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Breve incursão pela obra poética de Paulo Pego

por Francisco Miguel Valada


Livraria La Petite Portugaise, Bruxelas, 23 de Maio de 2019

safra do rurícola

campestre

a ortografia

Paulo Pego, À Senoite (2009:36)

A picture is not worth a thousand words, or any other number. Words are the wrong currency to
exchange for a picture.

Donald Davidson, Inquiries into Truth and Interpretation (2001: 263)

***

Muito boa tarde a todos.


Agradeço o convite ao Autor e a Joaquim Pinto da Silva e a organização deste serão à
livraria La Petite Portugaise, que vem quer cumprindo com brilho o seu papel, chegando
a novos – e também jovens – públicos, quer ajudando de forma muito competente a
manter viva a chama da língua portuguesa “na extensão falada da norma literária”, mas
não na “norma ou variante popular, unicamente de carácter oral, e não influenciada pela
literatura”, como as caracteriza o linguista Eduardo Paiva Raposo (cf. Raposo, 1984).
Embora vá abdicar de considerações técnico-linguísticas neste exercício de leitura,
transversal e necessariamente curto, da obra poética de Paulo Pego – embora mais lá para
a frente vá tecer (entretecer!) um breve comentário metalinguístico–, devo explicar
porque é que esta chama da língua portuguesa é mantida pela La Petite Portugaise “na
extensão falada da norma literária”.
A norma que Paulo Pego nos faz chegar através da sua obra não é bem aquela norma que
hoje ouvimos nas aldeias, vilas e cidades portuguesas, por exemplo, nas ruas da minha
cidade, do Porto, mais concretamente na Ribeira, onde Paulo Pego vê na roupa ali
estendida a “alma exposta” (Pego, 2015a: 36), mas também do outro lado do Douro, na
Afurada – que o Autor aqui hoje nos traz através de belas imagens.
A língua que Susana Praat e a equipa da La Petite Portugaise divulgam – e, divulgando,
defendem – é idealmente aquela em que escritores com qualidade literária como Paulo
Pego se exprimem na página impressa, emoldurada por uma norma concreta e transversal,
acabando por ser factualmente aquela que todos nós utilizamos em ambientes de certa
maneira formais, indirecta ou directamente influenciados pela literatura, isto é,
independentemente de sermos leitores compulsivos, praticantes, ocasionais ou omissos.
Ou seja, a “extensão falada da norma literária” é a norma praticada no ensino (é a base, é
a basezinha!, como diria o abade Custódio n’Os Maias) e que de forma implícita nos
influencia, a todos nós, ou à maioria de nós, em diferentes graus e que é factor de distância
social relativamente à “norma ou variante popular, unicamente de carácter oral, e não
influenciada pela literatura” e ainda hoje falada por quem (apesar da pressão imobiliária)
continua na Ribeira a ver a sua alma exposta na roupa estendida.
***
Comecemos então esta breve viagem pelo momento em que vi e ouvi Paulo Pego pela
primeira vez. Exactamente: vi e ouvi, não li. Vi e ouvi Paulo Pego nessoutra arte que
domina tão bem: a declamação. Não me lembro de quando exactamente – há uns anos –,
num encontro organizado pela Livraria Orfeu. No momento combinado, Paulo Pego
levantou-se e declamou, de uma forma especial, mas que dispensa descrições da minha
parte, uma vez que temos o privilégio da sua presença e teremos o prazer de o ouvir em
excertos da sua própria obra. Todavia, não posso deixar de confessar qual foi o profundo
e sofisticadíssimo pensamento que me ocorreu, ao ver e ouvir Paulo Pego pela primeira
vez, nesse serão – e cito-me nos termos exactos que não exprimi então, mas exprimo
agora: “eh lá!”. Fim de citação.
A primeira parte da viagem está feita.
***
Passemos à segunda, ao essencial, ao que aqui me trouxe: à obra.
A apresentação de um percurso literário, neste caso da obra de um poeta, pode obedecer
a vários critérios. Uma apresentação cronológica: começando por À Senoite publicado em
