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Monumental I Dade
Monumental I Dade
E PODER
CRISTIANE MOREIRA RODRIGUES*
Introduzindo o tema
Uma primeira dificuldade que se nos apresenta quando buscamos informações acerca dos
conceitos de monumento e monumentalidade é a escassez de uma bibliografia que nos ofereça
estudos amplos e sistemáticos sobre o assunto.
Apesar de a monumentalidade nas cidades ser percebida ou descrita por vários autores que
tratam de uma historiografia urbana, como Lewis Mumford (1982) e Leonardo Benevolo (1983),
entre outros, ela raramente é tratada de forma teórico-conceitual. Mesmo sendo um fenômeno
universal, presente tanto nas cidades reais quanto nas cidades idealizadas das utopias e dos planos
não realizados, a monumentalidade em si, como opção por um modelo urbano e como elemento
denotador de significados políticos, econômicos e sociais, raras vezes foi o escopo de tratamentos
teóricos diretos e sistemáticos.
Apenas um pouco mais acessível é a bibliografia sobre monumentos. Enquanto o substantivo
concreto “monumento” ainda é definido e analisado por alguns autores, o substantivo abstrato
“monumentalidade” geralmente tem seu significado derivado do primeiro, como algo que esteja
implícito ou óbvio. Note-se que também os dicionários, grandes definidores de palavras e
expressões, se limitam aos significados de monumento e monumental, enquanto a palavra
monumentalidade sequer é mencionada.
De certo que o conceito de monumento configura-se como fundamental e útil para
alcançarmos uma definição e um entendimento maior sobre a monumentalidade. Porém, como
veremos adiante, a monumentalidade, categoria abstrata, ao mesmo tempo que é inerente ao
monumento (categoria concreta), também o transcende. Estando presente no monumento, mas
indo muito além dele, a monumentalidade mostra-se complexa se deixarmos de nos limitar à
realidade empírica imediata e começarmos a nos indagar, por exemplo, sobre o seu significado na
construção do espaço, sua origem e seu papel social na história. Realmente a monumentalidade
pode até parecer, mas não é óbvia, estando aí talvez a razão de seu limitado tratamento teórico.
Recentemente podemos perceber uma maior atenção prestada por parte de alguns cientistas
sociais (entre eles os geógrafos) a temas relacionados a monumentos e à monumentalidade.
Vindos sobretudo no bojo da chamada “nova geografia cultural”, artigos como os de Westcoat Jr.
(1994), Withers (1996) e Boholm (1997) deixam entrever um campo de estudo que finalmente
começa a ser investigado. No entanto, esses estudos, de modo geral, não chegam a realizar um
tratamento conceitual muito profundo, limitando-se à análise de casos pontuais. Portanto, são
demonstradores, por um lado, da importância do papel que a monumentalidade e o monumento
apresentam na construção do espaço como campo de significações, e, por outro, são ilustrativos
da pertinência de um tratamento mais aprofundado sobre os dois conceitos.
Cabe-nos, aqui, lançar uma perspectiva geográfica sobre esses conceitos, já que, afinal, tanto o
monumento quanto a monumentalidade são formas passíveis de espacialização, encenando,
portanto, uma relação dialética com as sociedades que as conceberam.
1 A intensificação da valorização dos monumentos no século XIX está vinculada a uma concepçao evolucionista da história, bem
característica daquele século. É interessante notar como nesse período. paralelamente à forte idéia de progresso, que gerava uma
visão evolucionista e desenvolvimentista da humanidade rumo ao futuro, foi feita também uma revalorização de fatos e objetos do
passado.
relativo, que valoriza cada uma das épocas históricas e os monumentos singulares delas
derivados, mesmo os aparentemente mais banais (como um simples documento de venda de um
cavalo, como exemplifica Riegl): tratar-se-iam dos “monumentos não intencionais” repletos de
valor histórico intrínseco, uma vez que trazem em si indícios dos costumes sociais, jurídicos,
políticos e econômicos de uma época, sem falar da própria diferença no uso da linguagem, da
forma da escrita e das técnicas empregadas na confecção de seus materiais. Englobando tanto os
monumentos intencionais quanto os não intencionais é identificada uma terceira classe de
monumento ― os monumentos antigos ―, conjunto de “todas as criações do homem,
independentemente de sua significação original, contanto que elas testemunhem a evidência de
ter suportado a prova do tempo” (p.47).
