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Resenha Crítica

PERINE, Marcelo. Platão não estava doente, Loyola, S. Paulo 2014, 308 pp.

I – O título da Obra explora a justifi- pelos seguidores da Escola de Tübin-


cação dada por Platão (Fédon 59b) para gen-Milão (ETM: Fedro, Político, Filebo).
não se ter achado presente no grupo Do primeiro grupo, “Platão e a in-
dos amigos que visitaram Sócrates na venção da Filosofia” (33-56) pode ser
prisão, no último dia da vida do Mes- interpretado como o ensaio de uma
tre. Na opinião do Autor a observação abordagem “oralista” da Filosofia Gre-
“traduz uma estratégia de ocultamento” ga, que avalia a tradição pré-socrática
que anuncia a intenção do filósofo de e a dos logoi sokratikoi à luz da gra-
permanecer ausente da sua produção dual difusão da escrita por todos os
escrita (11-12). A Obra é constituída domínios da produção cultural grega.
por treze estudos, precedidos de uma A confrontação das duas tradições é a
Introdução (11-13), o último dos quais seguir rematada pela síntese que capta
é tratado como Conclusão (245-253). a “Invenção da Filosofia”, operada pela
Como complemento, a eles se seguem transformação da “dialética subjetiva
dois Apêndices (255-275), Bibliografia em dialética objetiva” (53): a primeira
atribuída a Sócrates e aos socráticos, a
(277-295) e dois índices: um remissivo
segunda a Platão.
de Autores antigos citados (297-304),
outro de Nomes e Autores (305-308). “Persuasão, violência e diálogo”
Dos treze estudos, quatro são inéditos, (57-73) delineia a traço forte a relação
de amor/ódio (grifo meu) entre a Filoso-
sendo os restantes nove constituídos
fia e a Retórica. Partindo da Apologia de
por textos publicados entre 2003 e 2011.
Sócrates, caracterizada como “o fracasso
Para atenuar a descontinuidade na lei-
da persuasão pela verdade” (59-63), o
tura, provocada pelas diferentes datas
A. passa à interpretação do Górgias, que
de composição dos estudos, o A. teve
entende como expressão da “guerra e
o cuidado de inserir em cada capítulo combate à Retórica” (63-70) movida pela
“transições” que conferem unidade à filosofia. Mas as mediações superiores
Obra.Inteiramente dominada pelas da sua visada são o Fedro e o Filebo. O
temáticas das chamadas “Doutrinas primeiro é considerado a superação e
não-escritas” e da “Tradição Indireta” de “tratamento adequado” (70) do conflito
Platão, às quais são dedicados quatro ambivalente que, no Górgias, opõe o
estudos, a Obra é, por assim dizer, pre- Amor ao Saber à “pseudo-tekhne” da
ludiada por três ensaios introdutórios à “rotina da bajulação”, consumada na
abordagem do pensamento de Platão. estratégia da persuasão de ignorantes
A eles se seguem mais seis, centrados por ignorantes (Górgias 454c-455a,
sobre um grupo de diálogos preferidos 465a; 69-70). O segundo apresenta já

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344 um novo Sócrates, “a máscara de Platão ção da antilógica e da dialógica pela
no momento de fazer um grande balan- dialética (210-211). O nó problemático
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ço da sua obra escrita e pronunciar a desta evolução encontra-se na com-


