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Construindo a Participação Social no SUS: um

constante repensar em busca de equidade e


transformação1
Building Social Participation on the Brazilian Health System:
a constant rethinking that seeks fairness and transformation

Juliana Sousa Coelho Resumo


Especialista em Saúde Pública. Farmacêutica do Centro de Refe-
rência em Saúde Mental Jéferson Peres Pereira da Prefeitura de Trata-se de um ensaio que expõe reflexões sobre a
Betim, MG. busca e o exercício da participação social no Sistema
Endereço: Rua José Hemetério Andrade, no 485, ap. 203, Bloco 2, Único de Saúde (SUS), compreendendo seu conceito
Bairro Buritis, CEP 30455-770, Belo Horizonte, MG, Brasil.
como as diferentes ações dos grupos sociais que
E-mail: jsousacoelho@yahoo.com.br
influenciam a formulação, execução, fiscalização
1 Este artigo foi baseado no trabalho apresentado à 3a edição do e avaliação das políticas públicas. Por isso o fato
Prêmio Sérgio Arouca de Gestão Participativa da Secretaria de Ges- de a comunidade participar no sistema de saúde é
tão Estratégica e Participativa do Ministério da Saúde, 2008, tendo visto como condição fundamental para o exercício
recebido prêmio na categoria de “Trabalhos Acadêmicos”.
pleno da saúde, capaz de promover equidade e de
transformar a atenção à saúde. As ações de construir
a cidadania e formar sujeitos coletivos são tomadas
como fundamentos para a conquista de espaços
democráticos e de direitos sociais. Mapeou-se a nor-
matização atual referente à participação popular,
considerando seus avanços, mas explicitando tam-
bém suas fragilidades, principalmente no que tange
aos conselhos e conferências de saúde. No ambiente
dos espaços institucionais de participação, foram
destacados elementos necessários para consolidar
e efetivar a participação popular, como a relação
entre os atores e a comunicação para a socializar as
informações e conhecimentos em saúde. Busca-se
também problematizar o assunto, trazendo à tona
alguns dos obstáculos e críticas relativos à partici-
pação social. Pretende-se, com este ensaio, colaborar
para a democratização dos diferentes espaços de
escuta da sociedade civil, tornando-os locais cada
vez mais apropriados para as tomadas de decisão
sobre a construção de políticas e serviços de saúde,
dos quais a população se apropria coletivamente,
superando a simples obrigatoriedade burocrática
da participação e contribuindo para a saúde e qua-
lidade de vida.
Palavras-chave: Participação comunitária; Partici-
pação cidadã; Participação social; Participação do
paciente.
138 Saúde Soc. São Paulo, v.21, supl.1, p.138-151, 2012
Abstract Introdução
It concerns an essay that presents reflections on the O processo de construção do Sistema Único de Saúde
search and the practice of the social participation (SUS) envolveu a participação de diversos atores
in the Brazilian Unified Health System (SUS), in- sociais unidos no Movimento de Reforma Sanitária
cluding the understanding of its concept as to how que defendia o projeto de um sistema de saúde, um
the different actions of the social groups influence plano abrangente de políticas públicas capazes de
the formularization, execution, fiscalization and incidir sobre as condições de vida e de trabalho da
evaluation of the public policies. Therefore the par- população, além de prover a proteção coletiva contra
ticipation of the community in the health system agravos, garantindo a sua saúde em todos os aspec-
is considered an essential condition for the full tos (Valla e Stotz, 1994).
exercise of the health, capable of promoting fairness Desse projeto de sistema de saúde e de muitas
and to transforming the health attention. The buil- lutas e debates, nasceu, na Constituição de 1988, o
ding of citizenship and the formation of collective Sistema Único de Saúde (SUS). A sua definição legal
citizens are taken as beddings for the conquest of instituiu formalmente princípios e diretrizes de
democratic spaces and social rights. The current universalidade, equidade, integralidade do atendi-
normalization of the public participation has been mento com prioridade à prevenção, descentralização
mapped considering its advances, but also stating e participação da comunidade, que devem nortear as
its fragilities, mainly those that concerning the atividades em saúde.
participation out of health councils and conferences. Talvez devido à influência do imenso desejo por
In the institutional environment, some elements democracia difundido à época da construção do SUS,
where pointed as necessary to consolidate and effect caracterizada pelo processo de abertura política, a
the communitarian participation, like the relation participação tornou-se pauta fundamental de reivin-
between the actors and the communication for the dicação da saúde. Sua institucionalização obrigou,
socialization of health information and knowledge. ao menos teoricamente, à democratização das polí-
Questions of the subject are also sought by bringing ticas e serviços de saúde e do debate sobre esta.
to attention some of the critical obstacles in relation Neste ensaio pretende-se abordar algumas ques-
to the social participation. This essay is intended tões sobre a busca e concretização da participação
to collaborate in behalf of the real democratization social no SUS. Para isso dialoga-se com pesqui-
of the different spaces where the civil society can sadores que veem na participação uma forma de
be heard, transforming these places in more appro- promover a equidade e de transformar a atenção
priate locations to make decisions concerning the à saúde. Nesse contexto, encara-se a participação
construction of health policies and services. The po- como um objetivo a ser perseguido, porém não de
pulation can benefit from these spaces collectively forma cega e acrítica, é necessário constantemente
surpassing the simple bureaucratic obligatoriness refletir como tem ocorrido para que seja avaliada e
of the participation and contributing for the health aprimorada, tornando-se abertura real do sistema
and quality of life. de saúde à população.
Keywords: Consumer Participation; Citizen Partici- Tomou-se o conceito de Valla (1998, p. 9) para
pation; Social Participation; Patient Participation. participação social, compreendendo “as múltiplas
ações que diferentes forças sociais desenvolvem
para influenciar a formulação, execução, fiscaliza-
ção e avaliação das políticas públicas e/ou serviços
básicos na área social”.
Como premissa para discutir sobre participação
social, foi feita uma reflexão sobre a formação dos
sujeitos coletivos e a construção da cidadania, con-
siderando esses elementos como fundamentais para

