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Temas em Psicologia

ISSN: 1413-389X
comissaoeditorial@sbponline.org.br
Sociedade Brasileira de Psicologia
Brasil

Pessotti, Isaias
Sobre a teoria da loucura no século XX
Temas em Psicologia, vol. 14, núm. 2, 2006, pp. 113-123
Sociedade Brasileira de Psicologia
Ribeirão Preto, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=513751429002

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ISSN 1413-389X Temas em Psicologia – 2006, Vol. 14, no 2, 113 – 123

Sobre a teoria da loucura no século XX

Isaias Pessotti
Universidade de São Paulo – Ribeirão Preto – Brasil

Neste trabalho as expressões afetivos e passionais. A medicina não estava


“psicopatologia” e “teoria da loucura” são preparada para lidar com a loucura como
usadas como equivalentes. Antes de apontar uma doença da mente ou da pessoa. Apesar
algumas contribuições teóricas importantes do entusiasmo inicial, o “tratamento moral”,
da psicopatologia do século XX, pretendo mal visto pela psiquiatria vigente e
caracterizar em linhas gerais o enfoque adulterado por aplicações inadequadas,
teórico da loucura no século precedente. durou poucas décadas e, desde a metade do
O século XIX foi a época de maior século XIX, o velho organicismo recuperou
florescimento da teoria e da terapêutica da sua hegemonia no pensamento e nas práticas
loucura. Ele começa com o Traité Médico- da psiquiatria. Qualquer alusão a fenômenos
Philosophique de Pinel – uma verdadeira psíquicos, a funções mentais e a qualquer
revolução teórica e terapêutica. Após a enfoque psicológico era visto como
hegemonia secular de um organicismo especulação – coisa de “médicos filósofos”.
hipotético ou até metafísico, Pinel e Esquirol As anomalias do discurso ou do
apresentam uma nova concepção sobre a comportamento eram apenas evidências de
natureza e a causa da loucura. Quanto à transtornos cerebrais. Assim, ao “tratamento
natureza, ela é, essencialmente, um moral” contrapôs-se triunfante o “tratamento
desarranjo duradouro do discurso e dos atos, físico”, destinado a provocar efeitos sobre o
que não se ajusta à realidade circunstante, funcionamento do cérebro. A demorada
mas corresponde a idéias erradas sobre os observação do comportamento dos pacientes
eventos físicos ou sociais. Assim, a causa da foi substituída pelo exame clínico. E, em vez
loucura já não deve ser buscada em alguma de buscar correlações entre a história pessoal
presumida lesão estrutural ou funcional do e a conduta anormal, passou-se a procurar,
encéfalo, mas na experiência do real. Essa através da anatomia patológica, correlações
experiência é entendida em dois sentidos: entre os sintomas e as presumidas alterações
como processo de elaboração de idéias, a no tecido cerebral.
partir da percepção sensorial, e como Na verdade o que se rejeitava era o
exposição aos impactos afetivos da vida papel causal da experiência na produção da
cotidiana, às paixões. A loucura tem como loucura. Visava-se a uma medicina
causa erros no conhecimento e resulta da “frenológica”, que lidasse com verdadeiros
formação de idéias erradas sobre as relações fatos cerebrais e não com processos mentais.
com as coisas ou com os outros. Dado que a investigação direta dos
Com Pinel, a psiquiatria passa a ser, de processos cerebrais era praticamente
um lado, a correção de hábitos, via correção impossível, o exame dos sintomas
das idéias; de outro, a reeducação afetiva, observáveis ganhou importância essencial,
isto é, o controle (até pedagógico) das pois eles eram as evidências do distúrbio
paixões. São estas as funções do “tratamento cerebral essencial. Para um freniatra,
moral”, que é, com todas as letras, um qualquer componente pessoal ou subjetivo
método de modificação do comportamento. na loucura só tinha sentido como produto ou
(Se quiserem: uma terapia cognitivo- sintoma da doença cerebral; e a práxis
comportamental). médica correta deveria seguir os mesmos
Esta psicoterapia reeducadora cânones da neurologia. Assim, para o
desapropriava um território secular da diagnóstico importava determinar um agente
medicina, visto que todos os seus recursos causal, uma lesão orgânica específica e uma
terapêuticos pouco ou nada serviam para forma clínica típica que envolvia início,
reeducar idéias e hábitos e para coibir vícios decurso e desfecho característicos.

Conferência de abertura apresentada na XXXVII Reunião Anual de Psicologia da Sociedade Brasileira


de Psicologia, realizada em outubro de 2007 em Florianópolis, Santa Catarina.
Endereço para correspondência: ipessott@fmrp.usp.br.
114 Pessotti, I.

