de água para outro local, o fundo da
sala de aula principal. Ele e outros meninos levaram batatas e as colocaram
na grade do fogareiro, onde seriam assadas para o almoço. Na metade da
manhã, o delicioso cheiro de batatas assadas invadia a sala de aula. Na hora
do recreio, só a metade dos alunos optou por sair para o pátio. A outra metade
ocupou-se de virar as batatas, conversar ou desenhar na lousa.
Na mesma tarde, ao retornar para casa, caíam os primeiros flocos de
neve. A grama parda da valeta estremecia e parecia se amontoar, preparando-
se para o rigoroso inverno. As nuvens, escuras e pesadas, tinham um aspecto
ameaçador.
Ao entrar no pátio, Linnea descobriu que a carroça de alimentação de
Isabelle Lawler já não estava mais lá. Olhou ao redor, mas tampouco se via
nenhum dos peões contratados. Soube, então, que tinham partido e não
retornariam até o ano seguinte. A casa estava em silêncio.
— Nissa! — chamou ela. Ninguém respondeu. — Kristian! — a
cozinha estava morna e cheirava a porco assado e a abóbora nova, mas o
único som que se ouvia era o vento zumbindo, raivoso, lá fora. — Nissa! —
chamou de novo, entrando na sala da frente, mas ela também estava vazia.
Cautelosa, Linnea foi ao dormitório de Nissa. Estava vazio e escuro; o
cobertor enfiado cuidadosamente sob os travesseiros e tudo em perfeita
ordem. Sobre a penteadeira, havia uma galeria de retratos: os filhos quando
recém-nascidos, na época em que começavam a caminhar e quando meninos;
na primeira comunhão, com Bíblias na mão; no dia das bodas, com suas
esposas rígidas junto a eles. Sem ter consciência do que fazia, Linnea se
aproximou da cômoda e se inclinou para ver mais de perto. Ali estava
Theodore com sua noiva. Tinha o cabelo muito curto e um semblante quase
infantil em sua magreza. O pescoço tinha a metade da largura atual e a orelha
esquerda dobrava-se um pouco na ponta. Era curioso que ela não o tivesse
notado antes.
Os olhos da moça pousaram na imagem da mulher sentada, ereta, em
uma cadeira de encosto alto na frente dele. Tinha um rosto sereno e delicado
como uma rosa recém-colhida. Os olhos eram muito belos e os lábios eram
daquele tipo que — supôs Linnea — aos homens pareciam tenros e
vulneráveis.
Então você é Melinda... Contemplou o bonito rosto um momento mais.
Por aqui não se fala muito de você, sabia?
Estremeceu e saiu do quarto de costas. Deteve-se olhando a porta do
dormitório vizinho. À diferença do de Nissa, que estava totalmente aberto,
esse estava apenas entreaberto. Linnea nunca tinha visto o que havia dentro
dele.
— Theodore — chamou com suavidade. A porta era de cor crua, como
todo o resto da madeira da casa, e tinha um desenho duplo de cruz e uma
maçaneta de porcelana branca com um escudo negro. — Olá! — repetiu.
Apoiou as pontas dos dedos e empurrou. A porta se abriu sem ruído. Como
fazia com tudo, Theodore cuidava com regularidade das dobradiças,
colocando azeite para que não rangessem. Sentindo culpa e curiosidade ao
mesmo tempo, olhou para dentro do quarto. Era um aposento mais desolado
que o anterior. Dava a impressão de que o próprio Theodore fizera a cama
naquela manhã. O cobertor estava estendido, mas não sob o travesseiro como
teria feito uma mulher. Não havia armário, a não ser uma tábua com ganchos
sobre uma parede, onde estava pendurado em um cabide o traje negro dos
domingos, o avental de trabalho e os suspensórios. Sobre o chão, as melhores
botas, uma ao lado da outra, como pássaros dormindo. Contemplando-as,
uma onda de culpa percorreu Linnea. Havia algo muito pessoal nos sapatos
abandonados. Ela afastou o olhar.
O papel das paredes era florido e estava desbotado. Junto a uma mesa,
havia um diminuto tamborete com uma coberta bordada em lã, que devia ter
pertencido a Melinda. Tinha o aspecto de um objeto do agrado de uma tímida
rosa como ela. Na penumbra do dormitório, reinava um ar triste, abandonado,
como aguardando a volta da mulher que se fora para sempre. Sobre a
penteadeira havia uma fotografia oval, como aquelas que normalmente
ficavam penduradas na parede. Como estava em um ângulo visual muito
fechado, Linnea se aproximou. Era Melinda outra vez, mas dessa vez mais
bonita — se é que isso era possível — que na foto das bodas. O retrato atraiu
as mãos de Linnea. Pegou-a e tocou o vidro convexo. Esses olhos
melancólicos, atraentes, cativantes... Melinda era muito jovem quando fora
tirada a fotografia, tão nova quanto ela nesse momento. Compreender aquilo
a entristeceu e ela deplorou os anos transcorridos e a própria juventude, que
teria cedido com gosto se com isso conseguisse que Theodore a olhasse uma
só vez como teria olhado aquela mulher.
Suspirou e voltou a deixar o retrato no lugar exato onde estava. Lançou
outro olhar para a cama longa e depois saiu furtivamente do quarto, deixando
a porta tal como estava.
A casa estava solitária e de repente ela soube que não queria estar sem
os outros. Queria encontrá-los e exorcizar os efeitos desse clima lúgubre, das
fotos e da sensação de abandono que envolvia toda a fazenda. Envolveu o
cachecol de lã no pescoço e foi até a porta da cozinha. Confirmou que a
carroça de alimentação de fato havia partido. Que estranho que sentisse falta
dela, diante do ciúme que despertava Isabelle Lawler. Só tinham ficado os
arbustos, embelezados unicamente com suas vagens em forma de banana, que
se chocavam entre si, solitárias, sacudidas pelo vento. Mas não era da carroça
que Linnea sentia falta, mas da temporada que ela representava. O que havia
entre Theodore e Isabelle? Se havia algo, como podia atraí-lo uma mulher tão
diametralmente oposta a Melinda?
Quando se voltou e vislumbrou três diminutas figuras em um curral, o
vento lhe empurrava o casaco contra a parte de trás das pernas. Linnea
distinguiu Theodore, Kristian e Nissa. O que faziam ali, junto aos cavalos?
Prendeu melhor o cachecol e encarou o vento agitado do Noroeste pelo
Saskatchewan.[14] Aparentemente, todos os cavalos de Theodore estavam
reunidos em um só lugar, com os rabos levantados como respingos no mar, e
se remexiam inquietos. À medida que ela se aproximava, viu que Theodore
acariciava o longo nariz pintado de uma égua chamada FIy.
— Aconteceu algo de errado? — perguntou Linnea, elevando a voz. Os
três se voltaram e Kristian respondeu: — Não, só estamos nos despedindo.
— Despedindo-se? — perplexa, olhou para o rosto de cada um.
— Este é o dia em que soltamos os cavalos. A colheita terminou. A
equipe partiu — explicou Nissa.
— Soltá-los?
— Sim — respondeu Nissa.
— E aonde eles vão?
— Para o campo aberto — a senhora voltou a explicar.
— Campo aberto? Ou seja, simplesmente vão deixá-los livres? Como
podem fazer isso? São animais caros.
Dessa vez, quem respondeu foi Theodore: — Faz anos que fazemos
assim. Eles sempre voltam na primavera, quando chega o momento de arar os
campos, como se guiados por um relógio.
No rosto da moça, refletiu-se o assombro.
— E como sabem quando é?
Theodore se afastou para que FIy não o machucasse quando moveu a
poderosa cabeça e sacudiu a crina.
— São sábios. Sabem a que lugar pertencem e qual é a tarefa deles.
— Mas por que soltá-los? — insistiu Linnea — Para economizar
alimento. Quando chegar a primavera, voltarão gordos e saudáveis.
— E alguma vez perderam algum?
— Nunca — respondeu ele.
Linnea viu como os três Westgaard, cada um por sua vez, acariciavam
o nariz de FIy e percebeu a contida tristeza que havia nessa despedida.
Pensou na confiança que requeria soltar os animais que representavam para
eles sua forma de ganhar a vida.
— Todos têm de ir?
— Todos, exceto os velhos Cub e Toots — respondeu Theodore. —
Eles ficam, tal como fazia meu pai. Necessito de um modo de ir ao povoado e
à igreja. Parece que sempre sabem que vão ficar e ficam um pouco tristes.
Havia doze cavalos no curral. Eles se moviam sem cessar, agitando as
cabeças e relinchando ao vento, ao mesmo tempo em que Cub e Toots
colocavam os narizes sobre o curral vizinho onde estavam confinados. Um
robusto macho chamado Chief dava alto pulos ao redor da manada; depois
recuou e relinchou, como que clamando para que Theodore não demorasse a
libertação.
— Acredito que estão ficando impacientes. Sabem o que vai acontecer
— Theodore aferrou o freio de FIy. — Não é certo, moça? — olhou para
Kristian. — Bom, suponho que será melhor fazê-lo logo, hein, filho?
— Acredito que sim — respondeu Kristian.
Linnea se aproximou de Nissa e observou como os homens se moviam
entre os cavalos, tirando-lhes as rédeas. Os animais sacudiam as cabeças e
ficavam cada vez mais inquietos à medida que se aproximava o instante da
libertação.
— Quer deixá-los sair? — o pai perguntou ao filho.
Sem responder, Kristian deixou as rédeas sobre o braço de Theodore e
este se aproximou do outro lado de Linnea.
Olharam em silêncio enquanto Kristian abria o portão no extremo mais
afastado do curral, dava a volta à manada e agitava os braços, lançando um
agudo assobio. O som adentrou a tarde plúmbea e fez elevarem-se doze pares
de orelhas equinas. Por um fugaz instante, os animais ficaram imóveis,
apanhados contra o turvo céu lúgubre, tão diferente de seus estados de ânimo,
ansiando pela temporada de férias e liberdade. Linnea estremeceu diante do
espetáculo.
Era um desses momentos em que uma linha marca a interseção do
plano do meridiano com o plano do horizonte (ou outro qualquer), num dado
lugar; um oco à margem da vida de Linnea que ela gravaria para sempre na
memória, toda aquela riqueza e realismo, como o momento real em que
aconteciam. Theodore à sua esquerda, Nissa à sua direita, Kristian com a
manada, as diminutas pintas da neve derretendo-se no couro dos animais, os
cavalos escoiceando com as narinas dilatadas. A cena exalava uma áspera
beleza, que a fez respirar com dificuldade.
Depois os animais entraram em movimento. Transpuseram o portão
para a liberdade e eram só rabos, garupas e um resplendor de músculos. O
retumbar de seus cascos lhe chegou através da sola dos sapatos. Cub e Toots
trotaram até a parte mais longínqua da cerca, com as cabeças altas,
relinchando como se dissessem: “Esperem por nós!”
Correram ao longo da cerca em uma e outra direção, trombeteando
desassossegados.
Ali, entre Nissa e Theodore, tão perto de seus ombros, mas ao mesmo
tempo tão distante para que se roçassem, Linnea se abraçou. Não sentia frio.
Era a empatia que sentia pelos três Westgaard. Linnea nunca tinha refletido
sobre o vínculo de sentimentos que existia entre um fazendeiro, que os
alimentava, e seus animais; vestiam-no, resguardavam-no do perigo, e
naquele instante ela sentiu aquilo com muita intensidade. Era belo... era triste
e real.
Adeus, cavalos. Cuidem-se. Pensou. Inclinou-se para a frente e apertou
o braço de Theodore. Ele não se moveu nem devolveu o gesto, mas manteve
as mãos nos bolsos, vendo o galopar dos cavalos, afastando-se para aquele
mundo invernal de liberdade.
— Aonde irão? — perguntou a moça em voz fraca.
— Primeiro até os limites da fazenda, mas provavelmente vão
atravessar o rio. Ali deixamos crescer feno selvagem e deixamos sem cortar
uma colheita de milho com que se fartarão.
— E depois?
Theodore encolheu os ombros.
— A que distância acredita que chegam? — Linnea insistiu.
— Quatorze, dezesseis quilômetros, mais ou menos. Há muita terra do
governo e setores pertencentes à escola, além da terra que deixamos sem
cercar.
— Está seguro de que terão alimento suficiente?
Theodore olhou para ela. O vermelho cachecol estava atado duas vezes
sob o queixo e acentuava mais que nunca seu ar infantil. Mas sua
preocupação brotava do coração e lhe dava um ar muito mais adulto que o
dele mesmo. Pensou outra vez no maravilhoso dom de Linnea para encontrar
beleza em coisas que outros davam por certas. Quanta diferença de Melinda!
Linnea levantou os olhos e viu que Theodore a contemplava e então os
dois voltaram a olhar para os cavalos que corriam.
— Terão o suficiente. Quando terminarem o feno e o milho, comerão
os tocos que deixamos nos campos.
— Sentirão frio, não?
— Não se preocupe com eles. Vão em busca dos outros e se juntarão
trinta ou mais em uma manada. Quando chegam as tempestades de neve, se
amontoam no cânion e se apertam entre si para conservar o calor.
De repente, Linnea recobrou a consciência de que tinha o braço
apertado contra o de Theodore; ele também o percebeu e não se afastou.
— Nós os veremos alguma vez, antes da primavera? — perguntou a
moça.
— Talvez os vejamos, de vez em quando. São um espetáculo, com seus
couros peludos, pulando na neve em uma tarde cinza e ventosa como hoje. A
única diferença é que o chão estará todo branco e não poderemos distingui-
los mais, apenas ver os redemoinhos que deixam suas pegadas. Não há nada
mais belo!
Para ouvi-lo, Linnea ergueu os olhos e Theodore desceu os dele para os
dela. Outra vez sentiram a atração: forte, inegável, primitiva. Linnea recordou
a mulher cujo retrato ele conservava na penteadeira e se perguntou o que
seria necessário para que o esquecesse e não o pegasse nunca mais. Ele
pensou no prazer que resultava do calor dela através da manga do casaco, e
compreendeu que naquele dia eles compartilhavam um sentimento que ia
além de algo que ele tivesse compartilhado algum dia com Melinda.
Então os dois se deram conta da presença de Nissa e de Kristian e se
afastaram. Voltaram os olhos para o horizonte, mas os cavalos já tinham
desaparecido.
CAPÍTULO 14
JOGOS DE CARTA E DE AMOR

O fim da colheita deu lugar à chegada do inverno. Uma manhã, no


início de novembro, eles levantaram e encontraram um mundo branco.
Linnea olhou por sua minúscula janela e lançou uma exclamação de deleite.
Durante a noite, Dakota do Norte se convertera em uma antiga terra de
maravilhas.
Todavia, antes de ter coberto a metade do caminho até a escola, a neve
já deixou de lhe parecer tão romântica e ela começou a considerá-la uma
chateação. Avançando com dificuldade, movia-se com tanta agilidade quanto
uma múmia recém-enfaixada. Senhor, não poderia alguém inventar algo mais
prático que essas desventuradas perneiras para se proteger da neve?
E as perneiras não eram o pior. Por baixo, vestia uma longa roupa
interior grossa que ia da cintura até os tornozelos, e, ainda por cima, meias
longas de lã negra, presas na extremidade superior por um estreito anel de
borracha que lhe apertava e lhe cortava a virilha. E a sobrecasaca de lona
cáqui, um objeto rígido, com material reforçado, indo do tornozelo ao joelho?
Era fechado ao lado com ilhós e cordas que lhe cortavam mais ainda a
circulação. Somado a isso, as botas de borracha. Linnea se sentia andando
sobre barris.
A neve tinha produzido excitação na escola. E atoleiros. Aroma de lã
molhada. Narizes escorrendo. Desordem no vestíbulo, onde havia
sobrecasacas atiradas sob os bancos e cachecóis de lã caídos sobre o chão
sujo e molhado; luvas perdidas e botas misturadas. Depois do recreio,
chegava o pior cheiro: o da lã queimada das luvas postas a secar sobre a
grade do fogareiro.
Linnea designou um monitor para o vestíbulo, deu ordens para que
nenhuma criança fosse à escola sem lenço e anotou para pedir ao diretor Dahl
um cabide de madeira para pendurar a roupa. Mas a neve também trouxe
alegria. No recreio, brincavam de raposa e ganso, e Linnea empurrava a
extremidade da roda com tanto entusiasmo quanto os menores. Estes faziam
querubins na neve e tagarelavam sobre quão perto estava o Dia de Ação de
Graças. Os alunos maiores faziam planos para colocar linhas de armadilhas
no fundo do rio, com a esperança de ganhar dinheiro no inverno.
Com a chegada da neve, as cosias na casa também mudaram.
Modificou-se a rotina da fazenda. Tudo relaxou. Mais uma vez, a família se
reunia nas horas das refeições, ocasiões em que Kristian começava a
demonstrar uma enorme melhora em suas maneiras à mesa. Pelas manhãs, a
cozinha cheirava a leite. A separação da nata já não se fazia fora, somente
dentro. Dois dos gatos do estábulo se acomodavam debaixo da cozinha. À
noite, frequentemente se via Nissa com agulhas de tricô nas mãos. Linnea
também corrigia as tarefas na cozinha em lugar de fazê-lo em seu quarto do
mezanino, exposto às correntes de ar.
O tempo se tornou gelado. Embora calçando grossas luvas, com
frequência tinha os dedos dormentes antes de chegar à escola. O mesmo
acontecia aos alunos, que quando caminhavam envolviam um cachecol de lã
ao redor dos pescoços.
Um dia, ao retornar para casa, Linnea encontrou Theodore e John
trabalhando em um pequeno celeiro, perto do poço. Atravessou o pátio,
baixou a echarpe e os cumprimentou: — Olá, o que estão fazendo vocês
dois?
— Preparando-nos para matar uma vaca — respondeu John, formando
uma nuvem branca diante de si com seu hálito.
— Aqui?
O celeiro não tinha mais que uns dois metros quadrados, era feito de
madeira não desbastada, e no centro havia um alçapão quadrado. Theodore e
John riram. Em algumas ocasiões, a pequena senhorita fazia perguntas das
mais ridículas.
— Não — esclareceu Theodore. — Aqui é onde armazenamos a carne.
Antes de matar o gado temos que preparar o gelo.
— Ah.
Trabalhavam em excesso, bombeando água sobre um profundo poço
quadrado onde seria armazenada a carne. No dia seguinte, Linnea teve chance
de observar a engenhosa eficiência da câmara para guardar a carne, quando
os achou estendendo uma capa de palha limpa sobre o enorme bloco de gelo
sólido, já preparado para receber a carne. No terceiro dia, o dia da matança,
ao voltar para casa, a cozinha se transformara em um cenário que lhe
revolveu o estômago. Os dois homens estavam atarefados serrando a carcaça
de uma vaca sobre a mesa da cozinha, e Nissa se ocupava de preencher as
salsichas. Enquanto observava a asquerosa operação, o rosto da moça
adquiriu um tom esverdeado. Dissimulando um sorriso, Theodore brincou: —
De onde acreditava que saía a carne, senhorita?
Ela saiu tão rápido da cozinha que pareceu que o recinto estava em
chamas: subiu a escada, na pressa de escapar daquele espetáculo nauseante.
Naquela noite, depois do jantar, Theodore, Nissa e Kristian se sentaram à
mesa e cortaram, com muita paciência, tiras longas e finas de carne e foram
jogando-as em um barril com salmoura.
— E isso, o que é?
— Quando terminarmos será carne-seca — respondeu Nissa, sem
levantar os olhos do que fazia. — Deixamo-la encharcada um par de
semanas, depois as penduramos para secar no celeiro... Não há nada que a
supere.
Na noite seguinte, a cozinha tinha um aroma delicioso, e durante o
jantar lhe passaram uma terrina onde havia um espesso cozido com carne,
batatas, cenouras, cebolas e molho. Linnea untou com manteiga uma fatia do
pão feito por Nissa, serviu-se do guisado, que cheirava bem: era
indiscutivelmente delicioso. E quão mais agradáveis resultavam esses
momentos agora que tinham aprendido a conversar à mesa.
Kristian perguntou a Nissa onde seria o jantar de Ação de Graças
daquele ano.
— Será a vez de Ulmer e da Helen — respondeu a avó.
— Oh, avó, os jantares da tia Helen não são tão bons quantos os seus.
Gosto mais quando celebramos o Dia de Ação de Graças aqui.
— Se o Natal for aqui, então comerá meu guisado — interveio John.
— Todas as comidas que a mamãe faz são boas, mas não podem
competir com o guisado de coração de John — disse Theodore.
— Guisado de coração? — Linnea ficou boquiaberta e cravou os olhos
em seu prato.
— Esse era um dos maiores corações que vi este ano — disse Nissa. —
Comam.
Linnea teve a impressão de que suas tripas se revolviam e se sacudiam
com violência. Caiu-lhe a colher dos dedos e ela ficou olhando com a boca
aberta a porção meio comida que tinha diante de si. O que faria com o bocado
que tinha na boca?
Nesse instante, Theodore disse: — Não acredito que a Senhorita
Brandonberg compartilhe de minha opinião.
Todos os olhares se voltaram para Linnea. Ela inalou uma grande
baforada de ar, fortaleceu-se e tragou com coragem. O guisado de coração
imediatamente quase a fez vomitar. Apoderou-se da xícara de café, da qual
bebeu um grande gole que lhe queimou a boca. As lágrimas começaram a
cair.
— Há algo errado com o guisado de coração? — observando-a por
cima dos óculos ovalados, Nissa perguntou.
— Eu... ehhh...
— Mãe, acredito que seria uma grosseria se ela lhe respondesse —
Theodore interveio, dissimulando o sorriso.
— Peço... que me desculpem — conseguiu dizer Linnea, em voz débil
e trêmula. Empurrou a cadeira para trás, jogou o guardanapo e foi
diretamente escada acima, correndo como um quati diante de uma matilha,
tapando a boca com a mão. Ouviu-se a batida de porta no andar de cima. Os
quatro que estavam na mesa trocaram olhares significativos.
— É melindrosa à mesa, não? — observou Nissa com secura, e seguiu
comendo, tranquila.
— Suponho que deveríamos tê-la avisado, levando em conta como
reagiu com os sanduíches de língua — disse Theodore, embora por dentro
sorrisse.
— Acreditei que era da Noruega. Nunca soube de um norueguês que
fosse tão melindroso.
— Só é norueguesa pela metade — recordou-lhes Kristian. — A outra
metade é sueca. Lembram-se?
— Ah, essa deve ser a parte delicada — concluiu Nissa.
No andar de cima, Linnea estava encolhida na cama, imóvel. Cada vez
que se lembrava do desagradável espetáculo representado na cozinha e
imaginava um grande coração palpitante, a vontade de vomitar voltava.
Obrigou-se a pensar em coisas mais agradáveis: os cavalos que corriam ao
vento fresco e limpo; as glórias-da-manhã subindo pelo moinho de John; os
meninos brincando de raposa e ganso sobre a neve recém-caída. Ouviu-se
uma suave batida à porta.
— Sim? — respondeu com voz débil.
— Senhorita Brandonberg, está tudo bem?
Era Kristian... o compassivo e carinhoso Kristian.
— Não muito.
— Posso fazer algo?
— Temo que o guisado de coração já o tenha feito.
— Está realmente enjoada?
Linnea inspirou profundamente e disse: — Bastante.
Olhando para a porta fechada, Kristian sorriu.
— A avó mandou dizer que, se sentir muito mal, pode tomar um pouco
de extrato de piperina.
— Ob... Obrigada, Kristian. Bom, boa noite.
— Boa noite.
Naquela noite, estendido na cama, Theodore não pôde conter o riso ao
recordar o rosto de Linnea quando se inteirou do que estava comendo. Era
nessas ocasiões que parecia mais jovem e era quando mais o atraía: quando
fazia aquelas caras diante das comidas que não conhecia, quando ficava
olhando um buraco feito no gelo com a echarpe presa sob o queixo, quando
estava com o vestido na metade da perna com os braços cruzados atrás das
costas, quando prendia o cabelo com uma longa fita e o deixava solto sobre a
gola alta. E, claro, quando seu olhar cruzava com os dele na cozinha, à meia-
luz, e o olhava com aqueles inocentes olhos azuis, que se negavam a admitir
as razões óbvias pelas quais os dois deviam combater a atração mútua.
Desde aquela noite, não houve mais oportunidade de estar sozinho com
ela. Graças aos céus. Mas, na hora de dormir, quando estava deitado de costas
contemplando o teto, imaginava o quarto do andar de cima. Às vezes se
permitia imaginar como seria se ela tivesse trinta, ou mesmo vinte e cinco
anos. Mas esses pensamentos faziam-no sentir-se desventurado, e terminava
estendendo-se de barriga para baixo, ocultando os gemidos no travesseiro e
desejando que o sono libertasse sua mente de desejos proibidos.
Os pensamentos de Linnea eram bastante diferentes. À medida que os
dias iam passando, a diferença de idade lhe importava cada vez menos. A
maturidade de Theodore fazia-o mais desejável aos seus olhos. O corpo
musculoso, melhorado por anos de trabalho árduo, resultava-lhe muito mais
atraente que os corpos esbeltos dos homens mais jovens. As poucas rugas que
lhe rodeavam os olhos davam caráter ao seu rosto atraente. E ela sabia fazê-lo
rir de modo a que desaparecessem. Embora não soubesse ler no seu idioma,
conhecia coisas que importavam mais que meras palavras escritas: conhecia
sobre cavalos e colheitas, sobre o clima e sobre as máquinas agrícolas, e
sobre milhares de coisas relacionadas com a vida da fazenda que, para
Linnea, eram fascinantes. As poucas vezes que ele compartilhava com ela
esses conhecimentos, aumentava nela o desejo de aprender com ele.
Imaginou-o dormindo no andar de baixo e recordou a noite em que ele
a beijara. Fechou os olhos e deixou que os sentimentos invadissem seu corpo
jovem e vibrante. Beijar o travesseiro já não lhe bastava como substituto do
beijo real e Linnea estava disposta e decidida a obter mais disso.
Uma noite, em meados de novembro, toda a família Westgaard se
reuniu na casa de Theodore para um jogo de cartas improvisado. Em pouco
tempo, a casa estava lotada de parentes. Os adultos dispuseram várias mesas
na cozinha, enquanto os mais novos se posicionaram nos quartos de Kristian,
de Nissa e no vestíbulo de entrada. As crianças riam, brincavam com bonecas
de papel ou organizavam seus próprios jogos de cartas, e Linnea foi
convidada a se unir aos adultos no jogo da mancha.[15] Anunciaram as
apostas no começo de cada mão. Os participantes ocupavam pontos
designados: alto, baixo, jick, figura, coringa e o total de pontos da partida.
Linnea ficou como companheira de John, e se sentou na frente dele em uma
mesa de quatro participantes, com Lars à direita e Clara à esquerda. Quando
se repartiram as cartas, ela perguntou: — O que é um jick?
— O naipe à esquerda — respondeu John, levantando suas cartas. —
Alguma vez jogou cartas? — ele perguntou.
— Oh, sim, mas nunca tivemos um naipe chamado jick.
— O lado contrário da figura é da mesma cor que os trunfos —
explicou-lhe John.
Linnea o olhou, surpreendida. Ao começar o jogo, comprovou que, se
John era lento para muitas coisas, não o era para jogos de cartas. Juntos
formaram uma dupla imbatível. Em pouco tempo, ela e John se converteram
na sensação, pois ganharam quase todas as mãos. Na primeira partida
ganharam com facilidade e, à medida que a noite avançava, confirmaram sua
vitória.
Entre as partidas, Ulmer passava pequenos copos de um líquido
transparente: colocou um ao lado de Linnea, como fazia com todos os outros.
A moça provou um gole, ofegou e se engasgou.
— Aquavit — disse-lhe John, rindo por cima das cartas.
— A... aquavit? — Linnea conseguiu dizer, contendo o fôlego. — O
que tem nesse negócio?
— Oh, batata e um pouco de sementes de cominho. É bastante
inofensivo, não é certo, Lars?
Linnea, ressabiada, viu o sorriso travesso que os irmãos trocaram.
John ergueu o copo, bebendo o poderoso licor norueguês de um gole
só. A bebida era tão forte que ele se manteve com os olhos e a boca fechados
por alguns segundos. Linnea, perplexa, ficou observando se lhe saltavam os
miolos. Ao contrário, pois quando por fim abriu os olhos, John sorriu e
parecia muito satisfeito. Ele assentiu com a cabeça para ela e os dois
sorriram.
À medida que transcorria a noite, os copos voltaram a se encher e,
embora Linnea tivesse bebido muito menos que os homens, seu ânimo se
alterou na mesma proporção dos outros. Ela não soube dizer quando seu
aspecto passou de gentil a tolo e logo depois a estrondoso. Aparentemente,
ela agia no mesmo ritmo provocado pela aceleração do entusiasmo pelo jogo,
mas não se dava conta de que estava além disso. Os homens assobiavam e
gritavam, levantavam-se com as grandes jogadas. Frequentemente, jogava-se
um naipe com um murro sobre a mesa, que a fazia erguer-se do chão. Em
seguida, todos rugiam com risadas estrondosas ou amaldiçoavam um ao outro
com bom humor. Às suas costas, Linnea ouviu Trigg vociferar: — Maldito
seja, Teddy! Você devia ter alguma carta escondida em alguma parte.
Linnea olhou por sobre o ombro e viu que Theodore desenhava um
sorriso como uma lua crescente, com o rosto arrebatado pela bebida e uma
mecha de cabelo caída sobre a testa. Theodore a surpreendeu quando, ao
jogar outra carta vencedora, dirigiu-lhe um grande piscar de olhos enquanto
recolhia seus naipes. Linnea voltou-se de novo para seu companheiro, mas o
fez muito rápido e a cozinha pareceu a ela se inclinar um pouco. Voltou seu
olhar para a garrafa onde se lia linie akevitt[16] A essa altura, a moça soube
que estava agradavelmente bêbada e dois terços de seus alunos eram
testemunhas. Parou de beber, mas o dano já estava feito. Dava risadas
frequentes e tinha a impressão de ver tudo através de uma névoa dourada.
Mesmo assim, ela e John seguiam ganhando. Ao final de mais uma mão, Lars
se balançou na cadeira, sobre duas pernas, e gritou para Nissa: — Ei, Mãe,
agora nos cairia muito bem um pouco de guisado de coração!
Linnea ergueu a cabeça com brutalidade... ao menos acreditou nisso,
embora tudo parecesse se mover com muita lentidão. Sem sequer erguer os
olhos, Nissa gritou: — Por que, Lars? Precisa se livrar de alguém?
Era evidente que todos estavam inteirados de como ela tinha fugido da
mesa durante o jantar, com a face esverdeada, e se perguntou quem o teria
contado para todos. Olhou para Theodore e viu que ele ria com os lábios
apertados.
— Muito bem, quem é o fofoqueiro?
— John — acusou Theodore, apontando o dedo para o irmão.
— Theodore — defendeu-se John, apontando para Teddy.
Todos começaram a rir e, de repente, o episódio do guisado também
resultou divertido para Linnea. Ela riu quase até as lágrimas, enquanto toda a
cozinha explodia em gargalhadas. Fazia anos que ela não ria tanto. Estes
Westgaard, quando se soltavam, realmente sabiam como se divertir. Sentiu-se
parte da grande família barulhenta, como se levasse o mesmo sobrenome.
Na metade da noite, quando muitos já se espreguiçavam, eles
atenderam ao chamado da natureza e depois voltaram, organizando novas
mesas.
— O que me diz, Guisado de Coração? Aceita?
Ao dar a volta, Linnea deparou com o sorridente Theodore ao seu lado,
com a mecha de cabelo ainda pendurada sobre a testa e os olhos dançando
com malícia. Linnea ergueu uma sobrancelha: — Você se acha muito bom...
— ela fez uma pausa, e adicionou —, não é, Teddy?
Oprimindo o peito com uma das mãos e adotando um ar ofendido,
Teddy respondeu: — Eu?! Se sou bastante bom? Caramba, jogo isto antes de
ter costeletas.
— Desde antes de ter costeletas? — repetiu Linnea com um cenho
zombador e apertou os lábios: — Ai, ai, ai! Quaaanto tempo! É provável que
seja muito bom para mim. De todos os modos, Trigg já me pediu para que eu
fosse sua parceira. Mas sente-se e lhe daremos uma oportunidade de mostrar
se é muito bom mesmo — ela puxou a cadeira que formava ângulo reto com
a dele. — Venha, Trigg. Demonstremos a este grande fanfarrão quem é capaz
de derrotar quem.
O jogo recomeçou. Tendo Theodore tão perto, Linnea estava consciente
de cada um de seus movimentos. De vez em quando, ele bebia um gole do
licor e a olhava de rabo do olho. Às vezes, apoiava os cotovelos sobre a
mesa; noutras, jogava a cadeira para trás, apoiando-a sobre duas pernas, com
os joelhos separados, e estudava seus naipes. Depois, semicerrava os olhos e
a observava debruçada sobre suas cartas como se estivesse deduzindo qual
seria a próxima jogada dela antes de fazer a dele. Às vezes, desfazia-se de
uma carta como se fosse coerente que se fizesse isso. Às vezes, ela
apresentava uma carta melhor e a estampava com ruído sobre a mesa antes de
passá-la a Trigg para que recolhesse o truque. Linnea e Trigg ganharam
quatro partidas e Teddy e Clara, duas. Quando acabou a última, Theodore se
balançou para trás e gritou para John: — John, na semana que vem
conseguirei a Guisado de Coração como parceira.
— Não, senhor — respondeu John, também gritando. — Eu a descobri
primeiro.
Protegidos pelo ruído e a confusão de cadeiras arrastadas e mesa que se
esvaziavam, Theodore e Linnea trocaram um breve olhar ardente e ela
murmurou para que só ele a ouvisse: — Sim, ele me descobriu primeiro.
Recolheram as cartas e puseram a comida sobre a grande mesa de
carvalho e durante todo o tempo Linnea sentiu o olhar de Theodore sobre ela.
O lanche foi um banquete: batatas fritas chamadas fattigman, gammelosi, um
queijo saboroso e uma entrada com aparência de peixe conhecida como
blodpose. Levantando o nariz, Linnea perguntou com expressão desdenhosa:
— O que significa blodpose?
Dirigiu a pergunta a Theodore, esperando alguma réplica zombadora,
mas ele se limitou a sorver o café e afastou o olhar. Em troca, John lhe
respondeu: — Aff, desta vez você me pegou.
Soaram umas risadas, mas Theodore permaneceu sério.
— O que significa? — insistiu Linnea, agarrando o braço de John.
— Salsicha de sangue — respondeu alguém.
— Salsicha de sangue? — ela adquiriu a cor verde. Gemeu e fingiu um
desmaio, apertando o estômago e dobrando-se sobre a mesa. Todos riram,
exceto Theodore.
Quando retiraram os restos da comida, os mais velhos recolheram seus
sonolentos filhos, carregaram-nos até as carroças cheias de feno e se
dirigiram para seus respectivos lares. Kristian, que tinha estado erguendo o
cotovelo às escondidas, bebendo como os outros, apressou-se em desaparecer
no andar de cima para escapar do exame da avó.
Nissa foi até a “casinha” externa, que era o sanitário, a alguns metros
da casa principal e, quando voltou, Linnea fez o mesmo. Quando voltava para
a casa, tentou entender a razão da súbita mudança de comportamento de
Theodore, mas sua cabeça não funcionava muito bem. Jogou-a para trás e
aspirou profundas baforadas de ar, tratando de neutralizar os poderosos
efeitos do aquavit. No entanto, apesar da comida, do café e do ar fresco,
ainda sentia a cabeça girando e zumbindo.
Dentro de casa, viu que tinham deixado a lamparina na mesa da
cozinha acesa para ela. Como seu estado cambaleante não lhe inspirava
confiança para levá-la a subir a escada, baixou a chama até que a cozinha
ficou na penumbra. Quando se dirigia nas pontas dos pés para a escada,
abriu-se uma porta de dormitório que para ela era o de Nissa, e uma tênue
mancha de ouro pálido se derramou sobre a sala e na escuridão da cozinha.
— Nissa? — perguntou em voz fraca.
— Não.
Linnea inspirou bruscamente e conteve o ar ao ver que Theodore
aparecia no vão e se interpunha em seu caminho. Estava descalço, de calça, e
a camisa estava aberta. No resplendor difuso, parte da roupa era só um borrão
pálido. Distinguiu o contorno dos suspensórios que se penduravam até seus
joelhos, como naquele dia, na escola. O rosto estava na sombra e mesmo
assim ela percebeu a hostilidade nos pés separados e nos braços rígidos ao
lado.
— Ah, é você — disse ela.
— De qualquer modo, não esperava que fosse Nissa, não é verdade?
— Não esperava encontrar ninguém.
Passou ao lado dele e foi para a escada, mas mal tinha pisado o
primeiro degrau, ele a fez girar por um braço.
— Ah, não?
No patamar estreito e escuro os peitos de ambos quase se tocavam. Ele
a apertava de um modo tal que a machucava.
— Theodore, está machucando meu braço. O que deu em você? Solte-
me!
Ele, ao contrário, a segurou com mais força.
— Pequena senhorita, se não pode manter a prudência quando bebe
aquavit, talvez devesse ater-se ao leite. De qualquer maneira, é o mais
indicado para uma pessoa da sua idade.
— Da minha idade? Tenho dezoito anos, Theodore Westgaard. Não se
atreva a me tratar como uma menina.
— Dezoito e se acha bastante adulta, hein? — zombou.
— Sim — respondeu Linnea em um sussurro zangado, furiosa por não
poder gritar com ele, pois poderia despertar a casa toda. — Embora não o
tenha notado.
O homem riu com desdém, contendo a voz.
— Pequena senhorita, não basta ter saído de sua casa usando um
chapéu com penas de pássaro e beber aquavit para ser adulta.
— Pare de me chamar assim. Eu já lhe disse que...
— Por que esteve flertando com John esta noite? — duas mãos lhe
rodearam os braços com tanta força que quase a puseram nas pontas dos pés.
— Ele não é muito inteligente, não sabe? Mas isso não significa que não
tenha sentimentos. Como ousa provocá-lo desse modo? E se ele cair em seu
ardil, o que fará? Ele não é como outros homens, não a entenderia se lhe
dissesse que só estava brincando.
— Está louco! Eu não estava flertando com John.
— Ah, e como qualificaria estar todo o tempo pendurada em seu braço
e afirmar que ele a descobriu primeiro?
De repente, Linnea entendeu o que Theodore interpretou.
— M... mas eu não quis dizer nada com isso.
— Não foi isso o que me pareceu. Não foi isso o que pareceu,
absolutamente — ele lhe deu um empurrão de leve que ameaçou mais ainda o
equilíbrio de Linnea.
— Uma lição, hein? Isso é o que acontece quando uma menininha tenta
agir como uma pessoa mais velha e bebe muito aquavit.
Linnea não lutou nem se rendeu, mas ainda permitiu que ele
continuasse lhe apertando os braços, sabendo que deixaria nela uma fileira de
marcas roxas. Suspirou: — Oh, Theodore, como pode estar tão cego? —
disse em voz suave, apoiando os dedos no peito do homem. — Quando
entenderá que não sou uma menina, bem como você não é um velho?
Ele a soltou, como se ela tivesse se convertido em uma tocha de fogo, e
Linnea o agarrou pela gola da camisa para retê-lo. Sob seus nódulos, sentiu
palpitar loucamente o coração do homem.
— Admita, Theodore.
Ele a sujeitou pelas mãos e a obrigou a baixar os braços.
— Bebeu muito, Senhorita Brandonberg.
— Sério? — perguntou ela com calma.
A cabeça dele se abaixou sobre a dela. O apertão nas mãos ficou forte.
E a voz estava tensa de raiva.
— Primeiro John e agora eu? Irmão contra irmão, não é mesmo?
— Não — suplicou Linnea com suavidade, compreendendo a
necessidade de Theodore de levantar barreiras. — Por favor... não faça isso.
Os dois estavam presos nas garras da mais forte tensão que já tinham
experimentado. Os dedos dele afundavam na pele suave das mãos dela, onde
os batimentos pulsavam quentes e rápidos. As sombras da escada não
deixavam ver mais que os vagos contornos dos seus rostos, que se
contemplavam em silêncio. Pareceu que a noite palpitava ao redor deles com
sedutora insistência.
De repente, com um abafado som de leoa, Linnea se soltou, jogou os
braços ao redor do seu pescoço e apertou os lábios contra os dele. Theodore
não respondeu de maneira nenhuma e manteve-se rígido, com os lábios
apertados durante dez segundos. Depois, apoiou as mãos em seus ombros,
tratando de afastá-la com força. Mas ela se agarrou a ele, veemente e ansiosa,
consciente de que morreria de humilhação se ele teimasse em negar
corresponder àquele beijo. Theodore afundou os polegares em suas
omoplatas, os dedos nas costas. Ele a empurrava e ela se aferrava a ele, até
que os dois tremiam em silencioso combate, com a respiração agitada. De
repente, ele cedeu. As mãos fortes a atraíram para ele e seus corpos se
tocaram. Com um gemido de rendição, ele inclinou a cabeça e começou a
corresponder ao beijo, movendo seus lábios sobre os dela já sem restrições,
abrindo a boca para roçar a língua em seus lábios, infantilmente fechados. Ao
primeiro contato, Linnea ficou um pouco tensa e estremeceu de surpresa. Ele
murmurou contra seus lábios: — Você o pediu, pequena senhorita, então abra
a boca e aprenda a beijar como uma mulher.
A língua dele se tornou insistente e Linnea distinguiu a diferença entre
este beijo e os que ela tinha recebido até então. Os outros lhe tinham causado
uma ligeira repugnância, mas o de Theodore exigia-lhe que correspondesse à
altura. Ela abriu os lábios, provando, e sentiu a intensa impressão de calor e
umidade quando a língua audaz dele penetrou em sua boca por completo,
riscando voluptuosos círculos por seus limites. Com acanhamento, imitou-o,
participando da carícia, saboreando-o, medindo a textura. Sentiu-lhe o gosto
suave e quente, com sabor de aquavit e café. O corpo da moça criou vida,
transbordando sensações mais fortes do que qualquer uma das que tinha
vivido até então.
De modo que é assim! Oh, Teddy, Teddy, ensine-me mais! Ela se
apertou mais contra ele e ele, por um tempo, ficou esmagado contra a textura
de lã de sua roupa interior. Antes que Linnea pudesse notar se o coração dele
golpeava tão loucamente quanto o seu, ele tinha retrocedido e erguido a
cabeça, mantendo-a afastada. O seu hálito lhe umedeceu o rosto, fazendo
voar para trás uma mecha de cabelo solta na testa dela, enquanto suas
entranhas palpitavam. Quando por fim Theodore falou, o fez com palavras
tensas que lhe saíam de entre os dentes: — Está brincando com fogo,
pequena.
Um instante depois, ele tinha desaparecido, deixando-a trêmula. Linnea
tocou os lábios inchados, o coração, o estômago. Confusa e excitada, subiu
cambaleante as escadas para a segurança familiar de seu dormitório no andar
de cima e se meteu sob as mantas, tremendo. Os seios lhe doíam de uma
maneira agradável e a cabeça lhe girava loucamente. E não era só pelo
aquavit.
Na manhã seguinte, quando despertou, Linnea tinha ainda o beijo
fresco na mente. Tocou os lábios, como se ainda tivesse o seu rastro neles.
Esticou os braços sobre a cabeça, fechou os olhos e viu o rosto dele quando
piscou os olhos para ela na noite anterior, ruborizado, alegre, com a mecha de
cabelos caindo sobre a testa. Um rosto bonito, um sorriso que ela desejava
ver de novo, um olhar em que ansiava se perder. Pensar nele a enchia de
desejos de voltar a vê-lo. Mas o que diria quando o visse? O que dizer para
um homem na manhã seguinte após obrigá-lo a beijá-la profundamente?
Encontraram-se no café da manhã e ela o olhou com descarada
fascinação, como se jamais o tivesse visto antes, sentindo que lhe ardiam as
faces. Por uma fração de segundos, os passos de Theodore se detiveram
quando a viu do outro lado da cozinha. O aquavit lhe tinha deixado a cabeça
latejando, com uma dor aguda e incessante. Ao ver Linnea com a respiração
agitada, vacilante, as mãos apertadas sob os seios, a dor aumentou.
Mova-se antes que mamãe veja nós dois nos olhando, com a boca
aberta. Foi uma ordem que seu cérebro lhe deu e que ele tratou de cumprir.
— Bom dia — disse ele, obrigando-se a afastar os olhos daquele rosto
radiante, ansioso.
— Bom dia.
Pela primeira vez, sentiu-se envergonhado ao se lavar diante dela.
Que loucura, pensou. E, durante todo o café da manhã, procurou não
olhá-la nos olhos. Evitou-a, sobretudo, durante todo o dia.
Mas Linnea queria lhe dizer algo. Por fim, seguiu-o até a estrebaria na
última hora da tarde. Ele estava sentado na danificada cadeira de madeira,
passando sabão em uma sela, sem se dar conta que ela, que respirou
profundamente e tratou de falar com voz firme, estava atrás dele: — Olá,
Theodore.
O som de sua voz provocou um terremoto no coração de Theodore, mas
ele se conteve para não saltar. Roubar beijos na escuridão de uma moça como
ela era assunto perigoso. Um dos dois tinha que recuperar a sensatez e
aparentemente só havia uma maneira de fazê-lo. Lançou lhe um olhar ligeiro
por sobre o ombro e seguiu trabalhando.
— Ah, é você.
— Vim lhe dizer que lamento muito sobre ontem à noite.
Theodore jogou-lhe outro olhar por sobre o ombro, sem sorrir.
— Por quê?
Linnea ficou perplexa. Por quê? Ele era capaz de ficar ali sentado, tão
comovido como qualquer um dos cavalos e ainda perguntar por quê? Ela
baixou os olhos e disse em voz baixa: — Você sabe.
— Ah, refere-se ao fato de que você também bebeu muito? — Ele
voltou ao trabalho, curvando-se sobre os arreios. — Sinto a cabeça como se
tivesse uma máquina de vapor dentro.
Engolindo saliva, a moça pousou os olhos nos ombros largos e disse:
— Quer dizer que... que não se recorda?
Theodore riu entre dentes, recordando tudo vividamente.
— Não muito. Você foi minha parceira na segunda rodada, não é certo?
Linnea ficou tão vermelha quanto uma cereja, mas Theodore não se
virou para olhá-la.
— Sim, de fato. E você se incomodou porque eu aceitei jogar com o
John na semana que vem. Tampouco se recorda disso?
— Temo que não. Aquele aquavit era forte demais e hoje estou
sofrendo as consequências.
A moça se sentiu como se tivesse criado raízes durante uns segundos,
diminuída pelo fato de que ele não se recordasse de algo que a tinha sacudido
até a medula, e não importava quanto aquavit tivesse bebido! De repente, ele
semicerrou os olhos e uma onda de ira a invadiu. Ele estava mentindo. Este
teimoso norueguês está mentindo! Mas por quê? Rígida, Linnea girou sobre
os calcanhares e saiu batendo a porta com muita força.
Theodore girou na cadeira e depois ficou de pé. Saltou por cima da sela
e descartou o pano com azeite. Com as mãos apoiadas na beirada da mesa de
trabalho, olhou pela pequena janela para o curral nevado, recordando a cálida
pressão de Linnea contra seu braço no dia em que soltaram os cavalos; e, na
noite anterior, os seios dela esmagados contra o seu peito, os braços se
agarrando a seu pescoço... a boca que se oferecia, tentadora, inocente e
deliciosa. Fechou com força a boca e os músculos das faces tremeram. Ainda
com o leite nos lábios. Nem sequer sabia beijar. Com o semblante sombrio,
bateu com o punho contra a bancada grosseira de trabalho, mas de nada lhe
serviu. Não faria com que ela fosse mais velha, tampouco ele mais jovem.
A família Westgaard era muito mais unida do que Linnea tinha
imaginado a princípio. A única coisa que momentaneamente os separava
parte do ano era a colheita. Agora, com a chegada do inverno, acostumou-se
a vê-los com frequência. Era natural que se reunissem em volta de Nissa, de
modo que a casa de Theodore se converteu no ponto dos frequentes
encontros, mais que em outras casas. Mas Linnea conheceu todas as casas do
amado clã familiar.
Ulmer, o mais velho, estava acostumado a pedir conselho. Como John
era lento, era o mais protegido e o mais cuidado. Eram gratos a Theodore por
dar um lar à matriarca. Ele também contava com a simpatia de outros, por ser
quem Nissa sempre tinha elegido para a maioria dos trabalhos duros. Lars era
o mais feliz, sempre contagiando todos com o seu bom humor. Como Clara
era a mais nova, a única mulher e, além disso, estava grávida, era
vergonhosamente mimada pelos irmãos, coisa que não contribuíra para
prejudicar nem um pouco o seu caráter. Quanto mais conhecia Clara, mais
Linnea se agradava dela e mais sua necessidade de confiar na irmã de
Theodore aumentava.
Da noite em que se beijaram, infinitos sentimentos se revolviam dentro
dela. Arrependimento, curiosidade, irritação e fascinação. Além disso, Linnea
estava convencida de que Teddy também estava fascinado. Havia ocasiões
em que ela erguia os olhos de repente e o surpreendia observando-a do outro
lado da sala. Em outras, afastava-se com muita rapidez para deixá-la passar
quando se cruzavam em uma porta. E, certa vez, enquanto se sentavam à
mesa, seus corpos roçaram e o rosto dele ficou vermelho. Entretanto, havia
ocasiões em que se comportava como se o simples fato de ela viver na
mesma casa que ele o irritasse. Em outras, dava a impressão de não notar a
existência dela. De um dia para o outro, Linnea já não tinha ideia dos
pensamentos que se passavam atrás do cenho sério ou do rosto despojado de
expressão.
À medida que aumentava sua frustração, ela se sentia impulsionada a
confiar em Clara. Mas ela era a irmã de Theodore. Possivelmente não seria
correto que Linnea quisesse confiar seus sentimentos a alguém tão próximo a
ele. Mas não havia nenhuma outra pessoa e, quando percebeu que se
mostrava intolerante com as crianças na escola, compreendeu que eles não
tinham por que pagar por sua frustração. Precisava de uma confidente.
Em um sábado, foi caminhando até a fazenda dos Linder e a própria
Clara lhe abriu a porta. Depois de um carinhoso abraço ao recebê-la,
sentaram-se à mesa, e Clara retomou a tarefa de limpar os ovos com uma
folha de lixa. Pegou um ovo castanho de uma cesta de vime. Quando lhe
passava a lixa, produzia um suave chiado no recinto acolhedor. Linnea
tamborilava os dedos na borda da cadeira, observando as mãos diligentes de
Clara e pensando em como começar.
— Quer um pouco de café, Linnea? — perguntou Clara, sorridente.
— Não, obrigada, eu... — juntou as mãos entre os joelhos. — Clara,
posso falar com você?
— Está tão tensa que deve ser algo sério.
— Sim. Pelo menos para mim.
Clara aguardou. Linnea se remexeu nervosa, tentou falar, mas estava
muito hesitante.
— Vai gastar o verniz dessa cadeira se não falar. Do que se trata? —
brincou Clara, para atenuar o nervosismo de Linnea. Ambas riram, mas o de
Linnea era um riso sem graça.
— Recorda-se da noite em que me embriaguei um pouco com aquavit?
Clara riu.
— Claro. Alguns de seus alunos ainda seguem comentando isso.
— Acredito que fiz papel de tola.
— Não mais que todos nós.
— Possivelmente não enquanto vocês estavam ali, mas depois sim.
— Depois?
Clara tirou outro ovo do cesto e a folha de lixa e voltou a raspar com
ritmo.
Linnea sentiu como se o ovo lhe estivesse atravessado na garganta.
Antes de perder a coragem, engoliu em seco e disparou: — Theodore e eu
nos beijamos.
A lixa se imobilizou no ar.
— Beijou Theodore? — os olhos de Clara dilataram. — O nosso
Theodore?
— Sim.
Clara se recostou na cadeira e explodiu em uma franca gargalhada.
— Oh, isso é maravilhoso! — Clara apoiou a mão com o ovo sobre sua
xícara. — E ele? O que fez?
— Correspondeu ao meu beijo e depois ficou furioso comigo.
— Por quê?
Linnea encolheu os ombros, uniu as mãos sobre a mesa e juntou os
polegares. Fixando neles um olhar triste, respondeu: — Ele diz que sou muito
jovem para ele.
Clara voltou a lixar.
— E você, o que pensa?
— Acredito que não pensei. Só tive vontade de beijá-lo e o fiz.
Clara percebeu o cenho da jovem e não pôde conter um sorriso.
— E como foi?
Linnea levantou a cabeça e seus olhares se encontraram. Clara não
estava aborrecida? A hilaridade da mulher dissipou seus temores e ela se
sentiu com forças para arejar seus sentimentos.
— O que sei é que foi melhor que com Rusty Bonner.
Clara pareceu novamente surpresa: — Também beijou Rusty Bonner?
— Na noite do baile no celeiro. Mas Theodore nos surpreendeu e me
arrastou de lá. Por isso Rusty desapareceu tão de repente no dia seguinte.
Theodore o mandou embora.
Clara recostou-se outra vez na cadeira e parou de se ocupar dos ovos.
— Bom, caramba... tanta coisa acontecendo e eu aqui lavando ovos —
Clara deu um largo sorriso.
— Não está zangada? Refiro-me ao fato de eu ter beijado Theodore.
— Zangada? — Clara riu. — Por que deveria me zangar? Estou
maravilhada. Teddy costuma ficar muito melancólico. Necessita de alguém
que o reanime um pouco e penso que você é a pessoa certa para isso.
Até que Clara aceitasse tudo e compreendesse tão bem, Linnea não
percebeu o quão preocupada estava com o que poderia pensar a família a
respeito de seu interesse por Theodore.
Se ele o aceitasse do mesmo modo... Mas não era assim. Mantinha-se
teimosamente distante.
Linnea e Clara voltaram a se ver no domingo, quando os Linder
passaram para visitá-los à tarde. Quando chegaram, Linnea estava em seu
quarto gelado, corrigindo as tarefas, porque Theodore estava sentado na mesa
da cozinha. Soou uma batida suave na porta e depois apareceu a cabeça de
Clara.
— Olá, incomodo?
— Não, só estou corrigindo. Entre!
— Céus, que frio faz aqui! — exclamou Clara e esfregou os braços
enquanto entrava.
— Faz muito frio para você? — Linnea observou o ventre proeminente
de Clara. — Quero dizer, não há problema se ficar por um momento?
Clara viu para onde Linnea olhava, e acariciou o ventre e riu.
— Oh, céus, está tudo bem — disse Clara e, curiosa, foi até o fundo do
aposento. — Faz anos que não subo aqui. Está certa de que não a interrompo?
Linnea deixou o trabalho de lado e colocou os dedos dormentes entre
os joelhos.
— Acredite, é um prazer ser interrompida quando se está corrigindo
tarefas.
Clara levantou o papel que estava por cima de tudo, olhou-o distraída, e
o deixou outra vez.
— Muitas vezes a invejo por ter um emprego longe de casa, ser
independente, sabe?
— Você me inveja!
— Como não? Nunca estive além de Dickinson. Sua vida é
independente, excitante.
— Não se esqueça dos meus medos.
— Não a vi muito frequentemente assustada.
— Não? Bom, suponho que eu saiba dissimular.
Clara riu.
— Alguma vez contei a você como me assustou seu irmão no dia em
que foi me buscar na estação?
—Teddy? — Clara riu, foi até a cômoda e bisbilhotou os pertences
pessoais de Linnea. Entre eles estava a ágata que tinha uma bela orla
transparente de cor âmbar.
— Oh, por dentro Teddy é meigo... o que ele fez? Obrigou-a a carregar
seus pertences? — Clara deixou a pedra em seu lugar e olhou por cima do
ombro.
— Pior que isso. Disseme que eu teria que procurar outro lugar onde
me alojar e comer, porque ele não queria nenhuma mulher vivendo em sua
casa.
— Provavelmente por causa de Melinda.
Os olhos de Linnea adquiriram uma expressão de assombro e interesse.
— Nunca falam dela. Como ela era?
Clara se deixou sentar na beirada da cama, levantou um joelho e, por
uns segundos, ficou pensativa.
— Melinda dava a impressão de ser duas pessoas. Uma, alegre e
corajosa... a que vimos no começo, quando apareceu sem avisar, dizendo que
viera para se casar com Teddy. A outra era o contrário: calada e melancólica.
Naquela época, como eu não tinha mais que onze anos, não compreendi, mas
quando fiquei mais velha e tive meus próprios filhos, pensei sobre isso. Acho
que parte do problema de Melinda foi aquilo que chamam de depressão pós-
parto.
— Depressão pós-parto? — interrompeu Linnea, confusa.
— Não sabe o que significa?
Linnea negou com a cabeça. Ela sabia o que era tristeza, mas por que
alguém ficaria triste após ter um filho era um mistério para ela. Clara apoiou
uma das mãos sobre o volumoso ventre e o sustentou com a outra.
— É depois do nascimento da criança, quando as mulheres costumam
se sentir muito tristes e choram constantemente. Acontece com muitas.
— De verdade? — Linnea fixou os olhos no ventre de Clara e se
encheu de assombro.
— É estranho, não acredita?
— M... mas por quê? Bom... eu imagino que quando se tem um filho
vive-se um dos momentos mais felizes da existência.
Clara alisou a saia sobre o abdômen e sorriu, um pouco triste.
— Parece que deveria ser assim, não? Entretanto, um tempo depois do
nascimento muitas — eu também — ficam tristes; e nos sentimos tolas
porque sabemos que temos tudo no mundo para sermos afortunadas, mas a
única coisa que queremos é chorar e chorar. Os maridos odeiam isso. Pobre
Trigg, sempre anda ao redor de mim sentindo-se impotente e mau, sempre me
perguntando o que ele pode fazer para me ajudar — ela estendeu as mãos e as
deixou cair. — Mas não se pode fazer nada. A vida segue seu curso e a
tristeza vai embora.
— E Melinda não parava de chorar?
— Chorava todo o tempo. Parecia que nunca iria deixar de fazê-lo.
Acredito que ela não gostava deste lugar. Afirmava que o trigo a estava
enlouquecendo. Então, naquele outono, quando o trigo já estava todo
guardado e a equipe partiu, ela também se foi.
— Oh! — Linnea deu um grande suspiro e tapou a boca. — Ela fugiu
com um deles?
— Essa parte eu desconheço. Se foi assim, cuidaram para que eu jamais
soubesse dos detalhes. Naquele tempo, vivíamos na casa de John. Aquele era
o nosso lar quando papai estava vivo. Mas papai já tinha morrido fazia dois
anos. Como John podia tomar conta da casa sozinho e Teddy necessitava que
alguém cuidasse de Kristian, mamãe e eu nos mudamos para cá. Então esta
passou a ser a minha casa. Lembro-me de que trazia o Kristian aqui e o
colocava na cama quando era um bebê — no rosto de Clara apareceu um
suave sorriso. — Oh, era a coisa mais doce que existia...
De repente, puxou o fôlego, fechou os olhos e se curvou para trás, com
uma das mãos sobre o ventre.
Os olhos de Linnea se arregalaram com o susto. Em um momento,
Clara relaxou de novo.
— Oh, esse foi forte.
Confusa, Linnea perguntou: — O que aconteceu?
— O bebê me deu um chute.
— Deu um chute em você?
Ela não pôde afastar o olhar do enorme ventre de Clara e nem deixar de
pensar nos mistérios da concepção.
— Não sabe nada sobre mulheres grávidas?
Linnea levantou o olhar e o baixou de novo.
— Não... você é a primeira com quem falo.
— O bebê já está vivo, sabe? E se move aqui dentro.
— Sério? — sobressaltou-se Linnea, como se saísse de um devaneio e
acrescentou: — Claro, é obvio. Se não, como teria chutado você? — ela
estava fascinada e quis saber mais. — Como o sente?
Clara a olhou e lhe propôs: — Quer senti-lo?
— Oh, posso?
— Venha. Coloque uma das mãos aqui. Uma vez que começa a se
mexer, sempre continua.
Com precaução, Linnea se inclinou junto a Clara e estendeu uma das
mãos, cautelosa, para o ventre volumoso.
— Oh, não seja tão tímida. É só um bebê.
Linnea a tocou com acanhamento. Sentiu-a dura e cálida, carregando
uma vida valiosa. Quando o sentiu mover-se sob sua mão, abriu os olhos,
surpresa, e no seu rosto se desenhou um lindo sorriso.
— Oh, Clara, Oh, Deus... senti-o.
Clara riu.
— Com certeza. Às vezes, mais do que eu queria.
— Mas que sensação dá? Quero dizer, quando se mexe assim dentro de
você...
— Oh, é como se tivesse gases aqui dentro.
Riram juntas e Linnea retirou a mão, invejando Clara por ter construído
uma família.
— Obrigada por me deixar sentir.
— Oh, não seja tola. Uma mulher tem que saber destas coisas, pois, do
contrário, terá grandes surpresas quando se casar.
Linnea refletiu por alguns instantes e imaginou Theodore tocando a
barriga de Melinda, tal como ela fizera com Clara, sentindo os movimentos
do filho, tocando-o pela primeira vez. O nascimento... o grande milagre.
Esforçou-se por compreender quão profunda devia ser a tristeza de um
homem que foi abandonado pela esposa com a qual compartilhou semelhante
milagre.
— Suponho que o que aconteceu amargurou muito Theodore e, no que
se refere às mulheres, ele ficou com um pé atrás — Linnea aventurou-se a
dizer, passando a unha do polegar pelas dobras de seu cobertor.
— Tem muitas perguntas sobre o Teddy? — indagou Clara e Linnea
ergueu os olhos.
— Só tenho curiosidade, isso é tudo.
Clara observou com atenção o semblante da jovem e lhe perguntou: —
E como vão as coisas entre vocês?
— Mais ou menos iguais. A maior parte do tempo ele está resmungão.
Trata-me como se eu tivesse a peste negra. Sempre me trata como se eu fosse
uma menina e isso me deixa com muita raiva — Linnea levantou-se e
gesticulou furiosa.
Surpreendida por sua veemência, Clara ficou olhando as costas da
moça. Então ela queria ser tratada como uma mulher. Bom, bom...
— Você sente algo pelo Teddy, não é certo?
Linnea se intimidou, voltou para a cama e se deixou cair, abatida.
— Não sei — ergueu a vista para a amiga com expressão suplicante. —
Estou muito confusa.
Clara recordou-se de que ela mesma havia se sentido confusa na época
do noivado com Trigg. Esticou o braço e segurou a mão de Linnea,
convencida do afeto da moça por seu irmão.
— Não crê que ainda lhe falta amadurecer um pouco?
— Suponho que sim — a expressão da jovem se tornou aflita. — É
bastante confuso, não?
— Todos passamos por isso. Embora, por sorte, para mim tenha sido só
uma vez. Mas suspeito que isso seja um pouco mais difícil quando se está
apaixonada por um sujeito como o Teddy — Clara se sentou outra vez e
perguntou, como que de passagem. — O que quer saber sobre ele?
— Houve alguma outra mulher, além de Melinda?
— Tive minhas suspeitas com respeito àquela mulher, Isabelle Lawler,
mas não estou certa.
— Também suspeitei disso. — disse Linnea e Clara inclinou a cabeça.
— Ficou com ciúme dela?
— Não, não fiquei — primeiro Linnea ficou na defensiva, mas depois
desistiu de fingir. — Sim, fiquei e ainda estou com ciúmes — admitiu mais
tranquila. — Não é uma estupidez? Quero dizer, que ele seja dezesseis anos
mais velho que eu — exasperada, levantou as mãos. — Minha mãe ficaria
totalmente louca se soubesse.
— Saber o quê? — perguntou Clara.
— Que o beijei.
— Ah, isso.
— Sim, isso. Não o entendo. Clara, ele me beijou como se desfrutasse
do beijo, mas depois ficou furioso, como se eu tivesse feito algo errado —
terminou quase gemendo.
Clara apertou as mãos de Linnea e depois as soltou.
— O mais provável é que ele esteja aborrecido consigo mesmo, não
com você. Suponho que Teddy se sinta um pouco culpado porque você é
muito jovem. E talvez se pergunte o que as pessoas pensarão, tendo em vista
que vivem na mesma casa.
— Mas isso é uma tolice! Não fizemos...
— Claro que é uma tolice. Para mim você não precisa explicar nada.
Entretanto, convém que se lembre de algo: ele é um homem ferido. Eu vivia
aqui quando Melinda fugiu. Vi o quanto sofreu e estou segura de que para ele
não é fácil deixar que alguém se aproxime outra vez. É provável que esteja
um pouco assustado, não acha?
— Assustado? Theodore? — jamais tinha ocorrido a Linnea que ele
pudesse se assustar com o que quer que fosse.
— Talvez eu esteja exagerando um pouco a importância de alguns
beijos. Já lhe disse que ele continua me tratando como se eu fosse uma
colegial. Mas, por favor, Clara, não conte a ninguém o que lhe contei.
— É obvio que não.
— E agradeço a você por me contar sobre Melinda.
— Você já é quase da família. E, sendo a professora de Kristian, deve
saber a respeito da mãe dele. Quanto às outras perguntas, as questões
pessoais, pode me perguntar o que quiser e quando quiser. Se não fizer as
perguntas, como saberá o que a espera quando se casar?
As duas riram.
Nas semanas que se seguiram às primeiras confidências Linnea
formulou inumeráveis perguntas a Clara. À medida que as duas mulheres
estreitavam o vínculo, ela aprendeu mais sobre o corpo feminino do que
imaginara que precisaria aprender. Em algumas ocasiões, Clara
compartilhava com ela certas intimidades de seu matrimônio, revelações que
faziam girar a imaginação de Linnea. Depois de cada bate-papo íntimo, à
noite, na cama, Linnea – usando as polainas e coberta até os olhos – tentava
imaginar como ela e Theodore fariam o que Clara e Trigg faziam para
conceber seus filhos. Claro que já tinha ouvido comentários a respeito da
copulação, mas nunca de uma fonte tão confiável quanto Clara, que sem
dúvida devia saber o que dizia. No fim das contas, Clara tinha feito com
Trigg três vezes.
Depois, em uma dessas conversas, Clara lhe contou que isso era algo
que homens e mulheres não faziam só quando queriam ter filhos. Era
prazeroso demais para ser feito só quando queriam procriar. Clara revirou os
olhos e elas riram juntas.
Contudo, Linnea se sentia mais confusa do que antes. Passava horas
pensando na possível logística de semelhante ato e em como era possível que
duas pessoas o iniciassem. Acaso o homem dizia que era hora e então a
mulher se metia na cama com ele e o faziam? E como faziam, pelo amor de
Deus? Quando imaginava, convencia-se de que devia ser vergonhoso, torpe e
muito embaraçoso, inclusive se amasse o homem em questão. Recordou-se
da repulsa que sentiu quando Rusty a tocou e como se zangou na noite em
que Bill tratou de colocar o joelho entre as suas pernas. E, entretanto, nas
duas vezes em que esteve apertada contra Theodore... Oh, tinha sido glorioso!
Tirar a roupa e deixar que lhe fizesse o que Clara lhe havia descrito?
Nunca na vida! Para começar, com o tamanho que tinha Theodore ele seria
capaz de esmagá-la sob seu peso.
Passou novembro e Kristian completou dezessete anos. Na escola,
todos se preparavam para as festas de Ação de Graças e do Natal. Linnea
começou a traçar o plano natalino e passava as noites escrevendo o
argumento para a peça de Natal, procurando, com isso, esquecer Theodore, já
que se evitavam a cada passo.
Um dia, no recreio do meio-dia, os rapazes retornaram com um coelho
que tinham apanhado. Excitados, pediram permissão à Senhorita
Brandonberg para esfolá-lo ali mesmo. Linnea, relutante, aceitou, mas saiu do
abrigo de carvão, onde esfolaram e evisceraram o pobre animal. Quando
terminaram, Raymond, Kristian, Tony e Paul voltaram ansiosos, com os
olhos brilhantes.
— Senhorita Brandonberg — Tony era o porta-voz —, estávamos
pensando... bom, como apanhamos o coelho com nossas próprias mãos,
poderíamos cozinhá-lo?
— Cozinhá-lo? Aqui?
— Sim, bom, se a senhorita o permitir. Traremos uma frigideira,
perguntaremos a nossas mães como fazê-lo e o fritaremos para acompanhar
as batatas de amanhã.
Diante da perspectiva de que lhe oferecessem uma parte de carne de
coelho, limpa e cozida por quatro impacientes novatos, o estômago de Linnea
deu voltas. Não existia, acaso, uma coisa chamada febre do coelho, que se
contraía por comer esses animais?
— Eu... bom, caramba! — exclamou ela, evasiva.
— Por favor! — suplicaram em coro.
Que alternativa lhe restava, salvo consentir e abrigar a esperança de que
um pequeno coelho não bastaria para todos e que se salvaria de ter que prová-
lo?
— Bom, está bem — apressou-se a dizer. — Contanto que partam para
suas casas, averiguem exatamente como se faz, quanto tempo levará para
cozinhá-lo, se comer não lhes fará mal, e depois limpem tudo o que sujaram.
Os rapazes cortaram a carcaça do animal, lavaram a marmita de almoço
de Paul e o guardaram dentro, deixando-o em um canto do fresco vestíbulo
durante a noite. No dia seguinte, Raymond chegou com uma frigideira de
ferro forjado. Os rapazes confabularam entre eles e depois se aproximaram da
professora, inquietos.
— Bom, e agora o que acontece? Esqueceram da cebola? — perguntou
Linnea.
Não tinham se esquecido de pedir instruções a Nissa, de modo que tudo
o que se fizesse seria como era devido.
Dessa vez, quem falou foi Kristian: — Se estiver tudo bem para a
senhorita, pensamos que poderíamos guardar esse coelho e congelá-lo,
enquanto caçamos mais. Então, quando tivermos coelhos suficientes,
prepararemos uma grande refeição para toda a escola. Um só não basta para
todos.
Oh, não, pensou Linnea, sentindo-se nauseada.
— Mas são quatorze ao todo — disse Linnea, cuidando de se excluir.
Tony lhe replicou, radiante: — Quinze, contando com você, Senhorita
Brandonberg.
Desesperada, Linnea não encontrou modo de lhes negar a permissão
quando eles demonstravam intenções tão generosas. Ficou em silêncio por
tanto tempo que Raymond assumiu a argumentação: — Estivemos pensando
que as garotas sempre aprendem a cozinhar porque as mães lhes ensinam.
Mas ninguém ensina pra nóis, sabe?
— Para nós — corrigiu a professora de maneira automática, pensando
na mancha sanguinolenta perto da carvoeira e na mancha rosada que havia
perto da bomba de água.
— Sim, para nós — repetiu Raymond, obediente, e continuou depressa:
— Algum dia, poderá acontecer que tenhamos que viver sozinhos, como o tio
John, e então, o que será de nós se não tivermos a nossa mãe por perto, como
a avó, para cozinhar para nós?
Como ela podia argumentar contra isso? Que outra tarefa mais
importante tinha uma professora além de preparar os jovens para a vida?
— Está bem. Vocês têm a minha permissão.
Eles deram vivas em vozes gritadas, lançaram os punhos ao ar e se
encaminharam para a porta, conversando excitados.
— Ah, meninos — chamou Linnea e os quatro deram a volta. — Se o
fizerem bem, haverá uma nota extra para vocês nas qualificações. Chamá-la-
emos de “tarefa doméstica”.
Os rapazes levaram uma semana para caçar os coelhos. Durante esse
tempo, houve muito sussurro e cochicho. Linnea suspeitou que algumas das
garotas também participassem dos planos, pois todos os dias, no recreio da
tarde, Patricia Lommen e Frances Westgaard juntavam as cabeças com os
meninos e falavam animadamente, rompendo às vezes em entusiastas
gargalhadas e calando-se de repente quando se ouvia um forte “shh!” no meio
do grupo.
Por fim, Raymond anunciou que já tinham todos os coelhos de que
necessitavam – a essa altura já estavam congelados em várias marmitas bem
tampadas sob a neve, dentro da carvoeira –, mas informou à Senhorita
Brandonberg que estavam reservando a comida para a véspera do Dia de
Ação de Graças, de modo que ela pudesse lhes dar um pouco mais de tempo
que de costume para o almoço.
De algum modo, Libby Severt também participava. Pediu-lhe
permissão para ter uma conversa com as crianças menores, para uma hora de
conselhos secretos no começo da semana do Dia de Ação de Graças.
Enquanto Linnea estava sentada diante da mesa corrigindo tarefas de
aritmética, esforçando-se para não demonstrar sua curiosidade, no canto do
fundo surgiram risadas sufocadas entre os menores. Ao erguer o olhar, viu
Roseanne e Sonny que saltavam e aplaudiam, entusiasmados.
Um dia antes do acontecimento, fizeram-lhe outro pedido especial:
precisavam usar por um momento o vestíbulo: será que ela poderia deixá-los
sozinhos até que tivessem terminado?
Linnea sentia tanta curiosidade que com muita dificuldade pôde ficar
junto à mesa enquanto a porta se abria e fechava com frequência e as crianças
entravam, recolhiam coisas nas carteiras e corriam de novo ao vestíbulo,
fechando a porta. No vestíbulo fazia muito frio, mas ninguém parecia se
importar nem um pouco.
Por fim chegou o grande dia e foi impossível seguir com a rotina
normal de leitura, escrita e aritmética. Os meninos fervilhavam de excitação.
No meio da manhã, os maiores começaram a fritar os coelhos em duas
grandes frigideiras de ferro. As batatas ocupavam toda a grade do fogareiro e
depois o saboroso aroma das cebolas cozendo encheu a sala de aula.
Skipp e Bent partiram, orgulhosos, até o vestíbulo e voltaram com um
torrador metálico de milho, segurando-o por uma longa alça e ficaram
preparando as pipocas. Jeannette e Roseanne tiraram um objeto parecido com
uma cesta – tecida por suas próprias mãos imaturas –, feita com folhas de
milho frescas e secas, onde jogaram o cereal. Vários dos meninos se
encarregaram de empurrar as filas de carteiras contra as paredes. Varreram o
chão e rodearam o fogareiro com quinze pratos e garfos confiscados das
despensas de suas mães. Apareceu um frasco de brilhante purê de frutas e
saleiros e pimenteiros. Roseanne foi até a mesa de Linnea e anunciou, muito
séria: — Sabemos que os peregrinos não tinham pratos, mas nós...
— Shh! Roseanne! — aproximou-se Libby e lhe deu um puxão tão
forte que quase a fez cair. Um instante depois, a porta do vestíbulo se fechou
atrás delas. Em seguida saiu Norma, aproximou-se dos meninos mais velhos,
que estavam junto ao fogareiro, sussurrando, aflita, no ouvido de Kristian.
Logo Kristian, Ray e Tony saíram atrás dela para o vestíbulo e alguns
instantes depois voltaram fantasiados com longas golas brancas de
peregrinos, confeccionadas com papel. Usavam chapéus negros também de
papel, que os faziam parecer feiticeiros em vez de peregrinos. Por fim,
quando a excitação de Linnea era tão grande quanto a dos alunos, saíram do
vestíbulo Bent e Jeannette, encaminharam-se com a devida pompa e
importância à mesa da professora, escoltando-a até o lugar de honra junto ao
fogareiro: dali havia uma perfeita vista do vestíbulo.
Libby Severt saiu, fechou a porta e anunciou com uma voz clara: — A
primeira Ação de Graças.
Seguiu-se uma breve recitação da história dos peregrinos na colônia de
Plymouth, em 1621, e depois Libby se colocou em seu lugar no chão, junto à
Senhorita Brandonberg. Linnea lhe apertou a mão e concentrou a atenção na
porta do vestíbulo. De lá saíram Skipp e Jeannette, que se olharam nervosos,
tomaram fôlego e recitaram em uníssono: — A Ação de Graças serve para
agradecer por uma boa colheita e pela chuva depois da seca.
Cada um trazia um feixe de trigos nos braços. Partiram em procissão e
depositaram o trigo simbólico no chão, dentro do círculo de pratos. Quando
se sentaram, Raymond se adiantou e, afastando um dos feixes a uma distância
segura do fogareiro, e vendo a expressão abatida de Jeannette, assegurou-lhe,
em um sussurro audível: — Esteve muito bem, Jeannette. — Deu-lhe uma
piscadela e aquilo conteve as lágrimas da garotinha.
Linnea conteve sua vontade de rir, realmente comovida pela solenidade
com que os meninos tinham completado sua participação na representação.
A seguir apareceu Frances, embelezada com uma manta marrom e com
uma pena de galinha no cabelo.
— Os índios trouxeram seus agradecimentos em forma de alimentos —
anunciou em tom importante. Depois dela entraram outros quatro índios com
suas penas e seus mantos.
A primeira foi Norma.
— Milho! — anunciou, levando uma cesta de milho. Depois foi a vez
da pequena Roseanne.
— Castanhas! — bradou tão forte que provocou um murmúrio de
risadas. O som se desvaneceu quando, cerimoniosamente, trazendo uma
toalha de cozinha com um nó que formava uma trouxa, Roseanne a depositou
no chão. Ajoelhando-se junto ao círculo, tratou de desatá-lo. Como não
conseguiu desfazer o nó, levantou os olhos para Patricia – claramente diretora
da obra –, com o lábio inferior trêmulo, aparecendo na porta do vestíbulo.
Patricia se apressou a ajudá-la e juntas abriram a toalha, deixando a
descoberto uma pilha de rangentes castanhas. Roseanne se sentou com as
pernas cruzadas e entrou o índio seguinte: — Frutas silvestres!
Sonny ofereceu uma terrina de madeira cheia de maçãs cortadas ao
meio.
— E amoras — concluiu Bent. Surgiu outra onda de risadas quando ele
apresentou dois frascos de conserva de amoras caseira, explicando-se: — Não
conseguimos amoras frescas.
Os menores cobriram a boca com a mão para dissimular as risadas.
Libby ficou de pé e recitou: — Os peregrinos falaram de Deus aos índios e
todos agradeceram juntos, pois fora um ano de abundância e tinham alimento
suficiente até a primavera.
Para surpresa de Linnea, do vestíbulo emergiu Allen Severt, com um
aspecto fora de moda que um dos colarinhos brancos do pai lhe dava, como
se em seu pescoço estivesse um frango pendurado. Sustentava uma Bíblia e,
relutante, resmungou o Salmo de Ação de Graças. Depois se sentou.
Uma vez mais, Libby começou: — E todos cantaram...
Da estufa, Kristian a interrompeu: — E todos decidiram que cantariam
a canção de Ação de Graças depois, para que o coelho não queimasse.
Explodiram em gargalhadas. Tony e Paul foram passando batatas
fumegantes, seguidas pelo pote de purê de frutas. Kristian e Raymond
serviram o coelho e havia leite frio para todos. Todos tinham levado copos de
suas casas e a senhorita Brandonberg pegou a jarra de água.
Quando a comida estava servida e os mais velhos se sentaram, Linnea
se acomodou na cadeira e sorriu para todos, enquanto as lágrimas fluíam de
seus olhos. Tomou as mãos dos que estavam mais perto. Jamais em sua vida
havia sentido algo semelhante. Essas crianças maravilhosas tinham feito tudo
isso por ela. Seus olhos reluziram de orgulho e lhe deu um nó na garganta.
Quando todos uniram as mãos em círculo, ela sentiu que tinha espaço
em seu coração para amar todos eles.
— Dou graças por cada um de vocês, queridos, queridíssimas crianças.
Vocês me brindaram com um Dia de Ação de Graças que jamais esquecerei.
Uma lágrima tremeu em seus cílios e caiu, seguida por outra. Não
sentiu vergonha de vertê-las. As crianças a contemplaram, maravilhados, e
ninguém soube como acabar com a incômoda situação.
Então, Roseanne, com seu incomum sentido de oportunidade, aliviou o
clima dizendo à professora com grande seriedade: — Skipp esqueceu a colher
para a geleia e sem ela não podemos comê-la.
Quando se acalmaram as risadas, Linnea sugeriu: — Talvez possamos
arrumar isso se bebermos o leite e depois pusermos a geleia nos copos.
Começou o banquete do Dia de Ação de Graças e Linnea deu a
primeira dentada no coelho. Mordeu com cautela, ergueu as sobrancelhas,
lambeu os lábios e afirmou, com genuína surpresa: — Tem sabor de frango!
E era verdade!
CAPÍTULO 15
O DIA DE AÇÃO DE GRAÇAS

