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A cosmologia única de Gênesis 1

Gerhard F. Hasel e Michael G. Hasel

A narrativa da criação no Gênesis apresenta não somente o


registro verídico das origens, mas, ao descrevê-lo, traz inúmeras
salvaguardas contra a mitologia. O relato utiliza determinados
termos e motivos, empregando-os com significado e ênfase
expressivos com relação à cosmovisão bíblica, à compreensão da
realidade e à cosmologia da revelação divina.
Os capítulos iniciais da Bíblia (Gênesis 1-11) contêm o relato de como tudo começou, com o
foco nos começos naturais e históricos, e na história subsequente do mundo e da
humanidade. 1

Embora isso seja importante em si mesmo, passa a ter maior significado quando se
reconhece que o relato da criação em Gênesis é sem rival. Em lugar algum, no antigo Oriente
Próximo ou no Egito, há algo semelhante registrado. As palavras específicas para Criador,
criação e criatura– relacionadas a Deus, mundo e humanidade, em Gênesis 1 e 2 – definem
todo o tom da maravilhosa e singular mensagem salvífica apresentada na Bíblia.

A COSMOLOGIA DA TOTALIDADE DO GÊNESIS


O relato da criação em Gênesis traz a primeira concepção do mundo e da humanidade como
totalidades, desde o seu início. Ninguém experimenta e “conhece” a humanidade em sua
totalidade. Na criação bíblica, porém, essas realidades são expressas em sua totalidade como
sendo originárias do Criador. As totalidades do mundo criado por Deus e o que nele há
retratam como a origem e a continuidade da existência do mundo e da vida são expressas no
tempo e no espaço.

Hoje, muitos acreditam que é desnecessário se envolver em um diálogo sobre a discussão


bíblica da criação e da busca científica para entender o mundo e a humanidade. Entretanto,
esse diálogo e interação não são somente desejáveis, eles são também essenciais. As ciências
podem lidar apenas com as esferas parciais do conhecimento, mas não das totalidades.

Essa totalidade é revelada já no primeiro versículo da Bíblia: “No princípio Deus criou os céus
e a Terra” (Gênesis 1:1). 2 Essa simples frase faz quatro afirmações básicas, completamente
novas e profundas, na busca do homem por uma compreensão da origem do mundo e de si
mesmo. 3

A primeira afirmação declara que Deus fez o céu e a Terra “no princípio”. Houve então um
tempo em que este Globo e os céus atmosféricos não existiam. Nas mitologias antigas do
Oriente Próximo, a Terra não teve começo, e no pensamento filosófico grego, o mundo
existiu desde a eternidade. Entretanto, pelo uso da expressão “no princípio”, a cosmologia do
Gênesis estabelece um início absoluto para a criação. A expressão prenhe, “no princípio”,
desassocia, de uma vez por todas, a concepção do mundo de todo o ritmo cíclico da
mitologia pagã e da especulação da metafísica antiga. Este mundo, sua vida e história não
dependem do ritmo cíclico da natureza, pois foi trazido à existência como um ato da criação
por um Deus transcendente.

A segunda afirmação é a de que Deus é o Criador. Como Deus, Ele é completamente


separado e independente da natureza. Na verdade, Deus continua a agir na natureza, mas
Ele e a natureza são separados e não podem, jamais, ser igualados a alguma forma de
emanacionismo ou panteísmo. Isso está em contraste com os conceitos egípcios nos quais
Atum, o deus criador, é ele mesmo o principal monte do qual surgiu toda a vida na
cosmologia de Heliópolis, ou onde, em outra tradição, Ptah está associado à “terra que se
eleva” na teologia de Mênfis. Nas cosmologias egípcias, “tudo está contido dentro da mônada
inerte, até mesmo o deus criador ”. 4 No Egito, não há separação entre Deus e a natureza.

A terceira afirmação declara queDeus atuou no fiat da criação. O verbo específico para


“criar”, bara’, tem somente Deus como seu sujeito em toda a Bíblia. Isto é, na língua hebraica,
ninguém pode bara’, a não ser Deus. Somente Deus é o Criador, e ninguém mais pode
compartilhar dessa atividade especial. O verbo bara’ nunca é empregado com a matéria ou
“coisas”, a partir das quais Deus cria; ele contém – juntamente com a ênfase da frase “no
princípio” – a ideia da criação a partir do nada (creatio ex nihilo). Como a Terra está descrita
em seu estado bruto de desolação e completamente vazia, no verso 2, a palavra criou, no
primeiro verso de Gênesis, significa o chamado da matéria original à existência na fundação
do mundo.