Havia um modelo encorajador para os da doença, ou dos sintomas, entre os


freniatras: a paralisia geral progressiva de ascendentes do paciente.
Bayle. Nela se identificavam claramente a Desde o “Tratado das
causa, a lesão e a forma clínica típica. O Degenerescências” de Morel (1857), na falta
treponema da sífilis lesava o tecido cerebral de lesões cerebrais específicas, a
e produzia sintomas e evolução hereditariedade poderia ser invocada como
característicos. Mas, exceto para delírios de uma causa orgânica, alternativa, capaz de
origem tóxica ou infecciosa, os cânones da legitimar o enfoque positivista. Embora
neurologia não se aplicavam. Não se achava indefinida, ela implicava um
a causa ou a lesão orgânica típica para a comprometimento ou uma lesão
quase totalidade das verdadeiras doenças necessariamente sediada no organismo.
psiquiátricas que lotavam os manicômios, Mesmo admitindo essa possível
tais como: demência, melancolia, mania, determinação orgânica, Kraepelin,
paranóia, obsessões e histerias, etc. curiosamente, inclui entre os sintomas,
Mesmo assim, a psiquiatria positivista alterações de “funções psíquicas”. E nos
do período foi pródiga em propostas de casos que descreve, refere-se,
causas e lesões orgânicas hipotéticas. freqüentemente, a alterações do
Meynert, por exemplo, “explicava” a mania “psiquismo”. Mas estes sintomas
como produto de uma super-excitação das “psíquicos” não implicam qualquer
células corticais devida ao afluxo excessivo sentimento ou estado subjetivo. São
de sangue; e a depressão melancólica, por avaliações, até psicométricas, de
um processo oposto: as células se inibiam desempenhos motores ou cognitivos. Meras
por falta de irrigação sanguínea suficiente, e, medidas do comprometimento de funções
assim, produziam as inativações típicas da cerebrais, e que seu mestre Wundt havia
melancolia. elaborado.
Para um verdadeiro espírito científico, o Em resumo, para Kraepelin, as diversas
desafio era manter o enfoque empirista da doenças psiquiátricas são diferentes
psiquiatria sem essas especulações sobre evoluções de quadros sintomáticos. Por
processos fisiológicos hipotéticos ou conseqüência, quadros tidos como variações
metafísicos. de um distúrbio único podiam aparecer
como doenças distintas. Inversamente,
formas tidas como doenças diversas podiam
Kraepelin ser meras variações sintomáticas de uma
A resposta a esse desafio constitui a mesma doença de base, ou de uma mesma
obra monumental de Kraepelin, que coroa a constituição predisponente, sobre base
psiquiatria do século XIX e inaugura a do hereditária e degenerativa.
século XX. Para ele, uma correta nosografia Assim, os tipos da loucura ou “psicose
psiquiátrica dependerá de uma anatomia- endógena” passaram a compor dois grandes
patológica que aponte as lesões cerebrais da grupos: o das psicoses “maníaco-
loucura, embora as considere, até então, depressivas”, que englobava as formas
conjeturais. O seu Tratado deriva de uma maniacais, as melancólicas e alternâncias
decisão básica: se de nada servem as entre elas; e o segundo, chamado dementia
explicações subjetivistas, também não serve praecox, que agrupava outros quadros, com
apontar causas e lesões hipotéticas – os decurso e desfecho comparáveis – as antigas
dados empíricos que o médico tem diante de ebefrenia, catatonia e demência paranóide.
si são apenas os sintomas, apenas a “forma Note-se que, nesta classificação, cada
clínica” da doença, ou seja, seu início, seu doença é, essencialmente, um conjunto de
decurso e seu desfecho. É apenas a evolução sintomas, evidências de distúrbios cerebrais.
do quadro sintomático que pode e deve Nada mais que isso. Como escreve Civita
basear o diagnóstico e a terapêutica. Por (1996), “(...) no horizonte de Kraepelin, é
isso, a anamnese não serve para explorar completamente ausente a categoria do
conteúdos subjetivos da doença ou uma significado. Os sintomas nada significam,
história pregressa de impactos emocionais, não exercem qualquer função. Eles são puro
mas somente para identificar sintomas e simples defeito, disfunção” (Civita, 1996,
originários, iniciais e a eventual incidência p. 84).
Sobre a teoria da loucura no século XX 115

Em meados do século XIX, grandes Freud, Bleuler, Minkowski e Binswanger,


clínicos, como Griesinger e Falret, além de terem significado, os sintomas são
recomendavam que se considerassem, ao dotados de função: eles servem a algum fim.
lado das eventuais lesões encefálicas, Os textos freudianos de 1920 e 1924,
também as “lesões à sensibilidade moral, às sobre as diferenças entre neurose e psicose,
inclinações e pendores” (Cotard, 1879, p. são típicos da nova psicopatologia do século
275-276). Mas referiam-se às alterações XX. Nela o conceito de eu torna-se crucial:
emocionais enquanto resposta orgânica, toda a patologia mental implicará
antecipando a idéia de “ativação simpática”. dificuldades do eu para afirmar-se ante as
Aliás, Kraepelin admitiu que a sua dementia exigências instintivas do id e as da realidade
praecox poderia ter uma causa metabólica. circunstante. Em 1923, Freud definiu
Ela resultaria de algum efeito tóxico sobre o cristalinamente sua distinção entre neurose e
cérebro produzido por alguma substância de psicose: “A neurose seria o efeito de um
origem sexual. conflito entre o eu e o seu id, enquanto a
Esse objetivismo extremado da psicose representaria o resultado análogo de
psiquiatria positivista, reforçado pela obra uma perturbação semelhante nas relações
de Kraepelin, começa a ser contestado nas entre o eu e o mundo externo” (1923, p.
primeiras décadas do século XX. 611). Em 1924, escreveu: “(...) em outras
Como efeito da difusão da palavras: a neurose não renega a realidade,
fenomenologia de Husserl e da teoria mas apenas não quer saber dela; a psicose,
psicanalítica, a filosofia e a psicopatologia porém, renega a realidade e tenta substituí-
começam a interessar-se sistematicamente la” (1924, p. 41). Num primeiro momento, o
pela subjetividade. A natureza humana passa eu retira-se de uma realidade incompatível
a ser procurada à margem das categorias da com as exigências instintivas do id e,
ciência, no homem concreto, do cotidiano, portanto, intolerável; num segundo
existencial. momento, tenta construir uma realidade
A subjetividade, antes rejeitada, substitutiva, mais conforme as pressões do
adquire, no século XX, importância decisiva id.
tanto na filosofia como nas jovens “ciências Portanto, o delírio, além de conter
humanas”, notadamente na psicologia. O significados, exerce uma função defensiva,
homem passa a ser visto como um “ser no compensatória. Sua função é a de compensar
mundo”, sujeito ou agente de processos as tensões resultantes de conflitos anteriores
afetivos; e não como um locus em que numa solução fantasiosa, através de uma
ocorrem doenças, ou como mero portador de realidade substituta. É a compensação dos
distúrbios. Ele é uma pessoa dotada de auto- complexos.
conhecimento, valores, afetos, desejos, e que
reage de forma normal ou incomum aos
eventos da vida. Na verdade, o termo Bleuler
“subjetividade” é a designação genérica para
o universo da experiência pessoal; implica Eugen Bleuler, sob as influências,
processos cognitivos e afetivos, cujo estudo contraditórias de Kraepelin e de Freud,
científico só então se iniciava. Mas já nas constrói uma psicopatologia sui generis ao
últimas décadas do século XIX, duas obras instituir o conceito de esquizofrenia. Já no
pioneiras abriam caminho para uma nova texto de 1911, “Demência precoce ou o
teoria da loucura: um texto de Cotard grupo das esquizofrenias”, Bleuler
(1879), que introduz na psicopatologia o reconhece quanto a sua caracterização da
conceito de “eu” e o de motivação esquizofrenia deriva da doutrina de
inconsciente, e o “Ensaio sobre os dados Kraepelin, e o quanto dela resulta também
imediatos da consciência”, de Bergson, de da teoria freudiana:
1889. “O conceito de dementia praecox é
Depois de Kraepelin, o discurso ou a inteiramente kraepeliniano. Também o
conduta delirante não mais são vistos como agrupamento e a distinção dos sintomas
perda ou deterioração de funções, mas como singulares são quase unicamente obra de
um universo de experiências únicas e ricas Kraepelin (...) Afirmo, uma vez por todas.
de significados. Mais ainda, nas obras de Grande parte deste ensaio, a ampliação dos
116 Pessotti, I.

