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Artigo Extensão e Formação Universitária
Artigo Extensão e Formação Universitária
FORMAÇÃO UNIVERSITÁRIA.
Introdução
Iniciamos esse artigo com uma breve contextualização do ambiente acadêmico em que as
atividades de extensão e de incubação de EES estão inseridas. Fundamental compreender, na
realidade da universidade pública brasileira, a atuação dessas incubadoras como projetos de
extensão, e a relevância da Economia Solidária, enquanto um segmento de atuação político-
acadêmica. De modo transversal referenciamos o papel social da universidade e o seu aspecto
contraditório, que historicamente sempre foi compreendida como espaço de reprodução do
“establishment” de um lado, e, por outro lado, o lugar legitimado de contestação dessa ordem
social.
Desde o seu surgimento, o ensino superior no Brasil sempre foi marcado por um modelo
colonialista, necessário à formação das elites eclesiásticas, militares ou da aristocracia agrária.
Nos referimos aos colégios jesuítas, aos cursos em escolas e institutos isolados que
predominaram no Brasil até o início do século XX, uma vez que, no formato de instituição
universitária, nada foi implantado na “Terra Brasilis”, ao longo do período colonial, do império
ou mesmo no início da república.
Cunha (2007) explica essa expansão como uma resposta ao aumento da demanda
ocasionado pelo deslocamento dos canais de ascensão social das camadas médias e pela própria
ampliação do ensino médio público, bem como pelo alargamento do ingresso na universidade
decorrente do processo de equivalência dos cursos técnicos ao curso secundário.
No período, entre 1946 a 1964, também ocorreram intensas lutas por reformas sociais e
políticas que permitiram redirecionar o processo de desenvolvimento nacional (as chamadas
reformas de base). No campo da educação dois novos atores coletivos protagonizaram os debates
e marcaram as discussões para aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação em 1961: a
comunidade científica organizada e o movimento estudantil. Mesmo com pouco sucesso,
lutavam em defesa do ensino público, do sistema universitário como modelo antagônico às
escolas isoladas, em favor da modernização da carreira universitária com a extinção da cátedra e
a luta em desfavor do caráter elitista da universidade.
A partir de 1964 se instala no Brasil o governo militar e com ele uma série de mudanças
no sistema de ensino superior empreendida pela reforma universitária de 1968, que, no olhar de
Anísio Teixeira, atendeu unicamente à dimensão mais técnica, por se limitar apenas a uma
“reestruturação da maquinaria organizacional e administrativa da universidade” (TEIXEIRA,
1989). Outra característica nesse período foi a forte expansão do ensino superior privado. Sob a
influência direta dos acordos MEC-USAID, os militares colocaram a Universidade a serviço da
produção do capital monopolista, esvaziando a proposta de reforma universitária da sua
dimensão política.
Permanecerá aqui o questionamento para um novo debate, que se afasta do escopo deste
artigo. Se a expansão e suas políticas associadas e os projetos pedagógicos inovadores,
implantados durante o período de 2003 a 2015 nas universidades públicas, garantiram a
democratização do acesso ao ensino superior, a permanência do extrato social incluído e ainda
mais, se essas políticas refletiram nos processos formativos para cidadania e para à tão aspirada
justiça social.
As sociedades globais cada vez mais convivem com as desigualdades sociais e a falta de
oportunidades para grandes contingentes populacionais, especialmente para a juventude. No caso
do Brasil, que ainda se ressente das práticas colonialistas do passado e atuais, e do atraso de suas
elites, trabalhar com afinco pela educação para que as novas gerações tenham acesso também ao
ensino superior qualificado não é suficiente.
