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ISSN: 1413-389X
comissaoeditorial@sbponline.org.br
Sociedade Brasileira de Psicologia
Brasil
Pessotti, Isaias
Sobre a teoria da loucura no século XX
Temas em Psicologia, vol. 14, núm. 2, 2006, pp. 113-123
Sociedade Brasileira de Psicologia
Ribeirão Preto, Brasil
Isaias Pessotti
Universidade de São Paulo – Ribeirão Preto – Brasil
limites da patologia, nada mais é do que a funções psíquicas” (Bleuler, 1911, p.31).
aplicação das idéias de Freud à dementia Essa cisão (Spaltung), basicamente a perda
praecox (...)” (Bleuler, 1967, p. 25). dos nexos associativos entre os elementos do
Essa veneração justa por seu mestre pensamento, pode afetar conexões lógicas,
Kraepelin, talvez tenha induzido Bleuler a como as relativas à inclusão ou à exclusão
esquecer a contribuição anterior (e pioneira) entre conceitos ou classes; conexões
de Morel à formulação do conceito de semânticas, entre termos e significados, por
dementia praecox. Mas, ao associar exemplo; conexões sintáticas, na forma
repetidamente a dementia praecox ao nome verbal dos conceitos; e, ainda, conexões
de Kraepelin, Bleuler marca a diferença dinâmicas, como as que expressam relações
entre o quadro descrito pelo mestre e o entre causa e efeito, antecedente e
conceito, todo seu, de esquizofrenia; no qual conseqüência, premissas e conclusões, etc.
a palavra “demência” desaparece. A troca Dessas cisões deriva, obviamente, uma
não é só de nome. O neologismo confusão contínua no fluxo das idéias: o
esquizofrenia marca uma mudança curso do pensamento é continuamente
substancial no enfoque da doença. Implica a perturbado por idéias supervenientes, torna-
constatação clínica de que a demência, se totalmente ilógico e sem um fio condutor
entendida como deterioração e perda de coerente com algum objetivo.
funções mentais, não é um desfecho O discurso resultante, sem lógica e
inevitável da doença e nem é um aspecto incompreensível, implicaria algum dano
essencial do quadro sintomático. E embora grave no funcionamento cerebral e um
para Kraepelin as eventuais remissões do irrecusável diagnóstico de demência. Uma
quadro significassem, ao invés de demência que Bleuler hesita em reconhecer,
verdadeiras curas, apenas erros de pois sua vasta experiência clínica mostrava
diagnóstico, Bleuler admite que a cura não é que o esquizofrênico mantinha inalteradas
impossível. várias funções mentais.
A mudança implica também, por Porém, uma vez perdido o
conseqüência, uma ampla reinterpretação da relacionamento lógico com o mundo e com
nosografia de Kraepelin sobre a dementia, os outros, e diante de uma realidade que já
voltada para caracterizar a marcha não consegue compreender, a tendência do
inarrestável para a deterioração terminal das doente a isolar-se num mundo sem conflitos
funções psíquicas. O variegado quadro é uma conseqüência inevitável. E isto é o
nosográfico agora é entendido como que configura o segundo sintoma
expressão de um processo novo: o da fundamental da doença, o autismo.
compensação (afetiva) dos “complexos”, Bleuler explica este processo: “O
que a teoria freudiana apontava. Assim, por autismo é a direta conseqüência da cisão
exemplo, a perda de afetividade, que para esquizofrênica do pensamento. O sujeito
Kraepelin era apenas um sinal genérico de sadio, ao executar as operações lógicas,
desarranjo cerebral, para Bleuler é um tende a consultar o material disponível,
processo seletivo que obedece à dinâmica independentemente das valências afetivas.
dos complexos – pois os vínculos Mas, o relaxamento esquizofrênico da lógica
abandonados são os que implicam alguma leva à exclusão de todas as associações que
carga emocional penosa (consciente ou se contrapõem a algum complexo, de fundo
inconsciente). Toda a nosografia de emotivo. Assim pode ser satisfeita sem
Kraepelin é reorganizada por Bleuler com a problemas a necessidade, que nunca falta, de
distinção entre sintomas fundamentais, que substituir com a fantasia uma realidade
tipificam a esquizofrenia, e secundários, que insuficiente. Os produtos da fantasia podem
caracterizam as anomalias e os conteúdos do contradizer a realidade mas no cérebro do
delírio esquizofrênico nos casos singulares. doente não entram em conflito, e até se
O primeiro sintoma fundamental é conciliam com suas necessidades afetivas”
formulado por Bleuler quando ele propõe o (Bleuler, 1985, p. 226-227).
termo esquizofrenia: “Chamo esquizofrenia “Os esquizofrênicos graves já não têm
à dementia praecox porque, como espero qualquer relação com o mundo externo,
demonstrar, uma de suas características mais vivem num mundo a se; ali vivem com seus
importantes é a cisão entre as diversas desejos que consideram satisfeitos ou com o
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