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PERINE, Marcelo. Platão não estava doente, Loyola, S. Paulo 2014, 308 pp.
Resenha Crítica
reflexão sobre a Metafísica da História 115-131). Focado na “psicologia das
(146-149). Equilibrando o crescimento paixões” (115-116), o estudo visa a
da corrupção com o conhecimento su- “mostrar que a tarefa do filósofo, no
perior, produtor da ordem, Platão visa Político, pressupõe a elaboração da
a contrariar a quantidade e intensidade República, integrando-a “na concepção
dos desejos, que estão na origem da da dialética cujo horizonte é a doutri-
desordem (148-149). A finalidade que na dos Princípios” (116). Superando a
o move é avançar no “caminho mais concepção do thymos/thymoeides, da
longo” para “o estudo mais importante República (117-118), o Político introduz
[que] é a ideia do bem” (Rep. 505a) … a contraposição da “energia” (andreia:
“pelo qual se chega ao princípio de 119) à “sobriedade” (sophrosyne: 119).
tudo, aquele que não admite hipóteses Para responder ao problema fundamen-
(Rep. 511b; 154). tal posto pelo antagonismo das virtudes
A esse projeto corresponde já o da coragem e da moderação, opostas
programa de preparação do advento nas duas partes alma, a ciência régia usa
dos “filósofos-reis” (Rep. 473d-e; 97-98), o conceito de metrion, entendido como
que inicia o estudo “Tempo e acção “proporção que harmoniza os contrários
no Político” (2006; 97-114). O carácter e realiza uma mistura bela, ordenada e
“inquietante” do diálogo (99-100) é boa” (120-121), que o A. vai submeter à
justificado pela presença do mito (268d- “teoria dos Princípios” (123-131).
-274e), para o qual o A. apresenta o Pode assim concluir que a ciência
problema posto pela diversidade de régia deve se servir das ciências mili-
leituras de que é objeto: entre as quais tar, jurídica e retórica (Pol. 303d-305e),
são seleccionadas as de L. Brisson, K. que toma como mediações da ciência
Gaiser e M. Migliori (103-105), confron- política, assegurando a manutenção da
tadas com a de G. C. Carone (105-108). ordem pela métrica “que conserva o
As diferenças que as opõem residem meio entre dois extremos” (Pol. 284e);
na contraposição da “leitura segundo estratégia “que ainda hoje deveria ser
três ciclos cósmicos” – era de Cronos, exigível de quem quiser se dedicar à
“mundo abandonado a si mesmo”, reino política e estiver disposto a misturar
de Zeus (103) –, à distinção em “cinco paixão e senso das proporções” (131).
ciclos” (106-107). É desta última que o Antes de entrar no núcleo dos seis
A. extrai “da autonomia do universo o estudos consagrados às “Doutrinas
sentido ético-político do mito” (109- não-escritas” e à ”Tradição indireta do
113), condensado na tese de que “o platonismo”, deve ainda ser considera-
universo é o que os homens e a polis do o instigante texto que se interroga
devem ser”, exibindo a diferença que sobre “Quem são os inimigos de File-
separa o nous divino da racionalidade bo” (2011; 191-208). Começando pela
humana”, a qual sempre “permanece introdução da figura de Demócrito,
com uma tarefa a ser realizada” (113). que Platão nunca menciona nos diálo-
É ao esclarecimento daquilo em gos (191-194; 197-201), depois de ter
que esta tarefa pode consistir que está abordado o tema do prazer, o A. entra
Resenha Crítica
e da Díade ilimitada e indefinida de Sobre esta questão, o A. comenta
grande-e-pequeno”, que, para o Estagi- ainda a posição de F. Trabattoni (26-
rita correspondem, respectivamente, à 29). Para este A., a tradição indireta
“forma” e à “matéria”, como causas das não pode ser encarada como “uma
Ideias, com valor ontológico e axioló- incompreensível e repentina mudança
gico (22). Além destes, Platão admitia teorética” (27). Exceptuando a interpre-