Para Riegl, então, todos os tipos de monumentos são dotados de um valor de rememoração,
seja ele intencional ou não, e seu maior valor estaria na sua antigüidade, na sua capacidade de
resistência à ação do tempo. O autor acaba direcionando seu estudo sobretudo para os
monumentos históricos não intencionais, talvez por considerá-los muito mais numerosos,
diversificados e interessantes para o historiador, o qual passa a atribuir valores subjetivos aos
monumentos ao escolher com qual(is) trabalhará. Mas aqui também podemos identificar uma
diferença entre as amplitudes dos conceitos de Riegl e de Le Goff: enquanto este último ressalta a
manifestação do poder no documento/monumento, o primeiro, ao não questionar o porquê da
sobrevivência de certos monumentos em detrimento de outros, negligencia a manifestação
implícita ou explícita do poder no monumento.
Ainda assim podemos nos utilizar de seus comentários acerca daquela classe de monumentos
por ele denominada “intencional”. Talvez justamente pelo fato de não estar muito preocupado
com o caráter ideológico do monumento, ele pouco discorre sobre a classe de monumentos por
ele denominada de intencional, parecendo considerá-la demasiado limitada quando uma tamanha
gama de outros monumentos encontra-se à espera de pesquisadores para investigá-la. No entanto,
para a investigaçao do monumento e da monumentalidade como uma feição urbana repleta de
significações, o traço intencional do monumento ― responsável pelo início de sua criação desde
as épocas mais remotas da história humana ― nos é interessante. Segundo Riegl (p.35),
Por monumento, no sentido mais antigo e verdadeiramente original do termo, entende-se uma obra
criada pela mão do homem e edificada dentro do fim preciso de conservar sempre presente e vivo na
consciência das gerações futuros a lembrança de tal ação ou tal vida (ou as combinações de uma e de
outra).
o imaginário social.
Os avisos instrutivos simbolizados no monumento, por sua vez, são ditos através de um
monólogo: o monólogo do poder. Erigido como símbolo transmissor de ideologias dominantes na
história das sociedades, o monumento, como poder transmutado sobretudo em obra arquitetônica
ou escultural, fala por alguns poucos dominantes para uma maioria dominada, da qual a única
resposta que se espera deve vir sob a forma de respeito, admiração e até mesmo medo.
O monumento encerra em si uma monumentalidade, a qual, por sua vez, é transcendente, pois
ela não é só mais um objeto presente no espaço urbano; ela é idéia, concepção, crença: objetivo
simbolizado em objeto-símbolo, mas capaz de viajar no imaginário. Os monumentos diversos
(esculturais: em homenagem a pessoas e a fatos históricos; ou arquitetônicos: edifícios, torres,
praças, avenidas e planos urbanísticos inteiros) são a própria espacialização de uma idéia, de uma
concepção de mundo que procura tanto sua auto-afirmação quanto a subjugação de outras idéias e
concepções destoantes.
Espaço, arquitetura e poder
Se, como demonstra David Harvey (1992), o controle do espaço (assim como do tempo) por
parte das classes dominantes tem servido como fonte de poder social, temos também que o
espaço concebido pelas mesmas pode constituir-se um espaço monumentalista, ostentador de
grandeza, riqueza e, portanto, de poder. Inclusive esse mesmo autor, em sua obra “The Urban
Experience” (1989), trata de um caso tópico, mas bastante ilustrativo, no capítulo intitulado
“Monument and Myth”, sobre a história da apropriação, por parte de monarquistas e católicos
conservadores, de um espaço marcado pela luta e resistência dos comunistas franceses durante a
revolução de 1870-1871, feita através da construção da Basílica de Sacré-Coeur em Montmartre.
A paisagem parisiense ganhava um monumento panóptico, a fim de não deixar dúvidas sobre
quem ganhara a batalha.