A quarta afirmação tem a ver com o objeto da criação, a matéria que é trazida à existência
por criação divina, ou seja, “os céus e a Terra”. Essas palavras, “os céus e a Terra”, em
hebraico, são os sinônimos para o termo cosmos por nós usado.

Um estudo mais aprofundado das 41 formas de uso da frase “o céu e a Terra” revela que elas
não significam que Deus criou todo o Universo, já com os milhares de galáxias, na ocasião em
que Ele criou o mundo. O foco permanece no planeta Terra e em seus arredores mais ou
menos próximos. As ideias elevadas expressas nesse primeiro verso da Bíblia definem o
rumo de toda a cosmologia de Gênesis.
AS INTERPRETAÇÕES ATUAIS DA COSMOLOGIA BÍBLICA
É amplamente aceita a crença de que a cosmologia bíblica é um mito que descreve um universo
de três andares com um céu acima, uma terra plana no meio e o mundo dos mortos embaixo.

Se essa interpretação for associada com a suposição de que a Bíblia apoia a ideia de um universo
geocêntrico, ou “centrado na Terra”, então ela parece estar mesmo irremediavelmente ultrapassada.
Por isso, muitos estudiosos modernos estão convencidos de que a cosmologia bíblica é histórica e
culturalmente condicionada, refletindo uma cosmologia primitiva e desatualizada do mundo antigo.
Eles alegam que a cosmologia bíblica deveria ser abandonada e substituída por uma que seja atual e
científica.

Rudolf Bultmann, um estudioso do Novo Testamento, escreveu há algumas décadas que, no


Novo Testamento, “o mundo é como um prédio de três andares. No meio, está a Terra, acima
dela está o céu e embaixo está o mundo subterrâneo”, 5 composto pelo inferno, o lugar de
tormento. Outros eruditos modernos acreditam que a cosmologia do Antigo Testamento retrata
literalmente essa imagem de um universo de três andares, com depósitos físicos de água,
câmaras de neve acumuladas pelo vento e janelas, tendo uma cobertura em forma de abóboda
como um céu sobre uma terra plana, no centro da qual está um umbigo, com águas debaixo da
terra e rios que saem do mundo subterrâneo. Essa cosmologia mitológica agora está
desatualizada, escreveu Bultmann. As pessoas hoje não podem acreditar nessa cosmologia
mitológica, enquanto, ao mesmo tempo, voam em aviões a jato, navegam na internet e
usam smartphones.

No pensamento moderno, isso deixa margem para apenas duas alternativas: (1) aceitar a
concepção mitológica do mundo, ao preço do sacrifício intelectual, ou (2) abandonar a
cosmologia bíblica e adotar, seja lá qual for, a última teoria científica.

Ambas as alternativas, porém, são falsas. Depois de cuidadosa investigação, acaso


encontraremos na Bíblia alguma evidência desse universo de três andares? A Bíblia apoia a ideia
de um universo geocêntrico? Ao contrário, a Bíblia está centralizada no inter-relacionamento
entre Deus e a humanidade. No Antigo Testamento, Deus é o centro de tudo, mas não no centro
físico. A Bíblia não dá nenhuma informação sobre um centro físico. De acordo com os seus
escritos, o Sistema Solar poderia ser geocêntrico, heliocêntrico ou de outra forma.

De onde vem a interpretação de que a Bíblia apresenta uma imagem geocêntrica? Essa ideia
surgiu nos tempos pós-Novo Testamento, quando os principais teólogos adotaram a cosmologia
greco-ptolomaica do segundo século d.C. e interpretaram a Bíblia com base nesse conceito
antibíblico. O famoso julgamento de Galileu, no século 17, poderia ter sido evitado se os teólogos
da igreja tivessem reconhecido que a interpretação que faziam de determinados textos da Bíblia
era baseada na cosmologia do matemático e geólogo pagão Ptolomeu.

