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O islã, além de fé, uma tradição medieval consolidada em literatura vasta, contendo,

mesmo que de forma assistemática, valores, princípios e regras (charia), calcados num
espírito de transcendência e na autoridade, destinados a uma comunidade supranacional
(ummah), ressaltando-se a unicidade entre suas características – um Deus, língua
comum 1, padrões rígidos de comportamento e até estética.

O costume tribal dos povos anexados pela jihad (adat), considerados bárbaros incultos
pelo árabe, dessemelhante até no interior das tribos – grupos gregários, em sua maioria
nômades e pagãos, cujo vínculo era o ascendência comum. Representados por berberes
(Norte da África), turcos (Ásia Central), e malaios (Sudeste Asiático).

Identidades nacionais de impérios e reinos conquistados, ora indissociáveis da religiosa;


latinos e gregos cristãos, persas zoroastristas, punjabis hindus.

Por fim, o derradeiro conquistador e, mais que imposição, seu exemplo triunfante: a
razão, o laicismo, o capital, o Direito, etc.

Fui a colisão de modos de vida e visões de mundo conflitantes que levou a formação do
mundo islâmico como conhecemos. É um enredo complexo e surpreendente. Complexo,
pois logrou a crença maometana a continuação de sua natureza basilar dentro da
sociedade muçulmana, por meio ou alheia à lei. Inesperado, porque o terreno era de
todo desfavorável a manutenção da suma-importância de uma religião tão reacionária e,
mesmo assim, pouquíssimos Estados de maioria xiita ou sunita conseguiram atingir,
plenamente, o secularismo.

Como pôde a charia manter-se, em sua natureza imutável, em contraste com o Direito
do colonizador? São duas as principais razões. As metrópoles inglesa, francesa e
neerlandês não puderam deixar de notar aquilo que, mais tarde, os soviéticos chamariam
de “perigoso potencial nacionalista do islamismo”. Seria muita inconsequência atentar
contra os preceitos arraigados dessa fé, substituindo-os pelos ocidentais. Além de
conservarem as monarquias e a fiqh, os europeus as garantiram especial proteção.

O segundo motivo é o mesmo pelo qual se permitiu a religião de Meca difundir-se a


dois extremos do mundo, sendo aceita e acatada, sem maiores inconvenientes, pelos
dantes infiéis: tolerância e até apreciação dos usos que não aviltassem a fiqh. A charia
deixa tal campo de aplicação ao costume, à convenção das partes, à regulamentação
administrativa que se permite constituir uma sociedade baseada em elementos exteriores
à religião. O que anteriormente era preenchido pelo modo de vida de iranianos, hindus,
africanos, com o advento dos impérios coloniais, passou a ser complementado pelas
inovações jurídicas romano-germânicas e da common law.

Faz-se mister citar a pesquisa de Bergträsser 2, que identificou três setores com
diferentes graus de rigidez dentro das matérias versadas pela charia e fiqh: as normas de
Direito público são desvinculadas dos preceitos sagrados e podem ser consideradas
aquém da noção de direito sagrado; o estatuto pessoal, isso é, as normas concernentes à
família e ao indivíduo, são inerentes a sacralidade; a economia, comércio alocam-se a
meio caminho. Visando a boa ordem da sociedade dos crentes, não foi considerada
ilícita a elaboração de códigos, a partir do século XIX, influenciados pelos Direitos
ocidentais – desde que tais codificações não se “intrometessem” naquilo próprio do
estatuto pessoal.
A partir do século XVIII, com expansão da Grã-Bretanha através do Indostão e do
Império Russo pelo Turquestão, posteriormente pela ocupação francesa de parte do
Magrebe e holandesa das ilhas malaias, a evolução do direito islâmico foi cada vez mais
influenciada pela juridicidade européia. O direito constitucional e o administrativo, civil
e comercial, processual, criminal e do trabalho foram, assim, ocidentalizados em vários
países muçulmanos, até mesmo nos independentes. É o caso do Império Otomano,
primeiro a tentar codificar a charia sistematicamente.

A partir da intenção do sultão Abdülmecit I, que delegou ao jurista Ahmet Cevdet Paşa
a função 3, veio à tona o impasse: mesmo sem modificar as normas imutáveis da charia,
poderiam os governos expô-las de na forma de ordenança? A comunidade de
jurisconsultos assim compreendeu, limitando, todavia, os códigos quanto ao estatuto
pessoal – esse permaneceria sobre estrito controle das jurisdições tradicionais dos
alcaides. O primeiro a romper com tal dogma foi o código civil iraniano, de 1927.

Também nesse período, a metade primeira do século XX, observou-se o fenômeno do


dualismo jurídico nos países muçulmanos. De um lado, a jurisdição estatal, soberana,
calcada tanto na fiqh sagrada quanto na racionalidade do Direito romano-germânico ou
da common law; de outro, a jurisdição eclesiástica.

Com a I e II Grande Guerra e descolonização, formaram-se três grupos de nações


majoritariamente islâmicas: as que se tornaram repúblicas socialistas, onde a religião foi
perseguida e, graças a essa intervenção violente, hoje constituem sociedades
praticamente laicas – com exceção dos movimentos fundamentalistas, a população em
geral não releva a sua crença como as populações do oriente médio. O segundo grupo é
o de países pouco influenciados pelas doutrinas modernas: na Península Arábica,
Afeganistão e Paquistão – são nações sob crivo tanto da charia quanto do costume
tribal. O terceiro constitui os países que seguiram os modelos britânico e continental de
Direito, conservando, no entanto, seu estatuto pessoal e costumes através dos códigos.

Pode-se considerar que até a década de 1960 o ordenamento jurídico dos países
muçulmanos caminhava para a total ocidentalização. No final do decênio, assim como
os movimentos de contracultura irromperam no mundo cristão, o islã encarnou o
discurso contrário ao materialista e libertário no oriente. Frente a governantes que
desrespeitavam a tradição milenar e se curvam ante os interesses econômicos das
potências estrangeiras, o sentimento nacionalista nunca esteve tão ligado a religião.

Em 1979, a dinastia pahalavi foi derrocada pela Revolução Islâmica no Irã. A partir daí,
é incerta a História do Direto dessa religião, indicando previamente um retorno, por
parte da comunidade, à ortodoxia tradicional.

1 – O árabe enquanto língua franca e litúrgica.


2 – gotthelf ergsträsser, Grundzüge des ilamischen Rechts, 1935, p. 3.
3 – Vd. Mecelle.

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