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6 - Fluxos migratórios em fronteira – Como conciliar as

tensões internas com as necessidades dos refugiados?

Ações Estatais ou Políticas Públicas?


Fronteiras, Fluxos Migratórios e Política
Migratória
Temos a intenção de fazer um panorama geral sobre as ações estatais do Estado Brasileiro,
nas suas três esferas federativas, em relação aos fluxos migratórios internacionais
direcionados ao território brasileiro nos últimos anos 1.

2Num primeiro momento usamos a expressão “ações estatais”, e não políticas públicas, pois
é difícil entender tais atividades do Estado brasileiro como um conjunto ordenado e coeso de
condutas realizadas por entes estatais brasileiros com algum grau de coordenação. Afinal
quando pensamos em políticas públicas, no campo da teoria, tais ações do Estado devem
estar entrelaçadas em pelo menos três etapas: formulação, implementação e avaliação das
atividades (Kingdon and Thurber, 1984). Ao nos aproximarmos da realidade dos fluxos
migratórios brasileiros constatamos no mínimo uma baixa coordenação entre estas ações,
que geram situações das quais dificilmente poderíamos denominar como Políticas Públicas
propriamente dito.

 2 Citamos ao menos três movimentos significativos ocorridos nos últimos anos: a Coordenação de
Políti (...)

3Por outro lado, também é inegável que nos últimos anos alguns passos foram dados 2, ainda
com um baixo de nível de coordenação entre os entes de nosso pacto federativo, mas não
podemos deixar de apontar avanços institucionais e normativos, os quais pretendemos
analisar no decorrer deste texto. Mas antes de qualquer avanço, desde já apontamos que se
existem mudanças, estas se apresentam somente como reação a situações da realidade dos
atuais fluxos migratórios brasileiros. Portanto ressaltamos mais uma vez que os movimentos
dos entes estatais brasileiros, ao nosso ver, não se configuram como Políticas Públicas,
sendo muito difícil enxergarmos a existência de uma Política Migratória brasileira
propriamente dita, uma vez que quando tais ações acontecem são mais uma resposta a
episódios da realidade migratória do que intervenções estruturadas e coordenadas. O que
nos leva a um cenário no qual é muito difícil compreendermos os objetivos do Estado
brasileiro, ainda mais se pensarmos em ações e/ou programas governamentais de longo
prazo, pois o baixo grau de organicidade das ações voltadas para a população estrangeira
fixada no território brasileiro tornam tais objetivos muito difusos e pouco concretos para as
próprias populações beneficiadas, bem como para todos os outros agentes presentes na
realidade migratória brasileira (Araújo, 2018).

4Entendemos que os melhores exemplos deste contexto são o recente fluxo de haitianos e o
ainda mais atual fluxo de venezuelanos em estados da Região Norte do Brasil e os
movimentos que usaram as fronteiras terrestres nunca antes utilizadas por fluxos
migratórios significativos na história do Brasil.

 3 Em 2018 ocorreram eleições para Presidente da República, parte do Senado Federal, a totalidade da
C (...)

5Tais cenários migratórios, sem dúvida alguma, tornaram-se objeto de embates no debate
público brasileiro, seja através da grade mídia ou dentro de muitos gabinetes de gestores
públicos, trazendo, de forma inédita, o tema das migrações internacionais para o debate
eleitoral brasileiro que se desenrolou durante 2018 3.

 4 A presença da Venezuela no argumento desenvolvido por grupos políticos afinados ideologicamente
à d (...)
6Para sermos mais precisos somos obrigados lembrar que a presença do tema no debate
público brasileiro tornou-se mais corriqueiro desde ao menos a chegada do grupo haitiano ao
Brasil, que teve o início de seu fluxo por volta de 2010. Por outro lado, não podemos deixar
de mencionar que o debate em torno da chegada dos venezuelanos no Brasil assume outra
dimensão, pois é fortemente contaminado pelo acirramento do debate político-ideológico
instalado no Brasil desde ao menos as eleições gerais de 2014. Com a situação política e
econômica da República Bolivariana da Venezuela ganhando relevância inédita, ao estarem
presentes em argumentos de posições extremadas existentes nos pólos deste debate. Os
quais ora apontam o regime venezuelano como modelo para a esquerda brasileira, ora como
um perigo para a própria estabilidade política do Cone Sul, reservando aos seus fluxos
migratórios papel central em todos estes argumentos4.

 5 Os países que fazem fronteira com o Brasil são: Uruguai, Argentina, Bolívia, Peru, Colômbia,
Venezu (...)

7Destacamos, portanto, que a atual situação na fronteira brasileira com a Venezuela não é
um caso específico e conjuntural, na realidade temos já faz alguns anos um novo elemento
no contexto geral dos fluxos migratórios que tenham por destino o Brasil, principalmente se
lembrarmos da extensa tradição que o país tem em receber imigrantes como parte
importante de nossas dinâmicas demográficas. Afinal, as migrações internacionais
historicamente sempre se constituíram como um dos elementos centrais paras tais
dinâmicas, mas com nossas fronteiras terrestres, extensos limites territoriais que fazem
divisas com 10 países5, sempre ocupando uma posição secundária (e/ou irrelevante em
vários momentos e conjunturas históricas). Fato que não mais se sustenta nos dias atuais,
uma vez que as fronteiras terrestres brasileiras tornaram-se um dos principais meios para a
chegada de fluxos migratórios nas últimas décadas, mudança que começou a se
consubstanciar a partir do momento que grupos latino-americanos passam a ser os principais
responsáveis pela presença de estrangeiros em território nacional, com o início do deste
movimento populacional localizando-se em algum momento do decorrer das décadas de 60 e
70 do século XX (Silva, 1997).

 6 Em linhas gerais, apesar de no final de 2018, com a eleição do novo governo em outubro, estarem
oco (...)

8Assim durante o ano de 2018 assistimos os fatores acima relacionados (crise venezuelana,
acirramento ideológico no debate brasileiro, fronteiras terrestres como trajeto prioritário para
fluxos migratórios) amalgamarem-se, criando, do ponto de vista do Estado brasileiro, um
cenário bastante inquietante, fato inequívoco tanto para estudiosos da temática migratória,
para ativistas pelos direitos dos migrantes, bem como pelos gestores públicos atuantes em
órgãos do Estado brasileiro responsáveis pela gestão de fluxos migratórios 6.

