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MEDIAÇÃO DE CONFLITOS

E SEUS CONTEXTOS DE
APLICAÇÃO
Eliana Freire do Nascimento
Chrystianne Moura Santos Fonsêca
Renato Souza do Nascimento
Organização

MEDIAÇÃO DE CONFLITOS
E SEUS CONTEXTOS DE
APLICAÇÃO

2018
Comitê Científico:
Prof. Me. Alessander Mendes do Nascimento
Profa. Me. Chrystianne Moura Santos Fonsêca
Profa. Dra. Eliana Freire do Nascimento
Prof. Me. Francisco Robert Bandeira Gomes da Silva
Profa. Ma. Danyelle Bandeira de Melo
Profa Dra. Maria Gessi-Leila Medeiros
Prof. Me. Renato Souza do Nascimento

MEDIAÇÃO DE CONFLITOS E SEUS CONTEXTOS DE APLICAÇÃO

© Eliana Freire do Nascimento • Chrystianne Moura Santos Fonsêca


Renato Souza do Nascimento

1ª edição: 2018

Revisão
Francisco Antonio Machado Araujo

Editoração
Francisco Antonio Machado Araujo

Diagramação
Editora Silva

Capa
Mediação Acadêmica

Reprodução e Distribuição
Editora Garcia

Ficha Catalográfica elaborada de acordo com os padrões estabelecidos no


Código de Catalogação Anglo-Americano (AACR2)

M489 Mediação de conflitos e seus contextos de aplicação / Eliana Freire do


Nascimento, Chrystianne Moura Santos Fonsêca, Renato Souza do
Nascimento, organizadores – São Paulo: Garcia Edizioni, 2018.

E-Book.

ISBN: 978-85-5512-447-1

1. Mediação.  2. Resolução de Conflitos.  3. Gestão de Conflitos.


I. Nascimento, Eliana Freire.  II. Fonsêca, Chrystianna Moura Santos.
III. Nascimento, Renato Souza do.  IV. Título.

CDD: 303.69

Bibliotecária Responsável:
Nayla Kedma de Carvalho Santos CRB 3ª Região/1188
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO 7
A MEDIAÇÃO INTERDISCIPLINAR:
desafios e possibilidades 9
Eliana Freire do Nascimento

O PENSAMENTO FILOSÓFICO ASSOCIADO A


DIMENSÃO SOCIOLÓGICA COMO FUNDAMENTO 21
DAS RELAÇÕES NA MEDIAÇÃO DE CONFLITOS
Patrícia Rodrigues Tomaz
Eliana Freire do Nascimento

A ANTROPOLOGIA DAS EMOÇÕES APLICADA À


MEDIAÇÃO DE CONFLITOS 39
Patrícia Rodrigues Tomaz
Alessander Mendes do Nascimento

TÉCNICAS PARA A SOLUÇÃO DE


CONFLITOS EMOCIONAIS 51
Danyelle Bandeira de Melo

A TRANSFORMAÇÃO DE CONFLITOS NO
AMBIENTE HOSPITALAR POR MEIO DA MEDIAÇÃO 63
Danilo Fiuza Lima Verde Santos

DAS SESSÕES DE MEDIAÇÃO E A SEMANA


NACIONAL DE CONCILIAÇÃO: UM ESTUDO SOBRE 77
O TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO PIAUÍ
Indiara Soares Batista
Suéllen Pinheiro Moura
O ENFOQUE TRANSDISCIPLINAR DA MEDIAÇÃO NA
RESOLUÇÃO DE CONFLITOS FAMILIARES 97
Patrícia Rodrigues Tomaz
Dayse Cristina Soares Feitosa Rodrigues
Juliana Sales e Mendes

A MEDIAÇÃO RESTAURATIVA COMO INSTRUMENTO


EFICAZ DE PACIFICAÇÃO SOCIAL 113
Jean Carlos de Brito
Rosangela Ribeiro de Alexandrino
Maria do Rosário Silva Viveiros Ramos

MEDIAÇÃO SOCIOAMBIENTAL: MÉTODO


APLICADO NAS RESOLUÇÕES DE CONFLITOS
DOS DIREITOS COLETIVOS
131
Eloiza Gomes Bandeira

A MEDIAÇÃO COMO FORMA DE SOLUÇÃO NOS


CONFLITOS EMPRESARIAIS
Patricia Moura Pereira Lopes
145
Rita de Cássia Moura Pereira Lopes
Wilmar de Paiva Vasconcelos Júnior

A MEDIAÇÃO DE CONFLITOS COMO ALTERNATIVA


DE TRANSFORMAÇÃO PELA PAZ NO CONTEXTO DA
VIOLÊNCIA ESCOLAR
157
Eliszangela Santos de Oliveira
Juliana Sales e Mendes
Neilan Ângela Celestino Argento

A CONSTELAÇÃO SISTÊMICA COMO


ABORDAGEM PRELIMINAR À MEDIAÇÃO 169
FAMILIAR NO ÂMBITO JUDICIAL
Deusa Cristina Miranda Ferreira
Luanna Cecília Costa Sousa

A FORMAÇÃO DO BACHAREL EM DIREITO PARA A


GESTÃO DE CONFLITOS 183
Chrystianne Moura Santos Fonsêca
Eliana Freire do Nascimento

SOBRE OS AUTORES 197


ALMEIDA, Tania. Caixa de Ferramentas em Mediação: aportes
práticos e teóricos. São Paulo: Dash, 2014.

BARBOSA, Aguida Arruda. Formação do mediador familiar


interdisciplinar. VIII Congresso do Instituto Brasileiro de Direito de
Familia. 2012. Disponível em: http://www.revistas.unifacs.br/index.
php/redu/article/viewFile/2308/1691. Acesso em 20 de novembro
de 2017.

GROENINGA. Giselle Câmara. Mediação Interdisciplinar - Um novo


Paradigma. Revista Brasileira de Direito de Família (Sintese), v.8, n
152-170, fev/mar 2007.

HABERMAS, Jurgen. Teoria da Ação Comunicativa I – Racionalidade


da ação e racionalização. Madrid: Taurus, 1987

JUPIASSU. Hilton. Interdisciplinaridade e a Patologia do saber. Rio


de Janeiro. Imago Editora, 1976.

MORIN, Edgar. O paradigma perdido: a natureza humana. Lisboa:


Europa-América, 1973.

ROCHA, Leonel Sevelam, SCHWARTZ Germano, CHAM, Jean.


Introdução à teoria do sistema autopoiético do Direito. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2005

TRINDADE, André. Para entender Luhmann e o Direito como


sistema autopoiético. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.

VASCONCELOS, Carlos Eduardo de. Mediação de conflitos e


práticas restaurativas. São Paulo:Método, 2008.

WARAT, Luis Alberto. Em nome do acordo. A mediação no Direito.


Buenos Aires: Angra Impresiones, 1998.

20  Eliana Freire do Nascimento


O PENSAMENTO FILOSÓFICO
ASSOCIADO A DIMENSÃO SOCIOLÓGICA
COMO FUNDAMENTO DAS RELAÇÕES NA
MEDIAÇÃO DE CONFLITOS

Patrícia Rodrigues Tomaz


Eliana Freire do Nascimento

INTRODUÇÃO

A
s sessões de mediação de conflitos constituem-se
práxis jurídicas cujos modelos de execução têm sido
revistos pelo Poder Judiciário. Diante da necessidade
em construir um discurso jurídico mediador que fortaleça as
relações para o êxito da mediação, constitui-se necessidade social
a incorporação de fundamentos éticos pautados em conceitos da
filosofia ocidental, catalizador de subjetividades que se manifestam
nas sessões de mediação de conflitos em contraposição ao espírito
competitivo presente nas lides.
As inquietações diante desse paradoxo competitivo e
compositivo para resolução dos problemas é estabelecemos como
questão norteadora deste estudo saber de que modo a dimensão
sociológica funde-se ao pensamento filosófico no discurso das partes
em conflito e do próprio mediador?

O PENSAMENTO FILOSÓFICO ASSOCIADO A DIMENSÃO SOCIOLÓGICA COMO 21


FUNDAMENTO DAS RELAÇÕES NA MEDIAÇÃO DE CONFLITOS
A presente proposta tem como objetivo trazer para o campo
jurídico experimentações discursivas que possam conter, em sua
essência, elementos da cultura filosófica ocidental no que se refere a
compreensão da realidade, a autorreflexão das lides e na resolução de
contendas. Verificar de que modo o discurso filosófico ocidental pode
penetrar no discurso jurídico, incorporando conceitos sociológicos
em sua análise. Identificar representações dos signos em categorias
sociais, através de elementos simbólicos e materiais que se ajustam a
noção de sacralidade e ludicidade na resolução de contendas.
No tocante aos aspectos metodológicos, desenvolveu-
se a pesquisa bibliográfica em fontes impressas, documentais,
iconográficas e audiovisuais. Muitas produções e reproduções, sejam
iconográficas ou audiovisuais, detém elementos figurativos que
possibilitam a inserção de analogias necessárias para a compreensão
do simbolismo ritual em torno das noções de sacralidade e ludicidade
no tratamento de questões e contendas, tendo como representação,
comportamentos e signos que evocam o status dos indivíduos.
A pesquisa em materiais audiovisuais visa compreender o
comportamento de grupos humanos que através de sua cultura
material e imaterial manifestam seus mecanismos sociais e jurídicos.
Um exemplo disso são os filmes de temática medieval e ficção, os
documentários sobre povos e comunidades tradicionais1 que revelam
rituais e formas de resolução de conflitos, assim como ritos de
passagem que evidenciam a presença dos fatos sociais.
As imagens na forma de telas e representações iconográficas
antigas, possibilita o entendimento sobre a representação de
categorias sociais através de objetos e paramentos que indicam a
posição dos indivíduos nos estratos sociais.


1
O uso do termo comunidades tradicionais refere-se a grupos culturalmente
diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias
de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais
como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral
e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e
transmitidos pela tradição. No Brasil diz respeito ao Decreto Presidencial nº
6.040/2007 que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável
dos Povos e Comunidades Tradicionais, em favor da autonomia dessas
comunidades. Abrange grupos humanos com essas características em
diferentes partes do mundo. Fonte: http://selecionandodireito.blogspot.com.
br/2012/06/o-conceito-de-comunidades-tradicionais.html

22  Patrícia Rodrigues Tomaz • Eliana Freire do Nascimento


Aspectos fundamentais na origem e evolução do direito

Quando ocorre um conflito entre duas ou mais pessoas a


mediação é mecanismo de uso fundamental na resolução da questão.
Muitas vezes as partes não percebem, mas são elas que resolvem a
situação conflituosa, cabendo ao mediador exercer a essência de sua
função que é mediar o conflito. Partindo desse ponto de vista, o que
impera na resolução da controvérsia é o espirito coletivo associado
as subjetividades e não à resistência entre ambos.
No aspecto filosófico, a emersão da moral como elemento
de representatividade na conduta de um grupo social, pauta-se
em elementos que julgam a natureza humana e suas imperfeições,
bem como suas aspirações. A gênese da filosofia somente foi
possível através do rompimento dos filósofos pré-socráticos com
o pensamento mitológico vigente na Grécia Antiga. Por um longo
tempo, houve a crença de que elementos não pertencentes ao mundo
material, pudessem intervir em uma contenda, sendo que essas
intervenções poderiam ter uma origem divina ou terrena2.
Sobre o argumento de uma intervenção sobrenatural em
assuntos humanos, cabe uma analogia do pensamento mítico
e religioso do mundo antigo com a concepção sobre incidentes
inusitados entre os Azande3. Esse povo da África Central, elaborou um
mecanismo de adivinhação utilizado como um curioso expediente na
resolução de contendas, denominado benge, o qual é assim descrito:

A consulta ao benge ocorria fora do tribunal [...] um servidor


segurava um filhote de galinha e o forçava a engolir uma
pequena quantidade de um fluido contendo o místico benge, uma
substancia tóxica ritualmente preparada. Um interrogador então


2
Essa realidade, pelo menos no que toca a Grécia Antiga, era fruto da
mentalidade baseada na mitologia, na qual os mitos cosmogônicos regiam
o sistema de crenças. Em oposição a essa mentalidade, surge na Grécia do
século VI a.C., uma inusitada tentativa de explicar o universo quanto a suas
origens, baseada tão-somente na observação e no uso metódico da razão – a
saber, a Filosofia. (GILES, 1995, p.10).