Embora hoje estejamos livres da cosmologia ptolomaica, um grande número de estudiosos da


Bíblia ainda analisam a cosmologia bíblica sob as lentes do que eles acreditam ser as cosmologias
pagãs do antigo Oriente Próximo e do Egito. Em última análise, essas ideias estão baseadas numa
interpretação equivocada de certas passagens bíblicas. É importante reconhecer que é
relativamente recente a alegação de que a cosmologia bíblica é mitológica. No entanto, a Bíblia,
quando apropriada e honestamente interpretada em seus próprios termos, é, de fato, aceitável à
mente moderna e não apresenta essa forma de cosmologia que é tão amplamente a ela
atribuída.
O CONCEITO BÍBLICO DE COSMOLOGIA
A noção generalizada de que a cosmologia bíblica reflete a imagem pagã de um universo de
três andares tem lançado a sua sombra de forma bastante abrangente. Fica, porém, a dúvida
se realmente as cosmologias mitológicas antigas tinham claramente definida a noção de um
universo de três andares.

A visão dos antigos egípcios na teologia menfita era de que o lugar permanente dos mortos
ficava no oeste. Na AmDuat [Reino dos Mortos] do Novo Reino, o falecido era engolido com o
Sol, pela deusa do céu, Nut, no ocidente, viajava durante as 12 horas da noite e surgia com o
Sol no paraíso, passando por uma regeneração e recriação, diariamente. Na mitologia
cananeia, a divindade suprema, El, tinha seu trono próximo às “fontes dos Dois Rios, no meio
do leito dos Dois Abismos”, 6significando que os deuses nem sempre habitam nos céus ou no
andar superior de um suposto universo de três andares. O deus cananeu Baal, que
infelizmente também foi algumas vezes adorado pelos israelitas, tinha seu lugar de habitação
no alto do monte Zafon, norte da Síria, na desembocadura do Rio Orontes.

Tais exemplos deixam claro que não havia nenhuma antiga imagem mítica uniforme de um
universo de três andares. O conceito é totalmente ausente na cosmologia bíblica.

A palavra original para “abismo”, em Gênesis 1:2, aparece de forma destacada no argumento
daqueles eruditos que apoiam a visão de que a cosmologia do Gênesis é de três andares. Há
um céu acima, terra embaixo (verso 1) e o que está mais embaixo é “o abismo”, interpretado
como o “oceano primitivo”. Alega-se que o termo original para “abismo”, tĕhôm, é derivado
diretamente da palavra Tiamat, um monstro feminino da mitologia babilônica e deusa do
oceano primitivo do mundo, no épico nacional Enuma Elish. Dizem que Tĕhôm contém um
“eco do antigo mito cosmogônico” 7, no qual o deus criador Marduk se envolve numa batalha
com Tiamat e a mata. A interpretação de que o termo bíblico abismo é linguisticamente
dependente de Tiamat é reconhecido como incorreto hoje, com base em uma compreensão
avançada das línguas semíticas comparadas. Na verdade, “é fonologicamente impossível
concluir que [a palavra original traduzida como ‘abismo’] era derivada de Tiamat.” 8é
geralmente “um termo poético para falar de uma grande quantidade de água” 9, que é
totalmente “não mítica”. 10 Sugerir que Gênesis 1:2 contém o remanescente de um conflito
relacionado ao mito da batalha pagã é interpretar a mitologia antiga no Gênesis – algo que,
na verdade, o texto combate. A descrição do passivo, inerte e desorganizado estado do
“abismo” em Gênesis 1:2 revela que esse termo não é mítico em seu conteúdo e antimítico
em seu propósito.

