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Embora isso seja importante em si mesmo, passa a ter maior significado quando se
reconhece que o relato da criação em Gênesis é sem rival. Em lugar algum, no antigo Oriente
Próximo ou no Egito, há algo semelhante registrado. As palavras específicas para Criador,
criação e criatura– relacionadas a Deus, mundo e humanidade, em Gênesis 1 e 2 – definem
todo o tom da maravilhosa e singular mensagem salvífica apresentada na Bíblia.
Essa totalidade é revelada já no primeiro versículo da Bíblia: “No princípio Deus criou os céus
e a Terra” (Gênesis 1:1). 2 Essa simples frase faz quatro afirmações básicas, completamente
novas e profundas, na busca do homem por uma compreensão da origem do mundo e de si
mesmo. 3
A primeira afirmação declara que Deus fez o céu e a Terra “no princípio”. Houve então um
tempo em que este Globo e os céus atmosféricos não existiam. Nas mitologias antigas do
Oriente Próximo, a Terra não teve começo, e no pensamento filosófico grego, o mundo
existiu desde a eternidade. Entretanto, pelo uso da expressão “no princípio”, a cosmologia do
Gênesis estabelece um início absoluto para a criação. A expressão prenhe, “no princípio”,
desassocia, de uma vez por todas, a concepção do mundo de todo o ritmo cíclico da
mitologia pagã e da especulação da metafísica antiga. Este mundo, sua vida e história não
dependem do ritmo cíclico da natureza, pois foi trazido à existência como um ato da criação
por um Deus transcendente.
A quarta afirmação tem a ver com o objeto da criação, a matéria que é trazida à existência
por criação divina, ou seja, “os céus e a Terra”. Essas palavras, “os céus e a Terra”, em
hebraico, são os sinônimos para o termo cosmos por nós usado.
Um estudo mais aprofundado das 41 formas de uso da frase “o céu e a Terra” revela que elas
não significam que Deus criou todo o Universo, já com os milhares de galáxias, na ocasião em
que Ele criou o mundo. O foco permanece no planeta Terra e em seus arredores mais ou
menos próximos. As ideias elevadas expressas nesse primeiro verso da Bíblia definem o
rumo de toda a cosmologia de Gênesis.
AS INTERPRETAÇÕES ATUAIS DA COSMOLOGIA BÍBLICA
É amplamente aceita a crença de que a cosmologia bíblica é um mito que descreve um universo
de três andares com um céu acima, uma terra plana no meio e o mundo dos mortos embaixo.
Se essa interpretação for associada com a suposição de que a Bíblia apoia a ideia de um universo
geocêntrico, ou “centrado na Terra”, então ela parece estar mesmo irremediavelmente ultrapassada.
Por isso, muitos estudiosos modernos estão convencidos de que a cosmologia bíblica é histórica e
culturalmente condicionada, refletindo uma cosmologia primitiva e desatualizada do mundo antigo.
Eles alegam que a cosmologia bíblica deveria ser abandonada e substituída por uma que seja atual e
científica.
No pensamento moderno, isso deixa margem para apenas duas alternativas: (1) aceitar a
concepção mitológica do mundo, ao preço do sacrifício intelectual, ou (2) abandonar a
cosmologia bíblica e adotar, seja lá qual for, a última teoria científica.
De onde vem a interpretação de que a Bíblia apresenta uma imagem geocêntrica? Essa ideia
surgiu nos tempos pós-Novo Testamento, quando os principais teólogos adotaram a cosmologia
greco-ptolomaica do segundo século d.C. e interpretaram a Bíblia com base nesse conceito
antibíblico. O famoso julgamento de Galileu, no século 17, poderia ter sido evitado se os teólogos
da igreja tivessem reconhecido que a interpretação que faziam de determinados textos da Bíblia
era baseada na cosmologia do matemático e geólogo pagão Ptolomeu.
A visão dos antigos egípcios na teologia menfita era de que o lugar permanente dos mortos
ficava no oeste. Na AmDuat [Reino dos Mortos] do Novo Reino, o falecido era engolido com o
Sol, pela deusa do céu, Nut, no ocidente, viajava durante as 12 horas da noite e surgia com o
Sol no paraíso, passando por uma regeneração e recriação, diariamente. Na mitologia
cananeia, a divindade suprema, El, tinha seu trono próximo às “fontes dos Dois Rios, no meio
do leito dos Dois Abismos”, 6significando que os deuses nem sempre habitam nos céus ou no
andar superior de um suposto universo de três andares. O deus cananeu Baal, que
infelizmente também foi algumas vezes adorado pelos israelitas, tinha seu lugar de habitação
no alto do monte Zafon, norte da Síria, na desembocadura do Rio Orontes.