ainda “uma esfera intermediária de tação da “Díade” como “causa metafísica
entes matemáticos”, como os “Núme- do mal” (que “deve ser recusada”: 28;
ros ideais” – “causa” e “substância” das vide a referência a Aristóteles: 22) tanto
coisas” –, constituindo “a hierarquia das os diálogos dialéticos, quanto o ensina-
realidades suprassensíveis” (22). mento oral, devem ser entendidos como
É para este relato que Teofrasto e a tentativa platônica de “atenuação da
Aristoxeno remetem (o último na ci- transcendência das ideias” …, que as
tada reprodução da conferência Sobre torna “não mais acessíveis” [apenas] “à
o bem, sobre a qual outros autores intuição intelectual” (28). Rejeitando a
também escreveram: 22-23). Segundo interpretação aristotelizante de Platão
o A. é possível descortinar “três ramos como “um pré-socrático”, T. insiste na
independentes na tradição”, remontan- importância dos logoi como instrumen-
do ao próprio Aristóteles e à Academia tos da persuasão da necessidade de
Antiga, servindo de base ao texto de admitir uma “verdade transcendente”,
Sexto Empírico (24) reproduzido em … “refutável”, … se “expressa e orga-
Apêndice (261-266). nizável numa doutrina” (Platone 343;
O “contexto moderno da questão” 28-29), porque “a verdade não tem
(24-29) concentra-se sobre a persistên- lugar nos textos, ou nas doutrinas, mas
cia destas doutrinas na tradição e na na alma de quem está persuadido dela”
desvalorização de que são objeto a par- (Ibid. 344; 29).
tir da edição crítica dos diálogos por L. O estudo é rematado pela chamada
Schleiermacher, para quem “Platão teria de atenção para a importância da “crítica
querido tornar o ensinamento escrito das fontes” (29-32). O maior problema
maximamente semelhante ao ensino é o da relação das “declarações não
oral” (25). É a esta posição que a Escola literárias de Platão” … com “a obra
de Tübingen-Milão se opõe, reivindi- escrita” (30), dado que “nenhum dos
cando constituir um “novo paradigma testemunhos” … “pode ser atribuído
para os estudos platônicos” (25), me- literalmente a Platão” (31). Acima de
diante a superação os problemas pos- tudo, há que reconhecer que, “sem apli-
tos: 1. pela autenticidade e cronologia car uma receita única para a crítica das
dos diálogos; 2. pela contraposição da fontes” (32), “a distância” que separa o
autonomia dos diálogos à unidade do escrito do não-escrito “não é totalmente
pensamento de Platão; 3. pela absorção intransponível” (32).
da tradição indireta na senilidade de Pla- “A recepção da Escola de Tübingen-
tão. Contra Schleiermacher, a tradição -Milão no Brasil” (2011; 233-243) com-
indireta rejeita a autarquia dos diálogos, plementa esta introdução à questão
proposta do A. O seu objetivo é “al- Bem”, Platão “afirma que se pode dar
cançar a compreensão de todo Platão” uma definição discursiva do Bem”
(234, 243), recusando aos diálogos a (247). Das quatro teses que encontra
posição autárquica que lhe é habitu- no passo (247-248), a última defende
almente conferida (234). Um breve que “o agathon é o fim do percurso
resumo da história da tradição indireta discursivo que determina a sua essência
é esboçado, enumerando os Autores e e permite a sua captação inteligível”
obras mais relevantes para a definição (248). Para a definir, de acordo com
e estabelecimento do “paradigma”, e a tese expressa em 511b-c, “é preciso
fazendo menção daqueles que de algum separá-la de todas as outras ideias e …
modo o acolheram, exprimindo quer a coisas” (249), enquanto “princípio e
sua adesão, quer um recuo crítico em universal” e “elemento” (ibid.), como
relação a ele (235-243). No final, o A. Aristóteles defende (Met. 1084b18 ss.;
remata a sua exposição, desejando que 250). Concluindo, de acordo com G.