Essa terceira crise que dominou a atenção das políticas educacionais nos últimos anos
resulta da crise financeira do Estado e seu consequente descompromisso crescente com o
financiamento público da universidade. A lógica neoliberal global se instala e cresce a partir dos
anos 80, ampliando ainda mais a privatização do ensino superior e a sua transnacionalização,
aprofundando a crise financeira das instituições públicas. Como consequência, certamente não a
única, a universidade é obrigada a competir no emergente mercado de serviços universitários,
dando origem, ao nosso ver, à privatização dos serviços de ensino e pesquisa e da extensão
utilitarista, associada a parcerias com grupos capitalistas nacionais e internacionais.
A obtenção dos dados que compuseram o material principal dessa investigação ocorreu
por meio de uma pesquisa qualitativa, utilizando a entrevista semiestruturada, com uso de um
roteiro orientador contendo 9 (nove) tópicos referentes à extensão universitária, incubação de
empreendimentos solidários e formação acadêmica.
As entrevistas foram gravadas para que não se perdessem nenhuma informação que o
entrevistado espontaneamente revelou, bem como para se obter, juntamente com as palavras, a
emoção e/ou sentimento revelado. Para o processo analítico interpretativo, cada entrevistado
recebeu um código de identificação que denominamos por (E1; E2...até E15). Os relatos foram
transcritos e qualitativamente analisados num movimento de contextualização, comparação e
crítica, para reconhecimento das expressões e elementos de conteúdo similar, e identificação das
ideias e aspectos comuns.
Resultados obtidos
Os resultados obtidos são apresentados em forma de seis indagações (ou categorias), para
melhor ordenar e organizar os dados empíricos produzidos nas entrevistas, a partir das narrativas.
Resumidamente, procurou-se explorar a importância da articulação da extensão com o ensino da
graduação, enquanto possibilidade extracurricular no âmbito da universidade e sua relevância
para a formação pessoal e profissional. Vamos a elas:
Eu não consigo me ver muito num laboratório, eu preciso de resposta [...] com a extensão eu
consigo ver que eu estou dando retornos concretos, eu consigo ver a situação na prática,
então eu me sinto mais motivada (E2).
Outra motivação que não foi ocultada nos depoimentos, foi o benefício do auxílio
financeiro (bolsa), como suporte a sustentação econômica dos estudantes. O que revela a
importância dos programas e projetos governamentais de apoio a extensão, suplementar a uma
política pública de permanência dos mais empobrecidos nas universidades, sem a intenção de
aqui, com essa afirmação, defender a substituição da política de financiamento da assistência
estudantil.
Neste item, observou-se que a maioria dos estudantes selecionados tiveram uma
participação ativa, seja como estudante, agente comunitário ou profissional, em diversas
experiências anteriores, inserindo-se em uma multiplicidade de atividades e projetos de natureza
extensionista. Correspondem desde estágios de vivência, participação em coletivos
independentes, à vinculação em projetos institucionais de pesquisa e extensão, dentro e fora da
universidade, vivenciando nas comunidades as suas realidades e contradições. Vejamos o que nos
revelam os excertos narrativos transcritos abaixo.
Eu participei do projeto “Mais mercado” também. Eu fiquei nove meses no projeto (E8).
Foi no PET que eu comecei no seguimento de extensão e lá a gente fazia várias atividades
extensionistas em escola e em comunidades (E6)
Já tive experiências anteriores com avaliação das políticas públicas do estado da Bahia que aí
foi um projeto do governo do Estado junto com a UFRB (E2).
Em parte, sim porque tem ainda algumas disciplinas que não faz esse diálogo com o campo e
muitas informações que a gente precisa para trabalhar no campo, a gente tem que buscar
fora. Aí nesse ponto a Incubadora te abre essa porta, esses projetos que estão sendo
desenvolvidos te abre um leque de oportunidade (E1).
[...]. Então a gente pode pôr em prática os conceitos que a gente ver em sala de aula, então
vou conseguir fazer muito a ligação com os conteúdos e a prática (E8).
Porque a gente quando está lá na sala de aula a gente acha que o que está passando lá não vai
conseguir encaixar cá na nossa realidade, mas a gente consegue sim (E5).