última palavra sobre a dialética” (72). preensão da centralidade e abrangência
De modo apropriado, a primeira me- da tese – “que o múltiplo seja um e o
diação manifesta-se imediatamente em um seja múltiplo” (Fil. 14e-15b-c) –, à
“O Fedro: um convite à vida filosófica” qual a concepção da dialética expressa
(2003; 75-95). Aproveitando as referên- (265-266) no Fedro não consegue fazer
cias de Aristóteles a Sócrates (Metafísica justiça.
I6, XIII4), o A. retoma sucintamente os A entrada no grupo de estudos de-
seus comentários anteriores à Apologia dicados ao Político é anunciada por “O
e ao Górgias (75-77), com vista à abor- filósofo, a política e a cidade segundo a
dagem do Fedro (77-95). Afirmadas a natureza” (2008; 133-154), que constitui
“unidade, tema e propósito” do diálogo o início da abordagem dos temas de
(77-81), a diversidade de tópicos que o
política presentes nos diálogos. Apro-
percorre – amor, alma, retórica, escri-
veitando as informações, alegadamente
ta – é assimilada pela abrangência da
autobiográficas, prestadas pela Carta
“vida filosófica” (81; 91-95). É aí que
VII (326a-b; 134), que testemunham
comparece a citação axial do diálogo: a
o severo juízo de Platão sobre o “mau
definição da Retórica como arte da “con-
governo” comum à generalidade das
dução das almas” (psykhagogia: 261a-b:
83-86). Dela derivam as três exigências cidades gregas, o A. concentra-se no
implícitas da crítica da dialética à Re- ensaio em que M. Dixsaut analisa a
tórica: “conhecer a verdade das coisas “política segundo a natureza” (135-142).
tratadas nos discursos” (269d-270d), Defendendo que a tese de Dixsaut é a
“conhecer as naturezas das almas dos de que a educação deve domesticar as
seus destinatários” (270d-271c), “adap- forças naturais que são as paixões para
tar os discursos aos diferentes tipos da “conduzir os homens da existência na-
almas” (271c-272b)” (84). tural à existência política” (136), reduz
a política segundo a natureza à natureza
Em estreita relação com este estudo,
um outro – “Fedro, Protarco e o filosofar do filósofo, porque este “age de acordo
dialético” (209-231) – aprofunda a feliz com o caráter inteligente e previdente
comparação entre o Fedro e o Filebo já da natureza” (138). Nesse sentido, a
ensaiada, explorando a intenção pro- função da cidade seria a de promover
tréptica comum a ambos os diálogos. a “ampliação da alma humana”(140),
Neles, a despeito de não se poder dizer libertando o cidadão do aprisionamento
que, como Fedro, Protarco se tenha na satisfação das necessidades, forçado
convertido à filosofia, aproveitando o pela existência na “cidade dos porcos”
contraponto com Lísias e Filebo, pode (Rep. 420a). Todavia, como os “princí-
se dizer que Sócrates encara os dois pios que governam as artes são os mes-
como “paradigmas dos que podiam mos que governam a natureza” (142),
ser conduzidos à verdade mediante o este programa ganha uma expressão
procedimento dialético” (231). Opor- ampla, que engloba a Antropologia na
tunamente, a análise registra a supera- Cosmologia (142-146).

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Passando de M. Dixsaut a K. Gaiser, dedicado o estudo seguinte: “Medida, 345
o A. submete as conclusões atingidas à paixões e dialética no Político” (2007;