 7 LEI Nº 13.445, DE 24 DE MAIO DE 2017, regulamentada pelo DECRETO Nº 9.199, DE 20 DE


NOVEMBRO DE 201 (...)

9As duas seções que seguem esta breve apresentação terão dois objetivos complementares
para iluminarmos um pouco o atual cenário migratório brasileiro. Na sessão I
demonstraremos as principais mudanças e inovações institucionais e normativas que tal
cenário vem experimentando nos últimos anos. Afinal em 2017 para surpresa de muitos
ocorreu a aprovação de uma nova legislação migratória no Brasil 7. Tal texto legal veio
substituir, depois de longos anos de debate entre especialistas, gestores e ativistas, o
denominado Estatuto do Estrangeiro (LEI Nº 6.815, DE 19 DE AGOSTO DE 1980). Nossa
intenção não será discutir a nova legislação e seus efeitos na realidade dos migrantes e
refugiados que compõem os fluxos atuais, afinal o texto legal vige há muito pouco tempo
para que tenhamos condições de fazer um balanço apropriado de suas consequências para a
cena migratória brasileira. O objetivo desta parte do texto será demonstrar que tal legislação
torna-se marco legal para uma realidade bastante complexa, com muitos nós e impasses
institucionais num ambiente de baixa coordenação entre os agentes que operam as ações
estatais. Apontamos desde já que tal ambiente está composto por instituições que agem
muitas vezes baseadas em avaliações pouco aprofundadas da realidade dos fluxos
migratórios, gerando assim uma série de ações estatais que, ao nosso ver, são pouco
consistentes e muitas vezes equivocadas.
10Lembrando mais uma vez que ao utilizarmos a expressão “ações estatais”, e não políticas
públicas, deve-se ao fato de ser difícil entender as atividades do Estado brasileiro em relação
aos fluxos migratórios como um conjunto ordenado e coeso de condutas realizadas por seus
entes algum grau de coordenação. Afinal quando pensamos em políticas públicas, no campo
da teoria, tais ações do Estado devem estar entrelaçadas em pelo menos três etapas:
formulação, implementação e avaliação das atividades. E ao nos aproximarmos da realidade
dos fluxos migratórios brasileiros constatamos no mínimo uma baixa coordenação entre
estas ações, que geram situações das quais dificilmente poderíamos denominar como
Políticas Públicas propriamente dito (Arretche, 2004; Souza, 2006; Kingdon and Thurber,
1984). Cenário que será discutido na seção II deste texto, momento no qual exporemos as
ações de pesquisa junto a uma escola pública da cidade de São Paulo dentro do projeto
“Brasil Migrante. Fluxos Populacionais, Políticas Públicas e Estruturas Estatais”, que se
desenvolve nos últimos anos pelo Grupo de Pesquisa e Estudos “Fluxos Migratórios na
Contemporaneidade”, que é parte integrantes do OIPP (Observatório Interdisciplinar de
Políticas Públicas) na Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da Universidade de
São Paulo (USP).

Legislação, normas e
instituições na cena migratória
brasileira
Desde o início da década de 1980 o fenômeno migratório em território brasileiro Brasil tem
ganhado maior visibilidade, a partir deste momento as migrações internacionais direcionadas
ao Brasil passam a ser regulamentadas por legislação criada durante o regime militar, o
Estatuto do migrante, em que a lógica predominante era a da segurança nacional, das
fronteiras protegidas e da “ameaça” migrante. A mesma lei (Lei n. 6.815/1980) que
estabeleceu essas normas, também criou o CNig (Conselho Nacional de Imigração) que
desde então optou por uma agenda voltada à política de atender às demandas por força de
trabalho estrangeira, a prática de mobilizar, selecionar e localizar, que desde sempre
predominou nas políticas migratórias implementadas no país. (VAINER, 2000).

12A partir de meados da década de 1990, momento em que o Brasil já vivia sob a égide da
Constituição Federal de 1988, a questão migratória volta a ter certa relevância na agenda
política e social brasileira, muito mais pela emigração de brasileiros para o exterior do que
pela migração em si. Ou seja, o panorama dos fluxos migratórios brasileiros havia mudado,
muitos brasileiros no exterior e novos migrantes no Brasil, em especial os latino-americanos.

13No início dos anos 2010 (TABELA 1), com a chegada massiva de haitianos ao país, torna-
se claro o quanto o aparato legal e normativo estava defasado em relação à realidade
migratória nacional

Os debates acerca da questão migratória e os intensos fluxos populacionais (Tabela 2) no


Brasil impulsionavam e pressionavam na direção de avanços necessários. São Paulo (Mapa
1), cidade que recebeu maior fluxo migratório, especialmente de haitianos, a partir dos anos
2010, mantinha intensos embates de posições e ideologias conflitivas entre a sociedade civil
organizada e o poder público do município. Tendo por objetivo implementar uma política
municipal para migrantes de forma transversal, intersetorial e participativa, a prefeitura de
São Paulo, no âmbito da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC),
criou a Coordenação de Políticas para Migrantes (CPMig).  

15São Paulo abarca 41,3% das residências migrantes distribuídas em território nacional. Por
serem áreas mais dinâmicas do ponto de vista econômico, o Sudeste e Sul acolhem parcela
majoritária da migração, sendo importante ressaltar a importância dos migrantes haitianos,
que se localizam nos estados do sul do país, que, depois de São Paulo, foram os espaços que
mais absorveram essa força de trabalho (TABELA 2). Outro aspecto que se faz notar é a
diminuição relativa da participação do Sudeste em favor das demais Regiões do país.
(Relatório de Migrações OBMIGRA, 2018).
Pela ótica dos direitos humanos, e não mais da segurança pública, a CPMig/SMDHC, através
de um comitê paritário com representantes de 13 secretarias e organizações da sociedade
civil, elaborou o texto da primeira política municipal para a População migrante no Brasil,
sancionada em 2016, pelo então prefeito Fernando Haddad, a Lei nº 16.478, de 8 de julho
daquele ano fora aprovada por unanimidade pela Câmara Municipal de São Paulo antes de
ser remetida ao executivo. Essa lei prima pelo respeito aos direitos humanos das pessoas
migrantes residentes na cidade, coloca diretrizes para a atuação das secretarias municipais e
cria o Conselho Municipal de migrantes, entre outras disposições.