3
O prefixo /a-/ indica plural na língua zande, [...] a palavra “zande” com inicial
maiúscula (e no plural vernacular) quando ela se refere a este povo como
coletividade étnica e cultural: “os Azande”. (PRITCHARD, 1937/2005, p. 9).

O PENSAMENTO FILOSÓFICO ASSOCIADO A DIMENSÃO SOCIOLÓGICA COMO 23


FUNDAMENTO DAS RELAÇÕES NA MEDIAÇÃO DE CONFLITOS
se dirigia ao oráculo, de maneira simples: “Oráculo, se (tal e tal)
dormiu com (tal e tal), e se ele a conheceu como homem (etc.)
que o pintinho morra”. A questão era repetida várias vezes em
uma forma ritualística de discurso. O pintinho morreu provando
então para satisfação do interrogador a ocorrência do adultério.
O oráculo foi novamente consultado, dessa vez sobre a conduta
da ré, com o mesmo resultado. (CHASE, 2014, p. 38).

Diante dessas práticas, seria natural um potencial observador


estabelecer um julgamento da situação, definindo-a como uma
pratica obscurantista, por exemplo. Segundo o antropólogo inglês
Evans-Pritchard (2005, p. 77), “embora não seja por si só bruxaria, é
o impulso que está por trás dela, e as pessoas que infringem as regras
de conduta são as mais frequentemente acusadas”. Nesse sentido, o
trabalho de Chase (2014) é justamente reconhecer diferentes formas
de culturas e de pensamento que se estabelecem na organização de
mecanismos jurídicos em sociedades tradicionais.
A origem divina de uma intervenção estava pautada na crença
de que elementos transcendentes poderiam interceder pelos homens
na resolução dos seus conflitos. “Quando se consultam os oráculos,
não se deixa ninguém de fora”, ou seja, pergunta-se sobre todos.
(Evans-Pritchard, 2005, p. 77). Vale mencionar a conhecida cena do
filme 300 de Esparta4, na qual o oráculo representado por uma pitonisa5
e o quarteto de Éforos6, informa ao rei Leônidas o direcionamento da
luta contra os persas.
A origem terrena consolidou-se como as bases do que se
conhece como o direito e legislação propriamente ditos, em que


4
Filme épico, dirigido por Zack Snyder (EUA, 2007). Grécia, 480 a. C. Na
Batalha de Termópilas, o rei Leônidas (Gerard Butler) e seus 300 guerreiros de
Esparta lutam bravamente contra o numeroso exército do rei Xerxes (Rodrigo
Santoro). Após três dias de muita luta, todos os espartanos são mortos.
O sacrifício e a dedicação destes homens uniu a Grécia no combate contra
o inimigo persa. Disponível em < http://www.adorocinema.com/filmes/
filme-57529/>. Acesso em 01 nov 2017.

5
Pitisas ou pitonisas, eram sacerdotisas dos oráculos gregos que traduziam
as mensagens dos deuses aos homens através de um transe induzido. Suas
mensagens tinham caráter profético.

6
Os Éforos era uma um conselho formado por anciãos eleitos que decidiam as
questões políticas, administrativas e religiosas na sociedade espartana.

24  Patrícia Rodrigues Tomaz • Eliana Freire do Nascimento


a resolução de uma controvérsia poderia estabelecer-se através
de um líder ou monarca que levaria a solução para um embate ou
resolveria com base em um discurso, em determinadas situações
conflituosas. Sobre isso, faz-se necessário conhecer algumas
atitudes célebres ao longo da História, que tomam algumas vezes
um caráter mitológico.
A consulta que será feita com o propósito de ilustrar as
situações de mediação em um passado distante, diz respeito ao
lendário rei Salomão, cuja figura atravessa os séculos como exemplo
de um monarca detentor de qualidades excepcionais no trato com
seus concidadãos. Thomas e Thomas (1958, p. 3), narram, em seu
livro dedicado a grandes estadistas da História, que o rei Salomão,
diante de uma contenda aparentemente insolúvel, adotava posturas
que ao final resultava na pacificação dos conflitos das partes.
Neste sentido, para ilustrar este texto, traz-se narrativas de
experiências atribuídas às experiências de Salomão. Na primeira delas,
conta-se que um dia compareceram três irmãos perante Salomão.
Seu pai, disseram, tinha morrido no dia anterior, logo após declarar
que deixava todos os seus bens ao único filho legítimo. E agora cada
qual pretendia que ele, e só ele, era o herdeiro. Os autores narram
que Salomão ficou a refletir diante da situação. Surgiu a indagação
única que era a de descobrir qual o filho legitimo do pai morto que
deixou seus bens a um filho único e legitimo. Segundo consta, o rei
voltou-se para os três irmãos e disse:

-Tragam aqui o cadáver, e ponham-no de pé contra um pilar.


Os irmãos fizeram-lhe o que lhes foi ordenado.
- E agora - disse o rei – tragam-me um arco e três flechas. Quando
lhe trouxeram o arco e as flechas, Salomão ordenou que cada um
dos três irmãos atirasse uma flecha contra o cadáver.
-Aquele cuja pontaria for melhor será declarado herdeiro legítimo.
O mais velho dos irmãos apontou cuidadosamente, e a seta foi
cravar-se no braço do morto.
-Muito bem! – Disse o rei.
Foi melhor a pontaria do segundo, que consegui trespassar a
fronte do cadáver.
- Bravo! Observou Salomão.
O irmão mais moço fez pontaria. Mas eis que de súbito lança ao
chão arco e flecha, dizendo:

O PENSAMENTO FILOSÓFICO ASSOCIADO A DIMENSÃO SOCIOLÓGICA COMO 25


FUNDAMENTO DAS RELAÇÕES NA MEDIAÇÃO DE CONFLITOS
- Prefiro perder a herança a profanar o corpo de meu pai.
-Tu – exclama o rei – és o legítimo herdeiro! (THOMAS e THOMAS,
1958, p.4).

Assim, segundo contam, começou o reinado de Salomão. A


narrativa acima, objetiva, aparentemente, exibir as questões morais
que fundamentavam a sociedade judaico-patriarcal dos tempos
de Salomão. Sendo este um rei do Antigo Testamento, as medidas
tomadas mostram claramente que o filho legitimo envolvido na
contenda, não realizou o ato pela proibição característica da moral
judaica vigente, enquanto os outros mostraram a face daquilo que é
reprovável.
Salomão figura nestas narrativas (que para alguns são lendas)
como um sábio líder dotado da capacidade de solucionar conflitos.
Nos casos narrados e atribuídos a ele na literatura, sugerem que
para encontrar a solução dos conflitos, o poder de decisão ficou
a cargo de uma das duas partes em discórdia. Em outra narrativa,
o Rei Salomão indaga duas mulheres que brigam por uma criança,
alegando cada uma ser a mãe verdadeira. A narrativa exemplar que
envolve as duas mulheres, afirma que o rei Salomão perante as duas
senhoras disse:

-Qual das duas é a mãe do recém-nascido?


Ambas esbravejaram afirmando cada uma ser a mãe da criança.
Salomão diante da contenda, propôs passar a criança pelo fio de
uma espada e dividi-la ao meio, dizendo:
-Se ambas dizem ser a mãe da criança, então nada mais justo que
a dividir ao meio, uma parte para cada uma, assim todas estarão
satisfeitas.
Nesse momento uma das mulheres entrou em desespero, e
dirigindo-se ao rei, disse:
- Não meu senhor, não faça isso! Prefiro então que ela viva e fique
com a outra!
Salomão então proferiu:
- Ah! Ai está a verdadeira mãe da criança! (THOMAS e THOMAS,
1958, p.5).

Dessa forma, o Rei Salomão elegia estratégias que considerava


importantes, ainda que a decisão não gerasse benefícios para todos
envolvidos. Em alguns casos o acordo poderia emergir sem maiores

26  Patrícia Rodrigues Tomaz • Eliana Freire do Nascimento


prejuízos, embora para isso sempre precisasse de um ou mais
mediadores. A solução consensual poderia ser encarada de uma
forma na qual houvesse a presença de um espirito de coletividade
que assegurasse a permanência da ordem. Nesse ponto de vista, é
possível sugerir que o instituto jurídico mais utilizado nas sociedades
antigas talvez tenha sido o da mediação.
Sobre sociedades ditas primitivas, tradicionais, é essencial
apresentar as observações do antropólogo francês Pierre Clastres
sobre o tratamento dado a uma questão por grupos nativos, quando
se trata de solucionar um conflito que perturba a ordem social.
Clastres nos diz em uma interessante descrição que:

O ponto de vista do líder só será escutado enquanto exprimir o


ponto de vista da sociedade como totalidade una. Disso resulta
não apenas que o chefe não formula ordens, as quais sabe de
antemão que ninguém obedeceria, mas também que é incapaz
(isto é, não detém tal poder) de arbitrar quando se apresenta,
por exemplo, um conflito entre dois indivíduos ou duas famílias.
Ele tentará não resolver o litígio em nome de uma lei ausente da
qual seria o órgão, mas apaziguá-lo apelando ao bom senso.
(CLASTRES, 2004, p 149).

Diz-se isso porque os conflitos entre indivíduos sempre foi


comportamento corrente em todo e qualquer grupo humano. Os
conflitos tribais de subjugação de um grupo sobre outro podem não
ter sofrido intervenções, uma vez que o interesse era se apropriar dos
inimigos e seus bens, mas em um corpo social7 tribal, a excelência dos
líderes servia para manter a coesão interna, quando esses grupos se
fundiam.
É possível, a partir daí, que o instituto jurídico da mediação
tenha caráter intensamente orgânico. Seja esta intenção colocada
como forma de equilibrar as relações entre subgrupos internos ou
até mesmo relações econômicas. Embora se trate de instituições


7
A expressão aqui adotada refere-se à noção de organicismo desenvolvida
por Durkheim, na qual pode-se conceber um exemplo figurativo descrito
como um corpo e seus órgãos. Havendo o bom funcionamento dos órgãos,
mantem-se a integridade e o equilíbrio do corpo, o que na esfera social reflete
o funcionamento das estruturas. São as partes que a compõem (DURKHEIM,
2008, p 27)

