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O Caso Jeremias
No início da tarde de 8 de agosto de 1963, um grupo de trabalhadores
irrompia os limites da propriedade do Engenho Oriente, em També, município da
Zona da Mata pernambucana localizado nos limites com a Paraíba. O objetivo da
marcha para o engenho era a realização de uma manifestação pelo pronto
pagamento do 13º salário aos trabalhadores do engenho, direito que fora
estabelecido através do ETR, e que era freqüentemente negligenciado pelos
patrões, contrários e descontentes com o benefício. À frente dos manifestantes
estava o seu líder, conhecido por todos como Jeremias.
O ato projetado para o dia 8 de agosto de 1963 no Engenho Oriente era uma
ação promovida pelo sindicato. Cobrar o pagamento do 13º salário era normalmente
um motivo que causava grande fúria aos proprietários ainda não acostumados ou
dispostos a arcar com este ônus trabalhista e tais reivindicações motivavam reações
que podiam mesmo chegar a ser drásticas.5 O protesto chefiado por Jeremias,
desgraçadamente, acabou tendo um final dramático.
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Através da SORPE – Serviço de Orientação Rural de Pernambuco – os padres buscavam impor
uma barreira ao avanço das Ligas e à influência de Francisco Julião sobre os trabalhadores rurais no
Estado. A SORPE, em princípio, buscaria estabelecer entendimentos entre os lados conflituosos no
campo sem que fosse necessário o enfrentamento mais radical de ambos os lados, ou, em outras
palavras, procurava a conciliação entre proprietários e trabalhadores.
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Um exemplo dos desdobramentos mais cruéis da resistência dos proprietários ocorreu na Usina
Estreliana, em Ribeirão, no 7 de janeiro de 1963, quando houve um extermínio sumário de
trabalhadores que reivindicavam, através de um ato de protesto, que o 13º. salário fosse pago.
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permitido o avanço além daquele ponto. Também foi visto um outros homens, que
armados ameaçavam quem ousasse seguir adiante. Jeremias, como líder dos
manifestantes, se dirigia a todos afirmando que falariam com o proprietário e que
todos buscassem manter-se calmos, que aquela deveria ser uma manifestação
pacífica. Contudo, Jeremias seguiu avançando em direção à porteira, quando, de
repente, recebeu um tiro que foi disparado por um atirador que se encontrava
escondido por trás de uma moita próxima à porteira. Diversos outros disparos foram
feitos em seguida com o objetivo de dispersar os cerca de trezentos manifestantes
que estavam no local. Quinze pessoas saíram-se feridas em decorrência do tumulto
ou por terem sido também vítimas dos disparos e Jeremias acabou sendo morto.
Além de vitimado pelo disparo de rifle em seu peito, o jovem sindicalista teve ainda
seu crânio esmagado por pancadas que foram desferidas mesmo após caído na
margem da estrada de acesso à sede do engenho.
A então gestão do Governo Estadual, que era chefiada por Miguel Arraes,
havia sido eleita no ano anterior, contrariando os desejos conservadores e mesmo
reacionários dos grupos ligados à grande propriedade agrária, do conservadorismo
urbano e os investimentos do IBAD.7 Arraes buscou estabelecer os limites legais e
constitucionais como esteio para a ação governamental no tocante aos conflitos no
campo, procurando, ao mesmo tempo, “neutralizar a oposição das oligarquias mais
tradicionais e da burguesia urbana e agroindustrial e assegurar uma base de
legitimação mais ampla para o seu governo”.8 Esta estratégia de ação preconizava o
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DIÁRIO DE PERNAMBUCO. Recife, 9 de agosto de 1963.
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O IBAD (Instituto Brasileiro para a Ação Democrática) foi criado com o objetivo de minar as
campanhas dos candidatos esquerdistas ou “subversivos” através do investimento direto em ações
localizadas em cidades ou estados que pudessem exercer influência nos resultados das eleições. O
instituto era financiado por empresários brasileiros, contudo, há fortes indícios de que fundos norte-
americanos também constituíssem a receita do órgão, que tinha ainda fortes vínculos cooperativos
com a CIA.
8
AZEVÊDO, Fernando Antônio. As Ligas Camponesas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. p. 106.
5
9
Idem.
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Folha 31 dos autos do processo de denúncia (Processo 58.060) contra Murilo Borba da Silva e
Francisco Santana Nunes: Certidão do Ofício 505/63 da Secretaria de Estado dos Negócios do
Interior e Justiça – Gabinete do Secretário, expedido em 9 de agosto de 1963.
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Depoimentos:
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O depoente declarou que seu ordenado semanal como tirador de leite era de Cr$ 700,00.
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Declaração extraída dos termos constantes nos autos processuais.