17Essa movimentação da sociedade civil organizada ligada a questão migratória e de refúgio


contribuiu para a sanção da Lei de Migração (LEI nº 13.445/2017) no âmbito federal. Um
exemplo significativo é a Missão Paz, importante instituição filantrópica de apoio e
acolhimento a migrantes e refugiados na cidade de São Paulo, pertencente aos missionários
Scalabrinianos que atua na questão migratória desde os anos 30 do século XX, que promove
um intenso trabalho de advocacy através da atuação em rede com organizações parceiras,
incidindo nas esferas municipal, estadual, federal e internacional, levando contribuições e
demandas observados no atendimento direto aos migrantes e refugiados e monitorando a
aplicação de políticas públicas voltadas para esta população.

 8 http://www.migrante.org.br

 9 https://www.acnur.org/portugues/, nos dias atuais o ACNUR é denominado Agência da Onu para


Refugiad  (...)

18No âmbito federal a Rede Solidária para Migrantes e Refugiados, que reúne
aproximadamente 45 instituições do Brasil ligadas à defesa, atendimento e assistência à
população migrante, articulada pelo IMDH (Instituto de Migrações e Direitos Humanos) 8,
com o apoio do ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados) 9, também
é um bom exemplo de rede social engajada e organizada para influenciar a formulação,
aprovação e execução de políticas públicas.  

19O novo arcabouço legal representa um grande avanço no que tange a questão migratória
no Brasil, em primeiro lugar porque se distancia da ótica da segurança nacional que marcava
a antiga lei sancionada ainda no período militar brasileira. Segundo porque traz uma
perspectiva de direitos para aqueles que emigram e para os migrantes que aqui chegam.

20Entretanto alguns vetos causaram prejuízos e se colocaram na contramão dos avanços


percebidos. Por exemplo, a Casa Civil vetou o Inciso I § 1º do art. 1 º que trata da definição
de migrante, utilizando o argumento de que o conceito no texto original está demasiado
amplo por incluir o migrante, emigrante, residente fronteiriço e apátrida no mesmo termo.
Esse veto denota a falta de conhecimento a respeito das várias dimensões dos
deslocamentos populacionais. Outros vetos que nos chamam atenção são os vetos que
partiram do Ministério da Justiça e Segurança Pública e da Advocacia Geral da União,
instituições que defenderam o veto ao artigo referente à livre circulação aos povos
originários, alegando que trata-se de uma afronta a soberania nacional. Ignora-se o histórico
etnográfico do país, que conta com populações indígenas nas regiões fronteiriças e remota
ao tratamento das migrações como questão de segurança pública. Apesar dos vetos
prejudiciais, a nova lei é considerada um avanço para a política migratória brasileira   

21Nessa perspectiva de avanços voltamos nossos olhares para a cidade de São Paulo,
como locus de observação do fenômeno migratório e suas contradições. Destaca-se, nesse
sentido, que a cidade abriga grande parte dos movimentos sociais organizados em prol da
questão migratória. A seguir vamos discorrer sobre a experiência da escola EMEF Duque de
Caxias, localizada na baixada do Glicério, uma das regiões da capital que, desde o século XX,
recebe migrantes e que abriga a sede da Missão Paz de São Paulo, referência no acolhimento
de migrantes.
Contextualizando o Território:
Levantamento de Dados
Visualizando esse cenário o grupo de pesquisa do projeto “Brasil migrante, Fluxos,
Populacionais, Políticas Públicas e Estruturas Estatais”, financiado pelo Programa Unificado de
Bolsas de Estudos da Pró-Reitoria de Graduação da Universidade de São Paulo, constatou na
EMEF Duque de Caxias um objeto de pesquisa rico para um estudo de caso. O
estabelecimento de uma relação com EMEF foi através do interesse mútuo entre nosso grupo
de pesquisa e o Professor Guilherme de Souza, docente daquele estabelecimento de ensino
básico, estabelecendo assim as bases para uma pesquisa empírica. A partir do segundo
semestre de 2016 até o final do ano letivo de 2017, o grupo de pesquisa iniciou suas
atividades na EMEF Duque de Caxias, com aval de seu diretor, professor José Mário de
Oliveira Britto, iniciando um relacionamento entre nosso grupo e o corpo docente, discente e
administrativo da escola. Tal relação estabeleceu-se com o sentido de cooperação, na qual
nosso grupo ofereceria conteúdos informativos e formativos à escola, e essa, por sua vez,
estaria aberta ao diálogo para a realização do campo de nossa pesquisa, que procurava
compreender as dinâmicas escolares com nosso foco nas turmas do EJA do período noturno,
o qual contava com uma grande quantidade de alunos migrantes.

27A parceria teve início com o oferecimento, pelo grupo de pesquisa, de palestras oferecidas
para alunos migrantes do EJA. Tais encontros foram realizados entre o mês de março e maio
de 2017; com os temas de Relações Raciais no Brasil, Legislação Migratória Brasileira e
Mercado de Trabalho, nos quais as palestras transcorreram com tradução para o francês,
idioma predominante na turma, no grupo de estudantes migrantes que acompanharam tais
atividades encontravam-se 4 diferentes idiomas – Espanhol, Português, Crioulo Haitiano e
Inglês. O outro passo dado pelo grupo nesta cooperação como EMEF Duque de Caxias foi
uma tentativa de iniciarmos um survey no qual procuraríamos registrar a trajetória
migratória dos alunos das turmas de EJA da escola. Nesta tentativa iniciou-se testes para a
implantação de um questionário, mas tal ação encontrou sérias barreiras para a continuidade
desta ação a partir do momento que ocorreu uma mudança significativa na direção da
escola, com a transferência do Prof. José Mário para a direção de outra escola da rede
municipal de educação, além outros obstáculos com a difícil comunicação entre a direção da
escola e os demais agentes escolares, principalmente no que diz respeito ao esclarecimento
sobre os objetivos da pesquisa e das ações conduzidas por nosso grupo.