limites da patologia, nada mais é do que a funções psíquicas” (Bleuler, 1911, p.31).
aplicação das idéias de Freud à dementia Essa cisão (Spaltung), basicamente a perda
praecox (...)” (Bleuler, 1967, p. 25). dos nexos associativos entre os elementos do
Essa veneração justa por seu mestre pensamento, pode afetar conexões lógicas,
Kraepelin, talvez tenha induzido Bleuler a como as relativas à inclusão ou à exclusão
esquecer a contribuição anterior (e pioneira) entre conceitos ou classes; conexões
de Morel à formulação do conceito de semânticas, entre termos e significados, por
dementia praecox. Mas, ao associar exemplo; conexões sintáticas, na forma
repetidamente a dementia praecox ao nome verbal dos conceitos; e, ainda, conexões
de Kraepelin, Bleuler marca a diferença dinâmicas, como as que expressam relações
entre o quadro descrito pelo mestre e o entre causa e efeito, antecedente e
conceito, todo seu, de esquizofrenia; no qual conseqüência, premissas e conclusões, etc.
a palavra “demência” desaparece. A troca Dessas cisões deriva, obviamente, uma
não é só de nome. O neologismo confusão contínua no fluxo das idéias: o
esquizofrenia marca uma mudança curso do pensamento é continuamente
substancial no enfoque da doença. Implica a perturbado por idéias supervenientes, torna-
constatação clínica de que a demência, se totalmente ilógico e sem um fio condutor
entendida como deterioração e perda de coerente com algum objetivo.
funções mentais, não é um desfecho O discurso resultante, sem lógica e
inevitável da doença e nem é um aspecto incompreensível, implicaria algum dano
essencial do quadro sintomático. E embora grave no funcionamento cerebral e um
para Kraepelin as eventuais remissões do irrecusável diagnóstico de demência. Uma
quadro significassem, ao invés de demência que Bleuler hesita em reconhecer,
verdadeiras curas, apenas erros de pois sua vasta experiência clínica mostrava
diagnóstico, Bleuler admite que a cura não é que o esquizofrênico mantinha inalteradas
impossível. várias funções mentais.
A mudança implica também, por Porém, uma vez perdido o
conseqüência, uma ampla reinterpretação da relacionamento lógico com o mundo e com
nosografia de Kraepelin sobre a dementia, os outros, e diante de uma realidade que já
voltada para caracterizar a marcha não consegue compreender, a tendência do
inarrestável para a deterioração terminal das doente a isolar-se num mundo sem conflitos
funções psíquicas. O variegado quadro é uma conseqüência inevitável. E isto é o
nosográfico agora é entendido como que configura o segundo sintoma
expressão de um processo novo: o da fundamental da doença, o autismo.
compensação (afetiva) dos “complexos”, Bleuler explica este processo: “O
que a teoria freudiana apontava. Assim, por autismo é a direta conseqüência da cisão
exemplo, a perda de afetividade, que para esquizofrênica do pensamento. O sujeito
Kraepelin era apenas um sinal genérico de sadio, ao executar as operações lógicas,
desarranjo cerebral, para Bleuler é um tende a consultar o material disponível,
processo seletivo que obedece à dinâmica independentemente das valências afetivas.
dos complexos – pois os vínculos Mas, o relaxamento esquizofrênico da lógica
abandonados são os que implicam alguma leva à exclusão de todas as associações que
carga emocional penosa (consciente ou se contrapõem a algum complexo, de fundo
inconsciente). Toda a nosografia de emotivo. Assim pode ser satisfeita sem
Kraepelin é reorganizada por Bleuler com a problemas a necessidade, que nunca falta, de
distinção entre sintomas fundamentais, que substituir com a fantasia uma realidade
tipificam a esquizofrenia, e secundários, que insuficiente. Os produtos da fantasia podem
caracterizam as anomalias e os conteúdos do contradizer a realidade mas no cérebro do
delírio esquizofrênico nos casos singulares. doente não entram em conflito, e até se
O primeiro sintoma fundamental é conciliam com suas necessidades afetivas”
formulado por Bleuler quando ele propõe o (Bleuler, 1985, p. 226-227).
termo esquizofrenia: “Chamo esquizofrenia “Os esquizofrênicos graves já não têm
à dementia praecox porque, como espero qualquer relação com o mundo externo,
demonstrar, uma de suas características mais vivem num mundo a se; ali vivem com seus
importantes é a cisão entre as diversas desejos que consideram satisfeitos ou com o
Sobre a teoria da loucura no século XX 117