Estavam todos no átrio dianteiro da casa de Ulmer e Helen, reunidos


em volta da mesa em comemoração ao Dia de Ação de Graças. A mesa era
tão longa que a ponta parecia se perder ao longe. Com porcelana branca sobre
toalhas brancas de damasco, a mesa estava posta de modo muito mais formal
do que Linnea tinha imaginado. O único tom de colorido na mesa se devia a
uma luxuosa fileira de gelatinas, conservas translúcidas que percorriam todo
o comprimento da mesa: o sol refletia sua luz dourada sobre elas, qual fileira
de joias estendidas sobre a neve. No centro, havia uma gloriosa coroa de
aspic[17] de tomate.
Quando todos estavam sentados, Ulmer pronunciou a oração de Ação
de Graças. Um momento depois, entrou Helen, triunfante, com uma larga
travessa de prata onde havia um fumegante lutefisk,[18] reluzente como
manteiga derretida.
Oh, não! Pensou Linnea. A maldição Norueguesa!
A larga travessa ovalada passou de mão em mão entre exclamações,
interjeições, enquanto ela se desesperava tentando adivinhar onde estaria o
peru. Viu a chegada do fedorento pescado com a mesma impaciência que
Santa Joana teria sentido ao ver o incendiário ir buscar um fósforo.
Quando a travessa chegou até ela, passou-a para Frances com a maior
discrição possível. Frances perguntou: — Não vai comer nem um pouco de
lutefisk?
— Não, obrigada Frances — sussurrou Linnea.
— Mas tem que comer lutefisk! Esta é a ceia de Ação de Graças!
Frances bem poderia ter sido contratada como um leiloeiro em uma
feira. Todos voltaram seus olhares horrorizados na direção da obstinada
Senhorita Brandonberg.
— Nunca consegui gostar. Por favor, você... passe-o a Norma.
Clara riu do outro lado da mesa quando viu que Theodore ocultava o
riso com um dedo.
A anfitriã apareceu com o prato seguinte de origem norueguesa: lefse,
[19] um pão de batismo adormecido que, na opinião de Linnea, tinha todo o

atrativo de um couro cinza de cavalo. Os olhos de todos os presentes


observaram com dissimulação se a senhorita iria cometer o segundo pecado
do dia. Mas desta vez ela se serviu de uma pequena porção para satisfazê-los.
Untou-o com manteiga e o levou aos lábios. Ao levantar o olhar, viu que
Theodore levava à boca seu próprio lefse, enroscado ao redor de uma parte de
lutefisk. Ela mordeu seu pedaço. Ele, o seu. Linnea cruzou os olhos com os
dele e fez cara de infeliz. Theodore mastigou com exagerado gosto e lambeu
ostentosamente os lábios, piscando amistosamente para ela. Foi o primeiro
intercâmbio amável desde a noite em que se beijaram e, de repente, o lefse
pareceu a Linnea quase passível de ser comido.
Quando terminaram o lutefisk e o lefse, um alívio para a pequena
senhorita, chegou o peru com suas guarnições. Estava acompanhado de purê
de batatas, milho grelhado, ervilhas em um creme espesso e uma deliciosa
salada de maçãs e nozes com creme batido. Durante toda a refeição, notou os
olhos de Theodore sobre ela, mas, quando erguia os olhos, ela o encontrava
olhando para o outro lado. Ao terminar de comer, Linnea ajudou as mulheres
a lavar a louça, enquanto os homens foram saindo um a um para dormir.
Quando terminaram com os pratos, voltaram ao átrio dianteiro. A mesa
tinha sido desmontada e as crianças tinham desaparecido. John roncava em
uma cadeira de balanço. Trigg estava deitado no chão, de costas. A única
coisa a romper o silêncio eram os suaves roncos e as conversas das mulheres
sentadas em volta da mesa da cozinha. Em um extremo do sofá de crina de
cavalo estava estirado Lars, com os olhos fechados e as mãos entrelaçadas
sobre a barriga. No outro extremo, Theodore, parecendo um suporte para
livros em conjunto com o irmão. Entre eles, restava um único espaço
disponível no aposento e só se enxergava uma pequena almofada, que
ninguém tinha apanhado.
Olhou para Theodore: havia retirado a jaqueta e a gravata; a gola e o
colete estavam desabotoados e as mangas brancas, enroladas até o cotovelo.
O bronzeado começava a se desvanecer. A faixa pálida de pele na parte
superior da testa formava um contraste menos brusco com o resto do rosto de
dois meses atrás. Ele tinha os lábios entreabertos, o queixo apoiado no peito,
os dedos frouxos que quase não se sustentavam, subindo e baixando com a
pausada respiração. Parecia sereno, imperturbável, até um pouco vulnerável.
Linnea cruzou o aposento, pegou a almofada quadrada e se sentou ao lado
dele. Theodore abriu os olhos, lambeu os lábios e suspirou com suavidade.
— Não quis despertá-lo — disse Linnea em voz baixa. — Era o único
lugar que restava para se sentar.
— Eu não estava dormindo — disse, e voltou a fechar os olhos.
— Sim, estava. Eu o estive observando.
Ele sorriu e fechou os olhos.
— Ah, é? Ultimamente não tem falado muito comigo — disse ele.
Linnea abraçou a almofada e se encolheu, apoiando a cabeça no
encosto do sofá.
— Tampouco você comigo.
— Sei.
A moça apoiou o queixo na almofada e contemplou as brilhantes botas
que ele usava; depois admirou o braço nu, onde a pele bronzeada se
encontrava com o algodão branco e o pelo descolorido pelo sol começava a
escurecer.
Theodore abriu um pouco os olhos e a observou, sem mover nenhum
outro músculo.
— Ainda está zangada?
— Por que deveria estar?
Ele voltou a cabeça para ela.
— Não sei. Diga-me você.
Linnea sentiu que se acaloravam as faces e baixou a voz até que se
ouvisse apenas um murmúrio: — Não estou zangada com você, Teddy.
Passou-se meio minuto, durante o qual seus olhares se sustentaram e na
aconchegante sala ressonavam os roncos suaves dos homens. Por fim,
Theodore disse em voz audível: — Bom — endireitou outra vez a cabeça e
continuou: — Soube que ontem você desfrutou de um belo banquete na
escola.
— E sem dúvida você folgou em sabê-lo.
Theodore fingiu uma expressão ofendida e os dois sorriram.
— Desfrutar? Eu?
— Por causa do coelho — respondeu Linnea.
— Acha-me capaz disso? — arqueou uma sobrancelha, com ar
interrogativo. — Como estava o coelho?
— Tenho que me acostumar aos peculiares gostos de vocês: estava
delicioso.
Theodore riu.
— Mas hoje não conseguiu gostar dos nossos gostos peculiares, não é
verdade?
— Não tenho nada contra o modo de cozinhar de Helen, mas não pude
me obrigar a comer aquela... aquela atrocidade da Noruega.
Theodore riu de maneira tão surpreendente que levantou os calcanhares
do chão. Lars, que estava junto a eles, moveu-se. John, que estava do outro
lado sala, deixou de roncar, soprou, esfregou o nariz, e seguiu dormindo.
Theodore lhe sorriu com ar de pleno deleite.
— Sabe? Acredito que você chegará a gostar, embora continue a se
negar a comer lutefisk.
— Só mesmo a um norueguês poderia ocorrer sugerir algo tão absurdo
como isso. Deduzo que, se de repente você descobrisse que eu adoro essa
coisa fedorenta, eu seria aprovada, não é assim?
Como ele ficasse pensando um longo momento, finalmente a moça lhe
aconselhou, irônica: — Não se esforce, Theodore. Não quero que, por minha
culpa, cometa nenhum pecado étnico.
De bom humor, ele perguntou: — E o que quer dizer… étnico?
— Étnico... — Linnea fez um gesto, como se procurando a explicação
— é alguém próprio de sua... nacionalidade, sabe?
— Não sabia que os noruegueses cometiam pecados. Pensei que
éramos todos o mesmo em qualquer país.
— Éramos todos iguais.
— Bom, vejo que está outra vez me corrigindo. Deve ser porque já
superou essa questão que a fez ficar tão irritada.
— Eu não estava irritada. Já lhe disse...
— Oh, está bem. Esqueça.
Ele procurou se acomodar em uma posição melhor, com um ar de
desinteresse que provocou nela a vontade de golpeá-lo até fazê-lo cair do
sofá. O que tinha que fazer uma garota para obter sua atenção?
— Theodore, sabe o que eu queria fazer? — ele nem se incomodou em
resmungar. — Enfiar a sua cabeça em um barril de lutefisk.
Linnea abraçou a almofada, cruzou os tornozelos e fechou com força os
olhos. Se estava sorrindo, que lhe sorrisse, o maldito tolo. Ela ficaria ali até
se converter em um fóssil antes que o deixasse entrever o quanto a deixava
exasperada. Passaram-se vários minutos. As pálpebras de Linnea começaram
a tremer. Theodore suspirou, acomodou-se mais e seu braço roçou no da
moça.
Os olhos dela se abriram de repente e, claro, ele estava sorrindo.
— Estive pensando em seu oferecimento de me ensinar a ler. Quando
podemos começar com as lições?
Linnea afastou o braço com rapidez e bufou: — Não me interessa.
— Pagar-lhe-ei.
— Pagar-me? Não seja ridículo.
— Posso pagar.
— Não é esse o problema.
— Ah. E qual é?
— Não se pode comprar a amizade, Theodore.
Ele pensou por um instante e depois disse: — Quando você projeta o
lábio inferior para fora desse modo, parece que tem doze anos.
Linnea colocou o lábio para dentro, exibiu seu mais doce sorriso e
assinalou: — O barril de lutefisk está por aí.
Levantou-se até a metade do sofá e ele a fez sentar-se com um puxão.
Para seu assombro, Theodore deixou as brincadeiras completamente de lado.
— Quero aprender a ler. Você vai me ensinar, Linnea?
Quando pronunciava seu nome dessa maneira, ela se sentia capaz de
fazer qualquer coisa que ele lhe pedisse. O que mais queria no mundo era que
ele a visse como uma mulher e não como uma menina. Ele tinha belos olhos
e, quando pousavam nos seus sem zombar, ela derretia.
— Promete-me não voltar a me chamar de pequena senhorita?
Primeiro ele soltou o braço dela e depois disse: — Prometo.
— Está bem. É um trato.
Estendeu-lhe a mão e ele a estreitou, em um só apertão firme e forte.
— Trato feito — disse ele.
Linnea sorriu.
— Senhorita Brandonberg — ele adicionou.
— Theodore! — Linnea o repreendeu.
— Bom, agora é minha professora e tenho que chamá-la como a
chamam as crianças.
— Quero que continue me chamando de Linnea.
— Veremos — foi tudo o que ele prometeu.
Na noite seguinte, começaram as lições. Assim que os pratos foram
lavados, Nissa se instalou com sua costura em uma cadeira de balanço, junto
ao fogão. Kristian levou um livro para a mesa da cozinha e ali se uniram a ele
seu pai e Linnea.
Ela estava acostumada a enfrentar uma classe cheia de crianças com o
rosto recém-lavado e foi uma sensação estranha ensinar as primeiras letras a
um homem adulto, com a barba e as costeletas crescidas de um dia, em cujas
enormes mãos o lápis se perdia e que preenchia por completo a camisa de
flanela vermelha escocesa com seu poderoso peito e seus braços. Por outro
lado, não teria que lidar com os lapsos de desatenção e inquietação próprios
das crianças. Não podia desejar um aluno mais ansioso e atento.
— Começaremos com o alfabeto e tratarei de fazê-lo mais interessante,
fazendo-o relacionar cada letra com algo que lhe estimule a memória.
Como tinha deixado todos os livros na escola, ela usou um caderno
comprido para demostrar as letras. Depois de pensar por um minuto, encheu a
primeira folha com o desenho de uma garrafa cheia pela metade, de gargalo
fino e comprido. No canto superior direito riscou um A maiúsculo e um
minúsculo. Fez girar o caderno de modo que estivesse de frente para
Theodore: — O “A” é de aquavit.
Seus olhares se encontraram. Um lento sorriso se estendeu sobre o
rosto do homem e uma risada silenciosa borbulhou em seu peito.
— A de aquavit — repetiu, obediente.
— Muito bem. Não o esqueça.
Arrancou uma folha e desenhou duas letras “A” perfeitas.
— Tente, faça as duas para aprender.
Theodore se dobrou sobre o papel e começou a seguir as indicações,
enquanto Linnea seguia falando: — “A” tem diferentes pronúncias. Por
exemplo, em aquavit, abeto e ás.[20] Cada uma delas começa com essa letra,
mas, como pode ouvir, soa diferente. Poderíamos nomear arma, ainda,
automóvel. Agora, nomeie uma você.
— Aurora.
— Exato. Agora, uma que soe como abeto.
— Alfafa.
— Bom, outra vez. Agora, como em aéreo.
— Aeroplano.
Linnea levantou as mãos e depois deu uma palmada sobre a mesa.
— Teoricamente estaria certo e o dicionário, equivocado, mas o
primeiro que deve saber com respeito ao idioma inglês é que, aparentemente,
as regras se fixaram só para serem rompidas. Mas logo chegaremos a isso.
Por agora, só deve recordar como é o “A” maiúsculo e o “a” minúsculo.
Do outro lado da mesa, Kristian escutava e observava com um sorriso,
pensando que quem dera tivesse sido tão divertido quando ele fizera o
primeiro grau.
Continuando, a professora ordenou: — Diga uma palavra que comece
com a letra “B”. A resposta foi imediata: — Brioso, como seu chapéu de
asas.
Linnea fez cara de ofendida e o repreendeu: — Cuidado, Theodore,
porque também serve para burro.
Ao ouvir a risada do filho, Nissa olhou por cima dos óculos e tentou se
recordar quando a tinha ouvido pela última vez. Olhou para Linnea, sorriu
contente e retomou a agulha. Ao longo da noite, abundaram as risadas e Nissa
as ouvia com uma orelha em pé, bocejando de vez em quando.
— Diga uma palavra que comece com a letra “C”.
— Clippa.
Mas como Theodore opinou que o cavalo desenhado por Linnea
parecia uma rena, mudaram para carvão. Avançaram no alfabeto, procurando
objetos familiares para associar a cada letra. “D” foi para dedos; “E” para
ervilha; “F” para fonte; “G” para grão; “H” para hino. O “I” foi um pouco
mais difícil. Enquanto pensavam, Kristian, cochilando, começou a dar
cabeçadas sobre o livro, e o “I” se converteu em igreja. Em seguida Nissa
deixou seu trabalho com agulha, levantou-se com dificuldade e chamou o
neto: — Venha, Kristian, antes que escorregue e quebre o queixo.
Os dois se arrastaram até a cama, enquanto Linnea e Theodore
concordavam em associar o “J” com jarra. Theodore observou como a
professora desenhava uma jarra com frutas e lhe punha o correspondente
rótulo em um lado. A cozinha ficou em silêncio, já sem o rangido da cadeira
de balanço de Nissa nem o sussurro das páginas do livro de Kristian. A
lamparina a óleo emitia um suave chiado e o ambiente estava quente e
acolhedor. Então chegou o “K”. “K” para... Beijo.[21] A palavra surgiu na
mente de Linnea e os olhos azuis se chocaram com os castanhos através da
mesa. A lembrança do beijo voltou, tão vibrante e intensa como se acabasse
de acontecer, e a moça viu nos olhos escuros que ele também recordava.
— “K” é para... — repetiu Theodore em voz baixa, com o olhar firme.
— Desta vez pense em uma você — disse Linnea, esperando que sua
expressão não traísse seus pensamentos. — Soa tal como se escreve.
— A professora é você.
Acalorada por seu olhar fixo nela, Linnea se desesperou para encontrar
inspiração.
— Com “K” temos krumakake[22] — regozijou-se.
— Não vale. Isso é norueguês — disse Theodore.
— É também o aquavit e, de todos os modos, o usamos. Além disso, a
krumakake é uma das comidas norueguesas que adoro, assim, permita que eu
a use.
Ela se concentrou em desenhar o doce aprimorado de Natal que tinha
comido muitas vezes em sua vida, e obteve um parecido com bolachas de
forma cônica.
Theodore o observou e a elogiou: — Muito bem.
Entretanto, Linnea teve a impressão de que ele não pensava em
krumakake, como tampouco ela pensava nas bolachas. Tentando voltar para o
clima ligeiro de antes, seguiu com o “L”: — Com o “L” temos as piores
ideias que já ocorreram aos noruegueses. Lefse, lutefisk. Escolha um deles.
O olhar de Theodore se encontrou com o dela e ela contemplou o rosto
atraente que a luz da lamparina dourou quando se virou para trás, rindo: —
Fiquemos com o lutefisk.
Mordendo o lábio inferior para se concentrar melhor, e tratando de
bloquear o fluxo de eletricidade que corria entre ela e ele, Linnea passou a
desenhar. Quando terminou, levantou a folha. Theodore inclinou a cabeça
sobre o papel e o lápis se moveu.
— Theodore?
Ele levantou os olhos. O caderno escondia o rosto de Linnea do nariz
para baixo. Ele olhou o papel por cima para observar o desenho de uma
travessa em que se empilhavam partes de uma matéria nebulosa de onde
emanavam ondas que representavam o aroma ruim.
— “L” de lutefisk — repetiu.
Theodore soltou uma gargalhada maliciosa e Linnea o encarou por trás
do tolo desenho. Ela também riu, mais feliz do que se recordava de haver se
sentido em muito tempo. E, de repente, a risada vacilou, cessou por completo
e o silêncio foi tão denso que eles podiam ouvir a respiração do gato,
encolhido na cadeira de balanço abandonada por Nissa. Olharam-se, agitados
por sentimentos que nenhum dos dois podia controlar. Linnea apoiou o
desenho sobre a mesa, nervosa pelo olhar dele, procurando pensar em algo
que dizer para acabar com a incômoda consciência que ambos sentiam da
presença um do outro.
Levantando o olhar, Theodore a contemplou com tanta atenção quanto
antes, com o queixo apoiado em uma mão e o indicador na face. Teria olhado
dessa maneira para Melinda?
— É tarde — comentou Linnea, com voz frágil.
— Oh... Sim, suponho que sim — Theodore apertou os punhos e os
estirou à altura dos ombros, estremecendo e arqueando-se para trás. — É
melhor subir.
Mas ela ficou onde estava, fascinada pelo espetáculo dos músculos que
se flexionavam, os punhos junto às orelhas e o torso que rodava sobre a
cadeira apoiada em duas pernas. Era um quadro cativante.
Ele terminou de se espreguiçar.
Linnea apoiou um cotovelo na mesa e o queixo na mão.
— Trabalhamos por muitas horas. Eu não tinha intenção de fatigá-lo.
Theodore esboçou um sorriso preguiçoso.
— Nunca imaginei que seria tão divertido ir à escola.
— Nem sempre é assim. Quando quero, posso ser uma velha bruxa.
— Isso não é o que conta Kristian.
Linnea entreabriu as pálpebras para dissimular a curiosidade.
— Ah, e você fala com o Kristian sobre mim?
— É meu filho. Tenho a responsabilidade de saber o que acontece na
escola.
A moça levantou um lápis e começou a movê-lo através do caderno,
distraída.
— Ah.
Fixando o olhar no dela, Theodore começou a se balançar na cadeira...
para trás... para a frente... para trás...
A casa acolhedora e silenciosa os rodeava de intimidade, dava-lhes a
sensação de que só estavam eles dois no mundo. Linnea colocou a unha do
dedo mindinho em um lado da boca, levantando e deformando o lábio em um
movimento inconscientemente sensual enquanto o observava com uma
camiseta branca sob a camisa escocesa vermelha, ambas abertas no pescoço,
deixando a descoberto uma linha de pelo encaracolado e escuro; uns quantos
centímetros da camiseta que apareciam no pulso, sob os punhos enrolados da
camisa; os polegares colocados atrás das fivelas de bronze dos suspensórios,
as calças negras envolvendo as pernas abertas, sentado à vontade na cadeira;
as sombras dos cílios que projetavam sombras ainda mais escuras sobre as
pálpebras superiores, enquanto ele a observava com o olhar fixo e seguia com
o hipnótico balanço. Quando falou, o fez em um tom tão leve quanto o
rangido da cadeira.
— Kristian diz que você é a melhor professora que ele já teve. E depois
desta noite, acredito nele.
Algo estranho estava acontecendo. Linnea podia sentir em suas
entranhas um sinal de uma mudança nele. Uma mudança de que gostava
muitíssimo. Ela falou em voz muito baixa: — Obrigada, Teddy.
A cadeira parou de balançar. Os lábios do homem se entreabriram. O
lápis se mobilizou.
— Parece-lhe errado que eu o chame assim? — perguntou Linnea com
uma expressão inocente.
— Eu... não sei.
— Todos o fazem. Prefere que continue chamando-o de Theodore?
Com movimentos precavidos, ele apoiou a cadeira sobre suas pernas.
— Como preferir — respondeu com amabilidade, embora o encanto
tivesse se rompido. Ele começou a recolher os papéis. Linnea sentiu que a
desilusão lhe pesava no peito.
— Eu me ocuparei disto — disse ela e tirou-lhe os papéis das mãos.
Theodore se levantou, aproximou a cadeira da mesa e ficou observando-a
enquanto ajeitava as folhas. Sentiu a tentação de tocá-la, de terminar a noite
como ambos desejavam fazê-lo. Mas deu a volta e cruzou o aposento,
levantou uma tampa do fogão e colocou uma pazada de carvão. Ouviu-a
caminhar atrás dele e deter-se no pé da escada.
— Bom, boa noite, Theodore.
Na voz de Linnea vibrou um leve traço de decepção, tremor e
nervosismo.
Theodore fechou a tampa do fogão, engoliu com dificuldade e se
perguntou se seria capaz de se virar, olhá-la e, mesmo assim, conservar a
serenidade. Teve a sensação de que tinha que ter o dobro de força para
conservar a sensatez por si mesmo e por ela. Enfiou as mãos nos bolsos e se
voltou para ela, apagando de seu semblante todo vestígio de emoção.
Linnea tinha os papéis em uma das mãos, apertados contra as costelas e
o diminuto relógio pendurava-se da parte mais proeminente do seio. Sem a
menor dúvida, Theodore soube que, se desse um só passo, aqueles papéis
ficariam espalhados pelo chão e que o relógio pulsaria contra seu próprio
peito.
Enquanto a decisão pendia em um precário equilíbrio, os olhares se
enlaçaram.
— Boa noite — ele conseguiu dizer.
O semblante da moça se converteu em uma estranha mescla de
desilusão e esperança.
— Poderemos estudar a segunda parte do alfabeto amanhã à noite? —
ela perguntou, e Theodore assentiu.
— Pensarei em várias palavras divertidas que lhe sejam fáceis recordar
— ela continuou e ele somente assentiu com a cabeça e afundou mais os
dedos nos bolsos traseiros e pensou: sobe, moça, vamos, sobe logo essa
maldita escada, ou... não me segurarei.
— Bom — Linnea levantou a mão em saudação, mas a mão ficou
imóvel na metade do gesto. — Boa noite— ela conseguiu dizer, embora sua
garganta parecesse prestes a se fechar.
— Boa noite — ele respondeu.
Linnea por fim subiu correndo. Atrás dela, Theodore soltou uma
baforada de ar, deixou cair os ombros e fechou os olhos.
Deus! O que farei com isso?
Nos dias que se seguiram, ela se surpreendia frequentemente beijando
coisas. As coisas mais estranhas. Espelhos. O dorso de sua própria mão. Os
vidros gelados das janelas, a lousa, uma flor... Certo dia, a pequena Roseanne
a surpreendeu beijando o quadro-negro. A menina tinha retornado à escola
para pegar a marmita do almoço que havia esquecido e do fundo do salão
perguntou: — O que está fazendo, Senhorita Brandonberg?
Linnea girou, surpresa, deixando duas marcas úmidas na lousa.
— Oh, Roseanne! — levou uma das mãos ao coração. — Que susto
você me deu!
— Mas o que a senhorita estava fazendo? — insistiu a menina.
— Tentando apagar uma marca de giz rebelde, isso foi tudo. Na
realidade, não é uma maneira muito saudável. Nunca lamba a lousa, promete-
me? O que acontece é que faz tanto frio lá fora que eu não quis sair para
bombear água e molhar o pano para limpar o quadro.
— Pensei que a senhorita estivesse apagando tudo com a língua —
Roseanne fez uma careta de asco. Linnea jogou a cabeça para trás, rindo.
— Não, tudo não. E agora será melhor que pegue o que esqueceu e vá
rápido. Os outros devem estar esperando-a.
Depois disso, Linnea se esforçou mais por controlar o impulso de se
deixar levar por suas fantasias a respeito de Theodore. Em casa, as aulas
continuaram com o mesmo clima lúdico, às vezes cômico. Enquanto
pudessem rir, estavam a salvo. Ela lhe ensinou a recitar o alfabeto usando a
letra de uma simples canção que usava com seus alunos em alfabetização: “A
boa cadela dorminhoca e o elefante fazem a gente cantar, fazem a gente
cantar. Abelha, esquilo, iguana, onça, urso também gostam de cantar! A
ovelhinha no pasto canta: Beee, beee, boa ovelhinha. Brilha, brilha a
estrelinha no céu! A, B, C. D, E, F, G, H, I, J, K, L, M, N, O, P, Q, R, S, T, U,
V, X e Z. Agora eu sei meu “ABC”. Da
próxima vez você vai cantar comigo? Agora que aprendi o ABC, quero saber
o que pensa de mim!”
— Não pretende que eu cante isso, obviamente? — brincou Theodore.
— Claro que sim. É a maneira mais fácil de aprender as letras.
Àquela altura, Linnea já se acostumara a ver que ele se balançaria na
cadeira sobre as duas pernas e era capaz de perceber cada uma de suas
mudanças de humor. Naquele momento, estava obstinado. Tinha os braços
cruzados sobre o peito, apertados, e a testa enrugada.
— Nem tente — disse ele.
— Sabe o que faço com meus alunos quando me desobedecem?
— Tenho trinta e quatro anos, sou muito velho para cantar.
Ela sorriu com afetação.
— Nunca se é muito velho para aprender.
Theodore a olhou como se fosse capaz de lhe queimar o cabelo a vários
metros de distância, mas Linnea o fez cantar uma única vez, pois Kristian
cometeu o erro de dissimular uma risada. Entretanto, ela suspeitava que
Theodore praticava quando estava sozinho na selaria ou trabalhando em
alguma parte da propriedade, porque uma vez se encontrou com ele na
cozinha, pegando as botas de Kristian e assobiando: “A boa cadela
dorminhoca e o elefante fazem a gente cantar”. Manteve-se atrás dele
sorrindo, escutando-o. Quando Theodore a ouviu cantarolar brandamente
junto com ele, deixou de assobiar. Deu a volta e a encontrou com as mãos
enlaçadas atrás das costas, prosseguindo com a melodia onde ele havia
interrompido. Em voz muito baixa e zombadora, ela cantou: — Agora que
aprendi o ABC, quero saber o que pensa de mim.
Com o cenho franzido, ele a assinalou com a ponta da bota de Kristian
e disse: — Aconselho-a a tomar cuidado, pequena senhorita, pois do
contrário...
— Shhh, shhh! — Linnea apontou para ele também, em sinal de
advertência.
— Penso que é conveniente que tome cuidado, Linnea, pois do
contrário perderá seu único aluno de primeiro grau de trinta e quatro anos —
brincou.
Mas isso não aconteceu e as lições avançavam com velocidade.
Theodore aprendia com grande rapidez. Como ele sabia ler em norueguês,
captava os conceitos imediatamente e como possuía uma memória
maravilhosa, poucas vezes era necessário que Linnea lhe repetisse as coisas.
Determinado pelo desejo de aprender, de se livrar daquela fraqueza, ele
trabalhava com esforço. Instigado por uma curiosidade natural, fazia
inumeráveis perguntas e aprendia.
Em pouco tempo, tinha memorizado todas as consoantes simples, de
modo que puderam passar às compostas, como “ch” e “lh” e começar a
formar sílabas com as vogais. Depois vieram as primeiras palavras que, uma
vez aprendidas, jamais foram esquecidas. Em duas semanas, era capaz de
escrever e ler orações simples. A primeira foi: o cavalo é meu; a segunda, o
trigo é amarelo; em seguida, John é alto. Linnea o havia ensinado a escrever
o nome dos irmãos, da mãe e da irmã. O dele ele já sabia. Na noite em que
Theodore escreveu “John é alto”, Linnea se desculpou: — Temo que
devamos abandonar as lições por um tempo.
Ao ver a expressão consternada dele, apressou-se a se explicar: — É
por causa do programa escolar para o Natal. Tenho muito que fazer com os
preparativos.
— Ah, bom, entendo...
Mas ela percebeu sua decepção.
— Depois do Ano Novo retornaremos.
A cabeça de Theodore se ergueu de repente.
— Ano Novo? Mas faltam três semanas para isso!
— Passarei as festas com a minha família.
Lentamente, os lábios do homem desenharam um Ah, ao mesmo tempo
em que assentiu. Passou uma mão pela nuca e baixou o olhar.
— Bem, você esperou trinta e quatro anos para aprender, o que são
algumas semanas a mais, Teddy?
Mas não eram as lições que o preocupavam, certamente ele não achou
que passaria o Natal sem ela. Que estranho, de repente pareceu-lhe uma
perspectiva desoladora.
— Posso trazer da escola um livro de leitura e um silabário, para que os
tenha durante as festas, e Kristian poderia lhe ensinar algumas palavras
novas. Então, quando eu retornar, poderá me fazer uma bela surpresa.
— Claro — disse ele, embora seu tom carecesse de entusiasmo.
Linnea se levantou e começou a recolher os papéis da mesa. Theodore a
imitou. Quando ela aproximou a cadeira da mesa, deixou as mãos apoiadas
no encosto e disse em voz suave: — Teddy.
— Humm?
Levantou os olhos, distraído.
— Necessito que me faça um favor.
— Não estou lhe pagando pelas aulas, de modo que lhe devo mais do
que um favor.
— Que me leve à estação para eu pegar o trem.
A perspectiva de vê-la partir no trem despojou o Natal de toda alegria.
— Quando pensa em ir?
— No sábado antes do Natal.
— No sábado? Bem... — durante alguns instantes tudo foi silêncio, até
que ele comentou: — Você não havia falado que iria passar o Natal em sua
casa.
— Imaginei que saberia.
— Você não fala muito a respeito de sua família. Sente falta deles?
— Sim.
Theodore assentiu.
— Este ano, a festa de Natal será aqui, em nossa casa.
— Sim, eu sei — esboçou um tênue sorriso. — Inteirei-me disso na
noite do guisado de coração, lembra-se?
— Ah, é verdade...
Theodore olhou para os próprios pés. Linnea viu que ele tinha os
polegares enfiados nos bolsos laterais e os dedos tamborilavam, inquietos,
nos quadris. Já era hora de se recolherem para dormir. Aparentemente, o
mesmo ocorria todas as noites àquela hora. Depois de duas horas agradáveis
de estudo, assim que ficavam de pé a conversa se entrecortava, até que
terminava por morrer. Linnea pensou em como dizer que também sentiria
falta dele durante aqueles dias.
— Quem me dera uma pessoa pudesse estar em dois lugares ao mesmo
tempo — disse ela.
Theodore riu melancólico, mas a nota triste que ressoou acelerou os
batimentos do coração da moça. Muitas vezes acreditou que ele estava a
ponto de expressar seus sentimentos, mas sempre retrocedia. Seus
sentimentos ficavam mais fortes a cada dia que passava e, entretanto, sentia-
se incapaz de se forçar a dar o primeiro passo. E, até que isso acontecesse,
não tinha alternativa senão sonhar e desejar que ele um dia se declarasse.
— De repente, pareceu-me que você ficou muito triste. Aconteceu algo
de errado, Teddy? — perguntou ela, com a esperança de que ele lhe desse o
consolo de admitir que sentiria falta dela.
Mas Theodore se limitou a exalar um breve suspiro e a responder: —
Estou muito cansado, nada mais. Trabalhamos até mais tarde que o habitual.
Linnea contemplou a cabeça arqueada e se perguntou o que era que lhe
impedia de demonstrar seus sentimentos. Seria acanhamento? Não gostava
tanto dela quanto ela acreditava? Ou seria a maldita diferença de idade? Fosse
o que fosse, tinha-o capturado em suas garras. Linnea supôs que sua
esperança era vã, a não ser que acontecesse algo que o impulsionasse a falar.
Ela esticou uma mão e lhe tocou o braço. O queixo dele se levantou e os
olhos adquiriram uma sombria e interrogadora intensidade. Sob a manga da
camiseta, os músculos se esticaram. Linnea sentiu sua garganta pulsar e
declarou com simplicidade: — Sentirei falta de você, Theodore.
Os lábios do homem se abriram, mas deles não saiu nenhum som. Os
dedos da moça se apertaram.
— Diga — ela pediu com suavidade. — Do que tem medo?
— Você não tem? — ele devolveu a pergunta.
— Oh, não! — suspirou Linnea, erguendo os olhos e pousando-os no
cabelo dele e na testa, para depois voltar para os íntimos e confusos olhos
castanhos. — Nunca. Não disso.
— Disso o quê? — ele a encarou.
— Não sei. O que sei é que não tenho medo como você.
Ela o viu vacilar, pensar nas possibilidades, nas inúmeras
consequências.
— Você ensina aritmética aos meninos. Possivelmente deveria aplicá-la
um pouco em sua vida. Por exemplo, subtrair dezoito de trinta e quatro — a
mão dele se fechou sobre o pulso dela e afastou a mão de Linnea. — Quero
que pare de me olhar desse modo, entende-me? Porque senão as lições terão
que terminar para sempre. E agora vá para a cama, Linnea.
Os olhos angustiados da moça cravaram nos dele. O coração palpitou
com força por ouvir seu próprio nome saindo brandamente dos lábios dele.
— Theodore, eu…
— Vá — ele interrompeu, prometa-me — disse ele, rouco.
— Por favor — implorou Linnea.
— Vá! — bradou Theodore, empurrando-a, apontando para a escada.
Antes que ela pudesse obedecer a ele, as lágrimas já lhe faziam arder os
olhos. Ela queria correr, mas não para se afastar dele. Mas, se sentia
desventurada, tinha um consolo: ele também sofria o mesmo.
CAPÍTULO 16
EU TE AMO!

À medida que o solstício de inverno se aproximava, o tempo ficava


mais frio. Linnea tinha a impressão de que as caminhadas até a escola eram
cada vez mais longas e de que tinha de começá-las cada vez mais cedo.
Avançando com dificuldade pelo caminho nas horas sombrias antes do
amanhecer, com o hálito cristalizado sob a gelada luz branca da lua que
restava, sentindo ranger sob os pés a neve, como ossos quebrados, parecia
que os campos nunca perdiam sua cobertura de ouro, nem os álamos seus
chapéus verdes.
Na escola, a pior parte do dia eram as tarefas matinais. O vento
castigava o abrigo do carvão, levantando a neve do chão e formando
torvelinhos. Dentro, o vestíbulo estava escuro e gelado, e o ruído do carvão
caindo da pá no tubo de lata dava calafrios. A própria sala de aula tinha um
aspecto muito lúgubre. Quando foi acender o fogo, as grelhas do fogareiro
soltaram ruídos fantasmagóricos. Tremendo de frio, recurvada diante das
chamas crepitantes, Linnea tinha a impressão de que o salão jamais se
aqueceria.
Se houvesse neve recente que o vento tivesse arrastado, precisava
retirá-la com a pá dos degraus da entrada e das construções exteriores. Depois
começava a tremer diante da pior de todas as tarefas: trazer a água para o uso
do dia. Mesmo com as luvas de lã, a manivela da bomba lhe intumescia os
dedos e, às vezes, quando colocava a água no recipiente, esta respingava,
congelando-a. Certa manhã, seu dedo mindinho quase congelou, o que lhe
causou dor durante o resto do dia. A partir de então, Linnea teve a sensação
de que era mais sensível ao frio que o resto das pessoas daquela região.
Numa manhã especialmente fria, enquanto bombeava a água, ocorreu-
lhe a ideia de uma sopa: se os rapazes podiam cozinhar coelho, por que não
podiam as garotas preparar uma sopa?
Quando Linnea deu a eles a ideia, aceitaram-na imediatamente, e não
somente as garotas, mas também os rapazes. Assim, a sexta-feira se
converteu no Dia da Sopa. Fizeram um acordo: fariam a sopa em conjunto,
meninas e meninos. Duas das meninas maiores e dois dos meninos se
alternariam para pedir receitas às suas mães e trazer ingredientes das casas:
carne, batatas, nabos e cenouras. Ao mesmo tempo em que faziam a sopa, os
alunos aprendiam a planejar, a cooperar e a executar. Linnea sorria
frequentemente quando os menores empunhavam pela primeira vez uma faca,
sob a orientação de um dos maiores. E a professora elogiava todos os
esforços. Mas a maior recompensa era, sem dúvida, a própria sopa. Durante
os dias gelados de dezembro, nada cheirava melhor nem era mais delicioso
que a sopa das sextas-feiras.
Os trabalhos para a peça de teatro de Natal tinham começado tanto nas
casas dos alunos quanto na escola. Todos os alunos estavam mais do que
ansiosos naquela sexta-feira, o último dia de aula antes do feriado de Natal.
Linnea procurou Kristian para ajudá-la a fabricar uma simples
manjedoura de madeira para a cena do presépio, e pediu a colaboração de
Nissa para confeccionar os trajes daqueles que careciam de originalidade ou
de materiais para fazer. Na escola, os meninos se dedicaram a preparar uma
cortina com um lençol velho, com a estrela de Natal feita de giz amarelo
presa nela, palmeiras e dunas desertas. Os que tinham maiores habilidades
artísticas recortaram silhuetas de ovelhas e camelos sobre cartolinas e
desenharam os detalhes. Frances estava muito feliz e sorria o tempo todo,
ninguém gostou mais que ela, pois seria um anjo. Linnea escolheu Kristian
para ser José, como explicou aos outros meninos: afinal de contas, tinha
completado dezessete anos e era o mais velho da escola. Patricia Lommen,
com seus longos cabelos escuros, daria uma Maria perfeita. No que se referia
a instrumentos musicais, Linnea não conseguiu mais que um acordeão.
Quando pediu um voluntário para tocá-lo, o único que levantou a mão foi
Skipp e o melhor que conseguiu foi tocar a canção natalina “Noite feliz” com
um só dedo.
Pouco depois das quatro da tarde daquela sexta, os alunos foram para
casa levando um bilhete da professora pedindo uma árvore de Natal, caso
alguma família tivesse mais de uma.
Linnea estava escrevendo o programa das canções de Natal na lousa
quando ouviu uma tímida batida na porta. A cabeça de John usando
protetores de orelha e uma boina xadrez vermelha surgiu.
— John! Olá!
Ele tirou a boina e ficou com um pé no vestíbulo e um na sala de aula.
— Olá, Senhorita Linnea.
A professora desceu do tablado e cruzou com vivacidade o salão, com
um sorriso no rosto.
— Que grata surpresa, John!
— Soube que a senhorita necessitava de uma árvore de Natal.
— As notícias voam — brincou a moça.
— Kristian me disse.
De repente, Linnea viu uma parte de abeto.
— Oh, John, você trouxe uma? — os olhos dela brilharam de excitação
e Linnea correu para abrir a porta. Flexionando os joelhos, deu um tapinha
em John e exclamou: — Oh! Você a trouxe — ela bateu palmas. — Bom,
entre, está frio aí fora.
Ela o fez entrar trazendo com ele a árvore. Fechou rapidamente a porta
e girou para examinar a árvore, deu outro tapinha nele e, com um movimento
impetuoso, ficou nas pontas dos pés para depositar um beijo na face do
homem.
— Oh, obrigado, John! É linda!
John ficou vermelho como uma ameixa amadurecida, remexeu os pés e
bateu com a boina na coxa.
— Não, caramba, mas foi o melhor que pude conseguir. Está um pouco
esmagada desse lado, mas suponho que pode colocá ela contra aquela parede.
A professora deu uma volta completa ao redor da árvore.
— De todos os modos, ela é linda, John! E amanhã, quando as crianças
terminarem de decorá-la, estará maravilhosa. E que fragrância! — Linnea
inclinou-se para a árvore e a cheirou. — Não é glorioso, John?
John a viu dançar ao redor da árvore, tão volúvel, tão linda como uma
boneca de porcelana, e se perguntou por que Teddy não a prendia e se casava
com ela. Seria uma esposa arrebatadora para um homem e era evidente que
Teddy gostava dela. Qualquer um diria isso se olhasse para Teddy. E ele
achava que ela também gostava de seu irmão. Podia vê-la olhando para
Teddy durante as refeições e nos olhos dela havia amor, algo parecido com
um animal antes de copular.
— Claro que sim, Senhorita Linnea. Nada cheira melhor que um abeto
fresco!
Com gestos alegres, Linnea girou e foi para a frente da sala.
— Onde poderíamos colocá-la, John? Nesse canto ou naquele? Olhe,
não acha que as crianças fizeram um excelente trabalho com essa estrela para
o presépio?
John observou a estrela, as palmeiras, a ovelha e sacudiu duas vezes a
cabeça, como um urso.
— Sim, está muito bom. Quer que traga a árvore aqui?
— Sim, aqui mesmo, à esquerda, parece-me — de repente, Linnea
virou-se para ele com uma expressão compungida: — Mas o que vamos pôr
para apoiá-la?
John colocou a árvore num canto e voltou para a porta.
— Não se preocupe, tenho material para fazer um suporte. Está lá fora,
na carroça.
Voltou com martelo, serrote e madeira e se dispôs a trabalhar.
Observando-o, a moça comentou: — Posso ver que vocês, os Westgaard, são
capazes de arrumar qualquer coisa, não?
Apoiado sobre um dos joelhos, serrando na beirada do assoalho, John
respondeu: — Num sei não, senhorita.
John era uma pessoa a quem Linnea jamais corrigia. Gostava dele tal
como era.
— Theodore arruma de tudo, desde sapatos até arreio — disse Linnea.
— Teddy é muito inteligente, é claro que sim — respondeu John,
timidamente.
— Mas tem uma personalidade terrível, não? — a moça falou.
John levantou os olhos, desconcertado.
— A senhorita acha isso?
Surpresa, Linnea encolheu os ombros: — Sempre acreditei que sim.
John coçou a cabeça e endireitou a boina: — Teddy nunca se zanga
comigo. Nem sequer quando sou lento — fez uma pausa, pensando por vários
segundos, e depois acrescentou: — E sou bastante lento.
Ele ficou olhando a lâmina do serrote por um longo momento e depois
voltou ao trabalho com seu característico ritmo lento. Enquanto o observava,
Linnea sentiu que havia em seu coração um espaço de serena simpatia por
ele, diferente da que reservava a Theodore, mas igualmente grande. Até
aquele momento não sabia que John tinha consciência de ser mais lento que
as demais pessoas, de que aquilo o incomodasse. Percebia nele o tranquilo
amor que sentia por seu irmão e saber que Theodore tinha paciência com ele
fez com que o amasse ainda mais.
— Não é lento, John, só pensa antes de fazer as coisas. É muito
diferente de ser precipitado. E eu admiro pessoas de bom senso e cautelosas.
John levantou o rosto e os protetores da boina de lã revoaram sobre
suas orelhas como asas quebradas. Engoliu em seco e as faces de ossos
marcados se coloriram. Seu semblante expressava com clareza que as
palavras de Linnea o tinham feito mais feliz que qualquer presente que
tivesse podido embrulhar para ele e lhe deixar embaixo da árvore.
— Assistirá à peça de Natal, John?
— Eu? É claro que sim, Senhorita Linnea. Nunca faltei desde que
Kristian era pequenino.
— E... E Theodore vem também?
— Teddy? Não faltará por nada nesse mundo. Estaremos todos aqui,
não se preocupe — ele sorriu e, embora lento, intimamente discernia que a
sua resposta fora um presente para a professora.
Na noite do grande acontecimento estavam todos presentes, tal como
John tinha prometido. Não só sua própria família, mas também a de todos os
outros alunos. A sala de aula estava completamente lotada. Tinham tido que
usar até os primeiros bancos, os que se empregavam para recitar as lições, e
os do vestíbulo, acostumados a servir para calçar as botas, para poder dar
assento a todos os espectadores. Linnea sentia um formigamento no
estômago.
O pano de fundo, os dois lençóis confiscados da gaveta da cômoda de
Nissa, estava pendurado na frente do cenário e, atrás dele, o rosto de Frances
Westgaard resplandecia tanto quanto uma folha fina de latão que imita o
ouro; estava enfeitada com a longa túnica branca de anjo, o cabelo brilhante
caindo solto entre as omoplatas. A pequena Roseanne pôs-se a chorar porque
tinha esquecido a auréola da cabeça.
Norna foi enviada para buscá-la, mas, assim que esse problema ficou
resolvido, Sonny tropeçou na cortina de fundo e a arrancou da corda em que
estava pendurada. Linnea fez uma expressão de aborrecimento, mas Kristian
socorreu Sonny, colocou-o de lado e pendurou novamente a cortina. Do lado
de fora chegava o aroma do café que fervia no fogareiro e do chocolate
quente. Linnea olhou por entre os lençóis e sentiu toda a ansiedade de um
diretor de cena na noite da estreia. Nissa e Hilda Knutson estavam dispondo
xícaras e repartindo bolachas e pãezinhos de noz sobre uma mesa. Os irmãos
menores dos alunos subiam nos colos de suas mães, impacientes para que
começasse a peça. E lá estava o diretor Dahl, com a dama que devia ser sua
esposa ao seu lado. Localizou Theodore na plateia e seu coração saltou no
peito: ela sentiu como se um fogo a tivesse queimado por dentro. Era
inegável, não só queria que tudo saísse a contento pelo bem das crianças, mas
também para ganhar mérito aos olhos dele. Bent Linder lhe puxou a saia.
— Não consigo colocar essa coisa na cabeça, Senhorita Brandonberg.
Ela se inclinou e, aceitando das mãos de Bent o lenço vermelho de
fazendeiro, retorceu-o formando um cilindro e depois o amarrou ao redor da
toalha branca que ele levava na cabeça. Comprovou que tinha o ramo de
“mirra” e o fez colocá-lo em seu lugar.
— Shh!
Estava na hora de começar.
Embora a peça se desenvolvesse sem um tropeço, como uma
engrenagem de uma charrete, Linnea contorcia as mãos esperando que
alguém esquecesse sua parte e começasse a chorar. Ou que o trêmulo berço
se desarmasse, ou que algum menino pisasse no cenário e o jogasse no chão.
Mas tudo foi perfeito. E quando cessou o último aplauso e ela saiu e ficou
diante do pano de fundo, seu coração estava transbordando.
— Quero agradecer a todos por terem vindo esta noite e por ajudar em
suas casas com os trajes e com as bolachas. Era difícil discernir quem estava
mais nervoso a respeito desta festa, se os alunos ou a professora — Linnea
percebeu que ainda estava contorcendo as mãos. Olhou para elas e as separou
com um balançar de braços nervosos, fazendo o público rir. Ela distinguiu na
plateia o senhor e a Senhora Dahl.
— Temos a honra de contar com o diretor Dahl e sua esposa esta noite:
uma surpresa inesperada. Muito obrigada por estarem aqui — procurou John
com o olhar e continuou: — Eu não poderia deixar de agradecer
especialmente a John Westgaard por nos ter conseguido a nossa bela árvore
de Natal deste ano, por trazê-la e, também, armar seu suporte. Muito
obrigada, John! — dedicou-lhe um cálido sorriso e ele baixou a cabeça e
corou intensamente.
Os olhos de Linnea passearam pela plateia até o lugar onde estivera
sentado Theodore e descobriu que ele não se encontrava mais lá, até que
divisou Nissa.
— Gostaria também de agradecer a Nissa Westgaard por me deixar
assaltar sua provisão de roupa branca. E por me suportar, quando uma pessoa
menos paciente teria me dito que deixasse de incomodar e me virasse sozinha
para fazer os trajes. Queria aproveitar esta oportunidade para desejar a todos
um Feliz Natal. Amanhã pela manhã partirei para passar as festas em Fargo,
com minha família, e por isso não os verei na igreja. Portanto, um Feliz Natal
para todos! E agora, antes que desfrutemos das delícias que prepararam as
mães, a quem também agradeço imensamente, dediquemos outro aplauso às
atrizes e atores pelo trabalho magnífico que fizeram. Fiquei muito orgulhosa
de cada um de vocês — seus olhos se encheram de lágrimas, mas ela as
conteve.
A um sinal, os lençóis foram abertos, a professora recuou, segurou as
mãos daqueles que estavam no centro da fila e todos fizeram uma reverência
final para o público.
Quando atores e diretor levantaram as cabeças simultaneamente,
Linnea ficou de boca aberta: avançando da porta do fundo, apareceu um
robusto Papai Noel de faces vermelhas com um enorme saco pendurando
sobre o ombro. De cada perna da calça vermelha saía uma réstia de
campainhas de trenó que tangiam alegres a cada movimento.
— Mas, quem, Por... Por que...? — disse, sem fôlego.
Por trás da barba e do bigode brancos chegou uma voz profunda: —
Felizzz Natal a todos!
Papai Noel cheirava a café.
Os menores começaram a sussurrar e a rir nervosos. Um dos meninos
do público, que ainda não ia à escola, meteu o dedo na boca e começou a
chorar com medo do Papai Noel. Linnea teve que fazer grandes esforços para
não explodir em gargalhadas: Caramba, Theodore Westgaard, que adorável
surpresa!
Em meio ao tinido das campainhas, o personagem fechou a porta do
vestíbulo, e ao lado de Linnea chegou um murmúrio maravilhado: — É Papai
Noel? — Roseanne e Sonny, ambos de sete anos, disseram em uníssono.
Linnea se inclinou para eles, que estavam com os olhos surpresos, dando-lhes
uns suaves empurrões, sugerindo que fossem até o Papai Noel.
— Por que não o convidam a entrar? — disse a professora. E depois,
dando a volta, chamou os demais alunos menores: — Vão, deem as boas-
vindas ao Papai Noel! E não se esqueçam das boas maneiras.
Foi um espetáculo ver os pequenos abrirem caminho, timidamente, até
o fundo do salão para pegar a mão do Papai Noel e conduzi-lo para dentro.
Tony se precipitou para adiante.
— Irei trazer uma cadeira para você, Papai Noel.
Enquanto o Papai Noel subia para o estrado, um familiar olho castanho
dedicou à professora uma piscadela dissimulada.
— Papai Noel fez uma longa viagem. Um pouco de descanso será
muito bem-vindo — disse Linnea.
Em meio à agitação, Theodore se sentou na cadeira, dobrando-se sobre
o enorme ventre e se firmando nos joelhos, enquanto se reclinava e colocava
o saco de presentes no chão. Todos os olhinhos dos inocentes seguiam
ansiosos seus movimentos. Ele cumpriu o papel até o final, perguntando com
altivez quantos deles tinham sido bons meninos. Entre o público, os irmãos
mais novos escapuliam dos colos de suas mães e se aproximavam pouco a
pouco, sem poder resistir à atração. Enquanto o homem de vermelho abria a
corda que amarrava a boca do saco, uma voz gritou, audaz: — Eu me
comportei bem, Papai Noel! — era Roseanne. Todos os adultos se esforçaram
para sufocar as risadas, mas Roseanne se aproximou, confiante, ainda com a
túnica de anjo.
— Sério? — perguntou o Papai Noel e, com movimentos exagerados,
levantou um quadril e procurou no bolso. — Bom, vejamos o que temos aqui
— tirou uma longa folha de papel, percorreu-a com um dedo, deteve-se um
instante para perscrutar melhor o rosto de Roseanne, debaixo das cheias
sobrancelhas brancas. A menina aguardou diante dele, com o rosto adorável
dominado por uma séria expressão de respeito.
— Ahh, aqui está. Você deve ser a Roseanne — disse o “bom
velhinho” e a menina riu como um passarinho e disse para Skipp: — Vê? Ele
me conhece.
Uma vez sobre o joelho do Papai Noel, ela quis olhar dentro do saco e,
como sua cabeça se interpôs no caminho da de Theodore, todos riram outra
vez. Roseanne se ofereceu: — Posso? — a voz dela era adorável. Linnea
soube que para Theodore custava conservar a seriedade. — Oh, bom, claro
que sim.
Ele sustentou o saco aberto, e Roseanne quase caiu dentro quando se
inclinou, procurou e tirou um saco de papel marrom. Sobre ela estava escrito
um nome com letras negras.
— Para quem é? — perguntou Theodore.
Roseanne estudou o nome e logo encolheu os ombros e olhou para a
plateia com uma expressão angelical.
— Ainda não sei ler.
— Oh, bom. Papai Noel tentará — Theodore leu o nome. — Aqui diz
Frances Westgaard.
— Essa é minha prima! — exclamou Roseanne.
— Não me diga! Bom, peça a ela que venha pegar o seu presente.
Frances se adiantou para receber o embrulho, e Roseanne colocou a
mão no saco procurando outro. Havia um para cada criança presente no salão,
inclusive os que ainda não iam à escola. Todos os pequenos se sentaram nos
joelhos de Papai Noel e receberam sua aprovação pessoal. Linnea viu como,
uma a uma, as crianças tiravam seus presentes dos sacos de papel e
encontravam maçãs vermelhas, bolas de pipocas de milho, amendoins e
caramelos de hortelã. Alguém, compreendeu, agradecida, tinha organizado
tudo aquilo. E outra coisa – Linnea observou as faces de Theodore que
reluziam de maquiagem vermelha e os olhos que faiscavam, alegres, à
medida que entregava os sacos aos pequenos que tinha sobre os joelhos –,
esmerara-se estudando para aprender a ler todos aqueles nomes. Seus olhos
resplandeceram de orgulho, não só por Theodore, que fazia um Papai Noel
maravilhoso, mas também pelos meninos mais velhos, que colaboraram com
tanta generosidade. Até Allen Severt recebeu um presente, embora tenha se
aproximado para recebê-lo arrastando os pés. Linnea o estava observando
quando ouviu que pronunciavam o nome dela e ergueu os olhos, surpresa.
Seu olhar se encontrou com os conhecidos olhos castanhos debaixo das
cheias sobrancelhas brancas.
— Tenho um aqui para a Senhorita Brandonberg — afirmou Theodore,
com uma voz grave forçada.
— Para mim?
Apertou o peito com as mãos e riu, nervosa. Papai Noel a olhou com
expressão de cumplicidade e disse: — Acredito que a Senhorita Brandonberg
teria que vir aqui, sentar-se no colo do Papai Noel e lhe contar que se
comportou como uma boa garota, o que vocês acham?
— Sim! — a plateia exclamou em um só coro, saltando e batendo
palmas.
— Sim! Sim!
Antes que pudesse esboçar um protesto, puxaram-na pelas mãos. Ela
resistiu durante todo o trajeto enquanto a levavam diante do Papai Noel.
Todos os Westgaards dançavam e pulavam na maior algazarra.
— Venha aqui, Senhorita Brandonberg — Papai Noel bateu no joelho,
puxou-a pela mão e a fez se sentar em suas pernas enquanto a moça corava de
tal modo que desejou poder enfiar-se dentro do saco e fechar a corda sobre
sua cabeça.
— É isso aí — Theodore a balançou um pouco e as campainhas
tilintaram. Linnea perdeu um pouco o equilíbrio e se segurou no ombro dele,
que, por sua vez, pôs-lhe uma das mãos na cintura para sustentá-la.
— Diga-me, jovenzinha, você foi boazinha?
Os meninos assoviaram dando risadas e os adultos se juntaram a eles.
Linnea aventurou um olhar para os olhos faiscantes de malícia.
— Oh, muito.
O personagem olhou para os meninos em busca de confirmação.
— Foi boazinha? — Theodore perguntou.
Todos assentiram, veementes, e Roseanne gritou: — Ela nos deixou
fazer sopa.
— Sopa? — repetiu Theodore.
Todos explodiram em gargalhadas, e Linnea teve a impressão de que a
mão dele lhe queimava a cintura.
— Então deve receber seu presente. Mas antes dê um beijinho no rosto
do Papai Noel, Senhorita Brandonberg.
Linnea quase morre de vergonha e mesmo assim se inclinou e lhe deu
um beijinho na morna face, sobre as rígidas costeletas que cheiravam a
naftalina. Aproveitando o beijo, Theodore sussurrou alguma coisa, mas
Linnea cochichou nos ouvidos dele: — Vai me pagar por isso, Theodore.
Quando se endireitou, Theodore entregou a ela um pacote embrulhado
de tamanho médio. Os olhos dele reluziam travessos e os lábios pareciam
mais vermelhos contra a barba e o bigode brancos. Por um instante, a mão
dele lhe apertou a cintura. Aproveitando o barulho, ordenou: — Não o abra
aqui.
Ele a ajudou a ficar de pé e toda a plateia explodiu em estrepitosos
aplausos, ao mesmo tempo em que Theodore se levantava da cadeira, erguia
o saco vazio e, escoltado pelas desordeiras crianças, recuava até a porta. Ali
parou, girou e, saudando todos com a mão, vociferou: — Feliz Natal!
Não havia dúvida: sua aparição tinha coroado a festa de êxito absoluto.
Chegada a hora do lanche, tanto as crianças quanto os adultos estavam
alegres e risonhos. Enquanto circulava entre os convidados, trocando
saudações e felicitações para as festas, Linnea não deixava de vigiar a porta.
Quando se encontrou com o diretor Dahl, pediu-lhe uma panela para sopa e
cabides de madeira para as roupas, mas, enquanto lhe explicava para que os
necessitava, Theodore reapareceu e suas palavras foram se perdendo até
afundar no silêncio. Ele a procurou imediatamente com os olhos, e Linnea se
sentiu como se ambos fossem as únicas duas pessoas presentes no salão.
Theodore tinha o rosto reluzente e pequenas manchas de vermelho...
Será que teria se lavado com aquela água gelada? Linnea se perguntou.
Tinha o cabelo torpemente penteado e uma fibra de palha no ombro da
jaqueta... Teria ele se trocado na carroça? De repente, tomou consciência de
que Theodore possuía muitas qualidades que ela não conhecia. Jamais teria
imaginado quão bom era com as crianças. Seria do mesmo jeito com seus
próprios filhos, uma vez que...
Corou, virou-se e se apoderou de uma maçã. Uns minutos depois eles
se encontraram perto da mesa dos lanches. Sentiu-o atrás de si e lançou um
rápido olhar para trás para depois lhe servir uma xícara de café quente. Em
voz baixa, brincou: — Papai Noel tinha aroma de lutefisk no hálito —
ofereceu a ele uma xícara. — Beba um pouco para dissimular o cheiro e para
descongelar um pouco essas faces.
Theodore riu brandamente, olhando-a.
— Obrigado, Senhorita Brandonberg.
Linnea desejou que não houvesse ninguém mais no salão, desejou
poder lhe beijar muito mais que o rosto e não só por gratidão. Perguntou-se
qual seria o conteúdo do pacote e se, no fim das contas, ele sentiria falta dela
enquanto ela estivesse ausente. Mas não podia ficar ali toda a noite,
dedicando atenção exclusiva a esse homem. Havia outros convidados.
— De nada, senhor Noel — respondeu em voz baixa e, relutante,
afastou-se para conversar com outras pessoas.
No vestíbulo, Kristian e Ray confidenciavam segredos em um canto,
evocando a cena entre o Papai Noel e a Senhorita Brandonberg, quando os
interrompeu uma voz feminina. Os dois se viraram e encontraram Patricia
Lommen atrás deles. Os primos se entreolharam e depois olharam para a
mocinha. Tinha o cabelo castanho-avermelhado preso no alto da cabeça em
um largo coque vermelho. O vestido era de tecido xadrez cinza e vermelho,
com gola alta redonda e para a representação ela havia pintado um pouco as
faces e as sobrancelhas.
— Kristian, poderia falar com você a sós por um minuto? — perguntou
Patricia.
— Bom, entrarei para beber um pouco de chocolate quente —
respondeu Ray e os deixou sozinhos.
Kristian meteu as mãos nos bolsos e viu como Patricia se certificava de
que a porta estivesse fechada e depois se aproximava do canto em que ele
estava.
— Tenho um presente de Natal para você, Kristian — ela tirou de trás
dela um pacote de cor verde com um laço.
— P... para mim?
— Sim — olhou-o com expressão radiante.
— M... mas por quê?
Patricia elevou os ombros.
— Tem que haver um motivo? — perguntou.
— Bem... Acho... Céus! Eu... Bom Deus... Para mim?
Ele recebeu o presente e ficou olhando boquiaberto para o embrulho.
Ao aceitar a delicada caixa, percebeu no quão ridiculamente grandes
pareciam ter se transformado suas mãos desde o ano anterior, com uns
nódulos do tamanho de bolas de beisebol. Quando levantou o olhar, achou-se
olhando nos olhos da garota e seu coração se precipitou em um ritmo
estranho e dançante. Ultimamente notara algumas coisas relacionadas a ela:
quão boa era com as crianças mais novas enquanto dirigia a peça do dia de
Ação de Graças; com que perfeição representou a Virgem Maria, parada do
outro lado da manjedoura, na cena do presépio; quão belos eram seus olhos
castanhos, puxados para cima, com seus espessos cílios negros; como
mantinha o cabelo sempre limpo e encaracolado e as unhas formosamente
aparadas. E seus seios tinham crescido e estavam do tamanho de ameixas
silvestres.
— Eu não... — Kristian tratou de falar, mas a voz lhe saiu como o
coaxar de uma rã na época do cio. Tentou de novo e conseguiu dizer em voz
baixa e cavernosa: — Mas não tenho nada para lhe dar de presente.
— Não importa. O meu não é grande coisa. É só algo que eu mesma
fiz.
— Você o fez? — tocou o laço, engoliu em seco e depois levantou os
olhos e murmurou, maravilhado: — Bom Deus, obrigado!
— Não pode abri-lo agora. Tem que aguardar até a noite de Natal.
Patricia parecia sorrir, embora não o estivesse fazendo. Uma onda de
encantamento perpassou o corpo de Kristian. Oh, céus, que bonitos eram os
lábios dela! A ponta de sua língua surgiu para umedecê-los e o coração de
Kristian acelerou. Ali estava diante dele, erguida e ansiosa, com o queixo um
pouco levantado e as mãos cruzadas atrás das costas, uma bela moça. Tinha
uma expressão nos olhos que ele jamais vira em nenhuma garota. Isso fez
palpitar com mais força o seu coração e seu olhar pousou-lhe nos lábios.
Novamente engoliu em seco, soltou um profundo suspiro para ter coragem e
se inclinou uns milímetros até ela. As pálpebras da menina se agitaram e ela
conteve o fôlego. Kristian sentiu que sufocava. Aproximaram-se mais...
Mais...
— Patricia, mamãe mandou te chamar — disse alguém. Os dois se
separaram rapidamente, sentindo-se culpados. O irmão de Patricia estava no
vão da porta, sorridente: — Ei, o que os dois estão fazendo aqui?
— Não é da sua conta, Paul Lommen. Vá e diga a mamãe que irei
dentro de um minuto.
Com uma careta perspicaz, o menino desapareceu e Patricia chutou o
chão.
— Oh, aquele estúpido do Paul! Por que não se mete em seus próprios
assuntos?
— Talvez seja melhor que entre. Aqui faz muito frio e você pode se
resfriar.
Kristian se perguntou como seria esticar a mão e lhe fazer um carinho
nos braços, mas o clima se quebrara e ele tinha perdido a coragem. Patricia se
abraçou e ele viu como se elevavam os seios sobre os braços cruzados.
Olhou-a nos olhos com a intenção de recuperar a coragem, mas, antes que
pudesse fazê-lo, ela lhe respondeu: — Suponho que sim. Bom, a gente se vê
na igreja, de acordo?
— Sim, claro.
Dissimulando pela metade sua relutância, Patricia se virou para ir.
— Patricia — Kristian a chamou, antes que ela abrisse a porta.
— O quê? — Ansiosa, ela voltou até ele.
Kristian engoliu em seco pela décima vez e lhe disse algo muito viril e
que lhe ocorrera desde que começaram a ensaiar a peça de Natal: — É a
Virgem mais bonita que já vi.
O rosto da garota se iluminou com um radiante sorriso, depois ela abriu
a porta e entrou.
Depois de ter apagado as lamparinas da escola e fechado a porta, todos
voltaram juntos para casa. Theodore e John se sentaram na frente, no frio
assento de madeira. Nissa, Linnea e Kristian sentaram-se atrás, em meio a
uma variedade de lençóis, toalhas, panela para sopa e recipientes com os
restos de sanhakkels e krumakake, xícaras de café, um saco com presentes de
Natal que Linnea tinha recebido dos alunos, mais uma fantasia de Papai Noel
escondida sob a palha. Naquela noite, Theodore havia levado a charrete de
quatro rodas e as rodas que se usavam no verão tinham sido substituídas por
deslizadores de madeira com correntes que rangiam sobre a neve.
As campainhas do trenó que ele tinha usado nas pernas estavam penduradas
ao redor do pescoço de Cub e Toots, e balançavam ao ritmo da marcha na
noite clara salpicada por estrelas. O ar, de tão frio, cortava: os narizes podiam
congelar e, portanto, eles os cobriam com cachecóis, mas os viajantes
estavam de muito bom humor. Linnea teve que suportar uma descrição de seu
rosto ruborizado quando se sentou nos joelhos do Papai Noel e aturar muitas
brincadeiras a respeito de toda a situação. Theodore também aceitou de bom
grado sua porção de brincadeiras e todos riram do aroma de naftalina que se
desprendia de sua barba. Repetiram o comentário de Roseanne com respeito à
sopa e ouviam-se gargalhadas em meio à noite gelada.
Quando deixaram John em casa, ainda riam.
— Passaremos para te pegar pela manhã, no caminho para o povoado
— lembrou Theodore a John, quando este desembarcou da charrete.
— Certo — concordou John, enquanto se despedia com um boa noite.
O coração de Linnea murchou. Tinha abrigado a esperança de estar
sozinha com Theodore no trajeto até o povoado, mas aparentemente ele não
se atrevia a correr esse risco. Fora ousado em sentá-la sobre seu joelho na
frente de toda aquela plateia, mas não tinha coragem de lidar com ela
sozinha; apertara-lhe a cintura e até permitiu que ela lhe desse um beijo no
rosto diante de toda a escola, mas cuidava de manter a distância quando
ficavam sozinhos. Mas depois de pensar por alguns instantes, compreendeu a
importância de ele ir acompanhado nessa área durante o inverno e sabia que
não devia se zangar por John acompanhar Theodore no caminho de volta,
mas quando disporia de um minuto a sós com ele antes de partir? Na verdade,
era a única coisa que desejava para o Natal.
Chegando à casa, Theodore freou perto da porta traseira e todos
colaboraram para descarregar o veículo. Linnea repassou as coisas que queria
lhe dizer quando tivesse oportunidade. Mas era tarde e quando raiasse a
manhã, teria que realizar as tarefas, depois viria o café da manhã com toda a
família e logo John estaria com eles o tempo todo.
Theodore entrou na cozinha com o último monte de objetos e se voltou
para a porta para cuidar dos cavalos. Se ela não agisse naquele momento,
perderia a oportunidade.
— Vocês dois vão se deitar — Linnea disse para Nissa e Kristian. —
Quero falar um minuto com Theodore.
E saiu atrás dele. Ele já estava subindo na charrete quando ela gritou
para ele: — Theodore, um minuto!
Ele voltou-se para ela e perguntou: — O que você está fazendo aqui
fora?
Theodore estava perturbado, pois se sentia vulnerável e a última coisa
que precisava para quebrá-lo de vez era ficar sozinho com ela... Precisamente
nessa noite, quando se abatia sobre ele uma separação de duas semanas que
parecia de dois anos.
— Queria conversar com você por um momento.
Theodore lançou um olhar suspeito para as janelas da cozinha.
— Faz um pouco de frio aqui fora para conversar, não é?
— Não é nada comparado a bombear água na escola pelas manhãs.
No quarto de Nissa, a lamparina se acendeu.
— Deixe-me acompanhá-lo até o estábulo.
Um tempo infinito pareceu transcorrer enquanto ele tomava uma
decisão.
— Está bem. Suba.
Ele a ajudou a subir. Depois subiu e arrancou com os animais. A luz
leitosa da lua se erguia pelo moinho, alto e escuro, desenhando uma longa
sombra gradeada sobre a neve. Os armazéns eram sombras negras com
reluzentes chapéus brancos. Os deslizadores chiavam suavemente, as
campainhas tilintavam, as cabeças dos cavalos balançavam ao ritmo da
marcha.
— Você foi um Papai Noel esplêndido!
— Obrigado.
— Tive vontade de estrangulá-lo.
O homem riu:
— Já sei.
— Por que não me contou?
— Porque estragaria a surpresa.
— Faz isso todos os anos?
— Não, senão não seria surpresa.
— É sempre você?
— Não, mas tem que ser alguém que não tenha filhos pequenos, pois
do contrário seria reconhecido.
— E esteve muito bem lendo os nomes nos sacos. Como os aprendeu
tão rápido?
— Kristian me ajudou.
— Quando? — surpreendeu-se Linnea.
— Nós o fazíamos no estábulo.
— Ah — ela se sentiu um pouco enganada, mas insistiu.
— Promete-me que continuará praticando intensamente enquanto eu
não estiver aqui?
A única resposta dele foi um instantâneo sorriso. Ia guiando a charrete
para um beco que havia atrás do estábulo. De repente, com a lua escondida,
ficou muito escuro, mas os cavalos avançaram na escuridão, não se detiveram
e instantes depois receberam de novo os raios brancos sobre seus lombos.
Theodore desceu rapidamente e Linnea o imitou. Theodore rodeou os
cavalos, desatrelando-os do veículo, e cobriu a charrete com uma lona.
— Surpreende-me que Roseanne não tenha dito que a voz do Papai
Noel era como a de seu tio Teddy.
O homem riu em segredo.
— A mim também. Essa pequena é uma menina inteligente.
— Sei. E uma de minhas alunas preferidas.
— Os professores não deveriam ter alunos preferidos.
Linnea deixou que o silêncio se estendesse, agudo, durante vários
segundos, por fim disse brandamente: — Sei. Mas somos seres humanos,
afinal de contas.
Theodore se empertigou. Todo movimento cessou. De pé de ambos os
lados da charrete, contemplavam a sombra densa do beco.
Pense em algo, pensou consigo Theodore, algo, ou acabará por beijá-la
outra vez.
— Então John lhe levou a árvore de Natal?
— Sim, foi muita consideração da parte dele.
Theodore foi até os cavalos, guiando-os para o estábulo, e Linnea
andou ao seu lado, sentindo a atmosfera picante e fresca que cheirava a
amêndoas. Havia começado a gostar muito dessa fragrância.
— Está apaixonado por você, sabe?
— John! Oh, pelo amor de Deus, de onde tirou essa ideia tão absurda?
— John jamais levou uma árvore de Natal a nenhum dos professores
varões.
— Possivelmente porque eles não o pediram.
Theodore riu, irônico, e lhe ordenou: — Abra as portas.
Linnea abriu as grandes portas duplas e, depois de ele fazer os animais
entrarem, fechou-as. No mesmo momento em que estalou o fecho, acendeu-
se uma lamparina e Theodore a pendurou no teto, concentrando-se depois na
tarefa de tirar os arreios de Cub e de Toots e de colocá-los em suas
respectivas baias e alimentá-los. A moça lhe pisava nos calcanhares.
— Theodore, não sei de onde tira essas ideias, mas lhe asseguro que
não são corretas.
— Ainda temos o Rusty Bonner e o Bill. Não há dúvida de que os
coleciona, não é certo, Senhorita Brandonberg?
Com aparente indiferença, esticou-se na direção da lamparina e a
desprendeu.
— Rusty Bonner?! — protestou a moça. — Ele foi um... Um...
Theodore, volte aqui! Aonde vai?
A luz da lamparina desapareceu no estábulo, deixando-a quase na
escuridão total. Ela correu atrás dele, seguiu-o e cruzou os braços. Acaso esse
sujeito endiabrado tinha que procurar briga justo no momento em que ela
queria exatamente o contrário?
— Não os coleciono, como você diz, e me magoa que insinue isso.
Theodore pendurou as correias, formou laços com as rédeas e depois se
voltou para ela com a fileira de campainhas na mão.
— É o que acontece em Fargo? Lá tem mais peças da sua coleção?
Ele estava com os pés bem separados, os joelhos tensos, a fileira de
campainhas pendurada na mão.
— Não há ninguém em Fargo. Ninguém — declarou ela, veemente.
Com um impulso para o lado, Theodore jogou as campainhas sobre a
mesa de trabalho e elas caíram com um tinido abafado. Depois, fez-se
silêncio. Theodore meteu os punhos nos bolsos.
— E quem é Lawrence? — quis saber.
De repente, a belicosidade de Linnea desapareceu.
— L... Lawrence?
— Sim, Lawrence.
Nas faces de Linnea apareceram umas manchas vermelhas que
escureceram até chegar à cor das papoulas. Suas pupilas se dilataram e ela
entreabriu os lábios, perplexa.
— Como sabe de Lawrence? — conseguiu dizer, por fim, em um
murmúrio sufocado.
— Um dia a ouvi falando sobre ele.
Linnea quis morrer. Quanto tempo fazia que fantasiava com Lawrence?
No entanto, quase tinha se esquecido de sua existência. Agora, quando
beijava janelas, lousas e travesseiros, era Theodore que ela beijava, não
Lawrence. Mas como explicar semelhante criancice a um homem que já a
considerava uma menina?
— Lawrence não é assunto seu.
— Bem — retrucou ele, dando-lhe as costas e esfregando as
campainhas com um pano com exagerada violência.
— A não ser que esteja com ciúmes.
Dando a volta com brutalidade, Theodore lançou uma espécie de latido
para o teto: — Ora!
Pisando com força, Linnea aproximou-se até ficar a poucos centímetros
das costas do homem, desejando poder lhe dar um bom golpe para ver se
colocava um pouco de sensatez em sua cabeça. Senhor, que teimoso!
— Muito bem, se não está com ciúmes, por que se refere a ele... E a
Rusty e a Bill?
Theodore deixou cair as campainhas e se virou para ela: — Parece-lhe
que um homem de minha idade estaria com ciúmes de uma... uma menina
como você?
— Menina? — gritou. — Menina?!
— Exato — ele estendeu um braço e lhe roçou a comissura dos lábios.
— Olhe aqui, ainda não lhe secou de todo o leite nos lábios.
Linnea se retorceu para evitá-lo e lhe deu um chute na perna.
— Eu o odeio, Theodore Westgaard. Pedaço de covardia. Nunca vi um
homem tão assustado com uma garota — ela estava tão furiosa que as
lágrimas lhe saltavam e ela não podia controlar a respiração.
— Pior ainda... Eu vinha lhe agradecer p... pelo presente de Natal e
você... você... arruinou tudo, pr... procurando confusão.
Horrorizada, Linnea descobriu que já não podia mais conter o choro.
Theodore a amaldiçoou e agarrou a perna machucada, enquanto ela se
voltava e saía correndo do estábulo.
Sentindo-se profundamente desventurado, Theodore exalou um suspiro
de alívio. Que outra coisa podia fazer exceto procurar briga se ela o seguia
com aqueles enormes olhos azuis, tão belos, e o tentava a fazer coisas que
nenhum homem honrado imaginaria fazer com uma menina que acabava de
sair da escola?
Afundou na cadeira e ocultou o rosto entre as mãos. Por Deus, amava-
a! Que grande confusão! Embora fosse velho o suficiente para ser seu pai,
estava ali, sentado no estábulo, tremendo como qualquer rapaz que estivesse
mudando a voz. Não tinha intenção de fazê-la chorar... Deus, não, chorar não.
Ver aquelas lágrimas lhe tinha dado vontade de abraçá-la com força, de lhe
pedir perdão e lhe dizer que não havia dito uma só palavra a sério. Mas quem
era Lawrence? Por Deus, quem era? O que ele significava para ela?
Theodore estava quase certo de que se tratava de alguém que ela tinha
deixado em sua cidade, a julgar pela reação que tivera quando ele o
mencionou. Alguém que a fazia corar como um entardecer do verão e insistir
acaloradamente que não era ninguém. Mas nenhuma moça ficava tão inquieta
por um homem a menos que fosse alguém muito importante. Ficou por um
longo tempo no estábulo até estar seguro de que ela deveria estar na cama.
Triste, dedicou-se a lustrar os arreios e as fileiras de campainhas. Imaginou-a
reatando com a alegre vida da cidade, com todas as suas comodidades, com
suas antigas amizades, comparando algum varão de dezoito ou vinte anos
com um tipo velho como ele. Por fim, desesperou-se e suspirou, sentindo
cada um de seus trinta e quatro anos pesando-lhe no coração, experimentou
até a rigidez dos ossos. Decidiu, triste, que era melhor que fizesse
comparações. Era o mais conveniente para todos os envolvidos.
Pela manhã, nenhum dos dois falou durante o café da manhã. Nem no
trajeto até a casa de John. Nem no longo caminho até o povoado. O reflexo
do sol sobre a neve ofuscava. As campainhas da caleça tinham ficado no
estábulo e os cavalos pareciam menos corajosos sem elas.
Como se sentisse a tensão, John também guardava silêncio.
Na estação, os dois irmãos a acompanharam para o lado de dentro e,
quando ela fez o gesto de aproximar-se do guichê gradeado, Theodore a
deteve, segurando-a pelo cotovelo.
— Irei comprar o bilhete. Espere aqui com John.
Ela foi ao reservado das damas, substituiu o cachecol pelo chapéu com
as penas de pássaro e, ao voltar para a sala de espera, contemplou os ombros
largos de Theodore e a gola grossa da espessa jaqueta de lã voltada para
cima. Sentiu dentro de si que, onde antes tinha estado o espírito das festas,
agora havia um vazio. Uma só palavra da parte dele faria reviver esse espírito
e dissolveria essa terrível vontade de chorar. Mas Theodore deu a volta e lhe
entregou a passagem, sem sequer olhá-la. John levantou a mala e eles se
aproximaram do longo banco de madeira, com seus treze apoios de braços.
Ela se sentou, cercada pelos dois homens. Seu cotovelo se chocou com o de
Theodore, e ele se apressou em afastá-lo.
Em alguma parte da estação, soou um relógio de pêndulo e depois se
seguiu o silêncio cortante.
— Há algo de errado, Senhorita Linnea? — perguntou John.
Linnea teve a sensação de ter tragado uma bola de neve. As lágrimas
estavam prestes a rolar.
— Não, John, nada. É que estou um pouco cansada. Tive uma semana
muito ocupada na escola e ontem à noite voltamos tarde para casa.
Outra vez se fez silêncio. Ao olhar de soslaio viu que o queixo de
Theodore se movia e que seus músculos estavam tão tensos que se
sobressaíam. Tinha os dedos apertados sobre o colo e os polegares giravam,
nervosos, um em volta do outro.
— O trem chegará a qualquer momento — anunciou o chefe da
estação, e eles saíram para esperar na plataforma.
Sério, Theodore fixou os olhos nos trilhos. O trem apitou ao longe...
Uma vez, duas. Linnea se inclinou para pegar a mala da mão de John e viu
que, no rosto comprido e triste, os olhos tinham expressão angustiada.
Lágrimas já brilhavam nos seus e não pôde contê-las. Com um impulso,
rodeou o pescoço de John com um braço e apertou sua face fria na dele.
— Está tudo bem, John, sério. É que sentirei saudades. Obrigada pelo
presente. Vou abri-lo primeiro.
O braço do homem a estreitou por um momento e ela lhe deu um beijo
no rosto.
— Feliz Natal, John.
— O mesmo para você, senhorita — respondeu John, rouco de emoção.
Com certo acanhamento, Linnea olhou para Theodore.
— Feliz Natal, Theodore — disse, trêmula, estendendo-lhe uma mão
enluvada. — Também lhe agradeço pelo pre... presente, está guardado em...
Mas quando a mão do homem se ergueu lentamente para estreitar a sua,
já não pôde continuar. Os profundos olhos castanhos, transbordando de
infelicidade não expressa, cravaram-se nos dela. Apertou-lhe a mão com tanta
força, por tanto tempo, que lhe deu trabalho não fazer uma careta. As
lágrimas rolavam por seus cílios e corriam em gotas prateadas pelas faces da
moça. Theodore teve vontade de enxugá-las, mas resistiu. Linnea sentia o
coração cheio, maltratado, e ele pulsava tão pesadamente que a ela pareceu
sentir-lhe as vibrações na ponta das botas.
Pelos trilhos, do Oeste, o trem anunciou sua chegada em meio a uma
nuvem de vapor branco. Theodore engoliu saliva; Linnea, também.
De repente, ele lhe agarrou a mão e a arrastou atrás de si com tanta
brutalidade que Linnea deixou cair a mala e inclinou o chapéu.
— Theodore, que diabos...?
Theodore cruzou a plataforma e desceu os degraus, com passos tão
largos que ela precisava dar dois para cobrir cada um dos dele. O semblante
do homem estava tenso e ameaçador e ele continuava a arrastá-la ao longo
dos trilhos, dando a volta até a parte de trás da estação.
Linnea não teve o que fazer a não ser segui-lo aos tropeções, sem
fôlego, segurando o chapéu com uma das mãos. Theodore levantou-a entre
um carro de bagagem e a parede descolorida da estação, a fez girar e, sem
advertência, ergueu-a em seus braços, beijando-a com uma força e um
esplendor que rivalizavam com os da locomotiva que passava junto a eles
nesse mesmo momento, inundando-os com seu estrépito. A língua de
Theodore invadiu sua boca e seus braços a estreitaram com tanta força que as
suas costas rangeram. Desesperado, selvagem, abateu sua boca sobre a dela,
segurando-lhe a cabeça por trás e apertando-a contra a parede. As lágrimas
deslizavam pelo rosto da moça, molhando também o do homem.
Por fim, ele levantou a cabeça, com a respiração agitada sobre o rosto
da moça, a expressão torturada. Sua boca se moveu.
— Eu te amo — disse ele, mas nesse momento soou o apito do trem,
encobrindo as preciosas palavras que Linnea ansiava por escutar.
— O quê? — gritou ela.
— Amo você! — ele vociferou em voz rouca, infeliz. — Ontem à noite
eu queria lhe dizer isso.
— E por que não me disse?
Tiveram que gritar para se fazer ouvir acima do estrépito das uniões
dos vagões que se chocavam entre si à medida que o trem freava.
— Como estava assustado, fingi toda essa tolice de John e Rusty e
Lawrence. Vai vê-lo em Fargo?
— Não... Não!
Linnea quis chorar e rir ao mesmo tempo.
— Lamento tê-la feito chorar.
— Oh, é que sou tola... Eu... Oh, Theodore...
— Todos a booooordo! — gritou o condutor na esquina.
A boca de Theodore se abateu outra vez sobre a dela, aberta e voraz, e
desta vez Linnea se agarrou a ele tão desesperadamente como ele a ela. O
chapéu ficou esmagado sob a mão esquerda dele. Uma parte da parede se lhe
incrustou na cabeça e o broche do relógio lhe estampou no peito esquerdo.
Mas, por fim, Theodore havia dito que a amava.
Com a mesma brutalidade com que se apossou dela, apartou-se,
segurando-lhe o rosto, sondando-lhe os olhos com olhar angustiado.
— Diga-me.
— Eu também te amo, Teddy.
— Sei. Faz muito que sei, mas não sei o que vamos fazer. A única coisa
certa é que estou me sentindo infeliz.
— Oh, Teddy, não esbanje esse tempo precioso! Beije-me outra vez,
por favor!
Desta vez o beijo foi doce, ofegante, cheio de despedidas que, na
realidade, eram puro sentimento. Seus corações palpitaram com força. Seus
corpos sabiam. Afastaram as bocas só o suficiente para que ela pudesse
gritar: — Não quero ir.
— Tampouco eu quero que vá — respondeu, e depois invadiu uma vez
mais sua boca com a língua molhada e quente pela última vez.
Correndo, John deu a volta na esquina, gritando: — Vocês estão
loucos? O trem já vai sair.
Theodore se separou dela, levantando-a do chão, enquanto avançava
para o trem que começava a se mover.
— Meu chapéu!
— Deixa-o!
Correram para a porta do vagão prateado que começava a deslizar em
meio a uma quebra de onda de vapor e, no último momento, Linnea se
agarrou ao corrimão, foi levantada por trás e jogada a salvo no interior do
trem.
Aparecendo na janela, agitou a mão e lançou dois beijos às figuras que
se esgotavam, com as mãos levantadas sobre as cabeças.
— Feliz Natal! Feliz Natal!
Esse seria o dia mais feliz de sua vida.
Enquanto encontrava seu assento e se deixava cair nele com os olhos
fechados, perguntou-se como poderia viver sem ele.
CAPÍTULO 17
O PERFEITO CAVALHEIRO