O PENSAMENTO FILOSÓFICO ASSOCIADO A DIMENSÃO SOCIOLÓGICA COMO 27


FUNDAMENTO DAS RELAÇÕES NA MEDIAÇÃO DE CONFLITOS
jurídicas nascidas em contextos tribais, essas relações de controle
social mostram que cada grupo parece elaborar seus mecanismos de
resolução obedecendo a sua condição cultural, embora em alguns
casos, outros fatores podem ter sido preponderantes.
A autonomia dos grupos humanos tradicionais não reflete
parte da lógica ocidental que busca, ainda que de modo não
inteiramente satisfatórios, saídas pacificas e as vezes ações belicosas
para seus diversos problemas. Embora no caso supracitado, a função
de um agente do grupo social que busca sancionar seus códigos de
conduta tenha erigido o discurso com base nos fatores econômicos
que regem essa sociedade, o que ocorre são diversas situações com
diferentes formas de imputação de penas para seus acusados.
A medida rigorosa, muitas vezes não incorpora a visão do
apenado, o que caracteriza algumas sociedades ocidentais na
atualidade A própria articulação atual da mediação dando voz às
partes em um conflito, buscando uma solução consensual, acaba por
dar vazão as subjetividades dos sujeitos em confronto. Pode ser que
outros fatores sobrepujem a individualidade, estendendo-se a uma
forma severa de punição que não elenca a subjetividade do acusado,
não prevalecendo sua opinião e sim o interesse da coletividade.
É esse ponto que se busca discutir para uma finalidade específica
que é: identificar na mediação de conflitos suas características
intrínsecas que conduzem o discurso de oposição pelas partes que
se confrontam. O mediador poderá contemplar essa dimensão se
considerar que o pensamento se exterioriza nas mais diversas formas,
da sensação de calma absoluta ao desprezo, arrogância e insensatez.
É possível estar preparado para diagnosticar em tempo hábil,
uma relação de autorreflexão que possa emergir no discurso como
elemento primordial de resolução de uma contenda. Isso acontece
no mundo real e pode-se utilizar exemplos no campo da ficção, para
que se possa contextualiza-lo.
Em um filme do diretor Duncan Jones (2016, EUA),
superprodução infanto-juvenil baseada em um jogo de videogame
chamado Warcraft - o primeiro encontro de dois mundos (ver figuras
1, 2 e 3), um guerreiro humano derrota um adversário orc troglodita
pelo uso da força e violência, o que caracteriza os dois exércitos:
os dos homens e o dos orcs. A luta armada em questão ocorre pela

28  Patrícia Rodrigues Tomaz • Eliana Freire do Nascimento


necessidade de vingança do guerreiro humano que teve seu filho
assassinado pelo Orc inimigo.
Ao findar a luta corporal que resultou na morte do orc, o mago
e chefe dos guerreiros orcs insiste em vingar o guerreiro morto pelo
aguerrido humano, o que é prontamente contrariado pelos demais
guerreiros orcs. A razão está no fato de que entre os orcs, mantem-se
uma antiga tradição na qual o guerreiro morto em uma luta justa,
não cabe vingar a morte do oponente que tombou na luta.
O expressivo diálogo entre os orcs e seu mestre resulta fatalmente
de uma instituição cultural que atende aos anseios da coletividade:
matar o oponente vencedor seria quebrar uma tradição que não
pode ser rompida, caso contrário instituía-se o caos. Observa-se que
a “competição”8 entre os orcs é fator preponderante.
Essas convenções, em essência, são reflexões que partem
da dinâmica na articulação de um grupo, seja em uma adaptação
cinematográfica, em um jogo de videogame ou na vida real, perduram
no sentido de estabelecer códigos de condutas que atendam as
reivindicações de um corpo social, absorvida na maioria dos casos
através da coerção.
Não se trata de valorizar a agressão a integridade física como um
valor social, mas entende-la como uma tradição de lutas e disputas
do grupo de orcs no filme citado, fatos que certamente ocorreram em
sociedades tribais.
Nos casos reais, há inevitavelmente instituições de controle
social que se corporificam como agentes de uma passividade orgânica.
As instituições aqui referidas estão não só no campo jurídico, mas
absorvidas pela concepção de ordem social que tem os membros de
uma sociedade.


8
Pode-se estender essa noção de competição às crianças que jogam o game
Warcraft, como transfiguração dos personagens na vida real. Entende-se que
as crianças incorporam inconscientemente os personagens e lutam entre si
através do jogo, estabelecendo-se regras existentes até mesmo nos jogos de
videogames. Os jogos podem não estabelecer as regras de Convivência social das
crianças, mas incute a ideia de organização que lhes será útil quando incorpora
as regras sociais verdadeiras, valendo a máxima: “A vida é um jogo” Quer
queira, quer não, a mediação encerra situações de conflito regidas também
pela competição entre as partes, necessitando submeter os participantes às
regras impostas.

O PENSAMENTO FILOSÓFICO ASSOCIADO A DIMENSÃO SOCIOLÓGICA COMO 29


FUNDAMENTO DAS RELAÇÕES NA MEDIAÇÃO DE CONFLITOS
Figuras 1, 2 e 3. Fotogramas do filme Warcraft. Fontes: Disponíveis em: <http://
screenrant.com/warcraft-movie-reviews-preview/, http://www.papodecinema.
com.br/filmes/warcraft-o-primeiro-encontro-de-dois-mundos>.

A forma coercitiva pela qual ocorre a absorção das leis se


manifesta em elementos intrínsecos da sociedade, está em diversas
manifestações cotidianas como a percepção gradual da autoridade
e das regras. Para isso é importante entender os fatos da vida
individual e os fatos da vida coletiva, como propõe Durkheim (2008,
p 23), ao descrever as ocorrências nas sociedades, sugerindo que “os
fenômenos sociais concedem certo grau de heterogeneidade entre os
fatos da vida social e os da vida coletiva. ”
Durkheim (2008, p 24), afirma que “com efeito, o que as
representações coletivas traduzem é a maneira pela qual o grupo
se enxerga a si mesmo nas relações com os objetos que os afetam.
”. Ressalta o sociólogo e filósofo, em seu trabalho Objetividade e
Identidade na Análise da vida Social, que há sempre uma prevalência
do coletivo em detrimento do individual na construção e permanência
de valores na sociedade.

30  Patrícia Rodrigues Tomaz • Eliana Freire do Nascimento


Bourdieu (2007, p 106) discorrendo sobre as distinções
culturais, estabelece que a produção de bens simbólicos é uma
característica da sociedade regida por símbolos culturais. Exulta em
favor de que há claras distinções quando se refere a existência de
uma cultura erudita e de manifestação de uma cultura popular, em
que a carga simbólica está por vezes na posição e no status social.
Quando aponta as relações simbólicas emanadas pelos códigos
sociais reconhecíveis e incorporados, de modo que o fatores culturais
e sociais se tornam elementos preponderantes.
Sobre esse aspecto, o filósofo fomenta um discurso de
manifestação do pensamento erudito na produção de conteúdos
simbólicos, o que é característico das sociedades que estabelecem um
sistema de signos e códigos para categorização dos sujeitos sociais.
Essa antítese, erudito e popular, surge na obra de Bourdieu como
uma discussão sobre as produções validadas pela indústria cultural.
As distinções culturais para o autor são descritas pela dialética
da distinção propriamente social, na qual o autor explicita: “Pode-se
medir o grau de autonomia de um campo de produção erudita com
base no poder de que dispõe para definir as normas de produção
os critérios de avaliação de seus produtos [...]. Fica evidente a
abordagem vinculada a percepção da indústria cultural como
elemento de sustentação de valores que refletem diretamente na
dimensão social9.
Certamente, existindo regras, há um corpo social para
obedecê-las e nenhum grupo coeso deixa de elaborar regras para
o funcionamento de suas ações. Vê-se isso desde as brincadeiras
comuns na mais tenra idade, se pensarmos que:

A humanidade começou há mais ou menos três milhões de anos


com conservação – geração após geração – de um modo de viver
em conversações que envolviam a colaboração dos sexos na
vida cotidiana, por meio de compartilhamento de alimentos, da
ternura e da sensualidade. Tudo isso ocorreu sem reflexões, como
aspectos naturais desse modo de vida. Nossa biologia atual é o
presente dessa história. (MATURANA, VERDEN-ZÖLLER, 2004).


9
Seriam várias as evidencias disso. Os produtos que se vinculam aos interesses
de todas as categorias sociais estão incorporados como parte da dimensão
cultural. Dois dos maiores representantes dos interesses de grupos são as
indústrias do entretenimento e da estética.

O PENSAMENTO FILOSÓFICO ASSOCIADO A DIMENSÃO SOCIOLÓGICA COMO 31


FUNDAMENTO DAS RELAÇÕES NA MEDIAÇÃO DE CONFLITOS
Assim, é oportuno recorrer as possibilidades de origem do
lúdico como forma de entretenimento que, de certa forma, faz o
homem esquecer de si, de sua condição efêmera, incorporando
elementos exógenos. Os homens do Paleolítico, para citar elementos
humanos do passado, certamente se viam às voltas com a caça e a
coleta como modus vivendi, mas a necessidade de autotranscedência
pode ter sido a fonte de uma suspensão temporária de sua condição
como sujeito em um mundo hostil.
Nesse sentido, emerge o caráter da sacralidade em grupos sociais
pretéritos. Se a necessidade de autotranscedência reivindicava para si
a busca de um elemento transcendente para resolver os conflitos e
adversidades, também levava o homem a descaracterizar-se de seu
cotidiano de sobrevivência, sujeito aos mais variados infortúnios.
Uma referência que pode ajudar a compreender essa relação,
reside em algumas argumentações de mentes eruditas como Aldous
Huxley, que em obras como A Filosofia Perene e Os Demônios de Loundun,
apresenta formas de percepção da mente e a compreensão da
condição humana. No Livro Os Demônios de Loundun, o autor analisa
um caso de histeria coletiva que fora tomado como possessão
demoníaca em um convento na França do século XVIII. No período
em questão, segunfo Huxley(1988), não havia o entendimento dos
mecanismos de funcionamento e o entendimento de funções como
o aparelho psíquico freudiano, Id, Ego e Superego. Huxley analisa no
apêndice do seu excelente Os Demônios de Loundun que:

Explorando o mundo à sua volta, o homem primitivo


“experimentou todas as coisas que o cercavam, e se fixou no
bem”. No que se refere à auto-preservação, o bem era cada
fruto e folha comestíveis, cada semente, cada raiz e noz salubres.
Mas, em outro contexto – o da satisfação pessoal e do desejo de
autotranscedência – o bem era tudo aquilo contido na natureza
capaz de transformar a consciência individual. (HUXLEY, 1988,
p. 316).

E assim, baseado Huxley(1988), Sousa (2012) formulou uma


análise, ainda que imprecisa, a fim de explicar certos comportamentos
de grupos humanos primitivos e indivíduos em comunidades
tradicionais, que se utilizavam de certos expedientes para atingir

32  Patrícia Rodrigues Tomaz • Eliana Freire do Nascimento


estados alterados de consciência, permitindo uma suspensão
temporária do ego. Em monografia de 2012, o pesquisador imaginou
a possibilidade de uma natureza inerente para o lúdico:

A ideia de o homem primitivo refugiar-se na natureza em busca de


vários elementos vitais, desde a água até a carne dos animais, não
finaliza no seu íntimo, a síntese de sua existência breve. Há uma
busca inconsciente na natureza humana que se caracteriza pela
tentativa de resolver problemas existenciais, operando de forma
diversa, e aparecendo como uma necessidade de superação
do cotidiano. Mesmo o homem primitivo, desprovido de uma
racionalidade cartesiana, sentiu no íntimo, em lampejos de
introspecção, a necessidade de fazer algo mais que simplesmente
caçar comer e dormir. Daí o lúdico surgir como uma sensação
inédita no jogo de sobrevivência humana. (SOUSA, 2012, p. 34).