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reflexão sobre a Metafísica da História 115-131). Focado na “psicologia das
(146-149). Equilibrando o crescimento paixões” (115-116), o estudo visa a
da corrupção com o conhecimento su- “mostrar que a tarefa do filósofo, no
perior, produtor da ordem, Platão visa Político, pressupõe a elaboração da
a contrariar a quantidade e intensidade República, integrando-a “na concepção
dos desejos, que estão na origem da da dialética cujo horizonte é a doutri-
desordem (148-149). A finalidade que na dos Princípios” (116). Superando a
o move é avançar no “caminho mais concepção do thymos/thymoeides, da
longo” para “o estudo mais importante República (117-118), o Político introduz
[que] é a ideia do bem” (Rep. 505a) … a contraposição da “energia” (andreia:
“pelo qual se chega ao princípio de 119) à “sobriedade” (sophrosyne: 119).
tudo, aquele que não admite hipóteses Para responder ao problema fundamen-
(Rep. 511b; 154). tal posto pelo antagonismo das virtudes
A esse projeto corresponde já o da coragem e da moderação, opostas
programa de preparação do advento nas duas partes alma, a ciência régia usa
dos “filósofos-reis” (Rep. 473d-e; 97-98), o conceito de metrion, entendido como
que inicia o estudo “Tempo e acção “proporção que harmoniza os contrários
no Político” (2006; 97-114). O carácter e realiza uma mistura bela, ordenada e
“inquietante” do diálogo (99-100) é boa” (120-121), que o A. vai submeter à
justificado pela presença do mito (268d- “teoria dos Princípios” (123-131).
-274e), para o qual o A. apresenta o Pode assim concluir que a ciência
problema posto pela diversidade de régia deve se servir das ciências mili-
leituras de que é objeto: entre as quais tar, jurídica e retórica (Pol. 303d-305e),
são seleccionadas as de L. Brisson, K. que toma como mediações da ciência
Gaiser e M. Migliori (103-105), confron- política, assegurando a manutenção da
tadas com a de G. C. Carone (105-108). ordem pela métrica “que conserva o
As diferenças que as opõem residem meio entre dois extremos” (Pol. 284e);
na contraposição da “leitura segundo estratégia “que ainda hoje deveria ser
três ciclos cósmicos” – era de Cronos, exigível de quem quiser se dedicar à
“mundo abandonado a si mesmo”, reino política e estiver disposto a misturar
de Zeus (103) –, à distinção em “cinco paixão e senso das proporções” (131).
ciclos” (106-107). É desta última que o Antes de entrar no núcleo dos seis
A. extrai “da autonomia do universo o estudos consagrados às “Doutrinas
sentido ético-político do mito” (109- não-escritas” e à ”Tradição indireta do
113), condensado na tese de que “o platonismo”, deve ainda ser considera-
universo é o que os homens e a polis do o instigante texto que se interroga
devem ser”, exibindo a diferença que sobre “Quem são os inimigos de File-
separa o nous divino da racionalidade bo” (2011; 191-208). Começando pela
humana”, a qual sempre “permanece introdução da figura de Demócrito,
com uma tarefa a ser realizada” (113). que Platão nunca menciona nos diálo-
É ao esclarecimento daquilo em gos (191-194; 197-201), depois de ter
que esta tarefa pode consistir que está abordado o tema do prazer, o A. entra

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346 nas “teses discutidas no Filebo” (194- problema funda-se na “relação existente
197). O problema é posto no diálogo entre a obra dialógica e a doutrina de
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no momento em que Sócrates se refere Platão que só conhecemos pela tradição


“àqueles que têm grande reputação de indireta” (17).
serem hábeis nas coisas da natureza Essa tradição, encontra-a o A. em
e que afirmam que os prazeres não Aristóteles e na sua Escola, mas também
existem em absoluto” (Fil. 44b). São na Antiga Academia, em Simplício e
então apontadas quatro possibilidades Sexto Empírico (18; além de nos passos
de resposta à pergunta. relevantes da Metafísica I6, 9, XIII, XIV,
A primeira, a de se tratar de Demó- alguns são resumidos noutros estudos
crito, não demora a ser rejeitada, pois, incluídos na Obra: vide os preciosos
apesar de alguns traços do ensinamento “Sete testemunhos da tradição indireta”,
moral do Atomista o aproximarem de recolhidos da colectânea de K. Gaiser,
Sócrates – o que se adequaria à posi- e traduzidos da edição de H.-J. Krämer,
ção que este assume no diálogo –, um Platone e i fondamenti della metafisica,
fragmento em que exprime a sua sim- 2001 (1982); 255-267).
patia pelo prazer (DK68B230) deixa-o Passando depois ao “contexto antigo
de fora do grupo dos anti-hedonistas da questão” (18-20) o A. debruça-se
(201). Uma segunda possibilidade – a sobre o Fedro e a Carta VII, recolhendo
de o visado ser Antístenes – deve ser do primeiro os argumentos platônicos
imediatamente excluída, pois, segundo contra a escritura, e, do excurso filosó-
E. Bignone, não é conhecido o interesse fico da segunda, o debate contra um
deste socrático por temas físicos (202). escrito pretensamente sobre a filosofia,
Excluído sumariamente Espeusipo (202- da autoria de Dionísio II. A partir de T.
3,n. 44), resta por fim a hipótese de se A. Szlezák, o A. introduz a noção de
tratar de Antifonte, à qual o A. adere. A “passagens de retenção”, “nas quais o
“hipótese, se non è vera, è ben trovata, condutor da discussão faz compreender
pois, a sua [de Antifonte] doutrina da sem equívoco possível que ele teria
tekhne alypias fazia dele um concor- mais coisas a dizer, e “coisas de maior
rente direto da estratégia de Sócrates no valor”, a respeito do que está sendo
tratamento das paixões” (208).
tratado, mas não o fará naquele lugar
e naquele momento”, remetendo “à
II – Em “A tradição platônica indi- filosofia oral de Platão” (20). Entre as
recta: fontes, problemas e perspectivas” “fontes antigas” desse ensino (20-23)
(2007, 15-32), o A. começa por definir são elencados importantes textos de
essa tradição como “o conjunto de tes- Aristóteles (Sobre a filosofia, Sobre as
temunhos que foram transmitidos sobre Ideias, Metafísica, além de frequentes
as exposições orais de Platão, na maio- referências na Física, Ética a Eudemo,
ria dos casos no interior da Academia, Ética a Nicómaco), sendo analisado o
mas também excepcionalmente, como passo da Metafísica I6. “Platão denomi-
parece ser o caso da famosa lição oral nou “ideias” as realidades” inteligíveis,
Sobre o bem” (16-17; Aristoxeno Elem. suporte da definição e do universal, nas
Harm. II, 30-31 (Meibom)). Segundo quais a pluralidade das coisas sensíveis
H.-G. Gadamer (Studi platonici 2, 90), o subsiste por “participação” (21). Mas há