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a conquista de espaços democráticos e de direitos tras formas de participação que não estão tão bem
sociais. definidas e nem são da mesma forma priorizadas. O
A normatização atual referente à participação processo de participação democrática constitui-se
popular foi analisada, procurando-se ressaltar os também por iniciativas de caráter coletivo e indivi-
avanços que trouxe e as questões para as quais a dual, como conselhos locais ou conselhos gestores,
abordagem mantém-se superficial e vaga, consti- fóruns de trabalhadores, Ministério Público, ouvi-
tuindo alguns dos pontos frágeis da participação. dorias, gestão participativa, pressão popular sobre
Nesse contexto institucional, destacam-se ele- o Congresso, e até a judicialização da saúde pode
mentos necessários para uma participação social ser compreendida como um tipo de controle social,
efetiva. Os atores envolvidos com a questão da saúde entre outros.
passaram a ter maior contato entre si. As relações Dessa forma pretende-se contribuir para a
estabelecidas entre esses diferentes sujeitos, repre- ref­l exão sobre a participação e a organização do
sentantes do Estado ou dos diversos grupos da socie- SUS, visando a real democratização dos espaços de
dade, são trabalhadas aqui como determinantes das escuta da sociedade civil, tornando-os locais cada
decisões políticas. A forma como cada um defende os vez mais apropriados para as tomadas de decisão
seus interesses coloca-os ora em posições opostas, sobre a construção de políticas e serviços de saúde,
ora como parceiros. Outro elemento importante da dos quais a população se apropria coletivamente
participação relaciona-se à essencialidade da comu- superando a simples obrigatoriedade burocrática da
nicação, da informação e do conhecimento em saúde participação e contribuindo para uma saúde pública
para a autonomia dos atores, tendo a educação em gratuita e de qualidade para todos.
saúde como principal estratégia de ação.
Ao final, o presente ensaio dedica-se a problema-
tizar o tema da participação social no SUS, trazendo
A Construção da Cidadania e a
à tona alguns dos obstáculos e críticas relativos ao Formação de Sujeitos Coletivos:
assunto. É debatida a ideia de que os Conselhos e fundamentos para a participação
Conferências de Saúde sejam as formas predomi-
nantes de participação da sociedade na saúde. Essas
social em saúde
instâncias representam experiências concretas de Falar em participação social nos remete ao concei-
gestão participativa que trouxeram melhorias nesse to de cidadania e de direitos sociais. Lembramos
campo no País e servem de exemplo de democratiza- de valores de uso coletivo, do papel do Estado e da
ção do sistema de saúde. Porém a participação social relação Estado/Sociedade. A reflexão sobre todos
para construir o SUS vai além desses espaços. Con- esses processos é pressuposto para uma sociedade
selhos e Conferências não bastam para contemplar democrática.
a diversidade de opiniões da sociedade em toda a sua Para se pensar em cidadania e na relação Estado/
complexidade de atores, tornando-se insuficientes Sociedade, um tópico relevante é a constituição dos
quando representam a única abertura da gestão à sujeitos coletivos. É preciso abordar as manifesta-
participação popular. ções dos sujeitos políticos que se realizam através
Existem problemas estruturais e políticos que dos movimentos sociais (Nunes, 1995). A formação
dificultam a organicidade de Conselhos e Conferên- dos sujeitos coletivos é condicionada pelos processos
cias. Principalmente no âmbito municipal, há, em históricos, políticos, sociais, econômicos e culturais.
geral, baixa representatividade, pouca renovação de O processo histórico do Brasil, caracterizado por
membros, dominação por grupos mais organizados, um longo período como colônia, império e ditadura,
enfraquecimento da luta em outras frentes partici- fundamenta a pouca experiência da sociedade com a
pativas e de comunicação (Dominguez, 2007). democracia e a concepção de cidadania, determinan-
Essas fragilidades democráticas e outras tensões do a formação política e cidadã dos brasileiros.
relacionadas aos conselhos e conferências de saúde Mesmo numa sociedade carente de maturidade
levam à necessidade de busca e valorização de ou- política, a busca por melhores condições sociais