Destas revelações podemos deduzir que para a maioria destes educandos houve ali, uma
aplicação direta dos conceitos e técnicas que a teoria explicita em sala de aula. Pode-se também
inferir que os estudantes experimentaram um trabalho de produção e construção do
conhecimento, confrontando o que os livros descrevem com o que a realidade apresenta.
Entretanto, é justo concluir que, em seus relatos aparecem outras dimensões que não se limitam à
absorção de teorias e técnicas, mas também, compreende outros aspectos da dinâmica social dos
grupos envolvidos.
É nesses termos que podemos dizer que a aprendizagem é um processo complexo, que
não pode prescindir de alguns referenciais indispensáveis. No contexto deste trabalho, como
explicita Pedro Demo, a aprendizagem se materializa na intermediação e ambiência humana, na
sua complexidade e experiência histórica e cultural. Para este autor todo processo de
aprendizagem, age de modo reconstrutivo e político, mesmo aqueles de caráter instrucionista,
ainda dominante na esfera universitária (DEMO, 2001, p. 310-311).
[...] a gente mesmo sendo de movimento é muito mais teórico quando a gente fala de
coletivo do que a prática e aí lá eu estou tendo que aprender na prática o que é trabalhar e
lidar com o coletivo (E2).
[...] e eles fazem a conta do jeito deles e a gente tentou explicar isso a eles, que o interessante
é eles saberem onde está indo aqueles gastos (E7).
[...] a gente vem com a teoria do ideal e encontra ali o real e faz o possível. Então tem essa
troca de conhecimento (E1).
[...]. elas têm um conhecimento de como colher a fruta, de como fazer todos os
procedimentos, então nisto a gente já aprende juntos, é uma troca. Eu vou com os
formulários, mas eu aprendo mais com elas do que eu mesma (E11).
Eu particularmente, aprendo muito com a comunidade. Porque assim, eu aprendi muito que a
gente não tem que ir para lá impor. A gente tem que ir construir junto com eles, porque é a
partir disso a gente aprende e eles também aprende muito com a gente. (E5).
Uma das dificuldades mais externadas pelos estudantes se refere ao deslocamento até as
comunidades. Seja pela distância (a maioria se localiza na zona rural), dificuldade de acesso ou
pela precariedade do transporte oferecido pela instituição.
[...]. A maior dificuldade que eu digo nesse momento da universidade está sendo o
deslocamento (E6)
Acho que a principal dificuldade nossa é o acesso a essas localidades. Sempre tem que ter
alguém do município para levar gente porque é de difícil acesso (E9).
A dificuldade que a gente tem aqui é chegar até comunidade. Porque é distante, são
comunidades distantes aqui do município (E5).
Outro aspecto salientado pelos estudantes diz respeito a presença dos professores no
acompanhamento das atividades nas comunidades, a despeito da carga horária do professor e de
suas múltiplas tarefas acadêmicas.
[...] Eu sinto falta muito, eu sei que os professores são muito ocupados, são muitos grupos
para eles acompanharem. Mas eu sinto falta dessa questão da presença maior dos
professores. [...] A universidade deveria criar no calendário, algumas datas específicas para
que os professores pudessem estar indo a campo (E12).
[...] trago novamente a oportunidade de fazer uma crítica a universidade as condições que a
universidade não dá aos professores para poder fazer o acompanhamento dos alunos no
tempo comunidade (E13).
Neste ponto, que consideramos o mais central deste trabalho, sem ser necessariamente o
mais importante, pretendemos oferecer caminhos para uma reflexão acerca da potencialidade da
experiência de extensão universitária, na sua característica peculiar de ensinar e aprender,
dirigida a formação emancipatória de sujeitos, aqui particularizada para estudantes universitários.