“o debate das ideias” “permita ampliar o Reale, a partir da República (534b-d), o
conhecimento de “todo Platão”” (243). A. sustenta que “só é dialético” quem
tem a capacidade de apresentar uma
Chegamos assim aos três estudos
definição “de cada coisa … e da Ideia
fulcrais da proposta da ETM. O estudo
de Bem” … “abstraindo-a de todas as
final, que serve de Conclusão à Obra, outras e chegando a conhecê-la, “como
intitulado “O dialético e a definição do Uno e medida perfeitíssima de todas as
bem em Platão” (2008; 245-253), denun- coisas” (252-253). Mas nota que o filó-
cia a insuficiência doutrinal da posição sofo nunca chega a definir “a essência
sobre o bem, assumida na República do Bem”, nem explica os motivos do
(531c-535a). Todo problema gira seu recuo.
em torno da interpretação do passo
Apontada a obscuridade do trecho
citado, em particular de 534b-d, em
citado da República, indícios que
relação ao qual o A. sustenta que:
permitirão o entendimento de como
“n[ess]a passagem da República Pla- esta metodologia procede podem ser
tão oferece elementos suficientes para colhidos do Filebo, como o A. mostra
que se possa pelo menos intuir como no estudo “O Filebo e as doutrinas não-
nas suas lições orais ele apresentava a -escritas” (2011; 155-171). Deixando de
ascensão dialética para a ideia do Bem, lado a apresentação do diálogo (155-
conjugando o método generalizante, 159), passo ao extenso sub-capítulo
de origem socrática, com o método em que o A. se concentra na relação
elementarizante, de origem pitagórica”, do Filebo com “os cânones da Escola
… e … “como a definição da ideia do de Tübingen-Milão” (159-169). Recor-
Bem se alcançava pela recondução de rendo à “observância do segredo” no
todas as coisas ao princípio de tudo”, Eutidemo, apoiado nos argumentos
… “identificado com o Uno, “medida contra a escritura no Fedro e na Carta
perfeitíssima de todos as coisas”” (Aris- VII, o A. ilustra o sentido das “passagens
tóteles Político frgm. 2 (Ross); 246). de retenção” na obra dialógica (160).
Resenha Crítica
confirmados em 532a-b, como exemplo Em último lugar, refiro o importante
de textos que “remetem do escrito ao estudo dedicado a H.-G. Gadamer, que
não-escrito” (161-2). É para ultrapassar leva como título: “Gadamer e a Escola
esta obscuridade que o Filebo (20d-21a, de Tübingen-Milão” (172-189). A posi-
22c-e, 60b-c, 65a) vai ser introduzi- ção de G. sobre a ETM é tão inequívoca
do como uma “estrutura de socorro” quanto nuançada. Embora para ele “a
(162-165). via régia para a compreensão de Platão
Uma vez reconhecidas as conse- seja a que passa pelos diálogos” (174),
quência resultantes da identificação do nem por isso deixa de sublinhar que: “o
bem com o prazer ou o pensamento problema geral da interpretação platóni-
(20d-21a), o problema seguinte é o da ca … funda-se sobre a obscura relação
determinação de que a “causa que torna existente entre a obra dialógica e a
boa a vida mista” (22c-e) só pode ser a doutrina de Platão, que só conhecemos
inteligência (163-164). Mas a explicação por meio da tradição indireta” (174).
de como essa causa pode ser atingida O princípio capital que norteia a
só pode ser colhida pela compreensão sua perspectiva sobre essa questão é
de que só o bem – como “beleza, pro- o de que “Platão não quis absoluta-
porção e verdade” –, pode “tornar boa mente que os seus resultados teóricos
a própria mistura” (65a; 165). fossem fixados de forma definitiva na
forma da escrita” (175). E exemplifica
É a partir da compreensão de que o
esta posição pela manifesta recusa do
princípio unificador da beleza, propor-
filósofo a definir a ideia de bem. São
ção e verdade é o Uno/Bem – atingida
considerações desta ordem que o levam
através da citação de dois trechos de
a não conferir aos diálogos um estatuto
H.-G. Gadamer e M. Migliori (165-166)
autárquico (176). E refere-se não apenas
– que a proposta interpretativa do A. à estrutura dramática de suas acções –
desemboca na “terminologia pitagórica ou seja, à composição dialógica –, como
usada por Platão”. Pode então passar à admissão das, já citadas, “passagens de
daí à contraposição do Uno e da Díade retenção de conhecimento”. Todavia, a
indefinida, avançada por Aristóteles na decisão mais grave é a de, tendo atribu-
Metafísica (987b18-33; 167). E apresenta ído ao dialético a função de condutor
como síntese deste movimento doutri- de um diálogo, o deixar dizer que sobre
nal dois trechos de G. Reale (169), o o assunto em debate tem “coisas mais
segundo dos quais conclui: “ o ser é valiosas”, que sempre se exime de trazer
produto de dois princípios originários à reflexão (176).