O pai de Linnea estava esperando na estação para recebê-la, sorridente


e tão robusto como sempre fora, com o cabelo partido ao meio e o espesso
bigode loiro. Acolhida entre seus braços fortes, o rosto apertado contra o
casaco impermeável, ela sentiu o perfume familiar de sua colônia e sentiu que
as lágrimas se lhe amontoavam nos olhos.
— Oh, papai!
— Olá, pequena. Seja bem-vinda!
Linnea se esforçou tanto e tão duro por parecer uma pessoa
amadurecida que poder ser a menininha do papai outra vez foi um alívio
inesperado.
— O que é isto, uma lágrima?
— É que estou muito contente em vê-lo, papai — ela o beijou no
queixo, agarrou-se com força ao corpanzil do pai enquanto saíam da estação.
O senhor Brandonberg tinha comprado um novo Ford modelo T, um carro de
passeio e ninguém tinha contado para ela.
— O que é isso? — contemplou-o, atônita.
— Uma pequena surpresa. O negócio está crescendo bastante.
— Quer dizer que este carro é seu?
— É claro que sim. Sobe.
Andaram pelas ruas de Fargo saltando como cavalos, rindo, olhando
pelo chanfro horizontal do para-brisa. Era emocionante, mas, ao mesmo
tempo, a aparição do automóvel novo lhe dava a impressão de que fazia anos
que estava ausente e não meses. Queria voltar para olhar e encontrar tudo
como tinha deixado.
— No caminho para casa, quer que passemos pelo armazém? —
perguntou seu pai.
Era o armazém onde ela tinha trabalhado como auxiliar desde que
completou idade suficiente para trabalhar. A loja, com a mescla de aromas de
café, pós para limpeza e laranjas. Estaria a loja igual?
— Vamos — disse ela, entusiasmada.
Mas também no armazém havia mudanças. Da janela da frente, diante
da bandeira de James Montgomery, um carrancudo Tio Sam, apontando com
um dedo ossudo, admoestava: “Quero-te para o Exército dos Estados
Unidos”. Uma rádio crepitante — também nova aquisição —, de uma
prateleira, transmitia a nova canção de George M. Cohan, Over There. Junto
ao mostrador, havia um barril para recolher as latas vazias. Sobre o
mostrador, um pôster que dizia: “Destrua-os com os Bônus da Liberdade”. E,
atrás do mostrador, um rapaz absolutamente desconhecido.
— Aqui está. Adrian, ele está aqui desde que você foi para o Álamo.
Linnea, queria apresentar a você Adrian Mitchell, o rapaz que ocupou o seu
lugar como minha mão direita. Adrian, minha filha Linnea.
O ressentimento se apossou dela quase ao mesmo tempo em que se
deram as mãos sobre o mostrador. Sua mãe lhe tinha escrito, contando-lhe
que tinham empregado um novo rapaz e aí estava ele, com mais de um metro
e oitenta de estatura e uma elegante gravata de laço.
— Prazer, Senhorita Brandonberg.
— Senhor Mitchell — respondeu amável.
— Adrian está no segundo ano da Universidade. E vai avançando —
contou o pai, com evidente orgulho na voz.
Adrian lhe sorriu.
— E pelo que entendi, você está no primeiro ano de graduada da escola
normal. Como é ir ensinar tão longe?
Conversando com ele, Linnea notou que tinha uma cordialidade inata,
os dentes mais perfeitos que tinha visto e um rosto quase injustamente tão
bonito. Isso não fez mais que aumentar seu ressentimento por ele ter
usurpado seu lugar.
Não ficaram muito na loja. Pouco depois, já estavam de novo a bordo
do Ford, dirigindo-se para casa.
— Acreditei que tinha dito que empregara um novo rapaz — comentou
Linnea, seca.
O pai se limitou a rir.
— Bom, de onde o tirou?
— Um dia ele entrou e disse que necessitava de um emprego para se
manter enquanto estudava e prometeu fazer crescer nosso negócio em cinco
por cento nos seis primeiros meses ou ele me reembolsaria a metade de seu
salário, e que me condenem se não o obteve em três!
Ao ressentimento de Linnea veio se juntar o ciúme. Desejou chegar à
casa de seu pai mais rápido, onde tudo estaria igual como quando partiu.
Sua mãe estava preparando seu prato preferido: fricassê de frango, e o
coração da moça transbordou de gratidão. No andar de cima, Carrie e Pudge
tinham o quarto imaculado, mas quando Linnea desceu à cozinha e perguntou
onde estavam suas irmãs, a mãe lhe respondeu: — Oh, temo que tenham
saído, mas chegarão para a hora do jantar.
— Saíram? — repetiu Linnea, decepcionada.
Tinha esperado que se precipitassem sobre ela com centenas de
perguntas, com o mesmo assombro infantil que exibiam quando souberam
que a irmã mais velha sairia para o mundo.
— O grupo das Escoteiras está cortando e costurando mochilas de
campanha para os soldados que vão partir.
Mochilas de campanha? Suas irmãs mais novas?
— Então, passou pela loja? — perguntou sua mãe.
— Sim, uns minutos.
— Então conheceu Adrian.
— Sim.
— O que achou dele?
Linnea lançou um olhar de suspeita para a mãe, mas Judith estava
atarefada modelando pastéis e jogando-os na frigideira.
— Não estive lá mais do que cinco minutos.
Nem pense nisso, mãe. Não é meu tipo.
Carrie e Pudge chegaram a tempo para o jantar, contentes por ver a
irmã, mas agitadas e falando pelos cotovelos de suas próprias atividades,
quase sem perguntar pelas dela. Durante a comida, Linnea se inteirou de que
a tropa das Escoteiras tinha passado semanas recolhendo caroços de pêssego
para queimá-los e convertê-los em carvão, que seria usado na confecção de
filtros para as máscaras de gás, e que agora se comprometeram em uma
campanha por meio da qual reuniriam sabão, agulhas, fios e outros elementos
necessários para encher as mochilas de campanha. Carrie estava
entusiasmada pelo fato de que cada pessoa que enchia uma mochila podia
colocar nela um cartão com seu nome. Esperava receber notícias de quantos
soldados receberiam as suas. Conversavam sobre os bordados que estavam
fazendo para a venda de caridade na escola, com o qual pensavam ganhar os
cento e vinte e cinco dólares que doariam à Campanha de Recursos de
Guerra.
Linnea estava desconcertada. Quando saíra de casa, suas irmãs se
dedicavam a subir nas árvores e a esfolar os joelhos. Carrie era desajeitada.
Agora, em troca, exibia uma silhueta esbelta. O cabelo da cor do mel chegava
aos ombros e logo seus olhos azuis atrairiam a atenção dos rapazes. Pudge
também tinha mudado: o apelido já não lhe servia. Estava muito bonita e já
não usava os cabelos trançados, mas uma cascata de cachos de cor caramelo
presas por uma fita. Quando falava do trabalho no grupo das escoteiras, os
olhos amendoados se acendiam de entusiasmo, e Linnea podia imaginar a
bela jovem que chegaria a ser muito em breve. Como podiam ter mudado
tanto em quatro meses?
— O que é estopa? — perguntou Linnea, e todos a olharam como se
tivesse blasfemado.
Mas isso não era tudo. Pouco antes, seu pai tinha passado um dia junto
com outros cidadãos que se autodenominaram “Ordem de Serradores de
Madeira”. A Companhia de Azulejos Fargo tinha doado um lote de bosque
junto ao rio para a Cruz Vermelha e os homens tinham passado o dia
cortando árvores e serrando-as para fazer lenha. Depois, essa lenha foi
leiloada e tal esforço de guerra rendeu 2.264 dólares. Seu pai serrando
madeira? O patriarca ainda lhe explicou que, naquele ano, a festa de Natal
seria menos abundante.
Linnea só queria que as coisas fossem como antes. Na verdade,
esperava que sua volta ao lar a convertesse no eixo em volta do qual girasse a
família enquanto ela estivesse ali. Na verdade, o eixo era, aparentemente, o
esforço bélico.
Quando foi se deitar à noite, permaneceu acordada ruminando sua
desilusão. Estivera ausente por quatro meses, nem sequer quatro meses
completos, e não tinha deixado sua casa mais vazia que uma caneca de água
tirada de um barril cheio. Suas emoções eram como um torvelinho. Não
desejava nada mais que atenção e carinho por parte de sua família, mas todos
estavam muito ocupados, muito comprometidos. Sentiu vontade de chorar,
mas as lágrimas não vinham com tanta facilidade como no verão anterior,
antes que começasse a amadurecer.
Pelo menos a casa não tinha mudado. O dormitório que compartilhava
com suas irmãs era tão luminoso e alegre como sempre, com o papel floreado
nas paredes e as longas janelas duplas. Quando se levantou pela manhã, o
chão não estava gelado sob seus pés e não teve que caminhar por um atalho
nevado para um edifício externo, nem se lavar em uma bacia, nem percorrer
um longo caminho até a escola, jogar carvão, acender fogo nem bombear
água. Entretanto, sentia saudades de tudo isso terrivelmente.
Na véspera de Natal, seu pai lhe pediu que fosse ajudá-lo na loja, como
estava acostumado a fazer.
— Muitos clientes me perguntam por você, sei que adorariam revê-la;
além disso, hoje realmente me serviria bem sua ajuda. Até que fechemos, será
uma correria.
— Mas tem o rapaz novo.
— Adrian estará lá, mas haverá trabalho suficiente para manter todos
ocupados. O que me diz, pequena?
Ela não podia negar nada ao seu pai quando a chamava pelo antigo
apelido familiar e, por muito que tivessem mudado as coisas, ela adorava ir à
loja.
Quando chegaram, Adrian já estava ali, embelezado com elegantes
roupas de estudante, varrendo a neve da calçada.
— Bom dia, Senhor Brandonberg! — saudou, tirando uma boina de
tweed das que estavam acostumados a usar os golfistas e sorrindo para
Linnea ao mesmo tempo.
— Senhorita Brandonberg — disse ele e ela também o cumprimentou,
embora secamente.
— Bom dia, Adrian. Convenci-a de que hoje viesse nos ajudar.
— É obvio, não será demais. Está desfrutando de suas férias? —
perguntou Adrian.
Com as mãos cruzadas sobre o cabo da vassoura, Adrian Mitchell
tagarelava com tanta amabilidade como se fossem velhos amigos. Tinha um
sorriso maravilhoso, que luzia quase todo o tempo, aquele tipo de cortesia
natural que ela se esforçava tanto por ensinar aos seus alunos. Saudava
aqueles que passavam tirando a boina e lhes desejando uma boa manhã.
Quando Linnea e seu pai se dirigiram para o interior da loja, abriu-lhes a
porta para depois continuar varrendo.
Minutos depois, quando ele voltou a entrar, Linnea o observou mover-
se pela loja. Pendurou no cabide que havia no fundo seu elegante casaco e a
jaqueta do traje, colocou um avental branco engomado e, assobiando baixo,
passou as faixas para frente e depois as atou para trás. Movia-se com uma
vivacidade e uma confiança que lhe davam mais aparência de ser o dono do
local que o próprio dono. Salpicou mistura de limpeza sobre o chão e varreu
tudo sem que seu chefe tivesse de lhe dizer uma só palavra. Uma vez
terminada a tarefa, e com o lugar impregnado de um agradável aroma, foi até
a porta, abriu as persianas verdes das altas janelas e virou o pôster que dizia
“aberto”.
O primeiro cliente foi um menino que Linnea não reconheceu e a quem
a mãe tinha enviado no último momento para comprar uma libra de toucinho.
Antes que o menino se fosse, Adrian colocou algo no saco e lhe disse:
— Dê isto à sua mãe, certo, Lonnie?
— O que lhe deu? — perguntou Linnea para seu pai em um sussurro —
Um separador de ovos. Adrian teve a ideia de dar pequenos utensílios de
cozinha como gesto de boa vontade durante as festas de fim de ano.
Demonstra aos clientes que somos gratos pela fidelidade.
Linnea contemplou o perfil de seu pai, que admirava Adrian; não havia
dúvida de que o novo empregado era o seu favorito.
Outra vez surgiu o ataque de ciúmes, mas, à medida que o dia
avançava, chegou a entender por que seu pai o valorizava tanto: os clientes o
adoravam; conhecia todos por seu nome, perguntava-lhes por suas famílias e
lhes indagava se conheciam a Senhorita Brandonberg, que estava ali naquele
dia, que havia retornado da escola e que estava ali para saudá-los a todos.
Cada vez que um cliente se retirava, desejava-lhe: — Tenha um Feliz Natal,
senhor ou senhora Fulano de Tal!
Sem dúvida, Adrian sabia ser amável. Em outros momentos, Linnea o
observava com dissimulação e se perguntava se sua atitude não seria falsa.
Mas, muito antes de terminar o dia, chegou à conclusão de que era genuíno,
um comerciante nato que amava as pessoas e que não tinha escrúpulos em
demonstrá-lo.
Às quatro da tarde, quando fecharam a loja, o pai de Linnea deu a
Adrian um presunto como presente de Natal. O jovem tinha algo guardado
atrás da loja: uma caixa larga e alta, que deu ao patrão antes que os dois
trocassem um carinhoso aperto de mãos. Depois se voltou para Linnea com
seu sorriso radiante: — Senhorita Brandonberg, espero que voltemos a nos
encontrar enquanto estiver na cidade. De fato, se seu pai não se opuser,
gostaria de passar por sua casa uma noite destas para lhe fazer uma visita.
Olhou para Selmer Brandonberg procurando aprovação e, antes que a
moça pudesse interpor alguma objeção, o pai respondeu: — Quando quiser,
Adrian. Só avise à Senhora Brandonberg para que ela coloque outro prato na
mesa.
— Obrigado, senhor, farei isso.
E, para Linnea, ele disse: — Então, uma noite da semana que vem,
quando passar a confusão do Natal, pode ser?
Linnea estava estraçalhada. O jovem era tão direto e seguro que, sem
lhe dar oportunidade de rechaçá-lo, emitiu as últimas felicitações para as
festas e saiu. Ela ficou boquiaberta, os olhos fixos nas persianas que
balançavam.
— O que acha dele? — perguntou-lhe o pai.
Com as mãos nos quadris, Linnea compôs uma careta de desgosto.
— Você me disse que tinha empregado um novo rapazinho. Ele não é
mais um rapazinho — disse Linnea.
Selmer vestiu o casaco, ergueu uma sobrancelha e sorriu.
— Sei — abotoando o casaco, repetiu: — Pergunto o que achou dele.
Linnea lhe dirigiu um olhar divertido.
— Ele ainda não é candidato para o Congresso, não é?
Selmer riu.
— Não, mas lhe dê tempo. Estou seguro de que será.
— É exatamente o que acho — respondeu Linnea.
Olharam-se por uns segundos e depois explodiram em gargalhadas.
Mas quando saíam da loja, Linnea pôs a mão enluvada sobre a lapela do pai.
— É bonito, dinâmico e verdadeiramente tem pulso de comerciante, e,
embora a princípio eu tenha ficado com bastante ciúme dele, já vejo que para
você foi uma ótima aquisição. Mas não estou procurando noivo, papai.
O pai lhe afagou a mão e a conduziu até a porta.
— Tolice, pequena. Você mesma disse que Adrian não é nenhum
rapazinho.
Assim que chegou à casa, formularam-lhe três vezes a mesma pergunta:
— O que achou de Adrian?
Era evidente que toda a família estava na expectativa de que ela e
Adrian namorassem. Romperam em exclamações ao se inteirarem de que
Adrian tinha presenteado Selmer com uma garrafa do mais fino conhaque de
Boston, a marca favorita do patrão, a que raramente podia se permitir pelo
alto preço.
— Oh Selmer! — exclamou a esposa —, não é muita consideração
desse rapaz? E pensar que ainda está lutando para terminar seus estudos.
Linnea se conteve, com muita dificuldade de virar os olhos,
desdenhosa. Quis dizer a todos que estavam perdendo o tempo quando
tentavam lhe impor Adrian, porque havia outro homem em sua vida. Pensou
em Theodore e se perguntou o que diriam se ela falasse dele. Entenderiam se
lhes explicasse que, sob o exterior sério, se escondia um homem
profundamente vulnerável? Que seu maior desejo era aprender a ler? Que
defendia a família e até a sobrinha mais nova com nobreza e ferocidade? Que
em um momento podia zombar dela e no seguinte compartilhar o livro de
hinos? Que lhe cortava o coração quando tinha que soltar os cavalos à
chegada do inverno?
Mas pesava o fato de que se apaixonara por um fazendeiro analfabeto
de trinta e quatro anos, que usava aventais de trabalho com bolso, que ainda
vivia com a mãe e que tinha um filho quase da mesma idade que ela? Como
era possível comparar um homem assim com um empreendedor estudante
universitário de vinte e um anos com cérebro, ambição, ótima aparência e
carisma suficiente para subjugar sua mãe até lhe fazer esquecer o bom senso?
Linnea temia não poder fazê-lo, e por isso não disse nada sobre
Theodore Westgaard.
Abriram os presentes e, fiel a sua palavra, Linnea escolheu primeiro o
de John. Realmente comoveu-a a estátua de um gato com as patas colocadas
debaixo dele, como o que tinha visto frequentemente na soleira de sua casa e
que ele tinha esculpido à mão. O de Frances era um agulheiro feito com um
novelo de lã, metido em uma parte de veludo de cor framboesa. O presente de
Nissa era um belo xale tecido em crochê com lã branca, salpicado de fios
prateados; o de Kristian, ela sufocou uma exclamação, era o mais bonito par
de luvas que tinha visto na vida. Eram feitas de vison e, quando colocou as
mãos dentro, soube que jamais teria nada mais quente. Suas irmãs a levaram
ao rosto para que as acariciasse, e sua mãe provou uma, passou-a pelo
pescoço e lançou exclamações de deleite.
— Que bonito presente! — disse Judith, devolvendo a luva. — Que
idade tem esse Kristian?
Um pouco incomodada, Linnea se perguntou se estaria ruborizada: —
Dezessete.
Selmer e Judith Brandonberg se entreolharam com expressões
significativas.
— Muito bem pensado para ser um rapaz de dezessete anos —
comentou a mãe.
Linnea olhou nos olhos da mãe com a esperança de retificar sua
impressão errônea.
— Kristian caça no rio e assim é como obtém os visons.
— Que engenhoso! — Judith sorriu e acrescentou: — Tem outro
presente, querida. De quem é?
— De Theodore.
Intencionalmente, tinha-o deixado para o final. Era pesado e estava
envolto no mesmo papel que os sacos onde tinha posto os presentes para os
alunos. Passou-lhe a mão em um gesto que simulava uma carícia.
— Ah, sim, o pai de Kristian.
A frase de sua mãe a tirou de seu devaneio e compreendeu que ele
entregara o presente a ela na presença de toda a família.
— Bom, vamos, abra-o — exigiu Pudge, impaciente.
Enquanto abria o pacote, Linnea recordou os zombadores olhos
castanhos do Papai Noel, quando ela estava sentada em seu colo, e a sensação
de seus lábios ao se apossar deles sobre uma firme face pintada de cor rosada,
por cima da áspera barba branca. E o sussurro: Não o abra aqui.
De repente, nesse momento, desejou estar naquela casa danificada pelo
tempo, na pradaria varrida pela neve.
Era um livro de poemas de Tennyson,[23] belamente encadernado em
castanho e dourado, com gravuras de seres angélicos embelezados com
tênues túnicas, cujos pés descalços iam deixando uma chuva de rosas.
Na folha de rosto, estava escrito com grande cuidado: “Feliz Natal,
1917. Para Linnea Brandonberg, da parte de Theodore Westgaard. Algum dia
também saberei lê-los!”
Linnea ocultou o prazer secreto enquanto mostrava o belo livro para a
família.
— Eu o estou ensinando a ler e a escrever em inglês; como sabem, ele é
norueguês; mas não sabia que ele já podia escrever o meu nome. Que legal!
Kristian deve ter lhe auxiliado com a dedicatória.
A mãe pegou o livro, passou as pontas dos dedos sobre o caro dourado
da capa, leu a dedicatória, olhou para a filha com uma expressão pensativa e
murmurou: — Que lindo presente, querida.
Várias vezes, durante o jantar de Natal, Judith olhou para a filha e a
surpreendeu com os olhos cravados no prato, com expressão distante. Não era
a primeira vez que notava que ela estava distante. Havia em Linnea uma
reticência pouco habitual desde que tinha chegado, algo pouco característico
dela. Naquela noite, mais tarde, Judith perguntou a Selmer.
— Notou algo diferente em Linnea?
— Diferente?
— Está tão... não sei... apagada. Não está efervescente como sempre
era.
— Ela está crescendo, Judith. Isso tinha que acontecer, não é verdade?
É uma moça jovem com responsabilidades de adulta, que saiu de casa,
afastou-se de seus pais para trabalhar — levantou o queixo de sua esposa e
lhe deu um beijo no nariz. — Não pode continuar sendo a nossa pequena para
sempre, não é?
— Não, suponho que não — Judith se virou e começou a se despir para
se deitar.
— Ela disse... bom, ela disse algo hoje na loja? — insistiu a mulher.
— Com respeito a quê?
— Comentou sobre alguém? Citou algum nome...
— Com respeito a quem? De quem espera que ela diga algo?
— Isso é o que mais me intriga. Não estou segura de se pode ser o tal
de Kristian o... ou o pai desse rapaz.
— O pai?! — Selmer deixou de desabotoar a camisa.
— Bom, acaso não viu sua expressão quando abriu aquele pacote e
encontrou o livro que ele lhe deu de presente?
— Você deve estar vendo coisas, Judith.
— Espere e verá.
— Mas esse sujeito deve ter ao menos quarenta anos, não é? — era
evidente que Selmer se inquietou. — Disse algo a você? — perguntou o pai,
preocupado.
— Não, não acho que ela me diria algo, tendo em vista que esse
homem tem um filho da idade dela e que ela... ela vive na casa dele.
Selmer fez um esforço para se acalmar e puxou a esposa para seus
braços.
— Talvez nos equivoquemos. Linnea tem uma cabeça sólida e, além
disso, até agora sempre confiou em você. E ainda não te dei a boa notícia:
Adrian Mitchell me pediu permissão para vir vê-la algum dia desta semana.
— Sério? — o rosto de Judith se iluminou. — De verdade?
— O que acha de colocar água no feijão para o convidado de nossa
filha?
— Oh, Selmer, sério? — os olhos da mulher brilharam como velas de
Natal e ela lhe apertou as mãos. — Imagine-os juntos. Ele é perfeito para ela
— Judith abriu um grande sorriso.
— Mas devemos ter cuidado para não a pressionarmos muito — disse o
pai com gentileza. — Sabe quão decidida é essa garota quando suspeita que
está sendo coagida. Contudo, não é nada mal convidá-lo um par de vezes
antes que ela retorne para o Álamo, e depois, quando este verão chegar,
talvez ela fique em casa, quem sabe?
Judith deu a volta e começou a andar pelo quarto com uma mão na
cintura, tocando com a outra o lábio inferior.
— Vejamos. Prepararei algo esplêndido. Poderiam ser costelas de
porco recheadas e o bolo de avelã de minha mãe. Poríamos a melhor louça
e...
Selmer já cochilava enquanto Judith seguia fazendo planos.
Adrian foi na quarta-feira e teve a boa ideia de levar para sua anfitriã
uma lata redonda que continha bombons de hortelã para servir com o café
depois do jantar. Sentado com toda a família no vestíbulo, ficou até as dez da
noite, depois deu boa noite para Linnea com toda cortesia. Quando Judith
insistiu em que o acompanhasse até a porta, Linnea se levantou e foi.
Adrian tornou a voltar na quinta-feira, por volta das sete da noite,
conversou com toda a família uma meia hora e depois propôs ir dar um
passeio com Linnea.
— Oh, eu não... — disse a moça.
— É uma ideia maravilhosa — intrometeu-se a mãe. — Caramba,
querida, a única coisa que fez desde que chegou foi ficar trancada em casa
conosco, com os velhos. Vá dar um passeio com o Adrian.
— Linnea — insistiu Adrian em voz baixa, e Linnea era muito gentil
para colocá-lo na incômoda situação de rejeitá-lo.
Caminharam ao redor do estrado para a orquestra no parque da cidade e
falaram de suas respectivas famílias, de seus respectivos trabalhos, da
faculdade dele, da escola dela e dos presentes que tinham recebido de Natal.
Uma vez, Linnea escorregou e ele a segurou pelo cotovelo e a acompanhou
de volta até sua casa em meio à suave neve e, quando chegaram ao alpendre,
fê-la girar para ele e lhe deu um gentil beijo na boca.
Ela se voltou para trás.
— Não faça mais isso, Adrian, por favor.
— De que outro modo posso defender minha posição? — perguntou ele
em tom agradável, ainda sem soltá-la.
— É um rapaz encantador, mas... — perturbada, Linnea guardou
silêncio.
— Mas? — o jovem inclinou a cabeça e insistiu.
— Deixei uma pessoa lá no Álamo.
— Ah! — ele exclamou um pouco decepcionado.
Ficaram calados por alguns instantes. Ela olhava na direção do peito
dele e ele, para o rosto dela, até que Adrian perguntou.
— E é sério?
— Acredito que sim.
— Prometeu algo a ele?
Linnea negou com a cabeça.
— Bom, nesse caso, não haveria problema algum se viesse comigo a
uma festa na noite de Ano Novo.
Linnea ergueu o olhar.
— Mas eu lhe disse que...
— Sim, que deixou alguém no Álamo. E, embora respeite isso, de
qualquer modo eu gostaria de contar com a sua companhia. E garanto que
não tenho outros planos a não ser sua companhia — Adrian ergueu-lhe o
queixo. — Tem algum problema?
Céus, não existia justiça no mundo quando um homem podia ser tão
bonito.
— Não.
— Só estarão presentes alguns amigos meus que têm mais ou menos a
nossa idade. Iremos patinar no gelo e depois voltaremos para a casa de uma
das garotas para comer algo. Eu a traria para casa por volta de uma da manhã.
O que acha?
Parecia divertido e fazia muito tempo que ela não ficava com pessoas
de sua idade. E se não fosse com ele, o mais provável era que recebesse o
novo ano estendida na cama, desejando ter aceitado o convite.
— Nada de beijos à meia-noite? — disse Linnea e Adrian levantou a
mão, como um escoteiro.
— Prometido.
— E não rirá de mim se eu cair um par de vezes no gelo?
Adrian riu, fazendo relampejar seus branquíssimos dentes.
— Prometido.
— De acordo: temos um encontro — disse Linnea.
Na data marcada, Adrian levou-lhe violetas. Violetas por acompanhá-lo
a uma sessão de patinação. Era um mistério de onde as teria tirado no meio
do inverno de Fargo, Dakota do Norte, e eram as primeiras flores que Linnea
recebia de um homem. Mas quando as aceitou sentiu-se culpada, pois pensou
em Theodore. Adrian tinha tomado emprestado o automóvel de seu pai para a
saída e, quando Linnea entrou nele, sua culpa aumentou, mas, à medida que
transcorria a noite, esqueceu Theodore e se divertiu muito.
Patinaram no gelo, cantaram, beberam cidra de maçã quente, voltaram
para a casa de uma garota chamada Virginia e brincaram de jogos de salão,
dançaram e brindaram o novo ano com um coquetel de champanha.
Mas, fiel a sua palavra, Adrian se comportou como um autêntico
cavalheiro durante toda a noite. Quando a levou para casa, Linnea tentou
despedir-se brevemente, mas ele a acompanhou até o alpendre, reteve-lhe as
mãos, apoiou um ombro contra a parede e a observou com desconcertante
atenção.
— É a moça mais bonita que já conheci, sabe?
Linnea baixou o olhar para o peito dele.
— Adrian, obrigada, mas realmente tenho que entrar.
— E é tudo o que seu pai disse de você. E óbvio, vi seu retrato antes:
ele está muito orgulhoso de você. Mas naquele dia, quando você entrou na
loja e eu a vi pessoalmente pela primeira vez, pensei imediatamente: “essa
garota é para mim” — fez uma pausa, apertou-lhe as mãos, e disse em voz
mais suave: — Venha aqui, Linnea.
Sobressaltada, ela levantou a cabeça: — Adrian, você me prometeu.
— Prometi que não haveria beijos à meia-noite. Agora faltam quinze
minutos para uma da manhã.
Com movimentos lentos, retirou o ombro da parede, ao mesmo tempo
em que Linnea confirmava o quanto a natureza o tinha favorecido. Era injusto
que tivesse uma aparência tão agradável. Além disso, jamais tinha conhecido
um homem que cheirasse melhor, tampouco que fosse mais cortês e
encantador. Seus pais estavam fascinados por ele. Escandalizar-se-iam
quando ela lhes contasse de Theodore. Suponhamos... suponhamos, nada
mais, que correspondesse ao beijo de Adrian e descobrisse que era tão
emocionante quanto o de Theodore. Todas as suas preocupações se
acabariam.
Os lábios do moço, abertos sobre os dela, eram suaves e sedosos.
Quando ele lhe colocou a língua na boca, a sua respondeu vacilante. Quando
a estreitou com força nos braços, ela se apertou contra ele. Quando lhe
acariciou as costas, ela lhe acariciou os ombros. Todavia, em lugar de ter
borboletas no estômago, fogo nas entranhas e ver estrelas, surpreendeu-se a si
mesma analisando o perfume do fixador para o cabelo e o amido que a mãe
lhe punha nas golas das camisas. Deixou-o beijá-la todo o tempo que ele quis
e esperou que algo acontecesse, mas... Mas nada aconteceu, nada.
Adrian levantou a cabeça, deslizou as mãos para os lados dos seus seios
e exalou sobre os lábios de Linnea, roçando-os com delicadeza uma, duas
vezes.
— Linnea, querida — sussurrou —, esperarei o verão com impaciência.
Entretanto, ela sabia que nem mesmo no verão seus sentimentos por
Adrian mudariam. Se tivesse que acontecer, já teria acontecido.
Mais tarde, já deitada, a culpa tomou conta dela. Nunca tinha beijado
nenhum homem até alguns meses atrás e agora já tinha beijado quatro.
Supunha que os quatro deviam saber o que faziam, e se perguntou se ter
recebido esses beijos a convertia em uma perdida. Supôs que sim e que
Theodore era muito honrado para merecer uma mulher como ela. Contudo,
tinha reagido a cada um deles de maneiras muito diferentes. Ao recordar o
beijo de Rusty Bonner, tão eficiente em sua prática de beijar, estremeceu. Era
bastante provável que Rusty tivesse deixado um rastro de filhos bastardos do
Rio Grande até a fronteira com o Canadá. Que ingênua tinha sido... Recordá-
lo nesse momento era embaraçoso. E Bill? Cada vez que se recordava de
como ele lhe tinha metido o joelho entre as pernas, enfurecia-se de novo. E, é
claro, Adrian, o perfeito cavalheiro, o impecável Adrian. Quase desejou sentir
no sangue o fogo que outrora lhe queimara quando Theodore a beijara, pois
assim tudo teria sido mais simples. Depois de tudo, era a alternativa mais
lógica. Entretanto, o amor não fazia muita questão da lógica. E quem ela
amava era Theodore. Só seu beijo tinha o poder de sacudi-la até as plantas
dos pés, de fazê-la arder, sentir-se bem, ansiosa, como se o amor entre ambos
fosse coisa predestinada. Pouco importava para ela a idade, o fato de ser
analfabeto, sua singela criação, a forma como se vestia ou o fato de já ter sido
casado e de ter um filho quase da idade dela. O que importava era ser
honrado, bom, e, diante da perspectiva de voltar a vê-lo no dia seguinte, seu
coração palpitar e o sangue acelerar.
Pela manhã, estava fazendo as malas para partir quando sua mãe
apareceu na soleira do dormitório, com os braços cruzados, apoiando-se no
marco da porta. Suas irmãs tinham saído para patinar e a casa estava em
silêncio.
— Olá, filha. Estive esperando que me contasse algo desde que chegou
aqui em casa, mas acredito que, se eu não perguntar, você não o fará
espontaneamente, não é, Linnea?
A moça se voltou, com uma pilha de roupa íntima limpa nas mãos.
— Contar o quê?
— O que a está preocupando.
Por um instante, Linnea pensou em se calar e negar, mas no final se
sentou na beirada da cama e baixou os olhos para a roupa que tinha sobre o
colo.
— Mãe, como se sabe quando se está apaixonada? — perguntou em
tom queixoso.
— Apaixonada?
Judith se endireitou e depois atravessou o quarto para se sentar junto à
filha. Tomou a mão de Linnea entre as suas e a encarou.
— Por Adrian? — perguntou, esperançosa.
Linnea se limitou a negar com a cabeça, desconsolada.
— Então é pelo tal de Kristian?
Linnea negou mais uma vez e levantou lentamente a cabeça para olhar
nos olhos da mãe.
— Oh, querida... — lamentou Judith. Soltando seus dedos e apoiando a
mão sobre os lábios. — Não... não será do pai que está falando...
— Sim, mãe, e ele se chama Theodore.
Alarmada demais para falar, Judith se inclinou para voltar a tomar a
mão da filha.
— Mas ele deve ter... quantos anos? Trinta e tantos, não é?
— Trinta e quatro — respondeu Linnea, muito decidida. Agora que
começara a falar, iria até o fim.
— E foi casado, não é?
— Faz muito tempo.
— Oh, minha menina, não seja tola. Isso não pode ser. Quão longe as
coisas chegaram?
— Não chegaram a lugar algum, mãe — Linnea retirou a mão, irritada,
e se levantou para guardar a roupa na mala. — Ele se debateu contra esse
sentimento, precisamente porque acredita que sou só uma menina.
Judith apertou uma mão contra o coração e exclamou com voz fraca: —
Oh, graças a Deus!
Linnea girou com rapidez e se deixou cair, abatida: — Mãe, estou
muito confusa. Não sei o que fazer.
— O que fazer? Bom, pelo amor de Deus, filha, tire-o da cabeça. Ele
tem quase a idade de seu pai. O que pode fazer é continuar vendo Adrian
Mitchell quando retornar no próximo verão. Parece que ele está muito
interessado em você — interrompeu-se, coçou a cabeça, e perguntou. — Ele
está, não é?
— Suponho que sim — Linnea ergueu os ombros. — Se beijar significa
estar interessado em alguém.
— Adrian beijou você?
Judith parecia muito contente.
— Sim. E acredito que foi o beijo mais experiente que é possível
receber. Tratei de pôr nele meu coração... sério, mãe, fiz de tudo para gostar,
mas não aconteceu nada.
A preocupação de Judith se renovou.
— Supõe-se que nada deve acontecer até que estejam casados.
— Oh, sim. Não é disso que estou falando, mãe. Estou me referindo
àquilo que sentimos quando a pessoa que amamos chega perto da gente,
aquela queimação nas entranhas, borboletas no estômago, aquela agitação no
coração que parece que vai sair pela boca. Não acontece com você quando o
papai entra no mesmo aposento onde está? Como se fossem cócegas no
estômago, como se lhe faltasse o ar? Mãe, eu...
— Linnea — Judith a interrompeu.
— Bom, não acontece com você, mãe? — Judith quis se levantar
rapidamente, mas a jovem a segurou pelos ombros. — Oh, mãe — Linnea
seguiu, determinada —, não me diga que isso não existe e que não acontece,
pois é real. Cada vez que vejo o Teddy aparecer na porta, meu coração salta
no peito a ponto de eu pensar que todos estão escutando suas batidas. Cada
vez que o vejo entrar com os cavalos no pátio também. Isso acontece comigo
até quando brigamos.
Desconcertada, Judith não se atreveu a fazer outra coisa senão encarar
sua filha. Alguns instantes depois, perguntou-lhe: — Vocês brigam?
— Oh, brigamos constantemente — Linnea se levantou e continuou
arrumando a mala.
— Penso que durante um bom tempo ele procurava briga para não ter
que admitir que também gostava de mim. E porque sabia que eu sentia o
mesmo por ele e ele sentia um medo terrível. Já te disse que ele se considera
muito velho para mim, mãe? Mas isso não é ridículo?
Judith tinha de dissimular o pavor que lhe cortava a alma; levantou-se
e, aproximando-se de Linnea, puxou-a pelos ombros.
— Ele tem razão, é muito velho para você, Linnea.
— Não — refutou a teimosa moça.
— Ele tem um filho quase de sua idade, menina. Inquietava-me que o
rapaz sentisse algo por ti, mas pensar que esteja apaixonada pelo pai é um
absurdo, Linnea.
Os olhares angustiados se encontraram. Linnea disse em voz baixa: —
Sem dúvida, sei que vocês esperam que eu me apaixone pelo Adrian e que
me case com ele. Quem dera pudesse e falo sério, mãe. Mas será melhor que
eu esclareça: não acredito que isso vá acontecer, a julgar pelo que senti
quando ele me beijou ontem à noite. Ou, melhor, pelo que não senti. Não
senti nada. Nada.
— Ora! — bufou Judith, soltando os ombros da filha depois de lhe dar
uma leve sacudida. — Sempre foi teimosa como uma mula e acredito que
nada do que possa lhe dizer a fará mudar de ideia. Mas escuta-me — Judith
agitou um dedo diante do nariz da filha: — Aquele homem, esse... esse...
Theodore... Pelo menos ele tem bom senso. Sabe melhor que você que há
muitos anos de diferença entre vocês, e será melhor que aceite esse fato antes
que isto chegue mais longe — Judith Brandonberg terminou a frase aos
gritos. Linnea não fez mais que retomar sua tarefa, com uma postura
obstinada nos ombros.
— Não escolhi me apaixonar por ele, mãe. Simplesmente aconteceu.
Não escolhemos por quem nos apaixonarmos. Senão eu teria escolhido amar
o perfeito Adrian. Mas já que é assim, farei tudo o que estiver em meu poder
para lhe fazer entender que nos foi dado um presente e não devemos
desperdiçá-lo — Linnea se levantou e Judith viu a expressão obstinada em
seus olhos. A voz de Linnea se abrandou e adquiriu um tom melancólico: —
Ele também me ama, mãe, tanto quanto eu a ele. Ele me disse isso. E isto é
algo valioso demais para se arriscar a perder. A senhora compreende, não é?
E se nunca mais eu voltar a sentir isso por um homem de minha idade?
Passarei a vida sozinha, mãe. É isso que querem para mim?
O olhar inquieto de Judith pousou na filha com uma triste certeza: sim,
sua pequena estava crescendo, tinha amadurecido em quatro meses longe
deles. E, embora seu coração estremecesse de temor, não tinha nenhum
argumento razoável para lhe apresentar. Era impossível contestar o amor.
CAPÍTULO 18
LAR É ONDE ESTÁ O CORAÇÃO