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“elementos constitutivos das próprias reclamando-se da “unidade sistemática 347
Ideias”: os “Princípios supremos do Uno de toda a filosofia platónica” (26, 234).

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e da Díade ilimitada e indefinida de Sobre esta questão, o A. comenta
grande-e-pequeno”, que, para o Estagi- ainda a posição de F. Trabattoni (26-
rita correspondem, respectivamente, à 29). Para este A., a tradição indireta
“forma” e à “matéria”, como causas das não pode ser encarada como “uma
Ideias, com valor ontológico e axioló- incompreensível e repentina mudança
gico (22). Além destes, Platão admitia teorética” (27). Exceptuando a interpre-
ainda “uma esfera intermediária de tação da “Díade” como “causa metafísica
entes matemáticos”, como os “Núme- do mal” (que “deve ser recusada”: 28;
ros ideais” – “causa” e “substância” das vide a referência a Aristóteles: 22) tanto
coisas” –, constituindo “a hierarquia das os diálogos dialéticos, quanto o ensina-
realidades suprassensíveis” (22). mento oral, devem ser entendidos como
É para este relato que Teofrasto e a tentativa platônica de “atenuação da
Aristoxeno remetem (o último na ci- transcendência das ideias” …, que as
tada reprodução da conferência Sobre torna “não mais acessíveis” [apenas] “à
o bem, sobre a qual outros autores intuição intelectual” (28). Rejeitando a
também escreveram: 22-23). Segundo interpretação aristotelizante de Platão
o A. é possível descortinar “três ramos como “um pré-socrático”, T. insiste na
independentes na tradição”, remontan- importância dos logoi como instrumen-
do ao próprio Aristóteles e à Academia tos da persuasão da necessidade de
Antiga, servindo de base ao texto de admitir uma “verdade transcendente”,
Sexto Empírico (24) reproduzido em … “refutável”, … se “expressa e orga-
Apêndice (261-266). nizável numa doutrina” (Platone 343;
O “contexto moderno da questão” 28-29), porque “a verdade não tem
(24-29) concentra-se sobre a persistên- lugar nos textos, ou nas doutrinas, mas
cia destas doutrinas na tradição e na na alma de quem está persuadido dela”
desvalorização de que são objeto a par- (Ibid. 344; 29).
tir da edição crítica dos diálogos por L. O estudo é rematado pela chamada
Schleiermacher, para quem “Platão teria de atenção para a importância da “crítica
querido tornar o ensinamento escrito das fontes” (29-32). O maior problema
maximamente semelhante ao ensino é o da relação das “declarações não
oral” (25). É a esta posição que a Escola literárias de Platão” … com “a obra
de Tübingen-Milão se opõe, reivindi- escrita” (30), dado que “nenhum dos
cando constituir um “novo paradigma testemunhos” … “pode ser atribuído
para os estudos platônicos” (25), me- literalmente a Platão” (31). Acima de
diante a superação os problemas pos- tudo, há que reconhecer que, “sem apli-
tos: 1. pela autenticidade e cronologia car uma receita única para a crítica das
dos diálogos; 2. pela contraposição da fontes” (32), “a distância” que separa o
autonomia dos diálogos à unidade do escrito do não-escrito “não é totalmente
pensamento de Platão; 3. pela absorção intransponível” (32).
da tradição indireta na senilidade de Pla- “A recepção da Escola de Tübingen-
tão. Contra Schleiermacher, a tradição -Milão no Brasil” (2011; 233-243) com-
indireta rejeita a autarquia dos diálogos, plementa esta introdução à questão