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está presente, é algo que se dá numa concepção dia- A partir dos anos 1970, surgiram diversos movi-
lética, de forma simultânea ao estabelecimento da mentos sociais no Brasil, e muitas das lutas elege-
precariedade, mas condicionada às possibilidades ram a saúde seu objeto de reivindicações (Ribeiro,
de cada momento histórico. Da mesma maneira, a 1989; Stotz, 1995). Uma circunstância de transição
existência de um Estado pressupõe a existência de se caracteriza pela incerteza e tensão, mas possibi-
tensões na relação Estado-sociedade, principalmen- lita mudanças (Pêgo, 1993). O fim do regime militar
te, devido ao Estado ser, em princípio, um aparato renovou a utopia de uma sociedade democrática
da classe dominante para a manutenção da ordem e justa, incentivando mobilizações e buscas por
(Canesqui, 1995). alternativas diante das concepções vigentes de
Hoje, no Brasil, apesar da democracia política tão cidadania.
almejada, convive-se com uma grande desigualdade Para Contandriopoulos (1995), uma forma de
social e péssimas condições de vida. Essa situação fomentar a mobilização é construir uma Utopia,
leva a uma descrença no Estado e em qualquer pos- como uma forma de visualizar os objetivos aos quais
sibilidade de mudança, fato que, conciliado a valores se quer chegar. A Utopia facilitaria a apreensão no
neoliberais incorporados pela sociedade, cria uma ideário das pessoas de que os objetivos proclamados
visão imobilizadora que tende a reproduzir as injus- seriam viáveis. Dessa forma, a Utopia ajuda a agre-
tiças e não transformá-las. Outra questão que abala gar as forças sociais favoráveis à transformação.
significativamente a possibilidade da constituição No processo de redemocratização do País nos
dos sujeitos sociais são as políticas públicas neoli- anos 1980, os movimentos sociais, como o Movi-
berais de caráter compensatório e não preventivo mento de Reforma Sanitária, foram determinadores
e redistributivo, focal e não universal (Stotz, 1995). da maturação de um novo sujeito social brasileiro,
A participação da sociedade civil em reivin- consciente dos conceitos de sociedade e de cidada-
dicações e mobilizações políticas é voluntária, e, nia e da importância de sua prática cotidiana para
muitas vezes, não há para isso suporte estrutural transformação da realidade (Pêgo, 1993).
ou mesmo incentivo moral (Serapioni e Romaní, Hoje os movimentos sociais são muitos e di-
2006). Essa questão, somada à falta de tempo dos versos. Consequência, dentre muitos fatores, do
cidadãos, em meio a um sistema capitalista que processo histórico de amadurecimento da cidadania
promove valores individuais e restringe a sociedade e construção da democracia, da diversidade do País
ao consumo e à acumulação, além da frustração pelo e de interesses dos distintos atores. Esses diversos
não reconhecimento da importância da ação social movimentos sociais expressam diferentes formas
política, configuram importantes obstáculos para a de luta, de acordo com as dificuldades para a repro-
mobilização social. dução social da vida que os atores enfrentam nos
A sociedade desigual em que vivemos leva à de- ambientes físico, político e cultural em que estão
sestruturação do conceito de cidadania, ou seja, o imersos.
sentido dado à cidadania é diferente de acordo com Para Lúcia Ribeiro (1989), o surgimento de um
a condição social, a situação de trabalho, o pertenci- movimento social está atrelado à construção de uma
mento a sistemas de seguridade social (Stotz, 1995). identidade social. Esta se baseia numa dimensão
Dessa forma, Valla e Stotz (1994) propõem duas estrutural, referente às condições objetivas da situ-
categorias para cidadania, segundo a condição de ação de carência e exclusão, e na dimensão cultural,
reprodução social de camadas ou de grupos sociais: ou seja, o reconhecimento da situação de precarie-
“cidadania de vigilância”, quando serviços básicos dade (tomada de consciência coletiva) e a percepção
já existem e a população precisa apenas vigiar para da possibilidade de busca cotidiana por melhores
que continuem, e “cidadania de escassez”, referente condições que aos poucos vão constituindo valores
às populações que precisam estar continuamente sociais e uma visão de mundo, formando sujeitos de
pressionando e lutando politicamente para garantir sua própria história.
serviços básicos que são tidos como concessões do No setor saúde, as condições objetivas predis-
Estado. ponentes de mobilizações são: sistema de saúde

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com cobertura insuficiente e qualidade precária e saberes e forças em saúde, e permite a construção
diferenças nas condições de saúde segundo a classe de um novo conhecimento/saber.
social. A tomada de consciência dessa situação, o Nessas parcerias, as contribuições do movimento
reconhecimento da possibilidade de enfrentá-la, o popular são suas experiências, aspirações e valores
compartilhamento da história pessoal com outros adquiridos os quais são enriquecidos e modificados
indivíduos (construção de identidade), o sentido de na relação, por exemplo, com profissionais de saúde
pertencimento e a participação comunitária levam que podem agir como educadores, facilitadores e
às ações transformadoras. A resistência brota da mobilizadores, mesmo sendo, de acordo com Valla
própria necessidade que as pessoas têm de sobre- (1998), inevitável em alguns momentos a dificuldade
viver, de não serem oprimidas pelo cansaço, pela de compreensão entre estes. Bodstein (1993) subli-
doença e pelo poder hegemônico (Valla e Stotz, 1994). nha que o nível local é um espaço privilegiado para
Assim, surge a politização de demandas, na qual a constitui-se atores e construir identidades coletivas,
saúde passa a ser vista como um direito social, as pois é palco de questões concretas sobre saúde e da
reivindicações, e também a construção de princí- interação entre agentes sociais.
pios relacionados ao conceito ampliado de saúde, É possível apontar duas questões primordiais
à gratuidade, à equidade e à participação ampla para se pensar em mobilização popular pelo direito
nas decisões. Dessa forma, a consciência sanitária à saúde. A primeira é superar a visão de que as ações
colabora na ampliação dos limites da cidadania, públicas em saúde são como concessões/benesses/
configurando-se como causa e consequência de uma favores do governo à população e não um direito
consciência social (Valla e Stotz, 1994). (Valla e Stotz, 1994). Tarefa difícil para nossa socie-
Uma fragilidade de muitos dos movimentos so- dade tão acostumada às práticas de clientelismo.
ciais é a restrição de suas decisões, práticas e reivin- A segunda questão também depende de superar
dicações a demandas desconectadas de um projeto uma visão, de que a saúde é uma responsabilidade
global de sociedade (Ribeiro, 1989). Conquistas ime- individual. É preciso compreender a inter-relação
diatas podem ser mobilizadoras de um movimento dos processos saúde-doença com a dinâmica da so-
popular, mas é preciso amadurecer os objetivos bus- ciedade. Sendo assim, as causas dos problemas de
cados para lutar por conquistas mais abrangentes, saúde escapam ao controle dos indivíduos (Valla e
pois quando as possibilidades de ganhos imediatos Stotz, 1994). As soluções precisam ser buscadas no
diminuem, o grupo tende a esvaecer. coletivo, considerando que, como afirmam Valla e
Seguindo apenas uma consciência imediata e Stotz (1994, p. 140), muitas vezes a “efetivação dos
superficial dos problemas sociais, as revoltas e ma- direitos sociais para todos implica inclusive em
nifestações populares estão arriscadas a seguirem restringir alguns direitos individuais”.
a lógica da aceitação do modelo, lutando apenas O processo de luta pelo direito à saúde é um
para incluir-se nele e não para transformá-lo (Valla e exemplo claro da formação de atores sociais, simul-
Stotz, 1994). O investimento teórico junto do contato tâneo à construção e ampliação da cidadania.
com a realidade amplia o espaço de luta para além No início do século XX, o direito à saúde foi co-
das instituições, tornando a sociedade o principal locado na agenda pública na forma de assistência
objeto para transformação. médica e serviços hospitalares como políticas so-
No complexo cenário da saúde, que envolve ciais. Isso ocorreu não somente devido aos interes-
inúmeros atores, é preciso reconhecer que cada um ses capitalistas de reprodução da força de trabalho
ocupa uma posição diferente, singular e importante. e de transformação da saúde em bem de consumo;
Não se deve tentar traçar uma relação hierárquica também não foi devido apenas ao ato de consolidar
entre essas posições e sim perceber a necessidade de a instituição médica por meio da priorização da
troca e cooperação (Valla e Stotz, 1994). A interface ciência e tecnologia que favoreceu a cultura da medi-
dos movimentos populares com outros atores, como calização. A oferta de recursos médico-assistenciais
os profissionais de saúde, partidos políticos, igrejas, pelo Estado brasileiro deve ser analisada também
Estado, favorece maiores conquistas, pois integra como resposta a uma demanda social legítima,