É de se refletir se em tempos remotos houve a necessidade


em superar o cotidiano da forma descrita, o que não seria de todo
impossível. Se houve caçadas, lutas, reconhecimento dos elementos
da natureza, a formação gradativa do ego permitiria uma abertura
para o desenvolvimento da ludicidade.
E assim, comparando elementos do passado, recorre-se a
outras referências filmográficas que exemplificam as citações acima.
Ainda em Sousa (2012) a afirmação de que no passado houvesse uma
manifestação do lúdico, esse tipo de situação estaria expresso, por
exemplo, em uma memorável cena do filme A Guerra do Fogo (ver
figuras 4, 5, 6, 7, 8 e 9). Na cena, há um momento de rompimento
com os elementos do cotidiano sobre a qual o autor diz:

Para melhor ilustrar nosso pensamento sobre, recordemos a cena


do clássico A Guerra do Fogo, filme de Jean-Jacques Annaud, onde
um grupo de hominídeos está descansando sob uma árvore de
repente um deles arremessa uma pedra sobre a cabeça de outro,
aquele que sofre a pedrada, urra enfurecido, sem, no entanto, sair
do lugar onde está. Em seguida, o mesmo primata atingido cai em
gargalhadas espasmódicas, ao olhar para a mão ensanguentada
que tocou a ferida, e parece eclodir nele, momentaneamente,
um sentimento de alegria, pois o sangue parece simbolizar a
própria vida. Assim, num jogo de relações que permite quebrar
o cotidiano, figuram os elementos primordiais ou micro matrizes

O PENSAMENTO FILOSÓFICO ASSOCIADO A DIMENSÃO SOCIOLÓGICA COMO 33


FUNDAMENTO DAS RELAÇÕES NA MEDIAÇÃO DE CONFLITOS
das sensações temporárias de pseudoautotranscendencia
humana, que se manifestaram e se manifestam das mais variadas
formas. (SOUSA, 2012, p. 36).

A necessidade de sorrir, de exaltar-se quando a espontaneidade


opera é parte do comportamento no jogo. São também exasperações
que se fundindo as regras religiosas também exultam a glorificação
e entusiasmo característico do culto religioso. Pode-se agregar essas
argumentações a perda do controle em uma mediação, quando
alguém desrespeita as regras do jogo, na qual a emoção eleva-se como
princípio de destituição da racionalidade pelas partes em conflito.

Figuras 4, 5, 6, 7, 8 e 9. Fotogramas do filme A Guerra do Fogo. Fonte: Disponível


em <https://www.youtube.com/watch?v=MnR4WCqjDV4>.

O lúdico e o competitivo, elevados aquele plano de seriedade


sagrada que toda sociedade exige para a justiça, continuam ainda hoje
sendo perceptíveis em todas as formas da vida jurídica (HUIZINGA,
2000). Assim o é porque o sacramento do Direito enquanto aparelho
de controle das demandas de conflitos sociais em âmbito jurídico,
se configura na mentalidade das massas como um instrumento de
glorificação da ordem.

34  Patrícia Rodrigues Tomaz • Eliana Freire do Nascimento


O lúdico é para o homem, a perda ou suspensão temporária
do ego, sob a qual o discurso do mediador pode alimentar o
consenso. A brincadeira e a competição possuem regras ainda que
as vezes infringidas. Contudo, se aconteciam com mais frequência,
em tempos posteriores e para nós agora passado, brincadeiras e
momentos lúdicos entre as crianças, como o pega-pega, o esconde-
esconde, a mancha, a boca-de-forno, bolinha-de-gude, o cabo-
de-guerra e mais comumente a pelada10 entre os homens, hoje os
resultados da evolução material evidenciam outros mecanismos
lúdicos no cotidiano.
Entende-se os games e outros recursos eletrônicos, citados como
formas de entretenimento infantil repletos de regras, uma forma atual
identificada como elemento introdutor de valores e regras sociais,
com características inteiramente lúdicas, embora configurando-se
um jogo sedentário em que as crianças estão de olhar fixo em uma
tela, em detrimento do movimento das antigas brincadeiras.
Se havia as brincadeiras e suas regras incorporadas pelas
crianças, havia como ainda o é assim, as normas sociais que já são
implementadas, por exemplo, no cotidiano escolar. A escola é, por
excelência, a normatizadora das diretrizes e da disciplina que surtirá
efeito no individuo adulto. A coerção está no seio da educação
escolar como da educação dada pelos pais e pela sociedade, quando
o indivíduo passa a incorporar seus valores.
Se por excelência a escola e a família configuram-se como
instituições de reprodução dos valores pela coerção, a concepção de
equilíbrio da sociedade suscita a necessidade do Direito. Educação
como instrumento político de adaptação do indivíduo ao sistema,
assim como o papel similar exercido pela religião como instrumento
de controle social. É desse ponto que o nascimento das instituições
deu origem ao discurso jurídico.
É oportuno acrescentar que nem sempre as instituições jurídicas
desenvolveram-se com base em códigos de conduta absorvidos pelas
pessoas e que, para a execução das leis, houvesse apenas instituições
pautadas no direito como se concebe atualmente. Houve por exemplo
a figura dos pontífices em Roma, cuja autoridade religiosa abrangia
diversos aspectos da sociedade e é certo afirmar que


10
O futebol praticado como lazer em campos de areia.

O PENSAMENTO FILOSÓFICO ASSOCIADO A DIMENSÃO SOCIOLÓGICA COMO 35


FUNDAMENTO DAS RELAÇÕES NA MEDIAÇÃO DE CONFLITOS
Como os limites de toda propriedade eram demarcados pela
religião, assim que se estabelecia um litigio entre dois vizinhos, eles
deviam defender-se diante do pontífice ou diante dos sacerdotes
que eram chamados irmão ervais. (FUSTEL DE COULANGES,
2009, p. 204).

Baseado nessas afirmações do historiador, entende-se que


tanto o pontífice quantos os ervais eram mediadores ou árbitros. Nas
situações assinaladas, eram verdadeiramente mediadores, os quais
a dimensão religiosa e as crenças legitimava suas posições. Embora
também se reconheça que essas representações mudaram e as formas
de autoridade conservam-se com outras características na atualidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Todos os aspectos históricos, sociológicos e filosófico da


dimensão jurídica, se confundem com outras instituições sociais.
Se antes os mecanismos de defesa e acusação constituíam-se com
base em elementos transcendentes ou sobrenaturais, a evolução e a
dinâmica social possibilitaram uma readaptação de elementos que
abrangem vários aspectos da vida.
Viu-se que ao longo da História duas dimensões regiam o
pensamento na resolução de conflitos, havendo uma fase inicial na
qual o sistema de crenças creditava soluções a forças transcendente
e divinas, substituída gradualmente pela Filosofia, como forma de
discutir as questões dentro de uma perspectiva moral.
Embora grupos humanos na África e em outras partes do
mundo insistem em instrumentos mágicos como forma de resolver
as adversidades, o mundo ocidentalizado desenvolveu mecanismos
jurídicos que são amplamente discutidos e adotados para a
resolução de conflitos. Não se pode judicializar todos os conflitos
e sobrecarregar o Poder Judiciário, sendo importante respeitar as
relações sociais.
Desse modo, no que refere ao lúdico, é de se pensar que o jogo
é um instrumento das dinâmicas sociais, assim como a competição
pelo espaço e pela propriedade representam essa ludicidade. Ao
desenvolver os aspectos lúdicos tem-se a noção de competição, ao
agregar essa concepção de que a vida é de fato um jogo, em que as

36  Patrícia Rodrigues Tomaz • Eliana Freire do Nascimento


operações mentais executam o discurso de mediação e por sua vez
o conflito, cabe ao mediador analisar todas essas dimensões para
desenvolver o seu trabalho.

REFERÊNCIAS

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. Série


Estudos. São Paulo: Perspectiva, 2007.

CHASE, Oscar G. Direito, cultura e ritual: sistemas de resolução de


conflitos no contexto da cultura comparada. São Paulo: Marcial
Pons, 2014.

CLASTRES, Pierre. Arqueologia da violência: pesquisas de


antropologia política. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.

DURKHEIM, Émile. Objetividade e Identidade na Análise da Vida


Social. In Sociologia e Sociedade: Leituras de Introdução a Sociologia/
Marialice Foracchi, José de Souza Martins. Rio de Janeiro: LTC, 2008.

FUESTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo


sobre o culto, o direito e as instituições da Grécia e de Roma. São
Paulo: Martin Claret, 2009.

GILES, Thomas Ransom. A filosofia: origens, significados e panorama


histórico. Curso de Iniciação a Filosofia. v. 3. São Paulo: EPU, 1995.

HUXLEY, Aldous. Os demônios de Loudun. São Paulo: Círculo do


Livro, 1986.

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. Série Estudos. São Paulo:


Perspectiva, 2000.

MATURANA, Humberto R. VERDEN-ZOLLER, Gerda. Amar e brincar:


fundamentos esquecidos do humano do patriarcado à democracia.
São Paulo: Palas Athena, 2004.

PRITCHARD, E. E. Evans. Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande.


Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

O PENSAMENTO FILOSÓFICO ASSOCIADO A DIMENSÃO SOCIOLÓGICA COMO 37


FUNDAMENTO DAS RELAÇÕES NA MEDIAÇÃO DE CONFLITOS
SOUSA, Mauro Junior Rodrigues. Aspectos Étno-Históricos,
Geográficos e Arqueológicos do Poço da Onça – PI. Monografia.
Universidade Estadual do Piauí – UESPI, 2012.

THOMAS, Henry. THOMAS, Dana Lee. Vidas de estadistas famosos.


2. ed. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1958.

38  Patrícia Rodrigues Tomaz • Eliana Freire do Nascimento


A ANTROPOLOGIA DAS EMOÇÕES
APLICADA À MEDIAÇÃO DE CONFLITOS

Patrícia Rodrigues Tomaz


Alessander Mendes do Nascimento

INTRODUÇÃO

O
presente estudo aborda a manifestação das emoções
pelos sujeitos em sessões de mediação de conflitos. No
momento presente há na sociedade, além da jurisdição,
outros métodos de solução de conflitos que não sejam exclusivamente
oriundos da decisão proferida pelo Estado-juiz. São chamados
equivalentes jurisdicionais, pois prescindem da atuação de um juiz, e a
Mediação é um deles. A proposta apresenta a interdisciplinaridade de
uma relação entre a Antropologia e o Direito. Procura-se desenvolver
um estudo focando na mediação de conflito e nas emoções.
A mediação de conflitos consiste na prática que visa articular
os interesses de duas partes em disputa, com o objetivo de resolver
altercações através de um acordo entre elas. Essa forma de tratamento
de contendas no judiciário caracteriza-se por uma conversa entre
três pessoas: as partes em conflito e o mediador. Desenvolve-se
em âmbito extrajudicial, por se tratar de um procedimento criado
para que uma disputa não chegue às vias processuais, demandando
esforço e custos excessivos ao Poder Judiciário.

A ANTROPOLOGIA DAS EMOÇÕES APLICADA À MEDIAÇÃO DE CONFLITOS 39


Durante uma sessão de mediação, as partes em conflito tendem
a se exaltar e procuram constantemente argumentar em favor de si
próprio. Como essas situações se originam de descontentamento ou
violação de um direito, as partes, experimentam sentimentos como
repúdio, tristeza, raiva e tantos outros. Atualmente, no que se refere
ao comportamento do mediador, este necessita aprender a lidar com
as emoções dos envolvidos e desenvolver técnicas como a escuta
ativa1 e a validação de sentimentos2, expressões presentes no campo
da mediação de conflitos.
Diante das possibilidades sugeridas, formulou-se os seguintes
questionamentos: É possível, diante de uma série de manifestações
de sentimentos, perceber recorrências de um determinado tipo de
revelação sentimental através da observação direta nas sessões de
mediação de conflitos? Que sentimentos são predominantes? Raiva,
apreensão, tristeza, insegurança? Qual ou quais desses sentimentos
emergem com maior frequência no dialogo durante a mediação?
É possível que uma análise detalhada dessas manifestações de
sentimentos revele características de um determinado grupo social?
É admissível que uma leitura das expressões fisionômicas possibilite
identificar como o indivíduo está realmente se sentindo durante o
diálogo na mediação?
As expressões e os sentimentos são imperativos no
comportamento, embora não determinantes, em situações que
envolvem mediação de conflitos. Observando essa dimensão, ou
seja, a manifestação dos sentimentos durante o diálogo em sessões
de mediação, percebe-se a recorrência de expressões e sentimentos
que são relevantes para se buscar um acordo. Sustenta-se a
importância de uma produção literária versando sobre as emoções
manifestadas pelos conflitantes, pela necessidade em se articular de
modo apropriado as relações conflituosas nessas situações.