Outro autor, Albert E. Elsen (1975), também vincula monumentalidade e autoridade em seu
artigo “La arquitectura de la autoridad”, ao analisar detalhadamente a riqueza material e,
sobretudo, simbólica de obras e elementos arquitetônicos diversos (como portas, escadas, janelas
e outros), construídos e utilizados em épocas históricas diferentes, mas que apresentam em
comum seus valores propagandísticos. José Mauricio Alvarez (1991), por sua vez, no ensaio
“Arquitetura Monumental e Vontade de Potência” mostra que a carga simbólica da arquitetura
monumental tem servido como publicidade para o poder de governantes e ideologias dominantes,
havendo, assim, uma “(...) coordenação para permitir o triunfo da articulação entre a vontade, a
forma e seu significado” (p.10). Este autor, aliás, se inspira em Nietzsche, que considerava a
arquitetura “(...) uma espécie de eloqüência do poder” (NIETZSCHE apud ALVAREZ, 1991:
13). Também Adrian Tinniswood (1998) apresenta o desejo de expressão de poder via arquitetura
monumental por governantes de todos os períodos, chegando até o final do século XX, em que,
mais do que os governos, são as grandes corporações empresariais as responsáveis pelas
construções mais expressivas.
A estreita vinculação entre arquitetura, espaço e poder é notada ainda por Michel Foucault
(1990: 12), estudioso incansável das práticas e relações de poder, para quem
Seria preciso fazer uma ‘história dos espaços’ ― que seria ao mesmo tempo uma ‘história dos
poderes’ ― que estudasse desde as grandes estratégias da geopolítica até as pequenas táticas do
habitat, da arquitetura institucional, da sala de aula ou da organização hospitalar; passando pelas
implantações econômico-políticas (grifos do autor).
O poder encontra-se, assim, espacialmente representado nos mais diferentes níveis de escalas,
desde o global até o pontual. Chama a nossa atenção sobretudo a escala urbana, nível privilegiado
de disposição de objetos arquitetônicos e de planos organizadores do espaço, denotadores de
mudanças políticas, sociais e econômicas importantes.
Sobre a utilização da arquitetura pelo poder, Foucault nota as diferenças qualitativas de ambos
ao comparar uma sociedade estruturada em relações de tipo feudal (vigente ainda até o século
XVIII) com a sociedade capitalista. Analogamente as mudanças ocorridas nas formas de se
exercer o poder, teríamos a utilização de um tipo diferente de organização espacial e de
arquitetura (FOUCAULT, 1990).
Segundo aquele autor, o poder exercido até o séc. XVIII ter-se-ia baseado na teoria político-
jurídica da soberania, reativada a partir do Direito Romano, que se referia basicamente “à
mecânica geral do poder, à maneira como este se exercia, desde os níveis mais altos até os mais
baixos (...). Com efeito, o modo como o poder era exercido podia ser transcrito, ao menos no
essencial, nos termos da relação soberano-súdito” (1990: 187). A este poder soberano, interagente
com um poder eclesiástico, teria correspondido uma arquitetura que
(...) nas declarações desta sorte que abundaram nos manifestos dos anos 20, a palavra monumento
era usada num sentido limitado e muito literal, e a natureza simbólica da composição monumental não
foi de maneira alguma descartada na prática. O simbolismo estava afixado a um novo estilo, e a novos
planos para edifícios. Existe bastante perspectiva agora para entender que o trabalho emergente dos
anos 20 não foi de modo algum puramente funcional [...] mas tinha, em todas as suas escolas e
localidades, um forte caráter de simbolismo.
Era antes a transferência dos empenhos criativos do arquiteto para longe das construções
dedicadas a príncipes e soberanos para aqueles dirigidos a amplos propósitos sociais ― escolas,
projetos habitacionais, comunidades democráticas, fábricas ― que estava implicada nas declarações
reprovadoras sobre a monumentalidade (CREIGHTON, idem).
Mas logo a discussão sobre a monumentalidade emergiria, talvez tentando justificá-la, já que
não havia sido possível mesmo evitá-la.
Thomas H. Creighton, num livro que analisa as diferentes propostas para a edificação de um
memorial a Franklin Roosevelt, surgidas a partir de um concurso realizado no início da década de
1960, identifica três definições possíveis para a palavra monumental.
Uma primeira e mais limitada definição para monumental seria a de uma característica
“pertencente a, apropriada para, ou ocorrente num monumento [...], restringindo o caráter da
monumentalidade a um edifício, coluna, pedra, ou similar, erigidos em memória dos mortos, ou
de uma pessoa, evento, etc.” (p.7). Uma segunda e mais ampla definição, segundo Creighton,
coloca a monumentalidade num sentido mais amplo de algo “servindo como um monumento, um
memorial” (idem; grifos do autor), não um monumento “puro” para pessoas ou eventos, mas
mesclado, embutido em fachadas de edifícios, centros comunitários e jardins.