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348 da “tradição indireta” sublinhando as E acrescenta que também aí, ao
principais teses que fundamentam a se referir à “relação dialética com o
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proposta do A. O seu objetivo é “al- Bem”, Platão “afirma que se pode dar
cançar a compreensão de todo Platão” uma definição discursiva do Bem”
(234, 243), recusando aos diálogos a (247). Das quatro teses que encontra
posição autárquica que lhe é habitu- no passo (247-248), a última defende
almente conferida (234). Um breve que “o agathon é o fim do percurso
resumo da história da tradição indireta discursivo que determina a sua essência
é esboçado, enumerando os Autores e e permite a sua captação inteligível”
obras mais relevantes para a definição (248). Para a definir, de acordo com
e estabelecimento do “paradigma”, e a tese expressa em 511b-c, “é preciso
fazendo menção daqueles que de algum separá-la de todas as outras ideias e …
modo o acolheram, exprimindo quer a coisas” (249), enquanto “princípio e
sua adesão, quer um recuo crítico em universal” e “elemento” (ibid.), como
relação a ele (235-243). No final, o A. Aristóteles defende (Met. 1084b18 ss.;
remata a sua exposição, desejando que 250). Concluindo, de acordo com G.
“o debate das ideias” “permita ampliar o Reale, a partir da República (534b-d), o
conhecimento de “todo Platão”” (243). A. sustenta que “só é dialético” quem
tem a capacidade de apresentar uma
Chegamos assim aos três estudos
definição “de cada coisa … e da Ideia
fulcrais da proposta da ETM. O estudo
de Bem” … “abstraindo-a de todas as
final, que serve de Conclusão à Obra, outras e chegando a conhecê-la, “como
intitulado “O dialético e a definição do Uno e medida perfeitíssima de todas as
bem em Platão” (2008; 245-253), denun- coisas” (252-253). Mas nota que o filó-
cia a insuficiência doutrinal da posição sofo nunca chega a definir “a essência
sobre o bem, assumida na República do Bem”, nem explica os motivos do
(531c-535a). Todo problema gira seu recuo.
em torno da interpretação do passo
Apontada a obscuridade do trecho
citado, em particular de 534b-d, em
citado da República, indícios que
relação ao qual o A. sustenta que:
permitirão o entendimento de como
“n[ess]a passagem da República Pla- esta metodologia procede podem ser
tão oferece elementos suficientes para colhidos do Filebo, como o A. mostra
que se possa pelo menos intuir como no estudo “O Filebo e as doutrinas não-
nas suas lições orais ele apresentava a -escritas” (2011; 155-171). Deixando de
ascensão dialética para a ideia do Bem, lado a apresentação do diálogo (155-
conjugando o método generalizante, 159), passo ao extenso sub-capítulo
de origem socrática, com o método em que o A. se concentra na relação
elementarizante, de origem pitagórica”, do Filebo com “os cânones da Escola
… e … “como a definição da ideia do de Tübingen-Milão” (159-169). Recor-
Bem se alcançava pela recondução de rendo à “observância do segredo” no
todas as coisas ao princípio de tudo”, Eutidemo, apoiado nos argumentos
… “identificado com o Uno, “medida contra a escritura no Fedro e na Carta
perfeitíssima de todos as coisas”” (Aris- VII, o A. ilustra o sentido das “passagens
tóteles Político frgm. 2 (Ross); 246). de retenção” na obra dialógica (160).