1
“A Escuta ativa significa a vontade e a capacidade de escutar a mensagem
inteira (verbal, simbólica e não verbal).” (SALES, 2010, p. 68).

2
“Importante também ressaltar que uma técnica frequentemente utilizada em
processos autocompositivos consiste na validação de sentimentos. Ao validar
sentimentos o mediador indica, em um tom normalizador, às partes, que
identificou o sentimento gerado pelo conflito.” (MANUAL DE MEDIAÇAO
JUDICIAL do CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2016, p. 182).

40  Patrícia Rodrigues Tomaz • Alessander Mendes do Nascimento


Para identificação das expressões no nível fisiológico,
trabalhou-se com as análises de Paul Ekman (2003), sobre os
aspectos estritamente anatômicos das emoções refletindo nas
expressões faciais, para uma descrição adequada na expressão
dos sentimentos, ocupando a função de um exame dos aspectos
materiais e consequentemente visíveis com aspectos imateriais que
são essencialmente abstratos, como os pensamentos e as emoções.
É importante a utilização de estudos como os de autores que tratam
das expressões faciais quando resultantes de variadas emoções em
situações de conflito.
A partir desses elementos, construiu-se um arcabouço teórico-
discursivo preliminar com o intuito de subsidiar a prática jurídica da
mediação em conflitos. O discurso jurídico tratando das emoções
em mediações de conflito, justifica-se pela necessidade em se
produzir registros de comportamento que poderão auxiliar potenciais
mediadores a proceder de forma adequada diante de situações
inusitadas que envolvem os sentimentos descritos em uma sessão de
mediação.
Na dimensão antropológica, a proposta em questão
fundamenta-se nos argumentos que norteiam a Antropologia das
Emoções, ao caracterizar os sentimentos expostos em situações que
revelam uma parte essencial dos seres humanos: o sentir. Para este
trabalho, o sentimento, mais especificamente as emoções, emergem
como categoria de análise. A Antropologia das Emoções parte, deste
modo, do princípio de que as experiências emocionais singulares,
sentidas e vividas por um ator social específico, são produtos das
relações entre os indivíduos, a cultura e sociedade (KOURY, 2005, p.
239).
Para a construção de um discurso na forma de produção
textual que possa subsidiar o mediador, busca-se analisar a
observação3 e descrição4 das expressões e microexpressões faciais,
relacionando-as aos sentimentos manifestados pelas partes em
conflito. Em decorrência da elaboração dessas categorias, emergirão


3
A observação é uma das etapas do método científico. Consiste em perceber,
observar e relatar como foi visualizada. (HENRIQUES; MEDEIROS, 2010).

4
A descrição também é uma etapa do método científico. Registrar experiências.
(HENRIQUES; MEDEIROS, 2010).

A ANTROPOLOGIA DAS EMOÇÕES APLICADA À MEDIAÇÃO DE CONFLITOS 41


duas características no campo teórico metodológico: uma dimensão
material humana (o homem e seus movimentos, ocupando lugar no
espaço), representada pelas expressões faciais e gestos corporais e
outra imaterial que são os próprios sentimentos e reflexões geradores
das expressões e gestos.

MEDIAÇAO, DIREITO, ANTROPOLOGIA E O PAPEL DAS


EMOÇÕES

Quando as instituições jurídicas atuam, os profissionais que


se deparam com partes em conflito tendem a tentar articular as
considerações de ambas, em algumas situações ignoram que, dentro
de um perfil psicológico, os indivíduos delegam automaticamente
ao mediador a função de conduzir suas percepções, para que ele
busque a verdade de isenções nos argumentos. Pressupõe-se aí
que o mediador de um conflito deva articular os argumentos para
estabelecer um acordo.
A busca de soluções para conflitos que chegam à instancia
jurídica, detém-se no fato de que o poder judiciário através do
mediador articula identidades em conflito e assim estas “são
caracterizadas pela “diferença”; elas são atravessadas por diferentes
divisões e antagonismos sociais que produzem uma variedade de
diferentes “posições de sujeito” (HALL, 2006, p. 17). A maioria das
posições em um conflito, tomadas através das expressões, invocam
sentimentos como angústia, tristeza e raiva.
Quando as reações se intensificam é preciso domínio do discurso
que implica um controle das emoções nos indivíduos. Marcel Mauss
(1921/1979), ao falar sobre o comportamento dos nativos em ritos
funerários australianos, esclarece que todas as expressões coletivas,
simultâneas, de valor moral e de força obrigatória dos sentimentos
do indivíduo e do grupo, são mais que meras manifestações, são
sinais de expressões entendidas, quer dizer, são linguagem.
Para (AZEVEDO, 2013, p. 39). O conflito pode ser definido
como um processo ou estado em que duas ou mais pessoas divergem
em razão de metas, interesses ou objetivos individuais percebidos
como mutuamente incompatíveis. É natural que o mediador entenda
que entre as manifestações de convivência estão as emoções e é

42  Patrícia Rodrigues Tomaz • Alessander Mendes do Nascimento


oportuno afirmar que, “como fundamento da existência humana: a
sensibilidade é anterior a existência” (PESAVENTO, 2010, p. 24).
Durante as sessões de mediação, as diversas manifestações de
sentimentos são correntes e, comumente, decorrentes de conflitos
que sempre se originam de relações sociais. Koury (1999, p. 75)
sustenta que [...] “as relações sociais que emergem dos atores são
produtos ou produzidas pelo movimento social ou institucional
gerador da crise ou tragédia”. Desta forma, os sentimentos, nesses
casos, são frutos da própria dinâmica dessas relações.
Pode-se afirmar que, associando à afirmação de Koury “A
presença dos afetos foi sempre notada como parte da dinâmica
social” (REZENDE e COELHO, 2010, p. 12-13), e é este aspecto que
surge como elemento motivador e condutor das relações em uma
contenda levada ao judiciário. As partes conflitantes necessitam
de um terceiro componente discursivo, estabelecendo o equilíbrio,
elegendo o terceiro elemento, o discurso mediador, como ponto de
estabilização entre as partes.
Essa relação revela como preponderante, razão e emoção,
percebidas pelos litigantes. Há a necessidade em conceder a outrem
uma proposição na resolução de uma questão que requer cuidado
no trato discursivo, ansiando por um consenso na resolução de um
caso. A mediação envolve tanto a mente quanto a intuição. As pessoas
estão emocionalmente envolvidas, por mais que se tente bloquear as
emoções tentando ser racional elas permanecem (FISHER; SHAPIRO,
2009).
Nas sessões, entram em jogo questões identitárias que podem
favorecer uma articulação na transformação dos conflitos e o
mediador contribui com a humanização em torno dessas questões.
Em situações que envolvem a mediação de conflitos, é prudente
tentar compreender a formação social das partes e identificar as
particularidades imbricadas em determinados grupos, para uma
intervenção eficiente na resolução das contendas.
Durante as contendas, o mediador costuma assistir ao
desenvolvimento de casos que envolvem sentimentos que emergem
com intensidade e as pessoas em conflito se exaltam. Diante dessa
realidade, existe já há algum tempo, o consenso pelo qual o mediador
deve proceder, considerando os sentimentos através das expressões,

A ANTROPOLOGIA DAS EMOÇÕES APLICADA À MEDIAÇÃO DE CONFLITOS 43


desenvolvendo o que se chama atualmente na literatura vigente de
validação dos sentimentos, técnica frequentemente utilizada pelo
mediador para perceber o sentimento gerado pelo conflito.
Na validação dos sentimentos o mediador deverá identificar,
segundo Ghisleni e Spengler (2011, p. 65), quais os interesses e
sentimentos que precisam ser endereçados para que a mediação
possa evoluir. O mediador deverá examinar a necessidade de
iniciar sessões individuais para validar sentimentos, se necessário.
Quando as partes sentem que seus sentimentos foram validados e
compreendidos, passam a acreditar no processo de mediação.
A validação dos sentimentos implica em sua essência, uma
vertente da antropologia que se debruça sobre essas reações: a
Antropologia das Emoções. Não que a antropologia das emoções
seja discutida no meio jurídico como forma de sustentar teórica e
metodologicamente essa face da mediação, mas apresenta-se como
um excelente instrumento teórico de argumentação para compor um
trabalho acadêmico no qual ocorra a fusão Direito e Antropologia,
com a finalidade de fornecer subsídios para ambos os campos do
conhecimento.
Para uma avaliação efetiva do sentimento de um litigante,
ou dos litigantes, é necessário apropriar-se de elementos analíticos
elaborados para esse fim. Nesse sentido, Charles Darwin elaborou um
estudo detalhado das expressões humanas em seu livro “A Expressão
das Emoções no Homem e nos Animais” (1872/2013). O célebre
cientista naturalista inglês, descrevendo “a contração involuntária
dos músculos em volta dos olhos” e outras expressões faciais
decorrentes das emoções e sentimentos, anuncia a possibilidade do
emprego dessa abordagem para o futuro.
Essa investida inicial sobre o tema, desenvolvida por Darwin,
foi uma das principais fontes de inspiração para o trabalho de
Paul Ekman (2011) que propunha em seus estudos interculturais
a mensuração das expressões faciais das emoções, possibilitando
a incorporação desses fundamentos científicos para a presente
proposta. Esse aspecto figura na proposta da pesquisa como a
dimensão material humana, o homem ocupando lugar no espaço
com as expressões faciais categorizadas como a dimensão material
observável da pesquisa.