28A escola demonstrou-se um estrato do contexto das migrações internacionais mais


recentes na cidade de São Paulo, foi evidenciado um ambiente escolar com 17
nacionalidades, 8 Línguas correntes: português, espanhol, árabe, cantonês, mandarim,
francês, inglês, crioulo haitiano, outras línguas e dialetos africanos. Para além do
multiculturalismo presente, confirmou-se as condições infraestruturas e a ausência e não
capilaridade de Políticas Públicas de educação voltadas à população migrante atendida pela
EMEF Duque de Caxias. O processo de inclusão de alunos no aparato de ensino dava-se sem
nenhum instrumento de mapeamento das necessidades dos migrantes e sem nenhuma
adequação dos Planos Pedagógicos do EJA. Neste sentido, foi notado a assimetria entre as
demandas dos migrantes e o conteúdo oferecido pelo curso, já que, por relatos dos próprios
estudantes, muitos dos que frequentam a escola apenas demandam por ensino da língua
Portuguesa, devido ao fato que adentram no EJA com ensino médio completo, tornado o
ensino de matérias como química, física, geografia e entre outros destoante para suas
necessidades.

29Apesar de tais dificuldades nossa experiência junto à EMEF Duque de Caxias foi de suma
importância para observarmos algumas características do cotidiano dos migrantes fixados
em São Paulo na sua relação com um serviço público fundamental oferecida por um dos
entes do Estado brasileiro, a Prefeitura da Cidade de São Paulo, sendo-nos possível observar
uma pequena amostra da relação de migrantes com o Estado brasileiro.

30A primeira característica observada naquela escola de ensino fundamental centra-se na


ausência de uma cultura organizacional coesa de cooperação, trocas de informações e
valores entre os diversos atores presentes naquele ambiente educacional. Isto ficou explícito
com a desinformação dos professores acerca da parceria entre o grupo de pesquisa e a
escola, o que demonstra uma falha de comunicação entre o gestor da escola, o qual
havíamos estabelecido contato desde o segundo semestre de 2016. Outro ponto importante
a se destacar é a existência naquele ambiente organizacional de uma multiplicidade de
valores e visões sobre a realidade migratória brasileira, na qual aquela escola está
profundamente entranhada. Cada professor da escola expressou diferentes compreensões
sobre as questões relativas a migrações, sendo maioria baseada no senso comum,
demonstrando que apesar do contexto em que vivem não há nenhuma ação organizada pela
Secretaria Municipal de Educação no sentido de dar alguma formação sobre o fenômeno
migratório brasileiro para aqueles docentes.

31Dessa forma podemos afirmar que a escola não funciona a partir de uma cultura
organizacional única e sim de diferentes valores sobre educação e sobre como lidar com a
questão migratória. A junção desse ambiente interno com o externo, marcado por ausência
de definições claras de ação pública para a questão no âmbito educacional, e com marcos
legais generalistas no que se refere a políticas públicas para a população migrante, coloca os
atores na ponta do sistema com papel central na entrega do serviço.

 11 Para um balanço teórico sobre a utilização do termo “Burocrata do Nível de Rua”, no qual vemos o
qu (...)

32Utilizando o termo “Burocrata do Nível de Rua” largamente utilizado nos estudos sobre
políticas públicas, sendo introduzido na literatura acadêmica por Michael Lipsky (1980) e que
vem balizando boa parte da produção acadêmica até os dias atuais 11, aqueles assim
denominados podem ser médicos, enfermeiros, policiais, professores, assistentes sociais e
entre outros. São os atores em contato direto com o usuário de um determinado serviço
público, ou seja, são eles que prestam o acesso às políticas, sendo o elo ao qual o Estado
tem contato com o cidadão e esse tem acesso ao Estado, desta maneira é por eles que ação
pública se apresenta. No uso da sua discricionariedade pode se observar a distância, como
aborda Arretche (2001), entre o que é formulado objetivamente e o que é implementado de
fato.

33Nos diferentes campos a se observar o conceito de discricionariedade, demonstra-se que o


ator munido com tal característica, e portanto detentor de um certo poder, atua dentro de
parâmetros legais e organizacionais, internos e externos, sendo somente o seu julgamento
sobre a realidade vivida por aquela instituição a base real para a definição em relação a
melhor forma de agir no oferecimento de suas competências (LOTTA e SANTIAGO, 2018).

34A partir destas ideias podemos, portanto, analisar não só a realidade, mas principalmente
a atuação dos burocratas que tivemos contato na EMEF Duque de Caxias. Primeiramente, é
importante frisar a importância das estruturas normativas para a existência de espaço
político e social para ação discricionária (LOTTA e SANTIAGO, 2018).

35Como já exposto, as estruturas legais em âmbito nacional e municipal carecem de


diretrizes objetivas que prevejam ações estatais de fato à população migrante, restringindo-
se ao caráter de garantia do acesso aos direitos sociais, dentro da estruturas educacionais da
cidade não há diretrizes e nem ações do poder público que orientem as instituições de ensino
para lidarem ou se adequarem às contingências dos fluxo migratórios, dando espaço para a
atuação discricionária dos “Burocratas do Nível da Rua” para lidar com as ocasiões, a partir
da sua interpretação de marcos normativos e institucionais abrangentes.

36Concentrando-se no ambiente organizacional da EMEF Duque de Caxias, notou-se um


ambiente organizacional com várias dicotomias, fortalecendo ainda mais o ambiente para
uso da discricionariedade por parte de suas burocratas de nível de rua. É dessa forma que os
dois burocratas centrais atuantes na escola lidam com a questão migratória. O diretor usa da
sua autonomia como burocrata e os professores usam da sua discricionariedade como
burocratas de nível de rua, ambos buscam soluções paralelas ao poder público para lidar
com os fluxos de migrantes na escola, frente a pouca capilaridade das ações estatais e a
inexistência de ações do poder público voltadas para a população migrante de forma
concreta, no âmbito do oferecimento do serviço de educação, ambos dos burocratas buscam
maneiras de lidar com as necessidades dos alunos migrantes.

