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Resumo:
Este artigo discute a Favela, núcleo populacional negro criado em fins da década de 1940 na cidade de Macapá,
hoje existente apenas na memória de seus moradores e só aparece relacionada às festas do Marabaixo e
Carnaval. Por que a Favela não ganha visibilidade por parte da administração territorial – que a criou com a
expulsão dos moradores da frente da cidade, mas não a reconhece enquanto um lugar criado no decorrer do
processo de urbanização? Ao contrário da Favela, o Laguinho – outro núcleo populacional negro – constituiu-se
enquanto um bairro cuja identidade negra só foi se reforçando ao longo do tempo e, com o tempo, passou-se a
apresentar-se como “único” lugar de negros na cidade de Macapá. Os sujeitos-alvo da pesquisa são os familiares
de Gertrudes Saturnina Loureiro, através dos quais reconstruo trajetórias e os itinerários da Favela enquanto um
território negro, criado em resposta ao começo da desterritorialização em fins da década de 1940 e se estende até
os dias atuais. Parto do princípio de que os antigos moradores da Favela se direcionam para a reinvenção e
reivindicação de seu território via afirmação de suas diferenças como grupo étnico negro e tem no Marabaixo um
importante marcador dessa diferença
Este artigo é uma primeira comunicação da pesquisa que realizo sobre a Favela – núcleo
populacional criado em fins da década de 1940 na cidade de Macapá – enquanto um território
negro que, na atualidade, existe na memória de seus antigos moradores e aparece relacionada
as festas do Marabaixo e Carnaval.
A questão principal é discutir como a Favela, que nasceu sobre o signo da desterritorialização,
consegue permanecer, mesmo sempre a beira do apagamento na configuração do espaço
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Este Artigo foi apresentado no IV REA – Reunião Equatorial de Antropologia/XIII ABANNE – Reunião de
Antropólogos do Norte e Nordeste, no Grupo de Trabalho: Dinâmicas territoriais, processos políticos e lógicas
identitárias. Fortaleza/CE – 04 a 07 de Agosto de 2013.
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Professora da Universidade Federal do Amapá e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia
da Universidade Federal do Pará – PPGA/UFPA.
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O objetivo deste artigo é comunicar alguns caminhos já trilhados pelo projeto de pesquisa e
pelos primeiros levantamentos da observação etnográfica que realizo entre os familiares de
dona Gertrudes saturnina como meio para conhecer a Favela, suas gentes e suas histórias. O
principal resultado é a identificação da expulsão de moradores negros da frente da cidade de
Macapá, na década de 1940, como um processo de desterritorialização cujo reconhecimento
pelos próprios moradores tornou-se mais evidente a partir das discussões sobre o Artigo 68 do
ADCT, da Constituição Federal de 1988 endossadas pelo decreto 4887/2003 cujo teor
reconhece o direito a titulação de terras aos remanescentes de com base na autodefinição
declarada pela comunidade.
A noção de território deve ser estabelecida, pois se constitui numa dimensão importante para
definir o processo de identificação étnica negra em Macapá. O conceito de territorialidade é
largamente utilizado pelos antropólogos pois, no mundo moderno, tende priorizar uma
dimensão simbólica. O território em questão não é reduzível à dimensão física e estanque, é
variável no interior das sociedades e das diferenças que os grupos constroem entre o “nós” e
os “outros”. É material e projeta relações e representações simbólicas que se diferenciam
tanto quanto são diferentes as formações sócio-históricas na Terra. Pensar as relações sociais
a partir da ocupação do espaço é uma renovação na teoria de território desenvolvida pela
antropologia.
As contribuições de Paul Little são importantes por acenar para as relações sociais que se dão
a partir da ocupação do espaço e por conceituar território e conduta territorial como parte
integral de todos os grupos humanos. A territorialidade que emerge nesta pesquisa como um
esforço coletivo de um grupo social para ocupar, usar, controlar e se identificar com uma
parcela específica de seu espaço, convertendo-a assim em seu “território” parte da teoria
antropológica e permite detectar semelhanças importantes entre diversos grupos, semelhanças
que nem sempre ficam explícitas quando se empregam outras categorias como campesinato
ou raça. Como procedimento metodológico a territorialidade necessita conhecer cada processo
de expansão de fronteira e contextualizar o momento e a região geográfica que serve de palco
principal aos atores sociais presentes no processo marcado, tanto pela resistência ativa como
pela acomodação, apropriação, consentimento, influência mútua e mistura entre todas as
partes envolvidas (LITTLE: 2002,05). Esses procedimentos iluminaram algumas trilhas para a
pesquisa, pois o levantamento do contexto histórico e territorial do Amapá foram passos
importantes para visibilizar a Favela na cidade de Macapá.