44  Patrícia Rodrigues Tomaz • Alessander Mendes do Nascimento


A obra “A Linguagem das Emoções” (2003) da autoria de Ekman,
discorre sobre o reconhecimento das emoções pelas expressões e
microexpressões faciais. O autor diz que “as emoções mudam nossa
forma de ver o mundo e de interpretar as ações das outras pessoas”.
Ao explicar a diversidade das emoções, Sartre (1965, p.33), esclarece
que “emoções representam, cada uma delas, um meio diferente de
eludir uma dificuldade, uma escapatória específica, uma truncagem
especial”.
Não está se tratando de modelos de resistência que envolvem
questões de repressão mas, justamente o oposto, modelos que
possam favorecer uma compreensão da identidade dos sujeitos e dos
grupos sociais que ainda operam mediante um consenso. A título de
exemplo nesta proposta, poder-se-ia dizer que muitos problemas de
proteção do espaço, da identidade e dos bens afetam indivíduos de
grupos sociais que, por suas características, são mais vulneráveis e,
por isso, mais suscetíveis a sofrerem abusos e discriminações.
Muitos indivíduos, vivendo expostos a uma instabilidade
psicossocial acentuada pelos problemas de infraestrutura e por
uma formação cultural baseada na subalternidade imposta pelo
sistema, reduzem seus argumentos aos seus interesses e a sua própria
realidade, procurando um elemento exógeno para uma solução
definitiva e consensual para seus conflitos.
Percebe-se que a postura de cidadãos comuns, na forma de uma
resistência diante da violação dos direitos humanos fundamentais
perante a ordem social, evidencia que os conflitos requerem para
eles a ordenação e resolução por parte do Estado como mantenedor
da ordem e responsabilidade pelos interesses públicos. O Estado se
manifesta, ainda que em muitos aspectos de modo não satisfatório,
como um instituidor de deveres, atuando para uma vida digna.
Essa forma de tratar as relações com o Estado, aqui apresentado
pelo Poder Judiciário, revela as marcas da condição psicossocial dos
indivíduos e em outros momentos, o senso de coletividade aliando-
se a manifestação de individualidade traz para a esfera analítica
uma oposição binária na forma de “razão” e “sentimento”. Aqui a
razão é o Estado5 e sua estrutura de poder político influente sobre


5
Por mais que os indivíduos em um corpo social ofereçam resistência ao poder
instituído, eles reconhecem que sem esse poder instituído poderia haver

A ANTROPOLOGIA DAS EMOÇÕES APLICADA À MEDIAÇÃO DE CONFLITOS 45


a coletividade, enquanto o sentimento, positivo ou negativo, é
elemento intrínseco nas relações conflituosas e em questões tratadas
em âmbito extrajudicial.
Diante dessa realidade, dois elementos articulam-se para a
resolução de uma contenda: indivíduo e Estado. Perante o mediador,
representante do Estado, as partes em conflitos utilizam-se de
argumentos em favor de si, mas quase não reconhecem que durante a
tentativa de resolução do conflito, manifestam diferentes expressões
e sentimentos legítimos, uma parte deles, manifestos de modo a
obter vantagens.
O indivíduo, aqui, apresenta-se em sua totalidade, corpo e
espirito (em uma concepção hegeliana), afirmando-se como detentor
da verdade que lhe cabe. Para Hegel, o foco do indivíduo deve ser
a busca da verdade. Assim o corpo fala pelo espirito, indicado em
que estado de consciência esse indivíduo se encontra (STOKES,
2016), e o estado do sujeito na mediação de conflitos é inteiramente
sentimental.
O mediador deve buscar compreender as emoções dos
conflitantes, focando em expressões e microexpressões faciais das
partes em cada sessão de mediação. Procura-se assim, padrões de
comportamento para a composição de um discurso jurídico que
visa atender as necessidades de conversação, ação e reação para
mediadores. Analisar os fatores emocionais em jogo, procurando
uma etiologia das emoções em situações de conflito.
Sendo assim, o mediador precisa construir um discurso
baseado nas emoções dos sujeitos envolvidos em situações de
conflito no âmbito extrajudicial, visando estimular os juristas no
campo da mediação, no sentido de aprimorar os procedimentos.
Desenvolver um discurso jurídico interdisciplinar, estabelecendo
um diálogo entre a antropologia e o direito, levando para esses
dois campos do conhecimento humano uma produção pautada
na compreensão, registro e produção de um subsidio literário com
ênfase na antropologia das emoções e na mediação de conflitos.
Como forma de atestar as informações acerca da expressão
dos sentimentos, suas causas e efeitos, trabalha-se através da

desordem pela não influencia do consenso em relações de conflito.

46  Patrícia Rodrigues Tomaz • Alessander Mendes do Nascimento


observação de sessões no Centro de Mediação e Cidadania, uma vez
que o cotidiano dos espaços onde as sessões acontecem são fontes
de muitas observações. O antes, o durante e o depois das sessões, os
comentários das partes, as expectativas, como é feito o processo até
se chegar na sessão tudo isso é fonte de sua pesquisa na investigação
das emoções das partes
Através da observação direta há o olhar atento no
comportamento das pessoas em uma sessão de mediação. Busca-
se recorrências de expressões que revelem os sentimentos por trás
delas. A observação direta é sem dúvida a técnica privilegiada para
investigar os saberes e as práticas na vida social e reconhecer as ações
e as representações coletivas na vida humana. (ROCHA e ECKERT,
2008). Por meio da descrição há a intenção de registrar os sentimentos
e as expressões e microexpressões faciais para levantamento das
situações e recorrência de comportamentos e emoções, manifestadas
nas sessões de mediação de conflitos.
Dar-se-á ênfase aos aspectos mencionados: razão e sentimento,
de modo que se possa elaborar um quadro de incidências dessas
manifestações para obtenção de resultados que privilegiam o
consenso entre as partes litigantes. Procura-se, nesse sentido,
resultados que envolvam pluralidade de identidades em jogo, no
processo de aceitação ou negação dos fatos à mostra (verdade
aparente e verdade real), no processo de mediação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As observações contínuas das pessoas envolvidas durante


as sessões, ajudam a identificar padrões de comportamento e
predominância de sentimentos expostos durante o diálogo. Diante
dessas possibilidades, procura-se registrar a maior ocorrência de
manifestações sentimentais através de anotações registradas pelos
autores, priorizando a legitimidade dos momentos assistidos.
As evidências dessa influência se dão no comportamento que
engloba o modo de falar, de gesticular na busca de uma solução
para um problema qualquer, tratado em âmbito extrajudicial. O
não-dito, o silêncio, a entonação da voz, as expressões utilizadas, as
manifestações de sentimentos, emoções das partes, tudo é analisado.

A ANTROPOLOGIA DAS EMOÇÕES APLICADA À MEDIAÇÃO DE CONFLITOS 47


Para essa finalidade, dar-se ênfase às emoções percebidas,
através das expressões faciais e dos gestos das partes discordantes.
Sendo na maioria das vezes impossibilitados, por razões de cunho
sócio psicológicas, de se articularem para uma resolução pacífica
envolvendo questões de conflitos comunitários, por exemplo, os
indivíduos, em todos os segmentos sociais delegam, por uma questão
óbvia, essa função para o Estado, guiados pelas normativas legais
que se interpõem entre o indivíduo e o aparelho estatal.
Os sentimentos podem não ser algo privilegiado pelo sistema
quando está em jogo a resolução de um conflito para a permanência
da ordem social, mas pode-se afirmar que eles são inerentes a
todos os seres humanos. A partir desses elementos, construiu-se um
arcabouço teórico-discursivo preliminar com o intuito de subsidiar a
prática jurídica da mediação de conflitos e nas emoções manifestadas
nessas ocasiões.

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48  Patrícia Rodrigues Tomaz • Alessander Mendes do Nascimento


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96  Indiara Soares Batista • Suéllen Pinheiro Moura


O ENFOQUE TRANSDISCIPLINAR DA
MEDIAÇÃO NA RESOLUÇÃO DE CONFLITOS
FAMILIARES

Patrícia Rodrigues Tomaz


Dayse Cristina Soares Feitosa Rodrigues
Juliana Sales e Mendes

INTRODUÇÃO

A
família, embora tenha passado por uma série de
transformações sociais e estruturais, continua sendo o
núcleo basilar e fundamental de qualquer sociedade.
Na história da espécie humana, segundo o antropólogo britânico Jack
Godoy1, não se conhece praticamente nenhuma sociedade em que
a família nuclear, elementar, não tenha tido um papel importante,
mesmo naquelas em que não se exigia comportamento monogâmico.
O conceito de família tem sofrido modificações ao longo do
tempo. Segundo o jurista Rodrigo da Cunha Pereira, família vem
do latim famulus, de famel (escravo), que denominaria um grupo de
pessoas, parentes, que viviam numa mesma casa, sendo servos ou
escravos cumprindo funções para outro grupo, o dos patrões. No


1
Dortier, Jean-François. Dicionário de Ciências Humanas. São Paulo: WMF
Martins Fontes, 2010. p.203.

O ENFOQUE TRANSDISCIPLINAR DA MEDIAÇÃO NA 97


RESOLUÇÃO DE CONFLITOS FAMILIARES
mundo contemporâneo, novas estruturas parentais estão em curso,
transcendendo esse conceito.
É inegável que a sociedade avançou e nas democracias
ocidentais novos modelos de família foram sendo construídos. Para
Farias e Rosenvald (2017, p. 37), há “uma mutabilidade inexorável
na compreensão da família, apresentando-se sob tantas e diversas
formas quantas forem as possibilidades de se relacionar”. A família
deixou de ser singular e passou a ser plural. A abordagem atual
privilegia a dignidade da pessoa humana, sendo a afetividade a
grande norteadora dessas relações.
Nesse sentido, a Mediação de Conflitos, que é um método
consensual de resolução de conflitos, o qual congrega a sapiência de
vários estudos das Ciências Humanas, se apresenta atualmente como
forma mais adequada para resolver questões familiares controversas,
especialmente considerando a mudança de paradigma da entidade
familiar, conforme apontado.
Essa é a finalidade do presente artigo, apresentar a Mediação de
Conflitos como alternativa adequada na resolução de controvérsias
familiares, dialogando com outros saberes que reverberam no
conteúdo teórico da Mediação e na atuação do mediador. Se nos
dias hodiernos, a família é entidade cujo eixo central é o afeto, e que,
mesmo as relações se desfazendo, as repercussões perfazem no tempo
– por esse motivo as nomeamos “relações continuadas”, existindo
filhos ou não – buscar um mecanismo de solução de disputas que
valide os sentimentos envolvidos, compreenda a complexidade
do conflitos e das pessoas inseridas no contexto, como também
permita a colaboração de todos para o deslinde é fundamental para
pacificação daqueles atores.

A FAMÍLIA ENQUANTO INSTITUIÇÃO JURÍDICA E SOCIAL

A família é uma organização social que constitui o primeiro


núcleo de socialização dos indivíduos, cujo funcionamento e arranjo
se baseiam na distribuição de poderes e tarefas, dinâmica complexa
em que surgem disputas e competições no ambiente doméstico.
Esse processo “gera uma espécie de paradoxo, em que a prática da
disputa parece incompatível com o desejo de união e de manutenção

98  Patrícia Rodrigues Tomaz • Dayse Cristina Soares Feitosa Rodrigues


Juliana Sales e Mendes
da família” (MUSKAT; OLIVEIRA; UNBEHAUM; MUSKAT, 2008, p.
35).
Sobre isso, Gonçalves (2015) afirma que o ponto inicial, como
marco cronológico válido para nosso país sobre o direito das famílias
é o advento da Constituição Federal de 1988, modificando a ideia
de que a família era apenas a constituída por meio do casamento, e,
ainda, com fins patrimoniais.
Assim sendo, é uma instituição, que como as demais na
sociedade, submete-se às regras e às leis quando necessita dos
mecanismos jurídicos para a resolução de contendas. Uma das
formas de lidar com problemas familiares quando requerem a lei, é
a Mediação de Conflitos, tendo em vista que as “disputas familiares,
por definição, envolvem relacionamentos que precisam perdurar”
(ROSA, 2017, p.249).
A expressão mediação vem do latim mediare, que significa mediar,
dividir ao meio, intervir (SALES, 2003). É uma forma colaborativa e
amigável de resolução de controvérsias em que a solução e busca
pelo acordo é desenvolvido entre as partes envolvidas, adequada
para tratar dos conflitos familiares, mas de forma pacífica, conforme
estabelece a Lei da Mediação e o novo Código de Processo Civil.
A mediação envolvendo os conflitos familiares necessita de uma
intervenção diferenciada.
Gonçalves (2015), enfatiza a importância da mediação dos
conflitos familiares apontando a necessidade dessa forma jurídica,
na qual a prática da mediação com o uso de técnicas em busca do
entendimento entre pessoas com relação de continuidade impõe-se
cada vez mais como necessária nos âmbitos extrajudicial e judicial,
pois, observando os princípios familiares, respeita em primeiro lugar
a dignidade da pessoa humana [...]. Destarte, como os problemas se
apresentam, instigam a formalização do discurso para obtenção de
resultados positivos, respeitando os valores familiares2.