Tais exemplos deixam claro que não havia nenhuma antiga imagem mítica uniforme de um
universo de três andares. O conceito é totalmente ausente na cosmologia bíblica.
A palavra original para “abismo”, em Gênesis 1:2, aparece de forma destacada no argumento
daqueles eruditos que apoiam a visão de que a cosmologia do Gênesis é de três andares. Há
um céu acima, terra embaixo (verso 1) e o que está mais embaixo é “o abismo”, interpretado
como o “oceano primitivo”. Alega-se que o termo original para “abismo”, tĕhôm, é derivado
diretamente da palavra Tiamat, um monstro feminino da mitologia babilônica e deusa do
oceano primitivo do mundo, no épico nacional Enuma Elish. Dizem que Tĕhôm contém um
“eco do antigo mito cosmogônico” 7, no qual o deus criador Marduk se envolve numa batalha
com Tiamat e a mata. A interpretação de que o termo bíblico abismo é linguisticamente
dependente de Tiamat é reconhecido como incorreto hoje, com base em uma compreensão
avançada das línguas semíticas comparadas. Na verdade, “é fonologicamente impossível
concluir que [a palavra original traduzida como ‘abismo’] era derivada de Tiamat.” 8é
geralmente “um termo poético para falar de uma grande quantidade de água” 9, que é
totalmente “não mítica”. 10 Sugerir que Gênesis 1:2 contém o remanescente de um conflito
relacionado ao mito da batalha pagã é interpretar a mitologia antiga no Gênesis – algo que,
na verdade, o texto combate. A descrição do passivo, inerte e desorganizado estado do
“abismo” em Gênesis 1:2 revela que esse termo não é mítico em seu conteúdo e antimítico
em seu propósito.
Mais recentemente, foi sugerido um contexto cananeu para esse mito da batalha do caos
incorporado em Gênesis, marcando uma mudança de origem da Babilônia para o oeste. Mas
há pouquíssima evidência para isso. O termo traduzido como “mares” não aparece até
Gênesis 1:10, quando seria de esperar em alguns versos iniciais do relato. Qualquer conexão
com a divindade cananeia Yam, portanto, não está presente, tornando “difícil assumir que
existiu antes um mito do dragão cananeu no contexto de Gênesis 1:2”. 11 Na verdade, vários
estudiosos rejeitam o fato de que havia um mito da criação em Ugarit, onde esses textos
foram encontrados, e outros questionam se Baal sempre atuou como um deus criador.
O que se pode dizer das “fontes do grande abismo”, mencionadas por duas vezes em
Gênesis, no relato sobre o dilúvio (Gênesis 7:11; 8:2)? 12 O “grande abismo” refere-se, sem
dúvida, às águas subterrâneas. Entretanto, nesses textos, não há nenhuma alusão a que
essas águas subterrâneas tenham conexão com a mitologia de um mar do submundo, no
qual a Terra flutua. Durante o dilúvio, as fontes de águas subterrâneas que alimentavam as
fontes e os rios se abriram com tal poder e força que, juntas com o derramamento da chuva
torrencial acumulada no céu atmosférico, deram origem ao dilúvio universal. As passagens
que falam dos recursos subterrâneos, como as águas debaixo/embaixo da Terra (Êxodo 20:4;
Deuteronômio 4:18; 5:8; Salmo 136:6), com base em uma investigação mais acurada, são
insuficientes para manter a suposta visão do mundo de três camadas. E o que dizer do
submundo? O Šĕʾôl, invariavelmente, é considerado o lugar para onde vão os mortos. 13É
uma expressão figurada para sepultura e tumba, e pode ser equiparada ao termo hebraico
utilizado normalmente para “tumba”. Na Bíblia, Šĕʾôl nunca se refere a um submundo
sombrio de trevas ou de águas como a habitação dos mortos, tal como é concebido na
mitologia pagã entre os gregos e babilônios. Como uma designação para sepultura, o Šĕʾôl,
está claro, é subterrâneo porque está no solo. Os três usos da frase: “as águas
debaixo/embaixo da terra” (Êxodo 20:4; Deuteronômio 4:18; 5:8), obviamente se referem às
águas abaixo da linha do nível do mar, porque, em um dos textos (Deuteronômio 4:18), elas
são realmente o lugar onde vivem os peixes.