Questões quanto ao levantamento do contexto histórico e territorial tem sido muito praticado
por uma antropologia preocupada em definir o ser quilombola e a garantir direitos
constitucionais – precisamente o art. 68 do ADCT da Constituição Federal de 1988 –
ancorados numa investigação científica mais próxima da realidade social sempre
multifacetada, multidimensional e discursiva.
Algumas das problemáticas que envolvem os estudiosos dos quilombos também se aplicam
aos grupos urbanos, pois a diversidade sociocultural brasileira é composta por grupos que
reivindicam mais do que direito a terras, reivindicam serem (re)conhecidos com toda a sua
bagagem histórica e cultural e terem voz ativa nas decisões dos lugares em que vivem. As
estratégias, práticas e simbólicas, desenvolvidas por negros paulistanos, diante dos limites ao
exercício de suas cidadanias torna o espaço urbano como um lugar demarcado por fronteiras
disputadas entre diferentes grupos sociais e o poder público e a território é definido enquanto
como categoria analítica para diferenciar-se da noção de bairro, unidades políticas e
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A ênfase dada a constituição da urbanização nas cidades brasileiras, entre fins do século XIX
e começo do século XX, informa o ritmo acelerado de transformação do espaço urbano e
toma a cidade como algo mais do que um “palco da história”, apresentam-se cidades
atravessadas por tensões entre os diversos grupos que partilham memórias, discursos, redes
simbólicas, identidades sociais, espaços de e, assim como são diversos os grupos sociais que a
constituem, diversos são as representações do espaço urbano e das lutas travadas para sua
ocupação ( Soller & Matos. 2000, p. 34).
O espaço de uma comunidade não representa apenas local de sua morada, mas
também referência de sua identidade. O território é uma vertente da sociedade
expressa não apenas por meio físico, mas como resultado das relações travadas
entre os seres humanos ... O território é o espaço apropriado por uma sociedade ou
grupo social. Sua ocupação gera relações de pertença e de identidades sócio-
espaciais. Quer dizer, o sujeito é identificado e identifica-se por meio dos atributos
do espaço (os objetos naturais e artificiais) ... A territorialidade é específica a cada
sociedade, daí a alteridade, ou seja, o estabelecimento da diferença que surge entre
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tensões entre os “nós” e os “outros” dentro de uma mesma cultura. Ao examinar as filiações
simbólicas reconhecidas pelos habitantes de Mazagão Velho, considerado o “berço da cultura
amapaense”, Véronique Boyer se depara com uma dupla genealogia tencionando a
identificação étnica dos habitantes da antiga vila colonial.
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Uma “vitória” que Laurent Vidal apresenta como uma “invenção” da memória sobre os translado da Mazagão
africana que atravessou o Atlântico, em fuga de expansão muçulmana em meados do século XVIII, quando
Portugal perde sua última colônia no continente africano (Vidal: 2008)
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Segundo Boyer o Marabaixo seria uma dança a respeito da qual circulam diversas versões, mais
complementares do que excludentes. Numa primeira, diz-se simplesmente que ela foi trazida pelos africanos do
Marrocos, onde recebia o nome de coco A segunda já propõe esclarecer o porquê dessa substituição, portanto
uma etimologia para a palavra. Encontrar-se-ia na decisão de uma velha mulher de chamar o coco de marabaixo,
depois de um negro escravo, protestando contra sua deportação, deixar-se morrer durante a travessia e seus
companheiros jogarem-no na água, o corpo indo então “mar abaixo”. A última narrativa focaliza-se mais na
explicação da maneira de dançar o marabaixo: o passo não pode ser leve, mas sim arrastado, pois quando
atendeu ao pedido dos negros querendo um dia de folga para festejar o Divino Espírito Santo, “a rainha” mandou
tirar as algemas das mãos, porém não dos pés antes de deixá-los subir no barco. IN: Boyer, 2008, p. 21.