Mais recentemente, foi sugerido um contexto cananeu para esse mito da batalha do caos
incorporado em Gênesis, marcando uma mudança de origem da Babilônia para o oeste. Mas
há pouquíssima evidência para isso. O termo traduzido como “mares” não aparece até
Gênesis 1:10, quando seria de esperar em alguns versos iniciais do relato. Qualquer conexão
com a divindade cananeia Yam, portanto, não está presente, tornando “difícil assumir que
existiu antes um mito do dragão cananeu no contexto de Gênesis 1:2”. 11 Na verdade, vários
estudiosos rejeitam o fato de que havia um mito da criação em Ugarit, onde esses textos
foram encontrados, e outros questionam se Baal sempre atuou como um deus criador.
O que se pode dizer das “fontes do grande abismo”, mencionadas por duas vezes em
Gênesis, no relato sobre o dilúvio (Gênesis 7:11; 8:2)? 12 O “grande abismo” refere-se, sem
dúvida, às águas subterrâneas. Entretanto, nesses textos, não há nenhuma alusão a que
essas águas subterrâneas tenham conexão com a mitologia de um mar do submundo, no
qual a Terra flutua. Durante o dilúvio, as fontes de águas subterrâneas que alimentavam as
fontes e os rios se abriram com tal poder e força que, juntas com o derramamento da chuva
torrencial acumulada no céu atmosférico, deram origem ao dilúvio universal. As passagens
que falam dos recursos subterrâneos, como as águas debaixo/embaixo da Terra (Êxodo 20:4;
Deuteronômio 4:18; 5:8; Salmo 136:6), com base em uma investigação mais acurada, são
insuficientes para manter a suposta visão do mundo de três camadas. E o que dizer do
submundo? O Šĕʾôl, invariavelmente, é considerado o lugar para onde vão os mortos. 13É
uma expressão figurada para sepultura e tumba, e pode ser equiparada ao termo hebraico
utilizado normalmente para “tumba”. Na Bíblia, Šĕʾôl nunca se refere a um submundo
sombrio de trevas ou de águas como a habitação dos mortos, tal como é concebido na
mitologia pagã entre os gregos e babilônios. Como uma designação para sepultura, o Šĕʾôl,
está claro, é subterrâneo porque está no solo. Os três usos da frase: “as águas
debaixo/embaixo da terra” (Êxodo 20:4; Deuteronômio 4:18; 5:8), obviamente se referem às
águas abaixo da linha do nível do mar, porque, em um dos textos (Deuteronômio 4:18), elas
são realmente o lugar onde vivem os peixes.

Algumas passagens de fundo poético descrevem os fundamentos da Terra como se


estivessem assentados sobre “colunas” (Jó 9:6; Salmo 75:3; 1 Samuel 2:8). Essas palavras, no
entanto, são usadas somente em poesia e são compreendidas da melhor forma como
metáforas. Elas não podem ser interpretadas para se referir a “colunas” literais. Mesmo hoje,
falamos por metáforas das “colunas da igreja”, referindo-nos aos leais apoiadores da
comunidade de fiéis. Assim, as colunas da Terra são metáforas para descrever a maneira
como Deus pode sustentar ou mover as estruturas internas que a mantêm, todas juntas e no
lugar, porque Ele é o Criador.

Mudando do que está “embaixo” da Terra para o que está “em cima”, o ato da criação, fiat, no
segundo dia, chama à existência o “firmamento” (Gênesis 1:7). O firmamento está
frequentemente associado à “firmeza” e “solidez”, ideias derivadas da Vulgata firmamentum  e
da Septuaginta steréōma, mas não do termo original em hebraico. Seguindo a Vulgata, muitos
têm sugerido que essa é “uma abóboda de corpo sólido”. 14 Entretanto, essa é uma
interpretação bastante recente, sugerida inicialmente no século 18 pelo filósofo francês
Voltaire. O termo hebraico rāqîa‘, tradicionalmente traduzido por “firmamento”, é melhor
representado pela palavra “expansão”. Alguns têm tentado justificar, com base em textos não
relacionados à Bíblia, que a palavra original designava algo sólido, talvez como uma chapa de
metal. No entanto, essas tentativas para explicar a palavra hebraica não conseguiram
convencer. Tais interpretações estão baseadas em conjecturas filosóficas não
fundamentadas e em conceitos mitológicos extrabíblicos, e não no que os textos bíblicos
realmente pedem.

Em passagens como a de Gênesis 1:7, Salmo 19:1 e Daniel 12:3, firmamento tem o significado
de expansão ou da vastidão arredondada dos céus, que, para um observador no solo, ela se
parece com uma enorme abóboda invertida. Em Ezequiel (versos 1:22, 23, 25, 26; 10:1) tem o
sentido de uma plataforma estendida ou uma superfície plana. Nenhum texto das Escrituras
ensina que o firmamento, ou melhor, a “expansão” do céu seja firme e sólida, e que mantém
alguma coisa acima dela. 15

A chuva não vem através das “janelas do céu”, colocadas em um firmamento sólido. Dos
cinco textos da Bíblia que se referem às “janelas do céu”, somente a história do dilúvio
(Gênesis 7:11; 8:2) as relaciona com a água, e aqui as águas não vêm do firmamento, mas do
“céu”. Os outros três textos indicam claramente que a expressão “janelas do céu” deve ser
compreendida em um sentido não literal; é uma linguagem figurada, da mesma maneira em
que podemos falar hoje das “janelas da mente” ou da “abóboda celeste”, sem que isso
implique que a mente tenha janelas com esquadrias e vidraças e que o céu seja uma
abóboda literal feita de tijolos maciços ou de concreto.