Mudando do que está “embaixo” da Terra para o que está “em cima”, o ato da criação, fiat, no
segundo dia, chama à existência o “firmamento” (Gênesis 1:7). O firmamento está
frequentemente associado à “firmeza” e “solidez”, ideias derivadas da Vulgata firmamentum e
da Septuaginta steréōma, mas não do termo original em hebraico. Seguindo a Vulgata, muitos
têm sugerido que essa é “uma abóboda de corpo sólido”. 14 Entretanto, essa é uma
interpretação bastante recente, sugerida inicialmente no século 18 pelo filósofo francês
Voltaire. O termo hebraico rāqîa‘, tradicionalmente traduzido por “firmamento”, é melhor
representado pela palavra “expansão”. Alguns têm tentado justificar, com base em textos não
relacionados à Bíblia, que a palavra original designava algo sólido, talvez como uma chapa de
metal. No entanto, essas tentativas para explicar a palavra hebraica não conseguiram
convencer. Tais interpretações estão baseadas em conjecturas filosóficas não
fundamentadas e em conceitos mitológicos extrabíblicos, e não no que os textos bíblicos
realmente pedem.
Em passagens como a de Gênesis 1:7, Salmo 19:1 e Daniel 12:3, firmamento tem o significado
de expansão ou da vastidão arredondada dos céus, que, para um observador no solo, ela se
parece com uma enorme abóboda invertida. Em Ezequiel (versos 1:22, 23, 25, 26; 10:1) tem o
sentido de uma plataforma estendida ou uma superfície plana. Nenhum texto das Escrituras
ensina que o firmamento, ou melhor, a “expansão” do céu seja firme e sólida, e que mantém
alguma coisa acima dela. 15
A chuva não vem através das “janelas do céu”, colocadas em um firmamento sólido. Dos
cinco textos da Bíblia que se referem às “janelas do céu”, somente a história do dilúvio
(Gênesis 7:11; 8:2) as relaciona com a água, e aqui as águas não vêm do firmamento, mas do
“céu”. Os outros três textos indicam claramente que a expressão “janelas do céu” deve ser
compreendida em um sentido não literal; é uma linguagem figurada, da mesma maneira em
que podemos falar hoje das “janelas da mente” ou da “abóboda celeste”, sem que isso
implique que a mente tenha janelas com esquadrias e vidraças e que o céu seja uma
abóboda literal feita de tijolos maciços ou de concreto.
Em 2 Reis 7:2, a cevada vem das “janelas do céu”. Em Isaías 24:18, parece ser o terror e a
angústia que usam essa entrada, enquanto em Malaquias 3:10, as bênçãos vêm através “das
janelas do céu”. Essa linguagem figurada não se coaduna com a reconstrução da cosmologia
bíblica. Isso é realçado pelo fato de que a Bíblia torna perfeitamente claro que a chuva vem
das nuvens (Juízes 22:13, 14). No Salmo 78:23, essa associação das nuvens com “as portas do
céu” é explicada em linguagem poética, na qual a primeira e a segunda linhas repetem o
mesmo conceito: “Não obstante, ordenou às alturas e abriu as portas dos céus.” No antigo
testamento, sempre que chove em grande quantidade, isso é expresso de forma figurada por
meio da expressão: as janelas ou portas do céu estão abertas. O reconhecimento do uso não
literal e metafórico das palavras – a linguagem pictórica – é importante na Bíblia. Se a Bíblia
for lida e interpretada de acordo com seus próprios termos, geralmente não será difícil
reconhecer essa linguagem. Nós nos referimos ao “pôr do Sol no horizonte”, quando na
verdade sabemos que a Terra é que está girando em seu eixo ao redor do Sol.
Com base nessas evidências, a concepção amplamente divulgada de que a cosmologia bíblica
descreve um universo de três andares não pode ser mantida. A assim chamada visão
primitiva ou primária acaba sendo “uma interpretação atribuída e não uma ideia derivada
dos próprios textos”. 16 Mesmo quando certas narrativas da Bíblia datam da mesma época
desses mitos pagãos, isso não implica, necessariamente, que todo escritor antigo tenha
usado as mesmas ideias, quer sejam inspiradas ou não.
OUTROS ASPECTOS DO CONTRASTE
A realidade é que a narrativa do Gênesis contrasta fortemente com os antigos registros que
temos do Oriente Próximo e do Egito para que haja uma polêmica ou discussão intencionais
com relação a esses mitos.