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Este calendário vem sendo cumprido tanto pelo pessoal do Laguinho, quanto pela turma da
antiga Favela. No Laguinho, sempre houve duas quadras. Na Favela, a festa era feita em
Louvor à Santíssima Trindade. Como os festeiros do Laguinho, liderados pelo senhor
Julião Tomaz Ramos, eram mais influentes e tinham como sócios algumas pessoas de
melhor condição econômica, a festa que eles organizavam eram mais badalada e
concorrida. Quem não podia brincar, ficava á distância, olhando. Coube á senhora
Gertrudes Saturnino, moradora da Favela, a iniciativa de comemorar a Quadra da
Santíssima Trindade, franqueando a entrada a quem quisesse brincar. Seu feito decorreu
de uma promessa que seria paga mediante oferecimento de almoço às crianças com idade
até 12 anos. Por esta razão, a quadra realizada na Favela passou a ser conhecida como
Trindade dos Inocentes. Mas, os gozadores não perderam tempo. Rotularam a 2º quadra
do Marabaixo feita no Laguinho como Trindade dos Ricos e a da Favela, como Trindade
dos Pobres. (Montoril: 2004, 29-30).
Sobre as origens do termo Marabaixo Veronique Boyer sistematiza algumas narrativas que se
alternam entre os festeiros e praticantes do Marabaixo.
... o marabaixo, uma dança a respeito da qual circulam diversas versões, mais
complementares do que excludentes. Numa primeira, diz-se simplesmente que ela foi
trazida pelos africanos do Marrocos, onde recebia o nome de coco. A segunda já propõe
esclarecer o porquê dessa substituição, portanto uma etimologia para a palavra.
Encontrar-se-ia na decisão de uma velha mulher de chamar o coco de marabaixo, depois
de um negro escravo, protestando contra sua deportação, deixar-se morrer durante a
travessia e seus companheiros jogarem-no na água, o corpo indo então “mar abaixo”. A
última narrativa focaliza-se mais na explicação da maneira de dançar o marabaixo: o
passo não pode ser leve, mas sim arrastado, pois quando atendeu ao pedido dos negros
querendo um dia de folga para festejar o Divino Espírito Santo, “a rainha” mandou tirar
as algemas das mãos, porém não dos pés antes de deixá-los subir no barco.
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O Marabaixo como marcador de diferenças é o ponto mais reificado nas conversas com os
participantes do Berço do Marabaixo da Favela. Essas tensões permanecem e posso afirmar
que foram aprofundadas e não estão apenas no nível econômico, são tensões políticas e
revelam projetos e posturas diferentes da população negra com relação ao processo de
desterritorialização cujo começo se dá com a criação do Território Federal do Amapá, em
1943. Se para a história oficial Julião Ramos é o grande líder negro do qual o governador do
Território, Janary Nunes, irá aproximar-se, conceder-lhe privilégios e reconhece-lo como
“porta-voz” dos negros de Macapá, para os “povo da Favela” Gertrudes Saturnino é a grande
líder daqueles que não aceitaram ser expulsos e tomaram outra direção, foram para a Favela e
esta nunca se constituiu enquanto um bairro, nunca teve qualquer registro nos órgãos públicos
como Agência de Correios, Companhia de Energia Elétrica e de Água e Esgoto. Se de um
lado temos um apagamento da Favela na história oficial da cidade, de outro temos a
resistência de seus primeiros moradores expresso nas festas de Marabaixo e do Carnaval das
Escolas de Samba.