As duas primeiras definições deixam-nos entrever uma diferenciação feita entre a simples
concretude do monumento dirigido à memória de pessoas ou fatos históricos e a
monumentalidade presente em obras arquitetônicas diversas, que “serve como monumento, como
memorial”. O autor não aprofunda uma explicação sobre esses dois significados, mas enquanto na
primeira definição o monumento está restrito a um objeto concreto destinado à preservação da
memória coletiva (significado que se assemelha ao que Riegl chama de monumento intencional),
na segunda o monumento aparece com um conotação um pouco mais explícita de algo que
simboliza, que significa. Porém, em nenhum momento é citado que o monumento (seja em um ou
outro significado específico) e a monumentalidade são elementos (por um lado concreto e por
outro abstrato) destinados sobretudo à memória preservadora ou à simbolização de um poder, e,
portanto, mantenedores e simbolizadores de idéias e valores impressos no espaço, muitos dos
quais têm sido marcados pela vontade de atravessar o tempo.
A segunda definição se alia à terceira em sua subjacente “desideologização” do monumento e
da monumentalidade. Nessa, a monumentalidade faz parte “da natureza de um monumento, daí
este ser sólido e duradouro, impressionante” (p. 8, grifo do autor). A “naturalização” da
monumentalidade presente nos monumentos não deixa mais dúvidas sobre a simplicidade e
mesmo sobre a (proposital?) insuficiência com que conceitos tão importantes para a construção
das cidades, como o são os de monumento e monumentalidade ― uma vez que nelas encontram-
se presentes quase sistematicamente ― têm sido tratados.
A aceitação da “monumentalidade por decorrência” (p. 8) teria acabado com a rejeição, por
parte dos modernistas, da expressão “monumento moderno” antes considerada um paradoxo por
contrapor uma temporalidade passada (voltada à preservação da memória) e uma temporalidade
atual, voltada para o futuro do progresso social, econômico e científico-tecnológico. O termo
“monumento moderno” ampliava inclusive sua significação (já mesmo antes, no final do século
XIX), não se restringindo mais às obras arquitetônicas ou esculturais, passando a ser aplicado
também às obras mais representativas da engenharia, como represas, usinas hidrelétricas, pontes,
portos e outros objetos espaciais.
Esses monumentos da engenharia (e também os da arquitetura) eram considerados diferentes
dos monumentos tradicionais. Enquanto esses últimos eram vistos como tendo sua “grandeza e
dominação” voltadas “para o benefício da realeza, da nobreza e do poder” (terrestre ou celeste),
os primeiros estariam baseados num “espírito democrático”, como afirmava, por exemplo, o
primeiro presidente do Tennessee Valley Authority (TVA), Arthur E. Morgan (apud
CREIGHTON, idem). O caráter ideológico do monumento é atribuído, aqui, apenas àqueles
ligados à nobreza e à realeza, classes dominantes por vários séculos de certo, mas suplantadas nos
últimos pela burguesia. Os “democráticos” monumentos modernos (para não dizer burgueses) são
considerados como obras para o benefício de toda a sociedade, embora tenham se transformado
em instrumentos poderosos tanto para o controle do espaço, para o aumento dos lucros, como
também para a construção de um imaginário social que vincula o progresso social ao econômico.
A naturalização do monumento e seu novo “espírito democrático”, isto é, sua mais recente
desideologização, geraram, então, “(...) a tese de que a monumentalidade era simplesmente uma
questão de escala, a adição de qualidades emocionais às funcionais, e um fator da hierarquia de
tipos e usos de edifícios” (CREIGHTON, p. 8).