37Tal realidade pode ser perigosa, já que as ações discricionárias podem ter um viés
xenófobo ou inadequado para lidar com uma população que, em sua maioria, encontra-se
em situação de vulnerabilidade social, privando-a ao acesso à educação e, como Cury (2002)
afirma, a educação é o instrumento de construção da cidadania e para o desenvolvimento
humano, portanto sua privação afeta paralelamente a garantia de outros direitos sociais e ao
acesso aos serviços públicos.

Considerações Finais
Para finalizarmos nossas reflexões a respeito das ações do Estado brasileiro em torno das
migrações internacionais direcionadas para nosso território, primeiro (seção II) a partir das
ações da União (ou governo federal) nas últimas décadas em relação aos fluxos migratórios
direcionados ao país, com especial destaque para o caso dos venezuelanos nos últimos dois
anos. E em segundo lugar (seção III) analisando dados de pesquisa junto à um órgão da
administração direta da Secretaria Municipal de Educação do Município de São Paulo - a
Escola Municipal de Educação Infantil Duque de Caxias, localizada no Bairro do Glicério na
região central da cidade.

39Por mais que as realidades de nossos objetos sejam completamente distintas, nossa
reflexão procura demonstrar o quanto as ações do Estado brasileiro, em relação às
migrações internacionais, são descoordenadas e pouco orgânicas. Arriscamos até mesmo a
afirmar que tais ações não chegam a configurar Políticas Públicas propriamente ditas, pois há
pouca racionalidade e organicidade nestas atuações do Estado brasileiro junto à população
estrangeira fixada no território brasileiro.

40No caso do governo federal, como é demonstrado a partir do caso venezuelano (que
repete muitos improvisos, com baixa racionalidade, encontrados quando do estabelecimento
do fluxo de haitianos no Brasil), a atuação do Estado brasileiro quase que somente se
circunscreve à tentativa de regularizar o status jurídico dos estrangeiros que adentram nosso
território. Já que como demonstramos o governo federal não age no sentido de integrar os
demais entes federados brasileiros (estados e municípios) para a construção de processos de
recepção e acolhimento das populações estrangeiras no seio da sociedade brasileira. Fato
que fica muito claro quando acompanhamos o noticiário em relação à “crise humanitária”
que se desenrola no Estado de Roraima desde ao menos 2016, sendo patente a não
existência de uma linha mestra de atuação do Estado brasileiro, que necessariamente
haveria de passar por uma integração e coordenação dos diversos entes federados
brasileiros.

41Já no governo municipal paulistano, vemos que na EMEF Duque de Caxias as ações
voltadas para os alunos estrangeiros do EJA (Educação de Jovens e Adultos) são definidas de
forma individual pela gestão da escola, sem nenhum suporte ou orientação da rede de
ensino público da Secretaria Municipal de Educação. Pois em nossa experiência de pesquisa e
extensão junto à este equipamento público foi-nos relatado a inexistência de ações voltadas
para alunos estrangeiros que não dominam adequadamente o português quando se
matriculam na escola, algo que se torna extremamente relevante para o funcionamento do
próprio equipamento, afinal o número de estrangeiros no EJA é a maioria dos alunos,
segundo estimativa pouco precisa da própria direção da escola. Apontamos que a ausência
de dados precisos sobre o número de estrangeiros, suas nacionalidades, línguas originárias e
demais dados que poderiam caracterizar os alunos estrangeiros daquela escola já
demonstram o quanto as ações voltadas para estas populações carecem de racionalidade e
organicidade dentro da rede pública de ensino administrada pela Secretaria Municipal de
Educação de São Paulo.

42Para finalizarmos, apontamos a esta reflexão sobre dimensões distintas da realidade dos
migrantes internacionais no Brasil nos levam a apontar uma extensa agenda de atuação para
o Estado Brasileiro, além de ser também uma agenda de pesquisa extremamente
interessante para trabalhos acadêmicos que venham propor a observação da relação da
população estrangeira fixada no Brasil com os bens e serviços públicos ofertados à sociedade
brasileira. Afinal, entendemos que a realidade de migrantes e refugiados, estrangeiros no
geral, que vivem no seio da sociedade brasileira, independentemente de sua relevância
quantitativa, devem passar a configurar a agenda das Políticas Públicas brasileiras, pois a
realidade atual ainda é muito incipiente e precária, chegando mesmo a nos arriscar a afirmar
que as ações que ora existem do Estado brasileiro direcionadas para tais populações não
chegam ao patamar para podermos afirmar que existe Política Migratória no Brasil atual.