A escolha dos sujeitos-alvo começou com a admiração pela pessoa de dona Gertrudes que
conheci através de relatos de seus familiares em fins da década de 1980 quando a Escola de
Samba Maracatu da Favela fez um enredo homenageando personagens importantes para a
Escola e para o que seria o “bairro da Favela”. Os relatos que conheci na ocasião
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apresentavam uma dona Gertrudes como a grande líder que veio para região da Favela por
não concordar com as diretrizes estabelecidas, pelo governo territorial, para se estabelecer no
bairro do Laguinho. Parteira, lavadeira, amassadeira de açaí seguiu para uma região oposta ao
Laguinho, zona norte da cidade, definida pelas autoridades territoriais, com seus familiares
seguiu para o oeste da margem direito do rio Amazonas. Também rompeu com o marabaixo
do Laguinho quando, a partir de uma promessa para a Santíssima Trindade, festejada no
Laguinho, passou a festejar a Santíssima Trindade dos Inocentes na qual oferecia um almoço
para crianças até 12 anos. Essa festividade se realiza até os dias de hoje por seus familiares.
Também foi em sua residência que se constituiu a Escola de Samba Maracatu da Favela.
Mulher de posturas firmes, poetisa nas rodas de marabaixo e seus ladrões marcavam sempre
um cotidiano feminino e polêmico. (Marilda Costa, 2012)
Dona Gertrudes Saturnina de Loureiro foi casada com Hypólito da Silva Gaia, mas foi com
Raimundo Pereira da Silva, conhecido como “Capa Branca” com quem viveu e constituiu sua
família com cinco filhos: Sebastião Pereira da Silva (falecido), Mamédio Amaral da Silva
(falecido), Maria Natalina da Silva (Costa), Maria José da Silva(Libório) e Izabel Saturnina de
Loureiro.
As mulheres da família de dona Gertrudes sempre foram mais ligadas ao marabaixo, Maria
Natalina, Maria José e Izabel prosseguiram com o festejo do Marabaixo da Santíssima
Trindade dos Inocentes, até hoje. Esses familares de dona Gertrudes e outros moradores da
Favela instituíram o Grupo Folclórico Gertrudes Saturnino, fundado em julho de 1988, com
uma diretoria composta por Marilda Silva da Costa (neta), Maria José da Silva Libório (filha),
Sônia de Jesus Coimbra e Marilene Silva da Costa(neta), Nerilda da Silva Rodrigues e
Marilúcia Costa Maciel e Maria Natalina Silva da Costa e outros membros como José Flexa
da Costa (Zeca Costa) Josefa de Araújo Gonçalves (Fifita), José Ramos de Souza (Escurinho),
Glafira Costa e Silva (Preta) e Maria Antonia Marques, João Rodrigues do Carmo (João
Congo), Joana Flexa da Costa (Joaninha), Maria Conceição Flexa da Costa (Gita Costa),
Izabel Saturnina da Silva(filha) e Lucilda do Carmo Oliveira. Desde o ano de 2006 o grupo
folclórico transformou-se em Associação Cultural Berço das Tradições Amapaenses cuja
referência patronal é Gertrudes Saturnina e atende pela denominação de Berço do Marabaixo
da Favela. A observação etnográfica se realiza, prioritariamente, neste universo de
filhas/filhos, netos/netas e bisnetos/bisnetas de dona Gertrudes, envolve também outras
pessoas que participam do Marabaixo e da Favela. O trabalho com esse universo da família de
dona Gertrudes e seu Capa Branca foi subdividido em 04 núcleos familiares o de d. Maria
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Natalina, o de dona Maria José, o de dona Izabel e o de seu Mamédio. Marilda Silva da Costa,
Marli de Jesus Silva da Costa, Marinete Silva da Costa, Miraelson Silva da Costa, Valdinete
Silva da Costa, Valdilene Silva da Costa são filhas e filho de d. Maria Natalina, e seu
Valdomiro Alves da Costa são meus principais interlocutores na observação etnográfica.
A Favela enquanto um território negro na cidade de Macapá evidencia a luta de grupos sociais
locais por ocasião da implantação da administração territorial que expulsou essas populações
para áreas distantes do rio, alagadas e estabelecidas em áreas onde, antes, mantinham seus
roçados, criação de animais e coleta de frutas, castanhas e outros produtos extrativos. A
cidade de Macapá tem origem ainda na primeira metade do século XVIII, no contexto da
ocupação portuguesa na região amazônica. De um destacamento militar localizado as margens
das ruínas da fortaleza de Santo Antonio (1738) constituiu-se um povoado que, a partir da
administração pombalina (1750), tornou-se, em 04 de Fevereiro de 1758, Vila e no decorrer
da segunda metade do século XIX, em 06 de setembro de 1856, cidade de Macapá.