sofrimento da própria perseguição. Limitam, pesquisa de E. Minkowski, discípulo


ao máximo os contactos com o mundo. reverente de Bleuler .
Chamamos autismo ao destaque da realidade Além de Kraepelin e Freud, também
e à predominância da vida interior. Em casos Kretschmer, com sua tipologia (1921)
menos graves (...) os doentes ainda se influenciou a psicopatologia de Bleuler. Os
movem no mundo externo mas nem a tipos principais de Kretschmer, esquizóide e
realidade, como se apresenta, nem a lógica ciclóide, foram redefinidos por Bleuler, que
tem o poder de modificar o delírio deles. substituiu ciclóide por síntone e cicloidia
Tudo o que se contrapõe aos seus complexos por sintonia. A vantagem da mudança está
não existe, nem para o pensamento nem para em que sintonia denota apenas a permanente
o sentimento (...)” (Bleuler, 1985, p.75-78). suscetibilidade afetiva às alterações do meio,
Este último trecho aponta duas independentemente de alguma alternância
conotações importantes do delírio do cíclica de estados de excitação ou depressão.
paciente: ele menciona o que Minkowski Bleuler entende a esquizoidia e a sintonia
chamará a “convicção delirante”, a rejeição não como predeterminações orgânicas de
de qualquer idéia ou argumento que abale ou modos de reagir aos eventos, mas como dois
conteste a “realidade” fictícia em que se tipos de “constituição“.
isolou; e implica, ademais, toda uma vida Por “constituição” Bleuler entende o
interior substituta e suficiente para dar conta processo de interação progressiva entre
dos seus complexos. Bleuler prossegue: “(...) experiências pessoais e disposições
O conteúdo do pensamento autístico é orgânicas herdadas, que são de dois tipos: as
constituído de desejos e temores(...) Mesmo evolutivas, que asseguram modos e ritmos
sem verdadeiras idéias delirantes o autismo do processo de maturação orgânica, e as
está presente na incapacidade dos doentes reativas, que determinam as interações entre
para adaptar-se à realidade, e na o corpo e as influências ambientais.
inadequação de suas reações às influências O termo “predisposição” não implica
externas (...)” (Bleuler, 1985, p. 75-78). qualquer predestinação de cada um a certos
Dos dois sintomas primários, a modos de perceber ou atuar; o que importa
Spaltung e o autismo, derivam alterações nele é a idéia de “disposição prévia”,
diversas no quadro clinico: são os sintomas concebida como mera possibilidade de
secundários ou acessórios. Em última certas funções, normais ou aberrantes. O
análise, são modos de falsear a realidade conceito exclui qualquer fatalismo, qualquer
circunstante para harmonizá-la com as idéia de comportamentos pré-moldados e
necessidades afetivas ou instintivas do não admite uma genética dos desempenhos
doente. Tais são, por exemplo, as do organismo. O que há é um organismo
alucinações e os vários tipos de delírio. dotado de estruturas (órgãos ou tecidos)
Portanto, segundo Bleuler, as herdadas e que determinam possibilidades e
alucinações, fantasias e idéias delirantes são limites para a relação dele com o meio. Mas
recursos de compensação afetiva e não estas relações resultarão de processos
meras operações cerebrais defeituosas, como evolutivos da própria estrutura orgânica
pensava Kraepelin: elas têm significado e (crescimento e maturação) e dos limiares de
expressam alguma carência ou desejo resposta orgânica às variações ambientais.
contrastado. Portanto, “predisposições hereditárias”
Com essa postura teórica, de matiz são possibilidades e limiares de resposta ao
freudiano, Bleuler inova substancialmente a meio, estabelecidas progressivamente ao
psiquiatria: depois dele, além do longo da maturação orgânica. Enquanto
levantamento nosográfico, à maneira de predisposições têm apenas uma significação
Kraepelin, cabe ao clínico decifrar o lógica: não implicam e nem explicam
significado (afetivo) dos sintomas quaisquer reações ao meio ou
levantados e, mais ainda, interpretar e comportamentos. São apenas condições para
explorar terapeuticamente a função que eles possam ocorrer. Os fatores
compensatória deles. A questão da determinantes são dois: o desenvolvimento
interpretação dos sintomas (primários e somático (dos sistemas endócrino, nervoso,
secundários) e da função que eles exercem metabólico, motor, etc.) que fundamentará
serão analisadas, em profundidade, na os processos da economia animal, criadores
118 Pessotti, I.

