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Caros companheiros,
2. Nunca o teatro foi neutro e, hoje, mais do que nunca, numa sociedade técnico-
científica dominada pela omnipotência do dinheiro e a idolatria do poder, deve lutar
contra o indiferentismo social, a política dos campos de futebol e dos serões televisivos
contaminados pela imbecilidade, afirmar-se contra o populismo que nivela a arte pelos
instintos bárbaros das multidões, rebaixando-a a uma mera mercadoria para consumo
acéfalo, uma arte medíocre, sem exigência da crítica reflexiva que torna o homem
verdadeiramente humano;
3. O teatro, sabemo-lo de há muito, não salva o mundo, mas sem o teatro, os actores, os
encenadores, os autores, os dramaturgos, os técnicos de cena, os espectadores, o mundo
não se salvará. A responsabilidade que cai hoje sobre a arte teatral não é maior do que a
de outros tempos, os tempos do analfabetismo cultural, da censura e da prisão política.
Mas é diferente. Hoje luta-se contra a imbecilização geral da sociedade e a violência dos
quadros legais que servem os interesses do Estado em nítido desprezo pelo sector
cultural. Hoje, encontrar um político culto, que encare a arte como uma respiração vital
da sociedade, é uma raridade. A sociedade atual, na qual escrevemos, representamos e
encenamos, arrancou a alma ao homem, desespiritualizou-o, fez do homem um
consumidor eufórico, asfixiado em objectos que o não deixam respirar, isto é, não o
deixam ver-se nu ao espelho;
4. É esta hoje a grande tarefa do teatro: pôr o homem nu frente a si próprio, evidenciar o
monstro em que se tornou e, como remédio, desafiá-lo a regressar à sua humanidade;
6. O teatro hoje não deve ser elitista, reduzido a minorias esclarecidas, nem demagogo,
obediente a cartilhas consumistas de multidões acríticas; deve ambicionar fazer parte da
imensa minoria que, mesmo não sabendo para onde ruma o século XXI, possui a lúcida
certeza de que o caminho encetado não é o melhor e muito menos o desejado;
8. O Teatro, por si, isolado, não corrige o mundo, mas sem ele o mundo não será
corrigido do bando de malfeitorias que o têm desvirtuado – a violência impune contra os
mais fracos; a injustiça contra os humildes; a criação de máquinas de propaganda que,
passando por espectáculos, visam a imbecilização coletiva; o culto dos deuses da
ignorância e do idiotismo; a degeneração dos costumes tradicionais dos povos,
submersos num mundo racional e frio, tão gelado como um iceberg, mas sem a bela
alvura deste; a leitura do passado às avessas, de modo a legitimar forças pérfidas do
presente, transformando o homem num exclusivo funcionário nascido, vivido e falecido
entre um universo técnico que lhe asfixia a criatividade, identificada com exotismo
individual;
9. O Teatro, para o ser e realizar-se, deve retomar a sua pulsão originária, assumindo a
audácia de se levantar contra as vaidades enfatuadas, a ousadia de dizer não aos
vendilhões da banha da cobra dos espectáculos ocos, que fazem cócegas na alma,
consolam o espectador, mas não lhe revitalizam o espírito crítico reflexivo;