Atualmente a cidade tem uma área de 6.407 km2 e uma população estimada de 397.913
habitantes5.
A criação da Vila de São Jose de Macapá trouxe consigo a presença de colonos, militares e
escravos indígenas e africanos que deram origem as terras amapaenses. Já na segunda metade
do século XVIII os negros configuravam-se como o segmento étnico com maior densidade
populacional, na Vila de Macapá e em seus primeiros anos como cidade. Oficialmente, essa
população negra teve seus primeiros contingentes desembarcados nas terras amapaenses em
1751 com os colonos açorianos (Acevedo: 1999, 13) e com mais densidade os que vieram
com os mazaganistas oriundos do norte da África e estabelecidos na Vila de Mazagão ás
margens do Mutuacá. Aliás, a presença negra em Mazagão Velho é tomada como referência
para o Movimento Negro e o Movimento Quilombola de Macapá, pois atribuem aos negros
de Mazagão Velho as origens, o “berço cultural”, do “povo amapaense”.
5
Recenseamento Geral do Brasil, feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – 2010 – IBGE.
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A noção de território torna-se central na luta dessas populações negras, não só em áreas rurais,
como também nas cidades onde tem se fortalecido práticas, políticas e simbólicas, de
reconhecimento e valorização do pertencimento étnico àqueles negros do passado. A
denominação histórica de terras de pretos (Leite, 2010) pode ser aplicada a Macapá e áreas
circunvizinhas pela significativa ocupação que os negros realizaram nesta região do Amapá e
percebida, nos dias atuais, pela existência de diversas comunidades que reivindicam hoje seu
reconhecimento como áreas de remanescentes de quilombo.
A reinvindicação por território quilombolas no Amapá tem uma concentração entre os
municípios de Macapá e Santana. É importante lembrar que Santana foi um povoado criado
por Mendonça Furtado, 1758, logo depois de criar a Vila de São Jose de Macapá, no mesmo
ano. Santana tornou-se um município em 1987, o que me leva a toma-la como parte das áreas
“circunvizinhas” de Macapá. O quadro abaixo indica este movimento por territórios e
identificação étnica que se faz atualmente no Amapá cujo centro é Macapá.
Ao propor uma territorialização negra, ainda no século XIX, quando os africanos, cativos e
libertos, se apropriaram da Vila de São José de Macapá valorizo um falar muito comum entre
os negros que habitavam a frente a cidade: aqui antes, tudo era nosso! E isso envolvia a casa
na frente da cidade, assim como as matas onde criavam animais, faziam suas tarefas de
mandioca, colhiam produtos da floresta. Esta realidade foi drasticamente mudada com o
Território Federal, pois sua implantação avançou sobre essas terras que proporcionavam a
sobrevivência e autonomia das populações estabelecidas na frente da cidade. Aliás, esse
contínuo entre o rio, a casa e o quintal, onde se plantava e criava é uma característica das
populações amazônicas antes da ocupação recente, datada da segunda metade do século XX.
(Refkalesfky: 1992).
A desterritorialização modificou essa relação com a terra, com a produção e as formas de vida
dos grupos negros em Macapá e a Favela se constituiu enquanto um novo território dentro
desse processo de desterritorialização das áreas “nobres” da cidade, processo que perdura até
os dias atuais, quando os moradores da antiga frente da cidade continuam sendo
“empurrados” para bairros distantes do centro da cidade como Jardim Felicidade, Congós,
Novo Horizonte, Marabaixo entre outros, daí a compreensão de que se estabeleceu uma
desterritorialização contínua.
Atualmente no centro da cidade a Favela tem grande parte de seu território denominado de
Santa Rita e Central. Suas famosas ladeiras não são mais percebidas no desenho da cidade e a
maior parte de seus antigos moradores foi dispersa em bairros mais periféricos da cidade
como Jardim Felicidade, Congós, Brasil Novo, Marabaixo entre outros.