de necessidades e carências, chamadas, às bang” (que seria, por exemplo, o surgimento


vezes, instintos; e, de outro lado, a de uma hipotética lesão cerebral). Tal lesão
experiência produzida por alterações no só seria eficaz quando agisse sobre uma
ambiente externo (físico ou social) ou no constituição (esquizóide ou síntone) já
próprio funcionamento corporal. estabelecida. Pois: “(...) a nossa atitude em
A cada momento de ativação alcançado relação aos outros depende, em grande
por essa estrutura (predisposições) medida, da experiência anteriormente
correspondem outras possibilidades novas adquirida: se alguém é tímido ou inibido (...)
de desenvolvimento somático e de se é hostil ou benévolo em relação aos
experiência do ambiente. E este novo nível outros (...) se alguém se fecha ou se abre,
de experiências (antes impossibilitadas pelas depende muito da experiência da vida em
limitações do desenvolvimento somático comum (...)” (Bleuler, 1967, p. 9).
precedente) determina novas alterações no Deve-se notar que as disposições
funcionamento somático. orgânicas (reativas e evolutivas) não são as
Por exemplo, um dado grau de “constituições”. É a interação progressiva
desenvolvimento hormonal torna possível a delas com as sucessivas experiências que
ativação de certas disposições orgânicas determina uma constituição mais esquizóide
(evolutivas ou reativas) e, deste modo, a ou mais síntone.
influência de certas experiências. O Quanto ao processo causal das
desenvolvimento do instinto sexual “doenças esquizofrênicas”, na edição
(hormonal) propicia certas experiências póstuma do Tratado de Bleuler, de 1967,
corporais e sociais. Os efeitos destas cuidada por Manfred Bleuler, consta:
experiências sobre as reações corporais “Trata-se de psicoses cuja gênese ainda não
ulteriores são alterações somáticas ou está esclarecida (...) Nem foram
ambientais. Assim, cada estágio do identificados fundamentos somáticos quando
desenvolvimento é pré-requisito para a o interesse premente da pesquisa mudou-se
aquisição de novas disposições orgânicas e da patologia cerebral para o metabolismo.
de novas experiências – tal como as Tanto menos se conseguiu reduzir a doença
sucessivas equilibrações da epistemologia em maneira (...) convincente, como se pôde
genética de J. Piaget (1972) são pré- fazer com as neuroses, a uma evolução
condições para estágios cada vez mais explicável em termos de psicologia”
complexos do desenvolvimento intelectual. (Bleuler, 1967, p. 436).
A teoria da personalidade, de Bleuler,
aponta para uma “psicopatologia genética”:
não por alusão a qualquer gene, mas Jaspers
entendida como um processo de gênese. Ele No século passado, a crescente
escreveu: “É claro que os eventos sucessivos valorização dos fatores afetivos ou
da vida determinam um grau ulterior de instintivos na explicação da loucura, embora
evolução e um novo desenvolvimento da motivasse inovações psicoterápicas,
personalidade, mas isso ocorre sempre e implicava uma questão intrigante: como é
apenas sobre a base do grau de possível um conhecimento válido de
desenvolvimento previamente atingido, processos que são subjetivos e portanto,
sobre o qual ficou impressa a experiência inobserváveis?
anterior. O modo com que vivemos alguma Karl Jaspers, desde 1913, discutia a
coisa e o modo com que alguma coisa age fundo esta questão epistemológica na sua
sobre nós traz já a marca de tudo o que “Psicopatologia Geral” – uma autêntica
temos vivido anteriormente” (Bleuler, 1967, “crítica da razão psiquiátrica”, reeditada e
p.12). ampliada até 1959. Segundo Jaspers, em
Então, as constituições, esquizoidia ou psicopatologia, os objetos possíveis de
sintonia, de cada pessoa vão-se formando ao conhecimento são dois: os fenômenos
longo de estágios sucessivos do psíquicos (singulares) e as relações deles
desenvolvimento pessoal. A transformação com outros eventos. Os primeiros implicam
delas em esquizofrenia ou em psicose uma psicopatologia estática, que pode ser
maníaco–depressiva, portanto, não resultaria subjetiva ou objetiva. O método para a
apenas de algum “fiat” ou de algum “big- primeira deve necessariamente ser o da
Sobre a teoria da loucura no século XX 119

fenomenologia de Husserl. É preciso de experiências de qualquer outra pessoa.