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mesmo esta não respondendo satisfatoriamente à Ministério e seus conselheiros eram indicados pelo
maioria da população (Bodstein, 1993). governo. De 1990 até 2006, a organização e compe-
O direito à saúde evoluiu significativamente com tências do CNS foram alteradas, aproximando-o da
a concepção ampliada de saúde-doença trazida pelo legislação do SUS (CNS, s.d.). Hoje o CNS é composto
Movimento de Reforma Sanitária. Novas práticas, por quarenta e oito membros titulares, cada um com
além da assistencial, foram englobadas ao cuidado dois suplentes, indicados pelas entidades eleitas a
com a saúde e também passaram a ser dever do Es- cada três anos. A composição segue a paridade esta-
tado. O direito à saúde para além dos consultórios belecida na Lei 8.142/90, sendo cinquenta por cento
passou a integrar as reivindicações populares. A des- formada por representantes de entidades e dos movi-
centralização foi vista como uma aproximação entre mentos sociais de usuários do SUS; e cinquenta por
poder e população, dando condições para construção cento, representantes de entidades de profissionais
da democracia e permitindo desenvolver os princí- de saúde, incluída a comunidade científica, represen-
pios fundamentais da cidadania (Bodstein, 1993). tantes do governo, entidades prestadoras de serviços,
Porém consolidar essas conquistas do plano legal e Conselho Nacional de Secretários de Saúde - CONASS,
transformá-las em conquistas reais no cotidiano da Conselho Nacional de Secretários Municipais de
sociedade brasileira é um grande desafio. Saúde - CONASEMS e entidades empresariais com
atividade na área de saúde (Brasil, 2006a).
A Resolução 333, de 04 de novembro de 2003 (Bra-
O Ambiente Institucional da sil, 2003) do Conselho Nacional de Saúde estabelece
Participação Social as recomendações e diretrizes para criar, estruturar,
reformular e também para o funcionamento dos
Histórico da normatização da participação social
conselhos estaduais e municipais de saúde. Nes-
no SUS sa resolução são consideradas as ampliações dos
O SUS foi instituído na Constituição Federal de 1988 conselhos de saúde, como os Conselhos Regionais,
e desde seu nascimento legal é organizado, dentre Conselhos Locais, Conselhos Distritais de Saúde,
outras, pela diretriz da participação social (Brasil, incluindo os Conselhos Distritais Sanitários Indí-
1988). As leis orgânicas reafirmam e dão maior deta- genas, sob a coordenação dos Conselhos de Saúde
lhamento à diretriz de participação. A Lei 8.080/90 da esfera correspondente. Ainda de acordo com esse
(Brasil, 1990a) explicita esse princípio e traz a ideia documento, a criação dos conselhos e o número de
de controle social. conselheiros são definidos pela lei de cada ente
A Lei 8.142/90 (Brasil, 1990b) dispõe sobre a federado e o presidente deve ser eleito por seus
participação da comunidade na gestão do SUS, membros. As vagas de conselheiros devem ser dis-
definindo as instâncias colegiadas, Conferência tribuídas de forma paritária. São dados critérios e
de Saúde e Conselho de Saúde. Ambos com regi- exemplos para as representações, além da sugestão
mento próprio, a primeira, com periodicidade de de mandatos com duração de dois anos e os motivos
quatro anos, é composta por diversos segmentos para substituição de conselheiros. O documento
sociais, deve avaliar a situação de saúde e propor também direciona a formação e o funcionamento
diretrizes. Os conselhos têm caráter permanente e da estrutura administrava dos conselhos, das comis-
deliberativo, devem formular estratégias e controlar sões e as competências do plenário, sendo o governo
amplamente a execução de políticas, são compostos responsável por garantir a dotação orçamentária e
por 50% de usuários e a outra metade dividida entre autonomia do conselho.
representantes do governo, prestadores de serviço Nos anos 1990, os instrumentos de regulamen-
e profissionais da saúde. Essa lei também vincula a tação utilizados para o avanço dos processos de
transferência de recursos à existência dos conselhos rompimento com o antigo modelo de saúde, centra-
de saúde em cada esfera. lizado e verticalizado, e de construção do SUS foram
O Conselho Nacional de Saúde (CNS) existe des- as Normas Operacionais Básicas (NOB).
de 1937, mas até 1990 era um órgão consultivo do As NOB 93 e 96 e a NOAS definem um número