Território e identidade étnica são conceitos que andam juntos nos discursos do “povo” do
Marabaixo da Favela. Aqui a análise da composição da poetisa Marli Costa, neta de dona
Gertrudes, permite evidenciar questões que esses conceitos suscitam. A música “Raça
Guerreira” é bem emblemática para os objetivos desta comunicação.
Escravidão, liberdade, luta e herança deixada pelos antepassados são expressões utilizadas
recorrentemente para narrar o passado que garante o presente e ao cruzar esses termos a farta
documentação histórica temos muitos autores que dão conta desse passado histórico a partir
da presença de africanos escravizados distribuídos pela Companhia de Comércio do Grão-
Pará e Maranhão, responsável pela introdução sistemática de cativos africanos vila Nova de
Mazagão, vila Vistosa Madre de Deus e na Vila de São José de Macapá, a partir de 1755
(Vergolino-Henry & Figueiredo: 1990). Ainda na segunda metade do século XVIII Macapá
era uma vila nos arredores da grande fortaleza cuja construção fora iniciada em 1764, e
finalizada em1773. Seus moradores são soldados recrutados entre “brancos e mamelucos,
filhos de viúvas e lavradores”, colonos portugueses e escravos africanos e
indígenas.(Acevedo-Marin: 1999, 40). Na segunda metade do século XIX o contingente de
negros, cativos, fugidos e libertos compõe a grande maioria dos moradores de Macapá (Luna:
2011) onde deve-se levar em consideração a abolição na Guiana Francesa (1848), a região
contestada entre o Brasil e a França e intensa movimentação de africanos em fuga tanto das
vilas de Macapá e Mazagão, quanto do sul do Pará.
O rio Araguari era o ponto de apoio, o lugar da produção de bens desses trânsfugas, mas
se dá a entender que a vila de Macapá era o lugar ideal para as articulações comerciais,
inclusive, considerada mais preciosa para a comercialização do que mesmo com os
colonos de Caiena que se situavam na área em litígio. Isso era percebido pelos fugitivos
desde que iniciaram contatos culturais com a vila de Macapá a partir dos festejos do
rosário. Essa vila era também foco de interesses dos que desejavam praticá-la como
exercício da posse arbitrária dos bens particulares, (ferramentas e armas) e dos frutos
resultantes do trabalho realizado pelos colonos. (Luna: 2011, 161)
A luta contra o apagamento dos negros na história da cidade é outro ponto muito importante
pela resistência que o “povo” da Favela coloca com central em suas lutas. É relevante os
dados que informam sobre a presença negra em Macapá nas primeiras décadas do século XX
Macapá possuía aproximadamente 1.300 habitantes, dos quais 40% eram negros e
proprietários dos terrenos da área da Beira-rio, na frente da cidade. No começo da década de
1940, o Recenseamento Geral de 1940 informa que a população do Município de Macapá é de
16.234 pessoas, sendo 6.041 brancos, 2.562 pretos, nenhum amarelo, 7.590 pardos e 41 cuja
cor não foi declarada(Rodrigues: 1988). Vinte anos depois, na década de 1960, essa
população no município de Macapá era de 11.720 brancos, 4.001 pretos, 30.881 pardos, 167
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amarelos e 04 que não declaram cor6. Esses dados confirmam a existência de uma
significativa população marcada pelo critério cor.
Até então vimos apresentando dados sobre a existência de populações negras na região de
Macapá e que esses negros são significativos na formação social e histórica do lugar. Ao
perguntarmos como esta população foi vista e tratada pelos migrantes que vieram a partir do
Território Federal e quais foram as relações estabelecidas com os poderes públicos
estabelecidos, Álvaro da Cunha7 dá algumas pistas interessantes, principalmente por apontar
para a constituição dos “pioneiros”, trazidos por Janary Nunes, primeiro governador indicado
diretamente pelo Presidente da República Getúlio Vargas, com a missão de implantar uma
Unidade Federativa guardiã do Estado brasileiro e da civilização na fronteira setentrional.
... Quase quatro quintos dos funcionários e famílias que vieram para o Território à
época da instalação do Governo, procederam do Estado do Pará de onde foi
desmembrada a nova Unidade. Saíam eles da capital para o mato. Das avenidas
para a beira do rio. Do conforto da metrópole para a pobreza extrema do interior.