descartar qualquer teoria ou qualquer Sim, o delírio esquizofrênico, por exemplo,
conceito precedente para colher o vivido tem significados, mas tais significados são
pelo outro, tal como se apresenta inacessíveis tanto à compreensão, quanto à
intuitivamente, numa compreensão por explicação.
identificação com ele. De outro lado, uma É uma postura frontalmente oposta à
psicopatologia objetiva estuda os aspectos pretensão da psicanálise de desvendar os
externos dos estados psíquicos, como a significados inconscientes da loucura.
postura, o discurso, a mímica facial, por Jaspers escreveu: “(...) caminha-se num
exemplo; e seu método não visa a uma mundo de hipóteses. Não são demonstráveis,
compreensão, mas a uma explicação – tal e nem prováveis, simplesmente imaginadas
explicação, segundo Minkowski, limita-se (...) A psicanálise ficou cega para essas
ao nível organo-psíquico da loucura. limitações. Ela pretendia compreender tudo”
De outro lado, uma psicopatologia (1982, p. 390-393). Embora essa observação
dinâmica ocupa-se das relações dos se refira ao delírio esquizofrênico, o que
fenômenos psíquicos com outros eventos: Jaspers está afirmando é a impossibilidade
são as relações psíquicas. Destas, algumas de qualquer conhecimento do inconsciente.
são as “compreensíveis”, que podem ser Aliás, como pensaria Skinner, os eventos
intuídas, mas não explicadas. Por exemplo, subjetivos, internos são internos para
como a espera produz ansiedade, como uma sempre.
perda ou fracasso gera depressão, etc. Mas A tese de Jaspers expunha um problema
as relações causais, que tanto interessam ao metodológico e clínico: como entender e
cientista e ao clínico, exigem uma como lidar clinicamente com processos
psicopatologia explicativa que relacione o subjetivos? Se eles não podem ser
surgimento de um fenômeno psíquico a compreendidos e nem explicados, como
alguma causa externa ao mundo psíquico, intervir clinicamente sobre eles? Uma
subjetivo. Por exemplo, as relações que resposta construtiva a tais questões exigiria
ligam a ingestão de álcool ao delírium reflexões sobre os modos possíveis de
tremens, aos distúrbios hormonais, à conhecer e de relacionar-se com o outro –
irritabilidade, à fadiga, aos prejuízos no neste caso, o paciente.
desempenho de tarefas, etc. Tais reflexões estão na base da
Mas, note-se que as relações causais psicopatologia de Minkowski e de
que a psicopatologia explicativa aponta são Binswanger, dois discípulos de Bleuler,
entre algum efeito psíquico e um evento clínicos e filósofos, ambos muito
causal extrapsíquico. Pois a relação entre influenciados pela fenomenologia de
dois eventos psíquicos é apenas Husserl. Além disso, a psicopatologia de
compreensível, não pode ser explicada. Binswanger inspira-se na filosofia
Fica claro que só uma psicopatologia existencialista de Heidegger; e a de
explicativa pode fundar uma teoria da Minkowski, é marcada nitidamente pela de
loucura capaz de elaborar princípios Bergson.
explicativos e leis gerais. Já o conhecimento
compreensivo limita-se a cada caso
individualmente, e dependerá, Minkowski
essencialmente, de alguma capacidade de Em La schizophrénie, de 1927, e em Le
identificação afetiva e intuitiva com o vivido temps vécu, de 1968, Minkowski pretende
pelo paciente. Uma capacidade que será entender como se estrutura a relação entre o
tanto maior quanto mais o terapeuta houver eu e o mundo na vida do esquizofrênico,
passado por experiências comuns com as do mais do que os conteúdos afetivos da
paciente. esquizofrenia. A própria dinâmica dos
Dessas considerações, Jaspers chega a complexos que, segundo Bleuler, tinha uma
uma conclusão radical: pode-se tentar uma importância determinante, até causal na
explicação do comportamento do louco, mas esquizofrenia, para Minkowski ela é,
a sua loucura ou o seu mundo delirante é também, como os demais sintomas: uma
inacessível à compreensão. Pois o que ele manifestação de algum processo mais
vivencia nada tem em comum com a história primitivo, no plano existencial. Este
120 Pessotti, I.

processo é o da perda do contacto vital, coisas do ambiente. O conflito do esquizóide


instintivo, com a realidade. É o é a busca de caminhos para o acesso à
desligamento afetivo do fluxo temporal da realidade, para a qual ele nem sempre
vida, uma “anestesia afetiva”. As consegue abrir passagem” (Minkowski,
constituições esquizoidia e sintonia que, 1927, p.37).
para Bleuler, eram produtos da interação São duas buscas conflitivas, pois a meta
entre organismo e experiência no plano de cada uma não pode ser definitiva e
psico-biológico ou “organo-psíquico”, são, excludente: a posse do próprio eu não pode
agora entendidas, como duas condições levar à perda da realidade; e o contacto vital
ontológicas mais primitivas, dois princípios com ela não pode implicar a perda do
vitais, dois modos do ser no mundo. A próprio eu. Bleuler já notara que enquanto o
construção da personalidade será o maníaco, com loucura maníaco-depressiva,
desenvolvimento dessa relação existencial absorve com avidez o mundo exterior e se
eu-mundo, preexistente a qualquer ocupa dele continuamente, o maníaco
racionalidade. esquizofrênico se desinteressa por ele.
Esta idéia levará a uma visão nova da Admitir que a perda do contacto vital
loucura: enquanto modo de estar no mundo, com a realidade é o distúrbio essencial na
ela não é um modo errado, doentio, mas loucura impõe, em qualquer tentativa válida
apenas um modo diverso de relação entre o de diagnóstico, a importância da pessoa,
homem e o mundo. Minkowski constrói sua entendida como um sujeito (um ser no devir
teoria como uma “psicologia do pathos”, da vida). E com isso se reduz
muito mais que uma “patologia do consideravelmente a importância de uma
psíquico”. O enfoque clínico ou teórico da nosografia sintomática meramente
esquizofrenia, segundo Minkowski, deve descritiva, à maneira de Kraepelin.
separar o processo esquizofrênico como tal Os sintomas da loucura apenas
das alterações nos desempenhos mentais, e exprimem um modo peculiar de estar no
abrir mão do “espírito de precisão” que, na mundo. Na esquizofrenia o que é peculiar é
busca de uma ciência exata, ignora, como a busca de retomar um contacto vital com a
afirmou Bergson, “que toda uma parte da realidade. Alguma forma de contacto existe,
nossa vida e não a menos, importante, tanto que a realidade não é rejeitada como
escapa inteiramente ao pensamento hostil ou penosa, mas tal contacto não é
discursivo (...). Assim,os dados imediatos da vital. Pois o ambiente real não é vivenciado
consciência são os mais essenciais. Eles são com suas nuances, valores afetivos e
irracionais, mas nem por isso deixam de hierarquias de importância. Falta ao mundo
fazer parte da nossa vida. Não há qualquer do esquizofrênico o calor afetivo, a projeção
necessidade de sacrificá-los ao espírito de de si mesmo para o futuro, a sensação do
precisão (...). É aqui que surge a noção do próprio devir, de estar embarcado no devir
contacto vital com a realidade” (Minkowski, do mundo, etc. Obviamente o conceito de
1927, p. 81-82). vida aqui aludido implica movimento,
Cada homem, portanto, enquanto ser no mudança, progressão, identificação com o
mundo, apresenta, como constituição de tempo que flui sempre para um futuro – no
base, uma certa proporção de cada um dos qual está sempre cada objetivo a dar sentido
dois princípios vitais (esquizoidia e e destinação ao comportamento. Na falta
sintonia), que são, na verdade, graus de desta vivência do tempo projetada para o
contacto vital com a realidade ambiente. Um futuro, o devir das coisas perde sentido,
contacto que, se perdido, levaria à perde sua carga afetiva. O eu se desliga da
esquizofrenia e, se exagerado, conduziria à vida, do fluxo vital. E então, como a razão
psicose maníaco-depressiva. “Ocorre que, não opera no vazio, na falta da realidade
durante a vida, o síntone suaviza o que há de ambiente, surge um mundo imaginário,
excessivamente anguloso e cortante na pobre, repetitivo e estereotipado. Através
esquizoidia, enquanto a esquizoidia é dele a vida psíquica sobrevive, degradada e
chamada a aprofundar o que é por demais empobrecida. Sua função precípua é
superficial e difuso na sintonia. O conflito compensar o vazio deixado pela ausência de
do síntone é a busca do eu que parece fugir- contacto vital com a realidade, pois é ela
lhe a cada instante: ele vive demais nas que, no fundo, determina o comportamento
Sobre a teoria da loucura no século XX 121