O dia seguinte amanheceu nublado, tão lúgubre quando os olhares dos


integrantes da família Brandonberg, exceto Linnea, que, embora triste por sua
família, estava feliz com a expectativa de ver Theodore. No trem a caminho
do Oeste, seu coração se agitava ante a esperança de rever seu grande amor.
Nem sequer o céu cinzento que via pela janela conseguia turvar a excitação
que sentia: estava voltando para o lar.
Seu lar. Pensou no que estava deixando para trás: uma casa confortável,
uma mãe, um pai, duas irmãs, a cidade onde nascera e um cavalheiro perfeito.
Todos os lugares e as pessoas que tinha conhecido por toda a vida, e que,
todavia, já não representavam um lar para ela. O que lhe fazia pulsar o
coração agora era o Álamo, as pessoas que ali viviam, Teddy, para quem as
rodas de aço giravam freneticamente, aproximando-a cada vez mais dele.
Faltando uma hora para chegar à estação, imaginou Theodore e John já
a caminho do povoado, mas, quando desceu do vagão e pisou na conhecida e
usada plataforma da estação de Álamo, só Theodore a estava esperando. Seus
olhares se encontraram imediatamente, mas nenhum dos dois se moveu.
Linnea permaneceu no degrau do trem, agarrada ao frio corrimão. Theodore
estava de pé atrás de um punhado de pessoas que esperavam para subir no
trem, tinha as mãos metidas no fundo dos bolsos de uma velha jaqueta
abotoada até em cima, com a gola levantada. Protegia a cabeça com uma
grossa touca de lã e tinha nos olhos uma franca expressão de ansiedade.
Eles se encaravam, fascinados, por cima das cabeças das pessoas que aí
se interpunham. O trem soltava rajadas de fumaça enquanto os passageiros de
partida trocavam abraços de despedida. Mas Linnea e Theodore não viam
nada disso, não tinham consciência senão um do outro e de seus corações
palpitantes.
Começaram a se mover ao mesmo tempo, contendo o desejo de correr.
Theodore rodeou um grupo de passageiros, Linnea desceu o último degrau.
Com os olhos presos um no outro, aproximaram-se muito lentamente, como
se cada segundo transcorrido não lhes parecesse uma vida e se detiveram a
poucos centímetros de distância.
— Olá — disse ele.
— Olá.
Theodore sorriu e o coração da moça acelerou, quase cuspido pela
boca. Pelo menos foi isso que passou pela mente de Linnea. Ela sorriu de
volta e o coração do homem se fez leve.
— Feliz Ano Novo — disse Theodore.
— Para você também — respondeu a apaixonada Linnea.
Ele não disse “Senti sua falta”.
A moça se conteve para não dizer: Pareceu-me uma eternidade. Mas
ambos pensaram em dizê-lo.
— Fez boa viagem? — perguntou, pegando a mala das mãos dela.
— Foi uma longa viagem.
Faltaram-lhes as palavras e eles ficaram se encarando extasiados até
que alguém empurrou Theodore por trás e disse: — Oh, desculpe-me.
Isso os tirou do estranho encantamento mútuo e os devolveu ao mundo
real.
— Onde está John? — perguntou Linnea, olhando ao redor.
— Em casa, curando-se de um resfriado.
— E Kristian?
— Revisando suas armadilhas. E mamãe disse para que eu me afastasse
de seu caminho enquanto ela preparava o jantar de boas-vindas para você.
Então estavam sozinhos. Não precisavam controlar os olhares nem
medir as palavras, tampouco conter a vontade de se tocar.
— Meu lar — pronunciou Linnea. — Leve-me para lá.
Theodore levantou a mala com uma mão, pegou-a pelo cotovelo com a
outra e juntos avançaram para a charrete. Ele tinha sentido falta dela com
uma intensidade próxima do abatimento. Sem ela, a casa lhe tinha parecido
horrível e o Natal, só um dia a mais. Esteve silencioso, afastado do resto da
família, preferindo passar o tempo sozinho no estábulo, onde a lembrança
dela era mais vibrante. Até tinha imaginado que, quando Linnea voltasse a
experimentar uma nova dose da antiga vida em Fargo, talvez não quisesse
mais voltar. Preocupava-se com o tal de Lawrence e com as comparações que
pudesse fazer com qualquer homem que conhecesse na cidade e com aquelas
que fizesse entre a cidade e o Álamo, com a vida na fazenda. Mas ela estava
de volta e ele podia tocá-la outra vez, embora só através do grosso tecido do
casaco dela e de sua própria luva de couro.
Enquanto caminhavam, Linnea levantou os olhos e seu sorriso
acariciou o coração de Theodore.
— Tem uma touca nova? Ele a tocou, tímido.
— Minha mãe me deu de presente no Natal.
Ele a conduziu para a parte de trás da charrete e ficaram de pé junto ao
bagageiro, tratando de aplacar a necessidade de se olhar, mas sem conseguir.
— Adorei o livro, Theodore. Muito obrigada.
Ele quis poder beijá-la ali mesmo, mas havia gente do povoado ao
redor.
— Gostei muito do jogo de penas, da tinta e também da lousa.
Obrigado.
— Não sabia que era capaz de escrever meu nome.
— Kristian me ensinou.
— Imaginei isso. Em minha ausência, esteve praticando com o
silabário?
— Todas as noites. Kristian não é má professor, sabe?
— Kristian não é mau professor — ela o corrigiu e lhe dirigiu um
sorriso encabulado.
— Acaba de chegar e já está me repreendendo.
Ele apertou mais forte o cotovelo dela, ajudou-a a subir e pouco depois
estavam a caminho de casa.
— Bom, se não o corrigisse um pouco, acreditaria que se equivocou
com a moça.
O sorriso persistente a percorreu e ele levou um bom tempo antes de
responder: — Não, isso é impossível.
O coração de Linnea dançou de alegria.
— Como estão todos de sua família? — perguntou Theodore.
Eles conversaram sem parar, não importando muito sobre o quê,
sentados lado a lado, os cotovelos se chocando suavemente de vez em
quando. Apesar do sol, a temperatura era amena. Embora a neve estivesse
branda, agarrava-se àqueles que deslizavam como um abraço infinito. Era
agradável deslizar acompanhados pelo chiado incessante e pelo tamborilar
dos cascos dos animais. Ao redor, as nuvens se descortinavam no céu como
ovelhas brancas depois de um banho de lama. Pareciam franzir o cenho sobre
as cabeças deles. Na linha de união com o horizonte, não se distinguia bem a
terra do céu e só se via uma mescla branca cinzenta que não se levantava nem
definia o contorno do mundo.
Quando estavam a uns oitocentos metros da escola, Theodore
endireitou os ombros, dirigiu o olhar para o Norte e puxou as rédeas. Cub e
Toots se detiveram na metade do caminho, patinaram na neve e relincharam.
Preocupada, Linnea olhou para a parelha e depois para Theodore.
— O que aconteceu?
— Olhe — ele apontou.
— O quê? Não vejo nada.
— Ali, vê aquelas manchas escuras que avançam para nós?
Linnea entreabriu os olhos e esquadrinhou a paisagem.
— Oh, agora vejo. O que é?
— São os cavalos — Theodore disse, excitado. — Venha, desça — ele
a tomou pela cintura e a depôs suavemente no chão, enrolando as rédeas na
cerca. Ambos caminharam juntos em direção à valeta, passaram para o outro
lado dando passos gigantescos na neve, que chegava aos joelhos, e se
detiveram junto a duas fileiras de arame farpado. Imóveis, contemplaram os
cavalos que galopavam na direção deles, sem travas, de um campo
longínquo. Em poucos minutos, os animais se aproximaram o suficiente para
que se pudesse distingui-los uns dos outros, mas só as cabeças. As barrigas
estavam ocultas pela neve solta que se movia como uma nuvem baixa ao
redor deles. Os cascos formavam redemoinhos e pareciam fundir-se com o
mundo, pincelando a terra com sua beleza branca e as nuvens leitosas acima.
Era um grande espetáculo, uma massa tremeluzindo sobre a neve.
À medida que se aproximavam, Linnea percebeu um débil tremor
através das solas dos seus pés, uma vibração do arame sob as luvas. Deviam
ser uns quarenta animais e o líder era um orgulhoso animal malhado com
uma ondulante crina cinza e poderosos lombos salpicados de cinza e branco
que pareciam uma extensão das nuvens escuras que lhes serviam de fundo.
Percebendo sua presença, o animal relinchou e levantou a cabeça, com
as fossas nasais dilatadas e os olhos vivazes. Com uma bufada, virou e
conduziu o tropel em galope em uma nova direção. Que majestosa exibição
de poderio e beleza, com os cascos esmurrando espirais brancas, as caudas
soltas, os pelos compridos e hirsutos do inverno! Linnea suspirou, extasiada.
Aqueles animais não eram como os esbeltos cavalos trotadores da
Virginia, mas gigantes de vigorosos músculos, de duvidosa genealogia, com
peitos maciços, lombos providos e patas magras, animais que conheciam o
arado e o rastelo e tinham ganhado um tempo de liberdade. Aqueles animais
deviam esperar pelo inverno durante todo o ano, época feliz para eles, lapso
de total liberdade naquele mundo branco.
Os dois espectadores estremeceram de emoção. Sem perceber, Linnea
subiu na fileira baixa da cerca para ver melhor. Equilibrando-se, observando
os cavalos que passavam fazendo tremer a terra, quase não percebeu que o
braço de Theodore a sustentava pelos quadris. As vibrações foram se
extinguindo e a nuvem de neve foi se dissipando.
Theodore levantou os olhos. A moça poderia ser uma daquelas criaturas
soltas gozando de sua liberdade. Ele teve a impressão de que tinha esquecido
que estava junto a ela, ali parada sobre o arame mais baixo, com os joelhos
apertados contra o de cima, o pescoço estirado e o nariz ao vento, esforçando-
se por obter uma última visão da cavalaria que desaparecia. Perguntou-se se
ao menos estaria consciente de que estava encarapitada ali. Parecia mais
menina do que nunca com o lenço de lã sobre os cabelos, amarrado sob o
queixo. Mas nada disso importava mais. A única coisa que importava era que
também era capaz de apreciar a majestade dos cavalos, igual a ele. Uma vez
mais, sacudiu-o a noção do muito que tinha sentido falta da sua boneca, com
o lenço infantil, o nariz vermelho como uma cereja, apoiando uma mão
enluvada em seu ombro. Theodore riu, com a esperança de relaxar da súbita
tensão que sentia na virilha. Linnea olhou para baixo.
— Desça, antes que caia do outro lado e eu a perca na neve.
Ele a pegou pela cintura e a colocou no chão. Ficaram um instante
assim, as luvas dela apoiadas nos bolsos dianteiros dele.
— Não foi imponente, Teddy?
Ele lançou um último olhar melancólico para onde tinham desaparecido
os cavalos. Tudo tinha ficado em silêncio, como se o tropel jamais tivesse
passado por ali.
— Eu disse que os veríamos.
— Sim, mas não me disse que seria tão belo... tão... — Linnea procurou
a palavra adequada. — Tão imponente! Quem dera pudesse fazer com que as
crianças os desenhassem tais como são vistos, poderosos, bufando e lançando
neve para todos os lados!
Sem aviso prévio, inclinou-se, recolheu dois punhados de neve e os
jogou sobre suas cabeças. A neve caiu sobre a face erguida, enquanto
Theodore ria e retrocedia para evitá-la.
— Theodore, medroso! — ela o provocou. — Na verdade, nunca
conheci ninguém tão medroso.
— Não sou nenhum medroso. O que acontece é que sou mais sensato
que certas professoras que conheço, que acabarão na cama com gripe, igual
ao John.
— Oh, ora! Que mal pode fazer um pouco de neve?
Agachou-se, escavou e pegou um bocado. Theodore quase se sentia
capaz de precisar o segundo exato em que havia tornado a se converter em
uma menina. Tais mudanças, tão repentinas, eram o que o fazia amá-la tanto.
Despreocupada, começou a modelar uma bola de neve batendo por cima e
por baixo, passando-a de luva a luva, arqueando uma sobrancelha com
maliciosa intenção.
— Tente e verá quem se dará mal — advertiu-lhe Theodore,
retrocedendo.
— Não é mais que neve limpa — ela pegou outro punhado e avançou
sem pressa na direção dele. — Pegue, experimente.
Theodore jogou a cabeça para trás e a agarrou pelas mãos.
— Linnea, vai lamentar isso.
— Ah, é? Toma. Um... punhadinho de neve, toma um punha... —
começaram a lutar, rindo, enquanto Linnea tentava lhe esfregar a neve.
— Vamos, Teddy, é uma boa e limpa neve da Dakota do Norrrte — ela
imitou o sotaque norueguês.
— Basta, menina descarada!
Desta vez, ela quase o acertou, mas ele era muito rápido e muito mais
forte.
— Não me chame de menina descarada, Theodore Westgaard. Tenho
quase dezenove anos.
Enquanto seguiam lutando em um combate de mão a mão, Theodore ria
muito.
— Oh, e como foi isso...? Parte por duas semanas e volta um ano mais
velha?
Linnea trincou os dentes e resmungou: — Vou te pegar, Theodore!
Ele se limitou a rir, e então a moça lhe prendeu a bota com o calcanhar,
empurrou-o com força e o fez cair de costas sobre a neve. Lá ele ficou
sentado, com expressão atônita, atolado até as costelas e os cotovelos
enquanto ela tapava a boca e se retorcia dando risada. Theodore colocou a
mão dentro da manga e a apalpou: a neve tinha ficado apertada contra o forro.
Deu uma sacudida lenta e forte, sem deixar de atravessá-la com um olhar
feroz. Levantou a outra mão e puxou as mangas, ficando em pé com
deliberada lentidão. Linnea começou a recuar.
— Theodore, não se atreva... Theodore...
Ele sacudiu a roupa e avançou, compondo uma expressão perversa.
— Agora implore: depois do que fez, será castigada. O que foi,
Senhorita Brandonberg, assusta-a um pouco de boa neve limpa de Dakota do
Norrrte? — ele zombou.
— Theodore, se o fizer, eu... eu...
Sem se alterar, ele seguiu avançando.
— Você o quê?
— Contarei para sua mãe!
— Contará para minha mãe! Ora, ora! — aproximou-se com passo
firme.
— Bom, farei assim mesmo.
— Sim, faça-o. Eu gostaria de saber o que diria minha mãe.
Ela se desequilibrou de repente, ele a segurou pelas mãos e tentou fazê-
la tombar para trás, mas Linnea gritou e se debateu. Ele a empurrou com mais
força e ela agitou os braços, lutando, rindo.
— Não era isso que queria? Aposto que sim. Ora, ora!
Deu um passo mais e a moça o agarrou pela jaqueta para não tropeçar,
mas já era muito tarde. Caiu para trás, arrastando-o com ela sobre a neve
amaciada e eles aterrissaram em um embrulho de braços, pernas e saias, com
Theodore estendido sobre ela como uma espécie de manta humana.
Ele tombou para o lado, com uma perna cruzada sobre os joelhos dela,
e os dois gargalharam sem conseguir parar.
Tudo acabou tão de repente como tinha começado. O mundo se tornou
silencioso. O peso da perna do homem sobre as da mulher aumentou. Ele
pareceu sentir uma pulsação que vinha da própria terra, através da neve, e
penetrava em seus corpos. Theodore se levantou sobre um cotovelo e a olhou.
Seus olhares se intensificaram.
— Linnea — murmurou, com uma voz estranha, estrangulada.
Theodore tinha neve na parte de trás do pescoço e nos ombros. Linnea
o viu por um tênue momento, já sem a touca azul, o rosto emoldurado por
aquele céu de estanho, o hálito saindo com dificuldade pelos lábios abertos.
Depois, sua boca se apoderou da dela e seu peso a fez afundar mais na neve.
As línguas se encontraram, acoplaram-se, cálidas, cheias de saudades e ele
estendeu todo o seu comprimento sobre ela, que o atraiu com braços
ansiosos.
Quando levantou a cabeça, os corações de ambos enlouqueceram,
tornaram-se erráticos, e souberam da impaciência para recuperar o tempo
perdido.
— Senti tanto a sua falta... Oh, Teddy!
Ele a beijou de novo, acariciando-lhe a cabeça com as mãos
embainhadas nas luvas, e sentiu como se o tropel estivesse passando outra
vez, fazendo tremer a terra. O beijo acabou de forma tão relutante quanto o
primeiro.
— Também senti a sua.
— Eu me esforçava para pensar que estava em minha casa, mas já não
me parecia minha casa, porque a única coisa que eu queria era voltar para cá,
para você.
— Como não conseguia suportar, eu passava a maior parte do tempo no
estábulo.
Da gola da jaqueta caiu um pouco de neve sobre a face da moça e ela
fechou os olhos e abriu os lábios, enquanto ele a lambia. A boca dele deslizou
outra vez para a dela, dela se apropriando com um ardor que reacendeu os
corpos dos dois. Sem muita vontade, Theodore se afastou e se estendeu de
costas.
— Até acreditei que você não voltaria — confessou.
— Tolo.
Sem seu peso sobre si, ela se sentiu abandonada e virou-se para se
acomodar sobre o peito do homem.
Beijou-lhe um olho e deixou os lábios ali, cheirando-o... couro, lã,
neve.
— Foi sério o que disse na estação?
— Oh, Deus, Linnea — ele a apertou com força, fechando os olhos,
perguntando-se o que faria. Ela se afastou para ver o rosto dele.
— O que você disse era sério, não era?
Seu temor alagou o coração de Theodore e uma nova onda de desejo se
apossou dele.
— Sim. O que eu disse é verdade, embora não esteja certo.
— Claro que está certo. Como pode estar errado o amor?
Tomando-a pelos braços, ele a fez se levantar e eles se sentaram quadril
contra quadril. Theodore desejou voltar a ser jovem e se jogar na vida com a
mesma liberdade que ela. Mas não o era e tinha que usar o bom senso que a
moça ainda não tinha desenvolvido.
— Linnea, me escute. Eu disse que não sabia o que faria e...
— Bom, eu sim. Pensei muito nisso e só há uma coisa a fazer. Temos
que...
— Não! — ele se levantou rapidamente e se virou.
— Não comece a formar ideias. Não resultará em nada.
Em um instante, Linnea estava de pé, junto a ele, insistindo: — Por que
não?
Theodore recolheu a touca da neve e a sacudiu contra a perna.
— Linnea, pelo amor de Deus, use a cabeça.
Mas ela o fez virar em sua direção, agarrando-o pelo braço.
— A cabeça? — ela o olhou nos olhos, obrigando-o a olhá-la também.
— Por que a cabeça? Por que não o coração?
— Pensou no que dirão as pessoas?
— Sim. Exatamente o que me disse minha mãe essa manhã: que é
velho demais para mim.
— E ela tem razão.
Ele colocou a touca e se negou a olhá-la nos olhos.
— Theodore — Linnea agarrou-lhe o braço. — O que tem a ver a idade
com o que sentimos? São só números. Imagine que não fôssemos capazes de
contar os anos e não pudéssemos dizer que você tem dezesseis anos a mais
que eu.
Senhor do céu, quanto a amava. Por que tinha que ser tão jovem?
Ele a agarrou pelos braços com as mãos enluvadas e a obrigou a
entender suas razões.
— O que dizer a respeito dos filhos, Linnea?
— Filhos?
— Sim, filhos. Deseja-os?
— Sim, desejo ter filhos com você.
— Já tive um e ele tem dezessete anos. Quase a sua idade.
— Mas, Teddy, só tem trint...
— E o que me diz de Kristian? Ele está apaixonado por você, sabia
disso?
— Sim.
Theodore esperava que ela negasse aquilo, mas, como não o fez, ficou
confuso.
— Acaso não se dá conta da confusão que isso vai causar?
— Não sei por quê. Deixei muito claro para Kristian, de todas as
formas possíveis, que sou sua professora e nada mais. Sou seu primeiro amor
e ele o superará.
— Linnea, ele me disse isso. O que quero dizer é que ele falou isso
diretamente para mim e me disse o que sentia por você naquele dia em que
fomos juntos buscar carvão. Pela primeira vez ele me confiou os seus
sentimentos. Imagine como se sentiria se eu agora lhe dissesse que vou me
casar com você.
Mas Linnea entendeu que, na realidade, não era aquilo que o estava
inquietando.
— Está assustado, não é mesmo, Teddy?
— É claro que estou assustado, por que não deveria estar?
Com suas luvas suaves, Linnea lhe sustentou o rosto, forçando-o a
olhá-la.
— Porque não sou Melinda. Não fugirei, tampouco o abandonarei.
Amo este lugar. Amo-o tanto que estava impaciente por voltar.
Mas ela era muito jovem para pensar que, se tivessem filhos, quando
eles se fossem de casa ele já estaria muito velho... isso se vivesse tanto.
Dando-lhe as costas, Theodore se encaminhou a passos largos para a carroça.
— Venha, vamos embora.
— Teddy, por favor...
— Não! Não tem sentido continuar falando disto. Vamos.
Viajaram em silêncio até que se aproximaram do atalho que levava à
escola.
— Poderíamos parar uns minutos na escola?
— Necessita de algo?
— Não, é que senti falta dela.
Ele a encarou.
— Sentiu falta dela?
Seria possível que ela tivesse sentido saudades desse pequeno vulto em
meio à pradaria?
— Dela e de muitas outras coisas.
Theodore acomodou a touca e se concentrou outra vez em guiar.
— Podemos nos deter um minuto, não mais que isso, Teddy. Faz frio
aqui.
Quando frearam no pátio, Linnea exclamou: — Bom, alguém limpou a
neve nos atalhos!
Theodore deteve os cavalos e desceu, mas evitou os olhos da moça.
— Bom, um dia nevou um pouco e a neve se amontoou.
— Você o fez? — perguntou-lhe, com alegre surpresa.
Theodore deu a volta na charrete para ajudá-la a descer. Recordaram-se
do primeiro dia em que ela tinha ido ali e em que ele assegurara não ter
tempo para cuidar de flores de estufa.
— Que amável. Obrigada, Teddy.
— Se quer entrar, então vá — ordenou-lhe, resmungão.
Ele a viu correr para a porta e sacudiu a cabeça. Ela era tão jovem... O
que tinha ele que fazer vagando pela neve com ela, se nada poderia resultar
de tudo isso e ele sabia...?
Seguiu-a e ficou perto da porta do vestíbulo, observando-a enquanto ela
fazia uma rápida inspeção do salão. Observou-o com carinho e, caminhando
para a frente, foi tocando o fogareiro, as carteiras, o globo terrestre, como se
os estivesse saudando. O salão estava gelado, mas a moça não o notava e em
seu rosto brilhava um largo sorriso. O que ela havia dito era verdade: não se
parecia em nada com Melinda, mas, maldição! Não pensava que, quando
tivesse trinta e quatro anos – a idade dele agora –ele teria os cabelos grisalhos
e não restaria nada de sua juventude?
Linnea subiu no estrado, pegou um pedaço de giz e escreveu sobre a
lousa limpa: — Bem-vindos outra vez! Feliz ano de 1918!
Deixou o giz com um golpe decidido, sacudiu as mãos e voltou para
onde estava Theodore, para girar outra vez e contemplar a mensagem dali.
— Sabe lê-la? — perguntou-lhe.
Theodore franziu a testa, concentrando-se por alguns segundos.
— Posso ler “outra vez” e “feliz” — debateu-se com a primeira
palavra: — Bbbb... — quando a decifrou, seu rosto relaxou: — Bem-vindos
outra vez.
— Bom! E o resto?
Linnea observou como ele se esforçava para ler.
— A palavra que segue é feliz — ele apontou.
— Feliz ano de 1918! — leu lentamente e depois releu toda a
mensagem: — Bem-vindos outra vez. Feliz ano de 1918!
Linnea sorriu, orgulhosa: era certo que estivera estudando.
— No fim deste novo ano, lerá tão bem quanto meus alunos do oitavo
grau.
Quando ele lhe devolveu o sorriso, a tensão que tinha aumentado se
esmaeceu.
— Vem, vamos para casa. Mamãe está nos esperando.
Entrar na cozinha de Nissa foi como tirar umas sandálias novas de baile
e calçar umas sapatilhas usadas de feltro. Tudo estava igual: o oleado sobre a
mesa, os casacos pendurados no gancho atrás da porta, o tanque e a bacia, o
aroma delicioso que saía da cozinha. Nissa estava fazendo almôndegas de
carne com batatas e molho para o jantar e todas as janelas estavam
embaçadas pelo vapor. A anciã se virou e se aproximou com os braços
abertos: — Já era hora de retornar.
Linnea devolveu o carinhoso abraço.
— Está um cheiro bom aqui. O que está preparando, Nissa?
— Guisado de coração — brincou Nissa, e todos riram. Linnea a
empurrou de brincadeira.
— Pedirei a Theodore que me leve de volta à estação agora mesmo.
— Não creio que ele lhe obedeça. Parece-me que estava um pouco
perdido sem você por aqui.
— Ah, é? — Linnea arqueou uma sobrancelha olhando para Theodore.
— Nunca o teria imaginado. No caminho para cá, atirou-me na neve e
tudo.
— Na neve? — Nissa estava muito surpresa.
Do outro lado da cozinha, Theodore franzia o cenho. Nesse preciso
momento, Kristian, que retornava após revisar suas armadilhas, entrou na
cozinha e, quando viu Linnea, abriu um sorriso tão largo que parecia
levantar-lhe as orelhas. Ainda tinha as faces rosadas, o cabelo arrepiado e as
pontas das meias vermelhas se sobressaíam. Linnea quase pôde sentir o
esforço que fazia para não abraçá-la. Ela se casaria com seu pai. Faria isso. E
seria conveniente que toda a família se habituasse ao fato de que ela não tinha
a menor intenção de pisar em ovos com Kristian, sentindo-se culpada cada
vez que tivesse vontade de tocá-lo. Apoiou-lhe as luvas de vison nas faces.
— Kristian, são as luvas mais quentes e belas que já vi. Você as fez?
Ele enrubesceu e remexeu os pés.
— Ficaram boas?
— Perfeitas. Olha.
Kristian lhe agradeceu pelo conjunto de escova e pente de jacarandá;
Linnea agradeceu a Nissa pelas sapatilhas e o momento incômodo passou.
Nissa zombou, em tom áspero: — Obrigada também, senhorita, mas para que
necessita uma velha tola como eu dessa elegante água de lilás que me deu de
presente? Não há um homem em seis quilômetros ao redor que se aproxime o
suficiente para cheirá-la.
Enquanto todos riam e contavam o que tinha acontecido nessas duas
semanas, Linnea pôs a mesa. Pouco antes da hora de comer, apareceu John,
envolto no novo e fino cachecol de lã azul com que a moça lhe tinha
presenteado no Natal e que ele usava em cima da touca com protetores de
ouvido.
— John, pensei que estivesse doente!
— Estava-o. Não estou mais.
Linnea deu nele um rápido abraço e se virou para trás para observá-lo
com atitude crítica.
— Sei que ainda está. Olhe esse nariz avermelhado e esses olhos
aquosos! Não tinha que vir até aqui com este frio.
Igual ao que fez Kristian, ele remexeu os pés, incomodado, e ficou
vermelho.
— Eu não queria perder nada.
Todos riram. Ah, como era bom estar de volta! Era daquela forma que
as pessoas sentiam quando lhes davam as boas-vindas.
Quando se sentaram para comer, Linnea não pôde resistir à tentação de
observar Theodore enquanto ele dizia a prece: cabeça recurvada, o cabelo um
pouco amassado pela touca, as pálpebras baixas, as comissuras dos lábios
ocultas atrás das mãos unidas.
— Senhor, obrigado por este alimento e por tudo com que nos brindou
hoje, sobretudo por nos haver devolvido sã e salva a nossa pequena senhorita.
Amém.
Quando ergueu os olhos, surpreendeu-a olhando-o e os dois tiveram
plena consciência de que Linnea pertencia àquele lugar, ao espaço que tinham
aberto para ela em suas vidas.
Ela percorreu a mesa com os olhos e algo muito próximo da dor lhe
oprimiu o coração. Caramba, amava aquelas pessoas. Não só Theodore, mas
também todos eles: Nissa, com seu áspero afeto, Kristian, com esses súbitos
rubores de admiração, e John, com seu coração de ouro e suas atitudes lentas
e tranquilas.
Theodore viu que o olhar da moça se voltava para ele e se apressou em
pegar a travessa com as almôndegas, embora também a estivesse observando
desde que terminara de dizer a oração, recordando quão vazias pareciam as
refeições sem ela. Durante sua ausência, a família tinha voltado ao antigo
costume do silêncio na hora de comer, fazendo-o com o único propósito de
encher a barriga. Mas, assim que Linnea entrou na casa, pareceu que eles
recuperavam a capacidade de conversar.
Theodore pensou na primavera, quando ela partiria, e as saborosas
almôndegas adquiriram sabor de serragem. Quando terminou a refeição,
Linnea disse: — Estou impaciente para ver o que aprendeu. Vai me mostrar,
Teddy?
Theodore respondeu com aparente desinteresse: — Se não estiver
muito cansada... — ele se sentiu mais inquieto do que nunca tinha estado,
mas sua mãe o salvou: — Teddy o levará para casa, John.
John calçou as botas, abotoou a jaqueta e fechou a fivela dos protetores
de ouvido. Envolveu trabalhosamente o cachecol novo ao redor da cabeça e
mexeu nos bolsos à procura das luvas. Com uma das mãos no trinco,
Theodore não dizia uma palavra. Houve outra demora até que Nissa
colocasse um pote de sopa de legumes sob o braço de John e lhe ordenasse
ficar na cama no dia seguinte.
Depois de deixar John em casa, Theodore retornou, desatrelou os
cavalos e entrou na cozinha. Estava nervoso e excitado. Nissa e Kristian
estavam sentados à mesa, junto a Linnea. Esparramados em cima estavam os
livros e a nova lousa, já preparados, e Kristian tinha aberto o silabário na
última página em que estiveram trabalhando, ansioso por demonstrar tudo o
que tinha ensinado ao seu pai.
Durante a ausência de Linnea, Theodore trabalhara avidamente a
leitura. Perseguia Kristian para que o ajudasse e, nesse momento, enquanto
seu filho ditava, orgulhoso, uma prova de ortografia, concentrou-se por
inteiro na escrita das palavras. Riscou-as com supremo cuidado: Theodore,
John, Clara, cavalo, Patricia, Kristian, coração, Cub, Toots, amor, saudade,
mãe, Nissa, fogão, Linnea, Lutefisk.
— Lutefisk, ensinou-lhe a escrever lutefisk? — perguntou Linnea,
surpresa.
— Obrigou-me a isso.
Linnea riu, mas quando Theodore leu em voz alta teve noção do
inefável progresso que ele tinha obtido, em parte graças a sua decisão e em
parte graças ao bendito método que usaram para escolher palavras familiares.
— Caramba, Theodore, já está lendo tão bem quanto meus alunos de
quinto grau!
— Porque ele me enlouqueceu com isso! — exclamou Kristian. —
Quase não me deixava ter tempo para verificar minhas armadilhas.
Embora o rosto do pai tivesse ficado vermelho, de todos os modos
Linnea viu que Kristian estava orgulhoso.
— Um dia, até o encontrei escrevendo palavras na neve com uma vara.
— Na neve?
Ao olhar para Theodore, viu o rubor se acentuar. Olhou-a por um
instante e depois retirou o olhar.
— Bom, eu não tinha a lousa e não me recordava de como escrever
uma palavra. Seria mais fácil para mim se eu a visse.
Só na ocasião em que descobriu que não sabia ler o viu tão acalorado e
envergonhado. Quando ruborizava e ficava acanhado, parecia tão jovem que
o coração de Linnea dava um salto. Na noite seguinte, estavam outra vez
sentados à mesa, com Nissa e Kristian por perto, e Linnea decidiu fazê-lo
tropeçar. Escreveu na lousa: — Contei a você que meu pai comprou um
automóvel?
Voltou-se para olhá-lo, viu que ele lia sem dificuldades e depois franzia
o cenho ao chegar à última palavra. Moveu os lábios sem ruído, tratando de
decifrá-la e, depois de vários segundos, Linnea girou a lousa e depois de
dividir a palavra com uma barra inclinada – auto/móvel –, mostrou-a de
novo.
Theodore soletrou a palavra e em seu rosto se abriu um sorriso.
Mas, em lugar de responder falando, tomou a lousa, apagou-a e
escreveu: — Não. Passeou nele?
Linnea apagou e escreveu: — Sim, foi delicioso.
Pensou por um bom momento e por fim se deu por vencido: — Essa eu
não sei — disse Theodore.
— Delicioso.
— Ah!
Ele ficou subitamente pensativo e, enquanto a contemplava, esqueceu a
lousa. Um automóvel, pensou. Seria do tipo de mulher que gostava de ter um
automóvel. Quando chegasse a primavera, voltaria para sua vida na cidade,
onde desfrutaria do automóvel da família e de todas as demais comodidades
que, sem dúvida, compararia com a vida ali e ele estaria em desvantagem.
Que motivos teria para retornar no outono seguinte? E havia outra coisa que
não podia tirar da cabeça, embora lhe parecesse tolo perguntar. Passou o pano
impregnado de giz pela lousa e escreveu: — Viu o Lorents?
Pensou por um longo momento na pergunta, enquanto tentava juntar
coragem para mostrar a ela. Olhou para Nissa e para Kristian do outro lado da
mesa, mas a mãe estava remendando uma meia três quartos, e o filho,
inclinado sobre um livro. Quando ergueu os olhos, viu que Linnea tinha o
queixo apoiado em um punho e esperava para ver o que ele havia escrito.
Lenta, muito lentamente, girou a lousa de modo que só ela pudesse vê-la.
Os olhos da moça dispararam um olhar e ela afastou o queixo do
punho. Seu coração acelerou e ela olhou cautelosa para as duas outras
pessoas presentes a fim de comprovar que não prestavam a menor atenção a
eles. Tirou-lhe a lousa dos dedos e, sem apagar a pergunta, escreveu debaixo:
— Lawrence?
Theodore observou o nome bem escrito, sentindo sua estupidez, e um
calor lhe subiu pelo pescoço. Apagou Lorents, escreveu-o corretamente,
girou a lousa para ela, e assentiu.
Os olhares dos dois, intensos, escuros, sustentaram-se durante
intermináveis minutos por sobre a lousa. Kristian virou uma página. As
tesouras de Nissa cortaram um fio. No último momento, um instante antes de
pousar a mão sobre a lousa, Theodore acreditou ver uma faísca divertida nos
olhos da moça.
— Não — ela escreveu.
Quando Theodore o leu, deixou escapar um longo suspiro silencioso e
relaxou os ombros, encostando-se contra a cadeira.
Naquela noite, quando foram se deitar, embora nenhum dos dois
dissesse uma palavra sobre as mensagens trocadas por meio da lousa, ambos
as mantinham na mente. Theodore pensava: tê-la tão perto todo o tempo não
resultaria em boa coisa. E se casasse com ela ou a tirasse dali?
Linnea também pensava: não funcionaria viver sob o mesmo teto que
ele. Se ele não se casasse com ela, no ano que vem teria que procurar outro
lugar para lecionar.
No dia seguinte, quando Linnea voltou da escola, havia um envelope
apoiado contra o vaso de barro de filodendro, sobre a mesa da cozinha. O
remetente era Adrian Mitchell.
Linnea ficou perplexa ao ver a carta e sentir, de repente, um par de
olhos que a censuravam. Ao olhar para o outro extremo, viu Theodore parado
na entrada do vestíbulo, olhando-a como se acabasse de anunciar que era
espiã alemã. Nissa trabalhava na cozinha, entre os dois, e os ignorava. A
única coisa que rompia o silêncio era a cebola fritando na gordura quente.
Theodore girou sobre os calcanhares e desapareceu, e Linnea pensou: Ah, não
me quer, mas ninguém mais pode me ter, não é mesmo?
Tomou com gesto brusco a carta da mesa e subiu a escada pisando
duro. Adrian era tão eficiente escrevendo cartas como manipulando clientes e
pais. Alguns de seus elogios a faziam corar e os planos que tinha para o verão
a impulsionaram a ocultar o envelope em uma gaveta, sob a roupa íntima,
para que Nissa não o visse quando fosse trocar os lençóis.
Naquela noite, quando se sentaram para a lição, a tensão entre os dois
era visível. Theodore desejou estar a sós com ela para conversar, mas Nissa
ocupou a cadeira de costume e ficou tricotando, e Kristian estava reparando
um sapato para a neve e mastigando carne seca. Quando não pôde suportá-lo
mais, Theodore escreveu na lousa: — Quem é Adrian?
Voltou o rosto para a moça com expressão dura e os lábios apertados
em uma só linha.
— Trabalha na loja de meu pai — respondeu Linnea, por escrito.
Não trocaram mais mensagens pessoais, mas Theodore estava tenso e
carrancudo. Fez os exercícios de escrita sem olhá-la uma única vez, e, ao
terminar, quando ela deu boa noite, ele não lhe respondeu.
Na manhã seguinte, quando Linnea despertou, o termômetro marcava
trinta e dois graus abaixo de zero, e o vento do Noroeste cortava com tanta
força que parecia que o moinho iria voar até Iowa.
Alternaram-se para lavar-se na cozinha: não tinha sentido fazê-lo em
cima, onde fazia quase tanto frio quanto lá fora. As janelas estavam tão
cobertas de gelo que não se podia ver o exterior. John nem apareceu para
tomar o café da manhã.
Uma vez terminada a refeição, Theodore empurrou a cadeira para trás,
pegou o casaco e, sem sequer olhá-la, ordenou: — Reúna suas coisas. Vou
levar você à escola.
Linnea ergueu os olhos, surpresa: — Levar-me?
— Foi o que eu disse. E agora pegue logo as suas coisas.
— Mas você disse...
— Não me diga o que eu disse! Antes de chegar ao final do atalho,
estará congelada até o tutano.
Com gestos bruscos, vestiu o casaco de lã, abotoou-o, subiu a gola e
colocou o velho chapéu. Abrindo a porta com um puxão, repetiu, áspero: —
Recolha suas coisas e venha logo.
Obediente, Linnea se apressou em subir. Cinco minutos depois,
enquanto corria pelo atalho recém-coberto de neve, freou de repente diante do
espetáculo do artefato mais bizarro que jamais tinha visto, a que estavam
atrelados Cub e Toots. Parecia uma pequena cobertura apoiada sobre esquis,
com uma chaminé que sobressaía do teto, cuspindo fumaça, e umas rédeas
que saíam do exterior através de um tosco orifício para enxergar. Atrás de
uma portinhola, Theodore a aguardava, impaciente, com uma expressão
tenebrosa e inabordável.
— O que é isto? — perguntou Linnea, observando o teto curvado.
— Entre!
Ele a segurou por um braço, colocou-a dentro e fechou a porta. Estava
morno e escuro. Pelas frestas do fogareiro de ferro mais diminuto que já tinha
visto, resplandecia o fogo. Não era maior que uma lata de creme, mas bastava
para aquecer o pequeno recinto. Através do buraco para olhar, penetrava um
fino raio de luz diurna. Quando Theodore abriu caminho, apalpou o firme
piso, enquanto lhe advertia: — Como não há assentos, terá que manter-se
erguida e se segurar.
Antes que pudesse obedecer-lhe, Theodore estalou as rédeas e ela
esteve a ponto de cair sentada. Cambaleando, projetou-se para frente e se
segurou na borda do buraco que servia de mira e por onde se viam as garupas
dos cavalos.
— E onde está Kristian?
— Cumprindo suas tarefas. Mais tarde o levarei.
— Mas sempre realizam as tarefas antes do café da manhã.
— Tinha que ter juntado suas coisas antes do café da manhã —
afirmou, com o tom mais resmungão possível.
A ira de Linnea terminou por explodir: — Não tem por que fazer nada
disso, Theodore. Eu poderia ter caminhado.
Olhando pelo buraco, ele replicou: — Sei!
— Não pedi que me tratasse como uma... como uma flor de estufa.
— Tem alguma ideia do efeito que tem este vento sobre a pele quando
a temperatura chega a trinta e oito graus abaixo de zero?
— Poderia cobrir o rosto com o cachecol.
O pequeno quadrado de luz que entrava pelo buraco lhe permitiu ver
como Theodore girava os olhos com ironia. Lançou uma risada depreciativa e
virou outra vez os olhos.
— Lamento havê-lo feito sair — replicou Linnea, sarcástica. — Da
próxima vez que for construir uma carroça para mim, pode me perguntar
primeiro se eu necessito que me leve.
— Não construí uma carroça para você — refutou, em tom similar. —
Estava desarmada e guardada no estábulo. A única coisa que tive que fazer
foi instalá-la sobre os patins do trenó e fixá-la.
A cada instante, a altivez e o tom insultante de Theodore a enfureciam
mais.
— Theodore, não sei o que lhe aconteceu ultimamente para que se
comportasse como... como um urso com um espinho na pata.
O homem lhe dirigiu um olhar assassino, mas não disse nada.
— Bom, o que tenho feito? — quis saber, balançando-se com o
movimento do veículo, tratando de não se chocar com o braço dele.
O queixo de Linnea se esticou para a frente. Com os olhos fixos no
buraco onde se via a neve, ele por fim disse: — Nada! Não tem feito nada.
Entraram no pátio da escola, e ela saltou para fora, para o vento
cortante, impaciente por se afastar dele. Entretanto, para sua surpresa, ele a
seguiu e a agarrou pelo cotovelo com tanta força que a fez fazer uma careta,
enquanto abriam passo entre a neve que formava redemoinhos que chegavam
às coxas. O vento era tão feroz que ameaçava arrebatar o cachecol da moça.
Theodore segurava o chapéu com a mão livre. Os contornos das pegadas
começavam a se apagar já quando chegaram à entrada, sepultada sob uma
capa tão grossa de neve que tiveram que tatear procurando apoio para subir.
Linnea tropeçou uma vez e ele a empurrou sem piedade para fazê-la se
levantar. A porta estava totalmente bloqueada por um muro branco. Depois
de uma tentativa fracassada de abri-la, Theodore desceu de novo os degraus
para a carroça e voltou com uma pá.
— Posso fazer isso! — gritou a moça quando ele se virou.
— Dê-me isso.
Ela estendeu a mão para o cabo da pá, e uma de suas luvas de couro
grudou nele. Linnea a puxou. Ele lutou. Olharam-se, teimosos, carrancudos.
O vento agitou a aba do chapéu e fez revoar as bordas do cachecol como uma
bandeira. Linnea tinha a ponta do nariz úmida. As pontas das orelhas de
Theodore estavam vermelhas.
Sem falar, o homem lhe arrebatou a pá e disse: — Afaste-se.
Empurrou-a com ignorância com o ombro e colocou a pá na neve
acumulada, com força.
— Theodore, eu disse que posso fazer isso.
Bastaram doze pazadas de neve para limpar a porta. Theodore a abriu
de repente, agarrou Linnea pelo cotovelo e a jogou dentro.
— Eu tirarei a maldita neve — bradou, para depois lhe fechar a porta
na cara.
Linnea o ficou olhando com as lágrimas lhe ardendo nos olhos e lhe
deu um chute feroz. Com movimentos irritados, foi em busca do balde para
pegar o carvão. Mas, quando saía para buscá-lo, ele o arrancou da mão,
cravou a pá em um monte de neve, fez uma careta e, sem acrescentar uma só
palavra, deu a volta na esquina do edifício, com a neve até os joelhos. Linnea
ficou de pé, rígida, com as costas contra a porta, quando ele entrou pisando
forte e apoiou o balde junto dela com força suficiente para fazer tremer as
janelas. Atrás dela, as botas do homem ressoavam como golpes de martelo, e
depois ela o ouviu bater as duas portas.
Acendeu o fogo com bastante ruído, desejando que caíssem os dentes
de Theodore... Assim ela esperava! Quando terminou, ajustou com tanta
veemência as pontas do cachecol que quase sufocou. Tinha aberto a porta do
vestíbulo e se dirigia até o balde para pegar a água quando ele irrompeu de
fora com a mesma intenção. Com expressão ácida, viu como ele tomava o
balde e saía, fechando a porta com uma batida.
Em alguns minutos, estava de volta. Com as costas contra a porta e os
braços cruzados, Linnea ficou junto do fogareiro e escutou quando ele vertia
a água no recipiente do canto. Depois ouviu o estalo da tampa de madeira, e
então Theodore levou de volta o balde para o vestíbulo.
Linnea escutou uma batida da porta de dentro. Theodore estaria dentro
ou fora?
Com os olhos presos na grade do fogão, ficou um par de minutos,
pensando. Só havia silêncio. Por fim, dominou-a a curiosidade e ela olhou
por cima de um ombro: lá estava ele, com as mãos nos quadris, olhando-a
zangado sob a aba do chapéu Stetson.
Linnea girou bruscamente a cabeça para o fogareiro — Bom, vai me
falar dele ou não? — perguntou o homem, com voz hostil.
— De quem? — replicou Linnea, obstinada.
— Quem? — ele lançou uma gargalhada desdenhosa, e suas botas
produziram um ruído surdo no chão. Deteve-se a menos de uns trinta
centímetros da moça.
— Adrian não sei de quê, aquele com quem está se correspondendo.
— Mitchell. Chama-se Adrian Mitchell.
— Na realidade, pouco me importa como ele se chama. Vai me contar
ou não?
— Já disse a você que ele trabalha na loja do meu pai.
— Claro, como não? E você se corresponde com todos os empregados
de seu pai — acusou ele, irônico, morto de ciúmes.
Linnea girou sobre os calcanhares: — Bom, é verdade.
Embora o chapéu lhe ocultasse os olhos, Linnea podia adivinhar as
faíscas que lhe saíam das profundezas. Tinha a gola da jaqueta erguida até as
orelhas e as botas firmemente plantadas, bem separadas.
— Mais outro para a sua coleção? — voltou a provocá-la.
— E o que lhe importa isso? — refutou, fechando os punhos dentro das
luvas.
— E ele é? — insistiu Theodore, também fechando os punhos com as
mãos enluvadas.
— Não é da sua conta. Como se atreve a me fazer perguntas sobre a
minha vida pessoal? Não é mais que o dono do lugar onde estou hospedada.
— E o que mais? Passeou com ele de automóvel? — zombou.
— De fato, assim o fiz. E me diverti muito. E ele me levou a uma festa,
dançamos, bebemos ponche de champanhe e ele foi jantar na casa de meus
pais. E sabe o que mais ele fez, Theodore? — aproximou mais o nariz do
dele, provocando-o com olhos brilhantes, desafiadores. — Beijou-me. Era
isso o que queria saber?
Linnea aproximou-se mais ainda e esticou o queixo, vendo que o rosto
de Theodore ficava como uma pimenta com manchas brancas.
— Está me pressionando muito, pequena senhorita — ameaçou-a em
voz baixa e grave.
Linnea retrocedeu e bufou, desdenhosa: — Oh, não me faça rir,
Theodore! Uma locomotiva seria pouco para pressioná-lo. Está assustado
com a própria sombra.
O homem deu um passo ameaçador, mas a moça não recuou.
— Não está?
Enfrentaram-se, cada um procurando um ponto fraco no outro sem
poder encontrá-lo, até que, por fim, Theodore perguntou: — Quantos anos ele
tem?
— Vinte, talvez vinte e um. E agora, foge, Theodore, foge como você
sempre faz...
Ele a olhou, sério, com os músculos do pescoço tão tensos que até a
cabeça lhe doía. Então Theodore, que raramente amaldiçoava, grunhiu a
segunda maldição do dia: — Inferno.
Ele a puxou pelos cotovelos, deixando cair a boca sobre a dela em um
beijo selvagem. A boca de Linnea se abriu imediatamente e ela lutou para
gritar, mas ele a conteve, sentindo que os braços da moça ficavam tensos.
Sob a sua boca, ela emitiu um som sufocado, como se tentasse falar, mas ele
não quis soltá-la para que voltasse a gritar com ele. Colocou-lhe a língua
entre os dentes e a dele saiu ao encontro da dela com o mesmo impulso. Só
nesse momento compreendeu que ela não lutava para se afastar dele e sim
para se aproximar mais. Afrouxou imediatamente a pressão nos cotovelos, e
ela lhe rodeou o pescoço com os braços e ficou nas pontas dos pés,
aproximando-se, grudando-se nele. Os braços de Theodore lhe rodearam as
costas, atraindo-a para ele, com a barreira da roupa e do casaco interpondo-se
entre eles. Ele ergueu a cabeça bruscamente, afastando-a, respirando com
dificuldade. Os olhos de Linnea eram como brasas acesas. Ardiam com um
brilho do desejo, fixos no rosto dele.
— Teddy, Teddy. Por que repudia isto?
O hálito lhe escapava rápido, agitado, soltando fumaça devido ao frio.
Theodore fechou os olhos tentando se controlar, afastando-a com os
braços.
— Porque sou bastante velho para ser seu pai. Acaso não entende?
— Entendo que usa isso somente como desculpa.
— Basta! — gritou-lhe, abrindo os olhos e revelando sua expressão
torturada.
— Pensa no que está dizendo, no que estamos fazendo? Você tem
dezoito anos...
— Quase dezenove.
— Está bem: no mês que vem terá dezenove. E dois meses depois eu
terei trinta e cinco. Qual é a diferença? Continua a haver uma diferença de
dezesseis anos entre nós.
— Não me importa — insistiu Linnea.
— A seu pai sim, importará.
Imediatamente ele percebeu que havia tocado em um ponto vulnerável.
— Certamente ele escolheu para você um jovem chamado Adrian, que
trabalha em sua loja, não é mesmo?
— Adrian me escreveu. Eu não lhe escrevi.
— Mas o beijou e fez todas essas coisas com ele, e estou com ciúmes,
embora não tenha o direito de estar, não o vê? Tem que ficar com gente
jovem como ele, não com velhos como eu.
— Não é nenhum velho, para mim é mais divertido estar com você que
com ele, e quando ele me beijou não senti nada, não me aconteceu nada do
que senti quando você...
— Shhh! — ele lhe cobriu a boca com o dedo enluvado, e sentiu que
sua fúria se desvanecia tão rápido quanto se acendera.
Por um longo momento, seus olhares se abraçaram, até que Linnea
tirou o dedo de sua boca e murmurou: — Mas é verdade.
— Vive em minha casa. Não sabe o que as pessoas poderiam dizer, o
que poderiam pensar?
— Que me ama? — perguntou ela com suavidade. — Isso seria tão
terrível?
— Linnea, não... — ele exalou, insistindo em afastá-la.
— Oh, Teddy, eu... amo tanto você que faço loucuras — confessou,
queixando-se. — Beijo lousas, janelas e travesseiros porque você não me
beija.
Por mais que ele desejasse ser forte para se afastar dela, não conseguia.
Naquele instante, a confissão dela provocou um triste sorriso na boca de
Theodore. O problema era que ele gostava das coisas que a tornavam muito
jovem para ele. Nenhuma outra garota que ele conhecia era tão natural, tão
carente de caprichos e tão sincera. Ele fixou o olhar na linha do cabelo dela,
no cachecol vermelho que lhe rodeava o severo rosto, nos olhos sinceros, na
boca doce.
Com muito mais suavidade, Linnea disse: — Amo você, Teddy.
Senhor, Senhor... Moça, não me faça isto.
Mas quando ela ergueu uma vez mais o olhar para ele, Theodore cedeu
e a atraiu para seus braços, desta vez com ternura. Fechou os olhos e a
acolheu sob o queixo com uma mão, segurando-a pela parte de trás da
cabeça.
— Não o faça — pediu-lhe com voz rouca e áspera. Linnea sentiu o
movimento dele tragando contra o alto de sua cabeça. — Não tente
amadurecer muito depressa e não desperdice comigo estes anos preciosos.
Seja jovem e tola. Beije lousas e janelas e fale com pessoas que não existem.
Mortificada, Linnea se afundou mais sob o queixo dele.
— Adivinhou-o, certo?
— Que fala com pessoas que não existem? Sim, naquele dia que a
surpreendi aqui, junto ao quadro. E outra vez, quando ouvi você no andar de
cima falando com seu amigo Lawrence. Já está disposta a me dizer quem ele
é?
Ele a afastou por um instante para vê-la melhor, e ela deixou cair a
cabeça, envergonhada. Theodore lhe ergueu o queixo com um dedo,
obrigando-a assim a olhá-lo nos olhos. Nas maçãs do rosto de Linnea
apareceu um rubor e ela piscou com força.
— Não é ninguém — admitiu. — Eu o inventei.
Theodore franziu o cenho.
— Inventou-o?
— É só um personagem imaginário. Uma pessoa com a qual eu pudesse
ocupar o lugar de um amigo que não tive quando cheguei aqui. Na realidade,
inventei-o quando tinha uns treze anos, quando comecei a notar a diferença
entre os meninos e as meninas. Ele e eu... Bom, simplesmente, posso
conversar com ele como nunca pude fazê-lo com nenhum rapaz real.
Ela deixou cair o queixo e ficou examinando a lapela do bolso de
Theodore.
Ele olhou o nariz dela, suas sobrancelhas, a curva de seus cílios que
protegiam os bonitos olhos azuis. Os lábios delicados estavam levemente
inchados, e o que ele mais desejava era beijá-los e ensinar a ela as centenas
de maneiras de corresponder a um beijo.
— O que vou fazer com você, pequena? — perguntou-lhe em voz
suave. Linnea ergueu a vista e o olhou.
— Case-se comigo.
— Não posso. Por muito que eu queira, não posso. Não seria justo com
você.
Por que seria injusto que ele fizesse o que a converteria na mulher mais
feliz do mundo?
— Justo? Para mim?
— Pense, Linnea. Pense que dentro de vinte anos, quando você ainda
estiver jovem... eu terei passado da meia-idade.
— Oh, Teddy, está obcecado com os anos. Está sempre calculando.
Não compreende que o mais importante é contar a felicidade? Mas se dentro
de vinte anos pudéssemos ter mais felicidade que a maioria das pessoas aos
cinquenta anos? Por favor...
Os olhos eram sinceros e a sua boca tremia, ele estava a um suspiro de
distância. Quando pousou a vista nos lábios dele, o ritmo do pulso de
Theodore lhe fez uma advertência, mas lhe resultou impossível se mover
quando ela ficou nas pontas dos pés, elevou para ele os lábios entreabertos e,
segurando-lhe o rosto entre as luvas de vison, murmurou: — Por favor... —
inclinou a cabeça e roçou brandamente a boca na dele, a língua nos lábios
dele, pendurou-se no pescoço dele e o atraiu para si. — Por favor...
Ele tratou de se fazer de forte para resistir, mas a língua de Linnea
deslizou por sua boca, tímida, passando entre os dentes, pela pele sensível da
parte interior dos lábios dele. Exalando um som gutural, ele a apertou contra
si, inclinou a cabeça e se uniu plenamente a ela. Suas línguas se toparam em
um ardente encontro, e os corpos se apertaram mais um contra o outro. Os
corações pareceram se chocar, peito contra peito, e a excitação se converteu
em uma tormenta.
Theodore tinha sabor de café e cheirava ao ar do inverno. O interior de
sua boca estava quente, molhado, e a tentava mais do que teria podido
imaginar. Nenhum dos beijos que tinha experimentado a sacudiram como
este. Pensou que, se não pudesse ser seu para sempre, morreria.
Mas, de repente, ele se afastou e lhe arrancou os braços do pescoço. O
cachecol tinha caído e jazia em suaves dobras, rodeando o pescoço de
Linnea. Tinha os olhos aumentados, suplicantes, os lábios entreabertos, dos
quais saíam pequenas baforadas ofegantes. A voz de Theodore tremeu, e a
fala saiu difícil.
— Tenho que ir.
— Mas o que me diz de nós?
— A resposta segue sendo não.
Linnea se esforçou por desfazer o nó que tinha na garganta e disse,
trêmula: — Então também terei que partir. Sinto por isso, mas não posso ficar
mais na mesma casa que você.
Theodore sabia que chegariam a isso, mas o que ele não sabia era que
lhe doeria tanto.
— Não. Prometo que não...
Tocou-lhe os lábios para silenciá-lo.
— Não posso fazer a mesma promessa, Teddy... — sussurrou.
Ele teve a impressão de que tudo lhe doía. Tudo nela lhe apetecia.
Desejava-a e muito mais, almejava a vida rica e plena que podia viver com
ela. Não imaginou que pudesse doer tanto, de que se pudesse desejar tanto.
— Voltarei para buscá-la às cinco e então falaremos sobre isso. Não
tente fazer o caminho para casa sozinha, entendido?
— Sim — sussurrou Linnea.
— Quando necessitar de mais carvão, mande Kristian ir buscá-lo lá
fora. Promete-me?
Como ela não lhe respondesse, deu-lhe uma leve sacudida, exigindo
com ternura. — Promete-me?
— Prometo.
— Arrume o cabelo. Acredito que esteja revolto atrás — a voz saiu
áspera enquanto ele retrocedia e a sustentava pelos braços.
— Ajeitarei os cabelos — respondeu Linnea, com dureza.
Então Theodore a soltou e se foi, sem olhar para trás.
CAPÍTULO 19
UM PEDIDO

Com aquele clima gelado, os pais levaram os filhos na escola e foram


buscá-los. Linnea deixou uma nota para Teddy na porta da escola e retornou
com Trigg e Bent. Bastou-lhe um olhar para Clara para que as lágrimas que
tinha conseguido conter de manhã saltassem num rompante molhado. Um
momento depois, estava rodeada pelos braços consoladores da amiga.
— Ora, Linnea, o que aconteceu?
— Oh, Clara — gemeu, agarrando-se a ela.
Clara enviou uma silenciosa mensagem a Trigg e este desapareceu com
Bent, para que ele não fosse uma testemunha assombrada da professora que
soluçava.
— Shhh... Shh... Não pode ser tão terrível. Outra vez teve problemas
com o Allen?
Linnea recuou soluçando, procurando o lenço.
— É Theodore.
— Ah, meu irmão Theodore. O que ele fez desta vez?
— Oh, C... Clara, é horrível!
Clara se afastou um pouco para poder ver o rosto de Linnea.
— O que ele fez de tão terrível? Não poderei ajudá-la se não me contar.
— Eu o... amo.
A mulher conteve o sorriso.
— E isso é horrível?
— Ele também me ama, mas n... não quer se casar comigo.
Linnea teve um novo acesso de choro, e Clara a abraçou de novo.
Esfregando-lhe as costas estremecidas, conduziu-a à mesa.
— Isso significa que propôs casamento a ele?
Linnea assentiu, abatida, e se deixou sentar em uma cadeira. Clara não
pôde evitar um sorriso. Pobre Teddy, alguma vez teria a oportunidade de
propor por si mesmo matrimônio a alguma mulher?
— Fez isso, hein? Deve ter tido certa dose de coragem para fazê-lo. E o
que ele lhe respondeu?
— Acredita que sou muito jovem para ele e diz que não quer mais
filhos e... Oh, Clara! O que vou fazer?
Apoiou a cabeça sobre a mesa e deixou fluir sua tristeza.
Filhos? Pensou Clara. Já falaram de filhos? O pobre Teddy já estava
destinado a Linnea, mas ainda não sabia disso.
— Chora tudo o que quiser, e quando tiver se acalmado um pouco,
conversaremos sobre o assunto.
Foi isso o que fizeram. Linnea desabafou contando tudo o que sentia, as
complicações que Theodore interpunha uma e outra vez entre eles. Clara
escutou, expressou-lhe sua simpatia e a acalmou. E quando a história
terminou e a única coisa que restou do pranto de Linnea foi o inchaço das
pálpebras, a jovem disse: — Clara, preciso te pedir algo. Embora seja muito
presunçoso de minha parte, é a única a quem acredito que posso fazer esse
pedido.
— Do que se trata? Já sabe que pode me pedir o que quiser.
— Eu poderia ficar aqui com você e com Trigg? Já não posso viver
mais naquela casa, e o conselho escolar pagará a você; além disso, não como
muito. Pensei que, possivelmente, logo nascerá seu bebê e eu poderia ajudá-
la com as tarefas da casa. E será só até a primavera. Eu... Bom, não acredito
que voltarei no outono.
Para Clara, bastaram uns instantes de reflexão para se decidir.
— Claro que pode — pousou a mão no rosto de Linnea, molhado pelas
lágrimas. — E ficarei encantada com sua ajuda. Já estou tão pesada que
circular pela casa já é um esforço. E agora... — ficou de pé e falou com tom
autoritário: — Ficará para jantar, e depois Trigg pode te levar para a casa de
mamãe para pegar as suas coisas. O que acha?
Pouco depois, quando Linnea e Trigg entraram na casa de Theodore, o
ambiente estava tenso. Os três membros da família deram um passo atrás,
vacilantes, desventurados, sem saber o que dizer, enquanto ela lhes explicava
que Clara precisava dela nesses últimos meses de gravidez e que, portanto,
Trigg a levaria de volta para lá.
— Esta noite? — perguntou Nissa.
— Sim, assim que juntar as minhas coisas.
— Um pouco repentino, não?
Linnea soube que Theodore não acreditava na história, e duvidava que
a própria Nissa acreditasse, mas a única coisa que queria era recolher as suas
coisas e escapar o quanto antes. Embora evitasse o olhar de Theodore,
percebeu o ceticismo com que a observava a certa distância, sem dizer nada.
Kristian não deixava de olhar para sua avó, como se esperasse que esta
detivesse Linnea, enquanto Nissa compunha uma expressão neutra enquanto
resolvia se devia se sentir ofendida ou não.
Linnea não tinha muitas coisas para levar... Não trouxera muito mais
que um par de luvas de vison, um gato esculpido, um xale de crochê e um
volume do Tennyson encadernado em couro. Tomou cuidado de não pensar
muito nessas coisas enquanto as colocava na mala. Quando voltou para baixo,
não tinha a certeza de poder pronunciar as despedidas necessárias. As
lágrimas estavam tão perto da superfície que o nariz lhe ardia, e o nó que lhe
obstruía a garganta convertia em esforço o ato de falar. Entretanto,
representou seu melhor papel, desenhando um sorriso radiante e lhe
imprimindo um ar decidido a cada passo. Em Nissa, deu um abraço forte.
— Uma a menos para cozinhar — brincou.
Apontou para Kristian com um dedo brincalhão.
— Ocupe-se de fazer a tarefa, embora eu não esteja aqui sentada à
mesa à noite.
Deu em Theodore um apertão de mão convincente.
— Progredirá muito bem com a leitura. Sei disso. Kristian poderá
ajudá-lo. Bom, Trigg, está tudo preparado e estou pronta para partir.
Deu a volta com a aparente ansiedade de uma garota que se aproxima
de uma loja de doces, mas, quando se foi, os três Westgaard se olharam entre
si, sem saber o que dizer. Por fim, Nissa rompeu o silêncio: — Bom, o que
sabe sobre isto, Teddy?
Engolindo em seco, disse e depois se afastou: — Nada.
— Kristian?
— Nada.
— Bom, essa garota esteve chorando, e muito. Não me enganou em
absoluto. Amanhã penso ir lá e averiguar o que está acontecendo.
— Deixe-a, mãe.
— Deixá-la?
— Se quer viver lá, deixe-a. Como ela disse, é uma boca a menos para
alimentar.
Mas nada era bom sem ela. Era como havia sido na época do Natal;
porém, pior. As refeições eram momentos tristes. Ninguém falava. Todos
fixavam os olhos nos pratos e não entendiam a razão pela qual a comida não
tinha gosto. Surpreenderam-se uns aos outros olhando a cadeira vazia de
Linnea, e trataram de dissimular. John havia retornado, pois estava melhor do
resfriado, mas, assim como tinha saído de sua carapaça desde que a moça
tinha entrado em suas vidas, agora estava mais retraído que nunca. Entrava
arrastando os pés, com a cabeça arqueada, e se ia do mesmo modo.
Embora Kristian a visse todos os dias na escola, ia e voltava sem dizer
uma palavra sobre como ela estava. Theodore queria perguntar como estava
se arrumando para retirar toda aquela neve. Como se vestia. Todas as manhãs
tinha que fazer um esforço para se levantar e se convencer de que o dia tinha
algum significado. As noites eram uma tortura. Ninguém pegava um livro.
Ninguém pegava uma lousa. Trigg a levava à escola nesses dias frios. Seu
veículo passava com regularidade pela manhã e à tarde. Mas, como a carroça
continha a proteção contra o frio, se Linnea fosse nela, ele não a via.
Theodore percebeu que rondava pelos celeiros a essas horas, na esperança de
espionar o veículo que a transportava.
De noite dava voltas na cama, inquieto, pensando no futuro. Kristian já
tinha dezessete anos. A mãe, setenta. Não os teria perto para sempre. E
quando se tivessem ido, o que faria? Ficariam ele e John. Dois velhos
solteirões, vivendo em suas solitárias fazendas na pradaria, falando quase
sempre de animais, saudando as carroças que passavam, na esperança de que
alguma desse a volta e lhes fizesse companhia. Pensou em Linnea lá, na casa
de Clara, e se perguntou como estaria e se sentia falta dele. Senhor, como era
forte essa garota! Jamais imaginou que partiria como ela o tinha feito. Supôs
que estaria bem ali, criando algum entretenimento... Não havia dúvida de que
amava as crianças, queria muito bem a Clara e as duas se davam
maravilhosamente bem.
Supôs que quando chegasse o novo bebê, Linnea estaria na glória
tendo-o por perto. Pensou em recém-nascidos. Uma moça como ela merecia
ter filhos, mas um homem de sua idade não tinha por que os ter. E, entretanto,
se perguntou como seriam os filhos dele e de Linnea. Provavelmente loiros,
robustos e cheios de energia como ela.
Quando a via na igreja aos domingos, saltavam-lhe os olhos das órbitas
e o peito se lhe oprimia. Ela, em troca, parecia feliz como uma cotovia e um
grande sorriso luzia sob o chapéu com penas de pássaro.
— Oh. Olá, Teddy. Onde está Nissa?
E antes que Theodore pudesse responder, já tinha desaparecido. Depois
do jantar, naquele domingo, foi às escondidas ao seu quarto e se penteou,
imaginando que eles podiam chegar a qualquer momento, pois Clara e Trigg
sempre iam visitar a mãe aos domingos. Mas daquela vez não foram.
À última hora da tarde, vendo que não apareciam, escondeu a lousa sob
a jaqueta e foi para o estábulo, para ver se um pouco de exercício lhe aliviava
a angústia. Mas perdeu meia hora contemplando os arreios sobre os cavaletes,
e outra meia hora com o nome que tinha escrito na lousa. Linnea.
Linnea. Linnea. Senhor todo poderoso, o que deveria fazer? Ele sofria.
Doía. O amor não tinha que doer assim. Levantou-se com esforço e tentou
limpar o banco de ferramentas, mas já estava em perfeito estado.
Retrocedendo, jogou uma pinça para recortar cascos com tanta força que
golpeou três latas e derrubou ao chão os pregos para ferraduras. Lançando
uma violenta imprecação, deu a volta, recolheu a lousa e saiu dali com uma
exasperação.
Nissa e Kristian estavam na cozinha quando ele voltou. Olharam-no,
mas não disseram nada. Theodore foi para seu quarto e reapareceu um
instante depois com os suspensórios e a camisa caídos, encheu a bacia, lavou-
se, barbeou-se pela segunda vez no dia. Banhou o rosto com colônia,
lubrificou o cabelo com fixador, penteou-se com esmero, desapareceu uma
vez mais e reapareceu pouco depois, vestindo o traje dos domingos e uma
camisa branca limpa com um colarinho novo. Não olhou para o filho nem
para a mãe, mas colocou o casaco, tomou a lousa e o silabário, e anunciou: —
Irei à casa de Clara para ver se posso retomar minhas lições.
Quando a porta se fechou com um golpe atrás dele, Kristian cravou os
olhos nela, mudo. Nissa seguiu movendo as agulhas, observando seu neto
sobre a armação dos óculos.
— Eu poderia continuar lhe ensinando a ler — declarou Kristian, hostil.
— Sim.
As agulhas seguiram se chocando, e o olhar de Kristian se cravou no de
sua avó.
— Por que então ele teve que ir à casa de Clara?
Nissa prestou atenção à malha, embora não o necessitasse.
— Para mim seu pai foi cortejá-la — respondeu, com expressão
satisfeita.
Kristian abriu a boca e depois a fechou, sem dizer uma só palavra.
Na casa de Clara, Linnea estava junto à mesa da cozinha, preparando as
lições para a segunda-feira, e toda a família comia pipocas. Ao longe,
ouviram um ruído que atravessou a parede.
— Vem alguém. — Trigg se levantou e olhou através da janela para a
escuridão.
— Parece-me que é Teddy.
A mão de Linnea foi até a boca, mas parou na metade do caminho, e o
coração acelerou. Não teve tempo de absorver o anúncio quando a porta se
abriu e ali estava Theodore, com o aspecto de um assistente de funeral. Olhou
para todos os presentes, menos para ela.
— Olá, Clara, Trigg, crianças. Pensei que hoje fossem passar lá em
casa. Decidi ver se estava tudo bem.
— Está tudo bem, Teddy. Entre. Faz frio aqui fora — disse Trigg.
Linnea sentiu-se corar.
— Tio Teddy! Tio Teddy! Temos pipocas!
A pequena Christine se lançou para ele, erguendo os braços. Ele a
levantou e lhe deu um suave beliscão no queixo, sorrindo. Por fim, olhou
Linnea nos olhos por sobre a cabeça loira da menina. O sorriso desapareceu e
ele a saudou com um aceno de cabeça silencioso. Ela, em troca, voltou a
atenção para a tarefa.
— Sente-se, Teddy — convidou Trigg, apontando uma cadeira entre a
dele e a de Bent.
— O que o traz aqui? — perguntou Bent.
Theodore se aproximou da mesa, com Christine sobre o joelho.
Ele colocou a lousa e o silabário sobre a mesa e respondeu: — Estou
aprendendo a ler.
— Sério? Jesus, mas é muito velho para...
— Bent! — repreenderam-lhe os pais em uníssono.
O menino os encarou sem saber que engano tinha cometido.
— Mas é...
Linnea teve vontade de se enfiar debaixo da mesa.
— Ninguém é muito velho para aprender — disse Theodore para seu
sobrinho de oito anos. — O que acha, Senhorita Brandonberg?
A moça o olhou nos olhos, e não lhe ocorreu nenhuma maldita palavra.
— Se pudesse dispor de tempo, gostaria de retomar as lições.
Lições? Vestido como se tivesse vindo pedi-la em matrimônio ele
queria tomar lições? Como ela poderia se concentrar em ensinar quando seu
sangue se agitava em suas veias como uma melodia?
— Eu... hum... claro, por que não?
Theodore lhe sorriu, assentiu, pegou um punhado de pipocas e uma das
crianças disse algo que distraiu sua atenção. Linnea sentiu o olhar inquisitivo
de Clara e Linnea escreveu na borda de um papel: “Não saiam daqui”.
Sem falar, mostrou-o a Clara, rogando que fizesse caso da mensagem.
Seria muito evidente se Clara e Trigg desaparecessem de repente, e a cozinha
era o lugar mais quente da casa, sede da habitual reunião em noites frias
como essa. A sala poucas vezes era usada no inverno.
Por sorte, Clara levou seu pedido a sério. Quando se acabaram as
pipocas, todos trocaram de lugar de modo que Linnea e Teddy pudessem se
sentar juntos, mas os outros ficaram. Os meninos encontraram uma bola de
linho e jogaram sobre o chão com o gato. Clara tricotava uma manta para o
bebê que iria nascer, Trigg lia o Farm Journal. Linnea e Teddy tentaram se
concentrar na lição, que a nenhum dos dois importava o mínimo. Os
cotovelos estavam apoiados sobre a mesa, mas eles cuidaram de não se tocar.
Uma vez que seus joelhos se chocaram sob a mesa, sentaram-se mais eretos.
Olharam as mãos um do outro, mas procuraram não se olhar diretamente.
Depois de ter passado umas duas horas estudando, sem falar, Teddy
empurrou a lousa para Linnea. Sobre ela, havia cinco palavras: “Por favor,
volte para casa”.
Ela teve a sensação de que o coração lhe transbordava por todo o corpo.
Amor, dor, renúncia. Levantou bruscamente os olhos, mas Trigg e Clara
estavam ocupados. Teddy a olhava, e ela sentia os olhos como uma
nostálgica carícia na face. Os nódulos da mão que sujeitava o giz estavam
brancos. Teria sido tão fácil dizer que sim, sabendo o que ele sentia por ela...
mas ele não lhe oferecia nada permanente além de um alívio circunstancial
para a tristeza de ambos.
Linnea tomou o giz, tirando-o de entre os dedos de Theodore,
observando como os relaxava com esforço. Escreveu só duas palavras: “Não
posso”, e pela primeira vez naquela noite, olhou-o diretamente nos olhos.
Oh, Teddy, amo você. Mas quero tudo ou nada, pensou.
Viu que ele tinha entendido claramente, que se lhe acelerava a
respiração. Viu-o debater-se. E tudo nela fluiu para ele em silenciosa súplica.
Mas Theodore fechou o silabário, colocou-o sobre a lousa e empurrou a
cadeira para trás.
— Bom, é tarde, será melhor que eu vá — ficou de pé e foi em busca
do casaco. — Posso voltar amanhã?
— Claro que sim — respondeu Trigg. — Linnea?
Não teve força suficiente para dizer que não. — Se quiser.
Theodore assentiu com solenidade e deu boa noite.
Voltou na noite seguinte, mas não com seu melhor traje. Usava uma
camisa de flanela cinza xadrez com as mangas enroladas até o cotovelo, a
gola aberta, exibindo as mangas e a eterna camisa de inverno. Tinha uma
aparência muito masculina. Linnea tinha o cabelo preso com uma fita, caindo
pelas costas. Com o vestido azul-marinho e branco a meia panturrilha,
possuía um aspecto muito juvenil.
Deu a ele um conto para ler, e ele se dispôs a fazê-lo sentado na
cadeira, com a têmpora apoiada em dois dedos. Linnea ergueu os olhos uma
vez e descobriu que, por cima da borda do livro, ele lhe olhava os seios que
ela apoiava sobre as mãos cruzadas na mesa. Seu rosto ficou vermelho, ela se
afastou para trás na cadeira e Theodore voltou a olhar o livro.
Na noite seguinte, pediu-lhe que escrevesse uma frase com a palavra
azul e ele escreveu: Linnea tem belos olhos azuis.
Como uma chicotada, os belos olhos azuis se encontraram com os belos
olhos castanhos. O rosto da moça se converteu em uma rosa vermelha e
Teddy sorriu. Acalorada, procurou dissimular tomando a lousa para lhe
corrigir a ortografia. Imperturbável, ele apagou tudo e, apoiando o giz,
escreveu: É bonita quando enrubesce.
Foram seis noites seguidas, e Linnea continuava se negando a retornar.
Sentavam-se à mesa como de costume, com Clara e Trigg por perto, e
Theodore a estudava dissimuladamente. Ela corrigia tarefas, enquanto ele
supostamente lia, mas era impossível se concentrar na lição.
Nessa noite, ela se penteou de uma maneira diferente. Caíam-lhe finas
mechas pelas têmporas e ela retorcia uma ao redor de um dedo, dando-lhe
voltas, distraída. De repente, riu por algo que lia em um papel.
— Tem que ver isto — deslocou-o de modo que ele pudesse vê-lo. — É
uma prova de ortografia que dei hoje. Supõe-se que aqui deveria dizer medo.
Dizia m.e.r.d.a.
Todos riram, jogando-se para trás. Theodore observou como diminuíam
as risadas e a cabeça da moça se inclinava outra vez sobre a tarefa. Em dado
momento, terminou e deixou de lado a pilha de folhas, ergueu os olhos e o
descobriu admirando-a.
— Terminou a tarefa que lhe dei?
Theodore pigarreou.
— Ehh... não toda.
— Theodore! — repreendeu-lhe. — Sei que pode ler mais rápido do
que isso.
— Em algumas noites.
— Bom, poderá terminá-lo em casa. Está na hora de ensinar-lhe
algumas palavras novas.
Pegou a lousa e eles ficaram a trabalhar. Outra vez cheirava a
amêndoas, e isso esmigalhava a concentração do aluno. Recordou-se de
quando dançaram juntos, sentindo esta fragrância de amêndoas tão perto.
Lembrou-se de como havia se sentido quando a beijara. Jovem. Vivo.
Animado. O simples fato de olhá-la evocava tudo isso, fazia-lhe correr o
sangue e martelar-lhe o coração. Tomou a lousa como se não tivesse
alternativa e, por mais que se sentisse atemorizado e um pouco tímido, tinha
que lhe pedir. Precisava fazê-lo. A vida era um inferno sem ela.
“Posso passar para te buscar para o baile de amanhã?”, escreveu.
Desta vez, Linnea não manifestou surpresa. Nenhum rubor iluminou-
lhe as faces. Nenhuma excitação brilhou em seus olhos. A única coisa que
havia em seus olhos quando a olhou era uma triste resignação, e negou
lentamente com a cabeça.
Sentiu uma ligeira pontada de ira da parte dele: o que ela pretendia
fazer com ele? Mas sabia que era bastante teimosa e forte para sustentar sua
decisão e ficar morando até metade do ano na casa de Clara. E no outono
seguinte, não voltaria. Leu isso nos olhos tristes que o olhavam e, de repente,
a vida se estendeu diante dele como um lúgubre e eterno purgatório. Sabia
perfeitamente o que devia fazer para converter esse purgatório em um
paraíso.
Sabia que ela estava esperando por isso. Sentiu como se estivesse
sufocando, como se as paredes de seu peito fossem afundar a qualquer
momento. Como se o coração fosse sair do lugar... uma dor lancinante sob as
costelas, o suor nas palmas, o tremor nas mãos. Mas, de todos os modos,
tomou o giz e escreveu o que nem todo o bom senso do universo lhe teria
impedido de escrever: “Então, se coseria comigo?”
Quando girou a lousa para ela e esperou, não houve o menor ruído no
aposento. Ele contraiu os músculos do estômago.
Quando Linnea leu, a surpresa apareceu em seu rosto: ficou
boquiaberta e inspirou bruscamente. Olhou-o com olhos arregalados e ambos
se fitaram com a respiração agitada, como se acabassem de chegar ao clímax
pela primeira vez. Tinham os rostos corados e, aparentemente, nenhum dos
dois podia se mover. Por fim, Linnea recolheu o giz com mão trêmula e... por
uma vez, escreveu, sem corrigi-lo: “Sim”, escreveu.
Em seguida, a lousa foi arrebatada de sua mão e caiu no chão. Com um
só salto impaciente, Theodore se levantou e foi procurar seu casaco, evitando
olhá-la.
— Esta noite haverá a aurora boreal, e Linnea e eu sairemos para vê-la.
Tiveram a impressão de que demoravam um ano e não um minuto para
abotoar os casacos e fechar a porta depois de sair. E as únicas auroras que
viram foram as que exploraram atrás das pálpebras fechadas quando
Theodore a atraiu com veemência para seus braços e grudou sua boca na
dela. Beijaram-se como loucos insaciáveis, até que chegaram a um ponto em
que tudo lhes pareceu acessível e a vida lhes correu, alvoroçada, pelas veias.
Separaram as bocas, apertando-se, até que lhes tremeram os músculos, e eles
ficaram a murmurar frases pela metade com uma pressa desesperada.
— Nada parecia bom sem você...
— Sentia-me desventurada sem...
— De verdade quer se...?
— Sim. sim... quer...
— Tentei não, mas...
— Não sabia como chegar a você e...
— Oh, Deus, Deus, amo você...
— Te amo tanto que...
Beijaram-se outra vez querendo meter-se dentro da pele do outro sem
poder, mas tentando-o de todos os modos. Passaram as mãos por todos os
lugares permitidos e o mais perto possível dos proibidos. Separaram-se
aturdidos pelo desacostumado alívio, pois tinham chegado a um acordo.
Beijaram-se outra vez, ainda atônitos, e depois se detiveram, procurando se
controlar.
Linnea apoiou a testa no queixo de Theodore.
— Recorde-me de ensiná-lo como se escreve casaria.
— Escrevi errado, não é?
Girando a cabeça sem separá-la de seu queixo: — Sim.
Theodore riu entre dentes.
— Aparentemente, isso não tem importância.
A moça sorriu e lhe esfregou as faces com as mãos.
— C-a-s-a-r-i-a, é assim que se escreve “se casaria comigo”. C-o-s-e- r-
i-a é ficar unida a você.
— Ah, pequena! — Theodore sorriu e a atraiu mais para si. — Acaso
ignora que, quando for minha esposa, terá realizado ambas as coisas?
Ela não sabia que um coração era capaz de sorrir. Beijaram-se outra
vez, já sem tanta pressa, pois a ansiedade inicial já estava saciada. Linnea o
agarrou pelo pescoço, atraiu a cabeça dele para si e provou a boca morna e
úmida com a sua, saboreando a textura, experimentando a sedução. A cabeça
de Theodore se movia em lânguidos círculos, o torso massageado com as
mãos. Então surgiu a impaciência e Theodore, apelando para o bom senso,
afastou-se.
— Disse que sairia com você para contemplar a aurora boreal. Talvez
fosse conveniente que déssemos uma olhada.
— Não gosto da ideia — murmurou ela, apertando-se a ele, beijando-
lhe o pescoço.
Theodore deixou escapar uma risada gutural, e Linnea a sentiu nos
lábios.
— Que moça tão ingrata! A natureza põe em cena semelhante
espetáculo e ela nem lhe dá atenção.
— Aqui mesmo a natureza está me mostrando outro espetáculo, e estou
tentando demonstrar o quanto me importo com ele.
Mas Theodore era nobre, não heroico. Ele a fez girar entre os braços,
apertando-lhe as costas contra o peito e rodeando-a por trás.
— Olhe.
Ela olhou e ficou atônita.
O céu que dava para o Norte era violáceo, irradiava um resplendor
fantasmagórico, e a luz cor-de-rosa se estilhaçava e retrocedia, formando
desenhos inimagináveis. A aurora boreal se estendia, refletindo-se sobre o
manto branco que cobria o chão. Por momentos, parecia que não só o céu,
mas também a terra lançava raios, suscitando uma vista noturna que era como
a visão do centro candente da terra através de uma imensa janela opaca. Até
onde alcançava a vista, a terra era iluminada, coberta de neve. Um espaço
plano, infinito, que seguia sempre, como o resto da vida deles juntos.
— Oh, Teddy! — suspirou, apoiando a cabeça no ombro dele. —
Seremos muito felizes juntos.
— Acredito que já somos.
Ele a balançou com ternura e eles seguiram contemplando o céu, que
em momentos se iluminava e em outros se obscurecia.
— E viveremos para contar aos nossos netos a história dessa noite —
disse Linnea, sonhadora.
Theodore beijou-lhe a maçã do rosto, imaginando esse futuro. Linnea
cobriu os braços dele com os seus.
— Acredita que nossos cavalos estão por aí em algum lugar? —
perguntou.
— Em algum lugar — disse ele.
— Acha que estão abrigados e satisfeitos?
— Sim.
— Como nós?
Isso era o que ele gostava nela, amava aquela terra e os animais como
ele.
— Como nós — respondeu ele, beijando-a.
— Oh, olhe! — apontou Linnea. — As luzes se moveram, como leite
fresco salpicando para cima. Que bonitas são!
— Só na Noruega são mais brilhantes — disse Theodore.
— Noruega. Ah... eu gostaria de ir lá um dia.
— Mamãe diz que é a terra do sol da meia-noite. Quando ela e meu pai
chegaram aqui, acreditaram que jamais se acostumariam à pradaria. Sem
fiordes, sem árvores, sem cursos de água que valessem a pena nem
montanhas. A única similaridade eram “as luzes”. Disse que, quando sentiam
saudades da velha pátria e não podiam suportar mais, estavam acostumados a
fazer o mesmo que nós agora, e isso os ajudava a superar a nostalgia.
Sem saber como, a mão de Theodore pousou sobre o seio de Linnea, e
a sensação foi tão intensa que ela reteve a mão.
— Durante esta semana senti falta de Nissa — disse ela.
— Venha para casa comigo, esta noite mesmo.
Os dois perceberam onde estava a mão e Theodore a afastou. Linnea se
voltou para ele.
— Parece prudente para você?
— Estando minha mãe e Kristian presentes todo o tempo? — subiu-lhe
a gola do casaco e deixou ali as mãos, rodeando-lhe o pescoço.
— Por favor, Linnea, quero que esteja ali, e nos casaremos apenas
quando Martin puder aquecer a igreja. Em uma semana, duas no máximo.
Linnea ansiava por ceder. Embora desfrutasse da companhia de Clara,
não se sentia como em casa. Além disso, estava mais longe da escola, e Trigg
tinha que sair para levá-la em todas as manhãs frias. Sentia falta de Theodore
com um desejo tão feroz que a assustava. Ficou nas pontas dos pés e lhe deu
um abraço repentino e forte.
— Sim, irei. Mas serão as duas semanas mais longas de nossas vidas.
Ele a apertou contra seu peito sólido e desceu o rosto para o pescoço
que cheirava a amêndoas, pensando que se conseguisse passar pelo menos
vinte anos com ela estaria agradecido.
No baile da noite seguinte, Theodore chamou Kristian: — Preciso falar
com você, filho. Podemos sair um minuto?
Kristian observou seu pai um momento e depois respondeu: — Claro.
Saíram para o ar cortante e viram uma lua não maior que um “C”. A
capa superficial de neve rangia sob seus pés, e eles vagaram sem rumo
aparente até que chegaram perto de uma fila de carroças. Os cavalos dormiam
cobertos com grossas mantas, com as ásperas crinas duras pela geada. Sem se
darem conta, aproximaram-se de Cub e Toots, os seus, e permaneceram de pé
junto às grandes cabeças, guardando silêncio durante um tempo. No celeiro,
cessou a música, e a única coisa que se ouvia era a ruidosa respiração dos
cavalos.
— Esta noite não há aurora boreal — comentou, por fim, Theodore.
— Não.
— Ontem à noite havia muitas luzes.
— Ah, sim.
— Sim, Linnea e eu... — deixou a voz se perder, e começou de novo.
— Filho, recorda-se daquele dia em que fomos procurar carvão na casa de
Zahl?
— Sim, claro.
Kristian já sabia o que o pai lhe contaria, pois não era frequente que
Theodore o chamasse de filho, e quando o fazia era porque se tratava de algo
importante.
— Bom, naquele dia você me contou o que sentia por Linnea, e quero
que saiba que não tomei isso como tolice.
Era a segunda vez que a chamava Linnea, embora antes jamais o
fizesse.
— Vai se casar com ela, não é?
A mão pesada do pai caiu sobre o ombro do filho.
— Sim, mas preciso saber o que sente a respeito.
Se Kristian sentia desilusão, não era tanta como ele esperava. Ao
escutar a dedução de Nissa, tinha tido tempo de digerir a ideia.
— Quando?
— Dentro de uma semana, se pudermos organizá-lo; do contrário, duas.
— Uh, que rápido.
— Filho, angustiava-me pensar no que você sentia por ela. Não escolhi
me apaixonar, mas aconteceu, e quero que saiba que lutei muito para não me
entregar, mas foi mais forte eu. Assevero que, embora haja dezesseis anos de
diferença entre nós, aparentemente isso não impediu que nos
apaixonássemos. Quando acontece, acontece, e, entretanto, quando soube
fiquei atormentado recordando-me de que você tinha sido o primeiro a
pretendê-la.
Kristian sabia o que devia dizer: — Oh, ela não me considera mais que
um rapazinho. Agora o compreendo.
— Surpreenderia você saber que não é assim. Falamos a respeito, e
Linnea...
— Quer dizer que ela sabe o que sinto por ela? — Kristian ergueu a
cabeça, consternado. — Contou para ela?
— Não tive necessidade de fazer isso. O que deve compreender é que
as mulheres notam essas coisas sem que elas sejam ditas. Ela via o que você
sentia, e tinha medo de que isso causasse problemas na família — Theodore
pôs a mão sob o nariz de Toots, sentindo as brancas baforadas do hálito
contra a luva.
— Causará?
Kristian não seria a origem de nenhum problema, por mais duro que
fosse para ele administrar a ideia de que Linnea seria a esposa de seu pai, ele
não causaria qualquer problema.
— Não. De qualquer modo, o mais provável é que o meu tenha sido um
amor de adolescente, como diz Ray — Kristian quis aliviar o ânimo do pai.
— Mas não terei que chamá-la de mãe? — Kristian estudou o rosto do pai.
— Não, se não quiser.
Theodore compreendeu de repente quão afortunado era por ter um filho
como Kristian. Ele fez algo que poucas vezes tinha feito, estreitou-o entre os
braços e o apertou contra si por um momento.
— Filho, seria bom criar outro filho como você algum dia. Não há filho
melhor.
— Oh, Pai!
Seus braços se apertaram contra as costas do pai. Atrás deles, Cub
lançou um suave sopro, e do celeiro chegou o som apagado da concertina
avisando que começaria outra dança. Em outra parte do mundo, os soldados
lutavam pela paz, mas ali, onde pai e filho se abraçavam, coração contra
coração, a paz já tinha derramado a sua bênção.
CAPÍTULO 20
O CASAMENTO