2009 e vindo por aí fora até Entre-Tecidos em 2016, se nos ativermos ao formato livro.
Ou então, uma apresentação na qual nos debruçamos sobre o estilo do autor – e escuso
de inventar a roda: a marca mais característica, mais saliente, da poesia de Paulo Pego é
aquilo a que Ana Peixinho recentemente chamou “poética da contenção”, em que não há
qualquer palavra a mais e nada se encontra no poema por acaso. Pode ainda ser uma
apresentação em que discorremos sobre outras marcas do autor, como a explosão de
sensações desencadeada pela imagem impressa, com o poeta a criar imagens, não de
forma implícita, mas explicitamente, com o martelar do teclado (embora saibamos, diz-
nos alhures o próprio Autor, que escreve a caneta: “A minha caneta/está/onde sempre
esteve/na vida/sem demão” (Pego, 2015a: 9). Exemplos dessoutra arte (plástica) são a
silhueta de Herpetologia Artística (Pego, 2009: 56), passando pelo homem castelo
(2013a: 18) ou pelo poema em forma de postal dos CTT na Arte Postal (Pego, 2014a:
17). Existe sempre a hipótese de ser feita uma apresentação temática dentro de um livro,
como os arcos-íris que nos surgem em À Senoite (Pego, 2009: 12-13 e 40) e entre livros,
do “entretecer de encontros” que são os trilhos, em Fontainhas na Viagem (Pego, 2015a:
16), ao Entre-tecidos (Aniceto e Pego: 2016).
Sendo eu intérprete de conferência e licenciado em Tradução e sendo o Autor jurista-
linguista, podíamos ter uma apresentação com a missão de averiguar o impacto de
determinadas opções em traduções francesas dos poemas do autor: por exemplo, quer
num dos poemas mais bonitos de Paulo Pego (Feira Dominical) quer noutro com uma
enorme carga emocional para qualquer português que more em Bruxelas (Pessoa em
Flagey), ambos n’ A Lógica dos Corais (Pego, 2013: 12-3), os topónimos com inicial
minúscula do original português de Paulo Pego (flagey, jourdan, bruxelas) surgem com
uma lícita e respeitosa inicial maiúscula (Flagey, Jourdan, Bruxelles) na versão francesa
(Pego, 2013b: 28-9): perde-se uma marca do poema, escapa-nos algo do poeta ou há algo
que no fim de contas se ganha na tradução?
Outra hipótese de apresentação é centrarmo-nos em recursos estilísticos adoptados pelo
poeta, como as aliterações do ataque de betacismo “bué de bajuladores bajoujam
bardinos” (Pego, 2009: 18) e respectiva recidiva “qual bumerangue, tomou caminho de
volta e pensou; mas o pior, o pior era mesmo o bovarismo” (Pego, 2009: 20), ou as
fricativas laminoalveolares surdas de adémia e o resto (Pego, 2009: 28). O bovarismo,
aliás, registado no mesmo livro, mas em francês, em Bovarysme avant la lette” (Pego,
2009: 70) e que voltará mais tarde n’ A Lógica dos Corais (Pego, 2013a:60):
“irrespondível força motora carris/linhas/harpas inelutáveis/formas/conchavo: agulhas
há/muito perdidas/bovarismo/corda vida/nunca se partirá”. Há poemas de Paulo Pego que
estimulam os nossos sentidos, quando remata delícias do quotidiano, no descafeinado de
Ibsen (Pego, 2009: 14), com “café é melhor/cremoso à superfície” ou “tisana bebida em
goles” (Pego, 2009: 14) de “são paulo”, duas páginas mais à frente.
A faceta experimental da poesia de Paulo Pego, e insisto naquele que é o meu livro
predilecto do nosso Autor (À Senoite, de 2009), verifica-se nas ofertas visuais com que
nos brinda.
Ao ler o poema Casamento (Pego, 2009: 55),
SUMO
SUMPTUOSO
SUBIDO
ESPLÊNDIDO
ERGUIDO
SUBLIMADO
TRANSCENDENTE

O casamento de adjectivos a que assisti

lembrei-me da primeira vez que li um acróstico. Um acróstico, tradicionalmente, é a


escrita de palavra ou palavras com as letras do início de cada verso de um poema. Eis esse
primeiro acróstico que li, de Fernando Pessoa,
Onde é que a maldade mora?
Poucos sabem onde é.
Há maneira de o saber?
É em quem quando diz que chora
Leva a rir e a responder
Indo em crueldade até
A gente a não entender.