2
Sobre o assunto, é oportuno lembrar Segundo a Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988 no seu artigo 226 a família é a base da sociedade,
logo tem proteção absoluta do Estado. Ver CERDOTI, Angélica; GARCIA,
Vanessa. A mediação familiar: por uma cultura de paz e resultados qualitativos
como direito fundamental das famílias na atualidade.

O ENFOQUE TRANSDISCIPLINAR DA MEDIAÇÃO NA 99


RESOLUÇÃO DE CONFLITOS FAMILIARES
Na busca de uma solução de conflito familiar, sob a qual se
faz necessário o imperativo da razão, impondo-se como elemento
constituinte e decisivo, ao mesmo tempo que se prevê um futuro
processo a mercê da morosidade, corrobora-se a opinião de Dias
(2016, p. 5) afirmando que “quando as partes manifestam sua
vontade para a composição de um acordo, a pacificação social é
facilmente obtida, sendo mais benéfico e eficaz do que pela imposição
de uma decisão judicial”.
Historicamente, o apelo às instituições do Direito no que diz
respeito à mediação de conflito familiar, tem sua gênese, conforme
aponta Tomaz (2015, p. 31), nas sociedades primevas, quando sustenta
que “ao contrário do que se pensa sobre códigos de condutas e leis
para a preservação da harmonia social, as populações pretéritas já
em sua organização social, predispunham de mecanismos condutores
das ações que refletiam a tentativa em controlar instabilidades no
corpo social.” A mesma autora, baseando-se em Pierre Clastres, ao
tratar do poder nas sociedades primitivas, nos informa que “o ponto
de vista do líder só será escutado enquanto exprimir o ponto de vista
da sociedade como totalidade una” (CLASTRES, 2004 p. 149).
Essa evidência de que todos escutam o líder e o conflito resolve-
se por acordo, é característica da mediação quando se consegue
resultados positivos na solução consensual das lides. Nos casos que
envolvem a presença do Juiz de Paz, personagem na história colonial
do Brasil que tem múltiplas funções enquanto um mediador jurídico,
sabe-se que este é um magistrado, frequentemente sem formação
jurídica, que exerce diversas funções judiciais consideradas, em cada
lugar e época, como “menores” (pequenas causas ou demandas,
casamentos etc.), resolvendo as contendas através de conciliação3.


3
A origem da justiça de paz está ligada à formação do “King’s Peace” (também
usado em latim, como “Pax Regis”), cujo objetivo era consolidar a autoridade
do poder central. Sua criação deu-se no reinado de Eduardo III, embora seja
possível ligar os novos juízes aos antigos “conservadores da paz” (“conservators
of the peace”) criados por Hubert Walter, Arcebispo da Cantuária e chefe do
conselho de ministros na Inglaterra durante o reinado de Ricardo I.
Ver A estrutura jurídica no Brasil colonial. Criação, ordenação e
implementação, disponível em http://www.ambito-juridico.com.br/site/
index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=7088 e LOPES, Hálisson
Rodrigo. O Juiz de Paz no Brasil Imperial. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande,
XIV, n. 90, julho de 2011.

100  Patrícia Rodrigues Tomaz • Dayse Cristina Soares Feitosa Rodrigues


Juliana Sales e Mendes
A mediação de conflitos, de acordo com a história, em nosso
ordenamento jurídico, esteve associada ou foi conhecida como
conciliação, cujo agente principal era o juiz de paz. Consultando o
Arquivo Digital de Viana do Castelo, endereço eletrônico que contém
aspectos jurídicos de Portugal e que influenciaram a adoção da prática
do Juizado de Paz no Brasil, na figura do respectivo magistrado – o
Juiz de Paz, descobriu-se que:

Foi a Carta Constitucional de 1826 que introduziu os tribunais


ou julgados de paz, essencialmente destinados a tentarem
a conciliação entre pessoas desavindas, para evitar que se
envolvessem em questões judiciais a que pelas demoras, gastos e
outros incómodos que acarretam, só se devem recorrer depois de
esgotada a possibilidade de uma solução pacífica. 4

Aos Juízes de Paz cabiam inúmeras e importantes tarefas


inerentes à sua condição de apaziguadores e garantidores da paz
e tranquilidade públicas. Tinham de conciliar e compor as partes,
separar e apaziguar ajuntamentos e motins, obrigar vadios, mendigos,
turbulentos, bêbados e meretrizes a assinarem termo de bem viver,
mandar fazer exame em casos de morte, ferimento e agressão física,
informar o Juiz dos Órfãos ou o Juiz de Direito sobre quem eram
os órfãos, que bens possuíam, quem havia falecido, com ou sem
testamento, com ou sem herdeiros. 
A fase conciliatória prévia atribuída ao Juiz de Paz, contudo,
perdurou apenas durante o império e nenhuma das constituições
posteriores disciplinou a matéria, apesar do preâmbulo da atual
Carta Magna estabelecer como um dos fundamentos do Estado
Democrático de Direito “a solução pacífica da controvérsia”5.


4
Disponível em: http://digitarq.advct.arquivos.pt/details?id=1053721. Acesso
em 05 nov. 2017.

5
“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional
Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o
exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-
estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de
uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia
social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução
pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.” (CONTITUIÇÃO

O ENFOQUE TRANSDISCIPLINAR DA MEDIAÇÃO NA 101


RESOLUÇÃO DE CONFLITOS FAMILIARES
Atualmente, a primazia dos métodos consensuais de resolução
de conflitos, representados pela conciliação e mediação, novamente
ganhou relevo, especialmente com a edição da Resolução nº 125/2010
do CNJ, Lei nº 13.140/2015 (Lei da Mediação) e Lei nº 13.105/2015
(Novo Código de Processo Civil). Quanto ao último, há imperiosa
previsão da mediação em conflitos de família.
Nas lides que envolvem família, é viável a resolução das
demandas não apenas por vias processuais, as quais demandam
recursos, geram desgastes e estimulam de modo rarefeito o diálogo.
Por esse motivo, o Estado viabilizou a proteção legal para a resolução
de um conflito de forma mais adequada, através da conciliação e
mediação, conforme referidos marcos legais, com destaque para as
questões familiares.

A TRANSDISCIPLINARIDADE DA MEDIAÇÃO FAMILIAR

A Visão Global da Mediação

O olhar cartesiano e linear certamente acarretará uma visão


limitada acerca da Mediação de Conflitos, uma vez que seu estudo
perpassa diversos saberes que confluem entre si, a fim de que a
experiência conflituosa compartilhada pelos mediandos possa ser
melhor reformulada à luz da atuação transdisciplinar do mediador.
Nesse ínterim, aplicar a Mediação às questões familiares requer
“uma lente multifocal na abordagem, compreensão e mapeamento
da controvérsia” (ALMEIDA, 2016, p.301), tendo em vista a natureza
complexa desse instituto.
Assim, nota-se a sintonia do paradigma da complexidade no
estudo e prática da Mediação Familiar em dois níveis: primeiro, temos
a interconexão de conhecimentos, mitigando o aspecto fragmentado
dos saberes; segundo, compreendendo os fenômenos intrafamiliares
como resultados de influências mútuas entre seus integrantes, os
quais não são interpretados de forma isolada. Segundo Morin,
complexidade é entendida como:

FEDERAL, 1988)

102  Patrícia Rodrigues Tomaz • Dayse Cristina Soares Feitosa Rodrigues


Juliana Sales e Mendes
Complexus significa o que foi tecido junto; de fato, há complexidade
quando elementos diferentes são inseparáveis constitutivos do
todo (como o econômico, o político, o sociológico, o psicológico,
o afetivo, o mitológico) e há um tecido interdependente, interativo
e interretroativo entre o objeto de conhecimento e seu contexto,
as partes e o todo, o todo e as partes, as partes entre si. Por isso,
a complexidade é a união entre a unidade e a multiplicidade. Os
desenvolvimentos próprios à nossa era planetária confrontam-
nos cada vez mais e de maneira cada vez mais inelutável com os
desafios da complexidade (MORIN, 1921-2001, p.36)

Por essa razão teórica contemporânea, é que se torna essencial


compreender e aplicar a Mediação congregando vários saberes,
numa dinâmica inter, multi e transdisciplinar6. Esse movimento é
especialmente importante quando se trata de demandas familiares,
as quais estão inseridas num contexto de relações continuadas,
fundamentadas em afeto.

O Manancial de Saberes

Compreender a unidade complexa da natureza humana (MORIN,


1921-2001, p.50), especialmente quando inserida em conflitos
familiares, requer o equacionamento de diversos aportes teóricos, os
quais representam um manancial de conhecimentos para Mediação
Familiar, perpassando os paradigmas da Antropologia, Sociologia,
Filosofia, Psicologia e Direito.
Para Maturana (1928-2004), o ser humano é um ser relacional,
a partir da sua interação com os outros e com o mundo através
da linguagem, que é fenômeno biológico relacional. Nesse sentido,
cunhou a expressão linguajear. Ao mesmo tempo, vivenciamos um
contínuo emocionar. Portanto, o conversar é o entrelaçamento entre
o linguajear e o emocionar.


6
Para Rosenblatt e Martins, “na multidisciplinaridade busca-se, ao se colocar lado
a lado várias abordagens disciplinares, conhecer melhor um mesmo objeto. A
interdisciplinaridade surge quando este cotejamento não é suficiente para dar
conta do objeto, e se torna necessário a criação de novas disciplinas ‘mistas’,
mais complexas, que não se enquadram nos moldes das disciplinas tradicionais
(...). A transdisciplinaridade, por sua vez, é o passo dado no sentido de uma
mistura, de um atravessamento, de um uso complexo de várias disciplinas,
sem que por isso se forma uma nova disciplina.” (2016, p. 140-140)

O ENFOQUE TRANSDISCIPLINAR DA MEDIAÇÃO NA 103


RESOLUÇÃO DE CONFLITOS FAMILIARES
O estado de ânimo em que os mediandos chegam a uma sessão
de mediação é repleto de sentires, houve uma ruptura da tríade
conversar-linguajear-emocionar e em virtude disso o desentendimento
é ocasionado. O mediador precisa acolher essas emoções e estimular
o conversar, uma vez que “é papel do mediador propiciar um espaço
emocional harmonioso que permita a reaproximação dos mediandos”
(BARONIO, 2016, p.157).
Nesse sentido, de que modo o mediador, lastreado pela
Antropologia, poderá promover um novo espaço relacional entre
os mediandos? Fraga, Mosquéra e Meyer revelam que existem duas
ferramentas cujo mediador vivenciará uma “atitude de antropólogo
curioso e respeitoso das diferenças” (2016, p.158), quais sejam, a
escuta ativa7 e a identificação de interesses8:

No exercício da escuta ativa, o mediador conversa por meio


de perguntas e, de forma ética e cuidadosa, legitimando,
esclarecendo e validando o investimento dos envolvidos no
processo. Viabiliza o conhecimento do ponto de vista do outro,
suas motivações e interesses. O levantamento de interesses torna
explícitas as diferentes necessidades, preocupações e valores e
ajuda na promoção do diálogo, ampliando o conhecimento sobre
si e sobre o outro (FRAGA, MOSQUERA e MEYER, .2016, p.158)

A linguagem também conversa através das expressões. Nesse


viés, outro referencial teórico antropológico auxilia o mediador em
seu exercício profissional. Trata-se da linguagem das emoções, na
qual o pesquisador Paul Ekman debruçou seus estudos de campo
na fisiologia das emoções, com enfoque nas expressões faciais,