Em 2 Reis 7:2, a cevada vem das “janelas do céu”. Em Isaías 24:18, parece ser o terror e a
angústia que usam essa entrada, enquanto em Malaquias 3:10, as bênçãos vêm através “das
janelas do céu”. Essa linguagem figurada não se coaduna com a reconstrução da cosmologia
bíblica. Isso é realçado pelo fato de que a Bíblia torna perfeitamente claro que a chuva vem
das nuvens (Juízes 22:13, 14). No Salmo 78:23, essa associação das nuvens com “as portas do
céu” é explicada em linguagem poética, na qual a primeira e a segunda linhas repetem o
mesmo conceito: “Não obstante, ordenou às alturas e abriu as portas dos céus.” No antigo
testamento, sempre que chove em grande quantidade, isso é expresso de forma figurada por
meio da expressão: as janelas ou portas do céu estão abertas. O reconhecimento do uso não
literal e metafórico das palavras – a linguagem pictórica – é importante na Bíblia. Se a Bíblia
for lida e interpretada de acordo com seus próprios termos, geralmente não será difícil
reconhecer essa linguagem. Nós nos referimos ao “pôr do Sol no horizonte”, quando na
verdade sabemos que a Terra é que está girando em seu eixo ao redor do Sol.

Com base nessas evidências, a concepção amplamente divulgada de que a cosmologia bíblica
descreve um universo de três andares não pode ser mantida. A assim chamada visão
primitiva ou primária acaba sendo “uma interpretação atribuída e não uma ideia derivada
dos próprios textos”. 16 Mesmo quando certas narrativas da Bíblia datam da mesma época
desses mitos pagãos, isso não implica, necessariamente, que todo escritor antigo tenha
usado as mesmas ideias, quer sejam inspiradas ou não.
OUTROS ASPECTOS DO CONTRASTE
A realidade é que a narrativa do Gênesis contrasta fortemente com os antigos registros que
temos do Oriente Próximo e do Egito para que haja uma polêmica ou discussão intencionais
com relação a esses mitos.

Monstros marinhos ou criaturas marinhas? No quinto dia da criação (Gênesis 1:20-23),


Deus criou “as grandes baleias” (ACF) ou “os grandes animais marinhos”, “os grandes animais
aquáticos”, ou “os grandes monstros do mar”, conforme traduções mais recentes (AR A, NVI,
NTLH), vindas do termo hebraico. Nos textos ugaríticos, aparece um termo relacionado,
como se fosse a personificação de um monstro, um dragão, que foi vencido pela deusa
Anate, a deusa criadora. É justificada essa ligação do termo bíblico com a mitologia nesse
contexto? Em Gênesis 1:21, a palavra aparece claramente em um “contexto não
mitológico”. 17 Com base em outras passagens relacionadas à criação na Bíblia, ela parece ser
um termo genérico para as grandes criaturas aquáticas, em contraste com as pequenas
criaturas “que povoam as águas”, criadas a seguir (Gênesis 1:21, 22; Salmo 104:25, 26). A
criação dessas grandes criaturas aquáticas por Deus, conforme é expressa pelo verbo criar,
que sempre enfatiza a criação sem esforço, demonstra ser um argumento incontestável
contra a ideia da criação mitológica, por meio de uma batalha ou combate.

A ausência de combate, força ou luta – A oposição ao mito pagão é visível também na


criação fiat da elevação do “firmamento” (Gênesis 1:6, 7) ou “expansão” (ACF), sem nenhuma
luta, de qualquer tipo. As mitologias do antigo Oriente Próximo e do Egito associam esse ato
de separação a um combate ou a uma luta. As cosmologias antigas não foram absorvidas ou
refletidas em Gênesis, mas superadas.