Theodore e Linnea se casaram no primeiro sábado de fevereiro, na


pequena igreja rural, onde o noivo e praticamente todos os convidados das
bodas, exceto a família de Linnea, tinham sido batizados. O repicar de uma
só nota do sino reverberou ao longo de quilômetros no ar limpo e fresco. No
caminho de cascalho, em frente ao edifício, os postes para atar os animais
estavam cheios, mas os cavalos, curiosos, giravam as orelhas para os
automóveis que chegavam, com aquele som diferente de qualquer relincho
que tivessem escutado e que deixavam um rastro que em nada se parecia com
algum que tivessem cheirado.
Contra o fundo do céu da cor das flores de linho, um estrepitoso bando
de melros não deixava de fazer barulho, ao mesmo tempo em que de um
campo de milho sem ceifar chegava o desafinado cacarejo dos faisões.
Sobre os trigais ceifados se estendia a neve recém-caída, como uma
capa de arminho, e o sol se derramava sobre a modesta igreja da pradaria,
atravessando as singelas janelas em arco, para acrescentar um prenúncio de
promessas de boa sorte aos votos que estavam a ponto de pronunciar.
Estavam presentes na congregação quase todas as pessoas que mais
queriam bem a Theodore e a Linnea. Os carros sem cavalos pertenciam ao
Diretor Dahl e a Selmer Brandonberg, que tinha chegado com a esposa e as
filhas naquela manhã, logo cedo. Todos os alunos da escola estavam ali, bem
como a família completa de Theodore, salvo Clara e Trigg, pois ela tinha
dado à luz a uma menina há dois dias e ainda estava de repouso. Kristian era
o padrinho de Theodore; Carrie, a madrinha de Linnea.
A noiva usava um simples vestido de suave lã branca, que a mãe lhe
havia trazido da cidade. A saia tinha a forma de uma tulipa fechada. O chapéu
de abas largas estava envolto em um tênue ninho de rede branca e ela estava
belíssima. Calçava umas delicadas sandálias de cetim de saltos altos: assim,
seus olhos ficavam no mesmo nível dos lábios de Theodore, e ela provocava
suspiros de inveja em todas as alunas. Aos olhos do noivo, ela nunca tinha
estado mais bela.
Theodore vestia um traje negro novo de lã, camisa branca, gravata
negra, e o cabelo recém-cortado, meticulosamente alisado para trás, deixando
ver os restos do bronzeado do verão que terminava um pouco acima das
sobrancelhas. Aos olhos de Linnea, ele nunca tinha estado mais bonito.
— Minha querida bem-amada...
De pé, diante do reverendo Severt, o noivo estava rígido; a noiva,
ansiosa. Quando pronunciaram os votos, ele foi sóbrio, ela, sorridente. Ao lhe
colocar o anel de ouro no dedo, os dedos do homem tremeram, os dela se
mantiveram firmes. Quando foram declarados marido e mulher, Theodore
exalou um trêmulo suspiro, e Linnea adquiriu uma expressão radiante.
Quando o reverendo Severt disse “Pode beijar a noiva” Theodore enrubesceu,
Linnea lambeu os lábios.
Na presença dos convidados, o beijo foi breve e pudico. Flexionando a
cintura, ele cuidou de não tocar nada que não fossem os lábios, enquanto
Linnea apoiou a mão em sua manga e ergueu o rosto para ele com tanta
naturalidade como o girassol ergue as pétalas para o sol. Começou a baixar as
pálpebras, mas não fechou do todo os olhos.
Na carruagem que os levava à escola, acompanhados pelo carro do pai
de Linnea e do inspetor Dahl soprando junto a eles, Theodore ia sentado,
rígido como o tronco de um carvalho, e Linnea, contente, apertava o peito e a
face contra o braço do marido.
Na escola, durante o jantar preparado por todas as mulheres da igreja,
Theodore conversava, tenso e formal, com os pais da noiva, e evitava tocar a
esposa diante dos pais dela. Quando começou a dança, dançou
mecanicamente a valsa com Linnea, cuidando para que os corpos
mantivessem uma distância respeitável. O mais romântico que disse o dia
todo foi quando Selmer e Judith se aproximaram para felicitá-los: — Cuidarei
bem dela. Não terá que se preocupar, senhor.
Entretanto, a expressão cética do pai e o semblante abatido da mãe
deixaram claro à moça que eles não estavam muito tranquilos.
A própria Linnea se divertia bastante com o nervosismo de Theodore.
Às vezes, erguia os olhos e o surpreendia observando-a do outro lado do
salão e, para seu deleite, via-o corar. Viu-o beber cerveja e comprovou que
cuidava de não se exceder. E quando ela dançou com Lars, Ulmer ou John,
soube que os olhos do marido a seguiam admirados, embora procurasse não
ser descoberto.
Agora estavam de pé na penumbra do final da tarde, enquanto o carro
de seu pai soprava já no caminho de volta e a neve fresca resplandecia ao
resplendor rosado do vibrante entardecer. O ruído que saía da escola indicava
que a diversão logo começaria. Theodore afundou as mãos nos bolsos e olhou
para a esposa: — Bom... — pigarreou, jogando um olhar ao edifício da
escola. — Entramos?
A última coisa que ela desejava no mundo era voltar para o baile. Já
eram marido e mulher e ela queria que estivessem sozinhos... e juntos.
— Ficar mais quanto tempo? — ela perguntou.
— Bom... quero dizer, quer dançar?
— Na verdade, não, Theodore. E você? — perguntou-lhe, cativando-o
com o olhar.
— Eu... bom... — ergueu os ombros, olhou outra vez para a porta da
escola, tirou o relógio e o abriu. — Passaram alguns minutos das cinco —
comentou, nervoso, voltando a guardar o relógio. Os olhos de Linnea
seguiram o relâmpago que refletiu a luz minguante do dia e viu o relógio
desaparecer dentro do bolso do colete entalhado.
— E para as pessoas pareceria estranho se desaparecêssemos em uma
hora tão incomum? Já somos casados — afirmou ela.
A atrevida proposta da moça sacudiu a calma do homem. Ele respirou
com dificuldade e ficou olhando para ela, perguntando-se o que diriam as
pessoas se partissem antes de a festa acabar.
— Quer ir agora mesmo? — perguntou, quase sufocado.
Pobre Teddy, tão nervoso em sua noite de núpcias, quando deveria ser
ela a ficar nervosa, mas não, ela tomava a iniciativa e dava o primeiro passo.
— Poderíamos dizer que vamos passar pela casa de Clara e Trigg,
como tínhamos prometido.
— Mas já fizemos isso de passagem para a igreja.
Linnea se aproximou e apoiou uma das mãos no peito do seu homem.
— Quero ir para a nossa casa, Teddy — repetiu com voz suave.
— Oh, bom, então iremos, é óbvio. Se está cansada, vamos agora
mesmo.
— Não estou cansada, Teddy. Só quero ir para a nossa casa. Você não
quer?
A pergunta fez umedecer a pele de Theodore em certos lugares. Senhor,
de onde ela tirava toda essa calma? Ele se sentia como se tivesse centenas de
punhos socando seu estômago; embora estando frio, ele suava mais a cada
vez que pensava na noite que os esperava.
— Bom, hum... sim — afrouxou o nó na gravata e suspirou aliviado.
Sentia-se sufocado. — Claro que quero. Será agradável...
Linnea ficou nas pontas dos pés, sustentando-se com as pontas dos
dedos no peito dele, deu-lhe um beijo de leve.
— Então vamos — sussurrou.
Ela escutou o som alto da respiração de Theodore, ao mesmo tempo em
que ele a abraçava. O homem olhou cauteloso para a porta da escola e
depositou um suave beijo em sua testa.
— Temos que ir dizer adeus.
— Vamos dizer, então — respondeu ela.
Ele a girou pelo cotovelo, eles rodearam o cavalo e o carro e subiram os
degraus.
Kristian estava muito animado, tinha bebido algumas cervejas e
dançado com todas as garotas. Era evidente como o nariz na face que ele
gostara de Carrie Brandonberg. Muito. Mas cada vez que dançava com
Carrie, os olhos de Patricia Lommen seguiam cada um dos movimentos que
eles faziam. Kristian terminou uma peça e a buscou, brincando: — A
próxima é sua, Patricia, se quiser.
— Acha-se muito especial, não é, Kristian Westgaard? Como se fosse o
único rapaz com quem quero dançar a valsa.
— E não é?
— Ora! — debochou, muito magoada. Levantou o nariz e tratou de se
afastar dele, mas ele a puxou para seus braços e, sem lhe pedir permissão,
instantes depois girava com ela ao ritmo de uma valsa. Quanto mais
dançavam, mais perto ficavam. Os seios da moça roçavam a jaqueta do traje
de Kristian. Uma coisa levou a outra e, como por arte da magia, Patricia ficou
apertada contra ele. E Kristian se convenceu de que nada tinha sido tão
prazeroso em sua vida.
— Como está cheirosa, Patricia — disse ele no ouvido da moça.
— Usei a água de violetas de minha mãe.
Ela tinha a face apoiada no queixo dele, e o calor de suas peles
misturava-se.
— Bom, pois eu gosto muito.
— Parece-me que você também usou a colônia de seu pai — ela
brincou.
Jogaram-se para trás, olharam-se nos olhos e riram sem parar. E se
calaram ao mesmo tempo. Sentiram uma gostosa contração nas entranhas,
aproximaram-se outra vez, conhecendo a sensação de dois corpos que se
roçavam.
Quando terminou a valsa, Kristian segurou a mão de Patricia. O
coração lhe palpitava com a incerteza dos começos.
— Faz um pouco de calor aqui. Quer que nos refresquemos um pouco
no vestíbulo? — perguntou ele.
Patricia assentiu e saiu na frente dele. Embora tivessem o recinto só
para eles, foram até um canto. Atrás, Kristian viu como Patricia alisava o
cabelo da nuca.
— Uh! Sim fazia calor lá dentro.
— Pode se resfriar. Quer que lhe traga o casaco? — perguntou
educadamente.
Patricia girou para ele.
— Não. Gosto assim.
— Ei, é boa bailarina, sabe?
— Mas não tão boa quanto você.
— Sim, você foi...
— Não, não sou, mas sou melhor em gramática. Pelo menos não digo
foi.
— Já não o direi mais.
— Acaba de fazê-lo. Quando te dizia que não era o único rapaz com
quem eu queria dançar a valsa.
— Sério?
Riram e depois ficaram em silêncio, tratando de pensar em algo para
dizer.
— A última vez em que estivemos sozinhos aqui você me deu o
cachecol que fez para mim para o Natal, e me senti mal porque não tinha
nada para te dar de presente.
Patricia encolheu os ombros e manuseou a manga de uma jaqueta que
estava pendurada junto deles.
— Eu não queria que me desse de presente nada em troca.
Patricia tinha os olhos mais bonitos que ele já tinha visto, e quando ela
desviava os olhos acanhada, como nesse momento, Kristian tinha vontade de
lhe erguer o queixo e lhe dizer: não desvie os olhos de mim. Mas ele tinha
receio de tocá-la. De repente, Patricia o encarou.
— Minha mãe diz…
Seus olhares se encontraram e ela não pôde continuar. Entreabriu os
lábios, e o olhar de Kristian pousou neles, naqueles bonitos lábios em forma
de arco do Cupido e só de olhá-lo ele fervia por dentro como uma máquina a
vapor enlouquecida.
— O que diz sua mãe? — sussurrou, com voz aguda.
— O quê? — murmurou ela por sua vez.
Olharam-se fixamente como se vissem pela primeira vez. Sentiram
pulsar seus corpos inexperientes. Escutavam os batimentos dos seus corações,
altos, retumbantes, como um soco. Kristian se inclinou para roçar os lábios da
jovem com os seus, um beijo tão simples, tão despojado de complicações
como a juventude. Mas, quando se afastou, viu que Patricia estava tão sem
fôlego e corada quanto ele. Beijou-a pela segunda vez e, com um gesto
tímido, levou as mãos à cintura para aproximá-la mais. A moça não resistiu,
apoiando levemente as mãos nos ombros dele. Quando terminou esse
segundo beijo, apartaram-se e sorriram. Depois, o olhar dele se desviou para
um canto e o dela, para o peito dele, enquanto ambos se perguntavam quantos
seriam os beijos permitidos na primeira vez. Mas, segundos depois, os
olhares voltaram a se encontrar. Houve apenas um instante de vacilação, e os
braços dela se elevaram, os dele a enlaçaram, e ficaram tão próximos como
quando dançaram, com suas bocas presas uma à outra.
Abriu-se a porta que dava para o lado de fora, e Kristian se apartou
rapidamente, corando muito, mas segurando ainda a mão da garota sem
perceber: eram seu pai e Linnea.
Quando os recém-casados entraram no vestíbulo e, surpresos,
flagraram-nos, as duas figuras se afastaram de repente, desfazendo-se do
abraço apertado.
— Kristian... — disse Linnea. — Oh, Patricia, olá.
— Olá — responderam em uníssono.
Linnea notou que Theodore estava parado junto dela, os olhos fixos no
filho, e era evidente que não tinha ideia de como agir naquela situação. Ela
então agiu com muita naturalidade, fazendo desaparecer a culpa da expressão
de Patricia, que deixou de lutar para soltar a mão do aperto nervoso de
Kristian.
— Seu pai e eu vamos embora. Ficará até terminar o baile?
Patricia lançou um olhar esperançoso para Kristian e a mensagem que
se lia nos olhos da moça era clara até nos penumbrosos limites do vestíbulo.
O jovem a olhou de volta e respondeu: — Ficarei mais algum tempo. Depois
acompanharei Patricia até sua casa. Se não for inconveniente, ficarei com a
carroça, pai.
— E... está bem. Bom, tome cuidado, então. Até amanhã — Theodore,
depois que percebeu o que estava implícito na frase que dissera, corou
drasticamente. Kristian somente assentiu.
— Bom, desculpem-nos, pois temos que entrar para nos despedir —
interveio Linnea, salvando o marido do constrangimento. O moço assentiu de
novo.
Quando terminaram de se despedir e saíram, o vestíbulo estava vazio.
A conhecida carroça verde já não estava mais no pátio. Procurando-a com os
olhos, Theodore franziu o cenho.
— Onde aqueles dois se meteram? O que acha?
— Devem ter ido à casa de Patricia, com toda certeza. Acaso você, na
idade dele, não o teria feito, aproveitando que a casa está vazia, afinal os pais
estão em um baile de bodas?
Theodore deixou seu olhar vagar pelo caminho, para o Leste. Estavam
parados junto a sua própria carruagem negra, e Linnea contemplou o cabelo
recém-cortado por cima da gola do casaco, os ombros largos, o olhar
distraído. Chegou a hora, Theodore, tanto para eles como para nós. Não
resista e nem interfira. Com um gesto possessivo, Linnea passou uma das
mãos pelo braço de Theodore e perguntou, em tom sereno: — Acaso não o
faria agora, enquanto a casa está vazia e a temos toda para nós?
Theodore riu e a beijou ardentemente. Era evidente que ele faria.
Assim que terminou a cerimônia na igreja, Nissa tinha ido à casa de
Clara, e ficaria lá por pelo menos uma semana. Theodore a olhou e, pela
expressão de seu rosto, Linnea soube que ele já não pensava mais em Kristian
e em Patricia. Ela fez o trajeto de volta para casa acompanhada de um
estranho rígido e formal, que a deixou na porta enquanto ele seguiu até o
estábulo para cuidar dos cavalos e ocupar-se da carruagem. Na cozinha, fazia
frio. Linnea acendeu uma lamparina e se sentou em uma das duras cadeiras
junto à mesa. Suas roupas e objetos pessoais ainda estavam no quarto do
andar de cima. Quando as traria para baixo? E quem o faria?
Pouco depois, a porta foi aberta e Theodore entrou trazendo consigo
uma rajada do frio do ar noturno, que fez tremeluzir e piscar a chama da
lamparina. Ele permaneceu por alguns momentos olhando ao redor, como se
aquele ambiente pertencesse a alguma outra pessoa. Depois seus olhos se
voltaram para Linnea, com o alto chapéu coberto de rede ainda na cabeça, o
casaco abotoado e as mãos enluvadas apoiadas sobre o colo.
— Sente frio? Acenderei o fogo — disse.
Ele percebeu o imenso alívio que lhe provocara ter algo para fazer,
ouvindo o crepitar da tampa do fogão. Em poucos instantes, o fogo estava
aceso, Theodore voltava a baixar a tampa, e o silêncio voltou a reinar. A
única coisa que se ouvia era o crepitar das aconchegantes chamas.
— Bom... — disse ele, com sorriso vacilante.
Ela se levantou da cadeira e, enquanto se aproximava dele, Theodore
limpava as mãos nas calças. Linnea se perguntou se, naquela noite, teria que
ser ela a dar os primeiros passos para tudo. Que decepção seria! Imaginou
que um homem que já tinha sido casado teria habilidade para confrontar
aquela situação. Em troca, Theodore se contraía cada vez que ela se
aproximava e afastava os olhos cada vez que ela tentava prender seu olhar.
Linnea estendeu as mãos para o tênue calor do fogo. Theodore fixou os
olhos na parte de trás do chapéu, na espumosa rede cor de marfim com
pequenas bolinhas, como gotas de rocio matinal apanhadas no tecido da rede,
as finas separações onde o cabelo estava recolhido com pentes de prender
cabelos que seguravam o adorno de flores do penteado. Linnea baixou o
queixo e seu marido observou a pequena meia-lua do recatado penteado sob a
aba do chapéu e o sulco da nuca, onde vários cabelos tinham ficado presos na
gola de lã. Percorreu com os olhos os ombros estreitos, descendo para os
quadris, até o fim do casaco, e o assaltou uma ereção tão feroz que teve que
colocar as mãos sob as axilas para não assustá-la com o que queria lhe fazer
em hora tão pouco apropriada. E, além disso, na cozinha.
— Aparentemente, todos estavam se divertindo no baile — disse a
moça, embora o baile fosse o que menos lhe importasse naquele momento.
— Quer tirar o casaco agora? — perguntou ele, ao mesmo tempo.
— Oh, sim, acredito que sim.
Enquanto Theodore a olhava sobre o ombro, tirou as novas luvas cinza.
Enfiou-as no bolso e desabotoou o casaco. Ele o tirou dos ombros e ficou sem
saber o que fazer com ele. Linnea sempre o tinha guardado no dormitório de
cima.
Ela o olhou por sobre o ombro e seus olhares se encontraram, gerando
eletricidade por um segundo.
— Bom, acredito que agora o pendurarei em meu quarto — disse
Theodore, depois se corrigiu: — Em nosso quarto — e corou. Girou para o
vestíbulo e depois ficou por um momento segurando o cabide com as duas
mãos, recordando com quanto cuidado tinha tirado o pó do chão e trocado os
lençóis, arrumando o quarto até deixá-lo impecável. Talvez não o tivesse
deixado tão bem como o teria feito sua mãe, mas fez tudo o que pôde. Exalou
um profundo suspiro e retornou à cozinha.
Ao ouvir seus passos, Linnea se apressou em pegar o bule e enchê-lo
com água do balde. Da entrada, ele a viu se mover pela cozinha com passos
diminutos e cuidadosos, pois a saia era muito estreita para permitir
movimentos longos. Que tolice... No ano passado as penas de pássaro, e
nesse ano, as saias estreitas que tinham o efeito de grilhões. Supôs que teria
que comprar muitas quinquilharias femininas a mais, mas isso não lhe
importava. Queria fazer tanto por ela... tanto... além disso, essa saia e a
maneira com que a obrigava a se mover tinha algo que fazia girar a cabeça de
qualquer homem.
— Como se chama esse tipo de saia?
— Casulo.
— É um pouco estreita, não?
Ela o observou de trás conforme apoiava o bule sobre o fogão e deu a
volta com vivacidade.
— Minha mãe diz que esses modelos estão na moda. Um professor de
Harvard diz que as saias mais estreitas permitirão economizar tecido para
uniformes... por isso é... a…
Olhando-o, ela se interrompeu. Theodore cravou os olhos nela,
calculando o tempo que ainda faltava até a hora habitual de se deitar. Deus do
céu: em algumas ocasiões, quando estudavam, não tinham se deitado até as
onze da noite. Portanto, faltavam mais de cinco horas.
— Está com fome? — perguntou-lhe a mulher, como uma súbita
inspiração.
— Não — Theodore manuseou os botões do colete. — Comi bastante
na escola.
De repente, recordou-se das boas maneiras e perguntou: — E você?
— Não, nenhuma.
Linnea olhou ao redor, como se procurasse algo.
— Bom... — disse ela, pensando que há uma hora ela estava
completamente confiante. Mas o nervosismo dele já a contagiara. — Minhas
coisas estão lá em cima. Não teria que... quero dizer...?
— Oh, eu as descerei para o meu quarto, isto é, para o nosso quarto. É
que tudo é tão... — Em sua ansiedade por sair da cozinha, ele quase derrubou
a outra lamparina. Quando Linnea ouviu que seus passos cessaram, sorriu,
cobriu a boca com uma das mãos e sacudiu a cabeça, olhando para o chão.
Depois foi atrás dele pela escada e o encontrou na entrada de seu quarto,
hesitante e desconcertado.
— Tem minha permissão, Theodore.
Sobressaltado, ele se afastou para deixá-la passar e a observou
aproximar-se da cômoda, abrir as gavetas e tirar coisas que iam se
acumulando sobre o braço: tudo branco, alguns objetos com renda e fitas
azuis. De cima da cômoda, Linnea pegou uma escova com cabo de bronze,
um pente, um recipiente para as presilhas e uma garrafa em forma de coração
que continha água de colônia; de um gancho que havia atrás da porta, pegou
o robe azul de chenille. Depois se lembrou de mais alguma coisa e, voltando
para a cômoda, recolheu uma pequena pedra. Quando se juntou a ele, disse,
animada: — Pronto. Acredito que já tenho tudo de que necessito. O resto
pode esperar até amanhã.
— O que é isto? — perguntou Theodore, apontando para o objeto que
ela segurava na mão. Linnea abriu a mão, e os dois olharam.
— É uma ágata que encontrei pelo caminho, no outono passado. Tem
uma borda marrom da mesma cor de seus olhos.
Ela o olhou nos olhos, surpreendendo-o com a guarda baixa, outra vez
maravilhado de que ela na verdade fosse dele, e que há tanto tempo, no
outono passado, ela tivesse se interessado pela cor de seus olhos; mas,
quando avançou para a porta e desceu a escada, Theodore se afastou,
iluminando com a lamparina o topo do chapéu dela. Linnea parou na entrada
do dormitório de seu marido e permitiu que ele a precedesse e deixasse a
lamparina sobre a penteadeira. Ela o seguiu com o olhar, hesitante, mas o
retrato de Melinda já não estava mais lá. Theodore abriu uma gaveta da
cômoda e depois se endireitou e a olhou, ansioso por agradá-la: — Pode
colocar suas coisas aqui. Fiz uma limpeza e joguei fora algumas coisas velhas
para deixar espaço.
— Obrigada, Theodore.
Linnea colocou suas coisas na gaveta, junto a uma pilha de camisas de
trabalho azuis e alguns elásticos para as mangas que ele jamais usava.
Theodore sentiu o sangue ferver por tê-la tão perto dele. Fazia muito tempo
que não via uma mulher fazer essas coisas: alisar objetos, fechar a gaveta,
acomodar a escova e o pente sobre a toalha de mesa que cobria a cômoda,
deixar a pedra, o recipiente para presilhas e o frasco de perfume junto às
golas de celuloide desprezadas, a escova do marido... e um punhado de
rebites?
— Para que esses rebites? — perguntou Linnea.
Theodore se precipitou para estender a mão e recolhê-los: — Ontem
estive arrumando uns arreios — explicou, contrito, e os jogou em uma
gaveta, fechando-os depois, com expressão culpada.
Com um sorriso inclinado, Linnea avançou, abriu outra vez a gaveta, e
afastou Theodore. Vasculhando o canto, sob o monte de roupa de dentro para
frio, encontrou as peças de metal e as deixou onde estavam antes, em cima da
cômoda.
— Este continua sendo o seu quarto. Se formos compartilhá-lo, tem que
deixar os rebites exatamente onde estavam antes que nos casássemos.
Nesse momento, se ela tivesse recitado um romântico poema não a teria
amado tanto. Perguntou-se de novo que horas seriam e se ela o acharia um
pervertido caso ele se inclinasse e a beijasse e a levasse para a cama como
queria fazer, sem se importar se o resto do mundo ainda estivesse ordenhando
ou jantando naquele momento. Ou dançando na festa do casamento deles,
sem os noivos. Em nome de Deus, o que era isso de ficar falando sobre
rebites? Como fazia um homem para insinuar à esposa que se preparasse para
a cama às seis da tarde?
Linnea percorreu o quarto com um olhar cândido e inocente, e o
imponente chapéu ressaltava a fragilidade de seu pescoço. O corpete do
vestido desaparecia sob uma jaqueta entalhada com gola alta, com diminutos
botões com presilhas da cintura até a garganta. Senhor, que debaixo disso
haja um vestido inteiriço, pensou o marido, enquanto sugeria: — Penso que
talvez queira tirar o casaco e o chapéu e se pôr mais à vontade, de modo que
te deixarei sozinha por uns minutos.
Linnea tinha sonhado em como seria essa noite, e em nenhum desses
sonhos figurava um marido dolorosamente tímido. Recordava o que lhe havia
dito Clara, e desejava ter tudo. Com voz suave e trêmula, arriscou: — Pensei
que essa fosse a tarefa do marido.
Os olhos de Theodore pousaram no relógio sobre a mesinha,
tiquetaqueando no súbito silêncio, e viu que o ponteiro do relógio marcava
quase dezoito horas. Voltou os olhos para os de sua esposa.
— Pensou?
Linnea assentiu duas vezes, tão de leve que Theodore teve que prestar
muita atenção para percebê-lo. Tinha os olhos bem abertos e brilhantes à luz
da lamparina, e estava de pé, com uma das mãos apoiada na beirada da
cômoda. Theodore deu um passo, e os lábios da mulher se entreabriram. Deu
outro passo, e ela engoliu em seco. Deu o terceiro, e Linnea inclinou a
cabeça, com os olhos já obscurecidos, erguendo-se para ele debaixo da aba
do chapéu. Ficaram quietos, próximos, encantados, observando a respiração
um do outro, entrecortada. Ele a beijou uma vez, muito mais brandamente do
que desejava, e, segurando-a pelos ombros, a fez virar para o espelho, onde a
moça só viu a metade superior do rosto do marido por cima do arranjo do seu
chapéu.
Os dedos do homem procuraram a pérola em forma de lágrima e
tiraram o alfinete do chapéu. Prendeu a pérola de três centímetros entre os
dentes enquanto tirava com delicadeza os pentes de prender cabelos que ela
possuía detrás das orelhas. Quando levantou o chapéu, um dos pentes
enganchou numa mecha loira. Linnea levantou uma das mãos para segurá-lo,
enquanto Theodore enfiava o alfinete no chapéu e o deixava na cômoda,
diante dela. Seus olhares se encontraram no espelho, tão escuros que não
pareciam ter cor, a não ser só um chiado de expectativa. A mecha de cabelo
pendia solto, atrás da orelha. Ele estava tão perto que a respiração de
Theodore o fazia ondular como uma espiga de trigo ao vento estival. Ele a
tocou, ergueu, e a levou com rapidez para trás, vendo-a flutuar pendurada
sobre o pescoço esbelto, escultural. Linnea aguardou, contendo a respiração,
desejando que ele continuasse a tocá-la. Como se tivesse adivinhado o
pensamento dela, Theodore analisou os segredos do penteado com dedos
despudorados e encontrou as presilhas de celuloide ocultas dentro, soltando-
as uma por uma, até que a massa de ouro se derramou, caindo por seu próprio
peso para descansar, enrolada, sobre os ombros de Linnea. Ele penteou-a com
os dedos calosos, e, como eram tão finos, os fios engancharam-se em sua
pele. Quando tinha sido a última vez que havia cheirado o cabelo de uma
mulher? Inclinou-se e afundou o rosto na massa fragrante, inalando
longamente. Linnea viu pelo espelho como o rosto de Theodore desaparecia e
reaparecia quando ele se endireitava. Quando seus olhares se encontraram,
Theodore sentiu que mil pulsações lutavam para abrir caminho em sua
garganta. Linnea tinha levantado o vidro de perfume. Mantendo seu olhar no
espelho, ela destampou o frasco com movimentos lentos, inclinou-o sobre a
ponta de um dedo e depois passou o perfume debaixo do queixo, no pescoço.
Uma, duas vezes, até que o aroma de lírios do vale transformou o quarto
nupcial em um jardim. Ergueu um dos punhos deixando descoberta a
delicada pele de veias azuis na palma interna da mão, perfumou-o, depois
perfumou o outro, e voltou a tampar o frasco, enquanto o mantinha
prisioneiro, com olhos como safiras. Onde ela tinha aprendido semelhante
coisa? Uma moça de sua idade?
Durante todo o dia, cada vez que evocava este momento, a imaginação
de Theodore bloqueava ao pensar na inexperiência da esposa. Mas o convite
dela era inconfundível. Apertando-lhe os braços, ele a fez girar para si como
uma bailarina de caixinha de música, e contemplou seus olhos por um
instante antes de levar a mão ao botão que fechava o vestido na gola. O botão
era uma quarta parte do tamanho de seu polegar e estava passado por uma
delicada presilha que lhe enganchou duas vezes nos dedos, até que soube
como manipulá-la. Depois, com muita lentidão, desabotoou os outros treze
botões.
Sob a jaqueta, o corpete se esticava sobre os seios, que subiam e
desciam ao ritmo acelerado da respiração de Linnea. Theodore elevou os
olhos para a boca delicada, entreaberta e à espera da dele. Que incrível...
eram marido e mulher.
Inclinou-se para beijá-la, mas o cabelo solto cobriu o rosto da jovem
como uma nuvem. Ele lhe segurou o rosto e, para começar, beijou-a com
terna consideração, beijos suaves, como suaves passadas de língua, ao mesmo
tempo em que o insinuante calor do interior de seus lábios se unia ao dela.
Linnea se aconchegou a ele, tocando as lapelas dele com as pontas dos dedos.
Quando, por fim, ergueu a cabeça para encará-lo, suas respirações estavam
agitadas e seus corações batiam descompassados. Sem falar, Theodore
retirou-lhe a jaqueta, dobrou-a e a deixou sobre a cômoda. Linnea estendeu a
mão para a gravata e o botão da gola, decidida a fazer a sua parte.
Tudo era silêncio, apenas o som agitado de suas respirações e do
relógio, da mesinha ao lado da cama, que tiquetaqueava ininterruptamente,
lembrando a Theodore que ainda era muito cedo.
— Ainda não são mais de dezoito horas — recordou ele, com uma
estranha voz rouca e sufocada.
Os dedos que manipulavam a gola se detiveram, e os claros olhos
cândidos se ergueram e o encararam.
— Acaso há hora para se fazer isso?
Theodore jamais tinha se feito essa pergunta. Com Melinda nunca
fizera nada similar, exceto na hora de se deitar, amparado pela noite e pela
escuridão. Com algo parecido com surpresa, compreendeu que ele estava
disposto a ser o professor, mas terminava sendo o aprendiz.
— Não, suponho que não — respondeu, e seu coração acelerou
enquanto ela continuava retirando a gravata, abrindo-lhe a gola e soltando os
três primeiros botões da camisa, até que se deteve no colete, pois apareceram,
reluzentes, os primeiros pelos escuros, e Linnea apoiou os lábios na abertura,
como tinha sonhado fazer durante muito tempo. Com um suspiro
fragmentado, quase um gemido, Theodore lhe acariciou o cabelo do alto da
cabeça e seus braços a rodearam.
— A jaqueta — ela o interrompeu, e ele retirou os braços e permitiu
que ela a tirasse e a pendurasse em um gancho na parede, junto a seu próprio
casaco. Na sequência, desabotoou o colete, tomou o relógio na mão e olhou
para Theodore.
— Não olhemos para relógios, Teddy — pediu-lhe com suavidade,
deixando-o sobre a cômoda. Quando se voltou, ele estava esperando para
atraí-la para si, apossando-se de sua boca com os lábios abertos, a língua
procurando os tesouros da boca que se abria para ele. Linnea, apertou-se
contra ele, erguendo-se, roçando seu corpo ao dele. Os braços do homem a
ergueram, exigentes, e a apertaram contra músculos e articulações que poucas
vezes ela havia tocado... ah, tão poucas...
O beijo dele se tornou mais exigente com excitante ansiedade, a língua
tomou-a e ela correspondeu em loucas e amorosas tentativas. Apoiou os
dedos bem abertos sobre as mornas costas acetinadas do colete, curiosa por
conhecer cada centímetro dele. O peito do homem combatia contra os seios
da mulher, provocando-lhe desejos até então desconhecidos. Ele afastou a
boca da dela, derramando sobre a orelha de Linnea o fôlego entrecortado.
— Oh, Linnea — gemeu como se sentisse dor.
A mulher se afastou o suficiente para olhá-lo nos olhos.
— O que aconteceu, Teddy? Durante todo o dia se comportou como se
tivesse medo de mim.
— Tenho medo de mim — ele soltou uma risada amarga, um som
forçado e doloroso, que soou no dormitório iluminado pela lamparina. Depois
lhe afastou o cabelo das têmporas e sustentou sua cabeça entre as longas
palmas.
— É tão jovem e estou obcecado por você e temo feri-la.
— Não sou jovem. Agora sou uma mulher e estou preparada para isto.
Você tem obsessão pelo tempo, pelas horas, por relógios, pelos anos... —
Linnea o agarrou e o encheu de beijos breves: no queixo, no rosto e na boca.
— Por favor, Teddy. Não tema nada, pense no amor, não nos anos, não que
pode me ferir. Agora sou sua esposa. Não me faça esperar mais. Eu o quero
de qualquer jeito.
Depois de um beijo fugaz, indeciso, virou-a procurando os botões do
vestido. Sem uma palavra, Linnea lhe apresentou as costas, levantando o
cabelo para um lado, enquanto ele desabotoava as costas do vestido. Debaixo,
ela trajava uma camisa de algodão branco que desaparecia sob as anáguas.
Fascinado, Theodore observou como sua mulher desabotoava a cintura das
anáguas, tirava o vestido pelos braços e deixava cair os dois objetos sobre os
quadris esbeltos. Quando se voltou de frente para ele, pôde ver bem a peça
interior. Cobria-a dos ombros até a metade da coxa, onde se segurava por
meio de elásticos nas pernas. A cintura estava ajustada por um cordão branco,
que se amarrava na frente. No decote do corpete, havia outra fileira de botões,
fechados, que não deixavam ver muito mais que os contornos da clavícula.
Sua mãe usava camisas e calções e, no inverno, roupa íntima quente,
mas ele nunca tinha visto uma peça branca como a que Linnea usava. As
meias finas desapareciam dentro das pernas da calçola, e ele viu que as
panturrilhas esbeltas e bem torneadas emergiam dos reluzentes sapatos
forrados de cetim, que lhe erguiam delicadamente os pés. Quando ergueu os
olhos dos pés para o rosto dela, tanto Theodore como Linnea estavam
acalorados e sem fôlego. Pelos lábios da mulher, perpassou um sorriso
acanhado que logo depois desapareceu. De repente, o colete do homem
desceu pelos braços e aterrissou no chão atrás dele, deixando descobertos os
novos suspensórios negros que emolduravam os ombros sob a camisa
engomada. Ele os baixou, desabotoou os botões da camisa e estendeu sua
mão para tirar a camisa dela, enquanto contemplava os seios da mulher,
desabotoando o resto de sua própria camisa.
Era glorioso vê-lo se despir. Contemplar os movimentos dos músculos
dos ombros, os suspensórios que caíam, a parte amassada da camisa que
ficara dentro das calças e a torção das mãos que se livravam dos punhos da
camisa.
A camisa também caiu ao chão e Linnea não pôde conter uma
exclamação de admiração: — Oh, Theodore! — emitiu, em uma nota
descendente. — Olhe para você...
Obedecendo a um impulso, esticou a mão para tocar nos pelos escuros
que desciam pelo peito quente, seguindo-o pelo caminho em direção ao
ventre, até que ela percebeu para onde olhava e aonde suas mãos iam
caminhando. Apressou-se em retirar a mão exploradora e a enlaçou com a
outra. Os olhos dilatados se ergueram para os dele. Theodore lhe apanhou a
mão e a colocou no lugar de onde ela a retirou. Corou, mas, subjugada,
manteve a mão ali.
Que duro, que sedoso, que masculino! Quão maravilhosa era a
diferença para o corpo dela! Ele, por sua vez, explorou o pescoço dela, os
ombros, acariciou a clavícula dela, para depois descer para os botões da
roupa íntima.
Linnea se esqueceu de respirar. A mão de Theodore subiu e rodeou um
seio. Linnea fechou os olhos e ficou imóvel, tomada pela sensação. Arrepiou-
se-lhe a pele dos braços, seu ventre chegou a doer, chegando em ondas pelo
seio que ele massageava meigamente. Ergueu os olhos para ele e se moveu
sob sua mão. A língua do homem tocou seu lábio inferior, riscou uma úmida
carícia circular, voltando para o ponto de partida, que mordeu e sorveu dentro
de sua boca, acariciando-a só com a ponta da língua, até que a mulher
começou a se retorcer e a tremer. As mãos de Linnea subiram para o peito
dele, para o pescoço, para o cabelo, abrindo os dedos, entrelaçando-os nele,
acariciando-lhe a cabeça enquanto o atraía para ela para receber um beijo.
Dentro de sua boca, a língua do marido dançou, luxuriosa. O corpo de
Linnea se esticou, pulsando contra ele, até que Theodore acariciou seus seios
e sentiu que ela se entregava às suas carícias. Passou-lhe as mãos pelas
costas, deslizando-as para as nádegas, apertando com força para erguê-la
contra ele. Iniciou-se uma cadência, um doce e lento acalento que os
balançava um contra o outro. Theodore deu curso a um rio que fluiu pelo
corpo de Linnea, alagando suas enseadas, pronta para recebê-lo. A sensação
foi tão súbita que lhe afrouxou os joelhos.
Quando se deixou cair, suas bocas se abriram com um suave ruído de
sucção e, por um momento, Theodore sujeitou o peso dela com o joelho até
que Linnea sentiu um momentâneo alívio das tensões que cresciam dentro
dela. O joelho se apartou, deixando-a pousar outra vez no chão. As mãos de
Theodore brincavam em suas costas. As línguas e os lábios estavam unidos
quando ele tocou, pela primeira vez, por uma abertura na roupa íntima dela, a
pele nua do seu corpo. Beijando-a loucamente, ele colocou a mão dentro da
abertura. Acariciou as curvas de carne, perguntando-se até onde se abriria
esse acesso, moveu a mão para explorar o ventre e comprovou que a abertura
ia da frente até atrás, por entre as pernas. Entretanto, à medida que a
exploração continuava, deixou de se importar com a peça. Os dedos abriram
caminho dentro da costura do tecido branco e pousaram sobre o ventre morno
para depois baixar mais, até tocá-la por fim no lugar mais íntimo. Diante
dessa invasão, Linnea se sobressaltou e depois relaxou contra o braço forte
que lhe rodeava a cintura. Em sua mente se abriram mundos de maravilha,
mundos para os quais sua imaginação não a tinha preparado. Atrás das
pálpebras fechadas, dançavam cores, da mais tênue à mais vibrante.
Balançou-se e se balançou contra ele, deixando-se fluir nesse ritmo primitivo.
O contato se aprofundou, alagando-a de deleite em sua própria carne.
— Oh, Teddy... Teddy... — murmurou, tomada pelo desejo.
Ele a deixou para se aproximar de onde estava a lamparina, e Linnea
exclamou em voz aguda: — Não!
O homem parou e se voltou.
— Por favor... eu jamais... quero dizer... — as faces dela se coloriram e
ela olhou para as próprias mãos para logo erguer os olhos para ele, decidida.
— Quero ver você, Teddy.
O pedido fez pulsar com força o coração de Theodore. Ele nunca tinha
visto as mulheres na luz... uma nova lição para Theodore Westgaard.
Deixou que a lamparina ardesse, tênue, e, levando-a para junto da
cama, inclinou-se para desatar os sapatos. Ela o imitou, tirando as sandálias
dos calcanhares e as deixando juntas. Theodore colocou a mão na barra da
calça para tirar as meias três quartos e a esposa o imitou uma vez mais,
enrolando as ligas até os tornozelos e tirando-as junto com as meias opacas.
O homem ficou de pé, desabotoou as calças e as tirou, mas ela permaneceu
com os olhos baixos quando compreendeu que ele estava diante dela e nu.
— Linnea...
Ela foi erguendo os olhos, hesitante, até se encontrar com o olhar dele.
A única coisa que se ouvia no quarto era o tiquetaque do relógio e o retumbar
dos corações nos seus ouvidos. Theodore estendeu uma das mãos, com a
palma para cima. A moça pôs a sua mão nela e ele a fez ficar de pé para
liberá-la da timidez. Antes que tivesse tempo de se envergonhar, Theodore a
apoiou sobre a cama, caindo junto com ela, os dois corpos unidos num
abraço. Com as bocas unidas, ele a deitou de costas, procurando primeiro o
seio nu com a mão e depois com a língua, murmurando sons guturais,
enquanto a natureza a levava a se erguer, pedindo mais. Banhou-o, deixando-
o molhado para o roçar do polegar. Sorriu-lhe, esfregou-o com os lábios
suaves, voltados para cima, sobre a ponta erguida, com infinita delicadeza,
para depois se ocupar do outro seio.
Linnea se retorcia, ardendo, murmurando seu nome, elevando-se em
um convite, passando os dedos por entre os cabelos dele. A língua molhada
lhe parecia sedosa e profundamente poderosa chupando, soltando, chupando
outra vez, provocando-lhe sensações na parte mais profunda do ventre.
Gritou extasiada quando ele os mordeu com delicadeza. Balançou-se,
consumida pelo prazer, esticando os braços sobre a cabeça até que o ventre se
elevou e Theodore o acariciou com a mão, beijou-a longamente e depois a fez
rolar pela cama. Ela aterrissou em cima dele e baixou a cabeça procurando a
boca de seu homem. O cabelo de Linnea ficou preso entre os dois; ele o
afastou e a beijou, quase com brutalidade. Ela se agarrou a ele, devolvendo-
lhe as carícias de igual para igual. Depois de longos minutos, Linnea levantou
o rosto. Theodore afastou-lhe o cabelo das têmporas com as duas mãos,
ambos reluzentes de escura e intensa paixão: — Eu te amo, Linnea. Estava
acostumado a ficar aqui deitado imaginando isto. Tantas noites, enquanto
você estava lá em cima, sobre minha cabeça, eu estava aqui sonhando com
nós dois aqui... E é melhor do que eu imaginava em meus pensamentos. Eu te
amo...
— Eu também o amo, Teddy. Sempre o amei.
— Te amo...
— Te amo...
Algumas frases eram dele, outras dela, impossíveis de distinguir umas
das outras, enquanto eles tentavam se saciar com beijos, até que somente os
beijos já não bastavam mais. Theodore a estendeu de costas na cama e se
abateu sobre ela, contemplando-lhe os olhos, e os dois corações pulsavam em
uníssono. Um beijo breve sobre os lábios abertos, um mais breve ainda sobre
o seio, uma das mãos sobre o ventre dela, uma intensa chama que saltou de
seu olhar e do dela enquanto ele seguia baixando, baixando...
Tocou-a com cuidado, a fez separar as pernas sob sua carícia, derreter
sua carne sob sua exploração. E, quando ela estava flexível, elástica, acesa,
segurou a mão dela e a fechou dentro da sua para apoiá-la sobre sua própria
carne inchada e lhe ensinar certas coisas que uma mulher devia conhecer.
Ele fechou os olhos e gemeu baixinho enquanto sua carne escorregava
dentro da mão da moça. Jogou a cabeça para trás, e Linnea se maravilhou de
seu próprio poder para provocar semelhante abandono em um homem tão
forte e indomável quanto Theodore. Ao vê-lo tremer e respirar agitadamente,
ela aguardava o maior dos prazeres. Erguendo-se sobre ela, disse-lhe no
ouvido com voz trêmula: — Se algo doer, diga-me e me deterei. Não aguento
mais, meu amor. Preciso tê-la.
A penetração foi lenta, divina. Os cotovelos de Theodore tremeram
junto às orelhas da mulher, enquanto ele esperava, mas Linnea o recebeu a
fundo.
— Lin, ahh, Lin... — gemeu, quando ela se ergueu para recebê-lo.
A natureza não tinha feito nada em vão; espada na bainha, chave na
fechadura, encaixavam com deliciosa e doce perfeição. Ele já não a via como
uma menina, mas como uma mulher, tanto quanto podia tê-la. Linnea,
sobretudo, ensinou-lhe uma nova juventude, a união infinita do coração,
muito mais poderosa que a de um calendário.
Estendida sob o movimento sinuoso dos quadris que a conduziam, ela
obedeceu às ordens silenciosas e se ergueu para se acomodar a ele. Conheceu
a carícia de seu hálito lhe agitando o cabelo e lhe aquecendo o pescoço; ele, a
suave entrega dos fios que lhe grudavam no rosto úmido. Juntos descobriram
a linguagem sem idade dos amantes, feito de murmúrios, gemidos, sussurros
e suspiros. Ela conheceu a capacidade dele para a ternura; ele, a dela para a
força. Juntos souberam quando trocar de papéis. Theodore descobriu a alegria
de fazê-la se arquear e ofegar, e ela a mesma alegria em fazê-lo estremecer na
liberação. Ela descobriu que o homem não podia repetir duas vezes seguidas,
e ele que três não eram suficientes para certas mulheres.
E o agudo prazer que se estendia sobre eles nos minutos posteriores.
Ahh, os intervalos de debilidade, de frouxidão, em que os corpos exaustos
não podiam fazer outra coisa senão ficar entrelaçados, saciados. E os anos
tampouco tinham a ver com isso. A única coisa que importava é que eram
marido e mulher, consumados, que aquela era a noite de bodas, a noite de
núpcias, e que ao longo de suas vidas se brindariam mutuamente da mais alta
recompensa para todas as tribulações da vida, uma e outra, incontáveis vezes.
CAPÍTULO 21
KRISTIAN E PATRICIA

O inverno de 1918 trouxe consigo grandes mudanças, não só no núcleo


Westgaard, mas também com o seu mais recente membro, na redondeza do
Álamo e em todo o mundo. Imersa em seu estado de bem-aventurança de
recém-casada, desfrutando da felicidade que iluminava seu coração, teria sido
fácil para Linnea se esquecer de que os recrutas norte-americanos foram
enviados para a França para garantir a liberdade do mundo. Mas um exemplo
dentro de sua própria família a fez compreender que, como professora, ela
tinha uma responsabilidade maior ainda. Linnea convenceu o inspetor Dahl a
lhe permitir que a escola assinasse um jornal e, depois disso, seguiram, ela e
os alunos, acompanhando os acontecimentos na Europa, esforçando-se para
compreendê-los.
Por toda parte se ouvia o clamor para derrotar a Alemanha. Entretanto,
no fim de janeiro, anunciou-se que as primeiras tropas dos Estados Unidos
ocupavam trincheiras na linha de frente. Havia acampamentos militares por
toda parte, fervilhando de soldados inquietos, que deviam treinar com roupas
civis e paus de vassoura em lugar de rifles. Mas o ardor democrático não
bastava para ganhar a guerra. Faziam falta fornecimentos e estes, por sua vez,
exigiam matéria-prima que escasseava.
Um Conselho de Guerra foi formado para determinar prioridades na
produção. Toda a América do Norte aceitou com alegria o ajuste, os cortes, e
continuava entoando fervorosas canções patrióticas. Da noite para o dia,
brotavam novas fábricas que produziam casacos, sapatos, rifles, máscaras de
gás, mantas, caminhões e locomotivas, e todos os negócios que não tinham
contratos para produção bélica fechavam às segundas-feiras. Proibiu-se a
utilização de automóveis aos domingos. Sugeria-se que as pessoas usassem
mais agasalhos e menos carvão, comessem mais farelo e menos trigo, mais
verduras e menos carne. Herbert Hoover, o primeiro Administrador de
Alimentos da América, proclamou que “a comida vai vencer a guerra” e que
toda a América adotasse a missão “do prato limpo”. Mas, sobretudo, pedia
que os norte-americanos fossem generosos.
Milhares de homens se ofereciam para ir para a guerra. Na primavera
de 1918 tinham chegado à França meio milhão de homens e um desses
voluntários era Bill Westgaard. A igreja celebrou um serviço especial para ele
no sábado anterior à sua partida e, desde aquele dia, pendurava sobre o local
uma bandeira com uma só estrela azul, inspirando inumeráveis preces para
que jamais fosse costurada sobre ela uma estrela amarela. Pouco depois,
chegou a carta de Judith contando que Adrian Mitchell tinha recebido uma
convocação para se alistar e que também já havia partido. Que Bill e Adrian
fossem pretendentes desprezados importava pouco a Linnea. A guerra já a
havia tocado como cidadã e ela sentia o impulso de participar de todas as
maneiras possíveis.
Eram muitas as coisas que as crianças podiam fazer para ajudar no
esforço de guerra; a única coisa de que precisavam era de organização e
direção. Tricotar para os soldados no recreio do meio-dia se converteu no
passatempo preferido. A própria Linnea recorreu à ajuda de Nissa para que
lhe ensinasse, e pediu às mães que ensinassem as filhas. Na escola, fixou-se
um anúncio no qual constava que uma estrela era ganha cada vez que se
terminava uma meia três-quartos ou uma luva. Para seu assombro, um dia
Kristian e Ray apareceram com um novelo de lã e um par de agulhas cada
um. Quando os meninos começaram, torpemente, a executar a tarefa,
provocaram grandes gargalhadas, mas depois cada um dos varões os estava
imitando. A única exceção era Allen Severt, que se negou categoricamente a
tricotar como os “efeminados”, atitude que lhe valeu a discriminação da
turma toda. Mas todos os outros meninos estavam dispostos e ansiosos para
colaborar com todas as ideias da professora e de outros. Patricia Lommen deu
a ideia de fazer uma manta e todos concordaram, entusiasmados, em trazer
retalhos de tecido de suas casas.
Ao mesmo tempo em que as crianças viam como a manta ia tomando
forma, começaram a planejar vendê-la por meio de um leilão, cujo lucro seria
doado à Cruz Vermelha. Quando se difundiu a notícia, o vestíbulo começou a
se encher de uma variada coleção de donativos, entre os quais figuravam
vários couros sem curtir de ratos almiscarados, caçados por Ray e Kristian.
Libby Severt, que mostrava um talento promissor para a arte, confeccionou
dois grandes pôsteres anunciando o acontecimento: um deles foi pendurado
na igreja, o outro, no Armazém de Produtos em Geral do Álamo, que
funcionava também como Agência dos Correios. Um fazendeiro de uma
prefeitura vizinha ofereceu um piano mecânico, e inclusive se ofereceu para
entregá-lo. Até o dia do leilão, houve música na escola.
Foi Nissa quem sugeriu que houvesse também um baile, ao mesmo
tempo em que Frances, a do coração generoso, que tinha se informado pelo
jornal de uma campanha de coleta de roupa para os refugiados, propôs com
acanhamento a ideia. Então, somou-se ao leilão a campanha de doação de
roupas.
O grande dia foi batizado de “Dia de Ações para a Guerra” e, à medida
que a data se aproximava, ia crescendo a excitação e os artigos para leiloar
transbordavam no salão principal da escola. Um leiloeiro de Wildrose
ofereceu seus serviços, e o velho Tveit levou, quando ninguém esperava, uma
carroça carregada de carvão para ser leiloada. Ao final do dia, a escola tinha
reunido quase mil dólares para a nobre causa.
Naquele inverno, Theodore viu que Linnea florescia. Abordou o projeto
de guerra com seu característico entusiasmo e o levou a cabo até o fim, só
para iniciar outro: um livro de campanha para os soldados que estavam no
exterior. O projeto teve um êxito tão grande quanto o leilão. Depois do livro,
propôs-se a confecção de álbuns de recortes para os soldados que estavam
nos hospitais europeus e a formação de uma Liga Juvenil para vender bônus
de liberdade. E quando o conselho escolar do Estado difundiu o anúncio
oficial de que se eliminou o ensino do idioma alemão dos programas de
estudo, um domingo Linnea ficou de pé na igreja e pediu para que, de acordo
com essa corrente fervorosa de americanização, as preces fossem ditas em
inglês e não em norueguês. Como podia alguém negar-se à petição de uma
mulher que, quase por conta própria, tinha reunido tanto dinheiro em nome
da vida, da liberdade e da busca da felicidade? E ainda contribuía, em
fervoroso entusiasmo com suas habilidades na organização de eventos para
angariar fundos para os soldados nas trincheiras. Fez dezenove anos em
fevereiro e gostava de sussurrar isso no ouvido de Theodore, quando ele
estava sobre ela nas noites: dizia que estava aprendendo mais em seu décimo
nono ano de vida que em todos os outros. E que era muito, muito mais
divertido. Era uma amante ardente, desinibida e insistia em experimentar
coisas que nem Theodore tinha experimentado antes.
— Como sabe isso? — perguntou-lhe certa noite, quando já tinham
afastado as mantas e a lamparina ardia como de costume.
— Clara que me contou.
— Clara?!
— Shh! Sim.
Cobriu os lábios dele com a mão e sufocou uma risada. Theodore
baixou a voz e sussurrou: — Refere-se à minha irmãzinha Clara?
— Se por acaso ainda não notou, sua irmãzinha Clara é uma mulher e
ela e Trigg fazem maravilhas na cama. Mas se algum dia lhe disser que lhe
contei isso, ela me matará.
— Humm, terei que me lembrar de agradecer a ela da próxima vez que
a vir.
Linnea lhe deu um soco: — Teddy, não se atreva.
Ele a segurou pelos pulsos, colocou-a debaixo dele e lhe mordeu o
lábio inferior.
— Senhora Westgaard, quer que falemos a noite toda disso ou quer
experimentar?
Imediatamente estavam experimentando.
Em outra ocasião, depois de ter feito amor, Linnea tinha a cabeça
apoiada no ombro de Theodore, recordando-se de como, no passado, ficava
tentado imaginar como seria fazer amor. Rindo, admitiu: — Eu pensava que
você me esmagaria como um inseto se alguma vez fizéssemos amor.
Sentiu sob a orelha o ecoar de sua risada.
— Ah, então estava acostumada a pensar nisso?
— Às vezes.
— Quantas vezes? Diga-me.
— Oh, está bem. Muitas.
— Quando?
— Como assim, quando?
— Quero dizer quanto tempo antes que nos casássemos.
— Humm... pelo menos há quatro anos.
— Quatro...? Ora, naquele tempo nem sequer me conhecia.
— Sim, conhecia-o. Mas naquela época você se chamava Lawrence.
— Lawrence?
— Oh, deite-se outra vez e não se zangue. Eu precisava chamá-lo de
algum nome, uma vez que ainda não sabia quem era.
Um braço forte a enlaçou pelo pescoço, em uma chave de braço.
— Moça, você é um pouco louca, sabia?
— Sim, eu sei.
Theodore riu outra vez.
— Conte-me o que era que imaginava.
— Oh... no princípio estava acostumada a imaginar como seria beijar
um rapaz, quero dizer, um homem. Beijei uma boa quantidade de coisas
estranhas naqueles tempos. Mesas, janelas, frutas, sorvetes, travesseiros... Na
verdade, na ausência do objeto verdadeiro, os travesseiros são bons, quebram
o galho, embora não tenham línguas.
Theodore soltou uma gargalhada tão grande que se alguém estivesse a
um quilômetro dali, tê-lo-ia escutado. Por sorte, tanto Kristian quanto Nissa
estavam na casa de Clara.
— Depois comecei a beijar lousas, o dorso de minha própria mão, os
pratos, as portas...
— Pratos? — Theodore se afastou um pouco para olhá-la.
— Às vezes eu estava lavando a baixela e imaginava que acabava de
jantar com um homem e que ele estava me ajudando a lavar a louça. Ou seja,
eu olhava aquele bonito prato limpo e imaginava vê-lo, fechava os olhos e
fingia e... bom, tem que usar a imaginação, Theodore.
— Não precisa mais usar a imaginação — disse Theodore, fazendo-a
girar. Colocou-a sobre seu ventre para terminar a noite como sempre faziam.
Linnea era mais do que ele tinha sonhado. Era linda, inteligente,
brilhante, alegre e espontânea. Convertia cada dia em um gozo
compartilhado, em um motivo de celebração, em um período de tão intensa
riqueza e plenitude que Theodore não entendia como tinha sobrevivido todos
aqueles anos de solidão sem ela. Levava-a à escola todas as manhãs e, desde
o momento em que lhe dava o beijo de despedida junto ao fogareiro que
começava a esquentar, contava as horas até chegar o momento em que podia
ir buscá-la. Às vezes, mantinha-se do lado de fora da escola só para ouvir a
sua voz e geralmente não sabia o que faria a seguir e ficava o dia todo
pensando nela. Via a vida por uma perspectiva juvenil que, frequentemente, o
fazia rir, a juventude dela, sobretudo, o deixava feliz.
Certa manhã especialmente gelada, eles estavam de pé junto ao
fogareiro esperando que ele esquentasse e o camundongo da escola saiu de
seu esconderijo e passou rente ao friso.
— Alguma vez vai apanhar essa peste? — perguntou Theodore.
— Na verdade, nunca tentei. Não tive coragem de matar o pobrezinho,
muito pelo contrário, estive lhe dando queijo. Ele é meu amigo.
— Deu-lhe de comer? Linnea, os ratos são...
— Shh! Sente frio, vê? Fica bem calado e o observa.
Ficaram calados, imóveis, até que o camundongo se aproximou
sorrateiramente, atraído pelo calor, e parou do outro lado do fogão, apoiado
sobre as patas traseiras, esquentando as dianteiras como se fossem mãos
humanas. Theodore não tinha visto nada semelhante em toda a sua vida.
— Ele faz isto com frequência? — perguntou, perplexo.
Ao ouvir a voz do homem, o bichinho recuou, deteve-se e voltou para
eles um olho de um rosa intenso.
— Deixe-o viver. Já há mortes suficientes para que queiramos provocar
mais, não acha?
Theodore se perguntou se seria possível amar com mais intensidade do
que ele a amava naquele momento. A vida nunca tinha sido tão perfeita.
Mas, certo dia, no fim de março, Kristian destruiu essa perfeição. Tinha
estado percorrendo o rio com Ray, levantando as armadilhas pelo fim da
temporada e, naquela noite, durante o jantar, Theodore percebeu que o rapaz
tinha algo em mente.
— Kristian, há algo que o preocupa?
Kristian ergueu os olhos e alçou os ombros.
— Do que se trata? — perguntou Theodore.
— Não vai gostar, pai.
— Há várias coisas de que não gosto, mas tenho que conviver com elas
e não morro por isso.
— Faz tempo que venho falando a respeito com o Ray e não estou certo
de que ele já tenha decidido, mas eu sim.
— O que você decidiu?
Kristian largou o garfo.
— Quero me alistar no exército.
Todos pararam de comer. O silêncio foi tal que se pôde ouvir o bater
das pálpebras.
— Quer o quê? — repetiu Theodore, ameaçador.
— Faz muito tempo que venho pensando nisso. Também quero
participar da guerra.
— Está louco, Kristian? Não tem mais do que dezessete anos.
— Tenho idade bastante para segurar uma arma e isso é a única coisa
que conta.
— É um fazendeiro, um ceifador de trigo. O comitê de alistamento não
aceitará você. Está dispensado do recrutamento, esqueceu-se disso? Os
soldados precisam de alimento.
— Papai, o senhor não me escutou.
Theodore se levantou rapidamente.
— Oh, é claro que o escutei, mas o que ouço não faz o menor sentido.
Linnea jamais tinha visto Theodore tão zangado. Apontou o dedo para
o nariz do filho e gritou: — Se acredita que tudo consiste em recrutas
apontando paus de vassoura entre eles, está equivocado, filho! Vão para lá,
disparam neles e os matam.
— Quero pilotar aviões. Quero vê-los de perto.
— Aeroplanos? — Theodore alisou o cabelo, exasperado, girou o corpo
e se voltou outra vez para Kristian. — O que pilotará será um par de cavalos
e um arado, porque não o deixarei ir.
— É possível que eu queira fazer outra coisa da vida além de conduzir
cavalos atrás de um arado. É possível que queira ver outra coisa além da
garupa dos cavalos e cheirar algo mais que esterco. Se me alistar, obterei isso.
— O que verá lá é o interior de uma trincheira e o que cheirará é gás
mostarda. Isso é o que quer, rapaz?
Linnea tocou o braço do marido: — Teddy...
Theodore fez um violento gesto para sacudir a mão.
— Não se meta nisso. Isso é entre meu filho e eu. Repito, é isso o que
quer, Kristian?
— Não pode me deter, pai, a única coisa que tenho que fazer é esperar
terminar a escola e pôr-me a andar por esse caminho e você não saberia onde
me encontrar. Bastará que eu diga que tenho dezoito e me aceitarão.
— Será que, além de criar um tolo, criei um mentiroso?
— Se me desse permissão eu não seria obrigado a...
— Nunca! Não, enquanto eu respirar — Theodore o interrompeu.
Kristian demonstrou um intransigente controle, dizendo com calma: —
Lamento que isso seja o que sente pai, mas de qualquer modo irei.
A partir desse dia, a tensão na casa era evidente. Também se infiltrou
no quarto de Theodore e de Linnea, pois, na noite do comunicado, pela
primeira vez desde que estavam casados não fizeram amor. Quando a mulher
lhe tocou o ombro, ele respondeu, resmungão: — Deixe-me em paz. Esta
noite não estou com humor para isso.
O fato de Theodore recusar seu oferecimento de consolo quando mais o
necessitava, levou-a a se virar para seu lado da cama, magoada, engolindo as
lágrimas que sufocavam sua garganta. Também na escola pareciam ter
terminado os dias aprazíveis. Era como se o mato perverso estivesse subindo
nele e nos choupos da pradaria. Allen retomou suas trapaças. Colocou girinos
na vasilha de água, um pedaço de carne crua atrás dos livros na biblioteca e
calda de açúcar na carteira de Frances. Havia ocasiões em que Linnea tinha
vontade de bater sua cabeça contra a parede. Até que, certo dia, o menino foi
longe demais nas trapaças. Passava junto a ela ao soar do sino das quatro da
tarde, quando pegou o relógio da professora e o deixou recuar, com um estalo
contra o peito dela. Antes de sequer ter registrado de todo a surpresa, Linnea
agarrou dois punhados de cabelo e lhe golpeou o crânio contra a parede do
vestíbulo.
— Não se atreva a fazer semelhante coisa outra vez — bradou a um par
de centímetros do nariz do menino, puxando-lhe com tanta força o cabelo que
se lhe levantaram as comissuras dos olhos. — Entendido, senhor Severt?
Allen ficou tão atônito que não moveu um músculo sequer.
Os menores os olhavam, com os olhos redondos como pratos, e Frances
Westgaard ria com dissimulação.
— Está doendo — disse Allen entre dentes.
— Doerá mais se você continuar com esse tipo de conduta. Farei com
que seja expulso da escola.
Com os olhos macabros, Allen tinha uma expressão mais malévola que
nunca. Linnea percebeu a sede de vingança naqueles frios olhos claros, algo
pior que a crueldade humana. Era uma impiedade que ela não sabia como
confrontar. E ela o tinha envergonhado diante dos outros meninos pela
segunda vez. Notou como aumentava a ânsia de vingança, e, quando lhe
soltou a cabeça, tremiam-lhe as mãos.
— Crianças, podem ir — disse ela, em um tom que nada tinha de
sereno, para os demais. Allen se afastou da parede e caminhou com ódio nos
olhos para a porta.
— Você não, Allen. Quero falar com você. Allen, volte aqui —
chamou Linnea. Ao chegar ao último degrau, o rapaz se voltou e a atravessou
com um olhar venenoso.
— Farei com que lamente isso, professora — assegurou-lhe em uma
voz bastante baixa para que só ela o ouvisse. Depois foi embora sem olhar
para trás.
Linnea ficou olhando para ele e só então percebeu que seus joelhos
estavam frouxos. Deixou-se cair no banco do vestíbulo, abraçando-se, pois
tremia. Ele tinha voltado a ameaçá-la. O que ela pretendia fazer? Ficar ali
sentada, tremendo como um cachorrinho, ou ir até a casa dele e lhes dizer que
tipo de demônio estavam criando? Decidiu ir à casa dos Severt para lhes
contar que tipo de demônio estavam criando. Infelizmente, Martin não estava
em casa àquela hora e a resposta de sua esposa foi: — Falarei com Allen a
respeito.
A mulher disse em tom seco e condescendente, com uma sobrancelha
arqueada e os lábios apertados em uma careta de superioridade, enquanto
mantinha a porta aberta para que Linnea saísse. Estou segura de que falará
com Allen, pensou, sabendo que se extinguia sua única esperança de que o
reverendo lhe esquentasse as orelhas. Voltou para casa sentindo-se mais
frustrada que nunca e completamente impotente.
Dois dias depois, encontrou o camundongo morto em uma armadilha.
Ela contou para Theodore e ele quis ir imediatamente à casa dos Severt, para
dar alguns golpes a mais na cabeça do rapaz, mas Linnea lhe assegurou que
podia tratar daquilo. Ele lhe perguntou se ela estava segura, e Linnea disse
que sim. De tudo isso, pelo menos saiu algo de bom, pois fizeram outra vez
amor como estavam acostumados a fazê-lo. Depois, Linnea lhe implorou que
conversasse com Kristian sobre o assunto de ir para a guerra, mas dessa vez
sem ira. Theodore concordou em tentar.
O propósito fracassou. No dia seguinte, conversaram no celeiro, mas o
temor de Theodore pela vida do filho se expressou outra vez através da ira, e
a reunião terminou com os dois gritando e com Kristian saindo sem dizer a
ninguém para onde iria. Foi à casa de Patricia, pois, nos últimos tempos,
sentia-se melhor com ela que com qualquer outra pessoa.
— Olá, Kristian — disse-lhe a garota quando lhe abriu a porta.
— Olá, Patricia.
Os olhos dela se iluminaram e um rubor lhe embelezou o rosto.
— Está ocupada?
— Não, estou tricotando. Entre.
— Eu não poderia partir sem vê-la. Quero dizer, bom... eu gostaria de
conversar com você a sós em algum lugar. Pode ser?
— Claro. Espere que vou vestir um casaco. Mãe — gritou —, estou
saindo para passear com o Kristian.
Instantes depois, apareceu com um casaco de lã marrom e um cachecol
cor de ferrugem enrolado no pescoço, com as pontas penduradas sobre os
ombros. Os dois colocaram as mãos nos bolsos, enquanto se encaminhavam
para o atalho da pradaria. A neve já estava endurecida e exibia rastros
profundos por onde passavam. Os ventos do Noroeste traziam um ar quente
e logo os cardos floresceriam nas valetas. Os dias estavam mais longos e o
sol do final da tarde lhes deixava os rostos dourados.
Kristian precisava falar com ela, mas não agora. Do que ele necessitava
naquele momento era de caminhar, espairecer, simplesmente, junto de
Patricia, deixando que os cotovelos dos dois se chocassem brandamente. A
moça tirou a mão do bolso e Kristian a imitou. Os nódulos de suas mãos se
roçaram uma vez, e outra, e ele a pegou e segurou. Patricia a estreitou com
força e o olhou com algo mais que um sorriso: uma expressão de consciência
e de confiança que crescia entre os dois. Pelo espaço de dois passos, ela
inclinou a cabeça sobre o ombro dele e seguiram caminhando sem pronunciar
uma palavra sequer. Kristian só falou quando estava na hora de retornarem:
— Não acontece a você de às vezes seu estômago se revolver de
simplesmente olhar sempre a mesma paisagem, os mesmos campos?
— Às vezes, sim.
— Alguma vez pensou como será além de Dickinson?
— Estive além de Dickinson. É parecido com o que tem aqui.
— Não, quero dizer, bem longe de Dickinson. Onde estão as
montanhas. O oceano. Não pensa em como serão?
— Às vezes. Mas, embora os visse, estou certa de que voltaria para cá.
— Como pode estar tão segura?
— Porque você está aqui — respondeu ela com candura, olhando-o.
Kristian parou. Os olhos azuis da menina eram claros e seguros; a boca,
suave. O cachecol alaranjado caindo e o vento primaveril lhe agitando os
cabelos. Em comparação com a sua longa mão, a de Patricia parecia frágil.
Por um instante, ele duvidou da prudência de ir para a guerra.
— Patricia, eu... — engoliu com dificuldade e hesitou, não sabia como
expressar o que sentia.
— Sei — respondeu a moça ao que não foi dito. — Sinto o mesmo.
Kristian se inclinou para ela e a beijou. Patricia ficou nas pontas dos
pés e ergueu a boca, apoiando as mãos contra o peito dele. Embora fosse um
beijo casto, encheu-lhes os corações com a essência do primeiro amor,
enquanto ao redor deles a terra se preparava para a primavera, para a estação
da explosiva renovação.
Em dado momento, retomaram a caminhada de volta à casa dela,
embora ainda resistissem a se separar um do outro. Mas era preciso, logo
esfriaria mais.
— Quer ir ao celeiro de milho? — ela lhe propôs. — Poderíamos
debulhar um pouco de milho para as galinhas...
Enquanto seguia Patricia para o extremo mais afastado da fazenda,
Kristian sorriu. Seguiu-a para aquele espaço onde podiam gozar de certa
intimidade. Lá, Patricia tomou várias espigas de milho e começou a debulhar.
Dentro do celeiro, o sol entrava oblíquo pelas frestas. Na base do monte de
milho havia uma caixa de madeira tosca que tinha virado um descascador
manual; ao lado, um assento formado por um velho bloco de cortar. Kristian
se sentou, colocou uma espiga de milho no descascador e começou a fazer
girar a manivela. Patricia se sentou sobre as espigas de milho, com as pernas
cruzadas, observando-o. O celeiro era aconchegante, protegido como estava
do vento, sob os raios do sol, que trazia uma coloração amarela. Ela retirou o
cachecol e desabotoou o casaco. Kristian terminou com a primeira espiga e,
assim que o bagaço nu caiu, a moça lhe entregou outra. O rapaz viu como
girava a espiga de milho e o molar giratório ia arrancando os dentes; Patricia,
por sua vez, observava como se flexionavam os ombros do jovem enquanto
ele fazia girar a longa roda. Quando a espiga de milho estava debulhada a
meio, ele soltou a manivela e girou para olhar para a moça. Não tinham ido
ao celeiro para debulhar milho e os dois sabiam disso.
— O que diria sua mãe se soubesse que estamos aqui sozinhos?
— É provável que ela saiba. Passamos em frente à casa.
— Ah! — Kristian exclamou.
Embora desejasse que Patricia estivesse mais perto, inquietava-o a ideia
de se aproximar dela, pensando que estavam em um armazém onde qualquer
um poderia vê-los através das paredes cheias de frestas. A incerteza que os
dois sentiam pareceu pesar entre eles por um instante, até que Patricia lançou
uma gargalhada e recolheu uma parte de palha de milho, já obscurecida.
— Quero ver como ficaria com um bigode.
As espigas de milho saíram rolando quando ela se moveu para se
ajoelhar diante dele e lhe colocar o tufo de palha entre o nariz e os
lábios.Como lhe fez cócegas, Kristian os afastou, esfregando o nariz com o
dedo. Patricia riu da brincadeira tola e ele a atraiu para si pelo bolso da
jaqueta.
— Venha, não seja tão tímida. Quero te olhar de perto.
Patricia se submeteu, deixando que ele a observasse atentamente.
— Bem, que aspecto tenho?
— Magnífico — respondeu Kristian.
O sol desenhava feixes de luz e sombras sobre o rosto da moça
ajoelhada entre os joelhos dele, e o vento assobiava com suavidade através da
parede de ripas.
— O que acha, acredita que eu deveria deixar crescer o bigode?
Ele não sabia porque perguntava aquilo, não tinha consciência do que
fazia; pensava nela, tão bela com esses lábios da cor do entardecer e os olhos
de longos cílios presos nele.
— O que você acha? Quer ter bigodes para parecer mais velho? —
perguntou, sorrindo. Ela o achava lindo como estava.
— Não sei. Penso que será melhor que a beije primeiro e depois
decidirei — disse ele.
— Beije-me, então —respondeu, audaciosa.
Ele o fez, deixando o dedo e a barba de milho no meio deles, e os dois
riram tolamente e os finos fios escuros lhes faziam cócegas. Por fim, ela se
ergueu entre as pernas separadas dele e se afastou, olhando-o nos olhos.
— Oh, Kristian... — murmurou, ao mesmo tempo em que ele
murmurava o nome dela. Já não necessitavam de mais pretextos. Os fios do
milho caíram sobre a gola do casaco dele, os braços de Patricia o rodearam e
eles se beijaram plenamente, tão colados um ao outro quanto permitiam suas
roupas, o ventre dela encaixado nas partes mais quentes dele e os braços se
estreitando, perseverantes. Kristian apertou suas coxas contra os quadris dela
e explorou os lábios da moça com a língua. Patricia necessitou de um pouco
mais de orientação para entender o que ele esperava dela e abriu os lábios,
permitindo que a língua de Kristian a explorasse. A exploração os sacudiu e,
quando o beijo terminou, os dois se jogaram para trás para se contemplarem,
ainda um pouco aturdidos pela descoberta.
— Penso em você todo o tempo — sussurrou a moça.
Kristian lhe arrumou um fio de cabelo que tinha ficado atravessado na
testa.
— Também penso em você, Patricia. Mas preciso lhe falar a respeito de
algo, mas quando começamos a nos beijar esqueço-me de tudo.
— Falar do quê?
— Meu pai e eu tivemos uma discussão das grandes, duas, na verdade.
— Por que brigaram?
Kristian girou sobre si mesmo e voltou a debulhar o milho usando a
manivela. Por cima do forte ruído metálico e do barulho dos grãos que caíam,
ela acreditou ouvi-lo dizer: — Quero me alistar.
Mas aquilo era um absurdo. Ela não ouvira direito, confundira-se.
Quem quereria ir para a guerra?
— O quê? Não o ouvi direito.
Desta vez ele se voltou para que a moça visse o movimento de seus
lábios.
— Quero me alistar — repetiu mais forte, sem deixar de girar a
manivela.
Pondo uma mão sobre a dele, Patricia o obrigou a parar.
— Alistar-se? Ou seja, ir lutar?
Kristian assentiu.
— Assim que terminar a escola, a graduação, na primavera.
— Mas, Kristian...
— Certamente irá discutir comigo igual ao que meu pai fez.
Abatida, Patricia engoliu em seco e ficou olhando para seu namorado.
Kristian era seu namorado? Ela se perguntou. Nunca tinham falado naquilo,
apenas se beijavam. Depois se sentou e colocou as mãos juntas entre as
coxas, e perguntou: — Por quê?
— Quero voar em aviões e… e quero ver outras partes do mundo, além
de Álamo, da Dakota do Norte. Oh, maldito seja, não tenho essa resposta.
Ele fez menção de se levantar rapidamente, mas ela o segurou pelos
joelhos e o obrigou a ficar onde estava.
— Não poderia fazê-lo sem precisar se converter em um soldado?
— Não sei. Meu pai diz que sou um agricultor de trigo e temo, se não
partir, continuar cultivando trigo pelo resto da vida, e nunca serei outra coisa.
Mas quando tento dialogar com meu pai a respeito, ele começa a gritar e
enlouquece.
— Ele age assim porque está assustado, Kristian. Não o compreende?
— Sei que está assustado, eu também, mas... E por isso tem que gritar
comigo? Não poderíamos conversar civilizadamente?
Patricia não soube o que responder. Nos últimos tempos, ela mesma
tinha discussões com seus pais que não sabia de onde se originavam.
— Penso que isso de discutir com os pais está relacionado com a
maturidade.
Era tão serena, tão razoável... Ao olhá-la, Kristian sentiu que suas
convicções fraquejavam.
— E você? O que pensaria se eu fosse?
Patricia o observou atentamente por um momento e respondeu, com sua
voz suave: — Eu o esperaria. Esperaria por você todo o tempo que fosse
necessário.
— De verdade? — Kristian sorriu pela primeira vez desde que decidira
ir para a guerra.
Com ar solene, ela assentiu.
— Por quê? — foi a vez de ele perguntar. Ela não hesitou: — Porque
acredito que o amo, Kristian.
Lá na frente, frequentemente ele pensaria o mesmo a respeito dela, mas
ouvi-la dizer aquilo foi como receber um golpe. Imediatamente, ele a segurou
pela cintura e a atraiu outra vez para seus braços.
— Mas não deveríamos falar nisso — disse ele, com a boca no pescoço
dela. — Muito menos agora que estou pensando em partir. Tudo ficaria muito
mais difícil.
Patricia se agarrou a ele, apertando seus seios contra o peito de
Kristian.
— Oh, Kristian... eu poderia morrer.
As palavras foram engolidas pela gola do casaco dele, até que ele lhe
fez girar a cabeça e suas bocas se uniram, ao mesmo tempo em que se
estreitavam. A mão trêmula, insegura do rapaz, deslizou para dentro, para o
calor do casaco da moça, passeou pelas costas, pela lateral do corpo dela e,
por fim, procurou os seios. Patricia conteve o fôlego e sua boca ficou
suspensa perto da dele, embora sem tocá-la.
— É pecado — sussurrou, soprando-lhe um fôlego morno sobre os
lábios úmidos.
— Mas há a guerra — respondeu Kristian, sussurrando.
Mesmo assim, Patricia lhe reteve a mão, levou-a aos lábios e lhe beijou
os nódulos.
— Então fique — ela suplicou.
Todavia, enquanto a beijava pela última vez e depois se separava dela,
Kristian soube que Patricia era uma parte que poderia retê-lo para sempre se
não partisse já no começo do verão.
CAPÍTULO 22
A GRANDE NEVASCA

A primavera finalmente contemplou a pradaria, deixando a paisagem


como uma jovem que se prepara para o primeiro baile, tomando seu tempo
para se arrumar, embelezar-se. Banhou-se com suaves chuvas e saiu do banho
fresca e sem neve. Secou-se com suas mornas brisas, alongando-se sob o sol
benigno, deixando que o vento lhe penteasse a cabeleira de gramas até deixá-
la verde, erguida e esponjosa. Colocou sobre seu peito um toque da
fragrância da terra, de sol e de vida renovada. Colocou um alegre chapéu
margeado de açafrões, cardos, lírios e lilases, estirou as anáguas vermelhas
dos salgueiros e ensaiou passos de dança, empoleirada na inquieta brisa de
abril.
Os animais retornaram, como se chamados por um sinal. Os esquilos
listrados trepavam nos montículos junto às covas recém-cavadas e logo se
perseguiam, brincando uns com os outros. Os cães da pradaria ladravam e
ganiam chamando os companheiros ao entardecer. As perdizes brancas, de
caudas enormes, tamborilavam como trovões entre os matagais das planícies.
Patos e gansos chegavam do Norte. E, por último, o mais esperado, os
cavalos voltaram ao lar.
Chegaram com o instinto daqueles que conhecem sua missão na Terra,
aparecendo uma noite junto à cerca dos pastos, relinchando para que lhes
abrissem, para que lhes pusessem os arreios, para arar o chão uma vez mais.
Com patas hirsutas e espessas de pelos, ficaram esperando, como se o ruído
das lâminas do arado sendo afiadas, flutuando sobre a pradaria, os chamasse,
fazendo-os retornar. Vieram todos: Clippa, FIy, Chief e todos os outros. As
duas éguas, Nelly e Lady, voltaram prenhas.
Todos saíram juntos para recebê-los, e Linnea presenciou a reunião,
renovando sua percepção do valor que tinham os cavalos para um fazendeiro.
Nariz contra nariz, hálito contra hálito, comunicaram-se homem e animais,
felizes por estar outra vez juntos. Teddy e Kristian acariciaram as longas
caras dos cavalos, caminharam em amplos círculos ao redor deles, alisando-
lhes os pelos, revistando seus cascos, alimentando-os. Linnea viu como
Teddy passava uma de suas mãos longas pelo ventre da Lady, recuperando o
poderio de sua voz: — Já constituí uma família, parece que ela também. Mas
ela saiu na frente, está prenha.
O que diria ele quando Linnea lhe contasse o que suspeitava, se isso se
confirmasse? Tinha-lhe faltado um período menstrual e ela estava esperando
que lhe faltasse outro para lhe dar a notícia. Não tinham voltado a falar de
filhos, mas, se fosse certo e ela estivesse grávida, sem dúvida Theodore
estaria tão encantado quanto ela.
Passou o mês de abril e, embora se começasse a arar o solo, os rapazes
mais velhos iam à escola todos os dias. Linnea não sabia se isso se devia ao
fato de que agora a professora era a esposa de Theodore Westgaard ou de que
ele e Kristian continuavam sem se falar. Na última semana de abril, Theodore
completou trinta e cinco anos. Naquela noite, estavam se preparando para se
deitar quando Linnea passou os braços ao redor de seu corpo e lhe beijou o
queixo.
— Hoje percebi que você estava um pouco mal-humorado, meu amor.
Está acontecendo algo de errado?
Theodore apoiou as mãos em seus ombros e contemplou os olhos
inquisidores da sua linda esposa.
— É o dia em que fico um ano mais velho — respondeu, tristemente.
— Mas deveria comemorar essa data — disse Linnea. —Tenho um
presente de aniversário que alegrará você.
Theodore esboçou um sorriso torcido, agarrou-a pelos lóbulos das
orelhas e lhe sacudiu a cabeça de um lado para outro, com ar brincalhão.
— Você já me alegra, meu amor. Só o fato de eu tê-la todas as noites
me faz muito feliz. Quero mais presentes para quê?
— Ah, mas este é muito especial.
Ele lhe soltou as orelhas e a beijou sem pressa na boca. Quando o beijo
acabou, ela olhou nos olhos da cor da terra e manteve os seios apertados
contra ele.
— Teddy, vamos ter um filho.
Imediatamente, ela percebeu a mudança nele: ficou tenso e se afastou
dela.
— Um fi...
Linnea assentiu.
— Acredito que já estou de dois meses.
— Um filho! — a surpresa se converteu em franco desgosto e ele se
afastou. — Está segura disso?
O coração de Linnea martelou pesadamente.
— Pensei que ficaria contente.
— Contente? Há algum tempo eu lhe disse que não queria mais filhos.
Sou muito velho para isso.
— Oh, Teddy, não é velho coisa nenhuma. Não é mais que uma ideia
que você meteu nessa sua cabeça dura.
— Não me diga que não sou velho. Tenho idade suficiente para ter um
filho que vai se matar na guerra e espera que eu me alegre porque vou ter
outro para ter que voltar a passar por essa agonia?
Linnea se sentiu tão magoada que não soube o que dizer. A desilusão
foi tão imensa que seus olhos se encheram de lágrimas. Tensa, ela perguntou
o que fazer com o grande nó de angústia que tinha na garganta, que ela tinha
a impressão de se deslocar para seu ventre, junto com o feto que crescia.
Todo o entusiasmo que sentia se dissolveu e só ficou a decepção.
— Além disso — prosseguiu Theodore, impassível —, nós dois quase
não tivemos tempo de estar juntos sozinhos. Três meses... nem três meses e já
está grávida?
Dando a volta, praguejou baixinho, deixou-se cair sobre a beirada da
cama e sustentou a cabeça.
— Bom, e o que você esperava que acontecesse se quase não nos
separamos uma só noite? Se você não queria ser pai novamente, se abstivesse
de ficar em cima de mim... deveria ter virado um padre, um eunuco... — ela
estava com muita raiva, sentia-se decepcionada e suas lágrimas já rolavam
em suas faces vermelhas.
A cabeça dele se ergueu de repente.
— Agora que já é tarde, não jogue isso em cima de mim — ele
provocou. — Você e seu “experimentemos isto e provemos aquilo”. Olha no
que deu — concluiu em tom ácido.
A dor de Linnea se intensificou. Ela apertou o ventre.
— Teddy, o que levo aqui dentro é seu filho. Como é possível que não
o queira?
Frustrado, ele se levantou rapidamente.
— Não sei. A única coisa que sei é que não o quero. Quero que as
coisas continuem como estavam até agora. Você e eu, Kristian de volta nos
campos, que é onde deve permanecer, e que se acabe toda essa conversa com
respeito à guerra e... e... Oh, maldição! — explodiu, saindo do quarto
murmurando.
Linnea ficou com os olhos cravados na porta, as mãos apertadas contra
o ventre, perguntando-se como era possível que alguém que a amava tão
profundamente pudesse magoá-la daquele modo. Como ele pôde dizer tais
coisas em relação ao ato de amor, como se nunca houvesse sentido as
mesmas compulsões que ela?
Vestiu a camisola e se enfiou na cama, rígida como uma tábua, com as
mantas apertadas sob os braços e os olhos cravados no teto. Pensando.
Sofrendo. Esperando. Ela não chorava mais. Coisa estranha, as lágrimas não
acompanhavam os momentos mais dolorosos de sua vida. Com os olhos
secos, curvada, orou para que, quando ele voltasse, a abraçasse lhe dizendo
que sentia, pedisse perdão, pois havia reagido de maneira irracional e que
sim, queria o filho dos dois.
Mas ele não o fez. O que Theodore fez foi apagar a lamparina, despir-
se na escuridão e virar de costas para ela. E Linnea sentiu o desprezo com
tanta força como se ele a houvesse espancado.
No dia seguinte foi à escola caminhando sozinha. Não tinham dirigido
a palavra um ao outro durante o café da manhã, e foi quase um alívio fugir da
tensão da casa.
Era o Dia da Árvore e ela e os meninos se dedicaram à tradicional
limpeza do exterior. Todos tinham levado rastelos e os usaram para limpar o
pátio de uma ponta à outra. Enquanto os rapazes pintavam os edifícios
externos, as garotas lavavam as janelas. Era um dia ensolarado, tão quente
que muitas das crianças tiraram os sapatos e as meias e andaram descalças.
Quando terminasse a limpeza do pátio, elas iriam para o campo e escolheriam
um broto para transplantar no jardim da escola.
Empilharam todos os restos da limpeza em uma parte arenosa da valeta
e atearam fogo. Linnea estava se ocupando disto quando ergueu os olhos e
viu Theodore e John, que passavam na carroça de quatro rodas. Seu coração
bombeou mais rápido.
John agitou uma mão e gritou: — Olá!
— Olá! — ela devolveu a saudação.
— Aonde vão?
— Ao povoado — John respondeu.
— Para quê?
— Soldar uma grade do arado e comprar provisões.
— Divirtam-se — respondeu Linnea.
Ela acenou com entusiasmo e John lhe devolveu a saudação, e lhe
sorriu; Theodore, em troca, saudou-lhe, erguendo uma mão somente e Linnea
ficou olhando enquanto a carroça se afastava pela estrada de chão.
Terminaram a limpeza do pátio por volta do meio-dia e meia, apagaram
as brasas com água e se encaminharam para os campos, levando as marmitas
com o almoço. Roseanne e Jeannette foram saltando na frente, de mãos dadas
e cantando. Allen Severt encontrou uma cobra e a usou para atormentar as
garotas. Patricia Lommen caminhava junto de Kristian e os braços de ambos
se roçavam. Encontraram um lugar sombreado junto ao rio e se deixaram cair
sobre a grama para almoçar sem pressa. Alguns dos meninos tentaram vadear
pelo rio, mas ele ainda estava gelado. Então se dedicaram a explorar,
procurando ninhos de patos ao longo das margens, colocando ramos em
formigueiros, observando o avanço de um par de larvas verdes.
Em certo momento, Linnea olhou o relógio e decidiu que já era hora de
procurar a árvore para que pudessem retornar com tempo suficiente para
plantá-la. Escolheram um ramo reto de aspecto vigoroso, com uma brilhante
casca achatada e grossos brotos da cor do pistache. Os rapazes mais velhos
cavaram para retirá-lo e o puseram em um balde para transportá-lo até a
escola.
Constituíam um espetáculo encantador, desfilando pela pradaria em
uma fila desordenada, os menores aos saltos perseguindo os esquilos, os
maiores alternando-se para levar a árvore. Estavam cruzando o campo de
trigo que ficava no Nordeste da escola, já divisando o sino da torre quando
uma corrente gelada se precipitou pela planície e um grande bando de melros
levantou voo, lançando chiados roucos. Os menores estremeceram; Roseanne
levantou a saia e a usou como proteção. Diante de Linnea, Libby parou,
apontou para o Oeste, e perguntou: — O que é aquilo?
Todos se detiveram para ver: uma sólida massa branca se deslocava
rapidamente na direção deles.
— Não sei — respondeu uma voz temerosa. — Senhora Westgaard, o
que é aquilo?
Gafanhotos?
Alarmada, Linnea ficou tensa. Tinha ouvido dizer que os gafanhotos
chegavam em nuvens e devastavam tudo o que encontravam pela frente. Mas
era muito cedo para os insetos. Poeira? Também a poeira podia se levantar de
repente e obscurecer todo o céu. Mas a poeira será escura e aquilo que viam
era branco. Todos ficaram imóveis, olhando fascinados, esperando, enquanto
aquele muro branco avançava na direção deles. Alguns segundos antes que os
alcançasse, alguém pronunciou a palavra: — Nevasca.
Nevasca? Linnea jamais tinha visto uma nevasca. Castigava-os como
se estivesse formada por milhares de punhos, envolvendo-os em um vazio
incolor, trazendo consigo um vento feroz que atirava as folhas nos rostos
deles e colava a roupa contra o corpo.
Dois meninos gritaram ao ficar repentinamente isolados da vista de
tudo o que os rodeava. Linnea tropeçou em um corpo morno e o fez cair,
provocando um grito de susto. Deus, não podia ver um metro e meio a sua
frente. Ajudou o menino a ficar de pé e o segurou pela mão.
— Meninos, agarrem uns nas mãos dos outros — gritou ela. — Rápido!
Aqui, Tony, segura a minha mão — ordenou ao menino que estava atrás dela.
— Coloquem-se todos atrás de mim, orientando-se pela voz, e segurem a
pessoa que estiver mais perto. Correremos todos juntos.
Ela chamou o nome de um por um para ver se todos estavam a salvo.
Teve a presença de espírito de passar em revista todos antes de avançar. —
Roseanne, está aí? Sonny? Bent? Pronunciou os quatorze nomes.
Todos responderam “presente”, e depois seguiram por entre as fileiras
de trigo, e os menores, que foram descalços, choravam. Alguns minutos
depois, já não tinham mais o trigo para se guiar. Linnea orou para que
estivessem indo na direção certa. Em meio ao torvelinho branco, perdia-se
todo sentido de direção, mas todos se mantiveram agarrados uns aos outros,
em uma fila um pouco caótica de seres aterrados pela nevasca, lutando para
chegar à escola. Os flocos de neve não eram como os habituais do começo da
primavera, gordos e cheios, a nevasca aterrissava sobre eles como sal, duros e
secos como os de pleno inverno, conduzidos por uma espantosa frente de ar
gélido.
Linnea não sabia se estavam perto da escola até que Norma bateu a
cabeça em um dos álamos que formavam um amparo perto do edifício,
ressoando contra a árvore e caiu sentada com força, arrastando outros dois
com ela.
— Vamos, Norma — gritou Linnea.
Raymond veio ajudá-la a se levantar, pois Linnea segurava dois
menores. Seguiram andando, enquanto Kristian, Patricia e Paul ajudavam a
conduzir os pequenos que restavam, e finalmente cruzaram juntos o pátio da
escola. Era incrível pensar que, fazia só umas horas, tinham estado ali,
rastelando despreocupados. Não tinha sentido sequer tentar encontrar os
sapatos que tinham deixado sobre a grama, pois já estavam sepultados. O
trêmulo grupo subiu pesadamente os degraus. Uma vez dentro, ficaram
amontoados, recuperando o fôlego. Roseanne deixou-se cair, gemendo, para
verificar o pé machucado. Linnea os contou, comprovando que estavam todos
ali, e imediatamente começou a dar ordens.
— Kristian, está em condições de ir lá fora?
— Sim, senhora.
— Vá pegar o carvão.
Antes que terminasse de dizê-lo, o rapaz já corria para a carvoeira.
— Raymond, consegue buscar a água?
— Sim, senhora.
Lá foi Raymond, pisando nos calcanhares de Kristian, recolhendo o
balde para a água.
— Espera, Raymond! — gritou Linnea. Conheciam-se casos de
tempestades de neve como essa em que se perdiam pessoas entre a casa e o
celeiro, quando saíam para cumprir as tarefas vespertinas. — Kristian pode
guiar-se pelo contorno do edifício, mas você não. Sobe na escada e desata a
corda do sino.
— Sim, senhora.
Sem vacilar, Raymond se dirigiu ao vestíbulo.
— Paul, acompanha-o e sustenta a ponta da corda enquanto ele chega
até a bomba. Os que estão descalços, tirem a roupa íntima e sequem os pés.
Garotas, compartilhem as anáguas com os meninos. Não se preocupem se
sujarem: depois, quando voltarem para suas casas, as mães poderão lavá-las.
Já sei que estão com os pés congelando, mas, assim que Kristian trouxer o
carvão, ficarão quentes. Resta algo do almoço nas marmitas?
Seis mãos se levantaram.
Uma voz gritou: — perdi a minha. Mamãe vai me dar uma surra.
— Não, não o fará, Roseanne. Prometo-lhe que explicarei que não foi
culpa sua.
Mesmo assim, Roseanne rompeu a chorar e foi necessário consolá-la
para que se acalmasse. Encarregou Patricia e Frances de se ocuparem dos
mais novos e, de passagem, esquecerem suas próprias aflições.
Kristian retornou e acendeu o fogo. A professora atribuiu a Allen e a
Tony a tarefa de tirar a neve dos degraus para manter limpa a entrada da
porta.
Quando, por fim, todos estavam instalados o mais comodamente
possível, Linnea chamou Kristian à parte.
— Quanto de carvão temos?
— O suficiente, acredito.
— Acredita?
Estavam na metade da primavera. Como podiam imaginar que se faria
necessário preocupar-se com carvão, quando as flores silvestres já vinham
pontilhando pela pradaria? Como era possível que fizesse um frio tão grande
nessa época do ano? E quanto tempo podia permanecer a nevasca, tendo em
conta que faltava tão pouco tempo para o primeiro de maio?
Kristian lhe segurou o braço.
— Não se preocupe. Isto não pode durar muito.
Mas Linnea não podia tirar da cabeça o ano de 1888; foi até a mesa,
pegou ali um livro e registrou a primeira anotação esperando, rogando para
que ninguém precisasse lê-la: 27 de abril de 1918, 15h40 da tarde.
Apanhados em uma nevasca quando retornávamos do desfiladeiro, onde
tínhamos ido procurar um ramo para o Dia da Árvore e fazer nosso almoço
ao ar livre. O dia começou com temperaturas ao redor de 21 graus, tão
cálidas que pela manhã os meninos fizeram a limpeza do pátio descalços.
De repente, a mão que escrevia parou e ergueu bruscamente a cabeça.
Theodore e John!
Cravou os olhos nas janelas, que pareciam ter sido pintadas de branco,
e escutou o vento que uivava pelo forno do fogão e sacudia as telhas. Com o
coração na garganta, olhou para Kristian. Ele estava agachado perto do fogão
com os outros, e todos falavam em voz baixa. Ficou de pé, sentindo o medo
pela primeira vez desde que a tempestade se abateu sobre eles. Aproximou-se
da janela, tocou o batente e contemplou a fúria branca que açoitava os vidros.
Já havia acumulações triangulares nos recessos, mas mais à frente tudo era
um mistério impenetrável. Procurando manter um tom sereno, ela deu a volta
e foi até onde estavam os meninos.
— Desculpe-me, Kristian. Poderia vir aqui por um momento?
O rapaz olhou sobre o ombro, levantou-se e atravessou o salão em
direção a ela.
— Sim senhora.
Linnea tratou de dar à voz um tom despreocupado.
— Kristian, quando ainda estávamos limpando o pátio, viu passar seu
pai e John, de volta do povoado para casa?
Kristian olhou pela janela, e depois outra vez para a mulher. Com
gestos lentos, tirou as mãos dos bolsos traseiros e a preocupação se acentuou
em suas feições.
— Não.
O tom de Linnea pareceu ainda mais despreocupado.
— Bom, é provável que ainda estejam no povoado, talvez na ferraria,
em algum cômodo e abrigados junto à forja.
— Sim... — respondeu Kristian, ausente, olhando outra vez para a
janela.
— Sim, claro.
Com esforço, Linnea deixou passar cinco minutos depois que Kristian
se reintegrasse ao grupo, e então se aproximou da beira do círculo.
— Raymond, poderia subir outra vez na torre, por favor, e atar
novamente a corda ao sino? Ocorre-me que, em um dia assim, não devemos
ser os únicos apanhados pela nevasca. Seria conveniente tanger o sino a
intervalos regulares.
Era terrivelmente difícil manter a voz firme e o rosto calmo.
— Mas para que vamos fazer isso? — perguntou Roseanne, inocente.
Linnea apoiou a mão sobre o cabelo castanho da menina, olhou o rosto
voltado para cima e viu que aqueles enormes olhos castanhos eram muito
jovens para entender o alcance do perigo.
— Se houver alguma pessoa lá fora, o som poderia orientá-la para aqui
— Linnea percorreu o círculo com os olhos. — Quero voluntários para que
fiquem no vestíbulo e toquem o sino a cada cinco minutos mais ou menos.
Podem alternar-se de dois em dois, e deixaremos aberta a porta do vestíbulo
para que não faça tanto frio ali.
Kristian se levantou imediatamente, seguido por Patricia, que durante a
conversa anterior tinha colado os olhos nele com expressão angustiada.
Skipp Westgaard foi o que falou a seguir: — Senhora Westgaard, não
acha que nossos pais virão nos buscar na escola?
— Temo que não, Skipp. Não o farão até que a nevasca permita.
— Isso quer dizer que possivelmente tenhamos que dormir na escola?
— É possível.
— M... mas onde vamos dormir?
— No chão... em que outro lugar seria, seu tolo? — respondeu Allen
Severt.
— Allen! — repreendeu-o Linnea com vivacidade. Allen perguntou,
em tom hostil: — O que quero saber é o que vamos jantar.
— Vamos compartilhar o que tiver ficado nas marmitas dos almoços, e
eu...
— Não darei a ninguém a minha maçã — ele a interrompeu, grosseiro.
Linnea não lhe fez caso e seguiu: — Tenho rações de emergência de
bolachas e passas. Há água para beber, e tenho um pouco de chá. Mas nos
preocuparemos com isso quando chegar o momento, se é que chegará. Por
agora, por que não pensam em algum jogo para se entreterem? Se por acaso
não adivinharam, as aulas terminaram por hoje.
Com isso, ela os fez rir.
Sobre as cabeças, ouviu-se o tangido do sino, e Linnea, sem se dar
conta, olhou para o relógio.
Voltou para a mesa e anotou um segundo registro: 15h55. Faremos
soar o sino da escola a cada cinco minutos para guiar qualquer um que
possa estar perdido no meio da nevasca.
Mas ela não podia ficar sentada junto à mesa nem mais um minuto.
As janelas a atraíam de forma estranha. Ficou contemplando o mundo
exterior escuro, estremecendo por dentro. De costas para o salão, juntou as
mãos sobre o batente e apertou os dedos até que os nódulos ficaram brancos.
Fechou as pálpebras, apoiou a testa contra o vidro frio e moveu os lábios em
silenciosa prece.