Vimos ao longo da elaboração desse texto, as tensões internas e externas, provocadas nos dias de
hoje pelo debate sobre o papel social da universidade como bem público. Esta acepção, está
permeada de pressões e confrontos, desde que a sua hegemonia na produção de conhecimento, e
a sua legitimidade perante a sociedade, foram arguidas, reformadas ou simplesmente perdidas.
Acreditamos que dentre as ações necessárias a serem empreendidas para mitigação destas
crises, se encontra o modo de se promover a formação universitária, tendo clara a definição dos
sujeitos políticos desta “transformação”. Um processo formativo que considere as subjetividades
e a emoção, que abdique da hierarquização dos saberes e onde a experiência não seja silenciada.
A minha percepção é que essa questão mesmo de você se tornar um profissional e de dar um
retorno para a sociedade, para seu entorno, esse tipo de discurso só existe em professores que
trabalham com extensão (E1).
Eu acho que as atividades extracurriculares, falando especialmente de mim, ela salvou minha
vida (E2).
Acho que a principal, é que eu sou uma pessoa mais preparada profissionalmente. Tenho
muito para aprender ainda, mas acho que todos os projetos contribuíram demais na minha
formação. De saber mediar conflitos, saber lidar com diferentes tipos de pessoas, diferentes
tipos de grupo, diferentes pensamentos (E3).
Quando a gente vai para a realidade, que a gente passa a conhecer outras realidades,
conhecer outras situações que são diferentes das nossas, a gente passa a ver que a teoria meio
que fica um pouquinho de lado (E4).
O projeto mudou a minha forma de pensar, em sentido de que, eu achava que eu não tinha
conhecimento (E5).
[...] me fez ver que a gente precisa reconhecer essa sociedade que a gente está inserida,
compreender essa sociedade que a gente está. Saber quem são essas pessoas, saber que as
pessoas têm direitos na nossa sociedade e que em grande parte não são alcançados por esses
direitos. [...] Com certeza eu não me formaria se não tivesse participado desse projeto. O
trabalho na comunidade amplia os olhos das pessoas, porque ele abre esse olhar, desperta. A
gente aprende uma coisa, a respeitar o outro (E9).
Impacto muito positivo. Porque a gente sai dessa formação só académica, mas a gente tem a
formação política, a formação social, a formação ambiental (E13).
Considerações Finais
O objeto investigativo principal deste trabalho foi refletir sobre o papel da extensão e os
seus impactos na formação universitária. Obviamente, não teve a pretensão de ineditismo, nem
tão pouco de aprofundamento teórico-crítico da temática principal. Na verdade, partiu do nosso
convencimento empírico de que a formação emancipatória de estudantes universitários passa por
uma maior inserção na extensão. Esta convicção resulta da nossa experiência ao longo de 34
anos de docência em universidades públicas, a maioria deles dedicado a extensão.
É notório que esse modelo formativo, implicado na função social da universidade, vem de
modo crescente, sendo questionado por diversos segmentos da sociedade, em particular pelos
movimentos sociais, que travam uma discussão sobre a finalidade dessa incumbência da
universidade, seus métodos, conteúdos, e consequentemente, o traço final dos que nela são
educados e formados. Esta questão deriva do tipo de relação que se tem estabelecido entre a
universidade e a sociedade ao longo da sua história, mas que ganha novos contornos diante dos
desafios atuais que essa instituição tem se confrontado neste novo milênio.
Decerto que muitos esforços têm sido empreendidos por uma fração de professores,
professoras e estudantes, ainda restritos àqueles comprometidos com as lutas sociais e populares,
em articular uma aproximação dialógica da universidade com a comunidade, e mais tenuamente
no sentido inverso, legitimar a ocupação dos espaços universitários pela comunidade. Isto tem
ocorrido predominantemente no campo e nas práticas da extensão, dando um novo significado ao
papel social da universidade, em particular, na construção de saberes, de tecnologias e inovações,
na troca permanente entre os sujeitos deste processo.
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