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O depoente afirmou ainda ter testemunhado uma conversa entre José Borba
e um homem identificado como Nilton, que discutiam sobre o ameaçador Jeremias.
Durante esta conversa, “seu” Nilton teria dito expressamente que Jeremias era um
“agitador” e, como se lê nos autos, José Borba havia retrucado que, além de ser um
“cabra safado”, o sindicalista “merecia morrer” (grifo nosso). O trabalhador do
engenho teria observado que no dia 4 de agosto16, percebeu no engenho a presença
de quatro homens estranhos, os quais presumiu terem sido conduzidos à
propriedade por Nilton, pois dois deles foram vistos em companhia deste trafegando
num automóvel Rural. O depoente soube por um destes homens que eles teriam
sido trazidos ao engenho para conter uma greve que os trabalhadores rurais tinham
o intento de fazer em cobrança ao pagamento do 13º salário. As denúncias feitas
pelo tirador de leite de 25 anos de idade davam conta de que os forasteiros, o
homem conhecido por Nilton, além do proprietário do engenho, andavam armados.
O tratorista Abel, que tentou impedir a passagem dos manifestante pelo acesso à
sede do engenho havia, segundo o depoente, recebido de José Borba um revólver
calibre 38 e que fazia questão de expor esta arma a todos – Manoel da Silva do
Nascimento chegou a declarar que nunca havia visto um revólver 38 até a ocasião
em que Abel decidiu lhe expor a arma, numa evidente ostentação de que era
homem de confiança do proprietário. Abel havia deixado de dedicar-se à manobra
do trator para assumir uma função tipicamente de capanga, acompanhando José
Borba em freqüentes saídas do engenho.
O tirador de leite não estava presente no exato local do tiroteio, embora tenha
escutado os disparos durante cerca de cinco minutos. O temor de que algo pudesse
ter ocorrido à sua família o fez correr para sua casa e cessado o tiroteio, resolveu
tirar sua esposa e filho do engenho, quando no caminho viu seguirem em alta
velocidade a perua de José Borba, o jipe de Nilton, uma picape pertencente a um
certo “seu” Rominho, estando todos esses veículos lotados.
O depoente, que havia ficado satisfeito por saber que Jeremias iria cobrar o
pagamento do 13º salário dos trabalhadores do Engenho Oriente (porque ele
pretendia “empregar o dinheiro na compra de um chapéu”), só tomou ciência da
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Temos que deduzir algumas das datas constantes nos autos de declaração, sobretudo datas
próximas ao crime, porque estes documentos, que estão presentes no processo de denúncia na
forma de certidões assinadas pelo 2º tabelião público do Cartório do 2º Ofício da Comarca de També,
não possuem datação alusiva à sua produção. Os autos de declaração originalmente fizeram parte
dos autos do inquérito policial.
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morte do líder sindical quando deixou sua família na vila de Ferreiros. Na ocasião
tomou ainda conhecimento de que o tiroteio deixou mais oito pessoas feridas.
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Note-se que a caracterização do vínculo desta testemunha ao engenho é ambígua. Recebiam
salário, naturalmente, os trabalhadores de eito que se enquadravam nos parâmetros usuais
característicos da categoria específica de assalariados, enquanto aqueles que tiravam sua
subsistência essencialmente de pequenos lotes que exploravam e pagavam cambão não se
enquadravam nestes parâmetros. Algum trabalhador que presta seis dias de cambão não poderia ser
caracterizado formalmente como assalariado. Assalariados poderiam residir nos limites da
propriedade onde trabalhavam ou não (no caso dos “bóias-fria”), mas foreiros, necessariamente,
lidavam com terras que pertenciam à fazenda ou engenho ao qual estavam vinculados (ainda que
suas residências fixas não tivessem, obrigatoriamente, que ser nesta mesma propriedade). Há uma
interrogação marcada por caneta na certidão do termo de declarações desta testemunha no trecho no
qual está registrado o seu vínculo ao engenho, sinal de que este dúbio enquadramento chamou a
atenção nos autos do processo de denúncia.
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A “multidão” que estava em companhia do sindicalista era composta possivelmente por
trabalhadores que deveriam estar presentes no comício.
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permitem com que seja possível obter uma dimensão mais ampliada do atentado
que vitimou fatalmente o líder sindical Jeremias e que deixou diversos outros
manifestantes feridos.
Pelo que se pode captar através destes depoimentos, somos levados a crer
que já havia um cenário pronto para que o desfecho de um drama fosse encenado
no Engenho Oriente. O alarde de uma greve já vinha sendo alimentado, logo, os
precavidos proprietários trataram de garantir os seus próprios meios de resistência e
repressão a qualquer iniciativa mais agressiva dos manifestantes, que eram
articuladamente aguardados em sua zona de martírio.