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maior de requisitos, em relação aos instrumentos an- conselhos gestores, seja como representante, seja
teriores, para a habilitação de municípios e Estados indicando seus representantes.
nas diferentes condições de gestão. Porém, no que Reconhecendo-se a gestão participativa como
se refere à participação da comunidade, princípio uma das estratégias transversais para a consolida-
fundamental do sistema de saúde assim como a ção do SUS, foi criada em 2003 a Secretaria de Ges-
descentralização e a regionalização, essas normas tão Estratégica e Participativa – SGEP, tendo como
exigem apenas que se comprove o funcionamento primeiro secretário o sanitarista Antônio Sérgio
dos conselhos de saúde. Elas buscam o avanço da da Silva Arouca, um dos construtores do ideário da
administração técnica e são incipientes para cons- Reforma Sanitária brasileira2.
truirem uma gestão participativa efetiva (Brasil, A SGEP foi responsável por formular a política
1993, 1996, 2002; Levcovitz e col., 2001). nacional de gestão estratégica e participativa
Em 2006, foi publicado o Pacto pela Saúde (Bra- no SUS (PNGEP) – PARTICIPASUS (Brasil,
sil, 2006b). De seus três componentes, o Pacto em 2007). Segundo essa política, a SGEP tem a respon-
Defesa do SUS, por abordar a busca pelos princípios sabilidade de “acelerar e aperfeiçoar a implementa-
basilares do sistema de saúde, é o mais voltado para ção das práticas de gestão estratégica e participativa
a participação social. Isso fica claro nas suas prio- nas três esferas de gestão do SUS”.
ridades de busca pela repolitização da saúde, como A PNGEP ressalta, no âmbito da gestão parti-
estratégia de mobilização social, e pelo avanço no cipativa, a importância de práticas e mecanismos
processo de institucionalizar a saúde como direito que formulem e deliberem coletivamente políticas
de cidadania, além de se elaborar e divulgar a Carta em saúde e considera como um desafio efetivar a
dos Direitos dos Usuários do SUS. Dentre as ações participação popular, que deve ser alcançada por
do Pacto em Defesa do SUS, encontram-se o esta- meio da ampliação de espaços públicos e coletivos
belecimento de diálogo com a sociedade, além dos para o exercício do diálogo e da pactuação das
limites institucionais, e fortalecimento das relações diferenças. Quanto à ouvidoria, a política propõe a
com os movimentos sociais. O Pacto de Gestão criação de alternativas eficientes de informação e
também aborda esse tema ao reiterar a importância de escuta da população, além de aumentar a divul-
da participação e do controle social, fazendo deles gação das prestações de contas e dos relatórios de
diretrizes da gestão do SUS e comprometendo-se gestão como uma forma de fomentar a gestão do
com sua qualificação. A existência de um sub-bloco SUS. Em relação à auditoria, há uma preocupação
de financiamento específico para participação e con- com o acompanhamento dos serviços de saúde, das
trole social e a explicitação das responsabilidades ações preventivas, da qualidade de assistência e da
de cada esfera de gestão relativas a essa dimensão gestão de análise dos resultados, contribuindo para
do SUS promovem o fortalecimento dos espaços e a garantia do acesso e da atenção aos usuários e em
mecanismos onde ela se dá. defesa da vida. Por fim, o monitoramento, avaliação
A  Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde e controle da gestão do SUS são tidos como uma
(Brasil, 2006c) foi criada com a intenção de infor- forma de qualificação da gestão do sistema e como
mar ao cidadão sobre os seus direitos e deveres importante eixo para integração de todos os outros
como usuário do SUS. Ela é um esclarecimento de (Brasil, 2007).
seis princípios de cidadania destacados a partir da A política divide as ações de gestão participativa
legislação. A maioria desses princípios relaciona-se em sete tipos: mecanismos institucionalizados de
ao atendimento médico. Quanto à participação e ao controle social, processos participativos de gestão,
controle social, o documento declara o direito de instâncias de pactuação entre gestores, mecanis-
acesso às devidas instituições onde podem ser feitas mos de mobilização social, processos de educação
sugestões, reclamações e denúncias, além do direito popular em saúde, reconstrução do significado da
de participar de conferências, conselhos de saúde e educação em saúde, ações articuladas entre dife-

2 Outras informações sobre a SGEP, acesse: http://portal.saude.gov.br/portal/saude/Gestor/visualizar_texto.cfm?idtxt=26599&janela=1

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rentes setores de governo e a sociedade civil (Brasil, de vida, porém sua prática ainda é incipiente,
2007). pois existe uma dificuldade de estruturação desse
As ações a serem desenvolvidas explicitadas conceito. Os Comitês Consultivos Mistos (CCM)
na política em relação ao aprimoramento das ins- italianos, formados por associações da sociedade
tâncias e processos de participação social no SUS civil, profissionais e administradores, são órgãos
abordam a realização e fortalecimento das conferên- que apenas sugerem mudanças nos serviços de
cias e dos conselhos de saúde, mas são muito vagas saúde. Estes comitês são vistos de forma positiva
quanto aos outros mecanismos de participação por permitirem o entendimento entre os diferentes
política direta na formulação e encaminhamento atores. Os Conselhos Comunitários de Saúde (CHC)
de políticas de saúde. Dentre essas ações, é citada da Inglaterra existem desde 1974, são formados ex-
a busca por novos canais de escuta da população, clusivamente por representantes dos usuários esco-
mas não garante a força dessas falas nos efetivos lhidos de diversas formas e têm caráter controlador/
processos de construção do SUS. vigilante do sistema de saúde. Essa composição pode
representar uma perda em interação entre diferen-
Elementos da participação social no sistema de
tes atores, mas ganha em autonomia. Os Conselhos
saúde brasileiro Municipais de Saúde brasileiros diferenciam-se dos
Participação política da sociedade significa que ela demais principalmente por seu caráter deliberativo
mesma defina o que deve ou não ser objeto de polí- previsto na legislação.
ticas públicas e os rumos que essas políticas irão Os canais institucionais de cogestão com o
tomar. Essa concepção diverge de outra forma de Estado por si representam apenas um potencial
orientação da sociedade, na qual setores com recur- democrático. A busca sistemática das referências
sos e hegemonia apontam o caminho a ser seguido que se dedicam a estudar o exercício da participa-
pelas classes populares (Valla, 1998). ção popular no SUS permite levantar alguns dos
A participação é determinante fundamental da elementos relevantes para a participação tornar-
democracia. Não é concessão nem exigência buro- se um processo realmente vantajoso à população.
crática, mas uma conquista social. Participação Existem requisitos a serem cumpridos pelo Estado e
plena significa decidir, acompanhar e avaliar a or- pela população que vão além da institucionalização
ganização dos serviços, ou seja, exercer o controle legal, além do acesso dos agentes sociais ao processo
social. Ela se constitui de forma politizada e permite decisório.
que um coletivo decida sobre assuntos de interesse Imprescindível para a participação, segundo
geral. Assim, as diferentes realidades da população Pêgo (1993) é diminuir a distância entre sociedade
podem ser contempladas na construção de políticas. e política, compreendendo esta como algo constante
Para isso o debate amplo e intenso torna-se essencial na vida de todos. Só assim entende-se que políticas
e as disputas são inevitáveis. públicas não são iniciativas exclusivas do aparelho
Santos Filho e Gomes (2007) afirmam que o maior estatal, mas fruto de interlocução e pactuação en-
fomento à participação comunitária pelos governos tre atores sociais com diversidade de interesses e
locais deve-se à obrigatoriedade legal, à assinatura necessidades.
de acordos internacionais comprometendo-se a O fato de institucionalizar a participação pro-
firmar parcerias com a comunidade e à percepção moveu a inclusão de uma série de novos atores no
dos gestores de que as políticas são mais eficientes debate da saúde, ampliando seus poderes para rei-
quando a população está envolvida. vindicações e também sua responsabilidade sobre
Comparando modelos de participação em saúde a definição de questões ligadas à área.
da Itália, Inglaterra e Brasil, Serapioni e Romaní Considerando a heterogeneidade da população
(2006) afirmam que o fato de países tão diferentes e o caráter da relação Estado-Sociedade, a configu-
buscarem por participação social deve-se às mu- ração das políticas públicas é resultante das forças
danças na relação Estado/sociedade e à percepção sociais em luta pela hegemonia (Pêgo, 1993). Os
que esse é um fator fundamental para a qualidade diferentes grupos sociais constroem projetos dis-