Comentário metalinguístico: Pessoa detestava a ortografia de 1911, aquela que evoluiu


para 1945 e posteriormente regrediu para 1990. Curiosamente, quando defendeu a
manutenção do dígrafo <ph>, não foi o nome de Ophélia o invocado por Pessoa, mas a
Philosophia: "Philosophia deve escrever-se com 2 vezes PH porque tal é a norma da
maioria das nações da Europa, cuja ortografia assenta sobre bases clássicas ou
pseudoclássicas" (cf. Valada, 2010) (i).
Aqui, no poema de Paulo Pego, temos um acróstico na diagonal, no sentido da escrita e
da leitura em português: da esquerda para a direita, de cima para baixo. O S é a primeira
letra de SUMO e de SUBLIME, o U a segunda letra de SUMPTUOSO e de SUBLIME;
o B a terceira letra de SUBIDO e de SUBLIME e assim sucessivamente até ao E, a sétima
letra de TRANSCENDENTE e de SUBLIME. Tendo em conta a outra arte de Paulo Pego
ligada à literatura, uma declamação literal deste poema pressuporá porventura um reforço
exagerado de cada uma das letras, mas creio que tal exercício (experimentei em casa,
confesso, e não recomendo) pode ser extremamente extenuante e, pior, ineficaz. Talvez
Paulo Pego nos possa explicar: ou exemplificar – ou então confirmar a minha hipótese da
indeclamabilidade (palavra inexistente, mas, convenhamos, morfologicamente exemplar)
deste poema. Realce-se no entanto que este poema respira por todos os poros “portuguez
lingua escripta” (denominação cunhada em 1881, por Francisco Adolfo Coelho, cf.
Coelho, 1881: 113): àquele E a negrito de transcendente não corresponde o E final de
sublime (ii). A correspondência é em grande medida muito gráfica e pouco fonológica.
Mais uma acha para a fogueira do carácter não-oral deste poema (melhor, destes poemas).
Temos aqui, voltando ao que já escreveu Ana Peixinho sobre o nosso Autor, uma
valorização do significante em detrimento do significado, identificada pela professora de
Literatura em três livros de Paulo Pego (A Lógica dos Corais, 2013; Livro das Pedras,
2014; e o texto de Entre-Tecidos, 2016). Efectivamente, um acróstico em si é um
exercício de valorização da palavra – daquela palavra: no caso de Pessoa, OPHÉLIA
(Queiroz); no caso de Paulo Pego, SUBLIME.
Quando li Entre-tecidos (2016), essa interpretação textual de Paulo Pego da obra plástica
de Sónia Aniceto, registei um dos temas tão caros ao nosso Autor, elemento essencial na
sua obra, sim, mas também na vida de todos nós: “A água é a solidez do mundo/Quando
ela deserta/O todo perde aprumo e só resta o prolixo” (Pego, 2016: 84).
Recuando dois anos, a Livro das Pedras. vemos que na Humidade (Pego, 2014a: 9) “a
chuva fina dissolve o magma/gramáticas aguadas/não têm referência a sinónimos”, no
próprio poema Água (Pego, 2014a: 11) “a água que mata a sede” é “também água que
seca”; nas Águas de Irene (Pego, 2014a: 21), “a nascente macerou efeitos/e as letras
voltaram”, no Boca Juniors (Pego, 2014a: 51), “afinal radicas no porto/numa hora
infiel/mesmo a água se deixou trair”, no quase épico Memento de País Possível (Pego,
2014a: 53), temos “O grande braço que asperge/águas de sono seda” e mais adiante (Pego,
2014a: 66) “a abelha seca de chuva” ou ainda (Pego, 2014a: 72) “águas e borrifos da
democracia”.
No ano seguinte, em Azul, na Viagem, há a “agitação das águas da Buracona” (Pego,
2015b: 13), em Mindelo, “no repuxo/água e sal/afinam cordas” (Pego, 2015b: 15), em El-
Jadida, “orvalhada a História/de Portugal” (Pego, 2015b: 38), no Lago Aoua (Pego,
2015b: 43), “No inverno da água, poderá descansar o verão” – até na Cidade Proibida
(Pego, 2015b: 47), “o ciúme cativa a água cursando modos que descem e se elevam, nada
restando para além dos ciprestes”.
Já no À Senoite (2009), o poema-imagem Solução Aquosa (Pego, 2009: 53), “o
sublimado/corrosivo cloreto de mercúrio/de sua graça/dissolve-se na água/perdendo o
prefixo e não só” de Sublime Completo (Pego, 2009: 54), o “entre cabos sol cabos lua/
peixe sai água” do retrato de Apollinaire (Pego, 2009: 73), o “pé na água ferrugem” de
XX (Pego, 2009: 76), a “Água/Gotas/transpiração/mineiro – Vapor/já não/ se resgata” de
Urgeiriça (Pego, 2009: 86) faziam prever esta obsessão temática do Autor, confirmada
quer n’ A Lógica dos Corais (2015), por exemplo, com “as tintas fundiram-se com a água”
(Pego, 2013a:. 22) ou na Vida sem Demão (2015), com nas Furnas “a pele” a ser “por
onde passa o geiser da criação” (Pego, 2015a: 34), enquanto em Veneza “não há hora/ os
ponteiros tomam-se por fios de água” (Pego, 2015a: 43).
Em suma, aquilo que vos digo quanto à obra de Paulo Pego é o seguinte: tem todos os
ingredientes para merecer estudo ainda mais aprofundado. Aliás, no fim desta
apresentação, fico com a mesma sensação que tive aquando da preparação deste texto:
por um lado, profundamente satisfeito por ter podido debruçar-me sobre tão competente
autor e extremamente frustrado por a minha actual vida profissional não me permitir
esmiuçar ainda mais esta obra que já não é pequena e à qual desejamos novos
desenvolvimentos.