e, portanto, é uma síntese, um misto de Considerações desta ordem ilustram
unidade e multiplicidade, de determi- o modo como G. traça o seu caminho
nante e indeterminado, de limitante e entre as tentativas de obtenção da
ilimitado (Para uma nova interpretação unanimidade sobre a tradição indireta,
de Platão, 164-165). levadas a cabo por Schädewaldt, e a
Termina o estudo, remetendo, à rejeição do valor do testemunho aris-
guisa de apêndice, para Porfírio e Sim- totélico sobre Platão, veementemente
Resenha Crítica
não se reduz à matemática! Não creio de novo acrescentar ao já dito. Por essa
que alguém poderia resolver a ética razão, optando pela contenção, quero
somente com base na contraposição homenagear a Obra ora publicada com
entre o ilimitado e o limite. O “núme- uma pequena crítica. Creio que o que
ro” é alguma coisa, mas a nossa vida é divide os dois grupos de intérpretes do
mais!” (187). Penso que bastará o pe- Corpus é a diversidade de perspectivas
queno número de citações de Gadamer em que se colocam sobre o sentido
coligidas pelo A. para tornar supérflua de uma interpretação dogmática da
a pergunta com que encerra este seu filosofia de Platão. Do meu ponto de
admirável estudo. Mais do que aderir ou vista, esta prática – em larga medida,
não “ao novo paradigma hermenêutico” resultante da “escolarização” da filosofia
dos estudos platónicos, o filósofo dá aos platônica – perde todo sentido quando a
leitores motivos para se enriquecerem obra de Platão é encarada como objeto
com a interpretação de Platão que as de pesquisa, pois os pesquisadores só
suas palavras condensam. são capazes de estudar textos escritos.
A diferença não residirá, então, tan-
III – Se me é permitido terminar com to entre o “escrito” e o “não-escrito”,
uma apreciação pessoal, quero reforçar quanto entre os textos que se opta por
a ideia de que a Obra me parece me- estudar e a rede de relações que o co-
recedora de atenção e estudo. Entre as mentador tece entre eles, reconhecendo
suas qualidades menos evidentes avulta que o estudo de Platão continua “em
a unidade da perspectiva que a anima. aberto”. Ninguém poderá “seriamente”
Mesmo quando isso não é perceptível secundarizar o estudo dos diálogos. Mas
(por exemplo, nos sete estudos entre também ninguém “com senso” poderá
as pp. 33 e 171), a adesão à ETM ex- ignorar o manancial de informações
plica o interesse pela oralidade, pela inspiradas nos monumentos da crítica
“escrituralidade” retórica ou pela po- a “Platão” e aos “Platônicos”, que Aris-
lítica na cidade, entendendo-as como tóteles nos legou. A relacionação destes
prolegômenos à TI. A polêmica entre os textos com o que se acha registrado nos
defensores da ETM e seus precursores diálogos do Mestre da Academia cons-
(vide J. N. Findlay, Plato: the Written titui não apenas um “enigma”, mas um
and Unwritten Doctrines, Routlege, exercício filosófico fascinante, como o
London 1974: obra publicada tardia- A. prova no conjunto de estudos reu-
mente; C. J. de Vogel, Rethinking Plato nidos nesta Obra.
and Platonism, Brill, Leiden 1988) e o Atrevo-me, portanto, a sugerir que os
universo dos que seguem o “paradigma “Sete testemunhos da tradição indireta”
schleiermacheriano” (24-25) é iniciada sejam considerados genuínos textos fi-
nos anos 40 do século passado. Passou losóficos, mais do que documentos cujo
por momentos em que a veemência estudo visará a atestar a paternidade
com que foram assumidas as posições platônica da “doutrina de princípios”,
ombreou com a agressividade. Passados que o Estagirita, em veia polêmica, atri-
estes anos, parece-me inútil voltar a re- bui ao seu Mestre nos últimos capítulos