Criação pela palavra falada – No relato da criação bíblica, a mais impressionante


característica é a criação feita por Deus pela palavra falada. No primeiro dia, “disse Deus:
‘Haja luz; e houve luz’” (Gênesis 1:3). Isso não tem paralelo algum na mitologia mesopotâmica
e na egípcia. No Enuma Elish [poema babilônico da criação do mundo], Marduk “não cria o
cosmo, mas o faz dividindo Tiamat de maneira horrível”. 18 No épico Atra-Hasis, a humanidade
é criada a partir da carne e do sangue de um deus que foi brutalmente morto e misturado
com o barro, mas “nenhum indício de uma divindade morta ou de qualquer outra matéria de
alguém que estivesse vivo é encontrado em Gênesis.” 19

Vários estudiosos afirmaram que a criação feita pela “palavra que sai da boca” encontra
melhor paralelo nas cosmologias egípcias. Há inúmeras tradições diferentes, no entanto, que
se desenvolveram ao longo do tempo com variações significativas. Na cosmologia de
Heliópolis ou a teogonia, Atum gera a Enéade (um conjunto de nove deuses) vindos dele
mesmo pelo ato da masturbação ou expelindo-os pela boca, “e nascem um irmão e uma
irmã, Shu e Tefnut”. 20 Em outra tradição, os Textos de Sarcófagos descrevem Atum como o
Sol, com o nome de Atum-Rá. Algumas vezes, esses dois nomes são separados, como em “Rá
em sua ascensão e Atum descendo no horizonte”. 21 Nesse sentido, Atum, frequentemente
igualado ao deus-sol Rá, é autogerado e o originador dos deuses e de todas as coisas.
Na teologia menfítica do Egito, Ptah é comparado e contrastado com Atum. Enquanto Atum
criava, por meio “dessa semente e dessas mãos, (para) a Enéade de Atum evolu(ia) através de
sua semente e de seus dedos, mas a Enéade é os dentes e os lábios nessa boca que
pronunciou a identidade de todas as coisas, da qual Shu e Tefnut saíram e deram à luz a
Enéade.” 22 Aqui o autor atinge o seu objetivo de combinar as duas narrativas dizendo que “a
origem da Enéade, através dos dentes e dos lábios (de Ptah) é a mesma que teve origem por
meio do sêmen e das mãos de Atum”.23 A boca é, portanto, igualada ao órgão masculino “do
qual Shu e Tefnut saíram e deram à luz a Enéade ”. 24É através da sua autogeração que
Atum/Ptah criou os deuses. É aqui que esses dentes e lábios devem ser comparados à fala
sem esforço encontrada na criação do Gênesis que ignora o paralelismo feito com Atum e a
conotação sexual.

Em contraste, não há nenhuma alusão à autogeração ou procriação no relato de Gênesis. A


expressão várias vezes repetida: “E disse Deus... e houve” (Gênesis 1:3, 6, 9, 11) fala da
onipotente e imutável palavra divina da criação dita sem esforço. A autoexistente palavra de
Deus revela o enorme e intransponível abismo que há entre a descrição bíblica da criação e a
mitologia pagã. A cosmologia do Gênesis enfatiza a diferença fundamental que há entre o Ser
divino, a criação e o ser criado, a fim de excluir qualquer ideia de emanacionismo, panteísmo
e dualismo.

Argumentos descritivos – A cosmologia do Gênesis revela em várias e importantes


instâncias uma acentuada polêmica ou argumento com relação à matéria criada. Isso é
evidenciado na descrição do “abismo” (Gênesis 1:2), na criação das grandes criaturas
aquáticas (v. 21), na criativa separação do céu e da terra (v. 6-8), no propósito da criação dos
seres humanos como o clímax dos seres criados na terra (v. 26-28) e na criação pela palavra
divina (v. 3). A essa impressiva lista poderia ser acrescentada a descrição da criação do Sol e
da Lua, e o papel que eles exercem, cujos nomes semíticos específicos foram certamente
evitados porque se referem ao deus-sol e à deusa-lua. O uso dos termos “luminar maior” e
“luminar menor” “exala um forte sentimento antimítico”, 25ou até mesmo polêmico, minando
as religiões pagãs e a mitologia em seus pontos fundamentais. A intenção do autor de
Gênesis era que o leitor soubesse que o Sol e a Lua não eram deuses, mas uma criação de
Deus para funções específicas.