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Apresenta então os famosos passos so- plício (170; cujo texto é reproduzido no 349
bre o bem, na República 508e, 508b-c, Apêndice I da Obra, 257-258).

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confirmados em 532a-b, como exemplo Em último lugar, refiro o importante
de textos que “remetem do escrito ao estudo dedicado a H.-G. Gadamer, que
não-escrito” (161-2). É para ultrapassar leva como título: “Gadamer e a Escola
esta obscuridade que o Filebo (20d-21a, de Tübingen-Milão” (172-189). A posi-
22c-e, 60b-c, 65a) vai ser introduzi- ção de G. sobre a ETM é tão inequívoca
do como uma “estrutura de socorro” quanto nuançada. Embora para ele “a
(162-165). via régia para a compreensão de Platão
Uma vez reconhecidas as conse- seja a que passa pelos diálogos” (174),
quência resultantes da identificação do nem por isso deixa de sublinhar que: “o
bem com o prazer ou o pensamento problema geral da interpretação platóni-
(20d-21a), o problema seguinte é o da ca … funda-se sobre a obscura relação
determinação de que a “causa que torna existente entre a obra dialógica e a
boa a vida mista” (22c-e) só pode ser a doutrina de Platão, que só conhecemos
inteligência (163-164). Mas a explicação por meio da tradição indireta” (174).
de como essa causa pode ser atingida O princípio capital que norteia a
só pode ser colhida pela compreensão sua perspectiva sobre essa questão é
de que só o bem – como “beleza, pro- o de que “Platão não quis absoluta-
porção e verdade” –, pode “tornar boa mente que os seus resultados teóricos
a própria mistura” (65a; 165). fossem fixados de forma definitiva na
forma da escrita” (175). E exemplifica
É a partir da compreensão de que o
esta posição pela manifesta recusa do
princípio unificador da beleza, propor-
filósofo a definir a ideia de bem. São
ção e verdade é o Uno/Bem – atingida
considerações desta ordem que o levam
através da citação de dois trechos de
a não conferir aos diálogos um estatuto
H.-G. Gadamer e M. Migliori (165-166)
autárquico (176). E refere-se não apenas
– que a proposta interpretativa do A. à estrutura dramática de suas acções –
desemboca na “terminologia pitagórica ou seja, à composição dialógica –, como
usada por Platão”. Pode então passar à admissão das, já citadas, “passagens de
daí à contraposição do Uno e da Díade retenção de conhecimento”. Todavia, a
indefinida, avançada por Aristóteles na decisão mais grave é a de, tendo atribu-
Metafísica (987b18-33; 167). E apresenta ído ao dialético a função de condutor
como síntese deste movimento doutri- de um diálogo, o deixar dizer que sobre
nal dois trechos de G. Reale (169), o o assunto em debate tem “coisas mais
segundo dos quais conclui: “ o ser é valiosas”, que sempre se exime de trazer
produto de dois princípios originários à reflexão (176).
e, portanto, é uma síntese, um misto de Considerações desta ordem ilustram
unidade e multiplicidade, de determi- o modo como G. traça o seu caminho
nante e indeterminado, de limitante e entre as tentativas de obtenção da
ilimitado (Para uma nova interpretação unanimidade sobre a tradição indireta,
de Platão, 164-165). levadas a cabo por Schädewaldt, e a
Termina o estudo, remetendo, à rejeição do valor do testemunho aris-
guisa de apêndice, para Porfírio e Sim- totélico sobre Platão, veementemente