MIGRAÇÕES E FRONTEIRAS

"O mais grave é que a politização das migrações significa, em grande


parte dos casos, a criminalização dos migrantes, especialmente após os
atentados de 11 de setembro em New York. O caso mais emblemático foi
a eleição de Donald Trump à Casa Branca, nos USA. Com isso,
ressurgem com força as políticas de deportação dos imigrantes
irregulares e de restrição à entrada de novos imigrantes. Mas ressurgem
igualmente os movimentos neofacistas e neonazistas, bem como suas
atitudes de aberta discriminação, hostilidade e xenofobia",
escreve Alfredo J. Gonçalves, padre carlista, assessor das Pastorais
Sociais, 18-05-2018.
Eis o artigo. 
O tema Migrações e Fronteiras ocupa atualmente amplos espaços na
mídia, na opinião pública, nos debates políticos e nas redes sociais. Aqui,
mais do que um estudo propriamente dito sobre a mobilidade
humana, pretendo desenvolver alguns elementos para uma leitura
aproximada dos deslocamentos de massa nos tempos atuais. Elementos
de caráter provisório e fragmentário e que, por isso mesmo, num segundo
momento, podem e devem ser complementados pelas experiências
concretas de quem trabalha mais de perto nessa realidade. Permitam-me
começar com dois rápidos passos atrás, para, em seguida, entender o
fenômeno das migrações nos dias de hoje.
1. Duas irmãs gêmeas: pastoral social e pastoral das migrações
O primeiro passo atrás nos leva ao século XIX e início do século XX,
contexto da Revolução Industrial, com seus efeitos e implicações e
efeitos. Em termos de mobilidade humana, alguns números ilustram
esse momento de “mudanças rápidas e profundas”, para usar uma
expressão extraída da Constituição Pastoral do Concílio Vaticano
II  Gaudium et Spes (GS, 1965, nº 4). Segundo os principais historiadores
da época, entre 1820 e 1920, cerca de 65 a 70 milhões de pessoas deixam
o velho continente europeu, com destino às terras novas
das Américas, Austrália, Nova Zelândia. Limitando-nos
à Península Italiana, entre 1815 e 1915, nada menos do que 25 milhões
emigraram de seu território. Na década de 1901 a 1910, a média anual de
emigrados é de 600 mil. O ano de 1913, por sua vez, representa o recorde
de saídas: mais de 850 mil pessoas (Cfr. Livro O Mediterrâneo do
historiador francês Ferdinand Brudell). Em menor ou maior grau,
vários países sofreram a mesma hemorragia: Irlanda, Inglaterra,
Alemanha, Espanha, Portugal, entre outros.
Outros historiadores batizaram o século XIX como “século do
movimento”. Movimento entendido em duplo aspecto: de pessoas, seja do
campo para a cidade quanto em direção de outros continentes; e de
máquinas, como o trem, os carros, os navios, e mais tarde o avião. No que
diz respeito às consequências sociais da Revolução Industrial, por um
lado, e aos deslocamentos humanos de massa, por outro, duas
personagens se cruzam e se entrelaçam na passagem do século XIX para o
século XX: o então Papa Leão XIII e o bispo de Piacenza, norte
da Itália, João Batista Scalabrini. Enquanto o primeiro preocupava-
se com a exploração exacerbada dos operários, nas fábricas que se
erguiam por toda parte, o segundo tinha os olhos voltados para os que
sequer conseguiam emprego no velho continente, vendo-se obrigados a
atravessar o oceano Atlântico em busca de melhor futuro.
Em 1887, Scalabrini funda a Congregação dos Missionários de
São Carlos, com o fim de acompanhar os emigrados italianos por
todo o mundo. Em 1895, juntamente com Madre Assunta e Pe.
Marchetti, funda a Congregação das Irmãs de São Carlos, com a
mesma finalidade. No decorrer dos tempos, ambas as Congregações iriam
ampliar seu campo de ação, no sentido de atender a todos os migrantes,
prófugos, refugiados, expatriados, marinheiros, itinerantes, enfim, todo
o mundo da mobilidade humana.
Convém não esquecer que já antes disso, havia fundado um Instituto de
Leigos em favor dos direitos dos emigrantes.
Em maio de 1891, exatamente a meio caminho entre a fundação de uma e
outra dessas Congregações, o Papa Leão XIII publica a Carta
Encíclica Rerum Novarum (sede de coisas novas), sobre a condição dos
operários, mesmo tema do estudo de F. Engels, em 1844, também ele a
respeito da condição da classe trabalhadora na Inglaterra. Voltando
à Rerum Novarum, a carta passará para a história como o documento
inaugural da chamada Doutrina Social da Igreja. Enquanto a Igreja, na
pessoa do Papa, se sensibiliza com a situações dos trabalhadores e
trabalhadoras no velho continente, Scalabrini se vê interpelado por
aqueles que, impossibilitados de encontrar trabalho na Europa, cruzam
os mares em direção às novas terras. Resulta que a sensibilidade e
solicitude pastoral da Igreja para com os operários nasce
contemporaneamente à sensibilidade e solicitude pastoral de Scalabrini
para com os emigrantes. O que mais tarde viria a se transformar a
Pastoral Social é irmã gêmea do que, também mais tarde, viria a se
transformar a Pastoral dos Migrantes.
Um retorno a essa dupla origem representa uma luz para ler e entender os
desafios do mundo de hoje. Desafios de ordem sociopolítica e desafios
relacionados ao universo dos cenários e narrativas da migração. O
estudo da história é o melhor antídoto contra o que o Papa
Francisco chama de “cultura da indiferença” em relação às