A criação da humanidade – A magnificente narrativa da criação em Gênesis 1:26-28 fala do


ser humano como a coroa da criação 26 O termo para “criar” é empregado três vezes nesses
versos para enfatizar a criação fiat da raça humana, idealizada por Deus (Gênesis 1:28); Ele é
“o soberano do mundo”27, inclusive do reino animal e do reino vegetal. Todas as plantas que
dão sementes e árvores frutíferas são para nosso alimento (Gênesis 1:29). Essa imagem
sublime da preocupação e cuidado divinos para com as necessidades físicas da humanidade
está em tão nítido contraste com o propósito da criação na mitologia do antigo Oriente
Próximo que somos levados a concluir que o escritor da Bíblia descreveu o propósito da
criação da humanidade com a deliberada intenção de combater as ideias mitológicas pagãs
e, ao mesmo tempo, enfatizar a orientação da criação centralizada no ser humano.

Todos os mitos do antigo Oriente Próximo descrevem a necessidade da criação da


humanidade como uma ideia posterior, resultante de uma tentativa de aliviar os deuses do
árduo trabalho de conseguir alimento e bebida. Essa noção mítica é contrária à ideia bíblica
de que o homem é que deve governar o mundo como vice-regente de Deus. É óbvio que essa
ênfase antimítica não pode ser o resultado da adoção de noções míticas pagãs; ao contrário,
está enraizada na antropologia bíblica e na compreensão bíblica da realidade. Nas
cosmologias egípcias, “até agora, não se tem conhecimento de nenhum relato detalhado da
criação”. 28 O foco principal das cosmologias egípcias é a criação do panteão egípcio de
deuses, por isso, elas são melhor descritas como teogonias, embora os próprios deuses
representem os elementos da natureza. Uns poucos textos indicam que a humanidade veio
das lágrimas de Rá. “Eles [Shu e Tefnut] trouxeram a mim [Rá] o meu olho com eles; depois
que juntei meus membros, chorei sobre eles. É assim que os homens surgiram: das lágrimas
que rolaram do meu olho.” 29 A maior ênfase não está na criação da humanidade, que é
simplesmente mencionada de passagem, mas na restauração do olho de Rá, que possuía tais
importantes poderes mágicos e protetores na mitologia egípcia antiga. Em um Texto de
Sarcófago (7.465, período de 1.130), estava escrito: “Eu criei deuses com o meu suor e a
humanidade com as lágrimas do meu olho.” Isso indica que os homens são “criados como
qualquer outra coisa e são chamados de o rebanho de deus’ (Instrução ao rei Merikare) ou
‘rebanho de Rá’, mas são os deuses que ocupam a posição central nas cosmologias”. 30 Na
teologia menfita, a criação dos humanos nem mesmo é mencionada.

A semana de sete dias e a ordem da criação – A sequência completa da criação em Gênesis


1 manifesta uma ordem divina para que aquilo que estava sem forma e vazio fosse formado
e preenchido para se tornar um ecossistema perfeito que suportasse a vida. A sequência
divina de seis dias literais de 24 horas, dias consecutivos que culminam com o descanso no
sábado, é algo totalmente ausente nos registros do antigo Oriente Próximo e dos egípcios.

O poema épico Enuma Elish indica algumas analogias na ordem da criação: firmamento, terra


seca, luminares e, por último, a humanidade. Mas há também algumas diferenças distintas:
(1) não há nenhuma afirmação clara de que a luz tenha sido criada antes dos luminares; (2)
nenhuma referência explícita à criação do Sol. É difícil inferir algo assim, a partir da
personalidade de Marduk [Merodaque] como uma divindade solar e com base no que é dito
a respeito da criação da Lua no Tablete V; (3) não há nenhuma descrição da criação da
vegetação; (4) por fim, Enuma Elish não traz nada a respeito da criação de qualquer vida
animal no mar, no céu ou na terra. A comparação entre Gênesis e esse relato indica que há o
dobro dos processos da criação descritos em Gênesis 1. Há somente uma analogia geral com
relação à ordem da criação em ambos os registros; “não há nenhum paralelo mais estreito na
sequência dos elementos comuns em ambas as cosmologias”. 31 Com relação ao tempo em
que durou a criação, a única possível evidência é apresentada no relato de Atra-Hasis da
criação da humanidade. Aqui, 14 peças de barro foram misturadas com o sangue de um deus
imolado e colocado no ventre da deusa. Depois de dez meses de gestação, a deusa dá à luz a
uma prole de sete machos e sete fêmeas. O nascimento da humanidade após uma gestação
de dez meses não é encontrada no Gênesis; a humanidade é criada no sexto dia. A ligação do
sábado com um contexto do Oriente Próximo também é banal.