Referências
Aniceto, S., & Pego, P. (2016). Entre-Tecidos. s.l.: Editora Licorne.
Coelho, F. A. (1881). A lingua portugueza. Noções de glottologia geral e especial
portugueza. Porto: Livraria Universal Magalhães & Moniz.
Davidson, D. (2001). Inquiries into Truth and Interpretation, (2.ª edição). Oxford:
Clarendon Press.
Pego, P. (2009). À Senoite. Bruxelas: Orfeu.
Pego, P. (2013a). A Lógica dos Corais.Bruxelas: Orfeu.
Pego, P. (2013b). Le Sel. Bruxelas: Orfeu.
Pego, P. (2014). Livro das Pedras. Bruxelas: Orfeu.
Pego, P. (2015a). Vida sem Demão. Fafe: Labirinto.
Pego, P. (2015b). Viagem. s.l.: Editora Licorne.
Pizarro, J., Ferrari, P., & Cardiello, A. (2013). Fernando Pessoa e Ofélia Queiroz: objectos
de amor, Pessoa Plural – A Journal of Fernando Pessoa Studies, 4, 152–195.
Raposo, E. P. (1984). Algumas observações sobre a noção de «língua portuguesa»,
Boletim de Filologia 29, 585-592.
Valada, F. M. (2010), Acordo Ortográfico: o derradeiro recurso, Público, 20 de Agosto.

i
Aliás, compreender-se-ia Ophélia em vez de Philosophia, pois a comissão de Gonçalves Viana,
proscrevendo o <ph> estragar-lhe-ia o efeito deste acróstico. Curiosamente, quando preparava esta sessão,
tropecei num artigo de Jerónimo Pizarro, Patricio Ferrari & Antonio Cardiello: no resumo em português,
Ofélia com <f>; no resumo em inglês decidiram traduzir o nome de Ofélia e ainda bem: manteve-se o <ph>
tão querido a Pessoa.
ii
Tal como no acróstico da Ophélia: aos O, P, H e I de Ophélia não correspondem os fonemas das palavras
iniciais dos respectivos versos.

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