problemáticas do presente e em relação à responsabilidade quanto ao
futuro. Em sentido amplo, o Serviço Pastoral dos
Migrantes mergulha suas raízes nessa dupla fonte de energias, ou dupla
solidariedade evangélica. Ainda nas palavras do Pontífice, trata-se de
passar da “globalização do individualismo à cultura da
solidariedade”.
2. Crise prolongada da economia
O segundo passo atrás nos faz retroceder aos anos de 1970. Se é verdade
que o período que vai do imediato pós-guerra até o início da década de 70
costuma ser considerado como os “anos de ouro” da economia
capitalista, as coisas mudam a partir daí. Tais “anos de ouro” combinam
euforia econômica, por uma parte, com os fantasmas da guerra-fria, da
ameaça nuclear e da desigualdade socioeconômica, por outra. Do ponto
de vista eclesial, são publicadas as Cartas Encíclicas Mater et
Magistra (1961) e Pacem in Terris (1963), ambas pelo então Papa João
XXIII. Depois, vem à luz a Constituição Pastoral Gaudium et
Spes, Concícilio Vaticano II, e em seguida a Carta
Encíclica Populorum Progressio (1967), escrita pelo Papa Paulo VI.
Logo, porém, os chamados “milagres econômicos” e, em alguns casos, o
pleno emprego, conhecem seu término. Começam as décadas da crise que
se arrasta até o presente. O aumento dos preços do petróleo, por uma
parte, e a desvinculação da emissão de dólares quanto às receitas em ouro
nos Estados Unidos, por outra, no início dos anos 70, serão dois fatores
que, junto a diversas circunstâncias de ordem política, haverão de
desencadear uma prolongada instabilidade econômica. Instabilidade que,
em menor ou maior grau, e dependendo da conjuntura de cada país,
persiste até os dias de hoje. Três foram as consequências imediatas dessa
crise: o aumento dos custos de produção, movida prevalentemente com a
fonte energética do petróleo, a corrida desenfreada à especulação no
capital financeiro em nível internacional e o aumento
do desemprego, subemprego e migração.
Desse contexto decorre a emergência do termo globalização. No xadrez
da economia mundial, a globalização é entendida com a extensão e o
aprofundamento do modo de produção capitalista, no sentido de diminuir
as despesas e aumentar os ganhos, compensando assim as perdas. Na
verdade, uma globalização de duplo aspecto: extensiva, no sentido de
incorporar novos territórios, novas regiões, novos países e novos povos ao
sistema de produção-comercialização-consumo capitalista
(Rússia, China, Tigres Asiáticos, entre outras nações asiáticas e
africanas): e intensiva, no sentido de ampliar o consumo daqueles que já
fazem parte desse universo. Entra em cena o poder do marketing, da
propaganda e da publicidade, com apelos cada vez mais intensos,
frequentes e estridentes, convidando ao esquema compulsivo do
produtivismo-consumismo. De outro lado, sempre na perspectiva de
compensar as perdas e aumentar os lucros, termos como flexibilização das
leis trabalhistas, terceirização e reformas trabalhista ou da previdência
social, em geral, entram a fazer parte do processo de globalização, no
sentido de retirar dos trabalhadores uma série de “direitos adquiridos”
pela luta sindical. Semelhantes direitos se reconvertem em “mercadorias”
a serem compradas, o que passa a pesar sobre os ombros da classe
trabalhadora.
Ainda no que diz respeito à ao conceito de globalização, vale tomar
emprestadas algumas observações do sociólogo espanhol Manuel
Castells (Cfr. A Sociedade em rede, em três volumes). Segundo ele, a rede
mundial da Internet, leva a uma economia globalizada com um
movimento duplo e aparentemente contraditório, ou seja, ela se torna ao
mesmo tempo mais centrífuga e mais centrípeta. Mais centrífuga – ou
mais descentralizada – no campo da produção. Em lugar de gigantescos
parques industriais onde se fabrica o produto integral, multiplicam-se
pequenas e médias unidades de produção de peças autônomas. Estas
facilitam não apenas a locomoção no território e entre os vários países,
mas também a diversificação produtiva. Posteriormente, com a revolução
das comunicações e dos transportes, reúnem-se as várias peças. Daí o
nome de “montadoras” a determinados parques de produção. Tais
unidades, por outro lado, são mais ágeis e passíveis de deslocamento, de
acordo com a necessidade de mão-de-obra barata ou de novas fontes de
matéria prima e de energia.
A economia globalizada, entretanto, é também mais centrípeta – ou
centralizada. Também aqui, devido às transformações na área da
informática, é possível uma maior concentração no campo das decisões.
Uma central de computadores interligados, localizada em qualquer lugar
do planeta, pode controlar a produção, a comercialização e o consumo,
permitindo a tomada de decisões em tempo real. Isso explica as compras e
vendas, fusões e megafusões das empresas, a incorporação de umas pelas
outras, os grandes conglomerados internacionais, de modo especial no
capital financeiro. Concentram o poder de decisão para poupar gastos
com pessoal altamente qualificado e com duplicação de infraestrutura.
Numa palavra, a economia global tende a expandir-se quanto à produção
e, simultaneamente, a concentrar-se quanto à direção do poder. Consta-
se, então, que o contraste é apenas aparente. Na verdade, os movimentos
contrários se complementam