Nas cosmologias egípcias não há nenhuma finalidade para a criação. Em vez disso, há “um
dia como o padrão da geração que se repete, que se renova a cada manhã com o nascer do
Sol, simbolizando o nascimento diário de Amon-Rá, o deus-sol criador, como uma
personificação de Atum.” 32 O ciclo da morte e do renascimento era tão central para o
pensamento egípcio, que a própria morte era vista como parte da ordem normal da criação.
Em um papiro funerário da Vigésima Primeira Dinastia, uma serpente com asas nas pernas
está em pé sobre suas quatro pernas, tendo a inscrição: “Morte ao grande deus que fez
deuses e homens”. 33 Essa é a “personificação da morte como um deus criador e uma
impressiva ideia visual de que a morte é uma característica necessária do mundo da criação,
isto é, da existência de modo geral”. 34 Uma imagem semelhante pode ser vista na câmara
mortuária de Tutmés III, em que, na 11ª hora de AmDuat, Atum aparece segurando as asas
de uma serpente alada, rodeada de ambos os lados pelos olhos de Udjet – os olhos de Rá e
de Horus. O conceito de um sábado e da sequência de sete dias está totalmente ausente.

A cosmologia do Gênesis representa uma “ruptura total” 35com as mitologias pagãs do Oriente
Próximo e do Egito, fazendo minar as cosmologias míticas prevalecentes e os fundamentos
básicos das religiões pagãs. A narrativa da criação não somente apresenta o registro verídico
das origens, mas, ao descrevê-lo, o escritor apresentou inúmeras salvaguardas contra a
mitologia. Ele usou determinados termos e motivos, em parte relacionados aos conceitos
pagãos incompatíveis – cosmológica, ideológica e teologicamente – e em parte revelando um
incontestável contraste com os mitos do Oriente Próximo, e os empregou com um significado
e ênfase expressivos em relação à cosmovisão bíblica, à compreensão da realidade e à
cosmologia da revelação divina.

A exaltada e sublime concepção da narrativa da criação em Gênesis apresenta, como parte


central, um Deus transcendente que, como supremo e único Criador fala e traz o mundo à
existência. O centro de toda a criação é a humanidade, representada pelo homem e pela
mulher. A cosmologia do Gênesis, que, da maneira mais abrangente, desvenda os
fundamentos sobre os quais a realidade e a cosmovisão do mundo bíblico se assentam,
desconhece a existência de qualquer visão de um universo de três andares ou de três
camadas. Essa cosmologia nos apresenta a resposta da Inspiração para a questão intelectual
sobre o “quem” da criação, para o qual aponta o livro da natureza: Deus, o Criador. Também
nos dá as respostas para as questões relacionadas a “como” o mundo foi feito e “o que” foi
feito. Pela ação envolvida nos verbos que aparecem em Gênesis 1 e 2, como “fazer” (1:4, 7,
16, 25, 31), “aparecer” (1:9), “criar” (1:21, 27; 2:4), “colocar” (1:17) “formar” (2:7, 8, 19), “dizer”
(1:3, 6, 9, 14, 20, 24, 26), essa é uma indicação de “como” a atividade criativa divina é revelada.
A terceira questão intelectual pergunta “o que” o Criador transcendente trouxe à existência.
O próprio escritor bíblico resume esse ato nas seguintes palavras: “Assim, pois, foram
acabados os céus e a Terra e todo o seu exército” (Gênesis 2:1).

A narrativa bíblica da criação, baseada na cosmologia de Gênesis, vai muito além dessas
questões intelectuais, ao abordar ainda questões existenciais de extrema importância,
porque é também o registro do início dos processos naturais e históricos. A criação bíblica
responde o que o Criador divino é capaz de fazer. Como o Criador, que não é outro senão o
próprio Cristo, o Agente da criação enviado pelo Pai (João 1:1-4; Hebreus 1:1-3), que fez o
Cosmos e tudo o que nele há, por ser o Criador de todas as forças da natureza e o
Mantenedor da criação, Ele pode usar essas forças para realizar a Sua vontade em todos os
acontecimentos no decurso do tempo, por meio de atos poderosos e poderosos feitos na
natureza e na História.

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