Vários estudiosos afirmaram que a criação feita pela “palavra que sai da boca” encontra
melhor paralelo nas cosmologias egípcias. Há inúmeras tradições diferentes, no entanto, que
se desenvolveram ao longo do tempo com variações significativas. Na cosmologia de
Heliópolis ou a teogonia, Atum gera a Enéade (um conjunto de nove deuses) vindos dele
mesmo pelo ato da masturbação ou expelindo-os pela boca, “e nascem um irmão e uma
irmã, Shu e Tefnut”. 20 Em outra tradição, os Textos de Sarcófagos descrevem Atum como o
Sol, com o nome de Atum-Rá. Algumas vezes, esses dois nomes são separados, como em “Rá
em sua ascensão e Atum descendo no horizonte”. 21 Nesse sentido, Atum, frequentemente
igualado ao deus-sol Rá, é autogerado e o originador dos deuses e de todas as coisas.
Na teologia menfítica do Egito, Ptah é comparado e contrastado com Atum. Enquanto Atum
criava, por meio “dessa semente e dessas mãos, (para) a Enéade de Atum evolu(ia) através de
sua semente e de seus dedos, mas a Enéade é os dentes e os lábios nessa boca que
pronunciou a identidade de todas as coisas, da qual Shu e Tefnut saíram e deram à luz a
Enéade.” 22 Aqui o autor atinge o seu objetivo de combinar as duas narrativas dizendo que “a
origem da Enéade, através dos dentes e dos lábios (de Ptah) é a mesma que teve origem por
meio do sêmen e das mãos de Atum”.23 A boca é, portanto, igualada ao órgão masculino “do
qual Shu e Tefnut saíram e deram à luz a Enéade ”. 24É através da sua autogeração que
Atum/Ptah criou os deuses. É aqui que esses dentes e lábios devem ser comparados à fala
sem esforço encontrada na criação do Gênesis que ignora o paralelismo feito com Atum e a
conotação sexual.
Nas cosmologias egípcias não há nenhuma finalidade para a criação. Em vez disso, há “um
dia como o padrão da geração que se repete, que se renova a cada manhã com o nascer do
Sol, simbolizando o nascimento diário de Amon-Rá, o deus-sol criador, como uma
personificação de Atum.” 32 O ciclo da morte e do renascimento era tão central para o
pensamento egípcio, que a própria morte era vista como parte da ordem normal da criação.
Em um papiro funerário da Vigésima Primeira Dinastia, uma serpente com asas nas pernas
está em pé sobre suas quatro pernas, tendo a inscrição: “Morte ao grande deus que fez
deuses e homens”. 33 Essa é a “personificação da morte como um deus criador e uma
impressiva ideia visual de que a morte é uma característica necessária do mundo da criação,
isto é, da existência de modo geral”. 34 Uma imagem semelhante pode ser vista na câmara
mortuária de Tutmés III, em que, na 11ª hora de AmDuat, Atum aparece segurando as asas
de uma serpente alada, rodeada de ambos os lados pelos olhos de Udjet – os olhos de Rá e
de Horus. O conceito de um sábado e da sequência de sete dias está totalmente ausente.
A cosmologia do Gênesis representa uma “ruptura total” 35com as mitologias pagãs do Oriente
Próximo e do Egito, fazendo minar as cosmologias míticas prevalecentes e os fundamentos
básicos das religiões pagãs. A narrativa da criação não somente apresenta o registro verídico
das origens, mas, ao descrevê-lo, o escritor apresentou inúmeras salvaguardas contra a
mitologia. Ele usou determinados termos e motivos, em parte relacionados aos conceitos
pagãos incompatíveis – cosmológica, ideológica e teologicamente – e em parte revelando um
incontestável contraste com os mitos do Oriente Próximo, e os empregou com um significado
e ênfase expressivos em relação à cosmovisão bíblica, à compreensão da realidade e à
cosmologia da revelação divina.
A narrativa bíblica da criação, baseada na cosmologia de Gênesis, vai muito além dessas
questões intelectuais, ao abordar ainda questões existenciais de extrema importância,
porque é também o registro do início dos processos naturais e históricos. A criação bíblica
responde o que o Criador divino é capaz de fazer. Como o Criador, que não é outro senão o
próprio Cristo, o Agente da criação enviado pelo Pai (João 1:1-4; Hebreus 1:1-3), que fez o
Cosmos e tudo o que nele há, por ser o Criador de todas as forças da natureza e o
Mantenedor da criação, Ele pode usar essas forças para realizar a Sua vontade em todos os
acontecimentos no decurso do tempo, por meio de atos poderosos e poderosos feitos na
natureza e na História.