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tintos e, às vezes, contraditórios, em que cada um cial para incitar a luta pelo direito social à saúde e a
busca impor a sua perspectiva na esfera decisória uma vida digna. Esse ponto também é importante
política. tanto para a construção de atores e de uma identi-
Atualmente existe uma clara diferenciação e dade coletiva, quanto para estruturar, solidificar e
fragmentação da demanda social por saúde, o grupo renovar um movimento social.
mais pobre e, portanto, com pouca organização e É necessária a comunicação entre os diferentes
força política, lutando pelo serviço público de saúde setores e segmentos da sociedade para se reconhecer
e um outro grupo social, politicamente melhor es- e considerar as divergências e semelhanças entre os
truturado, reivindicando planos de saúde privados. grupos sociais. Para Oliveira (1996) o exercício da
Essa desigualdade de forças e projetos entre grupos alteridade melhora a relação e comunicação entre
sociais relaciona-se à estrutura social do capitalis- os seguimentos. Avanços são alcançados quando
mo que separa a população em classes, situação que há uma diversidade de olhares e espaços de articu-
afeta a capacidade de expressão política de cada lação entre Estado/sociedade, sociedade/sociedade
grupo (Stotz, 1995). e Estado/Estado, pois se aproxima das diversas
A capacidade de um grupo social impor suas realidades e encontram-se soluções mais concretas,
demandas nas pautas de negociação, ou seja, ter adequadas e viáveis.
assegurado pelo Estado o enfrentamento de seus Portanto a comunicação como um processo dia-
problemas por meio de políticas públicas, depende lógico é fundamental ao controle social. Por isso é
da conjuntura política e econômica. Contudo tam- importante assegurar o acesso adequado e suficien-
bém é importante nesse processo formar sujeitos te às informações produzidas pelo SUS e o direito de
coletivos, constituindo-se autonomamente na esfera cada um se expressar, ser ouvido e considerado.
política para integrarem a base de sustentação e O conhecimento contribui para a tomada de de-
imporem projetos contrários ao do capital. cisões, sem ele não há como a população organizada
A autonomia dos movimentos populares nas re- exercer o seu papel de fiscalizadora e avaliadora
lações com o Estado é essencial, só assim é possível dos serviços, e consequentemente de conseguir a
avaliar, fiscalizar e apresentar mudanças quanto aos melhoria real de sua saúde. Por isso a comunicação
serviços e políticas públicas sociais (Valla e Stotz, está relacionada ao poder, e sua apropriação pelas
1994). A participação social efetiva necessita que camadas populares é um importante instrumento
haja o direito de exercer oposição. Para avaliar a de luta contra a hegemonia, retirando a população
participação social é preciso considerar o grau de do papel de refém do saber técnico.
contestação pública ou competição política exis- Formar constantemente os atores envolvidos no
tente. De acordo com Perissinotto (2002), se não controle social por meio de ações de educação em
houver debate, conflito, publicização das questões, saúde amplia a capacidade da população de vocalizar
alternância no comando da instituição, a participa- suas necessidades e desejos. Essas ações colaboram
ção pode traduzir-se em aclamação ou em decisão na formação política, aumentando a efetividade do
sobre assuntos de menor importância ou ainda em controle social sobre as políticas públicas através da
discussão sobre “objetivos predefinidos”. politização dos movimentos e práticas populares.
Formas avançadas de proteção social expressam Para Westphal (1994), o processo educativo se
maior capacidade de organização e de pressão da dá com a participação ativa dos sujeitos em dois
sociedade (Bodstein, 1993). Da mesma forma, a momentos: a aprendizagem pela prática da luta
saúde é um direito social cuja expressão depende social em contato com o Estado e sua burocracia;
do grau de consciência e de organização das classes e a aprendizagem formal por meio de cursos que
e grupos sociais. propiciem formação política, acesso a informações
Nessa arena de disputa, que representa o setor e conhecimentos, colaborando na interpretação
saúde, um fator responsável por desequilibrar as crítica da realidade.
forças é o acesso à informação e ao conhecimento. A Benzaken e colaboradores (2007) mostraram que
difusão de informações e de conhecimentos é essen- a cooperação da sociedade junto de outros atores,