7
Escuta ativa é uma técnica que pode ser compreendida como uma escuta
qualificada, de modo que as pessoas se sintam legitimadas e acolhidas em
suas manifestações. O mediador também promove escuta ativa quando
equilibra as falas dos mediandos, bem como promove perguntas que geram
informação e movimentam o diálogo colaborativo. (ALMEIDA, 2014)

8
Concentrar-se em interesses e não em posições é uma técnica de negociação
do Projeto de Negociação de Harvard, significa que aquilo que é manifestado
em um conflito representa apenas o conflito aparente, quando na verdade
o conflito real está obscurecido. O conflito real é traduzido pelos desejos,
necessidades e expectativas. Por trás de posturas antagônicas existe sempre
interesses comuns, especialmente quando se trata de relações continuadas,
como é o caso dos relacionamentos familiares. (URY e FISHER, 1922-2014)

104  Patrícia Rodrigues Tomaz • Dayse Cristina Soares Feitosa Rodrigues


Juliana Sales e Mendes
concluindo que algumas expressões são universais, bem como todos
temos gatilhos emocionais, alguns, inclusive, podemos arrefecer, a
fim de que consigamos modificar o que nos deixa emocionados ou
nos tornar mais conscientes acerca de emoções específicas (EKMAN,
2003).
Partindo da compreensão que o ser humano é relacional, o
mesmo está inserido em redes sociais: vizinhos, trabalho, família,
etc. Portanto, o ser humano também é um ser social e possui
subjetividades diversas, que se amoldam em tramas interpessoais nos
grupos dos quais participa, da mesma forma que provoca mudanças
neste. Ou seja, seguindo o paradigma da complexidade, a dinâmica
entre as pessoas precisa ser compreendida em sua integralidade e
interdependência.
Desse modo, a contribuição da Sociologia para Mediação
Familiar é o conceito de rede social, que “é a soma de todas as relações
que um indivíduo percebe como significativas ou define como
diferenciadas da massa anônima da sociedade” (FRAGA et al., 2016,
p.155). Aqueles que são divergentes em um conflito necessariamente
carregam compreensões, valores e concepções advindas de suas redes
pessoais. Por esse motivo, o conceito de rede contribui para que haja
a normalização do conflito pelo mediador.
O conteúdo filosófico do qual a Mediação se conecta refere-se à
posição central que o homem ocupa. Nessa perspectiva, a construção
do consenso é iniciada através de uma escuta sem preconceitos, por
parte do mediador, bem como o estímulo ao processo reflexivo,
especialmente através de perguntas.

Inspirando-se no método socrático da maiêutica, a Mediação


busca estimular os mediandos a parir ideias através de suas
próprias reflexões. Atento à ordem dos discursos, mediadores
buscam evitar que o primeiro mediando a manifestar-se determine
unilateralmente o rumo do trabalho. (ROSENBLATT e MARTINS,
2016, p. 144).

“Em vez de aconselhar, pergunte.”, recomenda Vasconcelos


ao mediador quando estiver inserido no processo dialógico com
os conflitantes (2016, p.165). O autor refere-se à importância das
perguntas sem julgamento, que levarão aos esclarecimentos e às

O ENFOQUE TRANSDISCIPLINAR DA MEDIAÇÃO NA 105


RESOLUÇÃO DE CONFLITOS FAMILIARES
contextualizações, tudo com fito no processo reflexivo que as partes
possam desenvolver acerca do conflito real. Tânia Almeida reforça
esse entendimento:

O maior atributo que se espera das perguntas feitas na Mediação é


que possam promover reflexão – convidem à expressão e à decisão
sobre algo, após pensar a respeito com cuidado e critérios éticos
(que considerem o outro). A reflexão pode advir de perguntas de
diferentes naturezas, ou de qualquer atitude ou evento ocorrido
na Mediação. Sua eficácia guarda singular dependência com
algumas naturezas de processo mental (capacidade de abstração,
por exemplo) e com habilidades cognitivas. (ALMEIDA, 2014,
p.257-258)

A importância da reflexão, a fim de que haja a compreensão


acerca das emoções e dos afetos implicados em conflitos familiares,
é também atributo da Psicologia, outra ciência que representa fonte
riquíssima para a adequada compreensão e prática da Mediação.
Além do processo reflexivo, os estudos norteadores da
Psicologia são pulverizados em diversas técnicas da mediação.
É o caso da empatia, também conhecido como rapport, que é a
capacidade de estabelecer um acolhimento e nível de confiabilidade
entre mediandos e mediador, uma vez que este se mostra disponível
a compreender os contextos emocionais das partes, sem no entanto
fazer parte deles.
Ademais, a conexão da Psicologia com a Mediação de Conflitos
buscará emergir o que há por trás do conflito aparente, que são os
verdadeiros interesses, necessidades, sentimentos de cada interessado,
reconectando as partes em busca de soluções futuras. Nesse ínterim,
duas características da mediação na interface da Psicologia, segundo
Fraga, Mosquéra e Meyer, são anunciadas: revalorização pessoal das
partes e empoderamento:

E assim, o manejo positivo do conflito proporciona a revalorização


das partes, que consiste no fortalecimento da capacidade do
ser humano de enfrentar suas dificuldades, comprometendo-
se na reflexão, na decisão e na ação trazendo uma valiosa
oportunidade de crescimento e transformação e fazendo com
que ela identifique soluções adequadas dentre uma gama de

106  Patrícia Rodrigues Tomaz • Dayse Cristina Soares Feitosa Rodrigues


Juliana Sales e Mendes
alternativas existentes para a questão (...). O empoderamento,
enfim, conste exatamente nessa mudança de perspectiva, em
que se passa a responder positivamente ao conflito, usando as
oportunidade que ele representa de usar e transformar (...). Ele
confere aos sujeitos o sentimento de poder: poder de refletir,
poder de agir, poder de gerir, poder de decidir, enfim, poder sobre
as próprias vidas. (FRAGA et al., 2016, p. 152-153)

A mudança paradigmática presente na Mediação de Conflitos,


que busca fundamentos em conteúdos transversais, a partir de
variados saberes, a fim de que a condição humana seja compreendida
em sua complexidade, inclusive nos contextos adversariais, também
contribui para o enfoque Multiportas que o Direito, especialmente
o Processual, vem sedimentando, sobretudo a partir da edição de
três legislações emblemáticas: Resolução nº 125/2010 do CNJ, Lei nº
13.140/2015 (Lei da Mediação) e Lei nº 13.105/2015 (Novo Código
de Processo Civil).
Tais compêndios legais apresentam outras formas de resolver
conflitos que não seja apenas através da jurisdição, ou seja,
confere aos métodos consensuais de resolução de conflitos posição
de relevância, afirmação que se torna ainda mais cristalina se
observamos as normas fundamentais delineadas no Novo CPC, a
exemplo do art. 3º, §2º e §3º. O §2º aduz que “o Estado promoverá,
sempre que possível, a solução consensual dos conflitos”, ao lado
dele, o §3º aponta que “a conciliação, a mediação e outros métodos
de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes,
advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público,
inclusive no curso do processo judicial.”
O protagonismo dos métodos adequados de solução de
controvérsias é ainda mais perceptível quando se trata de questões
familiares. Em razão das idiossincrasias pertencentes a esse tipo de
conflito, o legislador andou bem ao definir a atividade mediadora
quando “preferencialmente nos casos em que houver vínculo anterior
entre as partes” (art. 165, §3º, CPC). Mirou mais longe ainda,
tornando imperativo o uso da mediação ou conciliação em conflitos
de família, conforme percebemos no art.694, o qual estabelece:
“nas ações de família, todos os esforços serão empreendidos para a
solução consensual da controvérsia, devendo o juiz dispor do auxílio

O ENFOQUE TRANSDISCIPLINAR DA MEDIAÇÃO NA 107


RESOLUÇÃO DE CONFLITOS FAMILIARES
de profissionais de outras áreas de conhecimento para a mediação e
conciliação”.
Ainda sobre o art. 694 do CPC, Duri e Tartuce promovem
uma reflexão assertiva acerca do mesmo, ao afirmarem que
referido mandamento “reconhece o valor da interdisciplinaridade
na implementação dos meios consensuais ao prever que o juiz deve
dispor do auxilio de profissionais de outras áreas de conhecimento
para mediação e a conciliação” (TARTUCE e DURI, 2016)
Seguindo essa cadência do diálogo com vários saberes, Muszkat
e outras trazem a experiência concreta no livro Mediação familiar
transdisciplinar: uma metodologia de trabalho em situações de conflito de
gênero, o qual relata o desenvolvimento de um projeto que contempla
um “conhecimento em rede que permite a integração de diferentes
paradigmas para atender necessidades diversas” (2008, p.49-50).
Trata-se do trabalho desenvolvido pela ONG Pró-Mulher,
Família e Cidadania (PMFC), desde 1977, que se dedica “à prevenção
e à redução da violência no âmbito familiar” (MUSZKAT, et al.,
2008, p.10), especialmente na população de baixa renda. O método
trabalhado abrange várias etapas de atendimento que, por sua vez,
congregam vários saberes:

A mediação familiar transdisciplinar, como o próprio nome diz,


compreende como primeiro requisito a formação da equipe
multidisciplinar, com várias competências que se complementam,
oferecendo à clientela uma assistência integral (...). A análise e
a própria configuração do conflito dependem da integração
transversal de visões de diferentes disciplinas, estando, assim,
fora do alcance ou da percepção de uma só especialidade
profissional. A mediação familiar transdisciplinar requer,
portanto, a integração do Direito, Psicologia, Serviço Social e
Ciências Sociais. (MUSZKAT et al., 2008, p.48-49)

No contexto prático, a metodologia empreendida pela


ONG PMFC demonstra como é possível vislumbrar a mediação
transdisciplinar nas demandas que envolvem dissensos familiares.
Arrefece os corações ter conhecimento de práticas que ressignificam
conflitos a partir de um olhar amplo da dimensão humana e, para
tanto, apoiando-se em saberes diversos que essencialmente se
ocupam do homem.

108  Patrícia Rodrigues Tomaz • Dayse Cristina Soares Feitosa Rodrigues


Juliana Sales e Mendes
CONSIDERAÇÕES FINAIS

A condição humana revela diferenças que, por vezes, ocasionam


conflitos. Essas mesmas pessoas inseridas no universo familiar são
passíveis de controvérsias, que serão evidenciadas através dos conflitos.
Mas é na família, núcleo social presente desde os períodos mais
longevos, a qual sofreu mudanças paradigmáticas com o tempo, antes
fundamentada em patrimônio, agora baseada em afeto, o locus onde
os conflitos interpessoais repercutem de forma mais abrangente,
especialmente porque se tratam de relações continuadas.
A Mediação de Conflitos promove o entendimento dialogado,
a compreensão dos problemas com enfoque prospectivo, valoriza os
ganhos mútuos e busca compreender o humano em sua dimensão
complexa. Esse é o motivo pelo qual o estudo e prática da Mediação
deverá considerar o intercâmbio de ideias, teorias, saberes.
É, portanto, um meio adequado de resolver conflitos familiares,
especialmente considerando as peculiaridades de cada um dos
envolvidos na demanda e trazendo para “mesa de negociação e
comunicação” toda miscelânea de aportes teóricos, perpassando a
Antropologia, Sociologia, Filosofia, Psicologia e Direito. Sem excluir,
inclusive, outra ciência aqui não pontuada, vez que este é somente
um rol meramente exemplificativo.
O trabalho apontado alhures, desenvolvido na ONG Pró-
Mulher, Família e Cidadania (PMFC), é um relato possível acerca da
transdisciplinaridade da mediação familiar, cujo enfoque é tratar
as questões que ali se apresentam com suas individualidades e
considerando o manancial de saberes onde a Mediação irá navegar.

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