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350 expressa por H. Cherniss. A sua posição hiato insuperável” (DNS 133-134; 180).
sobre este confronto fica registrada Em síntese:
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pelo reconhecimento de que o que se “O que é dito de uma coisa deve


pode extrair dessa tentativa de recons- ser diferente desta última, à qual deve
trução “é de uma magreza esquelética” entretanto competir. Aquilo que se
(177). Não negando que aos diálogos supõe que uma coisa é deve, na reali-
se atribua um valor protréptico, a sua dade, competir a cada uma de suas
abordagem da questão revela grande manifestações, as quais, contudo, no
originalidade, patente na proposta de seu conjunto, devem ser diferentes dela”
exploração da “estrutura arithmos do (DNS 140; 181).
logos”. Segundo ele, é esta estratégia É esse exemplo que o número
explicativa que permite partir da “rela- proporciona pelo fato de “constar de
tividade das percepções sensíveis” para unidade, cada uma das quais é por si
“discriminar os diferentes aspectos da uma”, sendo o número uma unidade
unidade que se pode distinguir no um”, de unidades nele compreendidas; não
implicando que “o múltiplo é uma mul- um múltiplo, mas “a unidade de uma
tiplicidade de ideias (179; grifo meu). É multiplicidade reunida”, tal como o lo-
essa solução que: “implica a estrutura gos (DNS 140 s.; 181). É essa natureza
do arithmos”, na qual “os momentos que o procedimento da diairesis ilustra,
estruturais não aparecem apenas no pois, “porque” [é] “produzida pelo pro-
relato de Aristóteles sob a veste dos cedimento da divisão, a definição põe
dois princípios, mas encontra-se tam- em luz o papel do número” (DNS 142;
bém sob os quatro géneros do Filebo”1 181-182). A díade conjuga o mundo
(DNS 133; 180). inteligível das ideias e números e o dos
O que é novo aqui é o estabeleci- fenômenos sensíveis com a estrutura
mento da diferenciação entre o limite do conhecimento humano, no qual
e o limitado que nele se encontra, ela é “princípio de toda distinção e de
mostrando que “esta ideia só pode ser diferença”. Por isso a tradição indirecta:
conquistada depois de se ter entrevisto “não é o testemunho de uma dog-
que formas como o número e a me- mática, que estaria por detrás da obra
dida” são de modo diferente daquilo literária de Platão e seria capaz de sub-
que determinam; revelando como “só verter nossa representações da dialética
um misto de limite e ilimitado pode platônica”, mas “exprime e confirma o
representar um modo próprio de ser carácter condicionado de todo conhe-
ao lado do mundo ideal do limitável” cimento humano”, … que “permanece
… … “dissipando a falsa impressão de filosofia e nunca pode ser chamado de
que entre ideal e sensível exista um sophia (DNS 147; 182).
Em suma, em debate com H.-J. Krä-
1 Esta e a série de citações a seguir reprodu- mer, que defende a tradição indireta
zem os escritos de Gadamer citados pelo A. na argumentando o infinitismo do mundo
construção do seu estudo crítico, referindo a ideal de Platão (186), e o condensa na
sigla DNS as páginas do estudo “Dialettica non coincidência do Bem com o Um, apon-
scritta di Platone”, in Studi Platonici II, Genova tando à “correta interpretação de Platão”
1984. (186), responde Gadamer:

HYPNOS, São Paulo, v. 33, 2º sem., 2014, p. 343-352

Hypnos33.indb 350 30/09/2014 19:17:56


A contraposição entre o um e o infi- correr aos velhos argumentos, sobretu- 351
nito existe, mas não são tudo. O mundo do os históricos e filológicos, para nada