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desde a construção dos programas políticos até a popular apesar da participação instituída. Essa
avaliação, mantém a população envolvida e permite pouca influência nas decisões, segundo Serapioni e
a sustentabilidade da ação, partindo do princípio que Romaní (2006), possivelmente se deve a uma socie-
as questões da saúde estão além da atmosfera técni- dade ainda politicamente imatura ou a um sistema
ca, passam por fatores culturais e políticos. Também de saúde ainda fechado para o ambiente social.
se afirma que, de forma dialética, a participação e a Oliveira (1996) também chama a atenção para o
mobilização social tornam-se reciprocamente causa quão etnocêntrica é a participação institucionaliza-
e consequência, construindo a identidade social que da. Esses espaços são criados à maneira de gestores
fortalece o coletivo. e profissionais, a população depois é convidada a
compô-los e a aderir a uma cultura, muitas vezes, es-
tranha às culturas dos diferentes grupos sociais. Os
Dilemas e Desafios da Participação segmentos detentores de conhecimento e capacita-
Institucional no SUS ção têm maior peso nas decisões, impõem uma linha
Hoje uma grande parcela da participação social técnica à discussão e excluem os não familiarizados
se dá através dos espaços institucionais, fato que ao jargão científico (Serapioni e Romaní, 2006).
exige uma análise criteriosa. A amplitude do poder Além da posição de desvantagem dos usuários
deliberativo desses espaços é limitada pelas fragi- nos conselhos, aqueles ainda não contam com
lidades práticas dos órgãos. A participação prevista disponibilidade de tempo, transporte, assessoria
na legislação não é, necessariamente, a garantia de institucional, enfim, toda uma infraestrutura que
participação no cotidiano do sistema. A conquista geralmente está presente para a participação dos
de representação popular nos espaços deliberativos demais segmentos.
é sem dúvida um avanço, porém deve-se questionar Outro questionamento importante está rela-
se a ação institucional que os movimentos sociais cionado à forma como o Estado responde de modo
privilegiam tem permitido a construção de um mais favorável àqueles grupos mais organizados e
efetivo controle social dos serviços de saúde (Valla familiarizados à burocracia pública (Valla e Stotz,
e Stotz, 1994). 1994). Dessa forma a institucionalização dos meca-
Segundo Gastal e Gutfreind (2007), para a parti- nismos de participação pode se tornar instrumento
cipação ativa da população é necessária a percepção de manutenção das relações de poder na sociedade,
da saúde como um direito. Para eles a obrigatorie- pois os mais organizados são favorecidos e os me-
dade institucional da participação torna-a menos nos organizados, mais vulneráveis, são mantidos
efetiva se comparada à participação socialmente assim.
construída, além de experiências coletivas serem Uma situação que também se torna obstáculo
mais propícias para a formação de sujeitos. significativo no tema da participação institucio-
A participação popular pode servir simplesmente nalizada é a disputa de projetos e por assento nos
como uma forma de legitimar a política de Estado conselhos entre as muitas organizações populares
diante da população (Valla, 1998). É uma distorção existentes (Bodstein, 1993). Essa situação cria um
da participação e serve para adequar o discurso clima de conflito dentro do próprio segmento, além
participativo às antigas formas de exercer o poder daquele já existente com os outros segmentos
(Oliveira, 1996). componentes dos conselhos de saúde. Os pontos
Santos Filho e Gomes (2007) notaram a resistên- de divergência são supervalorizados no cenário
cia de instituições governamentais em trabalhar institucional e as semelhanças nas lutas de cada
com os novos atores sociais, o que se deve à falta entidade, muitas vezes, são negadas. Isso dificulta
de prática nesta forma de gestão e, de acordo com a construção de agendas comuns dos movimentos
Oliveira (1996), a uma concepção de gestores e pro- populares para a articulação de lutas políticas e
fissionais de que o usuário seria incapaz de contri- institucionais visando o acesso de todos a bens,
buir. Guizardi e Pinheiro (2006) também afirmam a serviços e direitos sociais.
dificuldade de intervenção nas políticas pelo setor Além da existência dos conselhos de saúde de-

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pender da vontade do gestor, a reprodução dos pro- na história do País, geram a ideia de que a posição
cedimentos administrativos estatais implica numa de representante pode trazer algum privilégio para
forte dependência das entidades representativas po- o grupo específico que representa (Bodstein, 1993).
pulares perante o Estado (Valla; Stotz,1994). Existe É natural que um conselheiro leve as reivindicações
a probabilidade de essas entidades passarem a ser de seus pares, mas estas não podem ser mais impor-
vistas e agirem como um poder local do Estado. tantes que as do conjunto.
Os conselhos e conferências de saúde são niti- Outra distorção na construção de um projeto de
damente priorizados nos textos oficiais e também saúde baseado em valores democráticos e justos
pela maioria dos atores sociais. Adotados pratica- para Bodstein (1993) é a interferência de pressões
mente como as únicas formas de partilha de poder de outros atores na pretensão de usar a força de um
de decisão entre gestores, trabalhadores e usuários movimento popular para seus interesses próprios.
do SUS, muitas vezes esses espaços são encarados Para que essa forma de cooptação não ocorra, a po-
de forma pouco reflexiva, impedindo avanços no pulação deve estar organizada e sua participação em
controle social. conselhos e conferências bem embasada e atrelada
A maioria dos conselhos municipais de saúde às necessidades em saúde.
brasileiros enfrenta problemas estruturais e políti- Todas essas questões tornam polêmica a partici-
cos que dificultam sua organicidade e autonomia. pação social institucionalizada. Também polêmico
Há dificuldades quanto à falta de paridade, repre- é o discurso da participação social na política de
sentatividade, orçamento próprio e autonomia no promoção da saúde. Carvalho (2004) traz a discussão
gerenciamento de recursos, alguns não possuem das múltiplas interpretações do chamado empo-
sede ou linha telefônica própria, além da informa- werment, que pode ser uma forma de promover a
tização e acesso à internet não fazer parte da reali- sensação de controle do indivíduo sobre o processo
dade de muitos (Dominguez, 2007). Essas questões saúde-doença sem que sejam necessárias transfor-
explicitam o comum não cumprimento da Resolução mações no modo de produção vigente e nas relações
do CNS no 333/03 (Brasil, 2003). sociais, ou significar o que esse autor chamou de
O processo de escolha de representantes para “empowerment comunitário”, objetivando maior
os espaços institucionais de decisão em saúde in- justiça social que se dá através da divulgação/
fluencia a credibilidade destes. A representação é popularização de informações sobre saúde e seus
uma forma de participação que possui importantes determinantes, desenvolvimento da consciência
limitações. Ela se torna frágil quando o grupo re- crítica e o aumento da capacidade de intervenção
presentado está fragmentado e não há mecanismos sobre a realidade.
que propiciem o debate. São necessárias formas Esses problemas e questionamentos quanto à
adequadas para a escolha do representante e para a participação social institucionalizada não são ex-
comunicação direta entre ele e seus representados. clusividade brasileira, Serapioni e Romaní (2006)
O aumento do vínculo com a base legitima a repre- também reconhecem muitos deles nos espaços de
sentação e aumenta a força política. participação social de outros países, como CCM da
De acordo com a Resolução 333/03 (Brasil, 2003), Itália e CHC da Inglaterra.
os membros dos conselhos de saúde são escolhidos Espaços institucionalizados de participação po-
para representar a sociedade como um todo, mesmo pular contribuem para formar identidades coletivas
assim, geralmente, cada organização procura que por meio da dimensão política. Mas não podem ser
seus próprios membros se tornem os conselheiros. esquecidas as formas de luta próprias dos movimen-
Tal fato levanta o debate sobre a que interesses o tos sociais, que também provocam os sujeitos a se
conselheiro está vinculado: interesses gerais ou par- mobilizarem e lutarem para atender suas carências
ticulares, além de quem e de que forma o conselheiro vividas e sentidas coletivamente. A restrição do
representa (Bodstein, 1993). As marcas indeléveis da campo de reivindicação aos espaços institucionali-
cultura do clientelismo e paternalismo, presentes zados torna os movimentos populares vulneráveis