Durante a década de 1940, a utilização da monumentalidade como instrumento de
demonstração de poder e de dominação (sobretudo pela Itália fascista e pela Alemanha nazista)
estava bastante clara, mas, mesmo assim, alguns arquitetos se reuniram em volta do objetivo de
busca de uma “nova monumentalidade”. E mais uma vez era buscada uma monumentalidade não
opressora, e também uma arquitetura que não se limitasse apenas à funcionalidade (como se
alguma vez ela realmente o tivesse feito), mas que fosse capaz de causar nas pessoas um
“impacto emocional”, fazendo-as se identificarem com o espaço circundante. Em 1949, o ar-
quiteto Matthew Novicki (apud CREIGHTON, idem) escreve que
o problema controverso da monumentalidade [...] não depende, de fato, de nenhuma forma, mas é
um problema de escala, [...] a monumentalidade, no sentido de contraste entre a arquitetura de
importância excepcional e o tamanho de um indivíduo, tem suas verdadeiras e eternas qualidades, da
quais o homem não deve ser privado.
Novicki dá tanta importância à escala da construção, que para ele a forma e o estilo parecem
menos importantes: a monumentalidade em si é colocada como uma necessidade, uma forma
primordial de interação do indivíduo com o espaço em que a comparação do observador com o
objeto observado/admirado deve proporcionar ao primeiro uma sensação de êxtase. Mas o espaço
monumental não deveria servir ao uso corpóreo, e sim a um uso simbólico: ele deve emocionar o
espectador, tal como um espetáculo cenográfico o faz.
Mas nem todos eram da mesma opinião que Novicki. Para outros arquitetos a “nova
monumentalidade” deveria estar imbuída de um caráter de representação coletiva, segundo eles,
própria dos tempos modernos. A monumentalidade do passado, especialmente a do século
anterior não era mais capaz de atender às necessidades de representação da nova sociedade que se
pretendia construir: a nova monumentalidade seria elemento fundamental de uma utopia que, na
verdade, já não era tão nova assim, tendo suas raízes nos séculos anteriores.
Em 1943, Sigfried Giedion, Fernand Léger e José Luis Sert (apud FRAMPTON, 1997: 270)
elaboram um documento que recebe o título de “Nove Pontos sobre a Monumentalidade”,
defendendo a elaboração de uma nova monumentalidade para as cidades. Vejamos cinco desses
pontos:
1) Os monumentos são marcos humanos que os homens criaram como símbolos de seus ideais,
objetivos e atos. Sua finalidade é sobreviver ao período que lhes deu origem e constituir um
legado às gerações futuras. Enquanto tais, formam um elo entre o passado e o futuro.
2) Os monumentos são a expressão das mais altas necessidades culturais do homem. Devem
satisfazer à eterna exigência das pessoas, que desejam ver sua força coletiva transformada
em símbolos. Os monumentos mais vitais são aqueles que expressam o sentimento e as
idéias dessa força coletiva ― o povo.
3) Os últimos cem anos testemunharam a desvalorização da monumentalidade. Isto não
significa que exista ausência alguma de monumentos formais ou exemplos arquitetônicos
que pretendam servir a essa finalidade; com raras exceções, porém, os chamados
monumentos dos últimos tempos transformaram-se em fachadas vazias. De modo algum
representam o espírito e o sentimento coletivo dos tempos modernos.
4) Um novo passo está à nossa frente. As mudanças do pós-guerra em toda a estrutura
econômica das nações podem trazer consigo a organização da vida comunitária na cidade,
que foi praticamente ignorada até o presente momento.
5) As pessoas querem que os edifícios que representam sua vida social e comunitária
proporcionem algo além da mera satisfação funcional.
A nova monumentalidade proposta pelos modernos deveria servir para fins mais
democráticos, populares, erigindo obras com as quais as comunidades urbanas se identificassem,
uma vez que as representariam, e não ao Estado centralizador. Daí também o desejo de
rompimento com a monumentalidade do passado, com uma monumentalidade simbolizadora de
poderes individuais ou classistas: os novos monumentos deveriam simbolizar as idéias e os ideais
de uma força coletiva popular.
Tal proposta suscita questões difíceis. Pois se a imbricação entre monumentalidade e poder foi
sempre constante, seria possível uma monumentalidade sem um caráter opressor ou manipulador?
E a monumentalidade realmente uma “necessidade cultural do homem”, ou dos governantes, das
classes dominantes e dos arquitetos que lhes servem?
Os novos monumentalistas, tomados por um ideal utopista de valorização da “organização da
vida comunitária na cidade”, acabaram, ainda, por cometer um erro comum entre vários utopistas
do passado: homogeneizaram “as pessoas que desejam ver sua força coletiva transformada em
símbolos”, e se esqueceram que as grandes encomendas arquitetônicas costumam vir da parte dos
governos e das grandes empresas, e que ambos constantemente tomam os seus interesses privados
como sendo os interesses da coletividade.