***

Por todo o caminho de volta do povoado, os cavalos estiveram


nervosos. Theodore não deixava de observar o céu, o horizonte e o caminho
que tinham adiante, tratando de entender o motivo da inquietação dos
animais. Pensou que podiam ser coiotes. Naquela região sempre tinham que
estar atentos à presença deles, porque assustavam os cavalos. Não atacavam,
mas os assustavam. Por isso levava sempre uma pistola para afugentar os
intrusos, não para matá-los. Os coiotes se alimentavam de muitos animais que
comiam grão, e por isso não tinham motivos para querer matá-los.
Como não viu nenhum, seus pensamentos se voltaram para Linnea.
Não devia ter sido tão rude com ela, mas, maldição! Ela não entendia. Era
muito jovem para entender, as pessoas criavam um filho, investiam nele todas
as suas esperanças, viam-no crescer, alimentavam-no, brindavam-no de amor,
de sustento, de tudo, e depois de tudo se viam impotentes quando ao filho
ocorria a estúpida ideia de se pôr em perigo numa guerra.
Mas tinha que admitir que tinha sido injusto com ela. Estava se
sentindo culpado por ter ficado contra sua esposa e por ter lhe falado de sua
gravidez como se ele não tivesse tido participação naquilo. Aborrecido
consigo mesmo, tratou de pensar em outras coisas.
As corujas tinham retornado para se aninhar nos esconderijos
abandonados pelos texugos no ano anterior, sinal seguro de que a primavera
chegara. Os coelhos tinham trocado seus pelos brancos por outros pardos.
Ulmer disse que as trutas já salpicavam no Little Muddy. “Talvez Ulmer,
John e eu, os três juntos, poderíamos ir ali um dia destes pescar”.
— Ulmer diz que as trutas estão salpicando — disse Theodore.
John, que estava ao seu lado, ergueu as sobrancelhas imaginando a
grata perspectiva, mas não pronunciou nenhuma palavra.
— Que bom, não?
— É claro que sim — respondeu John.
— Se amanhã começarmos cedo, poderíamos acabar a parte Noroeste
por volta das quatro e depois ir pescar. O que acha? Podemos chamar o
Ulmer.
— Está bem — respondeu John.
Seguiram avançando, contentes, imaginando o cardume retrocedendo
na borda do rio e depois chiando na frigideira de sua mãe.
Cub se assustou.
— Ooooo!... Tranquilo, rapaz — Theodore franziu o sobrecenho. —
Não sei o que têm esses cavalos hoje. Possivelmente é a febre da primavera
— completou Theodore e riu um riso sem graça.
— Cub já é muito velho para isso — disse John e apontou para a frente
dos dois. Theodore arregalou os olhos.
— Parece neve.
— Não pode ser. Há sol — disse John.
John jogou a cabeça para trás e olhou o céu com os olhos semicerrados.
— Nunca vi neve com esse aspecto. Que outra coisa poderia ser?
A primeira rajada de vento gelado golpeou-os em pleno rosto.
— Afinal de contas pode ser neve — disse John, estremecendo.
— Tão espessa? Não se consegue ver mais o caminho do outro lado
disso nem nada que esteja mais à frente — disse Theodore.
Forçaram a vista, prestando mais atenção, perplexos. Theodore
comentou, preocupado: — Será melhor que suba a gola, John. Tenho a
impressão de que vamos deixar a primavera para trás.
Com calma, baixou as mangas da camisa e enterrou melhor o chapéu.
Quando o muro de vento e neve os açoitou, cambalearam para trás,
sobre o assento da carroça. Os cavalos empinaram, nervosos, recuando, sob o
olhar incrédulo de Theodore. Não podiam ver nem as cabeças de Cub e de
Toots. Era como se alguém tivesse aberto a comporta do Ártico e deixado a
nevasca cair em cima do Álamo, pois se abateu sobre eles como uma
avalanche, uma corrente de flocos, a cada segundo mais fria.
Lutando, finalmente, Theodore conseguiu controlar os animais.
Avançavam, mas não podiam saber para onde, de modo que os deixou seguir
como quisessem.
— John, acredita que será só uma rajada de neve? — perguntou
Theodore.
— Não sei. Este ar parece gelo, não?
O ar era gelo. Mordia-lhes as faces, bicava-lhes as pálpebras,
queimava-lhes a pele e entrava pelas golas das camisas.
— O que quer fazer, John? Prosseguir? — gritou Theodore em meio ao
vento carregado de neve.
— Acha que Cub e Toots poderão seguir o caminho? — gritou John,
por sua vez.
Nesse preciso momento, a parelha respondeu-lhes, saltando e
relinchando, em algum ponto daquela manta branca que os ocultava à vista.
— Arre! — gritou Theodore, que tentava segurá-los pelo arreio.
Mas a única reação dos cavalos ante o estalo das rédeas foi se queixar e
se mover de um lado para outro. Amaldiçoando baixo, Theodore entregou as
rédeas ao irmão.
— Tratarei de fazê-los andar.
Saltou pelo lado, dobrando-se ao vento, procurou os cavalos, tateando.
Mas, quando aferrou a rédea de Toots, a junta lutou e se revoltou.
Theodore praguejou e empurrou, mas Toots cravou as patas. Dando-se
por vencido, retornou à carroça e gritou para John: — A que distância calcula
que estejamos da propriedade do Norquist? — perguntou Theodore.
— Pensei que já tínhamos passado por ela.
— Não, está mais adiante.
— Está certo disso?
— Sim — disse Theodore, mas não estava tão seguro assim, apenas
não queria assustar seu irmão. — Poderíamos desenganchar Cub e Toots da
carroça e deixar que nos guiem. Possivelmente nos levarão até lá —
continuou.
— E veremos a casa quando estivermos na frente dela? — perguntou
John.
— Não sei. Que outra coisa podemos fazer?
— Poderíamos caminhar com os cavalos nos guiando em linha reta.
— Não sei se há alguma cerca por aqui. Espera. Irei ver — disse
Theodore.
Theodore deixou para trás a carroça e caminhou em ângulo reto,
medindo com as mãos. Não tinha dado cinco passos quando a neve já o tinha
tragado. Percorreu ambos os lados do caminho, e não havia nada em nenhum
dos dois lados. Para voltar à carroça, teve que se guiar pela voz de John.
Sentou-se junto dele e lhe disse: — Não há cerca. Tenta outra vez com os
cavalos.
John gritou:
— Ei, arre!
Fez estalar as rédeas com força e, desta vez, os cavalos fizeram um
valente esforço e se lançaram para a frente, mas em alguns metros se
desorientaram e começaram a recuar de novo. Theodore tomou as rédeas e
tratou de obrigá-los.
— Vamos Cub, vamos Toots, velha amiga, vamos adiante.
Mas os animais se mantiveram plantados onde estavam. Dava a
impressão de que a temperatura baixava a um ritmo contínuo. Theodore já
sentia os dedos congelados até os ossos e nada os protegia da fúria inesperada
da natureza. O vento gemia implacável para o Oeste, esbofeteando-lhes os
rostos até deixá-los cheios de brilhantes manchas vermelhas. Cobrindo o
rosto com o chapéu, ele avaliou a situação: — Talvez seja preferível esperar
— decidiu, sombrio.
— Esperar que termine? Onde? — perguntou John.
— Sob a carroça, como fez papai naquela vez. Recorda-se do que nos
contou? Virar a carroça e entrar debaixo dela.
O semblante de John se mostrou cético, mas tinha as sobrancelhas
cobertas de branco.
— Não gosto muito dos espaços fechados, Teddy.
Theodore bateu no joelho do irmão.
— Sei. Mas estou convencido de que temos que tentar. Faz muito frio
para ficarmos aqui, no vento.
John pensou por alguns segundos e assentiu.
— Está bem, se acha que é o melhor.
Desceram juntos e, com dedos rígidos, puxaram os arreios. Tiraram o
banco, apoiaram-no no chão e embaixo empilharam farinha, açúcar e sacos
com sementes, para depois afastar a neve com os pés e limpar um lugar para
si mesmos o melhor que podiam. Quando viraram a carroça, arrumaram os
sacos, ficando ela elevada o bastante para que pudessem entrar por debaixo
da abertura. Amarraram os cavalos a uma roda e Theodore se ajoelhou.
Primeiro passou a pistola e depois ele, de lado, tremendo, abraçando-se e
vendo como as pesadas botas de John se moviam no outro lado da abertura.
— Vamos, John. É melhor que ficar à mercê do vento.
Dentro da caverna formada suas palavras ficaram amortecidas. Viu
moverem-se outra vez as botas de John, até que por fim ele se abaixou para
se enfiar embaixo da carroça. John, com olhos dilatados e frágeis, estendeu-
se de forma que seu rosto ficou na estreita passagem de luz.
As pedrinhas e os caules secos da grama do ano anterior cravavam-se
no peito de Theodore e, apesar dos esforços que tinham feito para tirar a
neve, ainda havia dela ali. Ela derreteu em um lado da sua camisa e lhe
grudou na pele em geladas compressas. Farpas de alguma coisa se enfiaram
através da manga da camisa e se lhe fincaram na parte sensível do braço.
— Melhor tratarmos de nos acomodar melhor — Theodore se levantou
como pôde, tentou afastar as pedras e as gramas secas de sob suas costelas e
depois se estendeu com o cotovelo flexionado sob a orelha. Ao seu lado, John
não se movia. Theodore tocou-lhe o braço.
— Ei, John, está assustado?
John tremia violentamente na penumbra e Theodore podia distinguir os
rígidos movimentos de sua cabeça à luz difusa.
— Sei que não gosta muito de ficar encarcerado, mas não acredito que
ficaremos por muito tempo. A nevasca tem que acabar.
— E se não acabar?
— Então virão nos procurar.
— E... o que acontecerá se ninguém vier?
— Alguém virá, John. Linnea nos viu quando íamos para o povoado. E
mamãe sabe que ainda não retornamos.
— Faz anos que mamãe não monta um cavalo e, além disso, se não
pudemos passar como ela vai passar?
— A neve poderia acabar, não é certo? Quanta neve acredita que pode
cair, tendo em conta que já estamos quase em maio? — disse Theodore.
Mas John se limitou a contemplar a luz diurna que se infiltrava pelas
gretas da carroça, petrificado e trêmulo.
— Vamos, temos que fazer tudo o que pudermos para nos manter
abrigados. Temos que somar o pouco calor que temos.
Theodore se encolheu contra as costas de John, rodeando-o com um
braço e estreitando-o contra si. O irmão apoiou o braço em cima do dele e
seus dedos frios se fecharam sobre o dorso da mão de Theodore, espremendo-
o. A voz de John se tornara aguda pelo pânico: — Recorda-se de quando
mamãe costumava nos enfiar naquele buraco, quando se aproximava uma
tormenta grande, no verão?
Theodore se lembrava muito bem. Mas John sempre tinha ficado
apavorado no porão. Chorava e implorava para que o deixassem sair o tempo
todo em que permaneciam esperando que a tempestade passasse.
— Recordo-me. Mas agora não pense nisso. Olhe a luz e pense em algo
bom. Na época da colheita, por exemplo. Não há época melhor que a da
colheita. Montar a colheitadeira, guiando-a através da pradaria, debaixo do
céu tão azul e do trigo dourado e brilhante.
Enquanto a voz sedativa de Theodore penetrava nele, os olhos fixos de
John estavam cravados na tranquilizadora greta de luz. De vez em quando
entravam redemoinhos de neve empurrados por uma contracorrente, tocando-
lhe as faces e os cílios. Acima, assobiava o vento, fazendo girar uma das
rodas do veículo com um bramir surdo que reverberava sobre a madeira que
lhes cobria a cabeça. Depois de um momento, Theodore soltou com
delicadeza a mão do apertão desesperado de John.
— Ponha as mãos entre as pernas, John, assim estarão mais quentes.
— Não — os dedos de John se aferraram à mão dele como garras. —
Por favor, Teddy.
Por estar mais perto da abertura, John sofria o pior embate do frio, mas
tinha mais medo do confinamento do que de congelar, e Theodore o
tranquilizou: — Só vou colocar meu braço sobre o teu, está bem?
Cobriu o braço do irmão e quando lhe tocou o dorso da mão, ele a
sentiu como uma pedra de gelo.
— A neve é um bom isolante. Logo estaremos tão bem cobertos como
um gato em uma lenheira.
A necessidade de tranquilizar John mantinha seu pânico controlado.
Mas, assim que John se calou, Theodore voltou a falar consigo mesmo: pensa
com sensatez. Planeja. Planejar o quê? Como manter o calor estando
vestidos com camisas de algodão? Além disso, como nenhum de nós fuma,
não temos fósforos sequer para queimar a carroça caso necessário. Inclusive
alguns dias atrás tinham deixado de usar a longa roupa interior de inverno,
quando o tempo começou a ficar quente. Nada podia ajudá-los, a não ser que
parasse de nevar. E se não parasse... Não devia ter amarrado os cavalos. Oh,
vamos. Teddy. Basta um de vocês atacado pelo pânico. Faz só vinte minutos
que está aqui embaixo. Tem que passar mais tempo para se morrer
congelado.
Mas ele sentia que partes do corpo já começavam a congelar. Ali
deitado, pensou nos cavalos, até que não pôde mais se conter.
— Escuta, John — disse, com a voz mais despreocupada que pôde. —
Tenho que sair um minuto.
— Para quê?
Maldito seja John, passou a vida sem fazer perguntas. Belo momento
escolheu para começar a fazê-lo.
— Preciso urinar — mentiu. — Mas você fique aqui. Acredito que
posso passar por cima de você.
Quando saiu, assustou-se ao ver a rapidez com que a neve se acumulara
ao redor do improvisado refúgio: já era tanta que impedia de girar a roda.
Desenrolou as rédeas da roda e, apesar do frio, tomou um momento para
acariciar afetuosamente o focinho de cada um dos cavalos, sussurrando-lhes
nas orelhas: — É uma boa garota, Toots... Você também, Cub. Lembrem-se.
Salvem-se.
Tinham as garupas contra o vento e as cabeças baixas. Apesar da neve
que reluzia nas crinas enredadas, aguardavam parados, sem importar o que
lhes acontecesse, tal como o fizera John a vida toda.
As ideias fatalistas não lhe fariam muito bem e, tirando-as da cabeça,
Theodore se apoiou em um joelho. Quando tocou um dos sacos de sementes
de milho, teve uma súbita inspiração. Agachou-se mais e espiou pela
abertura.
— Ponha-se de costas, John. Consegui algo mais quente sobre o qual
nos deitarmos.
Tirou uma navalha do bolso e a afundou no saco, fazendo um grande
talho. À medida que o grão caía, ia-o empurrando sob a carroça com as duas
mãos. Estava morno com o calor apanhado em seu interior.
— Estende-o aí, John.
Só tinham três sacos para esparramar, pois os outros eram necessários
para sustentar a carroça levantada e lhes deixar uma brecha. Mas, quando
ficou distribuído o conteúdo dos três sacos, o milho constituiu um leito muito
mais agradável. Outra vez encolhidos, ventre contra costas, os dois homens
se instalaram em cima, absorvendo seu calor. Estiveram assim por um
momento, até que John perguntou: — Não saiu para urinar, não é?
Surpreso, Theodore só atinou em mentir: — Claro que sim.
— Penso que saiu para soltar Cub e Toots.
Theodore pensou outra vez. Boa hora escolheu para se tornar
perspicaz, irmão.
— Por que não fecha os olhos e tenta dormir por um momento, John?
Assim, o tempo passará mais depressa.
Mas o tempo nunca tinha avançado mais lentamente. Depois de um
momento, o grão se deslocou e ficaram outra vez estendidos sobre pedras e
espetos da grama. O pouco calor que tinham absorvido se acabou.
Começaram os tremores... primeiro em John e, em dado momento, em
Theodore. Pela fresta da carroça, viram como a luz esbranquiçada do dia se
convertia no púrpura do entardecer. Estiveram um longo momento em
silêncio, até que John disse: — Teddy, você e a pequena senhorita
discutiram?
Na garganta de Theodore formou-se um nó. Ele fechou os olhos e
tratou de tragá-lo, negando-se a entender por que John tinha abordado
semelhante assunto em um momento como aquele.
— Sim — conseguiu dizer.
John não perguntou. John nunca perguntava. Até hoje.
— Está grávida e eu... eu fiquei muito furioso por isso e lhe disse que
não queria ter mais filhos.
— Não deveria ter feito isso, Teddy.
— Sim, eu sei.
E se congelassem e morressem debaixo dessa maldita carroça, nunca
teria a oportunidade de dizer para sua mulher o quanto lamentava seu próprio
comportamento. A sua imagem encheu-lhe a mente, tal como a tinha visto a
última vez: de pé com o rastelo na mão, protegendo os olhos com a outra, os
meninos espalhados ao redor como um bando de pintarroxos atrás do edifício
branco da escola com a porta totalmente aberta. Evocou a fila de álamos que
começavam a esverdear nas pontas, a valeta bordejada de lírios silvestres,
Kristian rastelando perto da beirada: as duas pessoas que mais amava no
mundo, e ele tinha sido brusco com os dois. Linnea agitara a mão e o saudara,
mas ele, teimoso, quase não lhe respondeu. Quanto desejava agora tê-lo feito!
Sentia-se angustiado e com vontade de chorar. Mas, se chorasse, quem
impediria que John se desse por vencido?
Para piorar as coisas, de repente John explodiu. Apartou-se do braço de
Theodore e se arrastou sobre o ventre em direção à liberdade.
— Não posso suportar mais. Tenho que sair daqui por alguns
momentos. — Theodore o agarrou pelos tornozelos.
— Não! Volte aqui, John, aqui embaixo não está muito bem, mas está
pior lá fora. A temperatura segue baixando e o congelaria quase
imediatamente.
— Deixe-me ir, Teddy. Só por um minuto. Tenho que sair antes que
caia a noite e eu não possa ver mais.
— Está bem. Sairemos juntos, veremos os cavalos e a neve. Veremos
se está diminuindo.
Mas não era assim. A neve quase chegava à barriga dos cavalos e a
carroça já era um monte sólido. A única abertura estava do lado do sotavento,
[24] onde o vento formava redemoinhos deixando um espaço de trinta

centímetros para que pudessem acessá-la se arrastando. De pé, Theodore se


abraçava, vendo como John se esticava e fazia inspirações profundas,
elevando o rosto para o céu. Esse maldito tolo congelaria os dedos se não
colocasse as mãos sob os braços.
— Venha, John, temos que voltar. Aqui faz muito frio.
— Vá você. Ficarei aqui por um minuto.
— Maldição, John, congelará! Venha aqui embaixo imediatamente.
O tom severo provocou em John uma imediata docilidade.
— E... está bem. Mas tenho que ficar outra vez perto da abertura, de
acordo, Teddy?
O infantil pedido fez com que Theodore se arrependesse em seguida de
tê-lo repreendido.
— De acordo, mas se apresse. Se nossas mãos não estiverem já
congeladas, logo congelarão.
Já de volta na caverna sob o gelo, John perguntou: — Ainda sente os
dedos, Teddy?
— Não estou certo, nem estou disposto a pensar nisso.
Calaram-se outra vez. Depois, o mundo que os rodeava fora do refúgio
se tornou completamente negro.
— Acredito que meu nariz congelou — balbuciou John.
— Bom, se ficasse com o rosto para dentro, ou me deixasse ficar desse
lado por um momento, poderia degelar. Que diferença há agora? Lá fora é
noite e está tão escuro como aqui dentro.
A única coisa que John disse, foi: — Pelo menos tenho um buraco para
respirar.
Desfrutaram do milagre de dormir.
Theodore despertou, desorientado. Junto dele, John estava muito
imóvel, e Theodore procurou seu rosto na escuridão: sentiu-o gelado. Mas era
possível que o que estivesse gelado fosse sua própria mão.
— Tem que se virar, John. Vamos, não discuta comigo.
Dessa vez, John se submeteu. Theodore o rodeou com os braços e o
abraçou como se ele fosse um menino, procurando apaziguar seu próprio
medo. Não podiam morrer desse modo. Simplesmente não podiam. Quando
saíram da casa, sua mãe tinha lençóis pendurando para secar e pão assando
no forno. A essas alturas, já estaria assado e guardado no cesto. Um dia dessa
semana iriam pescar com Ulmer. E Kristian terminaria o oitavo grau dentro
de quatro semanas. O que diria Kristian se seu próprio pai faltasse à
cerimônia? E Linnea? Oh, sua doce Linnea acreditava que ele ainda estava
zangado com ela. E iria dar à luz o filho dos dois. Não podia morrer sem ver
seu filho. Jazendo gelado sob o negrume, embaixo da carroça com seu irmão
tremendo em seus braços, Theodore listou todas as razões válidas para que a
nevasca não ganhasse aquela partida.
Doíam-lhe muito as costelas. Não sentia mais os pés e, quando tentava
levantar a cabeça do milho, esta palpitava. E somando-se a tudo isso,
cochilou de novo, embora um pensamento o impedisse de se entregar
completamente ao sono... algo que tinha que dizer a Linnea quando a visse.
Algo que teria que ter lhe dito na noite anterior.
Despertou outra vez, sentindo a respiração firme de John no rosto.
Perguntou-se quanto tempo teria se passado, se seguia sendo a primeira noite.
Sentia-se desorientado e misteriosamente leve, como se tivesse todo o corpo
cheio de ar morno e movediço. Não podia pensar com clareza. Estaria perto
do fim? Não! Empurrou John de costas.
— O quê...?
— Acorda, John. Sai daqui. Penso que temos que nos mover, pois, do
contrário, vamos congelar mais, se é que já não estamos congelados.
— Não sei se posso — respondeu John.
— Tente, maldição!
Saíram rodando, cambaleando. A tempestade de neve estava pior que
nunca. Veio para cima deles com o mesmo muro invencível de neve e vento,
como antes. Os cavalos ainda estavam ali, leais, esperando. Relincharam,
sacudiram as cabeças e tentaram se mover, mas os impediu o acúmulo de
neve que tinham debaixo das barrigas. Com dificuldade, os homens abriram
espaço para os animais.
— Ponha as mãos junto ao nariz do Cub. Talvez assim elas esquentem
— gritou Theodore.
Permaneceram junto às cabeças dos cavalos, tratando de se esquentar
com algo que pudesse lhes prover o mínimo de calor. Mas era inútil,
Theodore sabia. Uma luz tênue começava a aparecer no céu pelo Leste,
através da nevasca. Tratou de aproveitar essa luz para olhar o relógio e a
única coisa que conseguiu foi descobrir que seus dedos já não eram capazes
de manipular a delicada trava para abrir o relógio. Voltou a guardá-lo no
bolso, aterrou a cabeça em Toots, apoiando a face contra a crina,
perguntando-se se um homem sabia quando ultrapassava seus próprios
limites: a hora exata, o minuto exato em que era necessário manipular o
destino se quisesse sobreviver. Havia um único modo. Mas resistia a usá-lo,
tinha estado resistindo durante as pavorosas horas de confinamento dessa
longa noite, enquanto tentava esquentar seu corpo trêmulo contra o de seu
irmão, consciente de que o rifle estava ali mesmo, às suas costas. Abraçou-se
ao rosto de Cub, pronunciando uma desculpa que o animal não podia
entender.
Apertou os lábios contra o osso, em cima do nariz aveludado. Quantos
anos fazia que conhecia estes cavalos? Toda a sua vida. Antes que ele tivesse
idade suficiente para segurar as rédeas, tinham sido de seu pai. Foi neles que
aprendeu a cavalgar, que aprendeu os sons de comando. Meu Deus! Livre-me
disso, pai. Nunca matei nada. Cub. Toots. Seus queridos cavalos. Os que
ficavam na fazenda no inverno. Mais velhos que todos os outros, mas com
tanto coração que, por vezes, a compreensão que tinham quase parecia
humana. Em seus anos, tinham-lhe brindado com uma boa vida. Podia agora
lhes pedir que lhe dessem a vida ao custo da sua própria?
Deu um passo atrás para se fortalecer, convencendo-se de que eram
animais estúpidos e nada mais.
— John, traga a minha arma.
— O quee... voo...cê... vai fa...azer?
Os dentes de John batiam como a cauda de uma víbora.
— Vá procurá-la.
— N... não! N... não vou!
Era a primeira vez em sua vida que John desafiava o irmão.
Lançando uma maldição, Theodore se ajoelhou e tirou a arma de baixo
da carroça. Ainda não tinha tido tempo de se levantar quando John agarrou o
cano da arma e a apontou para o céu. Olharam-se nos olhos, ambos
obcecados, e nenhum sentiu o negro metal nos dedos congelados.
— Não, Teddy!
Theodore martelou a arma, e o estalo metálico foi como o som da
fatalidade.
— Não, T... Teddy, não... pode...
— Tenho que fazê-lo, John. Ou morreremos.
— N...não... p...prefiro morrer con... congelado. Vai... se... sen...tir
cul...pa...do, Te...ddy...
— Pensa em mamãe, nos outros. Eles vão se importar, John, e
preferirão nós aos animais.
— Não me... im... importa. Não... Te... ddy.
Ficaram por um momento a mais com os olhares fixos um no outro,
enquanto se passavam minutos preciosos e a tempestade de neve rugia.
— Solta a arma. Seus dedos já estão congelados — ordenou Theodore.
Quando John tirou a mão da arma, deixou cair a cabeça. Toda sua
atitude era de abatimento, de servilismo, e ele nem notava que o vento uivava
sobre sua cabeça, audacioso, lançando lascas de gelo contra seu pescoço.
Theodore ficou de pé junto a Cub, tremendo por inteiro, com as
mandíbulas tão apertadas que lhe doíam mais que qualquer outra parte do
corpo. Sentia um nó na garganta, que não podia tragar nem expelir e que o
sufocava. “Sinto muito, velho”, quis dizer, mas não pôde. O coração
martelava quando ele levantou o rifle e comprovou que não podia ver pela
mira. Levantou a face da culatra, enxugou as lágrimas com rudeza e apontou
de novo. Quando apertou o gatilho, nem o sentiu, pois tinha o dedo
congelado. Disparou um segundo tiro rapidamente, sem se dar tempo de
pensar ou ver.
Algo parecia lhe dizer: “Simplesmente faça. Faça o que tem que fazer e
não pense”. Abriu a navalha com os dentes, porque não podia manipulá-la. A
lâmina gelada lhe arrancou uma tira de pele da língua, e outra vez não sentiu
nada. Não tinha mais sensações e se moveu com turva decisão, e a pele do
rosto endurecida fazia com que os olhos parecessem carentes de expressão.
Afundou a faca até o cabo, fechando a mente ao jorro vermelho que manchou
a neve imaculada. Fez um talho onde coubessem as duas mãos e ordenou: —
Vem aqui, John.
Como John não se movia, Theodore se levantou rapidamente para fazê-
lo girar, tomando-o pelos ombros, e disse, entre dentes: — Mova-se —
inflexível, deu um empurrão no irmão que o fez cair de joelhos. — Coloca as
mãos aí. Não é hora de ficar impressionável.
Pelas faces de John corriam as lágrimas, enquanto ele colocava as mãos
pela escorregadia abertura quente e úmida. Sem piedade, Theodore se ocupou
de aproveitar o calor do segundo animal. Enquanto as mãos degelavam, ele se
obrigou a apartar a mente de toda consciência pela morte dos animais. Em
troca, pensou em Linnea, em seu cabelo sacudindo ao vento, seu rosto
iluminado pela risada, o relógio de ouro no peito, o filho deles em seu ventre.
Quando suas mãos recuperaram as sensações, a dor foi intensa. Apertou os
dentes e se balançou sobre os joelhos, tragando o grito que John não deveria
ouvir. Mas o pior estava por vir.
Quando as mãos se aqueceram o suficiente para poder sustentar a faca,
ajoelhou-se junto ao animal morno, fechou os olhos e fez várias aspirações
profundas, tragando o nó da garganta e ordenou a John: — Saca a faca e lhe
tire as vísceras.
Enquanto Theodore empreendia o sombrio encargo, John permaneceu
de joelhos imóvel, perplexo.
— Faça-o, John.
O terror, a náusea e a compaixão espremeram o corpo de Theodore
enquanto fazia o que era necessário, rígido, tirando de sua mente a ânsia.
Teve que se levantar várias vezes para voltar a respirar ar não poluído e
recuperar as forças. Todo esse tempo, John seguiu ajoelhado junto ao corpo
inerte de Toots, sacudindo-se em choque, incapacitado de qualquer ação,
mesmo a mais insignificante.
Quando terminou de tirar as vísceras do animal, embora fosse difícil de
acreditar, Theodore estava suando. Foi um trabalho árduo, pois o esqueleto
do cavalo era pesado e difícil de mexer. Boa parte da tarefa ele tivera que
fazer tateando, inclinando-se muito, com a face apoiada contra a familiar pele
parda enquanto cortava. Quando por fim ficou de pé, enjoado e débil, soube
que John não podia ajudar nenhum dos dois.
— Levante-se, John, eu o ajudarei.
Theodore tateou e sentiu John negar com a cabeça. A neve havia
tornado a se amontoar junto aos seus corpos e as mãos meladas de sangue de
John jaziam, imóveis, sobre suas coxas. Desesperado, e também próximo do
colapso, Theodore o sacudiu, sentiu que se lhe formavam lágrimas de
angústia nos olhos. Mas não soube se lhe caíam pelas faces, porque as tinha
dormentes.
— Maldição, John, não pode morrer. Não o deixarei. Enfie-se aqui
dentro desse animal.
Por fim, ao compreender que John não podia tomar decisões nem se
mover, Theodore tentou arrastá-lo para dentro da carcaça, empurrou-o para
trás, sustentou-o e abriu a carcaça.
— Dobre-se, John. Encolha-se como uma bola, você entrará aí.
Levantar esse peso morto nos braços era um esforço tremendo para
Theodore, cujos braços tremiam e cujos joelhos afrouxavam. Se John não se
movesse logo, seria muito tarde. No exato momento em que acreditou que
teria que deixá-lo cair, John afrouxou os joelhos e entrou na carcaça. Ouviu-
se um patético gemido, mas Theodore não podia perder tempo.
Foi mais difícil eviscerar o segundo cavalo que o primeiro, porque ele
estava esgotado. Com vontade de aço, seguiu lutando, sem fazer caso do odor
e do vapor que se erguia das vísceras caídas na neve nem dos soluços de
John. Uma vez precisou descansar, quase esgotado, segurando com as mãos a
cabeça encurvada. A lâmina da faca se quebrou em um osso e ele desistiu de
lutar, impossibilitado de seguir se esforçando. Em meio a uma turva névoa,
deslizou para dentro do calor doador de vida, mas, quando lutava para entrar
no animal, sua mente clareou por alguns instantes e, por fim, recordou-se do
que tinha que dizer para Linnea.
De cócoras, arrastou-se pela neve, tateando em busca da faca quebrada,
levando-a consigo enquanto se enfiava pela última vez sob a carroça.
Estendido de costas na penumbra, imaginou as letras tal como ela as tinha
ensinado: L de lutefisk; I de igreja; N de nunca poderei esquecê-la, mas ela
precisava sabê-lo. Àquela altura, podia escrever de cor o nome dela.
— Lin — riscou na neve, às cegas — sinto muito.
Zumbiam-lhe os ouvidos. Sentia a cabeça dez vezes mais volumosa que
de costume.
Alguém se arrastava pela neve com mãos ensanguentadas, que motivo
podia ter alguém para fazer algo semelhante? Com pernas de chumbo, voltou
para seu destino, sem sentir o fedor nem os coágulos, sem saber que rasgara a
camisa e arranhara o ventre e as costas enquanto se metia dentro do animal.
Uma vez ali, emocional e fisicamente exausto, perdeu a consciência.
Na escola, a pouco menos de dez quilômetros, uma menina esfregava
os olhos chorosos e gemia: — Mas não gosto das passas.
Linnea, que tinha os olhos avermelhados, obrigou-se a falar com
paciência e a acalmar Roseanne, quando, na realidade, também queria chorar:
— Coma-as, tesouro. É a única coisa que temos.
Quando Roseanne se afastou engatinhando, sufocando o pranto com
um punhado de passas pegajosas, Linnea, abatida, puxou outra vez a corda do
sino e se agarrou a ela com as duas mãos, com os olhos fechados e a testa
apoiada contra o áspero sisal, enquanto o melancólico tangido ressoava como
um lamento. Lá fora, o vento arrastava o trêmulo som e o transportava sobre
os campos brancos. Dois minutos depois seria outra pessoa a tocar o sino...
logo outra... e outra... o sino retumbava sem parar.
CAPÍTULO 23
UMA VIDA POR OUTRA

A nevasca durou vinte e oito horas. Durante esse tempo caiu quase um
metro de neve. Justo antes do anoitecer do segundo dia, homens com raquetes
para a neve resgataram as crianças utilizando um tobogã. O primeiro a chegar
à escola foi Lars Westgaard. Colocando as raquetes em um aglomerado de
neve, eles abriram a porta e se depararam com rostos de expressões aliviadas,
três dos quais, seus próprios filhos, choravam de felicidade. Mas ao mesmo
tempo em que erguia Roseanne, agarrada a ele como um macaco, e afagava
as cabeças de Norma e de Skipp, que o abraçavam, encontrou o olhar
angustiado de Linnea, que esperava junto a Kristian.
— Theodore e John? — perguntou ela em voz baixa.
Lars não pôde fazer outra coisa a não ser mover a cabeça tristemente.
Uma sensação de náusea apertou o estômago de Linnea e o pânico lhe
oprimiu o peito. Entrelaçou os dedos com os de Kristian, apertando-os com
força e olhando nos jovens olhos preocupados.
— É provável que estejam na casa de alguém, no povoado,
preocupando-se conosco mais do que nos preocupamos com eles — disse
Linnea, tentando com todas as forças acreditar naquilo que sua própria voz
dizia.
Kristian tragou com dificuldade e murmurou: — Sim... é provável.
Mas nenhum deles estava convencido disso.
Os outros pais entraram, sacudindo a neve, e se aqueceram junto ao
fogo. Quando todos chegaram, fizeram-se planos para a busca dos dois,
apagou-se o fogo e a pequena escola ficou fechada. Alguém tinha levado
raquetes de neve para Linnea. Metida em um casaco que lhe deram, cachecol
e luvas, Kristian a levou para casa.
O ar já estava suavizando. Pelo lado Oeste, apareceu no céu o contorno
avermelhado e dourado do sol, piscando entre nuvens purpúreas, estendendo
grandes faixas douradas pelo mundo branco das geleiras, que tinham o
mesmo tom arroxeado que as nuvens no Oeste, que já estavam se desfazendo,
separando-se, deixando passar cada vez mais raios de sol e prometendo um
dia claro.
Formou-se uma caravana de busca com os quatro tobogãs puxados por
Ulmer, Lars, Trigg e Kristian, e Raymond caminhando ao lado. Com a
intenção de facilitar as coisas, decidiu-se que as crianças Westgaard iriam
todas para a casa de Nissa, que era a mais próxima, de maneira que os
homens pudessem se dedicar a procurar os irmãos Westgaard perdidos. Até
no curto trajeto da escola até a casa eles estavam alertas, vigilantes, cada um
de posse de um pedaço de pau, e se detinham e o enfiavam em cada
montículo de neve em variados lugares. De cada vez, Linnea observava os
rastros gradeados de suas raquetes, formando rastros como bordados de cruz
sobre a neve, escutava as vozes dos demais e temia o que pudessem
encontrar. Observava com horrorizada fascinação como os paus se
afundavam, abraçando a barriga para proteger a criança não nascida da
aflição e pronunciava uma silenciosa oração.
Pobre Kristian! A própria Linnea estava esgotada além do que podia
imaginar e ele também devia estar. Mesmo assim, movia-se junto aos tios
sobre as elevações de aparência suspeita e via desaparecerem os paus uma e
outra vez na neve, deixando-a como tocas de animais. De todas as vezes,
retornava junto ao tobogã em que estava Linnea, recolhia a corda e seguia os
outros, acompanhado pelos gemidos fúnebres dos trenós sobre a superfície
antiga da neve.
Quando chegaram à casa de Nissa, os homens tiveram que tirar a neve
da porta com uma pá. Enquanto trabalhavam, ouviam os mugidos
permanentes das vacas, que estavam perto do barracão, em meio à neve, com
os úberes doloridos de tão cheios esperando serem ordenhadas desde a noite
anterior, àquela mesma hora. Mas havia assuntos de maior urgência e as
vacas ficaram sem ser atendidas. Era evidente que Nissa não tinha dormido.
Também se via que ela era daquelas pessoas que funcionavam bem sob
tensão, que seus pensamentos eram iluminados em proporção direta com a
necessidade de ter ideias claras. Ela já havia preparado pacotes com
equipamentos para a equipe de busca dos filhos: mantas enroladas e enfiadas
em sacolas, café fumegante e sopa em frascos de conserva envoltos em um
pano; sanduíches envoltos em papel encerado, tijolos no forno e brasas
prontas para serem transportadas em latas. Embora tivesse uma aparência
esgotada, movia-se ágil e autoritária pela cozinha, executando os preparativos
para quando os rapazes estivessem prontos para sair de novo. Reconhecendo
o valor do tempo, não o perdia em inúteis lamentos. A única pausa foi
quando Kristian e Raymond insistiram em ir. Os homens se olharam entre si;
e finalmente os incluíram: — Estão certos disso? — perguntou Ulmer.
— Meu pai está lá fora — respondeu Kristian sem titubear.
— E eu acompanho Kristian — afirmou Raymond.
Ulmer concordou com a cabeça e a questão foi resolvida. Minutos
depois de ter chegado, já voltavam a sair. Nissa não se lamentou nem os
observou sair com suas raquetes para a neve. Ao contrário, concentrou sua
atenção nos netos, para os quais tinha preparado uma espessa sopa de galinha
com macarrão. Também havia pão fresco e uma rodada de biscoitos recém-
assados, evidências de que não tinha estado ociosa durante o tempo em que
estivera sozinha, preocupando-se.
Enquanto Linnea admirava a pequena senhora, não mais alta que seus
netos de oito anos, ela não diminuía a atividade nem por um instante. Movia-
se como um relâmpago, sem sorrir. E, todavia, as sete crianças sabiam, por
instinto, que ela os amava enquanto os atendia e eles tagarelavam a respeito
da noite que tinham passado na escola. De algum modo Linnea pôde ouvir a
voz de Roseanne por cima das demais, aguda e sussurrante: — Não sabe,
avó! A tia Linnea me fez comer passas, e eu as comi. Estou com muita
vontade de contar isso para a minha mamãe — o rostinho expressivo ficou
repentinamente triste. — Mas perdi minha marmita do almoço e certamente
mamãe vai me dar uma surra por isso.
O falatório continuou, enquanto as tigelas de sopa foram se esvaziando
e voltaram a se encher. Quando ficaram satisfeitas, pareceu que as crianças
caíam no sono todas ao mesmo tempo, pois minutos depois estavam todas
adormecidas no andar de baixo.
A casa ficou silenciosa. De fora, chegou o ruído da neve que derretia e
caía do telhado, gotejando ritmicamente, embora o sol já tivesse se
escondido. Nissa, sentada na dura cadeira da cozinha, apertou os joelhos. A
desbotada saia se lhe pendurava entre as coxas como uma rede. Dava a
impressão de que fazia muita falta um bom suspiro, mas ela falou com muita
severidade.
— Bom, acredito que será melhor que eu alivie um pouco essas vacas.
— Vou ajudá-la — ofereceu-se Linnea.
— Não acredito que seja necessário. Ordenhar as vacas é mais pesado
do que parece.
— Bom, pelo menos gostaria de tentar.
— Como quiser.
Nissa vestiu o casaco sem dar o mais remoto indício de autocompaixão.
Sua atitude parecia dizer: “Se há algo a fazer, terá que ser feito”. Linnea
sentia uma grande segurança mantendo-se junto à teimosa e decidida idosa.
Enfiadas nos aventais de trabalho de Theodore e de Kristian, que ficavam
imensos, abriram caminho entre a neve para o estábulo. Tal como havia dito
Nissa, ordenhar era mais difícil do que parecia e Linnea era um fracasso total.
Por isso, enquanto a sogra ordenhava, ela se ocupou de limpar a neve com a
pá no caminho entre o celeiro e a casa. Carregaram juntas os baldes cheios de
leite e espuma, lavaram as tigelas de sopa dos meninos e depois enfrentaram
a angustiosa responsabilidade de esperar com as mãos ociosas.
Nissa procurou ocupação para si. Encontrou um novelo de lã e se
sentou na cadeira de balanço da cozinha para se aquecer e tricotar. A cadeira
de balanço rangia cada vez que ela se movia. Lá fora, o céu parecia se abrir,
viam-se algumas estrelas e uma lua fina como a lâmina de uma espada. Não
corria nenhuma brisa, como se as vinte e oito horas de nevasca jamais
tivessem acontecido. A cadeira de balanço seguia rangendo.
Linnea tentou tricotar, mas suas mãos tremiam e ela necessitava de
firmeza para fazer bem os pontos. Olhou para a idosa na cadeira de balanço,
com suas mãos sulcadas repletas de veias azuis sob uma pele translúcida, que
trabalhavam de maneira automática, tricotando o que quer que fosse. Talvez
já intuísse que seria avó novamente e já tricotasse o primeiro sapatinho do
segundo filho de Theodore. Linnea observou que a lã era da mesma cor que a
touca que ela havia tricotado para Teddy no Natal. Estaria pensando na touca,
guardada com naftalina junto com outros objetos de lã de Theodore e de
John?
— Nissa — Linnea a chamou e a anciã a olhou sobre os óculos. —
Quero que saiba que vou ter um filho do Teddy.
As duas sabiam o motivo pelo qual Linnea escolhera aquele momento
para falar. Se Teddy não sobrevivesse, seu filho sobreviveria. Mas Nissa se
limitou a replicar: — Então não podia ter retirado toda aquela neve.
Nesse momento. Roseanne apareceu na entrada da cozinha, esfregando
os olhos e o ventre.
— Meu estômago está doendo, vovó. Acho que comi muito.
A lã azul perdeu toda a importância.
— Venha, Rosie, fique aqui com a avó.
A sonolenta menina se enfiou nos braços abertos da avó e se deixou
abraçar no aconchegante e quente colo, encolhendo-se sob o queixo da idosa.
Os velhos ossos da cadeira de balanço rangeram na cozinha.
— Vovó, pode me contar de novo de quando era menina, lá na
Noruega?
Durante vários minutos, só a cadeira falou, com seu rangido rítmico.
Depois, Nissa começou a evocar a história que, sem dúvida, tinha sido
relatada infinitas vezes ao longo dos anos, mas era nova aos ouvidos de
Linnea.
— Meu pai era colono, um homem forte, com mãos tão calejadas
quanto os cascos dos cavalos. Vivíamos em uma pequena e bonita clareira.
Nossa casa e o estábulo das vacas estavam unidos sob um telhado de turfa
verde e, às vezes, na primavera, as violetas floresciam sobre ele, sobre o...
— Sei, avó — a menina a interrompeu. — Tinha flores no telhado.
— Isso mesmo, meu anjo — Nissa continuou —, havia quem
considerava aquilo pouca coisa, mas tinha um chão firme que sempre estava
limpo, e mamãe me mandava sair para recolher ramos verdes de zimbro[25]
para espalhar em cima depois de ter varrido. E junto da nossa porta principal
havia um fiorde...[26] — Nissa olhou para a neta. — Você se lembra o que é
um fiorde, Rosie?
— Um lago, vovó?
— Correto, é um lago e, ao fundo, estavam as montanhas roxas.
Subindo as montanhas, via-se uma colina que dava para os bosques e as
restingas e também a aldeia de Lindegaard. Às vezes nosso papai nos levava
lá. Vestíamos tecidos escuros, feitos em casa, e os homens usavam chapéus
de veludo e lá íamos, a Whitsunlide, por exemplo, quando os arbustos mal se
tingiam de verde-claro e os campos nus cheiravam a esterco. A cor mais
escura que a noite assumia era um tom de azul-claro. Por isso, a Noruega é
chamada... — Nissa esperou.
— A terra do sol da meia-noite — completou Roseanne.
— Outra vez correto. Havia alísios, bétulas e urzes… sempre muitas
urzes.
Roseanne ergueu os olhos e apoiou uma das mãos no pescoço da avó.
— Conte-me da vez que o avô te levou urzes, vovó.
— Ah, sim — Nissa soltou uma risada gutural. — Bom, isso foi
quando eu tinha quinze anos. Seu avô recolheu um ramo tão grande que uma
garota não podia carregá-lo com os dois braços. Levou-me para dentro de
uma carroça de duas rodas, puxada por uma égua de pelo escuro.
— Lembro o nome da égua, vovó — interveio a menina, ansiosa.
— Como se chamava, então? — Nissa a olhou através dos óculos
ovalados.
— Else.
— Isso mesmo, menina esperta. Chamava-se Else. Nunca me
esquecerei de quando vi seu avô conduzindo aquela pequena égua, chegando
para me visitar. É obvio, teve que se sentar e conversar com minha família
por um bocado de tempo. E mamãe serviu creme espesso com bolachas
doces, assadas com açúcar por cima. Era como se ele tivesse ido a nossa casa
unicamente para comer o doce.
Com ar melancólico, Nissa apoiou o queixo na cabeça da neta,
enquanto a menina retorcia um botão do vestido da avó.
— Ele era pescador, como o seu pai. E a pesca tinha fracassado quatro
anos seguidos lá em Lofoten, e se falava muito sobre a América do Norte. Às
vezes, quando ia me visitar nas noites, sentávamo-nos juntos na porta que
dava para o jardim e falávamos disso, mas, caramba, nunca sonhamos vir
para cá. Oh, aquelas noites eram tão belas! Havia dois galos negros que
cantavam das cerejeiras em flor e, quando o sol descia atrás das montanhas
coroadas de neve, as janelas da cabana ardiam como se estivessem se
incendiando — Nissa se balançava com suavidade, com uma expressão
nostálgica na face enrugada. — Para o Norte, os bosques davam para um
turfal e, na primavera, o ar se enchia com o aroma dos fogos de turfa e de
grãos de café torrados, e sempre se sentia o cheiro do mar.
— Fale-me da pedra de afiar, vovó.
Nissa passou de um sonho a outro: — Havia uma pedra de afiar no
fundo do estábulo, onde meu pai afiava...
— Sei, avó — interrompeu-a outra vez a menina, jogando a cabeça
para trás para ver o rosto que se inclinava sobre ela. — Onde seu papai afiava
as ferramentas e fazia um ruído que parecia ser de centenas de abelhas.
Nissa sorriu, afável, estreitou a neta em seus braços, e prosseguiu: — E
tinha um cão da Lapônia que... — a avó esperou, sabendo que era isso o que
tinha que fazer.
— Chamava-se King — completou Roseanne. — E teve que deixar o
velho King quando se casou com o avô e veio para a América do Norte no
navio.
— Isso mesmo, pequena.
O tratamento carinhoso despertou uma chama no coração de Linnea,
pois assim era como a chamava Theodore às vezes, e agora sabia de onde ela
tinha tirado.
Sonny e Norma também se levantaram de seus ninhos e rodearam a
avó, que tirou forças para si daqueles rostos sonolentos. Apareceram um por
um, como que atraídos por um chamado que ninguém podia adivinhar, de
maneira similar ao retorno dos cavalos quando os campos necessitavam
deles. Os netos saíram de suas camas acolhedoras para se reunir aos pés da
avó, que recorreu ao passado à procura de consolo. Rodearam a cadeira,
alguns sentando-se sobre os braços de madeira, outros ajoelhados, apoiando
as faces nas pernas da idosa. Os dedos de Nissa brincavam com os cabelos
sedosos de cada um deles. Contemplando-os, escutando, Linnea sentiu que se
lhe formava um nó na garganta. Como nunca, até então, compreendera o real
significado de uma família? Uma geração que passava para a outra seus
costumes e histórias, de carne para carne, do passado ao futuro.
Ela disse em silêncio para o filho que trazia no ventre: “Ouça a história
de sua família, pois se trata de sua maior herança”.
O relato prosseguiu, permeado de palavras misteriosas: pão ázimo e
restingas, arándanos – uma espécie de amora – e sarças. Muitas horas depois,
pelo lado Leste, ela viu as luzes das lanternas balançando. Parou diante da
janela com a garganta contraída pelo temor, o sangue lhe zumbia nos ouvidos
e ela pensou que ia desmaiar. Forçou a visão para ter certeza de que eram
eles, para avisar a Nissa de que estavam chegando, mas hesitou. Ela era idosa
e lhe concederia todo o tempo possível antes de dar a ela uma má notícia,
pois Linnea intuía que algo de muito ruim se abateria sobre aquela
maravilhosa família. Seu coração murchou.
Não havia cavalos. Onde estavam os cavalos? A não ser um par de
tobogãs transportando duas formas escuras. Viam-se as cabeças à luz dourada
dos lampiões. Linnea se desesperou. Oh, Deus, Oh. Deus, os dois não! Alheia
ao desespero da nora, a voz de Nissa continuou: — Havia fogos nas colinas
de Whitsuntide, e ardiam boa parte da noite...
Linnea finalmente falou. Sua voz era muito baixa, muito serena,
embora sentisse que estava morrendo a cada segundo que passava.
— Estão chegando.
O relato de Nissa foi interrompido. A cadeira de balanço se imobilizou.
Os pequenos foram retirados com suavidade do seu colo. Lá fora, seus filhos
e netos se arrastavam de volta para a casa; como um passeio noturno pela
neve banhada pela lua, mas traziam com eles uma carga nas costas. Um pavor
como nunca tinha experimentado esmagou o coração de Linnea e ela
inconscientemente gemeu de dor. Quando a porta se abriu, o primeiro a entrar
foi Lars, cujos olhos aflitos pousaram primeiro na idosa em pé diante da
cadeira de balanço.
— Mãe... — murmurou com voz rouca e abatida.
Nissa jogou o corpo para frente, com a dor se agitando em seus olhos.
— Os dois? — perguntou.
— Não, mãe... o John. Quanto a Teddy, chegamos a tempo.
As faces enrugadas de Nissa pareceram se converter em linhas de
tristeza. Seu grito atravessou o ambiente.
— Oh não! Oh, John... meu filho, meu filho...
Rodeou seu próprio corpo com um braço, tapou a boca com uma das
mãos e se balançou em breves movimentos curtos. As lágrimas, que ficaram
presas na borda inferior dos óculos, para depois achar seu leito nos vales de
desespero de seu rosto, rolaram até o queixo, pingando no chão.
— Mãe… — conseguiu pronunciar outra vez Lars, apoiando-se em
cima de um joelho diante da mãe. Eles lamentaram juntos. Presenciando a
cena, Linnea sentiu que a gratidão e a tristeza lutavam em seu peito: Teddy
estava vivo, mas John... O terno John... Das comissuras de seus olhos
começaram a emanar lágrimas e seus ombros tremeram. Os meninos, calados
e inseguros, passavam o olhar inquisidor da avó para a professora e ambas
choravam. Alguns deles compreendiam, mas duvidavam. Outros ainda
acreditavam que a pior consequência de uma nevasca era a obrigação de
comer uvas-passas.
Entraram os homens, carregando os tobogãs como beliches. Apoiaram
junto ao fogão os corpos envoltos em mantas e atrás deles entrou Kristian,
com o rosto abatido e pálido. Seu olhar angustiado se voltou imediatamente
para Linnea.
— Krist... — ela o chamou, mas o nome não lhe saiu dos lábios.
O rapaz a pegou nos braços, fechando os olhos, esforçando-se por
controlar as lágrimas que já não podia conter.
— Papai está vivo — conseguiu dizer em um sussurro.
A única coisa que Linnea fez foi assentir contra o ombro do jovem,
pois tinha um nó na garganta que a impedia de falar. Kristian se soltou do
abraço e a mulher viu Raymond junto a eles, tão abatido como todos os
outros. Abraçou-o com força, enquanto se ouvia o pranto baixo de Nissa e de
Ulmer, ajoelhados no chão junto aos tobogãs.
— Que alguém leve as crianças daqui — ordenou Nissa, com voz
trêmula.
Controlando a necessidade de comprovar com seus próprios olhos que
Teddy estava vivo, Linnea fez o que sabia que se precisava com a maior
urgência.
— Venham, crianças — passou a mão pelos olhos para secar as
lágrimas. — Venham comigo para cima.
Eles resistiram, percebendo a desgraça, mas ela os fez subir à frente
dela pelos degraus rangentes, para a penumbra do aposento superior onde ela
mesma dormia.
— Esperem aqui. Irei buscar uma lamparina.
O que ela viu quando desceu para buscar a lamparina paralisou-a:
Ulmer tinha tirado as mantas deixando descoberto o corpo de Theodore,
enroscado em posição fetal, com as mãos cruzadas apertando os ombros.
Tinha o cabelo esmagado contra o crânio e as roupas grudadas no corpo com
uma asquerosa mescla de sangue coagulado e tripas. Tinha sobre o rosto e as
mãos um rastro de um líquido que parecia azeite vermelho. Os olhos estavam
fechados e os lábios abertos, como se afogando em uma eterna exclamação,
mas não movia um só músculo. Dava a impressão de que ele estava morto.
De sua garganta brotou um grito. Ulmer ergueu os olhos.
— Leve as crianças para cima, Linnea — ordenou-lhe, severo.
Mas Linnea estava horrorizada e engessada ali, com o queixo se
movendo sem controle e a boca aberta.
— O quê...?
— Ele está vivo. Cuidaremos dele, agora pegue a lamparina e suba —
disse-lhe Ulmer.
Com o estômago revolto, ela saiu do cômodo.
Em cima, as sete crianças se instalaram em sua antiga cama com os
joelhos cruzados, os olhos dilatados, assustados. Linnea sentiu-se impotente.
Queria gritar, chorar e ainda estava nauseada. Theodore. Oh, Deus querido, o
que aconteceu? O que ele suportou lá fora, em meio à fúria da tormenta?
Como ele deve ter lutado para se manter vivo em meio à tempestade de neve.
Lutara com dentes e garras. Linnea tratou de recordar em que parte tinha a
pele rasgada, mas havia tanto sangue que era impossível saber onde tinha se
ferido. Os tremores sacudiram seu corpo, enquanto se sentava na beira da
cama e se abraçava, balançando-se.
Que tipo de animal caçava pessoas e atacava no meio de uma
nevasca? Por favor, oh, por favor, que alguém me explique o que lhe
aconteceu. Que me digam que ele viverá.
O contato de uma mão pequena nas costas e uma voz assustada e débil
a tiraram do desesperado devaneio.
— Tia Linnea.
Ao se voltar, viu Roseanne ajoelhada atrás dela. Viu o temor nos
grandes olhos castanhos e na expressão angustiada da boca da menina, assim
como nos rostos de olhos arregalados, inquisidores, e nas faces tensas. Então
compreendeu que, naquele momento, eles contavam com ela para que lhes
desse segurança.
— Oh, Roseanne, minha pequena — abraçou a menina, deu-lhe um
beijo na face, estreitou-a contra o peito, e compreendeu melhor ainda porque
Nissa permanecera com as crianças na última hora de vigília.
— Venham... — abriu os braços para incluir a todos e, embora não
coubessem, encolheram-se o mais perto que puderam dela procurando
consolo. — Sei que vocês querem saber o que aconteceu... — com olhos
aflitos, observou os rostinhos ansiosos. — Agora, vamos todos nos dar as
mãos.
Como haviam feito no Dia de Ação de Graças, quando tinham tanto
para agradecer, formaram um círculo de contato humano, e Linnea lhes
contou a verdade do ocorrido: — O tio John está morto. Ontem, quando
voltavam do povoado, foram pegos pela nevasca. Ele não aguentou o frio.
Lamento muito, pois todos nós o amávamos muito.
— E o tio Teddy também virou estrelinha no céu? — perguntou a
inocente Roseanne. — Mamãe me contou que todos que dormem aqui na
terra viram estrelinhas no céu e que não devemos chorar nem se um gatinho
dormir para sempre, porque podemos olhar para o céu e acenar para ele.
Linnea, por um instante, não soube o que dizer, mas alguém voltou a
lhe perguntar sobre Theodore.
— O tio Teddy está... bom, mas está muito doente. Temos que ser
muito fortes e ajudar a vovó Nissa, Kristian, e os seus pais e mães, porque
estarão muito tristes... — ela não pôde continuar. Deixou que as lágrimas
jorrassem sem impedi-las, agarrando duas mãos pequenas como se fossem
seus salva-vidas. Viu que os semblantes passavam do medo ao respeito, e
então compreendeu que era a primeira vez que enfrentavam a morte de um
ser humano. Mas a grande surpresa foi o modo como consolaram a professora
angustiada. Vê-la chorar os entristecia mais que qualquer outra coisa.
Tentaram confortá-la e Linnea percebeu que o laço de amor entre eles se fez
mais sólido.
No andar inferior, Nissa deixou sua tristeza de lado e se dedicou aos
vivos. Insistiu em ser ela mesma a banhar Teddy, lavando-lhe o cabelo
enquanto ele ainda estava deitado sobre o tobogã, junto ao fogão que ardia
com um fogo muito alto. Depois permitiu que os irmãos o vestissem,
erguessem-no e o levassem para a cama, onde ela colocara tijolos quentes
para aquecê-la. Durante todo esse tempo, Theodore permaneceu inconsciente,
guardado na segurança protetora dessa fuga natural. Já se aproximava a
alvorada quando Kristian subiu para o andar de cima para procurar os primos
menores. No antigo quarto de Linnea, as crianças menores, exaustas, tinham
enfim adormecido, encolhidas sobre a cama, entrelaçadas como uma bola de
lagartas da primavera. No centro estava sentada Linnea, com as costas
apoiadas na cabeceira, os braços ao redor de Bent e de Roseanne, e os outros
entrelaçados o mais perto que podiam dela. Kristian se sentiu inseguro por ter
que despertá-la.
— Linnea?
Tocou em seu ombro.
As pálpebras de Linnea tremeluziram. Ela levantou a cabeça, olhou
para ele e parecia acordada, mas deixou cair outra vez a cabeça em um
ângulo estranho, e adormeceu de novo. Estaria sonhando? Pensou Kristian.
— Linnea — sacudiu-a com delicadeza. Desta vez, ela abriu os olhos
lentamente e manteve a cabeça erguida.
Desorientada, olhou para Kristian. Pouco a pouco, começou a se
lembrar dos detalhes: não fora um pesadelo, era real. A mão do rapaz em seu
ombro, as crianças adormecidas ao redor, a luz pálida do amanhecer que
entrava pela janela. Avivou-se e tratou de se levantar.
— Oh, não, eu não queria adormecer. Eu tinha que ter descido assim
que as crianças...
— Está tudo bem. A avó se encarregou de tudo.
— Kristian — sussurrou Linnea —, como ele está?
— Não sei. Ele ainda não se moveu. Lavaram-no e o colocaram na
cama. Agora, Ulmer e Lars estão ordenhando as vacas e depois terão que ir
para suas casas. Helen e Evie devem estar preocupadas com as crianças.
Endireitou-se e olhou para os meninos adormecidos.
— Quero ir vê-lo — disse Linnea.
Kristian se sentou pesadamente sobre a cama. — Ele tem um aspecto
horrível.
Linnea sentiu o mesmo medo doentio da noite passada, mas tinha que
saber.
— Kristian, o que lhes aconteceu?
O rapaz inspirou profunda e tremulamente, passou uma das mãos pelo
cabelo, e falou em um tom que refletia o horror da noite passada.
— Aparentemente, foram alcançados primeiro pela nevasca, e
certamente derrubaram a carroça para se abrigar sob ela e se protegerem do
vento. Quando isso não bastou, não bastou... — ele tragou novamente com
dificuldade, e Linnea lhe segurou a mão e a apertou com força. — Continue,
Kristian, por favor.
— Eles mataram a tiros os cavalos, tiraram-lhes as... tripas e se
enfiaram dentro da carcaça para se protegerem.
O horror que se via no rosto do rapaz se refletiu na face de Linnea.
— Oh, meu Deus! Cub e Toots? Os preferidos de Theodore. Oh, não...
— de repente, Linnea sentiu que seu estômago se revolvia. Por sua mente
passaram milhares de imagens dos animais trotando, balançando a cabeça em
uma clara manhã do Dia da Árvore, a caminho do povoado; o plantel
correndo em liberdade, enquanto Cub e Toots alardeavam de dentro do
curral, as incontáveis ocasiões em que Theodore lhes tinha acariciado os
narizes. Oh, como deve ter sido dolorido para ele sacrificar os animais que
tanto amava, e o que deve ter sido para Kristian encontrá-los naquele
estado... Ela apertou a face do rapaz: — Oh, Kristian, que horrível foi para
você!
O jovem se manteve imóvel, enquanto as lágrimas caíam lentamente
por seu belo rosto, uma mescla de Theodore e Melinda, com os olhos fixos
em algum ponto mais à frente do ombro de Linnea. Ela lhe secou as lágrimas
com carinho de mãe. Em uma voz sufocada, Kristian continuou: —
Aparentemente, o tio John estava den...tro de T...Toots, mas não pô...de
su...portar ficar lá, porque o en...contramos sentado junto à égua na ne...ve,
como se... Oh, Jesus... ele... ele... não suportava lugares fechados e... amava
demais os cavalos, preferiu a morte a...
Os soluços o sufocaram e ele se dobrou para a frente, afundando o rosto
entre as mãos. Chorava tanto que seus ombros eram sacudidos violentamente.
Linnea também chorava, ao mesmo tempo em que abraçava Kristian,
tentando consolá-lo. Abraçou Kristian por trás, apoiando-lhe a face nas costas
estremecidas, estreitando-o com força.
— Shh... shh... está tudo bem.
Kristian achou uma das mãos de Linnea, entrelaçou os dedos nos dela,
e os apertou com força contra o coração dolorido.
— Nunca poderei... esquecer toda aquela neve... vermelha... de
sangue...
Linnea sentiu sob sua mão o pesado pulsar do coração do rapaz.
— Kristian... — ela não sabia o que dizer para consolá-lo, pois também
estava desolada. — Kristian... — repetiu com amor. Suas lágrimas deixaram
manchas escuras nas costas da camisa azul de Kristian. Calaram-se e
deixaram fluir a tristeza, consolando-se mutuamente em silêncio.
Em dado momento, Kristian exalou um longo suspiro trêmulo, e Linnea
o soltou. O rapaz assoou o nariz, e a mulher secou os olhos com a manga.
— A avó está com o papai e ela precisa descansar um pouco — pediu,
quase como implorando.
— E você também. Parece que está a ponto de desmoronar. Vá
descansar um pouco.
O rapaz esboçou um sorriso pesaroso. — Desmoronar seria
maravilhoso.
— Ajude-me a despertar as crianças, e depois poderá ir se deitar —
disse Linnea.
Arrastando alguns, carregando outros, desceram com as sonolentas
crianças, que teriam que viajar pelos longos trajetos em um tobogã até suas
respectivas casas, atrás de seus esgotados e angustiados pais, que entre as
dezenas de tarefas do dia tinham os acertos para o funeral do irmão, a busca
de uma carroça derrubada com dois cavalos e depois seu enterro. A única
coisa boa, se é que havia algo de bom naquilo tudo, era que a neve já derretia.
Parecia uma ironia do destino.
O sol de primavera nasceu, aquecendo a pradaria com seu calor tardio,
colorindo o céu e a neve com intensos tons de rosa e laranja, majestoso em
um céu viçoso, claro como uma cascata. Entrava quente pela janela leste do
quarto de Theodore quando a vacilante Linnea apareceu na porta. Junto à
cama, Nissa estava afundada na dura cadeira da cozinha com o queixo
apoiado no peito e os dedos entrelaçados sobre o ventre. Linnea passou o
olhar pela cama e sufocou uma exclamação. Theodore parecia tão agastado,
macilento e inegavelmente velho! Em lugar da cor saudável de costume, tinha
a cor da cera. A carne que rodeava os olhos fechados tinha um leve tom
azulado. Suas maçãs do rosto pareciam ter murchado. As faces estavam
afundadas, e sobre elas brilhavam manchas claras, sinais do congelamento
que havia necrosado a pele. Tinha barba de — quanto tempo? — dois, quase
três dias. Linnea teve a sensação de que fazia anos que, do terreno da escola,
tinha acenado com a mão para a carroça. Pelo menos Theodore envelhecera
na aparência coisa de uns vinte anos. Contemplando o queixo com a barba e
as costeletas crescidas, voltou a lhe causar tristeza tudo por que ele tinha
passado. Olhou para Nissa, a pobre mãe angustiada. Que trágico era
sobreviver e ver um filho morrer! Linnea entrou no quarto e tocou o ombro
abatido.
— Nissa.
A cabeça da idosa se ergueu. Os óculos tinham escorregado pelo nariz.
— Piorou? — a assustada mãe perguntou, olhando rapidamente para o
filho.
— Não. Está igual. Por que não vai para seu quarto se deitar um pouco?
Ficarei cuidando dele para você descansar. Precisa repousar, Nissa.
Nissa curvou os ombros, colocou os dedos sob os óculos e esfregou os
olhos.
— Não... estou bem.
Linnea compreendeu que seria inútil discutir.
— Está bem, então lhe farei companhia.
— Agradeço a companhia e, como não há mais cadeira aqui, terá que...
— Este servirá — Linnea arrastou um pequeno tamborete de bordado
para perto da cadeira de Nissa. Sentou-se nele e colocou os braços nos
ombros de Nissa em um abraço afável. O quarto cheirava a cânfora e a
linimento. Lá fora, o galo cantava e um pintarroxo chamava a manhã. Dentro
do quarto, ouvia-se o ritmo regular da respiração de Theodore, depois somou-
se a isso o suave ronco de Nissa. Linnea percebeu que a sogra estava a ponto
de cair da cadeira. Despertou-a com delicadeza.
— Vamos, Nissa. Não pode manter os olhos abertos, e assim não faz
nenhum bem a Teddy. Vá se deitar um pouquinho só.
Nissa não resistiu e Linnea a acompanhou até o dormitório ao lado.
— Está bem... só por alguns minutos — sem sequer tirar os óculos,
Nissa deixou-se cair sobre a cama e se apoiou no travesseiro. Enquanto
Linnea tirava os óculos do nariz da idosa, ela balbuciou: — ...Sopa de frango
na cozinha.
— Shh, querida. Eu me ocuparei dele. Agora descanse um pouquinho
só.
Antes de sair do quarto, Linnea tirou-lhe os sapatos negros de cano alto
e pôs um cobertor sobre ela.
Retornou ao quarto de Theodore e parou junto à cama, examinando o
rosto desvanecido do marido. Tocou-lhe brandamente com dois dedos as
sobrancelhas e as têmporas. Beijou a comissura da boca: a pele estava fria e
seca. Tocou uma mecha de cabelo limpo, porém desordenado, que começava
a se enrolar nas pontas. Observou como subia e baixava seu peito. As mantas
lhe cobriam o torso e, por baixo, via-se a camisa de inverno, abotoada até a
garganta. As mãos jaziam sobre os lençóis. Linnea tomou uma delas, que
estava relaxada, com sua pele calosa e dura. Evocou na mente essa mão
arrumando o arreio, acariciando a barriga de uma égua prenha, baixando a
orelha de Cub para lhe sussurrar algo... e depois agarrando o cabo de uma
faca para eviscerar seus amados animais. Uma vez mais, as lágrimas lhe
queimaram as pálpebras e, desta vez, quando lhe beijou a têmpora, demorou-
se aspirando a fragrância de sua pele, do cabelo, sentindo o batimento do
coração tranquilizador sob os lábios. Oh Teddy, Teddy, nosso bebê e eu
estivemos tão perto de perdê-lo... Eu estava muito assustada. O que teria
feito sem você?
Deitou-se junto dele sob as mantas, apertando o estômago contra a
lateral do marido, passando-lhe um braço pela cintura e, por um momento,
dormiu com o filho aconchegado entre os dois. A tosse de Theodore a
despertou. Sentou-se, escutando para descobrir sinais de congestão, e,
erguendo-se, subiu as mantas até as orelhas. Sentou-se na cadeira que havia
ao lado da cama para cuidar dele. Theodore permaneceu inconsciente quase
todo o tempo, salvo uma vez, em que mudou de lado, não agitado, mas com
movimentos lentos e enfraquecidos, como alguém muito esgotado para se
mover rápido. Não pronunciou uma palavra sequer, nem um só grito
inconsciente viera dos horrores que ele tinha passado. Parecia em paz.
Despertou perto do meio-dia, tão discretamente como tinha dormido.
Deitado de costas com as mãos sobre o estômago, abriu os olhos e virou o
rosto. Parecia desorientado, tentando entender onde estava, e, por fim, seu
olhar caiu sobre Linnea. Ao falar, sua voz soou muito rouca, quase inaudível.
A primeira coisa que ele perguntou quando se lembrou do ocorrido, foi pelo
irmão.
— John?
Linnea sentiu que um nó lhe bloqueava a garganta. Seu peito parecia
sufocar de compaixão. Ela temia ser a pessoa que tivesse que dar a notícia a
ele e, entretanto, talvez fosse melhor que Nissa e Kristian economizassem a
tristeza de responder.
Ela segurou a mão dele e disse, com sua voz mais cálida possível: —
John não aguentou.
— Eu disse para você se enfiar sob essa carroça, John — disse
Theodore, decisivo e autoritário. Apoiando-se com esforço nos cotovelos,
como se estivesse sonhando, ordenou: — John, se enfie aí — e depois fez um
movimento para se levantar e ver se o irmão lhe obedecia.
Linnea se levantou rapidamente, empurrou-o para trás e lutou para
conter as lágrimas.
— Durma... por favor, Teddy... shh... shh... durma.
Ele se deixou cair outra vez na cama, fechou os olhos e virou para a
parede, para os benditos braços do sono.
Ainda dormia profundamente quando Nissa entrou para substituir
Linnea. À tarde, quando os homens voltaram para combinar os acertos do
funeral, ela ainda dormia. Linnea tomou outra vez o lugar da sogra, e estava
sentada junto à cama quando Lars e Ulmer a chamaram suavemente na porta
do quarto. Lars perguntou: — Como ele está?
— Ainda dorme.
Os dois homens entraram em silêncio e contemplaram o irmão
adormecido. Ulmer esticou a mão para afastar o cabelo da testa de Teddy, e
depois se voltou e apoiou a mão no ombro da cunhada.
— E você como está, pequena senhorita?
— Eu? Oh, estou bem. Não se preocupe comigo.
— Mamãe nos disse que você está grávida.
— De pouco tempo — respondeu Linnea.
— Tempo suficiente. Vá com calma, certo? Não queremos que Teddy
se depare com mais más notícias quando despertar.
Ele lançou outro olhar para o irmão na cama, enquanto Lars se
inclinava para dar um beijo no rosto de Teddy.
— Parabéns, Linnea. E que tal respirar um pouco de ar fresco? — disse
Lars.
Linnea olhou para Theodore.
— Prefiro não deixá-lo, Lars.
— Viemos com uma parelha e trouxemos algo esculpido na carroça que
pensamos que deveria ver — disse Lars.
— Limpamos um pouco a carroça e a trouxemos. Está junto ao moinho
— complementou Ulmer.
Deixaram-na ir sozinha. A sombra do moinho se estendia sobre a neve
que derretia com rapidez. No crepúsculo, Linnea andou rapidamente para a
carroça verde de rodas vermelhas. Era fácil distinguir as palavras, pois
Theodore mantinha tudo em perfeitas condições, até a grossa pintura verde da
caixa da carroça. Embora as letras estivessem um pouco dispersas, podia-se
ler: Lin, sinto muito.
Mais lágrimas? Como era possível sentir mais compaixão, mais amor
do que ela já sentia? E, contudo, sentiu uma dor tão pungente enquanto lia a
mensagem como a que Theodore devia ter sentido ao escrevê-la. Passou os
dedos sobre a pintura raspada e o imaginou estendido sob a carroça derrubada
esculpindo as palavras, temeroso de morrer sem lhe pedir perdão por tê-la
magoado e rejeitado o filho deles. O amor transbordou, misturado com
tristeza, com desespero e esperança, uma combinação de emoções provocada
por aquela mão do destino que elegia uma vida e destruía outra.
Naquela noite, quando estava sentada junto ao leito, Teddy abriu os
olhos e ela viu, imediatamente, que ele estava lúcido.
— Linnea — chamou ele, quase como um grasnido, estendendo a mão.
Tomou sua mão, e os dedos dele se retorceram e a sacudiram. — Teddy...
Oh, Teddy!
— Venha aqui.
Linnea se sentou junto a ele.
— Não... dentro — disse ele.
Assim como ela estava, com suéter, avental e sapatos, enfiou-se sob as
mantas, onde estava quente e ele a esperava para abraçá-la, colocar uma
perna sobre o ventre dela e apertá-la como se ele fosse um náufrago e ela uma
sólida madeira.
— Sinto tanto, Linnea... tanto... não acreditei que...
— Shh.
— Deixe-me dizê-lo. Necessito falar.
— Mas já li o que esculpiu na carroça. Eu já sei, meu amor. Eu já sei...
— Pensei que morreria, e que você seguiria acreditando que eu não
queria a criança, mas quando estava deitado sob a carroça pensando que não
voltaria a vê-la, eu... convenci-me de que o bebê era um dom de Deus, e que
eu tinha sido muito teimoso para reconhecer isso. Oh, Lin, Lin... que tolo eu
fui...
Nenhum abraço lhe bastava, nem podia beijá-la com suficiente força
para lhe expressar tudo o que sentia. Mas ela o compreendeu bem quando o
marido colocou sua mão em seu ventre, onde sua semente crescia sã e forte.
— E pensei que você morreria na nevasca e que eu não teria
oportunidade de lhe dizer que eu já sabia que você não falava a sério. Mas
você está vivo... Oh, Teddy meu querido...
— É tão bom senti-la, é tão ardente, tão quente. Quanto frio eu senti
debaixo daquela carroça. Abrace-me, meu amor. Abrace-me.
Linnea o abraçou até que os tremores passassem. Por fim, ela
sussurrou: — Teddy, John...
— Eu já sei — disse com voz amortecida contra o peito da mulher. —
Sei.
Sacudiu-o uma convulsão, e depois suas mãos agarraram o suéter de
Linnea e a atraiu com força para ele, enquanto ela embalava sua cabeça, com
os lábios colados em seu cabelo. Ela não sabia o que dizer naquele momento,
e não o tentou. Deixou-o inalar seu corpo morno e vivo, agarrar-se a ele,
extrair forças dela, até que o pior tivesse passado. Quando, por fim, Theodore
falou, o fez pelos dois: — Se for um varão daremos a ele o nome de John.
Uma vida por outra. De certa forma encontraram consolo nesse
pensamento.
CAPÍTULO 24
ACONTECIMENTOS INESPERADOS E ESPERADOS