Trocavam as excelências da iluminação elétrica pelas trevas constantes de
povoados sem luz. Trocavam a possibilidade de educação para os filhos e dos
recursos médicos mais fácies, pelo atraso cultural... Substituiam os seus bangalôs
de alvenaria, os seus lares confortáveis, pelos casebres de madeira, pelos edifícios
coloniais em ruínas, então os únicos existentes na própria capital do território.
Êles eram, portanto, os pioneiros, os fundadores, as cobaias humanas de uma nova
experiência política e social...
Êles constituíam, na sua maior parte, aquêles que a pobreza econômica, o desajuste
político, a rotina dos trabalhos inglórios, a suspensão das oportunidades e o
desprestígio do mérito, haviam colocado, em Belém, numa situação marginal.
Buscavam o novo campo, atendendo aos apelos do futuro e fustigados pelo anseio
de uma vida melhor. (Cunha: 1954, 15)
Já na década de 1960, e diante das preocupações com o fornecimento de energia para a
exploração mineral – principalmente do manganês – a Grunbilf do Brasil foi incumbida pela
Companhia de eletricidade do Amapá (CEA) para desenvolver um Plano de Urbanização da
cidade de Macapá, estudo este baseado em elementos fornecidos pelas autoridades federais e
municipais do Território e pela CEA. No relatório apresentado constam orientações sobre um
planejamento racional de distribuição não só de energia, como também dos serviços de águas
e esgotos informa sobre uma cidade que, ao final da década de 1960, conta com pretos,
brancos, pardos e caboclos migrantes a Ilhas do Pará. Todos moradores de uma cidade cujas
principais características foram assim definidas:
6
Recenseamento Geral do Brasil, feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – 1960 – IBGE.
7
Álvaro a Cunha era funcionário do Governo do T.F. do Amapá e, como funcionário, foi estudar na Escola
Brasileira de Administração Pública da Fundação Getúlio Vargas para a qual escreveu um trabalho tratando das
relações de governo no então Território.
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maior parte das casas construídas, de madeira, por serem mais baratas. Está claro e
inevitável que algumas desapropriações se farão necessárias, porém é de esperar a
substituição paulatina das construções de madeira por construções de tijolos.(Grunbilf do
Brasil, 15).
Aqui a Favela já não aparece como uma denominação de uma área importante na cidade.
Alguns moradores da Favela atribuem esse procedimento, por parte da administração
territorial, como uma retaliação pelo fato de seus moradores criticarem as políticas
governamentais, fato é que na documentação oficial até então levantada, não há uma única
menção a uma área da cidade denominada de Favela, o que é um silêncio gritante Daí a
Favela só existir para seus moradores e nos dias de hoje na memória dos mais velhos. Ao
contrário do Laguinho, a Favela nunca se constituiu enquanto um bairro, nunca teve qualquer
registro nos órgãos públicos como correios, energia elétrica, água e esgoto. Alguns de seus
moradores antigos dizem que a Favela foi apagada por ser um lugar de resistência ao
urbanismo de Janary.
Entendo que esses negros constituíram um território entre fins do século XIX e primeiras
décadas no século XX e viveram/vivem um processo de desterritorialização que começou em
fins da década de 1940 e se estende até os dias atuais. Foi sobre essa área que recaiu a política
de concentração populacional de migrantes: japoneses, maranhenses, paraenses e ilhéus dos
arredores de Macapá. Foi na Favela também que se estabeleceu a zona de Meretrício, os
primeiros religiosos do Tambor de Mina que vieram do Maranhão. Na região da Favela foi
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estabelecida uma população migrante que veio para as obras de base para a implantação dos
órgãos públicos, necessários á administração territorial.
Quando ainda habitavam a frente da cidade, os festejos do marabaixo da Santíssima Trindade
e do Divino Espírito agrupavam a comunidade negra ali residente, onde todos podiam pagar
as promessas feitas e participar diretamente da organização dos eventos como festeiros.
Quando os negros foram expulsos da Rua da Praia famílias, festas e sociabilidades foram
separadas. Nessa divisão entre Favela e Laguinho constituíram-se grupos distintos cujo
principal elemento marcador desta distinção foi o Marabaixo da Santíssima Trindade dos
Inocentes.
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