do indivíduo frente ao ambiente e afetivos dela, principalmente os temporais).


condiciona, em seguida, os sintomas clínicos Essa incapacidade para viver o tempo
de ordem esquizofrênica (...) no curso do seu manifesta-se, por exemplo, nas estereotipias,
desenvolvimento psicótico. que Minkowski enxerga não como meras
Até a cisão entre os elementos do repetições de atos ou frases, mas como
pensamento Spaltung, que Bleuler admitia sucessivos reinícios de um pensamento ou
como mera deterioração do desempenho um ato que não consegue perdurar ou
cognitivo ou verbal, é substituída pela idéia completar-se. Ou projetar-se para o futuro.
de “anestesia afetiva”; pois, os nexos que se Minkowski entende que todas as
perdem não são necessariamente os da aberrações do discurso ou dos atos do
lógica ou os da sintaxe, mas os nexos esquizofrênico são, na verdade, tentativas
instintivos que, na pessoa normal, asseguram ineficazes de retomar o contacto vital com a
o sentimento de estar imerso no fluxo realidade. Tais são as “atitudes
temporal da vida. esquizofrênicas” como o negativismo, o
Minkowski adota uma idéia fecunda de “geometrismo mórbido” e o “agonismo
Bergson: a de que dentre as duas forças mórbido”. Ou ainda, a “atitude
constitutivas da vida humana, inteligência e interrogativa”, na qual o doente faz
instinto, a primeira só domina o que é dado, incessantes perguntas (embora não lhe
estático, inerte ou, de certo modo, morto; interessem as respostas, já que não consegue
enquanto a vida real é, por definição, fluxo, prolongar um pensamento ou um diálogo).
devir, transformação. E, portanto, o que nos Cada pergunta é apenas uma tentativa,
liga à vida não é a inteligência, mas o abortada, de recuperar o sentimento de estar
instinto, pois só ele tem “a faculdade de ligado à vida real.
assimilar tudo o que é movimento e Incapaz de unir o passado ao presente, o
duração”. Perdido este contacto instintivo paciente se encasula no passado e vive nele
com a realidade, o pensamento fica como se este tivesse todo o valor do
esvaziado dos conteúdos afetivos dela, tais presente. Assim se explicaria a preservação
como: projetos, valorações, preferências e as da memória e até a hipermnesia dos
hierarquias de importância atribuída às esquizofrênicos: perdido o nexo vital com a
coisas ou às idéias. É então que, livre das realidade presente, a fixação no passado
balizas afetivas, a inteligência tenderá a seria o modo de ainda se situar no mundo.
construir o pensamento com idéias e Como nos casos de “arrependimento
critérios “cujo domínio próprio, na vida mórbido”, em que o discurso do paciente
normal, é unicamente o da lógica e das retorna repetidamente a algum episódio
matemáticas” (Minkowski, 1927, p.104). pregresso em que errou ou fracassou.
Disto decorrem o “geometrismo mórbido” O delírio, segundo Freud e Bleuler,
do pensamento esquizofrênico, o apego tinha a função de compensação afetiva dos
excludente aos aspectos racionais da complexos; para Minkowski, ele e os demais
realidade (o racionalismo mórbido) e a sintomas exercem outra função: a de
conseqüente incapacidade de lidar com os compensar a perda da ligação instintiva com
fatores irracionais – que são essenciais em a vida, ou com os outros. Trata-se agora de
situações decisivas. A loucura implica “a uma compensação existencial, ôntica, no
perda da noção dos limites e da medida, que nível primordial, do “ser no mundo”; e não
nenhuma operação intelectual poderia no nível da economia afetiva ou organo-
precisar” (Minkowski, 1927, p. 107). psíquica, como pensariam Freud e Bleuler.
“Os fatores afetivos, e mais que eles, a No conteúdo do discurso ou do
duração vivida parecem ter desaparecido pensamento esquizofrênico, os aspectos
totalmente da existência. E assim, ele (o valorativos ou afetivos, não racionais, da
doente) se acha constantemente em realidade já não são vividos. É uma
contradição com a vida” (Minkowski, 1927, racionalidade alheia às hierarquias de
p. 116). Aqui não se trata da rejeição de uma importância, ou de abrangência de eventos,
realidade que a Spaltung tornou ou de conceitos; alheia também aos valores e
incompreensível, mas de uma deformação conteúdos afetivos do cotidiano normal.
racionalizante da realidade (dada a Desse modo, depois de séculos, o
incapacidade de assimilar os aspectos delírio, essência da loucura, já não é a perda
122 Pessotti, I.