O funeral de John ocorreu no dia primeiro de maio, com uma


temperatura que alcançou a inacreditável marca de vinte e seis graus. Não
havia sequer um rastro da nevasca que tinha assolado o campo, a não ser pelo
caixão do homem que tinha perdido a vida por causa dela. As flores
silvestres, os cardos, os girassóis e os ranúnculos floresciam em uma espécie
de euforia. No cemitério, que ficava junto à pequena igreja rural, entre as
lápides, via-se uma braçada de flores primaveris.
Era um contraste com o que se via junto à sepultura. Em um dia como
aquele, quando as crianças deveriam estar recolhendo flores para embelezar
suas casas, estavam rodeadas pelo colorido das flores, mas com suas almas
lúgubres, cantando um hino de despedida para o tio morto, com suas vozes
claras, dirigidas pela professora, que tinha os olhos arrasados pelas lágrimas.
Junto deles estava toda a família, rodeando-os, os cotovelos se tocando.
Quando acabou a canção, Linnea reassumiu seu lugar junto a Theodore,
que ainda estava muito esgotado para ficar de pé durante toda a cerimônia e,
por isso, estava sentado em uma cadeira de madeira. A cadeira, com as pernas
afundadas na grama primaveril, parecia desconjuntada, semelhante às pernas
dos pequenos quando aprendiam a andar. Vê-lo junto ao caixão arrancou
novas lágrimas dos olhos de Linnea. Não mais chorava por John, neste
instante chorava por Theodore, sentado ali, tão frágil e macilento, tão formal
em seu terno, sem cruzar as pernas. A brisa suave ondulava-lhe as calças e
lhe afastava o cabelo da testa. Ele ainda não tinha derramado uma lágrima,
embora Linnea soubesse que sua dor era muito maior que a dela. Mas a única
coisa que podia fazer era permanecer ao seu lado, abraçando-lhe o ombro.
E lá estava Nissa, escutando o que o reverendo Severt falava,
elogiando-lhe o filho morto. Manteve-se forte até não suportar mais, até que
por fim se entregou, tombou sobre o largo peito de Lars em busca de apoio,
até que uma segunda cadeira de cozinha apareceu de algum lugar e a fizeram
se sentar.
Os semblantes dos irmãos pareciam vazios; sem dúvida cada um
revivia lembranças do terno, discreto e doce homem, que eles tinham
protegido durante toda a vida.
O elogio fúnebre se prolongava, mas nada do que o reverendo falava se
parecia com John. Ele remexendo os pés, tímido, enquanto aparecia pela
porta do vestíbulo com a árvore de Natal escondida nas costas; John,
ruborizado e hesitante, convidando a professora para dançar; John, piscando
os olhos para sua parceira antes de jogar o naipe vencedor; John, plantando
glórias da manhã azuis junto ao seu moinho de vento; John dizendo: —
Teddy nunca se zanga comigo, nem quando sou lento. E eu sou bastante
lento.
Oh, quanta falta sentiriam dele... Quanta saudades sentiriam...
A cerimônia terminou quando Ulmer, Lars, Trigg e Kristian baixaram o
caixão à sepultura. Quando uma pazada simbólica de terra caiu sobre ele,
Nissa teve uma crise de choro, repetindo angustiada: — Oh, meu filho... meu
filho.
Theodore, por outro lado, continuou sentado como até então, como se
John tivesse levado consigo uma parte de sua alma. Nas horas que se
seguiram ao sepultamento, enquanto os lastimosos se reuniam na casa para
compartilhar a dor e o alimento, Theodore falou pouco e parecia esgotado.
Quando a casa, por fim, ficou vazia e o silêncio se fez muito denso, Nissa se
sentou perto da mesa da cozinha, tamborilando distraída sobre o oleado.
Kristian foi passear com Patricia e Raymond. Linnea pendurou os panos da
cozinha na corda e voltou para a casa silenciosa. Nissa tinha os olhos fixos no
céu do entardecer, nos arbustos em flor, no moinho que girava lentamente.
Linnea parou atrás da cadeira de sua sogra e se inclinou para lhe dar um
suave beijo no rosto. Cheirava a sabão de lixívia e a sais de lavanda.
— Quer que lhe traga algo?
Nissa saiu de sua abstração.
— Não... não, filha. Acredito que tive quase tudo o que um corpo tem
direito de esperar.
As lágrimas voltaram a cair. Linnea fechou os olhos, inclinou-se para
trás e conteve o fôlego. Nissa suspirou, endireitou os ombros, e perguntou: —
Onde está o Teddy?
— Acredito que foi para o estábulo para ficar um momento sozinho.
— Acredita que ele estará bem lá fora?
— Se isso preocupar a senhora, irei ver.
— Ele ainda está muito fraco e hoje não o vi comer muito.
— Ficará bem sozinha por alguns minutos?
Nissa lançou uma gargalhada seca: — A gente começa sozinho e
termina sozinho, minha filha. Por que será que acreditamos que, enquanto
isso, precisamos de companhia?
— Está bem. Não demorarei muito.
Linnea sabia onde o encontraria, certamente sentado na cadeira,
arrasado, lustrando arreios que não necessitavam de brilho algum, mas
quando apareceu à porta da selaria, viu-o com as mãos ociosas. Sentado na
velha cadeira, de frente para a porta, tinha a cabeça apoiada na borda da mesa
de ferramentas com os olhos fechados. Sobre seu colo, lambendo o peito,
estava Rainbow, a gata de John, e as mãos de Theodore pousavam inertes
sobre o animal. À primeira vista parecia adormecido, mas Linnea viu que
seus dedos se moviam sobre o pelo macio, e que as lágrimas emanavam das
comissuras dos olhos. Chorava de maneira aprazível, discreta, deixando que
as lágrimas escorressem por seu rosto sem se incomodar em enxugá-las. Até
então, Linnea nunca o tinha visto chorar, e era um espetáculo devastador.
— Theodore — disse com ternura —, sua mãe está preocupada com
você.
Ele abriu os olhos, mas não levantou a cabeça.
— Diga-lhe que quero apenas ficar sozinho, nada mais.
— Você está bem?
— Sim. Estou bem.
Tentando conter o tremor dos lábios, Linnea o observou com os olhos
ardendo, ao vê-lo tão abatido e solitário.
— Rainbow veio por conta própria? — perguntou.
Com esforço. Theodore elevou a cabeça o suficiente para ver como
seus dedos manuseavam o pelo do animal, com uma expressão tão desolada e
despojada de vida que a Linnea lhe rasgou a alma. Ele respondeu: — Não.
Kristian foi procurá-la. Supôs que estaria na soleira da casa de John miando,
pedindo por comida... até que... — ele não pôde concluir. De repente, seu
rosto se contraiu em sulcos de dor. Um só soluço áspero soou no ambiente e,
deixando cair a cabeça, tapou os olhos com uma das mãos. Rainbow se
sobressaltou e desceu, e Linnea correu para se agachar diante dele, tocando-
lhe os joelhos.
— Oh Teddy — desesperou-se —, não sabe o quanto preciso estar com
você neste momento. Por favor, não me deixe de fora.
Ao mesmo tempo em que um soluço estrangulado escapava da garganta
de Theodore, seus braços se abriam para estreitar sua esposa. E ali ficou ela,
no abraço, sobre o colo de seu marido, estreitando-o com força, sentindo os
soluços pesarosos que ele exalava contra seu peito. Assim abraçados, ficaram
por bastante tempo. Com a boca apoiada no vestido dela, pronunciou seu
nome, enquanto ela o apertava contra si, consolando-o e se fortalecendo
também. Quando o pranto se esvaiu, ficaram frouxos, vazios, mas se sentiram
melhor e imensamente mais próximos. Ouviu-se um passo na parte exterior
do barracão e Teddy se endireitou, mas Linnea ficou onde estava, rodeando-
lhe o pescoço com os braços. Kristian apareceu no vão da porta, com aspecto
perdido e solitário: — A avó estava preocupada e me mandou aqui para
buscar vocês.
Cada um deles tinha tido seu tempo a sós e já era hora de buscar apoio
uns nos outros. Linnea ficou de pé, ajudou Theodore a se levantar, e disse: —
Venha, meu amor. Agora é Nissa que precisa estar conosco.
Passou um braço pela cintura do marido, o outro pelo braço de Kristian
e caminharam, seguidos pela gata de John, passando diante do moinho e de
volta para a casa desolada. Mas eles estavam juntos, unidos, e um cuidaria do
outro.
A vida voltou para os eixos, Theodore voltou sozinho para os campos.
Nissa começou a cultivar seu jardim. A escola já tinha ficado muito tempo
fechada.
Com que rapidez se aproximava o fim do ano escolar! Pareceu que
maio transcorria como um raio. Paul vencera o concurso de silabação daquele
ano, em Wiltiston. Depois veio o dezessete de maio, a festa mais importante
do ano. O dia é um dos feriados mais importantes da Noruega. A data marca
a assinatura da constituição do país, que aconteceu em 1814, na pequena
cidade de Eidsvoll. O documento foi considerado na época uma das
constituições mais ousadas da Europa. Desde então, no dia 17 de maio, é
celebrado o Dia Nacional da Noruega, ou Dia da Constituição, comemorado
por toda a população, seja em grandes festas nas ruas, seja dentro das casas.
Bandas marchando, desfiles, trajes típicos e muita comida. A comemoração
já começa logo cedo, com um bom café da manhã. Vizinhos, parentes e
amigos se reúnem e se deliciam com pães frescos, ovos mexidos, salmão
defumado e, para os adultos, muita bebida. Depois, todos seguem para as
celebrações. Os trajes típicos, chamados bunads, são usados por muitos.
Existem dezenas de variações de vestimentas, e as cores e estilos indicam as
tradições de diferentes regiões. A data é verdadeiramente especial para
descendentes. Houve brincadeiras e uma refeição na escola e depois um baile,
no qual Linnea mencionou o assunto do alistamento de Kristian.
— Ele não é mais um menino, Teddy — eles olhavam Kristian e
Patricia dançando, tão juntos que entre os dois não podia passar um fio. — Se
ele já tomou a decisão, penso que terá que deixá-lo ir.
— Sei — disse Theodore em voz suave, seguindo o casal com o olhar.
— Já sei.
E assim o final do ano escolar se aproximava com uma nova dor. Mas,
conforme os dias se passavam, Linnea sentia a euforia própria dos finais dos
períodos, ao mesmo tempo em que sentia tristeza por saber que eram seus
últimos dias como professora. Sem falsa modéstia, sabia que tinha sido uma
boa professora, desejou poder conciliar no outono seguinte o trabalho e o
filho que chegaria. Mas no último dia, quando se despediu das crianças,
parecia que estava dizendo adeus a uma etapa de sua vida. As provas finais
foram aplicadas e por fim chegou o momento da excursão do último dia. A
classe votou por realizá-la no rio, assim, poderiam nadar. O dia foi lindo:
quente, ensolarado e com pouco vento. Perfeito para um bando de crianças
excitadas, que festejavam a chegada das férias e, para alguns, o fim da escola.
Brincaram, riram, gargalharam, nadaram e comeram. Os rapazes foram
pescar correnteza abaixo, as meninas procuravam flores silvestres e as
entrelaçavam em suas tranças. Perto do final da tarde, Norma se aproximou
de Linnea preocupada, dizendo: — Não consigo encontrar Frances em lugar
algum.
— Ela estava colhendo flores com as outras garotas — disse Linnea.
— Estava, mas já não está mais — respondeu Norma.
Linnea olhou para o rio correnteza acima, para o pequeno grupo de
meninas que estavam muito entretidas fazendo anéis de trevo. De lá
chegavam flutuando as risadas, mas Frances não estava com elas. De maneira
automática, voltou-se para a mesma pessoa a que sempre recorria: —
Kristian, você viu Frances? — gritou.
Kristian ergueu a cabeça e olhou ao redor. Ele e Patricia estavam
sentados, conversando muito tranquilos na beira do rio.
— Não, senhora.
— E você. Patricia?
— Não, senhora.
Os quatro olharam para o rio, mas não era bastante profundo para que
Frances se afogasse. Linnea se apressou em contar as crianças. Quando
comprovou que também faltava Allen Severt, o coração lhe deu um sinal de
advertência.
Naquele dia, Frances Westgaard entrara e saíra do rio quatro vezes.
Tinha entrado água em um ouvido e ela não conseguia se livrar dela e, além
disso, tremia muito. Abraçando-se, foi até os espessos matagais onde as
meninas tinham deixado a roupa. Frances tinha decidido que, quando fosse
maior, seria professora, igual a tia Linnea, e levaria a classe frequentemente a
excursões como aquela, pelo menos uma vez por semana, quando o clima
estivesse quente. E no inverno fariam sopa. E coelhos no Dia de Ação de
Graças e pipocas cada vez que as crianças manifestassem desejo de comê-las.
Sentia a roupa de banho grossa e pegajosa e, quando a retirou, viu
sanguessugas presas nela. Saltando em um pé, conseguiu baixar a roupa até
os quadris e, por fim, até os joelhos, mas nem assim conseguiu tirar aquela
coisa nojenta da roupa. Por último, desistiu e se jogou sobre a grama que lhe
coçava. Seus dentes batiam enquanto ela lutava para passar os pegajosos
calções pelos tornozelos.
— Ei, Frances, o que está fazendo? — perguntou uma voz pomposa,
arrastando as palavras.
Frances se sobressaltou e tentou voltar a subir os calções, mas
molhados eles tinham se enrolado e apertavam como uma corda.
— Estou trocando de roupa. Vá embora daqui, Allen.
Allen saiu de trás de um álamo fazendo uma careta astuta.
— Por quê? Este é um país livre.
O rapaz tinha contado com todo aquele ano para alimentar o rancor
contra a Senhora Westgaard e contra Frances Westgaard. As duas o tinham
envergonhado em mais ocasiões do que ele queria recordar. E, embora
pensasse que seria impossível se vingar da professora, podia fazê-lo, sim,
com essa pequena idiota.
— Convém que saia daqui se não quiser que eu conte para a tia Linnea.
Rapidamente, Frances remexeu os calções tentando vesti-los, mas
Allen avançou e parou sobre ela, apertando com o pé o utensílio molhado
contra o chão, entre os tornozelos da menina.
— Ah, sim? E o que vai dizer a ela?
Os olhos de Allen varreram a pele nua de Frances e ela procurou cobrir
o colo com as mãos.
— Não tem que estar aqui. Aqui é o lugar onde as meninas trocam de
roupa.
Mas Allen lançou uma gargalhada sinistra, que inundou de medo a
garota.
— Não gosto de você, Allen. Contarei o que fez.
— O ano todo esteve falando coisas de mim e me colocando em
problemas constantemente. Não é assim, garota idiota?
— Eu não, eu...
— Sim, fez exatamente o que eu disse e farei com que lamente, sua
estúpida.
Antes que pudesse escapulir, Allen saltou sobre ela com uma força que
a esmagou contra o chão. Frances gritou: — Contarei... — até que Allen lhe
pôs uma mão na boca e golpeou sua cabeça contra o chão. Os olhos de
Frances se dilataram de medo e ela abriu a boca em um grito sufocado contra
a palma da mão do rapaz.
— Se contar, vai se ver comigo, Frances — ele a ameaçou em tom
devastador. — Se contar, da próxima vez farei algo pior. A única coisa que
quero fazer agora é olhar.
Frances voltou a lançar um grito sufocado. Remexeu-se e chutou, mas
Allen era maior que ela e muito mais forte.
— Cale-se, Frances. Se gritar, virão todos correndo e eu direi que
desceu os calções diante de mim. Sabe o que acontece com as garotas que
baixam os calções diante dos rapazes?
Horrorizada, Frances ficou quieta, o coração martelando
dolorosamente, enquanto Allen colocava um joelho entre as suas pernas,
tratando de separá-las. Mas os calções molhados que aprisionavam os
tornozelos a ajudaram. Lutaram, nariz com nariz, até que, por fim, Allen
conseguiu lhe abrir os joelhos. O rosto que estava embaixo dele ficou da cor
do giz e a única cor restante era a dos olhos escuros, aterrados, de Frances.
Allen soltou o fôlego com um forte grito. Apertou o rosto da garota até que
um dente lhe cortou a bochecha e ele sentiu o sabor do sangue. Impulsionada
por um novo terror, Frances lutou mais ainda. Girando, frenética, esforçando-
se por respirar, sentiu que o corpo de Allen mudava de posição e que ele
subia com um puxão sua blusa molhada. Gritou outra vez sob a mão do
menino. O rosto de Allen se converteu em uma máscara de maldade.
— Grita e se arrependerá de ter gritado. Porque, se o fizer, todos
saberão que esteve fazendo coisas erradas comigo.
Movendo-se com a velocidade de uma serpente, agarrou-a pelo pescoço
e apertou, dominando-a totalmente. Os dedos da menina lutavam em vão com
as mãos que a estrangulavam, ao mesmo tempo em que Allen se colocou de
joelhos entre as pernas dela e se inclinou para trás. Um instante depois, algo o
levantava como a uma marionete e um punho lhe explodia no rosto e o
lançava contra o tronco de um álamo.
— Asqueroso, filho de uma égua.
Dessa vez, o punho lhe acertou a boca do estômago e o fez dobrar-se
como uma navalha. Com a rapidez de um relâmpago, ele foi levantado e
golpeado outra vez, mais outra vez, mais outra vez. Alguém gritou e sobre a
grama o sangue vertia. As crianças se aproximaram correndo. O ar se encheu
de soluços. Linnea gritou: — Kristian, pare ou vai matá-lo! Kristian, basta!
Terminou tão abruptamente como tinha começado.
Allen Severt tapava a cara ensanguentada com as mãos e olhava para
cima para Kristian, com os pés sobre ele como um Zeus indignado. Linnea
sustentava no colo Frances, que chorava muito. Libby Severt olhava
boquiaberta para seu irmão, horrorizada e incrédula. Raymond irrompeu na
cena com os punhos apertados.
— Afaste-se dele, Kristian! Isso cabe a mim.
— A mim também — interveio Tony, que chegava pisando nos
calcanhares do irmão. Se a situação não tivesse sido tão grave, seria cômico
ver Tony furioso, fechando os frágeis punhos, erguendo os fracos ombros
como se tivesse forças para algo mais que matar um mosquito.
— Meninos! Já é suficiente.
— Esse miserável insignificante, filho de uma porca do nariz chato
desgraçada, não esquecerá do dia em que pôs as mãos na minha irmãzinha —
exclamou Raymond, que agora era detido por Kristian. Mesmo assim, Ray
passou pelo primo e golpeou Allen com um chute no rosto.
Confiando a chorosa Frances aos braços de Patricia, Linnea interveio e
ficou de pé, enfrentando os três furiosos rapazes, antes que fizessem justiça
com as próprias mãos e se sujassem tanto quanto Allen.
— Cuidem de sua linguagem diante dos pequenos e basta! — embora
tremesse por dentro e sentisse os joelhos como gelatina, ela não os deixou
perceber. — Levante-se, Allen — ordenou. — Volte para a escola e me
espere lá e que Deus o ajude se não estiver lá quando eu chegar. Patricia,
ajude Frances a se secar e se vestir. Raymond, pode acompanhar sua irmã até
a escola. Kristian, abotoe a camisa e vá a nossa casa buscar Clippa para
Raymond e Frances. Os outros, troquem-se e recolham as marmitas do
almoço.
As rápidas ordens de Linnea contiveram todos, mas ela estava ainda em
estado de fúria quando, meia hora depois, irrompeu no jardim dos Severt e
caminhou até a porta principal. Libby a precedeu para dentro e Allen ia atrás,
gemendo, segurando o queixo, com o sangue coagulado em uma fossa nasal e
mais sangue seco nos dedos.
— Mãe — gritou Libby.
Um instante depois, apareceu Lillian Severt na arcada.
— Allen — ela cruzou correndo o espaço que a separava do filhinho
querido. — Oh, Senhor, querido, o que aconteceu com você?
— Recebeu exatamente o que merecia — disse Linnea, e prosseguiu
em tom frio. — Onde está o seu marido?
— Neste momento está na igreja, ocupado.
— Vá buscá-lo. Agora — Linnea gritou: esbofetearia a nariz de porco
se ela não a obedecesse.
— Mas, o rosto de Allen...
— Traga seu marido agora. Não irei repetir, traga-o ou chamarei a
polícia.
— Como se atreve...?
— Traga-o — berrou Linnea, dando um passo para cima da mulher,
mas ela viu alguma coisa nos olhos da pequena professora, retrocedeu dois
passos, branca como cera e, por fim, obedeceu. Correu, afastando-se da porta,
jogando sobre o ombro um olhar abominável para o nariz ensanguentado do
filho. Libby baixou o rosto, envergonhada. Quando voltaram o Senhor e a
Senhora Severt, Linnea não lhes deu tempo de cuidar do filho. Ocupou-se de
que estivesse sentado em uma cadeira de respaldo reto e ela ficou ao lado
dele, de pé, como um guarda da prisão. O rosto do menino estava desfigurado
e o olho direito quase fechado. Lillian fez um gesto para ir consolá-lo, mas
Linnea a deteve, ordenando: — Fique onde está ou chamarei a polícia. Bom,
Allen, agora fale.
Segurando o queixo. Allen balbuciou: — Não posso... dói tudo.
A professora lhe deu um empurrão que quase o atirou da cadeira.
— Eu disse para falar.
— Pare com isso agora, sua... sua... — Lillian Severt foi para cima de
Linnea, mas o reverendo lhe deu um puxão para trás e ela quase caiu sentada.
Allen baixou a cabeça e a escondeu entre os braços, sobre a mesa.
— Muito bem, direi eu então — Linnea perfurou os pais com um olhar
furioso. — Hoje, na excursão escolar, o seu filho atacou Frances Westgaard.
Baixou-lhe os calções e...
— Não o fiz — vociferou Allen, levantando-se e segurando o queixo,
gemendo de dor.
— Seguiu-a até o lugar onde as garotas trocavam de roupa e, quando
não havia ninguém por perto, atacou-a. Baixou-lhe os calções e ameaçou
voltar a fazê-lo, e a fazer algo pior caso ela se atrevesse a contar. Ele a tinha
esmagada contra o chão, presa pelo pescoço quando os encontramos.
— Não acredito em você — gritou Lillian Severt, com os olhos
arregalados.
— Você não acreditou em mim da última vez que vim lhe falar, nem na
anterior. Não só não acreditou em mim, mas também chegou ao ponto de
insinuar que a culpa da conduta de Allen era minha. Nega-se a entender que
os vandalismos de Allen não são simples travessuras infantis e que é
necessário tomar medidas para ajudá-lo. Desta vez, penso que não terá
alternativa. Toda a escola foi testemunha. Quando aconteceu, todas as
crianças os estavam procurando. Diga a eles, Libby.
— Eu... ele...
Os olhos amedrontados de Libby passaram do irmão à professora.
— Não tem por que temer — disse Linnea, falando calmamente pela
primeira vez ao ver que Libby tinha mais medo da vingança de seu irmão que
de qualquer coisa. — Sabe que não dizer a verdade é como mentir, não é,
Libby?
— Mas estou assustada. Se eu disser, ele me machucará e colocará fogo
no rabo do meu gatinho... com óleo na cauda.
Por fim, Martin falou:
— Quem machucará você, Libby? E quem colocará fogo no rabo de
seu gato?
O reverendo deu um passo à frente e tomou a mão de sua filha.
— Allen sempre me faz mal se faço algo que o deixe zangado...
Lillian Severt interrompeu a filha: — Martin, como é possível que se
preocupe com ela enquanto Allen está com o nariz sangrando?
— Deixe-a falar — exigiu Martin e incentivou a filha. — Allen
machuca você? Como?
— Belisca-me e me puxa o cabelo. E disse que mataria o meu gato,
como eu já disse, o que é muito pior. Disse que lhe jogaria óleo na... na...
Angustiada, Libby baixou a cabeça.
— Que absurdo... — Lillian Severt novamente interrompeu a filha.
— Cale-se! — rugiu Martin, voltando-se para sua esposa. — Fez o que
quis com ele até agora, mas acabou. Se eu tivesse intervindo há anos, isto
jamais teria acontecido.
Voltou-se com doçura para Libby e perguntou: — Tudo o que a
Senhora Westgaard disse é verdade, então?
— Sim — confessou a menina. — Sim, sim — ela repetiu e de seus
olhos brotaram grossas lágrimas. — Allen estava estendido sobre a pobre
Frances, estrangulando-a e... ela tinha os calções abaixados... e... e... todos da
escola viram quando Kristian afastou Allen e lhe deu uma boa sova e
Raymond também, e Tony queria lhe bater também, mas a Senhora
Westgaard não deixou. Quem dera tivesse deixado! Queria que Raymond
tivesse lhe batido mais, lhe quebrado os dentes... porque ele é... é malvado e
odioso e sempre molesta todos e os insulta, embora não lhe façam nada. Faz
mal a todo mundo só por... desprezo.
Quando rompeu em pranto e se refugiou nos braços do pai, Linnea
tornou a falar: — Senhor e Senhora Severt, temo que desta vez haja sérias
repercussões e consequências. Vou recomendar ao Diretor Dahl que Allen
seja oficialmente expulso da escola a partir de hoje. E lhes advirto para que
não permitam que Allen faça mal a Libby por ter dito a verdade. O pai de
Frances também exigirá reparação e... ele pode acionar a polícia.
O rosto da Senhora Severt estava cinzento e, pela primeira vez, não
teve nada a dizer em defesa de seu menino mimado. Enquanto Linnea saía da
casa, Allen uivava de dor sem que ninguém se compadecesse dele. Ela foi
diretamente à casa de Ulmer e de Helen e encontrou Frances já na cama,
mimada por todos os seus irmãos. Um momento depois de Linnea chegar,
chegou Theodore. Entrou sério e anunciou: — Kristian me contou tudo.
Como está a pequena?
Nos momentos de crise, uniam-se com absoluta naturalidade. Sem
vacilações, sem explicações. Ao ver Teddy aparecer junto com Kristian, os
olhos de Linnea se encheram de lágrimas. Já fazia uma hora que agia graças à
corrente de adrenalina, mas agora que Teddy estava ali e o incidente tinha
terminado, sentiu-se em pedaços.
— Você está bem? — perguntou-lhe Teddy, voltando-se para ela.
Linnea assentiu, trêmula. Theodore abriu os braços e Linnea se
refugiou neles como um filhote debaixo das asas da mãe.
— Gosto muito que esteja aqui, Teddy — sussurrou ela contra o peito
do marido.
A camisa de Theodore estava manchada sob os braços, ele cheirava a
suor e a cavalos, mas ela nunca o tinha amado tanto nem tinha estado tão
agradecida por seu apoio quanto agora.
— Desta vez vamos acabar com aquele pequeno canalha — prometeu
com a boca grudada em seu cabelo. Poucas vezes usava termos duros e
jamais diante de Kristian e, por ouvi-lo, Linnea compreendeu o grau que a
sua preocupação alcançava.
— Oh, Teddy, não incentive o Ulmer. Ele disse que matará aquele
garoto e não quero meu marido na cadeia.
— Não será necessário matá-lo, basta que ele fique encarcerado —
respondeu Teddy e acrescentou: —Trouxe a carroça, pois imaginei que
necessitaria que eu a levasse à casa de Dahl.
Linnea ergueu os olhos e sorriu para ele com ternura: — Se aceitar
você me tomará por uma flor de estufa?
Então, Theodore fez algo que jamais tinha feito até aquele momento:
beijou-a nos lábios diante de todos.
Raymond e Kristian negaram-se a ficar de fora da discussão e, além
disso, insistiram em contar a história tal como a tinham visto para o diretor
Dahl. Possuíam idade suficiente para participar e não se moveriam até que
lhes assegurassem que Allen Severt receberia seu devido castigo.
Durante o restante do dia, tudo foi esclarecido e antes do anoitecer já
havia se chegado a um veredicto. Allen Severt foi oficialmente expulso da
escola e não seria permitido que ele assistisse à cerimônia de graduação. O
diretor ainda procurou o senhor e a senhora Severt, exigindo que o filho
ficasse em prisão familiar até que aprendesse a conviver em sociedade, ou o
entregaria às autoridades ou aos homens da família Westgaard, o que seria
muito pior. Na reunião seguinte do conselho escolar se decidiria se iriam
permitir que frequentasse os próximos anos. As crianças riram ao saber que,
se permitissem que Allen voltasse, sem dúvida estaria não só muito mais
submisso, mas também mais magro, porque o primeiro murro de Kristian lhe
tinha quebrado o queixo e teriam que consertá-lo com arame e ele deveria
permanecer com isso durante seis semanas.
A cerimônia de graduação da oitava série foi realizada no pátio da
escola na noite da última sexta-feira de maio. Na ocasião, o sol brilhava e
salpicava entre as folhas dos álamos um tom de ouro e as pombas arrulhavam
com suas tenras asas. O aroma da terra fértil se erguia dos campos vizinhos,
onde o trigo brotava como a primeira penugem de um rapaz.
Os pais chegaram em suas carroças, trazendo outra vez as cadeiras da
cozinha, que instalaram sobre a grama pisoteada do jardim da escola em
elegantes filas. Os meninos de quatro a cinco anos brincavam de correr entre
os primeiros bancos, imaginando que eram tão grandes quanto os seus
irmãos.
Kristian pronunciou o discurso dos que se graduavam, com a devida
seriedade. Falou da guerra na Europa e da responsabilidade da nova geração
na busca da segurança e da paz para toda a humanidade. Quando encerrou,
Linnea, com os olhos marejados, dirigiu as crianças, que cantaram a canção
América, The Beautiful. O Diretor Dahl pronunciou um empolado discurso e,
ao terminar, surpreendeu Linnea, declarando que ela tinha exercido uma
liderança primorosa, que tinha feito inovações dignas de serem seguidas e
que sua conduta pessoal fora exemplar. E seguiu dizendo que tanto tinha sido
assim que o Conselho de Educação do Estado tinha lhe pedido, em nome
deles, que lhe concedesse um prêmio por ter sido a primeira em todo o Estado
a organizar uma classe oficial de “Tarefas domésticas” em uma escola; por
sua habilidade em organizar os esforços de guerra, por manter a sensatez
durante a nevasca e por sua previsão ao ter tido rações de emergência
preparadas de antemão. O senhor Dahl acrescentou, com um sorriso
malicioso: — Excetuando a opinião de algumas das crianças com respeito às
uvas-passas como rações de emergência — ouviram-se risadas por parte do
público e o diretor continuou, entusiasmado: — E por último, o Conselho
Estatal de Educação felicita a Senhora Westgaard por ter obtido o que
nenhum outro professor tinha feito até agora, persuadir os pais dos alunos
desta escola a estender o ano escolar para nove meses completos, tanto para
meninas quanto para rapazes de todas as idades.
Linnea corou ao se levantar para ocupar o estrado, mas tratou de
dissimular o nervosismo. Contemplando os rostos familiares, evocando as
recompensas e sofrimentos dos últimos nove meses, sentiu um nó na
garganta. Não havia muitos entre os presentes que ela não pudesse dizer que
amava. Também eram poucos os que não devolviam esse amor.
— Meus queridos amigos — começou fazendo uma pausa para olhar
para os rostos iluminados pelo sol. — Por onde começar?
Agradeceu-lhes pelo ano de maravilhosas experiências, pelo apoio e
pela compreensão e amizade. Externou sua gratidão por as famílias abrirem
suas casas e seus corações e por darem a ela um pedaço de cada um deles.
Anunciou que, embora desejasse voltar com gosto no outono seguinte para
ensinar novamente, ficaria em casa para cuidar de seu filho com Theodore.
Caso a guerra não terminasse, no outono ela poderia auxiliar o novo professor
ou professora na organização de um leilão na época da colheita. Por último,
com um nó na garganta, pediu-lhes que todos orassem pela paz mundial e
lhes informou que no dia seguinte Kristian partiria para o posto militar
Jefferson Barracks, no Missouri, como voluntário do exército. Disselhes
obrigada pela última vez com lágrimas nos olhos e devolveu o programa para
o diretor Dahl, para que ele entregasse os certificados de grau e os diplomas
do oitavo ano.
Depois serviram cidra de maçãs e bolachas e Linnea recebeu abraços de
quase todos os pais presentes e todos os seus alunos lhe disseram que oxalá
ela voltasse no ano seguinte. Quando levaram os bancos de novo para dentro
e os empilharam contra as paredes laterais, já era a hora do crepúsculo.
Kristian tinha ido com Patricia, mas Nissa e Theodore a aguardavam na
carroça.
De pé na entrada do vestíbulo, olhando para a sala de aula às escuras,
com as carteiras encostadas nas paredes, a bandeira envolta em papel, o
quadro-negro e o tubo do fogareiro limpos, Linnea teve a impressão de que
deixava ali uma pequena parte de seu coração. Ah, o aroma daquela sala!
Jamais o esqueceria, um pouco poeirento, um pouco com cheiro de mofo, o
odor de cabeças suadas e, talvez, um toque do aroma da sopa da sexta-feira...
ela jamais a esqueceria.
— Pronta? — perguntou Theodore atrás dela.
— Acredito que sim.
Mas ao voltar seu olhar para a escola, seus ombros baixaram um pouco.
Theodore a abraçou e a estreitou contra seu peito.
— Sentirá falta deles, não é?
Linnea assentiu, triste.
— Eu aprendi e cresci muito aqui.
— Eu também — disse Theodore.
— Oh, Teddy...
Procurou a mão do marido e a levou aos lábios. O crepúsculo caiu
sobre os ombros dos dois. Lá fora, esperavam os cavalos, que agora eram
Nelly e FIy. Dentro, chegaram flutuando do passado as vozes das
lembranças: as das crianças, a de John, a de Kristian, as dos peões, as deles
mesmos...
— Dentro de seis anos um dos nossos filhos frequentará a escola —
refletiu Theodore. — E poderemos lhe contar sobre quando sua mãe era a
professora.
Linnea lhe sorriu por cima do ombro e ficou nas pontas dos pés para
beijá-lo. Theodore a segurou pela cintura.
— Sei o quanto gostaria de voltar e eu não me incomodaria, mas sei
também que seria puxado para você por causa do nosso bebê.
— Oh, amo você, Theodore Westgaard — entrelaçou os dedos na nuca
do marido.
— Eu também te amo, pequena senhorita — beijou-lhe a ponta do
nariz. — E mamãe está esperando na carroça e assistindo a tudo — sorriu. Há
muito ele não sorria.
Depois de um último olhar, fecharam as portas e foram de braços dados
até a carroça. Era uma noite sem vento. A Ursa Maior derramava sua luz no
céu setentrional e a lua em quarto crescente iluminava o mundo como uma
chama azul. Tinham chegado os primeiros grilos, que cantavam dissonantes
nas sombras e se calavam por um instante quando passava um cavalo, mas
logo retomavam suas estridulações, os machos chamando a atenção das
fêmeas.
A alguns quilômetros dali, Clippa trotava sem pressa por um caminho
gramado entre dois trigais, com a cabeça encurvada, balançando a garupa.
Sobre seu lombo morno, Kristian mantinha as rédeas frouxamente entre os
dedos e Patricia se aconchegava a ele pela cintura. Assim, sem rumo,
andavam há uma hora, resistindo a enfrentar a despedida final.
— Tenho que voltar para casa — disse Kristian, mas os braços da moça
o apertaram.
— Não, ainda não — disse ela.
— É tarde.
— Ainda não — sussurrou Patricia, veemente.
Sentiu sob as palmas os batimentos do coração dele, firmes e seguros.
Entre as coxas, ela sentia o roçar das pernas ao ritmo dos cascos sobre a
grama.
— Já quase chegamos ao rio — disse Kristian. O ramo de um salgueiro
negro tocou o rosto dele e o rapaz se abaixou para evitá-lo, fazendo com que
Patricia se inclinasse junto com ele.
— Pare por um minuto — pediu ela.
Kristian puxou as rédeas. Clippa obedeceu imediatamente e baixou a
cabeça enquanto os dois que ela levava sobre seu lombo permaneciam
sentados quietos, escutando. Ouviam o gorjeio da água a certa distância e o
coaxar de duas rãs-touro. Kristian jogou a cabeça para trás para contemplar as
estrelas. Chocou-se com a de Patricia, e então sentiu o fôlego morno da moça
em sua camisa, esquentando-lhe a omoplata. Suspirou e fechou os olhos,
cobrindo o braço dela com o seu.
— Não devíamos ter parado.
Patricia lhe beijou outra vez a omoplata.
— Pode morrer, Kristian.
— Não vou morrer.
— Pode acontecer alguma coisa com você e então eu não voltaria a te
ver, jamais.
— Tampouco quero ir.
— Por que vai, então?
— Não sei. É algo dentro de mim que me empurra. Mas tenho a
intenção de voltar para me casar com você.
Ele percebeu que atrás dele Patricia se erguia.
— Casar-se comigo?
— Pensei nisso. Você não?
— Oh, Kristian, fala sério?
— Claro que falo sério — os braços da moça lhe rodeavam a cintura e
seus seios lhe esquentavam a pele através da camisa de algodão. — Isso quer
dizer que me aceitaria?
— Claro que eu te aceitaria. Casar-me-ia hoje mesmo com você, se me
permitissem isso.
Esfregou suas mãos na parte de cima das coxas de Kristian, onde as
calças se esticavam sobre os músculos firmes. De repente, Kristian passou
uma perna sobre a cabeça de Clippa e desceu. Olhando para cima, perguntou
para Patricia: — Ainda não terminou a escola. Será melhor que primeiro
acabe com isso, não acha?
— Tenho quinze anos. Nesta idade, minha avó já estava casada fazia
um ano — embora a luz da lua não iluminasse muito seu rosto, Kristian
adivinhou a expressão de seus olhos sem necessidade de vê-los.
— Venha, vamos caminhar.
Pegou-a pela cintura, ela se apoiou em seus ombros e, quando desceu
do cavalo, seus corpos se roçaram e nenhum dos dois se moveu. A noite
palpitava ao redor. Os dois corações batiam descompassados. A respiração se
tornou rápida e pesada.
— Oh, Kristian, vou sentir a sua falta — suspirou a moça.
— Também sentirei a sua.
— Kristian...
Ergueu-se para ele, arqueando o pescoço e os braços, apertando-se
contra ele. Quando seus lábios se encontraram, foi com o desespero que só as
despedidas trazem. Os corpos, flexíveis e tensos, entregavam-se na iminência
da maturidade e eles sentiam uma enorme necessidade de se possuírem antes
da separação do dia seguinte. Os braços do rapaz a apertaram com força e sua
língua provocou nela uma reação. As mãos de Kristian começaram a
percorrer o corpo dela, temerosas da perda de algo que ainda não tinham
ganhado.
Encontrou os seios firmes e pequenos, e a ergueu, trazendo a
convexidade feminina contra seu corpo duro, desperto. Kristian iniciou
movimentos ritmados contra ela, que respondeu, até chegar a um ponto em
que já não podiam mais se controlar. Kristian se ajoelhou, arrastando-a com
ele e ambos caíram sobre a grama espessa e seca, que sussurrava debaixo
deles enquanto somavam um novo ritmo palpitante ao da noite de verão que
os rodeava. Quando a rítmica carícia voltou a ficar incontrolável, Kristian se
afastou. — É errado.
Patricia o atraiu outra vez para ela.
— Uma vez... só uma vez, se por acaso não voltar mais.
— É pecado — repetiu Kristian.
— Contra quem?
— Oh, Deus, não quero deixá-la grávida.
— Não deixará. Oh, Kristian, Kristian, eu o amo. Prometo que
esperarei por você, por muito que você demore.
— Oh, Pat... — o corpo da moça era como um mel que o atraía. Os dois
corpos se envolveram em misteriosa harmonia, que eles sequer tinham
imaginado. Girou para um lado e a tocou em todas as partes, descobrindo-a.
Patricia era a resposta para as inumeráveis perguntas que ele se fazia. —
Também a amo... é tão suave... tão morna...
Patricia roçou com os nódulos da mão a parte onde se encerra o orgulho
masculino, descobrindo-o.
— E você é tão duro e morno...
Despiram um ao outro, mas só pela metade, vacilantes. Os corpos se
buscaram com a timidez e as incertezas das primeiras vezes. Mas quando a
carne se uniu à carne, também se uniram suas almas, enlaçadas pela promessa
e o rogo pelo futuro.
— Amo-a, não se esqueça disso — disse Kristian mais tarde diante da
porta da casa da jovem. Patricia soluçava muito para lhe responder e o que
ela fazia era agarrar-se a ele. — Diga-me que me ama mais uma vez antes
que eu vá — pediu ele, assustado por ter estado tão impaciente para crescer,
sabendo agora que doía tanto, perguntando-se por que queria deixar esse
lugar onde estavam todas as coisas que ele amava.
— Amo vo... cê, Kris... tian.
Ele a atraiu para si, segurando-lhe a cabeça com as grandes mãos. —
Assim se lembrará de mim — ele a beijou profundamente. — Ore por mim.
— Fa... rei... pro... me... to.
Kristian deu um beijo duro, fugaz, girou sobre os calcanhares e montou
em Clippa antes de se arrepender outra vez, esporeando a égua até que se
lançou a todo galope sob a lua de verão.
Acabava de amanhecer. A avó esperava à porta com seis sanduíches de
salsicha envoltos em papel encerado. Kristian olhou o que ela lhe colocava
nas mãos.
— Avó, não necessito disso.
— Leve-os — disse ela, chorosa, tentando conter o tremor do queixo.
— No exército não há ninguém que saiba fazer uma boa salsicha.
Kristian aceitou as salsichas e também a nova fornada de fattigman.
— E agora, arre! Vá depressa e se encarregue daqueles alemães, assim
poderá voltar para sua pátria, pois aqui é o seu lugar.
O pequeno coque de cabelo cinza estava em seu lugar, os óculos
enganchados atrás das orelhas, o avental limpo e engomado. O neto não se
recordava de tê-la visto jamais de outra maneira durante todos os anos em
que viveram na mesma casa. O sol matinal iluminava os pelos do queixo da
idosa, convertendo-os em um suave veludo, e a luz do sol se refletia nos seus
óculos ovalados. Kristian a atraiu com tanta força para si que esteve a ponto
de romper os velhos ossos.
— Adeus, avó. Eu a amo.
Ele nunca o havia dito e, naquele momento, Kristian descobriu que era
verdade.
— Também o amo, rapaz tolo. E agora, ponha-se em marcha. Seu pai
está esperando você.
Ele chegou à vila do Álamo no assento da carroça de duplo assento,
cercado por seu pai e por Linnea, com os sanduíches e as bolachas sobre as
pernas. No povoado, contemplou as construções como se fosse a primeira
vez. Chegaram muito depressa à estação. Muito rapidamente compraram o
bilhete. O trem apareceu muito rápido, fazendo soar o apito. Deteve-se junto
a eles com estrépito metálico e os envolveu em nuvenzinhas brancas de
vapor, enquanto eles, valentes, se esforçavam para conter o choro. Linnea
ajustou, sem necessidade, o colarinho de Kristian.
— Em sua mala há mais meias três quartos do que poderiam chegar a
usar dois soldados. E também coloquei um par de lenços a mais.
— Obrigado — respondeu Kristian. Seus olhares se encontraram e eles
se estreitaram em um forte abraço, separando-se com um rápido beijo.
— Amamos você — sussurrou-lhe a mulher contra seu queixo. —
Cuide-se, Kristian.
— Sim. Eu me cuidarei. Tenho que voltar para conhecer minha irmã ou
irmão.
Deu as costas com o rosto empapado pelas lágrimas e olhou para
Theodore. Jesus, Maria e José... seu pai estava chorando.
— P...
Com o rosto contraído pela dor, Theodore apertou o filho contra seu
largo peito forte. Caiu-lhe o chapéu de palha e ninguém notou. O condutor
gritou: — Todos a bordo.
O pai agarrou o corpo vigoroso do filho, rogando que retornasse do
mesmo modo.
— Mantenha a cabeça baixa, rapaz.
— Sim, pai, farei isso. Vol... tarei... po... de estar se... seguro.
— Amo você, filho.
— Também o amo — Kristian murmurou.
Quando Kristian se afastou, Linnea e Theodore choravam. Kristian
voltou e ele e o pai caíram uma vez mais num abraço, apertando-se,
aferrando-se aos respectivos pescoços. Quando adultos, nunca se beijaram e
os dois tinham consciência de que, talvez, nunca voltassem a ter outra
oportunidade. Foi Theodore que se inclinou e beijou o filho no rosto, antes
que o moço desse a volta e entrasse no trem.
O trem começou a se mover, ganhando velocidade, permitindo-lhes um
breve vislumbre de Kristian pelo guichê antes de sumir de vista. O passar do
trem agitou o ar estival, levantando o pó e as saias de Linnea, e Theodore a
ajudou a contê-la. Ainda bem que tinha o que fazer, pois o nó em sua
garganta era tão grande que ele temia recomeçar a soluçar. Linnea apertou o
braço do Teddy contra ela e tratou de pensar em algo para dizer: — Será
melhor voltarmos. Você tem que semear o trigo.
O trigo, o trigo, sempre o trigo. Mas agora tinham um motivo concreto
para se preocupar, tinham que fazer com que o pão continuasse chegando à
Europa.
CAPÍTULO 25
ISABELLE LAWLER

Ah, aquele verão, aquele interminável verão que parecia se arrastar, à


medida que a guerra na Europa absorvia meio milhão de recrutas e os
submarinos alemães afundavam barcaças civis e expulsavam pesqueiros nas
costas do Leste da América do Norte...
A última aquisição para a sala da casa dos Westgaard era um
resplandecente rádio de mogno Tru Phonics, em volta do qual se reunia a
família todas as noites para escutar as notícias do front nas vibrantes
transmissões a partir de Yankton, na Dakota do Sul.
Linnea se assustou quando ouviu que o limite de idade para se alistar se
estendera, e era agora entre os dezoito e os quarenta e cinco anos. Quase
todos os homens que ela conhecia estavam dentro daquele parâmetro: Lars.
Ulmer, Trigg... Theodore. Por sorte, os fazendeiros estavam excluídos, mas
ela compreendeu que inclusive seu pai podia ser convocado. Na igreja, onde,
na bandeira que indicava os serviços, luzia outra estrela azul, orou com mais
ardor, não só por Kristian e por Bill, mas também para que não convocassem
seu pai. Se ele fosse para a guerra, como sobreviveria sua mãe?
A pobre Judith, bendita, com um marido que sempre havia possuído
uma loja com mercadorias frescas e enlatadas à disposição, tinha inventado a
Horta da Vitória. Mas suas cartas estavam cheias de queixa a respeito da tal
horta. Odiava cada minuto que passava ajoelhada entre sementes e larvas.
Queixava-se de que as sementes atraíam pequenas mariposas e que pareciam
uns queijos suíços. As ervilhas cresciam a tal velocidade que nenhum mortal
podia manter o ritmo e os tomates contraíam pragas.
Em sua resposta, Linnea lhe aconselhou a que deixasse a Horta da
Vitória nas mãos de outra pessoa e que continuasse com os outros esforços de
guerra para os quais era mais apta. Enquanto isso, a própria Linnea aprendia
com Nissa os pormenores do cultivo de uma horta. Juntas plantaram,
arrancaram ervas daninhas, colheram e fizeram conservas. Jamais imaginou
que um só frasco de perfeitas e douradas cenouras reluzindo como moedas
sob a tampa de zinco desse tanto trabalho. À medida que transcorria o verão e
ela aumentava de peso, o trabalho se tornava mais árduo. Era difícil se
agachar e, ao se endireitar, enjoava. Se ficasse muito tempo no sol, manchas
negras apareciam diante dos seus olhos. Se ficasse de pé muito tempo,
inchavam-lhe os tornozelos. E ela perdeu a vontade e a agilidade para fazer
amor.
Às noites, depois de escutar o rádio e de se afligir pensando onde e
como estaria Kristian, não estava em condições de oferecer a Theodore o
consolo que ele achava em seu corpo. Sentia-se culpada, porque ele, mais do
que nunca, precisava desse alívio momentâneo. Não cessava de se preocupar
com o filho, sobretudo nas longas horas solitárias, quando cruzava os campos
atrás dos cavalos. As últimas notícias de Kristian eram de que ele havia
completado o treinamento básico e tinha sido atribuído à sétima divisão, ao
comando do general William M. Wright, e de que partiriam para a França em
onze de agosto, depois de apenas oito semanas de preparação sobre o solo
dos Estados Unidos. Ainda que com o treinamento suplementar recebido na
França, como era possível que um rapaz fazendeiro, que até então nunca
precisou lutar com nada mais hostil que um cavalo espantado, com dar uma
sova em Allen Severt, ficasse preparado para o combate em tão pouco
tempo?
Depois, com o fim do verão, souberam que outra ameaça, mais odiosa
que os lança-chamas e o gás mostarda, cruzava o oceano, causando
preocupação não só para Theodore e para Linnea, mas para todos os pais,
mães, esposas e noivas dos homens que lutavam na Europa. Este era um
inimigo que não vinha em tropas. Atacava tanto os norte-americanos como os
alemães, italianos e franceses, acometendo todos por igual. Com absoluta
imparcialidade, abatia o herói e o covarde, o comandante perito e o novato e
os deixava espirrando, tremendo, morrendo de febre nas trincheiras do Maine
e no campo do Flandres. A ameaça era a gripe espanhola, a mortal gripe
espanhola, que matava em uma semana. Desde que a notícia chegou às costas
da América, a inquietação e a angústia de Theodore alcançaram alturas
imensas. Ele se tornou nervoso e calado. E quando a mesma epidemia chegou
à América do Norte e começou a se estender para o Oeste através das
cidades, a notícia afetou a todos.
Enquanto isso, Linnea estava enorme. Todos os dias se olhava no
espelho e se via tão pouco atraente que não fazia diferença que Teddy lhe
prestasse tão pouca atenção nos últimos tempos. Adorava ir à casa de Clara e
segurar nos braços a pequena Maren, dizendo a si mesma que essa seria a sua
compensação e que valeria muito a pena. Certo dia, quando Maren estava
adormecida em seu berço e Clara esticava a massa para um bolo de maçãs
sem açúcar, Linnea se sentou perto, em uma cadeira, como uma baleia
encalhada, como ela dizia.
— Sinto-me como um elefante gordo, feio e velho — gemeu. Clara se
limitou a rir.
— Não é gorda, tampouco feia, e certamente não é velha. Mas se isso a
consola, na reta final todas nos sentimos assim.
— Você também? — perguntou Linnea, surpresa, pois sempre achara
Clara uma linda gestante. Para Linnea, até no fim da gravidez, Clara sempre
lhe tinha parecido radiante de beleza e jamais perdia sua alegria.
— Claro que sim. Trigg brincava um pouco mais comigo e me fazia rir
para levantar meu ânimo.
O de Linnea decaiu mais ainda.
— Teddy não faz nada disso.
— Esteve um pouco resmungão ultimamente, não?
— Resmungão?! Tem que ter uma palavra pior para o comportamento
dele.
— O que acontece é que tem muito no que pensar. Kristian e a criança
que está por vir e a debulha que se aproxima.
— É mais que isso, Clara. De noite, na cama, ele quase não me toca.
Sei que, faltando só seis semanas para que nasça o bebê, não podemos fazer
nada, mas ele nem sequer me abraça, nem me beija, nem... comporta-se como
se não pudesse me suportar...
Linnea baixou a cabeça e uma lágrima impulsiva rolou por sua face,
coisa que nos últimos tempos fazia com regularidade. Clara deixou a colher,
limpou as mãos no avental e se aproximou para consolar a cunhada.
— Não é você, Linnea. Assim são os homens. Se não podem ter tudo,
não querem nada. E ficam azedos sem isso. Teddy está se comportando como
todos os outros. Então, tire isso da cabeça, de que está gorda e feia.
— Mas estou gorda e feia! Ando por aí como um peru de Natal e não
faço outra coisa senão chorar e... Oh, Clara, acredito que ele já não gosta
mais de mim — Linnea soluçou. Clara esfregou os ombros estremecidos da
amiga.
— Isso é uma tolice, você sabe. Claro que ele a ama. Espere só até a
criança nascer e verá.
Mas antes que chegasse a criança, chegou outra pessoa que levantou o
ânimo de Teddy e o fez esquecer, por um tempo, as preocupações: Isabelle
Lawler. A carroça-cozinha entrou se balançando pelo pátio e Linnea sentiu
que lhe atavam as tripas. Isabelle era a mesma de sempre: grandalhona,
falante e viçosa. O mesmo cabelo vermelho. A mesma cara que parecia uma
terrina de pudim meio comida. A mesma voz rude. A cozinheira era o mais
afastado de uma dama que Linnea já tinha visto. E mesmo sem estar grávida
pesava uns vinte quilos a mais que ela. Então, por que o sorriso de Theodore
assim que a viu? Do momento em que chegaram Isabelle e a equipe da
colheita, o mau humor do marido desapareceu. Sorria mais, ria com os peões
e comia na carroça, como no ano anterior. Dizia que era o que os
trabalhadores esperavam dele. Mas ela estava convencida de que tinha outros
motivos.
Na noite do primeiro baile da colheita, Linnea contou as danças do
marido: dançou quatro vezes com Isabelle Lawler. Quatro vezes! E como
Linnea não se fixava nas outras mulheres, não percebeu que Theodore
dançou outras tantas peças com Clara, com Nissa e com muitas outras. Só
sabia que cada vez que o marido levava a cozinheira para a pista,
acrescentava-se sua sensação de estupidez e ela se sentia incomodada e com
vontade de chorar. Estava de pé de um lado da pista quando Clara a
encontrou.
— Nossa! Que calor faz aqui...
— Teddy está bastante quente... isso eu posso ver. E parece que a cada
minuto está mais quente — comentou Linnea, totalmente azeda.
Clara olhou para o casal que dançava e logo olhou de novo para a
cunhada.
— Isabelle? Oh, tesouro, não seja tola. Só está dançando com ela, nada
mais.
— É a quarta vez.
— E o que tem isso? Não significa nada.
— Diga-me, Clara, por favor, o que ele vê nela? Olhe para ela. Com
aqueles dentes ela poderia comer milho cru e seu cabelo parece um montão
de feno incendiado. Mas desde que chegou aqui, Teddy sorri mais que nos
últimos dois meses.
— Teddy sempre fica contente durante a debulha. Todos os homens
ficam.
— Claro. Quantas vezes Trigg dançou com a abóbora gigante? Ou
Lars?
Clara riu:
— Linnea, está exagerando. Teddy adora dançar e sabe que você agora
se cansa com facilidade, isso é tudo.
E embora Clara pretendesse consolar Linnea com suas observações, a
única coisa que conseguiu foi abatê-la ainda mais.
— Tenho vontade de me aproximar e dizer àquela ruiva barril de graxa
que procure seu próprio maldito homem e que deixe o meu em paz.
— Se isso vai fazer com que se sinta melhor, por que não faz?
Quando Linnea olhou para Clara, viu que ela tinha um sorriso astuto e
não pôde deixar de responder com outro.
— Oh, claro, e dar motivos para comentários por vinte quilômetros ao
redor?
— Ela esteve vindo há... quanto tempo? Cinco anos? Sete? Já não me
recordo mais. Não acha que se houvesse algo entre eles as pessoas estariam
comentando muito antes disso?
A irritação de Linnea se acalmou um pouco, mas naquela noite, mais
tarde, quando Theodore se deitou junto a ela, percebeu imediatamente a
diferença nele. Ficou de lado, de frente para ela, e apoiou uma das mãos no
quadril da esposa.
— Venha aqui — sussurrou.
— Teddy, não podemos...
— Sei que não — replicou, apoiando-se em um cotovelo para beijá-la,
acariciando-lhe o quadril. Tinha estado bebendo cerveja e o sabor perdurava
em sua língua. Linnea aproximou-se dele. O ventre distendido dela se apoiou
no dele, e Theodore tomou-lhe a mão e a levou à sua ereção, fazendo com
que ela a segurasse. Linnea soube que ele estava excitado desde antes de se
deitar e lhe perguntou, magoada: — Quem provocou isto?
— O quê?
— Pergunto quem provocou isto... eu ou Isabelle Lawler?
A mão parou. Sentiu-o crispar-se na escuridão.
— Isabelle Lawler? E isso o que significa?
— Faz semanas que você se encolhe em seu lado da cama e agora,
depois de ter dançado com ela a noite toda, aproxima-se de mim, duro como
um pau, e espera que eu me encarregue de você? Como se atreve, Theodore
Westgaard?
Afastou o membro como se este a repugnasse e se estendeu de costas.
Ele também se deitou de costas, zangado.
— Isabelle não tem nada a ver com isso.
— Ah, não?
— Vamos, Linnea, a única coisa que fiz foi dançar com ela.
— Quatro vezes. Quatro vezes, Theodore!
Theodore afofou o travesseiro e se atirou em cima, dando-lhe as costas.
— Mulheres grávidas — murmurou, aborrecido.
Linnea o agarrou pelo braço e tentou fazê-lo se virar para ela, mas com
pouco êxito.
— Não me venha com essa de “mulheres grávidas”, Teddy, você me
pôs neste estado. E depois de ter ficado sorrindo toda a semana como um...
um hindu que acaba de adquirir sua décima quinta esposa.
— Décima terceira… — ele ergueu a cabeça do travesseiro, olhou-a
por sobre o ombro, soltou o braço do apertão e se recostou outra vez, dando-
lhe as costas.
— Durma, Linnea. Não tem motivos para ficar com ciúmes. Nestes
últimos meses você não se sente bem.
Desta vez, deu-lhe um murro no braço.
— Não vá...
— Ai!
— ...agir como o texugo comigo, Theodore Westgaard. Vire-se para
mim, porque vamos esclarecer as coisas. Não me diga que não há nada entre
Isabelle Lawler e você, porque não acredito.
Theodore juntou as mãos sob a cabeça, fixou os olhos no teto,
carrancudo, e não respondeu.
— Confesse — insistiu, sentando-se junto a ele.
— Confessar o quê?
— O que há entre você e aquela mulher?
— Já te disse que não há nada.
— Mas houve, não é verdade?
— Linnea, está imaginando coisas.
— Não me trate como uma menina, Theodore.
— Então não se comporte como uma. Eu disse que não havia nada e
falo sério.
— Vejo como ela gosta de andar perto de você. E na sua frente é a
única vez em que não amaldiçoa. Esta noite, antes do baile, você passou
perfume e cantarolou.
— Sempre passo perfume antes de ir ao baile.
Será que fazia mesmo? Antes ela nunca tinha presenciado os
preparativos para um baile. Virou-se de costas e colocou a roupa de cama sob
os braços. Tirando de um só puxão a manta, contemplou a luz da lua na
parede oposta, fortaleceu-se para aceitar algo que ele pudesse lhe dizer. Com
uma voz mais suave, ela disse: — Pode me falar sobre isso, Teddy, e prometo
que não me zangarei. Sou sua esposa e tenho o direito de saber.
— Linnea, por que insiste com isto?
— Porque você sabe que foi o primeiro para mim.
— Você já sabia que antes estive com Melinda.
— Isso é diferente: ela era sua esposa.
Theodore pensou em silêncio por alguns minutos e prosseguiu: —
Suponhamos que fosse verdade. Suponhamos que tenha havido toda uma fila
de mulheres. De que serviria a você saber agora?
Linnea voltou a cabeça para ele e lhe falou com sinceridade: — Entre
marido e mulher não teria que haver segredos.
— Todos temos direito a ter os nossos segredos.
Doeu-lhe pensar que havia coisas que ele não compartilhava com ela,
pois ela compartilhava tudo com ele.
— O que houve entre você e Isabelle? — insistiu.
— Linnea, esqueça isso.
— Não posso. Quem me dera pudesse, mas não posso.
Theodore guardou silêncio por um longo momento, passou uma mão
pelo cabelo e a deixou atrás do pescoço. Soltando um longo suspiro, disse: —
Está bem. Todos os anos, na época da debulha, eu ia encontrar com Isabelle
na carroça, depois da hora de me deitar.
Comparado com o imenso nó que tinha agora na garganta, o ciúme que
Linnea havia sentido antes não era nada.
— Eram... amantes?
Theodore inalou uma grande baforada de ar, soltou-a lentamente e
fechou os olhos: — Sim.
Agora que a verdade tinha vindo, Linnea teria preferido não saber de
nada, mas certo instinto perverso a obrigou a seguir interrogando-o.
— Este ano?
— O que acha? — parecia aturdido de pensar que ela pensasse que ele
a traía.
— No ano passado, então.
Um longo silêncio e logo: — Sim.
A fúria a fez explodir.
— Mas você já me conhecia.
— Sim — ele se apoiou em um cotovelo e a olhou no rosto. — E não
podíamos nos olhar sem brigar. E eu pensava que você era muito jovem para
mim e que era uma indecência me excitar pensando na professora de meu
filho. Além disso, eu estava certo de que não podia me suportar, Linnea.
Tentou tocá-la, mas ela o afastou.
— Oh, como pôde fazer isso comigo?
Típico de uma mulher, pensou Theodore. Primeiro diz que não se
zangará e logo se encrespa como um ouriço-cacheiro.
— Faz quinze anos que Melinda fugiu. Acaso pensou que não haveria
ninguém em todo esse tempo?
— Mas ela é… gorda... e simplória e...
— Não sabe nada dela, assim não comece a lhe jogar pedras —
replicou, tenso.
— Mas como pôde trazê-la de volta este ano e fazê-la desfilar diante de
meu nariz?
— Fazê-la desfilar? Não estou fazendo semelhante coisa.
— E o que mais está fazendo debaixo de meu nariz?
— Pare com isso, Linnea.
— Vem para a cama quente como um macho no cio, quando faz quase
um mês que não me procura para fazer amor comigo. O que devo pensar?
— Se deixasse de reagir como uma menina, compreenderia que
nenhum homem pode ficar quinze anos sem algo... alguém.
— Menina! Agora sou uma menina?
— Comporta-se como se fosse.
— Então vai lá com Isabelle — afastando as mantas, Linnea saiu da
cama. — Com sua figura e sua linguagem, ninguém a confundiria jamais com
uma menina, não é?
Theodore se levantou e, apontando com um dedo para o lugar da cama
que ela tinha deixado, disse: — Não quero nada com a Isabelle e agora, por
favor, pode voltar a se deitar nesta cama?
— Não voltaria para essa cama nem que minhas roupas estivessem se
incendiando e a cama cheia de água.
— Minha mãe não é surda, sabe?
Ela baixou a voz.
— E não quer que ela se inteire de seus pecadinhos, não é? — retrucou,
sarcástica.
Theodore não sabia o que queria dizer “pecadinhos” e isso o irritou
ainda mais. Apoiou os cotovelos nos joelhos levantados e puxou o próprio
cabelo.
— Eu devia saber que não podia contar a você. Devia ter adivinhado
que não poderia tolerar isso. É muito jovem para entender que nem tudo na
vida é branco ou preto. Isabelle e eu não fizemos mal a ninguém. Ela estava
sozinha. Eu estava sozinho. Demos um ao outro aquilo de que
necessitávamos. Pode entender isso?
— Quero que essa mulher se vá amanhã daqui, escutou-me?
— E quem vai dar de comer aos debulhadores? Você, que está com oito
meses de gravidez e que mal pode suportar um baile até o final?
— Não me importa quem o fará, desde que não seja Isabelle Lawler.
Ela abriu a porta do quarto.
— Linnea, volta aqui... aonde vai?
A mulher parou na porta tempo suficiente para lhe replicar: — Para o
meu antigo dormitório.
— Não fará isso. É minha esposa e dormirá na minha cama.
— Retornarei quando Isabelle Lawler desaparecer daqui.
Quando ela se foi, Theodore ficou olhando para o vão negro da porta,
perguntando-se como uma mulher podia ser tão perversa. Primeiro disse que
não se enfureceria, logo gritou para despertar os mortos e sua mãe, e se foi
como se esperasse que alguém fosse atrás dela, chorando e se desculpando.
— Bom, pelo que me diz respeito, pode esperar até que se congele o
inferno, porque não tenho por que me desculpar! — murmurou.
No ano anterior, ela não tinha nada a ver com ele e este ano a única
coisa que fez com Isabelle Lawler foi dançar. Como podia acreditar que ele
seria tão infiel para se deitar com Isabelle só porque sua esposa grávida não
podia se ocupar dele por alguns meses?
Ferido profundamente, estendeu-se de costas, confuso. Quem era essa
pequena insolente para lhe dar ordens? Isabelle era uma estupenda cozinheira
e sem ela eles se veriam em apuros. Seguiria cozinhando até que terminasse a
temporada da debulha e se Linnea não gostasse, poderia ir para o andar de
cima e ficar lá. De qualquer maneira, dormiria melhor sem ela; a única coisa
que ela fazia toda a noite era ir ao banheiro e despertá-lo.
Senhor, mulheres grávidas, pensou outra vez, ficando de lado. Bom,
nunca mais! Era muito velho para voltar a passar por algo assim. Seria aquela
criança e nada mais. E esperava que, quando nascesse, ela visse a sua
teimosia e a vida retornasse à normalidade.
Pela manhã, Nissa não disse uma palavra sequer, embora sem a menor
dúvida tivesse escutado tudo a noite passada. A briga passou totalmente
através da parede e ela sabia que Linnea tinha dormido no quarto de cima.
Reuniram-se os três na cozinha para o café da manhã.
— Bonito dia... — comentou Nissa.
Ninguém falou nada.
— Não é mesmo? — insistiu, olhando para Linnea sobre a borda dos
óculos.
— Sim... sim, é um bonito dia.
Theodore cruzou a cozinha com os baldes de leite, olhando para sua
esposa em silêncio.
— Preciso de mais um punhado de carvão para a cozinha. Acredito que
vou sair para buscá-lo e respirar um pouco deste ar matinal — disse Nissa.
Quando a idosa saiu, levando o balde de carvão meio vazio, Theodore
observou melhor a esposa e viu que estivera chorando.
— Bom dia — disse.
— Bom dia — respondeu ela, mas sem olhar para ele.
— Como dormiu?
— Como uma recém-nascida.
— Eu também — disse Theodore. Era mentira; sem ela ao seu lado,
quase não tinha dormido. Tinha as mãos úmidas. Secou-as em sua perna com
a intenção de esticar a mão para lhe tocar o braço, mas antes que pudesse
fazê-lo, Linnea se afastou.
— Desculpe-me. Tenho que me pentear — e saiu sem olhá-lo nem uma
única vez.
Está bem, pequena obstinada, faça como quiser. Logo, aquele
dormitório estará mais frio que um iglu e voltará querendo abrigo. Enquanto
isso, a cozinheira fica.
E ficou mesmo.
Isabelle ficou toda a semana e Linnea não olhava para Theodore nem
lhe falava, a menos que ele lhe dirigisse primeiro a palavra. No sábado à
noite, a tensão na casa era insuportável. Nissa era a única que dormia bem a
noite toda. Os outros dois só conseguiam dormir o suficiente para resistir e os
estragos daquilo se revelavam em seus rostos. Naquela noite celebrou-se um
baile no celeiro da fazenda. Teddy e Linnea passaram a primeira hora rindo e
dançando com todos os participantes, menos um com o outro. Teddy bebeu
duas cervejas, olhando-a sobre a borda do copo a maior parte do tempo e
pensando em quão bonita ela estava grávida. Havia mulheres que se
mostravam desalinhadas e desengonçadas nesse estado, mas sua esposa, não.
Resplandecia como se alguém tivesse acendido uma vela sob suas faces.
Armou-se de coragem para cruzar o celeiro e convidá-la para dançar e, depois
de uns minutos, decidiu-se. Antes de chegar junto dela, já lhe suavam as
mãos.
Com fingida jocosidade, deteve-se junto a ela, colocou os polegares na
fivela da calça e levantou uma sobrancelha.
— O que me diz, quer dançar?
Linnea lhe dirigiu um autêntico olhar felino e altivo, olhou para
Isabelle Lawler, e respondeu: — Não, obrigada.
Levantou o nariz e lhe deu as costas.
Então ele dançou com Isabelle e muito mais que quatro vezes.
Linnea tratou de não olhar para eles. Mas Teddy era o melhor bailarino
do condado e cada célula de seu corpo fervia de ciúmes. Por sorte, Nissa lhe
proporcionou uma desculpa.
— Acredito que me excedi com o vinho caseiro — disse ela. — Ou
isso, ou as danças são a causa de eu estar enjoada. Acompanhar-me-ia à casa,
Linnea?
É óbvio, Linnea a acompanhou. Na metade de caminho, Nissa evocou,
como de passagem: — Lembro-me de uma vez em que meu homem levou
para casa um tapete novo feito de retalhos. Eu lhe disse: “Para que quer
comprar um tapete, se posso fazê-lo?”. Ele sorriu e me disse que, por uma
vez seria grato que eu não tivesse o que fazer a não ser, simplesmente,
estendê-lo no chão, já terminado. Mas me enfureci com ele porque um dos
meninos, não recordo qual, estava quase sem sapatos. “Teríamos que ter
comprado botas novas para o menino”, disse eu, “em lugar de gastar o
dinheiro em tapetes domésticos”. Ele respondeu que havia uma viúva com
duas crianças pequenas vendendo seus tapetes no povoado aquele dia e que
lhe pareceu que a ajudaria se lhe comprasse um — Nissa inspirou. — Bom,
eu lhe perguntei o que era isso de conversar com viúvas e ele me disse que eu
podia ser sua esposa, mas que isso não me dava direito de lhe dizer com
quem ele podia e com quem não podia falar. Então eu lhe perguntei quem era
essa tal viúva, e ele me disse. Recordei-me de que estávamos todos
construindo o celeiro e de como ele conversava com ela e ria, e eu me pus
belicosa e, antes de me dar conta, perguntei como ela se arrumava sem seu
marido e onde estava vivendo naquele momento. E, por Deus, ele não podia
me responder nenhuma de minhas perguntas. Muito depressa, disse-lhe que
não queria seu maldito tapete, porque ela o vendeu para ele. Lembro-me de
que não nos falamos durante uma semana. O tapete seguia no chão e eu não
pisava nele e ele não o tirava para levar de volta; então, um dia, fui ao
povoado e aconteceu de me encontrar com ela na rua. Tinha adoecido de
tuberculose e tossia constantemente, não era mais que um saco de ossos:
quando me viu, disseme o quanto estava agradecida por meu marido lhe
haver comprado um tapete; um de seus pequenos necessitava de um par de
botas e, quando vendeu o tapete, ela pôde comprá-las.
Tinham chegado à porta dos fundos, mas Nissa parou um instante na
soleira e ergueu os olhos para as estrelas.
— Naquele dia, aprendi algumas coisas. Aprendi que podemos
destroçar o coração de um homem se o acusarmos de algo que ele não fez.
Que há homens com corações de ouro e o ouro não perde seu brilho, mas é...
é brando. Trinca com facilidade. Uma mulher tem que cuidar para não trincar
muito um coração como esse — riu mansamente para si, voltou-se para a
porta e a abriu, mas vacilou por um instante antes de entrar. — Do que me
lembro é de que à noite, por fim, disse-lhe que eu sentia muito, e de que ele
me estendeu sobre o tal tapete e me fez alguns arranhões nos quartos
traseiros... ainda o tenho guardado em algum lugar em uma arca, junto com
meu vestido de noiva e um bolso para o relógio que lhe fiz trançando meu
próprio cabelo quando eu tinha dezesseis anos — ela sacudiu a cabeça e
tocou em sua têmpora. — Caramba, olhar para cima me enjoa mais ainda —
sem olhar para trás, seguiu para casa. — Bom, boa noite, filha.
Linnea ficou ali, com um nó na garganta e o peito oprimido. Olhou para
o celeiro. A luz da lamparina brilhava, amortecida, através das janelas. Sons
longínquos do baile e do violino flutuavam na noite. Olhou na direção
contrária. Coberta pelos arbustos, a silhueta avultada da carroça se erguia
como uma sombra ameaçadora. A lua, como uma fatia fina de queijo,
derramava sua luz sobre o pátio, e a brisa noturna brincava com as vagens
dos arbustos, fazendo-as soar como pequenos tambores. Mas era ele quem
deveria se desculpar, pareciam lhe dizer. Foi ele quem dançou com outra.
Aflita, entrou na casa. Subiu as escadas para seu antigo dormitório e se
meteu sob as mantas, sentindo frio e solidão. Todas as noites, esperava que
Theodore fosse até ela. Deitada, imaginava-o abrindo a porta sem ruído, de
pé na escuridão, contemplando sua silhueta adormecida, ajoelhando-se logo
junto à cama, apertando o rosto contra o pescoço dela, o peito, o estômago e
dizendo: — Sinto muito, Lin, por favor, volte.
Mas já era o oitavo dia e ele ainda não tinha ido. Estava lá embaixo, no
celeiro, dançando com outra mulher, enquanto sua esposa grávida jazia entre
lágrimas. Por que, Teddy, por quê?
Estava resolvida a ficar acordada até que o baile terminasse e as
carroças saíssem do pátio, iria olhar pela janela para ver se ele vinha
diretamente para casa. Mas, por fim, adormeceu e não ouviu nada.
Pela manhã, despertou como se algo a tivesse tocado e suas pálpebras
se entreabriram como as duas metades de um melão. Algo de errado estava
acontecendo. Escutou: não se ouvia nada. Nem o tinido da baixela, nem os
rangidos dos tubos da cozinha se dilatando. Estirou um braço e encontrou seu
relógio sobre a mesinha. Como era possível que, sendo sete e quinze, Nissa
não estivesse de pé? O serviço religioso começaria em menos de duas horas.
Ouviu passos na escada no mesmo instante em que seus calcanhares tocaram
o chão. Sem perder tempo em pegar um robe, escancarou a porta e se
encontrou com Theodore no patamar, com os olhos escurecidos pela
preocupação e o cabelo revolto por acabar de se levantar.
— O que aconteceu?
— Mamãe. Está doente.
— Doente? Por causa do vinho de amoras?
Enquanto falava, Linnea já seguia Theodore escada abaixo, descalça.
— Não acredito. Sente calafrios e congestão.
— Calafrios e congestão? — Linnea sentiu a pele se arrepiar enquanto
se apressava para seguir Theodore. Ao pé da escada, agarrou-o pelo ombro,
fazendo-o deter-se e se virar de repente.
— É grave a congestão?
Ele tinha os olhos e as faces macilentas pela preocupação.
— Acredito que sim.
— Será... — depois de um hesitante começo, conseguiu expressar com
palavras o seu temor — ...a gripe?
Theodore encontrou a mão da esposa e a segurou: — Esperemos que
não.
Mas quando chegou o médico que mandaram chamar no povoado, a
esperança diminuiu. Quando o doutor se foi, tiveram que colocar na porta
traseira um sinal amarelo e negro de quarentena, e Theodore e Linnea
receberam instruções de não entrar no quarto de Nissa sem uma máscara
cobrindo-lhes o nariz e a boca. Olharam-se, sem poder acreditar no que
ouviam. A gripe atacava os soldados que lutavam nas trincheiras e os
habitantes das grandes cidades, não os fazendeiros da Dakota do Norte, que
tinham uma provisão interminável de ar puro para respirar. E certamente não
as velhas abelhas como Nissa, que zumbiam de uma tarefa a outra em uma
velocidade tal que parecia que nenhum germe poderia alcançá-las. Não Nissa,
que na noite anterior tinha bebido vinho e dançando com os filhos. Nissa, que
quase nunca tinha pegado um simples resfriado.
Mas se equivocavam. Antes de terminar o dia, os pulmões de Nissa já
estavam cheios de fluidos. A respiração se fazia estridente e os calafrios lhe
sacudiam o corpo: nem a água de quinina que a obrigavam a beber
periodicamente aliviavam-na. Theodore e Linnea a observavam impotentes,
vendo como piorava com aterradora rapidez. Secavam-lhe o suor,
alimentavam-na, acomodavam-lhe os travesseiros e se alternavam para ficar
junto dela.
Mas no final do primeiro dia, a impressão que dava era a de que
estavam lutando uma batalha perdida. Sentados na mesa da cozinha, olhavam
desconsolados a sopa que nenhum dos dois tinha vontade de comer, as mãos
ociosas junto às tigelas. Olharam-se angustiados e suas brigas lhes pareceram
insignificantes. Sobre a toalha de oleado de quadrados vermelhos e brancos,
Theodore apoiou a mão sobre a dela.
— Tão rápido... — disse, com voz trêmula.
Linnea girou a mão e os dedos se entrelaçaram.
— Sim.
— E não podemos fazer nada.
— Podemos continuar lhe passando a esponja úmida e lhe dando
quinina. Pode ser que, durante a noite, tudo mude e ela melhore.
Mas os dois suspeitavam de que suas palavras não eram mais que
palavras ao vento. A gripe tomava primeiro os mais velhos, os mais frágeis. E
entre os que adoeciam, poucos sobreviviam. Theodore fixou os olhos nas
mãos unidas e esfregou a de Linnea com o polegar.
— Quem me dera eu pudesse tirar você daqui para que estivesse a
salvo.
— Estou bem. Não tive nem um espirro.
— Mas, o bebê...
— O bebê também está bem. Não tem que se preocupar conosco. Teve
um dia longo. Quero que descanse.
— Mas você também.
— Não sou eu quem está grávida. Me obedecerá? — perguntou
Theodore.
— Os pratos...
— Deixe-os. Vejo que está a ponto de cair da cadeira. Venha, vamos.
Pegou-a pela mão, levou-a ao dormitório dos dois, tirou a colcha da
cama, fê-la sentar-se na beirada, e ajoelhou para lhe tirar os sapatos. A
ternura e a consideração de seu marido comoveram o seu coração e quando
baixou os olhos e pousou sobre o alto de sua cabeça, pareceu-lhe que quase
não podia conter todo o amor e a preocupação por ele. Tinha sofrido a perda
de um irmão a quem amava, seu filho estava lutando na guerra e também
tinha que ver a mãe morrer?
Depois de lhe tirar o segundo sapato, Theodore lhe sustentou o pé e o
acariciou, ao mesmo tempo em que erguia os olhos para ela.
— Linnea, com respeito a Isabelle...
Com um gesto suave, ela o fez se calar.
— Não importa mais. Comportei-me como uma tola infantil e
ciumenta, mas já tem bastante com que se preocupar sem isso.
— Mas eu...
— Depois falaremos disso... quando Nissa melhorar.
Agasalhou-a com amor, acomodando as mantas sob seu queixo e logo,
sentando-se ao seu lado, na beira da cama, colocou as mãos de ambos os
lados da cabeça dela, inclinou-se, observando-lhe o rosto como se procurasse
ali a força de que necessitava.
— Tenho tanta vontade de beijá-lo...
Mas enquanto houvesse gripe na casa não podiam se beijar. Ele só
podia olhá-la e lamentar a semana passada na idiotice que os afastara, que o
tinha impulsionado a fazer tolices para magoá-la, sabendo que ela era a
pessoa a quem menos queria ferir no mundo.
— Sei. Também tenho vontade de beijá-la.
— Quero-a muito — disse Theodore.
— Também o quero e é muito bom estar outra vez em nossa cama.
Theodore sorriu, desejando poder se enfiar naquela cama ao lado dela,
aconchegar-se bem apertado atrás dela com a mão sobre o filho. Mas no
quarto contíguo estava sua mãe e já fazia muito tempo que estava sem
atenção.
— Agora durma.
— Desperte-me se houver alguma mudança.
Theodore assentiu, apoiou a mão no ventre de sua esposa, apagou a
lamparina e saiu.
Os pulmões de Nissa se encheram de fluidos e ela morreu no terceiro
dia. Antes que a carroça da funerária pudesse ir buscar o corpo, cumpriram-se
os piores temores de Linnea: Teddy caiu abatido pelo temido vírus. Ela ficou
sozinha para atendê-lo, sofrer, preocupar-se, encerrada na casa sem ninguém
com quem dividir a vigília junto ao seu leito e sem ninguém para consolá-la
em sua perda. Já esgotada pelos três dias de pouco sono, esmagada pelo
desespero, estava quase caindo exausta quando soou uma forte batida na
porta e se ouviu a voz de Isabelle Lawler.
— Senhora Westgaard, vou entrar.
Linnea gritou:
— Não pode, estamos em quarentena.
A porta se abriu de repente e entrou a ruiva.
— Não tem a menor importância para um búfalo duro como eu. Agora
você necessita de ajuda e sou eu quem vai ajudar. Por Deus, filha, tem um
aspecto tal que parece que o coveiro vai levá-la também. Dormiu? Comeu?
— Eu...
A mulher atrevida não lhe deu tempo de responder.
— Sente-se aqui. Como está o Teddy?
— O... a respiração ainda não está muito difícil.
— Bom. Posso preparar a quinina tão bem quanto você, mas tem que
cuidar desse pequeno, e se eu permitir que algo aconteça com ele ou com
você, temo perder meu trabalho de cozinheira aqui nos próximos anos.
Enquanto falava, Isabelle havia tirado a pesada jaqueta masculina e
Linnea se levantou para recebê-la.
— Eu disse para se sentar. Precisa colocar alguma comida substanciosa
no estômago e sou justamente eu a pessoa que cuidará para que ela chegue aí.
Sou a melhor cozinheira deste lado das Black Hills, assim, não me replique,
irmã. Só me diga o que terei que fazer para ele, com que frequência e se o
que a preocupa é que o veja nu, bom, já o vi assim e você sabe, de modo que
não vou enrubescer como uma colegial nem taparei os olhos. E se acredita
que tenho intenções com respeito ao seu homem, bom, também pode tirar
isso da cabeça. O que houve entre nós acabou. Ele já não tem nenhum
interesse em uma grandona vociferadora e atrevida como eu, assim, onde está
a quinina e o que você gostaria de comer?
Foi deste modo que a audaz Isabelle se entrincheirou na casa e
terminou o conflito. Para Linnea, foi como uma bênção do céu. Ela a tratou
como uma mãe, obrigando-a a comer com permanente brutalidade; cuidou de
Theodore com a mesma rudeza. Era a mulher mais atrevida que já tinha
conhecido na vida, mas sua mesma franqueza fazia Linnea rir e lhe dava
ânimos. Isabelle circulava pela casa como um furacão, com o avermelhado
cabelo arrepiado e a voz masculina retumbante, mesmo que sussurrasse.
Linnea estava profundamente agradecida por tê-la ali. Era como se forçasse o
destino a aceitar sua vontade de viver, transferindo uma boa porção dessa
vontade para a cura de Theodore. Quando ele piorou, as duas mulheres
velaram juntas ao lado da cama e, por mais estranho que fosse, Linnea se
sentiu completamente tranquila, até sabendo que, ao seu modo, Isabelle
amava Theodore. O doente respirava com dificuldade e a febre fazia brilhar
sua pele.
— Este maldito não vai morrer — afirmou Isabelle —, porque não o
permitirei. Tem que cuidar de você e do pequeno e não deixarei que fuja do
seu dever.
— Quem me dera eu tivesse a mesma certeza!
Outra mulher teria esticado uma mão para consolá-la, mas não Isabelle.
Seu queixo adquiriu um ângulo ainda mais obstinado: — Um homem que
está tão feliz com seu filho por nascer e sua nova esposa tem muitas razões
para lutar pela vida.
— Ele lhe contou que estava feliz?
— Disseme tudo. Contou-me da briga, e porque você estava dormindo
no quarto de cima. Estava triste.
Linnea baixou o olhar para o colo.
— Não pensei que contaria tudo a você.
Isabelle separou os joelhos e apoiou as mãos neles. — Teddy e eu
sempre pudemos conversar sobre tudo.
Linnea não soube o que dizer. Já não podia continuar tendo ciúmes.
Com os olhos em Theodore, nessa pose masculina, Isabelle prosseguiu: — O
que Teddy e eu fizemos juntos não é nada com que deva se preocupar. Ainda
é jovem e tem muito que aprender sobre as necessidades humanas.
Simplesmente, têm que ser satisfeitas. Caramba, ele nunca me amou... essa
palavra não surgiu nem uma só vez — tirou do bolso os objetos para armar
cigarros e começou a enrolar um. — Mas é um bom homem, um maldito
homem bom. Não creia que não sei... ou seja, que uma mulher como eu...
oras... — deixou que as palavras se perdessem e lançou um bufo
depreciativo, contemplando o cigarro enquanto selava a abertura, alisando-o
com a língua. Tirou fósforos do bolso do avental, acendeu-o com um estalo
da unha do polegar, lançou uma nuvem de fumaça fragrante no aposento.
Apoiou os pés cruzados sobre a beirada do colchão e soprou em silêncio,
entrecerrando os olhos para protegê-los da fumaça. Depois de um momento,
ela disse: — Você é uma mulher muito afortunada, maldição!
Linnea a observou: tinha o avental sujo, a barriga sobressaía mais que a
da própria Linnea. Sustentava o cigarro entre o polegar e o indicador como
um homem, e balançava a cadeira sobre duas pernas. Mas acreditou detectar
o brilho de uma única lágrima na comissura de seu olho. Em um impulso,
estendeu uma mão e a apoiou sobre o braço de Isabelle. A ruiva olhou para a
mão, tragou de novo, segurou o cigarro entre os dentes, deu-lhe duas
palmadas na mão e logo tomou outra vez o cigarro.
— Voltará no próximo ano, não é? — Linnea lhe perguntou.
— Maldição, ora se não. Morrerei de impaciência por lançar uma
olhada no pequeno do Teddy.
No sétimo dia, souberam que Theodore viveria.
CAPÍTULO 26
UMA NOVA VIDA