3. Economia globalizada e migrações


Tanto nos “anos de ouro” do capital (1945-70) quanto na crise que lhes dá
lugar no início dos anos 70, os migrantes correm atrás das
oportunidades de trabalho. Não será exagero parafrasear Scalabrini: se
as sementes e as aves voam nas asas do vento, os trabalhadores voam nas
asas do capital. Para onde este migra, se concentra e se acumula,
multiplicam-se igualmente as possibilidades de um melhor futuro. Daí o
grande fluxo de migrações do hemisfério sul para o hemisfério norte, ou
melhor, dos países periféricos e subdesenvolvidos para os países centrais
e desenvolvidos. Milhões e milhões de trabalhadores dos países pobres
da Ásia, da África e da América Latina e Caribe, com ou sem suas
famílias, buscam os Estados Unidos e Canadá, a Europa,
o Japão e Austrália. Juntamente com esse fluxo sul-norte, porém,
verificam-se outras tendências também expressivas em números, tais
como o deslocamento sul-sul ou leste-oeste, este último sobretudo a partir
da desintegração da União Soviética.
A mobilidade humana ganha proporções cada vez mais planetárias. Sem
contar as migrações dentro do próprio país ou pendulares, estima-se
hoje que ao redor de 250 milhões de pessoas residem fora do país em que
nasceram, sendo que ao redor de 30 a 50 milhões são refugiados. O
deslocamento humano de massa torna-se um fenômeno sempre mais
numeroso, mais complexo e mais diversificado. Novas nações, novos
povos, novos grupos e novas culturas passam a fazer parte do xadrez
mundial das migrações. A “aldeia global” converte-se em uma realidade.
No cotidiano ou através dos meios de comunicação, praticamente todos os
dias nos defrontamos com os “mil rostos do outro”. Difícil encontrar um
país que não esteja envolvido nesse vaivém globalizado, seja como lugar
de origem, de trânsito ou de destino – quando não as três coisas ao
mesmo o tempo.
À medida que a crise econômica persiste e/ou se agrava, no entanto, os
países centrais começam a restringir a entrada de estrangeiros. Elaboram-
se leis de imigração cada vez mais rígidas e seletivas, com o objetivo de
peneirar os trabalhadores qualificados e descartar os demais. A migração
legal, regular, com os documentos em dia torna-se cada vez mais difícil,
praticamente um privilégio de poucos. Para os que fogem literalmente da
pobreza, da violência e da guerra, não passa de um sonho que, em grande
parte dos casos, acaba convertendo-se em pesadelo.
Prova disso é que, atualmente, os deslocamentos humanos sul-sul
superam em números os deslocamentos sul-norte. Crescem, por exemplo,
os movimentos de país para país no interior da África, no interior
da América Latina e Caribe, no interior da Ásia. Trata-se de uma
migração intra-regional ou intra-continental, que, embora não anule as
tentativas de cruzar os oceanos e alcançar os demais continentes,
encontra mais dificuldades. Isto para não falar das migrações no
interior de cada país, das migrações temporárias ou do esvaziamento
rural seguido da urbanização. Cresce, também, a presença de mulheres e
menores não acompanhados, sujeitos de modo particular do tráfico
internacional de pessoas humanas para fins de exploração sexual e
trabalhista. Evidente que a rigidez da lei e o fechamento da fronteira
acaba incrementando o crime organizado em nível mundial. E cresce,
ainda, o número do que hoje poderíamos chamar de migrantes,
prófugos ou refugiados “climáticos”. Fogem de desastres, calamidades ou
catástrofes desencadeadas pelas mudanças cada vez mais acentuadas do
clima.
Outro fator que tende a dificultar o livre direito de ir-e-vir em direção às
nações centrais é o avanço dos governos de direita em vários países que,
de um ponto de vista histórico, se mantinham mais ou menos abertos.
Nas eleições mais recentes dos Estados
Unidos, Áustria, Alemanha, Polônia, Inglaterra, França, Itália –
constata-se o avanço de partidos e políticos anti-imigração. Aliás, no
processo eleitoral desses países, o fenômeno da mobilidade humana
figurou como ponto obrigatório dos debates, quase sempre como o
próprio fiel da balança. Isso fez com que os deslocamentos humanos de
massa fossem amplamente politizados.
O mais grave é que a politização das migrações significa, em grande
parte dos casos, a criminalização dos migrantes, especialmente após os
atentados de 11 de setembro em New York. O caso mais emblemático foi
a eleição de Donald Trump à Casa Branca, nos USA. Com isso,
ressurgem com força as políticas de deportação
dos imigrantes irregulares e de restrição à entrada de
novos imigrantes. Mas ressurgem igualmente os movimentos
neofacistas e neonazistas, bem como suas atitudes de aberta
discriminação, hostilidade e xenofobia. Nas palavras do Papa
Francisco, “em lugar de pontes, erguem-se muros”. A “cultura da
acolhida, do diálogo, do encontro e da solidariedade cede o lugar
à globalização da indiferença”.
4. Emergência do conceito de fronteira
Resulta que dois fatores convergentes – complexidade do fenômeno da
mobilidade humana e endurecimento da legislação imigratória –
fazem emergir o conceito de fronteira. De uma parte,
as migrações atuais diferem das chamadas migrações históricas do
século XIX. Estas últimas tinham uma origem e um destino mais ou
menos determinados. Os emigrantes saíam de seus países para
estabelecerem-se em outras terras e aí erguerem novas cidades e novas
nações. Atualmente, sabemos a origem dos fluxos migratórios, mas seu
destino final é incerto. Os mesmos migrantes, depois de cortarem as
raízes primordiais, remigram com frequência de um país para outro,
buscando sempre melhores oportunidades. Em lugar de uma viagem para
um novo lugar, temos um vaivém às vezes circular e com rumos
imprevistos.
Entre os estudiosos do tema da fronteira, tomo de empréstimo algumas
observações do sociólogo português Boaventura de Souza Santos. A partir
de seus estudos, constata-se que a restrição crescente à migração legal faz
aumentar a pressão dos migrantes sobre os limites entre os diversos
países – vale dizer sobre a fronteira. Fronteira neste caso como “não
lugar”, não no sentido de Marc Augè (a não familiaridade doa
aeroportos e shopping centers, por exemplo), e sim espaço onde os medos
misturam-se com novos horizontes; angústias e esperanças andam de
mãos dadas, ameaças e oportunidades entrelaçam-se. Trata-se, ao mesmo
tempo, de lugar de ninguém e lugar de todos, lugar dos sem pátria e lugar
aberto a muitas pátrias. A fronteira se converte numa espécie de espelho
invertido das políticas migratórias, ou da falta delas. Já o sociólogo
paraguaio Tomaz Palau, ainda nos anos 80, dizia que “o movimento e o
dinamismo intensos nos limites entre dois ou mais países constituem um
dos retratos mais vivos do processo de globalização”. Com isso o
fenômeno migratório torna-se mais dramático e contemporaneamente
mais visível. As imagens da fronteira escancaram as feridas e cicatrizes
mais vivas da mobilidade humana.
Entretanto, mesmo a olho nu, é bem notório a emergência da fronteira
como lugar de tensões e sonhos, disputas e alternativas, “alegrias e
esperanças, tristezas e angústias”, para citar a frase de abertura da já
citada Constituição Pastoral Gaudium et Spes. Bastam alguns exemplos:
limite entre México e Estados Unidos, entre México e Guatemala,
entre África do Norte e sul da Europa, entre Turquia e Grécia,
entre Peru, Chile e Bolívia, entre Colômbia e Venezuela,
entre Venezuela e Brasil,
entre Filipinas, Malásia, Indonésia e Singapura!... Os exemplos
poderiam ser multiplicados pelos quatro cantos do planeta. As fronteiras
se convertem em verdadeiras “panelas de pressão” prestes a explodir,
como ao norte da Líbia, na Turquia, no norte do México e na ilha
de Batam, Indonésia e outros pontos da Ásia e África. Sonhos e
pesadelos aí travam uma batalha sem fim e quase sempre sem horizonte.
Num exemplo mais concreto, recentemente a União Europeia fez um
acordo primeiro com a Turquia, depois com a Líbia, para o bloqueio
às migrações que se direcionavam ao velho continente. Significava,
respectivamente, bloquear a rota balcânica e a rota mediterrânea. Em
troca da contenção dos migrantes nos respectivos
territórios, Turquia e Líbia recebem investimentos regulares dos países
da Europa. O acordou trouxe um resultado duplamente nefasto e
desumano: de um lado, os migrantes se concentram em acampamentos
improvisados, em condições extremamente precárias, chegando a ser
colocados à venda (Líbia); de outro lado, os investimentos europeus
caem nas mãos de governos instáveis e corruptos, acabando muitas vezes
por chegar às mãos dos guerrilheiros – o que aumenta a violência e a fuga
de refugiados. O remédio agrava a situação do doente!

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