ou o extravio da razão: ele é a hegemonia da sintomas para o diagnóstico ganhou mais


razão, liberta das conotações afetivas ou importância do que a indagação sobre os
instintivas das idéias ou eventos – uma razão conteúdos subjetivos da esquizofrenia e da
pura. psicose maníaco-depressiva. Como resultado
Para explicar a causa da loucura temos o casamento, por enquanto eufórico,
(esquizofrênica ou maníaco-depressiva), entre uma florescente psiquiatria
Minkowski reformula a noção bleuleriana de farmacológica, impropriamente designada
“constituição”. Cada homem, ao nascer, como “biológica” (a nova versão do velho
enquanto um “ser no mundo”, começa a organicismo) e o manual diagnóstico,
delimitar uma fronteira entre o que identifica chamado DSM. Como os autores do DSM
como seu corpo, ou seu eu, e o que lhe é proclamam o caráter ateórico dele, não cabe
estranho. Este processo pode tender a aqui discutí-lo.
fortalecer essa fronteira ou reforçar uma Por tudo isso, a segunda metade do
permeabilidade maior ao que acontece no século XX é muito pobre de contribuições
mundo. Resultarão, então, dois modos de ser teóricas, exceto algumas derivações dos
no mundo (ou duas constituições): uma, enfoques da primeira metade, devidos a
esquizóide, na qual o eu tende a segregar-se Freud, Bleuler e discípulos desse, como
mais nitidamente; outra, síntone, na qual a Jung, Minkowski e Binswanger.
permeabilidade do eu aos eventos do mundo Desvalorizadas a subjetividade do
externo é maior. A oscilação entre a paciente e a indagação psiquiátrica sobre a
afirmação do próprio eu e a suscetibilidade vida afetiva dele, graças à presumida
aos eventos externos é a sanidade. A produtividade creditada à psiquiatria dita
excessiva segregação do próprio eu, biológica e ao DSM (uma sigla que até pode
enclausurado num mundo solipsístico, é a ser lida como “Dispense Seu Médico”), o
esquizofrenia. De outro lado, perder a louco-sujeito, e a loucura como modo do
própria identidade e passar a “ser” o que “ser no mundo”, são hoje assuntos da
acontece, é a forma básica da loucura reflexão filosófica.
maníaco–depressiva. Portanto, os sintomas, Estamos vivendo um novo tempo de
o delírio e as “atitudes esquizofrênicas” são hegemonia do organicismo, após uma fase
tentativas pobres ou vãs de reatar a ligação de interesse em processos subjetivos? Uma
instintiva com a vida, num caso, ou de nova revanche de Hipócrates, após uma
restabelecer as fronteiras do próprio eu num fugaz soberania de Platão? Na verdade a
mundo por demais invasivo, no outro caso. questão secular é: quanto o comportamento
humano é produto das estruturas orgânicas e
quanto resulta das experiências singulares de
Conclusão cada homem? Ou, noutros termos, quanto é
A “análise estrutural” de Minkowski a história pessoal que determina o
completa-se com seu Tratado de 1966. Junto comportamento normal ou patológico de
à “análise existencial” de Binswanger, ela cada homem, a despeito das estruturas
constituiu o que se chamou “psicopatologia orgânicas que herdou? Ou, ainda, quanto a
fenomenológica”. Dela descende a tendência própria fisiologia cerebral pode alterar-se
chamada “anti-psiquiatria”, representada por como efeito da experiência?
Laing, Basaglia e outros, que foi ou é,
basicamente, um esforço de tradução dos
princípios da psicopatologia fenomenológica Referências
em práxis terapêutica e assistencial. E, Bergson, H. (1889). Essai sur les données
portanto, suas implicações teóricas são immédiates de la conscience. Paris:
bastante escassas. P.U.F.
Na segunda metade do século XX, a
Bleuler, E. (1967). Trattato di Psichiatria,
difusão do tratamento farmacológico, desde
Milano: Feltrinelli.
os anos 50, e sua eficácia sobre os sintomas,
promovida a eficácia curativa, propiciaram Bleuler, E. (1985). Dementia praecox o il
uma certa desvalorização dos exaustivos gruppo delle schizofrenie (Trad. do
exames diagnósticos e, mais ainda, da teoria original, 1911). Roma: Nuova Itália
que deveria embasá-los. A catalogação dos Scientifica.
Sobre a teoria da loucura no século XX 123

Civita, A. (1996). Introduzione alla storia e Minkowski, E. (1973). El tiempo vivido (A.
all’epistemologia della psichiatria. S. Saez, Trad.). México: Fondo de
Milano: Guerini. Cultura Econômica.
Cotard, J. (1879). Folie. In Dictionnaire
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citações:
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Freud, S. (1981/84). Neurosi e psicosi.In Philosophique sur l’aliénation mentales
Opere di Sigmund Freud (Vol. IX). (2a. ed.). Paris: J. A. Brosson.
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Freud, S. (1981/84) La perdita della realtà Pisa: ETS Sigma Tau.
nella neurosi e nellapsicosi. In Opere di
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Boringhieri. Petrópolis: Vozes.

Jaspers, K. (1970). Psicopatolia General.


Buenos Aires: Editorial Beta.
Enviado em Novembro/2007
Minkowski, E. (1927). La schyzophrénie. Aceite em Novembro/2007
Paris: Payot. Publicado em Março/2009
Minkowski, E. (1966). Traité de
Psychophologie. Paris: P.U.F.

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