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e obedientes ao aparelho estatal, por isso é preciso Referências
impedir que ocorra o enfraquecimento da luta em
outras frentes de participação e comunicação (Bo- BENZAKEN, A. S. et al. Intervenção de base
dstein, 1993). É necessário ampliar o conceito de comunitária para a prevenção das DST/Aids
participação e seus arranjos políticos para que não na região amazônica, Brasil. Revista de Saúde
se perca a riqueza do pensamento popular dentro dos Pública, v. 41, p. 118-26, 2007. Suplemento 2. 
padrões do sistema (Feuerwerker, 2005). BODSTEIN, R. C. A. (Org.). Serviços locais de
saúde: construção de atores e políticas. Rio de
Janeiro: Relume-Dumará, 1993.
Considerações Finais
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da
Quando se adota o conceito ampliado de saúde, a
República Federativa do Brasil. Brasília, DF:
participação social torna-se condição sine qua non
Senado, 1988. Título VIII – Da Ordem Social. Seção
para seu exercício pleno. Não se pode considerar
II – Da Saúde. Arts. 196-200.
saudável uma população alijada do processo de
decisão sobre os rumos da saúde pública, por isso BRASIL. Lei n° 8.080, de 19 de setembro de 1990.
uma das bandeiras defendidas pelo Movimento Dispõe sobre as condições para a promoção,
de Reforma Sanitária foi a institucionalização da proteção e recuperação da saúde, a organização
participação. e o funcionamento dos serviços correspondentes
O envolvimento da população permite a ela se e dá outras providências. Diário Oficial da União,
apropriar de sua saúde e conduz à formação da cons- Brasília, DF, 20 set., 1990a. Seção 1, p. 18055.
ciência sanitária que se estende às demais questões BRASIL. Lei n° 8.142, de 28 de dezembro de 1990.
sociais. Nesse processo, alcança-se amadurecimento Dispõe sobre a participação da comunidade
político e ampliação da cidadania, essenciais ao na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e
desenvolvimento de uma sociedade justa e distante sobre as transferências intergovernamentais de
das tradicionais práticas opressivas de poder. recursos financeiros na área da saúde e dá outras
A decisão política institucional de fortalecer a providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF,
participação social na gestão das políticas de saúde 31 dez., 1990b. Seção 1, p. 25694
deve ser valorizada de acordo com sua potenciali-
BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 545,
dade em permitir avanços na universalização e na
de 20 de maio de 1993. Estabelece normas e
equidade do acesso à saúde, além de ser uma forma
procedimentos reguladores do processo de
de qualificação da gestão pública. A abertura da
descentralização da gestão das ações e serviços
gestão aos diversos olhares e vozes democratiza e
de saúde, através da Norma Operacional Básica –
compatibiliza as ações em saúde pública às reais
SUS 01/93. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 24
demandas sociais.
maio, 1993. Seção 1, p. 6961.
A reflexão crítica e constante sobre a praxis da
participação popular não pode em momento algum BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.203,
ser abandonada. É preciso não esquecer o que re- de 5 de novembro de 1996. Diário Oficial da União.
presenta em nossa sociedade atual o exercício do Brasília, DF, 6 nov., 1996. Seção 1, p. 22932.
poder. BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 373, de
Retomando o conceito de participação social de 27 de fevereiro de 2002. Diário Oficial da União.
Valla (1998), as “múltiplas ações” das “diferentes Brasília, DF, 28 fev., 2002. Seção 1, p. 52.
forças sociais” são relevantes e se complementam.
A prática institucional não substitui as conhecidas BRASIL. Ministério da Saúde. Conselho Nacional
formas de pressão política dos movimentos sociais. de Saúde. Resolução nº 333, de 4 de novembro
Ela se soma às demais manifestações dos sujeitos de 2003. Aprova as diretrizes para criação,
coletivos em busca de saúde e qualidade de vida. reformulação, estruturação e funcionamento
dos Conselhos de Saúde. Diário Oficial da União.
Brasília, DF, 4 dez., 2003. Seção 1, p. 57.

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Dispõe sobre a organização, as atribuições e o estudo comparativo de dois serviços de saúde
processo eleitoral do Conselho Nacional de Saúde - mental: relações entre participação popular e
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Recebido em: 29/05/2011


Aprovado em: 07/10/2011

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