A oposição entre funcionalidade e monumentalidade nos parece algo muito mais forjado do
que real2. Isso porque por mais que se pretenda mais racional e menos simbolista, a arquitetura
moderna inicial nunca deixou a monumentalidade realmente de lado, e esta é sempre expressiva
― mesmo que seja uma expressão de frieza e distanciamento. Por outro lado, a própria eficácia
funcional pretendida pelos modernistas tem sido alvo de críticas (LEFEBVRE, 1963; SANTOS,
1988); uma ineficácia que muito se deve à transposição de modelos rígidos de planejamento para
escalas espaciais mais amplas, modelos que pretendendo-se tão funcionais acabam por mostrar-se
menos práticos e mais exibidores de uma técnica cujo narcisismo descambou, como não poderia
deixar de ser, para a monumentalidade.
À rigidez da arquitetura e do planejamento modernos vem se contrapondo, nas últimas três ou
quatro décadas, a arquitetura e o projeto (o termo planejamento perde espaço) ditos pós-
modernos. Considerando as obras modernistas repressivas, abstratas, feias, estéreis, antisociais e
expressivas de um autoritarismo arrogante, os arquitetos pós-modernos parecem não identificar,
no entanto, a monumentalidade de muitas dessas obras, ou o fazem, mas buscam um outro tipo de
monumentalidade própria e qualitativamente distinta. Diferenciando os pós-modernos dos
modernos, afirma Teixeira Coelho (1986: 69/70; grifos do autor):
(...) No lugar do desastre modernista, propõe-se um reencontro com formas arquiteturais presentes
na memória coletiva dos povos, formas retiradas da linguagem histórica da arquitetura, mas não tais
quais e, sim, retrabalhadas, reinterpretadas. No lugar da “máquina de habitar” (...) ressurge a noção
da arquitetura como monumento, monumento à vida, ao espaço: e a arquitetura da forma livre, a
arquitetura como festa.
(...) A arquitetura e o projeto urbano dessa espécie transmitem sobretudo um sentido de alguma
busca de um mundo de fantasia, da “viagem” ilusória que nos tire da realidade corrente e nos leve à
imaginação pura.
2 Nem mesmo a arquitetura praticada antes da moderna era puramente monumentalista. A despeito de todo simbolismo, já as obras
arquitetônicas antigas conjugavam com este utilidades práticas. Exemplos são os banhos imperiais romanos, o Coliseu e os
castelos medievais com suas ameias para defesa, descritos por ELSEN (op. cit.).
relação ao Movimento Moderno] não é dominante, nem tão radical assim, como muitos
pretendem”. Pelo contrário, pois num mundo globalizado em que a competição interurbana se
revela pela tentativa das cidades de transmitirem uma imagem positiva para os empreendimentos
econômicos,
(...) Tomar o popular como referência, ou a feição mais banal da sociedade de consumo são
iniciativas que têm o seu preço, como uma maior integração na ordem capitalista: não é fácil precisar
onde termina a ruptura (via de regra espalhafatosa) com o passado e principia a mera atualização.
Para bem ou para mal, a arquitetura obscena se encontra como um peixe dentro d’água em pleno
centro nevrálgico do atual estado de coisas (ARANTES, 2000).
Resumo: CIDADE, MONUMENTALIDADE E PODER. Este artigo pretende chamar a atenção para a
monumentalidade como uma estratégia utilizada de maneira renitente pelo Poder na construção do espaço urbano, fato
que, no entanto, nem sempre foi apontado. A fim de tornar clara essa relação entre monumentalidade e poder, a
pesquisa inclui os modos como historiadores e arquitetos (especialmente os modernos e os pós-modernos) têm
concebido as idéias de monumento e de monumentalidade.
Palavras-chave: monumentalidade urbana, poder.
Abstract: CITY, MONUMENTALITY AND POWER. This paper intends to attract attention to monumentality as a
strategy renitently used by Power in the construction of urban space, a fact, however, not always observed. In order to
make clear this relation between monumentality and power, the research includes the ways historians and architects
(specially the modern and post-modern ones) have been conceiving the ideas of monument and monumentality.
Keywords: urban monumentality, power.
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