A maldita gripe espanhola era covarde. Queria os mais velhos, os mais


frágeis e os mais jovens. No Álamo, escolheu suas primeiras presas entre os
integrantes da família Westgaard, arrebatou um de cada uma dessas
categorias. Dos mais velhos, levou Nissa. Dos mais frágeis, levou Tony. E
dos mais jovens, levou a Roseanne. Nissa morreu sem saber que a neta
também tinha adoecido. Era uma enfermidade grave, que assolava
indiscriminadamente um lar atrás de outro na pradaria da Dakota do Norte,
enquanto deixava alguns intactos. Não se sabia o porquê de se levar um e
deixar outro. Esse mesmo caráter imprevisível a fazia mais mortal. Mas,
como se a Providência reservasse algo melhor para Theodore e para Linnea
Westgaard, Theodore saiu da enfermidade sem uma sequela mais grave que
não a perda de uns quatro quilos, e a Linnea, deixou intacta.
Na manhã em que Theodore despertou, com os olhos e a cabeça clara,
ela estava sozinha junto ao leito, adormecida na cadeira, com a aparência de
ter lutado sozinha aquela batalha. Ele abriu os olhos e a viu, com os ombros
cansados, respirando com regularidade e as mãos unidas sobre o volumoso
ventre.
— Linnea — tratou de dizer, mas tinha a boca seca. Tocou a testa e a
sentiu escamosa. Tocou o cabelo e o sentiu gorduroso. Tocou a face, estava
áspera. Perguntou-se que dia seria. Era verdade que sua mãe estava morta?
Ah e Kristian... haveria alguma notícia dele? E o que acontecia com o trigo...
a ordenha... Linnea...? Rodou de lado, tocou-lhe o joelho e ela abriu os olhos.
— Teddy! Está acordado?! — tocou-lhe a testa e logo lhe apertou a
mão. — Você conseguiu.
— Mamãe... — disse ele com voz áspera.
— Sepultaram-na faz mais de uma semana.
Aproximou-lhe uma xícara dos lábios e ele bebeu, agradecido, para
logo se deitar de novo, debilitado.
— Que dia é hoje?
— Quinta-feira. Esteve doente por duas semanas.
Duas semanas. Tinha estado deitado duas semanas e ela cuidando dele.
Ela e Isabelle. Ele tinha uma vaga lembrança de Isabelle atendendo-o
também, mas como podia ser?
— Você está bem?
— Eu? Sim, estou bem. Saí ilesa. E agora basta de perguntas, até que
tenha comido algo e esteja mais forte.
Linnea não toleraria mais conversa até depois de lhe ter levado um bom
caldo de carne, de ele o ter bebido, ter lavado o rosto e depois de ela tê-lo
ajudado a se barbear. Ela mesma se deu um tempo para trocar o vestido e se
pentear: mesmo assim se viam em seu rosto os estragos da longa vigília.
Quando Theodore a viu atarefada pelo quarto, arrumando-o, ele a fez se
sentar ao lado da cama e descansar um minuto.
— Tem os olhos como se tivessem sido golpeados.
— Dormi pouco, nada mais. Mas tive uma boa ajuda.
Baixou os olhos e brincou com a borda do avental.
— Isabelle? — perguntou ele.
— Sim. Recorda?
— Alguma coisa.
— Não fez caso do sinal da quarentena. Entrou, ficou durante nove dias
e cuidou de nós dois.
— E ela tampouco se contagiou?
Linnea negou com a cabeça.
— É uma grande mulher, Teddy — suavizou a voz e seu olhar se
encontrou com o dele. — Ama-o muito, sabe?
— Oh... — ele disse.
— É certo. Arriscou a vida para vir aqui e cuidar de você e de mim
também, porque sabia que lhe doeria se acontecesse algo de ruim comigo ou
com o bebê. Devemos muito a ela.
O homem não soube o que dizer.
— Onde ela está agora?
— Na carroça, dormindo.
— E o trigo?
— O trigo já está colhido. A equipe continuou trabalhando.
— E a ordenha?
— Também se ocuparam disso. Agora não tem nada com que se
preocupar. Cope disse que ficará até que você esteja bastante forte.
— Alguma notícia de Kristian?
— Há dois dias chegou uma carta e Oriin a leu do final do atalho.
Orin era o carteiro.
— Kristian diz que ainda não viu o front e que está bem.
— Quanto tempo faz que ele escreveu a carta?
— Mais de três semanas.
Três semanas, pensaram os dois. Nesse intervalo de tempo muitos
projéteis foram disparados. Quem dera houvesse uma maneira de tranquilizar
Theodore, mas o que ela podia lhe dizer? Estava macilento, pálido e
esgotado. Por muito que detestasse ser a que somasse linhas de preocupação
ao seu rosto, não havia um modo de evitar isso. Apoiou os cotovelos sobre a
cama, tomou a mão do marido entre as suas, e o fez girar o anel de bodas nos
dedos enfraquecidos.
— Teddy, temo que haja mais más notícias. A gripe...
Que difícil era falar... Os rostos das crianças que ela tinha aprendido a
amar passaram na frente dela, como em uma visão. Tão inocentes,
arrebatados antes de tempo.
— Quem? — perguntou Theodore.
— Roseanne e Tony.
A mão apertou a sua e ele fechou os olhos.
— Oh, Deus amado!
Linnea não podia dizer nada. Ela também sofria recordando-se da
língua presa de Roseanne e dos magros ombros de Tony.
Ainda com os olhos fechados, Theodore a atraiu para si. Ela se
estendeu sobre ele e ele a abraçou, extraindo forças dela.
— Eram tão pequenos... Ainda não tinham vivido nada — condoeu-se
inutilmente.
— Sim, eu sei.
— E mamãe... — Linnea sentiu seu coração pulsar alto — era uma
mulher tão boa... E, às vezes, quando... quando ficava mandona e me dava
ordens, eu desejava que ela se fosse. Mas nunca quis... nunca quis que ela
morresse.
— Não tem que sentir culpa por esses pensamentos que são humanos,
Teddy. Foi bom para ela, deu-lhe um lar. Ela sabia que você a amava.
— Era uma alma tão boa — lamentou Theodore.
Todos eram, pensou Linnea, abraçando-o. John, Nissa, e as crianças.
Quantos eles perderam, quantos! Deus, conserve a salvo o Kristian, por
favor. Orou em silêncio.
— Oh, Teddy! — sussurrou, a boca grudada ao peito dele — acreditei
que iria perder você também. Pela segunda vez...
O homem engoliu com dificuldade.
— E eu pensei o mesmo com respeito a você e ao bebê. Às vezes
desejava morrer rápido, antes que você se contagiasse. Outras, recuperava a
lucidez e a via aí sentada e sabia que eu tinha que viver.
Sob seu ouvido, o coração de Theodore pulsava com firmeza, enquanto
ela pronunciava uma silenciosa prece de agradecimento por sua cura. Entre os
dois se apertava o vulto do filho ainda não nascido e uma velha manta
confeccionada pelas mãos de Nissa havia muitos anos. Mas ela havia
falecido, uma vida nova tomando o lugar de outra velha.
— É como se nós e nosso filho tivéssemos sobrevivido para tornarmos
as testemunhas. Para ocupar o lugar dos que se foram — disse Linnea.
E seguiram adiante, como muitos que tinham sofrido perdas. A
epidemia seguiu seu curso e se esgotou. Os sinais de quarentena foram
desaparecendo um a um e os Westgaard se despediram de Isabelle Lawler,
cumprimentando-a com a mão, enquanto ela vociferava que no ano seguinte
voltaria para conhecer o pequeno Teddy. E ainda ficaram mortos por chorar,
vivos para consolar. A igreja luterana tinha um novo ministro, pois os Severt
tinham partido. O reverendo Hegelson desenvolveu um triste serviço
comemorativo pelos sete membros da congregação que tinham morrido e
sido sepultados, pois aos familiares não era permitido estarem junto às
sepulturas. Oraram juntos pela paz e agradeceram porque as estrelas na
bandeira da igreja seguiam sendo azuis. Aflitos, extraíam sua força de cima,
da Providência divina, da fé.
Em um dia de novembro, Theodore estava fora sob um gelado céu de
chumbo, protegendo com palha a base da casa. Era um dia característico de
fins do outono, deprimente, com um vento que fazia arder a pele. Fazia muito
tempo que tinham caído as folhas dos álamos. O vento levantava a poeira
superficial do chão e a jogava contra as pernas das calças e o avental de
trabalho de Theodore, à medida que ele arremessava a forquilha uma e outra
vez. Em condições normais, essa tarefa teria que ter sido terminada muito
antes, mas a enfermidade o fizera atrasá-la. Ele tinha recuperado as forças e
Cope retornara para seu lar em Minnesota.
De cima chegaram os ásperos grasnidos dos gansos canadenses que
migravam para o Sul. Theodore fez uma pausa e ergueu os olhos,
contemplando o majestoso voo da formação de aves. Kristian não tinha
conseguido voar em aviões, como sonhava. Mas tinha abatido um, contava na
última carta. Theodore sorriu pensando na ironia do destino. Seu filho voando
tão alto como aqueles gansos. Onde iria parar este mundo? Dizia-se que os
aviões eram uma boa promessa e quando terminasse a guerra – se terminasse
–, eles seriam usados para algo melhor que matar gente.
Será que Kristian continuaria vivo? Tinha que viver. E quando
retornasse ao lar, perguntou-se se ele iria querer ter um negócio próprio,
transportando mercadorias por avião, por exemplo, como diziam que se faria
no futuro.
Que diabos, era um homem rico. A guerra tinha levado ao aumento dos
preços do trigo até passar a marca de 2,15 dólares o alqueire. Nunca pareceu
justo ficar rico devido à guerra, mas graças a isso ele poderia compartilhar
parte de sua riqueza com o filho que tinha ido lutar nela. Diabos, Kristian não
queria ser fazendeiro e se o rapaz conseguisse voltar são e salvo, prometeu-se
que nunca tentaria obrigá-lo a nada, no fim das contas, não era...
— Teddy! Teddy! — Linnea saiu correndo da casa, sem fechar a porta
atrás de si. — Teddy, a guerra acabou!
— O quê?
A forquilha caiu no chão e sua esposa se jogou em seus braços,
gritando e chorando ao mesmo tempo.
— Terminou! Acabaram de anunciar pela rádio. Esta manhã, às cinco,
se assinou o armistício da paz.
— Terminou? Sério?
— Sim! Sim! Sim! — comemoraram. Ele a levantou no ar.
— Acabou! Acabou a matança — bradou Theodore.
Dançaram ao redor do pátio e tropeçaram na forquilha. Nelly e FIy, que
estavam diante de uma carga de feno, voltaram as cabeças curiosas para olhar
as loucuras dos humanos. Nelly relinchou e Linnea, saindo do abraço de
Theodore, beijou a cabeça do animal. Quando fez o mesmo com FIy,
Theodore a ergueu outra vez nos braços e a colocou sobre o assento da
carroça.
— Temos que contar para os outros.
Ainda não tinham saído do atalho que levava à casa sede quando
ouviram o repicar do sino da igreja, alardeando a boa-nova pelas planícies e
trigais do Álamo. Não tinham percorrido ainda dois quilômetros quando, a
esse, se uniu o ecoar do sino da igreja do Oeste. Na metade do trajeto para a
casa de Lars, encontraram Ulmer e Helen e desceram das carroças para se
abraçarem, beijarem e escutar os sinos que soavam de todas as direções.
Enquanto celebravam na metade do caminho de cascalho, apareceram Clara e
Trigg com a pequena Maren, enfaixada e abrigada, mas protestando
agudamente pela desacostumada comoção. Logo em seguida chegaram
outros, entre os quais Lars e Evie e o velho Tveit, que tinha saído para
entregar uma carga de carvão.
— Todos se reunirão na escola — disse Ulmer.
— Vamos também — Linnea bateu palmas.
Como imaginaram, quando chegaram o edifício da escola já estava
cheio. O sino seguia soando. A multidão, aumentando. O novo professor, o
Senhor Thorson, anunciou que as aulas estavam suspensas naquele dia. As
crianças se levantaram das carteiras e aplaudiram. Chegou o Reverendo
Helgeson, que deu início a uma prece de agradecimento a que todos se
uniram, e a celebração continuou até as últimas horas da tarde.
Quando a festa acabou, começou a precipitar-se uma fria neve que
tinha estado ameaçando durante todo o dia. Conduzindo as carroças, eles
retornaram para suas casas sob os flocos soprados pelo vento, mas estavam
felizes e despreocupados apesar disso, pois nem uma tormenta invernal iria
turvar a alegria e o alívio que sentiam. O trigo já estava armazenado. O
mundo estava em paz. Havia muito que agradecer a Deus.
Na madrugada daquele mesmo dia, Linnea despertou com a primeira
dor. Como não tinha dúvidas do que significava, esperou por outra contração,
que demorou algum tempo para chegar. Não despertou Theodore até depois
de uma hora, quando já estava certa de que a hora do parto estava chegando.
— Teddy? — chamou, sacudindo-o com suavidade.
— Hum? — ele se ergueu assustado e se apoiou em um cotovelo. —
Alguma coisa errada?
— Acredito que começaram as dores.
Ele a olhou com preocupação, apalpando-lhe o ventre.
— Mas ainda falta um mês.
— Eu sei. Talvez eu tenha me excedido nas comemorações e apressado
as coisas.
— Quando começaram as contrações?
— Não tenho certeza exata, podem ser horas ou minutos.
— Como não? — como um relâmpago, Theodore desceu da cama e
procurou as calças.
— Tenho que ir ao povoado buscar o médico.
— Não, Teddy.
— Mas você disse que são as contrações, não entendo...
— Não! Olhe pela janela. Não permitirei que saia com esse tempo.
Da escuridão do quarto era fácil ver o brilho que havia do lado de fora.
A neve, ainda formando redemoinhos, tinha branqueado tudo e se acumulava
nos cantos dos batentes, sobre os telhados do curral, do celeiro, sobre o cata-
vento do moinho de John, enfim, sobre todas as coisas que havia por ali.
— Mas, Linnea...
— Não. Depois do que aconteceu com John, não! Esta criança
conhecerá o pai.
— Mas não é uma nevasca. É uma simples precipitação de neve —
objetou Theodore, desesperado, com medo de que ele tivesse que fazer o
parto.
Linnea saiu da cama com dificuldade e agarrou o braço de Theodore,
que se esticava à procura da camisa.
— Teddy, podemos fazer isso.
Ela sentiu sob a mão a tensão dos músculos dele.
— Está louca? Nunca ajudei uma criança a nascer.
— Tem feito isso com cavalos, não é? Não pode ser muito diferente.
— Linnea, estou perdendo tempo.
— Não irá, Teddy. Não aguentarei passar por tudo de novo — agarrou-
o com força e, decidida, retendo-o, impediu-o de se inclinar para pegar as
botas. De repente, ofegou.
— Oh... Teddy... Oh!
— O que há?
Aterrorizado, ele acendeu a lamparina e, ao se voltar, viu-a de pé no
chão, com os pés separados, olhando para baixo, para um líquido que
escorria.
— Já está saindo algo. Oh, por favor, não me deixe sozinha.
Theodore, de boca aberta, olhou para a poça que havia se formado aos
pés da mulher e se perguntou, desesperado, o que fazer. Com Melinda, aquilo
tinha durado horas e na época, sua mãe estava lá para cuidar de tudo.
— A bolsa de água estourou. Significa que falta pouco para nascer.
— Oh, meu Deus! O que tenho que fazer? — perguntou, como se
pudesse controlar algo.
Em três passos, aproximou-se, levantou-a e a pôs outra vez na cama.
— Descanse entre uma dor e outra, não resista quando elas chegarem.
Tenho que acender o fogo e conseguir um pouco de corda.
— Corda! Oh, Teddy por favor, não vá ao povoado. Nós...
— Não irei — tocou o rosto da esposa carinhosamente para tranquilizá-
la, afastando o cabelo da testa dela, beijando os olhos fechados de Linnea. —
Fique calma. Isso é uma coisa muito natural. A corda é para que você se
agarre a ela. Voltarei em seguida, de acordo? E prometo que não irei ao
povoado. Mas tenho que ir ao estábulo. Você fica aqui e faz o que eu disser
quando as dores chegarem.
Linnea assentiu com os movimentos convulsivos de uma pessoa muito
assustada para discutir.
— Vá rápido, Teddy — sussurrou.
Ele se apressou, maldizendo-se por não ter se preparado de antemão.
Estava convencido de que ainda tinha um mês pela frente, e, mesmo assim, o
médico estava acostumado a levar estribos de couro para as mulheres se
segurarem e instrumentos esterilizados. Nunca acreditou que tivesse que
cortar cordas e ferver tesouras. Malditos invernos da Dakota! Que raios faria
se surgissem complicações?
A neve lhe ardeu nas faces, mas ele a enfrentou e voltou do estábulo
com a corda mais limpa que pôde encontrar. Mas quando retornou ao
dormitório, Linnea estava agitada.
— Venha mais rápido, Teddy, molhei toda a cama.
— Acalme-se, meu amor, não se preocupe. É assim mesmo, com as
éguas também, os lençóis poderão ser lavados.
— Éguas? É...guas? Não sou um...
— Eu sei, meu amor. Evidente que não é... mas você mesma disse que
é tudo igual.
Entre uma e outra contração, Theodore acendeu o fogo, esterilizou as
tesouras e a corda, encontrou uma manta limpa para o recém-nascido, uma
bacia e uma toalha para o primeiro banho. Levantou Linnea e cobriu a cama
com um lençol engomado, sobre o qual colocou uma manta de flanela
pregueada e sobre ela estendeu um lençol limpo. Ao erguer a esposa em seus
braços para colocá-la outra vez na cama, Linnea sentiu a mais intensa das
dores. Ofegou, ficou rígida e ele a abraçou, sentindo seu corpo tenso. Ela lhe
agarrou os ombros e quase o feriu com as unhas, mas ele sequer sentiu, tão
preocupado estava com ela. Quando acabou, Linnea abriu os olhos e
Theodore lhe deu um beijo suave nos lábios.
— Da próxima vez que uma guerra terminar, não dance tanto, promete,
Senhora Westgaard?
Linnea lhe deu um sorriso trêmulo, mas suspirou e relaxou enquanto
ele a deitava outra vez.
— Quero uma camisola limpa — pediu ela, quando sua respiração se
normalizou.
— Mas para quê, amor?
— Nosso filho não nascerá enquanto a mãe estiver com uma camisola
manchada. Traga-me uma camisola limpa, Theodore.
Quando ela o chamava de Theodore, ele sabia que era preferível não
contradizê-la. Voou até a cômoda, perguntando-se de onde vinha essa súbita
demonstração de coragem, tendo em conta que um momento atrás ela estava
consumida pela dor. Mulheres, pensou. O que os homens sabiam delas?
Tirou-lhe a camisola suja, mas manteve a nova enrolada nas mãos
quando lhe sobreveio uma nova dor aguda. Linnea caiu para trás, arqueou-se
e ele viu como mudava de forma a barriga com a contração, viu que ela
erguia os joelhos e o corpo se levantava como que por vontade própria.
Theodore começou a suar e o peito estava molhado. Teve a impressão
de que, no fundo do ventre, sentia a mesma dor que ela. Tremeram-lhe as
mãos quando a ajudou a vestir a camisola limpa e a dobrou na cintura. Nunca
em sua vida tinha feito um nó com tanta rapidez. Dividiu a corda, que media
um metro de comprimento, fixou cada uma nos postes metálicos da cabeceira
inferior da cama e formou laços com os outros extremos, de modo que
Linnea pudesse passar as pernas por eles. Não tinha terminado de ajustar o
último nó quando ela disse seu nome, ofegante, e estendeu as mãos. Agarrou-
se às mãos dele com tanta força que ele sentiu dor. Ela o atraiu para si com
força tal que os braços de ambos tremeram. Jesus, para que essas cordas?
Pensou ele. Quando terminou a contração, os dois ofegavam.
Ele correu à cozinha e encontrou duas toalhas grossas para acolchoar as
cordas de maneira a que não lhe raspassem nas pernas. Levou a mesinha de
noite e a lamparina para perto dos pés da cama, a fim de iluminar o corpo
exposto da mulher. Levantou-lhe com delicadeza os pés e os passou pelas
cordas, deslizando-as rapidamente com cuidado até atrás dos joelhos da
esposa. A lamparina tingia de dourado as coxas brancas de Linnea. Pela
primeira vez, Theodore compreendeu como era vulnerável uma mulher
durante o parto. Os olhos injetados de sangue de Linnea se abriram.
— Não se assuste, Teddy — murmurou. — Não há nada o que temer. É
a natureza...
Já não havia mais rastro do medo que Theodore havia visto antes nela.
Estava serena, preparada, confiante na habilidade do marido para exercer a
função de ajudar o filho deles a nascer. Theodore se aproximou dela e se
inclinou sobre a mulher, sentindo que a amava mais do que nunca.
— Não estou mais assustado, está bem? — era a primeira vez que ele
lhe mentia. Contemplando o rosto avermelhado da esposa, soube que trocaria
de lugar com ela com muito gosto, se pudesse. Esticou os braços dela sobre a
cabeça e colocou-lhe com delicadeza as mãos nos postes metálicos.
— Economize energia, amor — cobriu-lhe os dedos com os seus. —
Não fale. Grite se quiser, mas não fale.
— Mas falar me distrai da dor... — Linnea fez uma careta e ofegou.
Com o coração palpitando, Theodore correu para o outro extremo da cama,
sentindo-se inseguro e tolo e mais assustado do que quando ele e John foram
apanhados pela nevasca.
Os músculos de Linnea se esticaram. As cordas ficaram tensas. Os
postes de ferro da cama ressoaram e se curvaram para dentro. A mulher
emitiu um fundo e longo gemido e de seu corpo emanou um líquido rosado.
Theodore ficou olhando, horrorizado por ser o responsável por semelhante
situação, jurando a si mesmo nunca mais, nunca mais lhe causar semelhante
coisa. Com os dentes apertados, murmurou: — Vamos... vamos... — como se
a criança pudesse ouvi-lo.
Quando a dor mitigou, a camisa de Theodore estava empapada sob os
braços. Linnea descansou e enxugou a testa.
— Como vai? — perguntou ele com voz suave. Linnea fez um sinal
com a cabeça de que estava tudo bem, com os olhos fechados.
— Diga-me quando... — ela começou a dizer, mas dessa vez a
contração a fez levantar os quadris da cama mais do que antes.
Theodore viu que o líquido rosado se fazia mais intenso e pensou: Oh,
Deus, a criança está morrendo! Não a deixe morrer. A ela também não! Se
tiver que escolher um deles, escolho a minha mulher, Deus. A ansiedade de
fazer algo por ela, algo que a ajudasse, destruía-o. Passou-lhe as mãos por
baixo e ajudou-a a se erguer, pois, aparentemente, era o que exigia a natureza.
— Vamos, saia daí — murmurou para a criança. — Grita, Lin, grita se
quiser!
Mas quando apareceu uma cabeça loira, foi ele quem gritou: — Vejo a
cabeça — a excitação lhe percorreu o corpo. — Empurra, amor, mais uma
vez, vamos, Lin, empurra com força agora...
Com a contração seguinte, o menino estava na mão grande e calosa do
pai, em meio a uma massa escorregadia e morna. Ouvindo o choro vigoroso
do filho, Theodore sorriu com o riso mais largo que um homem podia dar.
Quis dizer a Linnea que era um menino, mas não podia vê-la através das
lágrimas. Erguendo os ombros, secou os olhos neles.
— Lin, é um varão! — exclamou emocionado.
— Um menino — repetiu a mãe.
— Com uma pequena bolota rosada — disse Theodore.
A mãe riu, cansada, e conseguiu levantar a cabeça. Mas se deitou outra
vez e tateou com os dedos a cabeça do pequeno.
Como por milagre, Theodore se tornou sereno como no olho da
tormenta. Pareceu-lhe que nunca em sua vida tinha sido tão eficiente como
quando atou dois pedaços de corda no cordão umbilical e o cortou.
— Pronto. Agora já vive por conta própria — disse o pai.
Linnea riu, embora ele visse que ela estava chorando. Theodore
levantou o menino e passou o dedo na boca da criança para limpá-la da
mucosidade.
— Já está sugando — disse para a mulher, comovido pela sensação da
delicada língua que lhe sugava o dedo.
— Tem todos os dedos das mãos e dos pés? — perguntou Linnea.
— Todos, embora não maiores do que os ossos de um pardal.
— Apresse-se, Teddy — disse ela com voz fraca.
Empurrar para tirar a placenta lhe doeu tanto quanto deve ter doído
para ela, mas estava seguro agora. Linnea tinha a barriga macia e flexível,
Theodore comprovou quando a apertou com as duas mãos. Voltou a prometer
a si mesmo não fazê-la passar nunca mais por semelhante situação. Se
pudessem se alternar, ele o suportaria. Mas ela, não. Não a sua preciosa
Linnea.
Era a primeira vez que ele dava banho em um recém-nascido. Jesus,
como era possível que um ser humano tão diminuto fosse tão perfeito?
Unhas e pálpebras tão finas que se podia ver através delas. Pernas tão
pequeninas que ele tinha medo de endireitá-las para secar a parte de trás dos
minúsculos joelhos. Os cílios tão finos que quase não se viam. Envolveu a
criança na manta de flanela e a pôs nos braços de Linnea.
— Aqui está, meu amor. É pequeno.
— John — murmurou brandamente a mãe, dando-lhe as boas-vindas.
— Olá, John.
Theodore sorriu ao ver como ela pousava os lábios na cabeça aveludada
do filho.
— Até se parece um pouco com nosso John, não é mesmo? — disse
Theodore.
Era evidente que não se parecia. Tinha o mesmo aspecto que todos os
recém-nascidos: enrugado, vermelho e contraído. Mas Linnea admitiu: —
Sim, parece.
— E acredito que tem um pouco de mamãe ao redor da boca também
— continuou Theodore.
A boca do menino não se assemelhava em nada à de Nissa, mas Linnea
assentiu novamente.
Theodore se acomodou junto a ela e os dois contemplaram o milagre
que o amor deles tinha criado. Nascido no seio de uma família que tinha
perdido muitos dos seus, encarnava a esperança de uma nova vida.
Concebido por um homem que se acreditava muito velho, dando-lhe uma
renovada juventude. Nascido de uma mulher que se acreditava muito jovem,
dando-lhe uma resplandecente maturidade. Concebido em tempos de guerra,
trouxe com ele o sentido da paz.
Theodore tocou a mão do pequeno com seu dedo mindinho e se
maravilhou quando o punho minúsculo do menino o apertou.
— Quem dera eles pudessem vê-lo — disse ele.
Linnea tocou a mão do marido, tão grande e tão forte comparada com a
do filho, e o olhou nos olhos.
— Acredito que eles o veem, Teddy — murmurou.
— E Kristian? — disse Theodore, esperançoso. — Imagino que
Kristian vai querer muito conhecer o irmão, não acha?
Linnea assentiu, com o olhar fixo no de Theodore e, de repente soube,
no fundo do coração, que o que Theodore dizia era verdade.
— Kristian vai amá-lo.
Theodore beijou a testa da mulher e se demorou ali.
— Eu te amo, Lin.
Linnea sorriu, sentindo uma profunda plenitude.
— Também te amo. Sempre amei, Teddy.
Ouviram o vento da pradaria, que sacudia as janelas. E escutaram o
ruído do pequeno sugando. A gata de John tinha entrado furtivamente e
olhava para os três com curiosidade. Emitindo um suave ronronar, saltou
sobre a cama, deu duas voltas e se pôs a dormir sobre a velha manta de Nissa.
O arredio fazendeiro, que tinha recebido a nova professora na estação
com tanto mau humor, estava sentado rodeando-lhe a cabeça com o braço.
Theodore se perguntou se seria possível fazê-la compreender o quanto a
amava.
— Agora há pouco eu estava assustado — ele confessou.
— Percebi, meu amor.
— Ver você assim, sofrendo tanto... — beijou-lhe a testa. — Foi
horrível. Nunca a farei passar outra vez por isso.
— Sim, fará.
— Não, não farei.
— Acredito que sim, Teddy.
— Jamais. Que Deus me ajude, jamais quero vê-la sofrendo. Eu a amo
muito...
Linnea riu e passou os dedos sobre o fino cabelo de John.
— Da próxima vez quero uma menina e a chamaremos de Rosie.
— Uma menina? Mas, meu amor...
— Shh. Venha, deite-se conosco. Você também está esgotado.
Com o pequeno nos braços, Linnea se afastou para dar espaço para o
marido.
Theodore se deitou sobre as mantas, ficou de lado e estendeu um braço
protetor por cima do menino sobre o quadril da esposa.
Lá fora, em alguma parte da pradaria, os cavalos corriam livres. E os
cardos se balançavam ao vento. E sobre o guindaste de um moinho, os caules
secos das glórias da manhã do verão anterior ainda se abraçavam enquanto os
sinais de multiplicação sussurravam brandamente. Dentro, um homem e sua
mulher estavam juntos, olhando seu filho dormir serenamente, pensando no
amanhã e nas bênçãos por vir, na vida que viveriam em plenitude, a cada
minuto, a cada dia, a cada ano.
DESFECHO
JOHN WESTGAARD SOBRINHO

Três meses depois do fim da guerra, Kristian e Bill chegaram ao


Álamo. Estavam magros e pareciam ter envelhecido dez anos. Theodore foi
buscá-los na estação, e ele quase não reconheceu o seu menino, que voltava
para casa um homem já feito. Eles se abraçaram e se beijaram na frente de
Bill e de outros soldados que também retornavam da batalha, mas o rude
fazendeiro Theodore há muito havia amolecido. O amor de uma
professorinha de Fargo tinha lhe ensinado que a força de um homem não está
na brutalidade, mas sim na alma, uma alma capaz de recomeçar, de se curar,
de se regenerar das batalhas da vida; afinal há perdas, mas sobretudo há
ganhos. Embora ainda um pouco enciumado, Theodore abraçou Bill, batendo
forte nas costas do rapaz. Na estação, deu a eles as boas-vindas e no caminho
para casa, as más e as boas notícias. Kristian ainda não sabia da morte de
Nissa e uma lágrima escorreu por sua face. Ela era a mãe que ele conhecera e
perdê-la foi como se tivesse sido castigado por escolher a guerra ao invés da
paz dos trigais da Dakota do Norte.
Como Theodore e Linnea imaginaram, ele amou o irmãozinho desde o
primeiro momento em que soube de sua existência. Mas havia outra pessoa
que Kristian ansiava por ver e amar. A primeira vez deles não saíra de sua
cabeça nem nos piores momentos da guerra: muito pelo contrário, ele se
agarrava ao desejo de vê-la novamente e lutava pela vida. Durante a viagem
do povoado até a fazenda, não falou muito do que passara na França, não
queria se lembrar daquilo, mas guardaria nos recônditos da alma a primeira
visão das montanhas e das árvores; no seu íntimo, contudo, morria de
saudades das plantações de trigo, que se perdiam de vista, como um mar
dourado, tremeluzindo ao vento. Da guerra ele tirou uma valiosa lição: a paz
era um tesouro e ali no Álamo havia paz.
Quando chegou à casa da fazenda, após abraçar Linnea, pegar o
irmãozinho no colo, beijá-lo, foi ao antigo quarto da sua pequenina avó, mas
cuja força e coração eram enormes. Sentou-se na cama, e acariciou o colchão,
e chorou por Nissa, pedindo perdão por tê-la deixado. Ficou ali por vários
minutos, chorando também pelos primos que a gripe espanhola havia levado.
Duas horas depois de colocar os pés em casa, Kristian já estava sobre o
lombo de FIy, a caminho da casa de Patricia. Seu coração estava dividido: às
vezes tinha absoluta certeza de que ela estava esperando por ele como
dissera, mas em outros momentos a incerteza o açoitava. A moça, contudo,
não via a hora de ele chegar. Desde que os sinos retumbaram anunciando o
fim da guerra, ela contara os segundos, os minutos, os dias e os meses para o
retorno de Kristian. Beijaram-se e se abraçaram por vários minutos. Seus
corpos estavam trêmulos de emoção e desejo, ansiando por reviver aquilo que
já tinham experimentado. Naquela mesma noite, às margens do rio, Kristian e
Patricia se amaram novamente. E isso se repetiu dias após dias, até que um
casamento teve que ser antecipado, pois Theodore seria avô. Isso o deixou
muito aborrecido: já não bastava ser dezesseis anos mais velho que sua linda
e jovem mulher, agora teria que carregar o título de vovô Theodore? Mas,
feliz ou não, o casamento se realizou e o casal se mudou para a antiga casa de
John.
E os anos foram se passando: a neve caía abundantemente ano após
ano, pintando tudo de branco; o trigo foi plantado e colhido inúmeras vezes;
Isabelle retornou à fazenda para conhecer o novo Teddy, como ela chamava o
filho de Theodore, e ela e Linnea, por mais estranho que possa parecer,
tornaram-se amigas. Linnea sabia ser grata e Isabelle sabia que o homem que
ela amava havia escolhido outra para amar. O que ela podia fazer era
subjugar o seu amor proibido e aceitar a amizade dele, pelo menos ela estaria
por perto para vê-lo e relembrar o passado glorioso dentro da carroça. Era o
que lhe restava.
Linnea engravidou novamente e teve a sua Rosie, em homenagem à
doce Roseanne – que se tornou uma estrelinha no céu –, como a própria
menina um dia falara.
John Westgaard Sobrinho era parecido com Theodore – pele morena
curtida pelo sol –, mas herdara os olhos azuis da mãe. De seu tio John, de
quem herdara o nome, tinha a doçura. Era um espetáculo de rapaz. Rosie era
loira igual à mãe, mas tinha os olhos da cor dos do pai. Rosie herdara a
personalidade de Theodore, e John, o ímpeto e a coragem de Linnea.
Vinte anos cheios de glória se passaram. A família Westgaard era a
mais importante do Álamo. Theodore havia enriquecido e Kristian, pai de
Tony e de Nissinha, multiplicara a riqueza da família, adquirira máquinas
agrícolas e modernizara a colheita do trigo. Theodore também havia
comprado um Ford modelo T e Kristian também tinha um automóvel. Teddy,
agora com cinquenta e cinco anos, era casado com uma mulher de trinta e
nove, quase quarenta, como dizia Linnea, mas a diferença que outrora parecia
enorme agora não era mais. Ele continuava um homem muito atraente e
Linnea – se é que isso é possível –, havia ficado ainda mais bela.
Naquele dia, eles estavam voltando de Fargo, pois Rosie queria estudar
para ser professora como sua mãe fora, e ficaria morando com os avós
maternos. Carrie tinha se casado com Adrian Mitchell e Pauline também
havia se casado com um amigo que Adrian fizera na guerra e que,
posteriormente, o fora visitar em Fargo. Judith, portanto, estava se sentindo
muito sozinha e adorou a notícia de que Rosie ficaria com eles. Theodore não
tinha gostado nada da ideia de a filha ir morar na cidade, mas acabou
concordando quando Linnea insistiu em que a mocinha tinha todo o direito de
ser professora, e em que os anos se passariam rapidamente; que ela nem se
dera conta de que vinte anos já tinham se passado. Quando disse isso,
Theodore mudou de assunto: a contagem dos anos sempre o incomodava.
O destino de Rosie será narrado no final, pois é a história de John
Westgaard Sobrinho que é necessário contar.
Dono de uma beleza incomum, inteligente, generoso, honrado, a cada
dia crescia a lista das moças das redondezas apaixonadas por ele. Mas John
não conhecia ainda a paixão, tampouco o receio de perder alguém que tanto
se ama. Tudo mudou com a chegada, em 1938, da nova professora do
ginásio, pois a escolinha do Álamo também havia progredido. Havia um
edifício muito maior do que aquele onde Linnea lecionara no passado.
No passado os Westgaards sempre hospedaram um professor. Era a
tradição. Mas como a família havia crescido – e os quartos foram ocupados –,
há anos eles não hospedavam nenhum, pois no quarto do andar de cima
ficava Ivy Jones, a moça que ajudava Linnea com os afazeres da casa. Mas
agora que Rosie tinha se mudado para Fargo, o quarto dela estava vago.
Então Chloe MacGyver, a nova professora que estava vindo de Pierre, na
Dakota do Sul, seria hóspede dos Westgaards.
John foi escalado para buscá-la na estação, não mais numa carroça e
sim no Ford modelo T da família, e Tony Westgaard – filho de Kristian e
Patricia – o sobrinho de dezenove anos, foi com ele. Eles eram muito unidos,
pois Tony herdara o bom temperamento de Kristian e era um rapaz tão belo
quanto seu pai fora na sua idade.
Como Linnea no passado, Chloe MacGyver tinha apenas dezoito anos.
Era uma moça da cidade, tão viçosa como uma árvore de cetim-noz no
outono, com sua cabeleira vermelha. E como a própria Linnea, ela também
sonhava acordada, no caso de Chloe, com um príncipe que iria buscá-la na
estação montado em um cavalo branco. Por ser da cidade, ela tinha
fascinação por cavalos, e nos seus devaneios sempre havia um herói montado
em um deles. Filha de mãe de ascendência escocesa e de um pai que morrera
ainda jovem, cujo rosto ela nunca vira, a moça precisava de cada centavo de
seu salário para ajudar a mãe.
John Westgaard estacionou em frente à estação e ficou encostado no
carro, com as pernas cruzadas, com seu suéter azul. Era um modelo de beleza
e de status social daquela época. Mas não se dava conta de nada disso. Não
tinha qualquer noção de seu extremo fascínio, com um sorriso fácil e modos
gentis.
Chloe os viu primeiro, pois John Westgaard estava pensando no que
ocorrera na noite anterior com Ivy Jones. Desde que a moça fora trabalhar em
sua casa, há dois anos, ela era apaixonada por ele. John até a achava atraente,
gostava dela, pois Ivy tinha uma massa de cabelos negros que lhe caíam nos
ombros e um corpo com mais curvas que a estrada que dava acesso ao rio.
Embora muito amigo de Tony, John não havia contado para ele sobre seu
relacionamento com a criada de sua mãe.
Foi Tony Westgaard que a viu primeiro, quando uma bela mocinha de
cabelos cor de avelã desceu do trem carregando uma mala. Usava um vestido
azul e um chapéu que parecia muito pequeno para o tamanho de sua cabeça;
mesmo assim Tony a achou linda e exótica. Ele deu uma cotovelada em John,
para que o tio voltasse à realidade e olhasse para a moça magra, que tinha a
cintura mais apertada que já tinha visto. Displicentemente, John a olhou, e a
primeira coisa em que ele pensou foi que se alguém desse um tropeção e
encostasse nela, ela se partiria ao meio. Não sabia como ela conseguia
respirar com aquela coisa amarrada na cintura.
— Ela é linda! — exclamou Tony.
— Anda logo. Vamos lá recepcionar a moça — disse o jovem
Westgaard mais velho, que sempre liderara o mais novo.
Parada no meio da estação, correndo o risco de ser “partida ao meio”,
segundo John, estava a moça dos cabelos vermelhos. Embora presos, eles
lutavam para escapar do chapéu minúsculo e horrível, também segundo John,
e com certeza venceriam assim que ela entrasse no carro sem capota. John já
imaginava o chapeuzinho voando. Sorriu.
— Senhorita MacGyver, presumo — disse John, educado, estendendo-
lhe a mão.
— Chloe MacGyver, ao seu dispor, senhor...
— John Westgaard Sobrinho, às suas ordens, senhorita.
Virando-se para Tony, John os apresentou: — Este é meu sobrinho,
Tony Westgaard, O Vaqueiro — disse John, rindo. Eles sempre faziam isso
um com o outro quando estavam querendo se exibir para uma mocinha. Tony
respondeu: — Muito prazer, senhorita MacGyver. Como meu tio, O
Conquistador, disse, gosto de cuidar dos animais. Tenho cavalos e bois.
Chloe abriu um grande sorriso para Tony, pois ele, com seu discurso,
tinha saído na frente na corrida para ganhar seu coração. Ela preferia mil
vezes ser cortejada por um vaqueiro a sê-lo por um conquistador. John,
quando se viu preterido, tratou de usar sua arma mais potente, o sorriso. Riu
para a senhorita MacGyver, pegou a mala e a conduziu ao Ford, sentando-a
na frente, deixando Tony se sentar na parte de trás.
Aqui inicia-se um quarteto amoroso que pode não terminar muito bem.
Dois Westgaards disputando uma moça e uma terceira pessoa que não
aceitará ser abandonada.
Linnea, muito perspicaz, comentou com Theodore o que se
descortinava à frente deles.
— Você está dizendo que o John e aquela cabelo de...
— Teddy, não se refira à professora do ginásio dessa maneira. Era
assim que você se referia a mim?
— Não. Eu me referia a você como Pequena Senhorita — ele sorriu e a
beijou.
— Estamos desviando do assunto, Teddy. Eu estava falando sobre a
Chloe. Você viu como John olhava para ela hoje no jantar?
— Na verdade, não. Eu estava pensando que se ela fosse mais gorda
seria igual a Isabelle.
Linnea riu e bateu no braço do marido.
— Isabelle, Teddy? Isso é hora de trazer a Isabelle para a nossa cama?
— Pensei que fossem amigas.
— Somos, mas cautela e canja de galinha não fazem mal a ninguém.
Theodore soltou uma gargalhada.
— Shhh. A moça vai nos ouvir.
— Que moça?
— Meu Deus, Teddy! De quem estamos falando?
— Bem, a senhorita professora saiu a cavalo com o Tony logo depois
do jantar. Você não viu?
— Não. Estavam em dois cavalos?
— Em um só.
— Oh! Será que ela prefere o Tony ao John? — perguntou Linnea,
encarando o marido.
— Duvido muito. Acho que ela está usando o coitado do Tony para
fazer ciúmes no nosso filho. E ele está caindo direitinho.
— Por que você diz isso, Teddy? Viu ou ouviu alguma coisa?
— Vi que John, em seguida, saiu com a... — Theodore hesitou e olhou
para a esposa.
— Com quem?
— Acho que falei demais. Ah, Linnea! Não me envolva nisso.
— Teddy, com quem John saiu? — muito brava.
— Minha querida, nosso filho é um homem feito, trabalhou o dia todo
na fazenda, deixa o coitado se divertir um pouco numa noite de lua cheia
como essa.
— Teddy, se ele saiu com quem estou pensando, amanhã mesmo vou
colocar aquela... aquela... aquela moça no carro e despejá-la em Fargo.
— Bom, então trate de arranjar outra pessoa para ajudar na casa —
murmurou Theodore.
Linnea cruzou os braços sob os seios e bufou de irritação. Bem debaixo
de seu nariz, John estava aprontando e ela nem desconfiara. Sim, até
desconfiou, pois viu Ivy olhando para John com aqueles olhos, mas toda
moça o olhava daquele jeito, pensou ela, orgulhosa. Adorava o filho, muito
mais do que amava a filha, que era igualzinha a ela. Já, Theodore, adorava
Rosie. O que ela não imaginava era que John fosse se envolver com a criada.
Não pelo fato de ela ser a criada da casa, mas a moça estava sob sua
responsabilidade, imagina se ele, se eles...
Às margens do Holman’s Bridge, algo que daria um desfecho ao
quarteto estava prestes a acontecer. John e Ivy tinham ultrapassado Tony e
Chloe e ido para o local onde os jovens costumavam ir em noites claras como
aquela, noites que pareciam dia. Eles se sentavam na ponte do rio, ou às
margens dele, conversando e rindo e, às vezes, amando-se. Quando o casal a
cavalo chegou, John estava jogando pedras no rio e Ivy, sentada segurando os
joelhos. Tony apeou do cavalo e ajudou Chloe a descer. Tony brincou: — Ei,
tio, está tentando nocautear um peixe?
Embora, de fato, John fosse tio de Tony, eles nunca se tratavam dessa
maneira.
— Sim, estou — respondeu John, mas se manteve sério.
Chloe disse que iria colher flores na outra margem do rio e saiu
saracoteando pela ponte; Ivy ficou olhando para a professora e no seu olhar
havia tudo, menos amizade. Logo ela se levantou também e foi até onde
Chloe estava, já com um ramalhete de cardos nas mãos. Por que toda
professora gostava dos cardos? Lamento, mas não há uma explicação lógica
para isso. Só o que se sabia era que os cardos eram abundantes por ali.
Tony se aproximou de John e eles ficaram conversando. John tinha os
braços cruzados e parecia sentir frio, embora estivessem na primavera. Do
outro lado do rio, as moças pareciam discutir animadamente, mas logo os
dois Westgaards perceberam que algo grave estava acontecendo por lá, pois
Ivy havia esbofeteado a professora e a empurrado para dentro do rio.
Imediatamente, John saiu para socorrê-la, mas o rio era raso e a própria Chloe
havia se levantado antes mesmo que John a alcançasse. Mas ela havia se
molhado e o vestido branco estampado mostrava mais do que a senhorita
MacGyver estava disposta a mostrar. Percebendo o desconforto da moça,
John arrancou seu suéter e o entregou a ela.
— Tome, vista-o — disse ele, pálido.
— Não entendo — disse Chloe, tremendo. — Ela começou a me
ofender...
— Por que fez isso, Ivy? — foi Tony quem perguntou.
— Foi ela quem me provocou. Essa... Essa... Essa professorinha de...
— Pare com isso agora mesmo, Ivy! Não devemos ofender as pessoas
— John interveio, pois Ivy dava sinais de que atacaria Chloe novamente.
— Você, seu desgraçado... me violou e agora fica aí, jogando-se em
cima dessa... dessa... vaga...
— Pare! — gritou Tony, exasperado, segurando a mão de Chloe para
arrastá-la dali. A professora saiu cabisbaixa, envergonhada e humilhada.
Logo o cavalo de Tony já fazia a curva do rio e desaprecia da visão deles.
John Westgaard era honrado, educado e não humilharia Ivy – com
quem ele de fato se deitara – na frente de ninguém. Ele podia ter dito que foi
ela que fora em seu quarto se oferecer para ele, e que ele não a violara, pois
ela já havia se deitado com vários outros rapazes em Fargo. Ela mesma lhe
confessara isso. Mas não fez nada disso. Apenas entrou no carro, esperou que
Ivy se sentasse ao seu lado, deu partida e foi embora em silêncio. Na estrada
passaram por Tony e por Chloe, agarrada à cintura de Tony e vestida com o
suéter de John. Ao chegar à casa sede, John disse apenas uma palavra para
Ivy: — Acabou.
Linnea percebeu que algo estranho estava acontecendo, pois viu
quando John chegou e logo depois ouviu a porta do andar de cima bater com
força. Pela localização, o som viera do quarto de Ivy. E ela teve certeza
minutos depois, pois John saiu de casa e entrou, como se tivesse esquecido
algo do lado de fora.
O filho foi até ela.
— Mamãe, onde está o papai?
— Está no estábulo, creio. O que aconteceu, filho? Você está pálido!
Antes que John respondesse, Chloe entrou toda molhada, vestindo o
suéter de John, mas acompanhada por Tony.
— Aconteceu alguma coisa, Chloe? — Linnea perguntou, mas olhou
para Tony e para John.
— Um pequeno acidente — Chloe sorriu. — Eu caí no rio e John me
emprestou o suéter.
— Ah, tá — disse Linnea, mas sabia que a história não havia sido
contada até o fim. De fato, a professora caíra no rio, ou se jogara, mas John
estava muito estranho.
— Vá tirar essa roupa molhada antes que você adoeça — disse Linnea.
Ela estava começando a desgostar daquela jovem.
— Com licença — disse Chloe e entrou no antigo quarto de Nissa, que
depois se tornou de Rosie, e que agora ela ocupava. Tony deu uma desculpa
qualquer e saiu e John olhou para a mãe e disse: — Estou pensando em ir ver
Rosie, mamãe. Será que o papai se importaria?
Linnea encarou o filho. Embora ele amasse a irmã, aquilo não era usual
nele, uma saudade repentina. Ela sabia que algo havia ocorrido e que John
estava fugindo. Theodore agora possuía vários empregados para cuidar do
trigo e da fazenda e, certamente, John poderia ir quando quisesse. Mas ela
perguntou novamente: — Está acontecendo algo, filho? Algo que seus pais
deveriam saber?
John pensou por alguns segundos e respondeu no instante em que
Theodore entrava na cozinha: — Estou indo para que não aconteça, mãe.
— Do que vocês estão falando? O que pode acontecer? — perguntou
Theodore.
— Quero ir para Fargo, pai. Se o senhor não for precisar de mim aqui.
Theodore e Linnea se entreolharam, e Theodore sabia, pelo olhar da
esposa, que deveria incentivar o filho a sair da fazenda.
— Por mim tudo bem. Está com saudades da Rosie, não é? Também
estou morrendo de saudades daquela pequena.
O outro dia era domingo, e bem cedo John partiu no carro do pai. Não
se despediu de ninguém, pois já havia se despedido dos pais na noite anterior.
Nessa mesma noite, no quarto de Linnea, entabulou-se uma conversa.
Theodore perguntou, assim que se despediu do filho e lhe desejou uma
boa noite e uma ótima viagem: — Mas o que está acontecendo, Lin?
— Meu amor, acho que nosso filho está sendo prudente. Hoje a Chloe
chegou aqui toda molhada, dos pés à cabeça e usando o suéter do nosso filho.
— A senhorita MacGyver? Molhada?
— Sim.
— Mas o que tem isso? Ela deve ter decidido tomar um banho no rio.
— De vestido e tudo? E por que ela usava o suéter do John se chegou
com o Tony?
— Mas eu não estou entendendo nada, Lin. Vocês mulheres complicam
tudo.
— Meu amor, para mim Tony está apaixonado pela professora e ela
está apaixonada pelo John. Vi como ela olhava para ele hoje.
— E John? Por que está fugindo?
— Porque ele não quer magoar o Tony e...
— E?
— Acho que a Ivy — Linnea falou baixinho e apontou para cima —,
está apaixonada pelo nosso filho e acho até que...
— O quê? — Theodore arregalou os olhos.
— Acho que ele fez com ela a mesma coisa que você fazia com
Isabelle.
Theodore abriu a boca, mas preferiu o silêncio.
— Bem, entendeu? — perguntou Linnea.
— Ainda não — respondeu Theodore.
— Homens!! — exclamou a mulher. — Que raciocínio vocês dizem
que têm se não conseguem ligar os pontos?
— Mas, meu amor! Essa história está muito complicada...
— Não, Teddy, é simples. John possivelmente teve algum
envolvimento com a Ivy. Mas quando a Chloe chegou, possivelmente se
apaixonou por ela, e Ivy deve estar envolvida no banho no rio de hoje, no fato
de a professora ter chegado toda molhada. Eu a escutei batendo a porta do
quarto...
— Santo Deus! A cada minuto entendo menos.
Linnea riu. Era muito confuso mesmo para a cabeça de um homem.
Mas qualquer mulher entenderia que John não queria mais ficar com a Ivy,
certamente não queria prejudicá-la, fazê-la perder o emprego, então se
retiraria da casa. Com isso evitaria que ele e seu melhor amigo – e sobrinho –
duelassem pela mesma mulher.
John foi recebido pela avó e pelo avô com muito carinho, e ambos
prometeram organizar um jantar para lhes apresentar algumas moças e
rapazes, para que ele se entrosasse na cidade. Enquanto isso não acontecia,
John foi ajudar no armazém do avô todos os dias. Ele ainda não havia visto
Rosie, que estudava em um colégio interno para moças e só voltava para a
casa da avó nos finais de semana. Como ele chegou no domingo – no final da
tarde –, ela já tinha partido.
No sábado, quando Rosie chegou, Judith pediu que John a levasse de
carro à casa da sua tia Carrie, em Moorhead, uma cidade vizinha a Fargo. Era
aniversário de sua neta Sophie. A última vez que John tinha visto Sophie, ela
estava com aproximadamente quatorze anos, e era uma adolescente gorda e
com o rosto cheio de espinhas. Ele chegou a fazer uma cara de nojo quando
se lembrou da prima. Carrie e Adrian Mitchell tinham tido dois filhos, Harry
e Sophie. Harry tinha cerca de dezenove anos, mais ou menos, e a feia
Sophie, dezessete, talvez, pensou John enquanto conduzia o carro e refletia
que aquele seria um sábado perdido. Ele não gostava muito da tia Carrie, pois
esta morria de ciúmes de sua mãe, de quem o marido gostara antes de se
casar com ela. Uma história mais ou menos assim, mas o que lhe interessava
era que Adrian Mitchell era um cara muito legal.
Mas nada preparou John Westgaard Sobrinho para a mudança que
ocorrera em Sophie. Não, não pode ser ela! Mas como uma pessoa podia
mudar tanto em três anos? Sophie estava tão linda quanto Adrian Mitchell
fora na juventude, tão encantadora quanto o pai, uma perfeita dama, na
opinião de John. Se ele acreditasse em amor à primeira vista (primeira vista
depois da metamorfose, pensou John), diria que estava apaixonado pela
prima. Mas o que era aquilo que ele estava vendo? Era Rosie e... Sua
irmãzinha e Harry se beijando? Quando o jovem casal apaixonado percebeu
que foi flagrado, tentou dissimular, mas John não se confundira, ele
enxergava muito bem e seu primo Harry estava com a boca cravada na de
Rosie. O que seus pais diriam de uma união entre primos de primeiro grau?
John olhou para Sophie e achou melhor fingir que não tinha visto nada.
Mas quando seus olhos se encontraram com os de Sophie, John se
lembrou da carta de amor que a feia Sophie – do passado – tinha-lhe escrito,
quando ele tinha apenas dezessete anos – e ele a desdenhara. Será que agora,
que ela pode ter qualquer rapaz que escolher, será que ela se vingará de
mim? Bem que eu mereço. Será que ele não podia prever que os anos seriam
tão doces com ela? Que anos de mel transformariam uma lagarta em uma
linda borboleta? John torcia para que aquele olhar, que parecia ser um convite
ao amor, não fosse uma armadilha de uma aranha-negra, pois ele já estava
preso em sua teia.
Naquela mesma noite, beijou Sophie.
O que será de John e de Sophie? De Harry e de Rosie? Somente os anos
dirão. O que importa é que a vida é como uma teia, aquilo que se liga no
passado pode ter consequências no futuro, mas John está predestinado a ser
feliz, e Rosie também!
Enquanto isso no Álamo, na fazenda de Theodore Westgaard e de
Linnea Brandonberg Westgaard, Tony dava o primeiro beijo em Chloe
MacGyver, mas a professorinha pensava em John. Um pouco tarde demais,
Senhorita MacGyver. Com os homens dessa família, como dissera a
matriarca Nissa Westgaard, não se brinca: “Há homens com corações de ouro
e o ouro não perde seu brilho, mas é brando, trinca-se com facilidade. Uma
mulher tem que cuidar para não trincar muito um coração como esse”.
Chloe MacGyver usara uma tática errada com John Westgaard Sobrinho:
tentara usar o neto de seu pai, o seu sobrinho, o seu sangue, para lhe fazer
ciúmes. Conseguiu por um tempo, mas eles, os homens Westgaard, também
são sábios.
No quarto, Theodore e Linnea tinham acabado de fazer amor. Com ela
deitada em seu peito, ele disse: — Sempre desgostei da passagem dos anos,
mas tenho que confessar que não me preocupar se a engravidei ou não é um
alívio e tanto, meu amor.
— Mas, Teddy, ainda posso engravidar! — exclamou Linnea, rindo. —
E se não temos uma dúzia de filhos é porque dou o meu jeito de prevenir.
Theodore riu e a beijou longamente.
— Senti uma certa queixa em sua voz, meu amor. Está reclamando de
ter um marido que a ama tanto?
— Oh, meu amor, de forma alguma. Você está me dando os mais doces
anos da minha existência.

FIM!
FICHA CATALOGRÁFICA Copyright © 2021 by Pedrazul Editora Ltda.
Todos os direitos reservados à Pedrazul Editora.
Texto adaptado à nova ortografia da Língua Portuguesa, Decreto n° 6.583, de 29 de
setembro de 2008.

Direção geral: Chirlei Wandekoken Direção de arte: Eduardo Barbarioli Tradução:


Maria Francisca Magalhães Primeira revisão: Paula Berinson Segunda revisão: Ana
Cândida Duarte Ilustração da capa: Raquel Castro L745d Spencer, LaVyrle , 1943 -
.
Os doces anos / LaVyrle Spencer Vitória, ES: Pedrazul Editora, 2021.
Título original: Years 1. Literatura americana.
2. Ficção.
3. Romantismo
I. Título.
II. Magalhães, Maria Francisca.
CDD – 810

Reservados todos os direitos desta tradução e produção.


Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida por fotocópia, microfilme, processo
fotomecânico ou eletrônico sem permissão expressa da Pedrazul Editora, conforme
Lei n° 9610 de 19/02/1998.

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[1]. Rommegrot, também conhecido como Rommegraut e Römmegröt, é um mingau norueguês feito
com creme de leite, leite integral, farinha de trigo, manteiga e sal. (N.T.)
[2]. Espécie de planta com flores espinhosas e cores variadas, que crescem muito rápido e são
consideradas uma praga para a lavoura. (N.T.)
[3]. Rough Riders foi o Primeiro Regimento de Cavalaria Voluntária dos Estados Unidos durante a
Guerra Hispano-Estadounidense, criada em 1898 pelo então futuro presidente Theodore Roosevelt.
(N.T.)
[4]. Diapasão é um instrumento metálico em forma de forquilha, que serve para afinar instrumentos e
vozes através da vibração de um som musical de determinada altura. (N.T.)
[5]. Samuel Austin Worcester (1798 –1859), foi um missionário do Cherokee, tradutor da Bíblia,
impressor e defensor da soberania do Cherokee. (N.T.)
[6]. William Holmes McGuffey (1800 –1873), foi um professor universitário e presidente, mais
conhecido por escrever o McGuffey Readers, a primeira série amplamente usada de livros didáticos de
nível fundamental nos USA. (N.T.)
[7]. Manual de Geografia, combinado com História e Astronomia, de James Monteith. (N.T.)
[8]. Durante o verão de 1893, uma professora chamada Katherine Lee Bates teve uma visão que nunca
esqueceria. Como ela contou: “Um dia, alguns dos outros professores e eu decidimos fazer uma
viagem ao Pikes Peak, no Colorado. Alugamos uma carroça da pradaria. Perto do topo, tivemos que
deixar a carroça e seguir o resto do caminho em mulas. Eu estava muito cansada. Mas quando vi a
vista, senti uma grande alegria. Todas as maravilhas da América pareciam exibidas lá, com a extensão
como o mar”. (N.T.)
[9]. Cinta larga, de couro ou de tecido reforçado, que cinge a barriga das cavalgaduras para apertar a
sela ou a carga. (N.T.)
[10]. Ferrugento. (N.T.)
[11]. Martha Jane Canary-Burke (1852-1903), mais famosa pela alcunha de Calamity Jane, era uma
famosa mulher aventureira que viveu nos tempos do Velho Oeste nos Estados Unidos; uma guia ou
batedora profissional que lutou contra os ameríndios. (N.T.)
[12]. Casca da abóbora depois de seca. (N.T.)
[13]. Fiordes, situados principalmente na Noruega, são grandes canais marítimos entre altas
montanhas rochosas, originados pela erosão do gelo glacial. (N.T.)
[14]. Saskatchewan ou Sascachevão é uma das dez províncias do Canadá, parte das províncias das
pradarias está localizada no centro-oeste do Canadá, e essa é a única província sem fronteiras naturais.
(N.T.)
[15]. É um jogo de cartas com quatro participantes agrupados em dois pares. Os participantes se
revezam revelando os passos de uma jornada épica, com zeladores zelosos e até interesses amorosos
virtuosos. Para superar cada desafio, os jogadores usam cartas de cavalheirismo para realizar grandes
feitos, como matar gigantes assustadores ou duelar com seus rivais. O jogador que tiver realizado o
maior número de talentos até o final do jogo ganha. (N.T.)
[16]. Linie Aquavit é um licor norueguês com uma receita secreta de especiarias e sabor distinto. A
aguardente nórdica é amadurecida em tonéis de xerez oloroso e é uma bebida potente. (N.T.)
[17]. Aspic é um líquido utilizado na culinária na preparação de mousses e patês. É também utilizado
em forma de gelatina no consomê, que pode ser cortado em formas decorativas para guarnição. (N.T.)
[18]. Prato tradicional da Noruega feito à base de peixe branco seco e soda cáustica. (N.T.)
[19]. Pão norueguês semelhante na forma a uma tortilha mexicana, confeccionado com batata, leite ou
natas e farinha e assado numa chapa. (N.T.)
[20]. No idioma inglês há diferentes pronúncias das vogais. (N.T.)
[21]. No inglês beijo é Kiss. (N.T.).

[22]. Bolo dobrado em norueguês. (N.T.)


[23]. Alfred Tennyson (1809-1892), 1º Barão de Tennyson, foi um poeta inglês. (N.T.)
[24]. A borda da carroça oposta àquela de onde o vento sopra; lado oposto à ventania. (N.T.)
[25]. Conhecido como o fruto da Genebra, o zimbro é uma planta medicinal utilizada para tratar vários
problemas de saúde, especialmente problemas de estômago, pele e infecções diversas. (N.T.)
[26]. Braço de mar que entra no continente entre altas montanhas, são formações bem características
das costas da Noruega. É como uma grande entrada de mar entre altas montanhas rochosas, originada
por erosão causada pelo gelo de antigo glaciar. (N.T.)

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