Resenha Crítica
não se reduz à matemática! Não creio de novo acrescentar ao já dito. Por essa
que alguém poderia resolver a ética razão, optando pela contenção, quero
somente com base na contraposição homenagear a Obra ora publicada com
entre o ilimitado e o limite. O “núme- uma pequena crítica. Creio que o que
ro” é alguma coisa, mas a nossa vida é divide os dois grupos de intérpretes do
mais!” (187). Penso que bastará o pe- Corpus é a diversidade de perspectivas
queno número de citações de Gadamer em que se colocam sobre o sentido
coligidas pelo A. para tornar supérflua de uma interpretação dogmática da
a pergunta com que encerra este seu filosofia de Platão. Do meu ponto de
admirável estudo. Mais do que aderir ou vista, esta prática – em larga medida,
não “ao novo paradigma hermenêutico” resultante da “escolarização” da filosofia
dos estudos platónicos, o filósofo dá aos platônica – perde todo sentido quando a
leitores motivos para se enriquecerem obra de Platão é encarada como objeto
com a interpretação de Platão que as de pesquisa, pois os pesquisadores só
suas palavras condensam. são capazes de estudar textos escritos.
A diferença não residirá, então, tan-
III – Se me é permitido terminar com to entre o “escrito” e o “não-escrito”,
uma apreciação pessoal, quero reforçar quanto entre os textos que se opta por
a ideia de que a Obra me parece me- estudar e a rede de relações que o co-
recedora de atenção e estudo. Entre as mentador tece entre eles, reconhecendo
suas qualidades menos evidentes avulta que o estudo de Platão continua “em
a unidade da perspectiva que a anima. aberto”. Ninguém poderá “seriamente”
Mesmo quando isso não é perceptível secundarizar o estudo dos diálogos. Mas
(por exemplo, nos sete estudos entre também ninguém “com senso” poderá
as pp. 33 e 171), a adesão à ETM ex- ignorar o manancial de informações
plica o interesse pela oralidade, pela inspiradas nos monumentos da crítica
“escrituralidade” retórica ou pela po- a “Platão” e aos “Platônicos”, que Aris-
lítica na cidade, entendendo-as como tóteles nos legou. A relacionação destes
prolegômenos à TI. A polêmica entre os textos com o que se acha registrado nos
defensores da ETM e seus precursores diálogos do Mestre da Academia cons-
(vide J. N. Findlay, Plato: the Written titui não apenas um “enigma”, mas um
and Unwritten Doctrines, Routlege, exercício filosófico fascinante, como o
London 1974: obra publicada tardia- A. prova no conjunto de estudos reu-
mente; C. J. de Vogel, Rethinking Plato nidos nesta Obra.
and Platonism, Brill, Leiden 1988) e o Atrevo-me, portanto, a sugerir que os
universo dos que seguem o “paradigma “Sete testemunhos da tradição indireta”
schleiermacheriano” (24-25) é iniciada sejam considerados genuínos textos fi-
nos anos 40 do século passado. Passou losóficos, mais do que documentos cujo
por momentos em que a veemência estudo visará a atestar a paternidade
com que foram assumidas as posições platônica da “doutrina de princípios”,
ombreou com a agressividade. Passados que o Estagirita, em veia polêmica, atri-
estes anos, parece-me inútil voltar a re- bui ao seu Mestre nos últimos capítulos

HYPNOS, São Paulo, v. 33, 2º sem., 2014, p. 343-352

Hypnos33.indb 351 30/09/2014 19:17:56


352 da Metafísica I, bem como nos Livros e causa da Mistura”, no Filebo. Há de
XIII e XIV. me faltar, portanto, a compreensão do
Resenha Crítica

Excelente exemplo de como essa sentido da abordagem aritmológica da


tarefa pode liberar a mente do filósofo Ontologia. Mas não posso esquecer que
e do estudioso de filosofia é propor- a TI de Platão está aí para a apontar,
cionado pela leitura das obras de H.- talvez não como a verdade definitiva de
G. Gadamer, elencadas e brevemente Platão (mesmo que seja “a última”), mas
analisadas pelo A. (173-189). Não tenho como um nexo possível entre os dois
esperança de alguma vez ver satisfato- derradeiros grandes diálogos do Mestre.
riamente definida a relação, se a há,
entre a abordagem eleática do “Ser e Prof. dr. José Trindade Santos
Não-Ser”, no Sofista, e o seu paralelo (trin@gmail.com)
pitagórico no “Limite, Ilimitado, Mistura Universidade Federal do Ceará, Brasil

HYPNOS, São Paulo, v. 33, 2º sem., 2014, p. 343-352

Hypnos33.indb 352 30/09/2014 19:17:56

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