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“O CASO JEREMIAS” E SEU REVÉS POLÍTICO

Paulo Alexandre da Silva Filho


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“O CASO JEREMIAS” E SEU REVÉS POLÍTICO1


Paulo Alexandre da Silva Filho

O Caso Jeremias
No início da tarde de 8 de agosto de 1963, um grupo de trabalhadores
irrompia os limites da propriedade do Engenho Oriente, em També, município da
Zona da Mata pernambucana localizado nos limites com a Paraíba. O objetivo da
marcha para o engenho era a realização de uma manifestação pelo pronto
pagamento do 13º salário aos trabalhadores do engenho, direito que fora
estabelecido através do ETR, e que era freqüentemente negligenciado pelos
patrões, contrários e descontentes com o benefício. À frente dos manifestantes
estava o seu líder, conhecido por todos como Jeremias.

Jeremias, na verdade, era um pseudônimo adotado por Paulo Roberto Pinto,


um jovem de 23 anos que integrava um grupo de ativistas chamado Vanguarda
Leninista, alinhado à orientação trotskista da IV Internacional. A Vanguarda Leninista
era um pequeno grupo constituído por estudantes do sul ou sudeste do país que
decidiram embarcar na experiência revolucionária através das Ligas Camponesas.
Este militante grupo de atuação política era marcado exatamente pela constituição
de seus quadros e Joel Câmara, então estudante de Direito pernambucano e ativista
das Ligas que havia conhecido os integrantes da Vanguarda durante o Congresso
Nacional de Camponeses, tinha sobre eles a seguinte impressão, embora admirasse
seu entusiasmo e colaborasse com sua organização em També: “vieram do Sul,
usando gravatas, e não tinham a menor compreensão do que estava se passando
na zona açucareira”2.

Após o estabelecimento das normas para a criação e funcionamento dos


sindicatos rurais como meio de atenuar ou aplacar a ação dos movimentos
radicalizados no campo3, passou a haver enorme disputa pelas entidades sindicais.
Entraram na disputa não só os diversos grupos políticos e ativistas envolvidos no
1
O presente trabalho é derivado das pesquisas para produção da monografia de conclusão do curso
de Especialização no Ensino de História (UFRPE) sob orientação da Profa. Dra. Maria das Graças A.
A. de Almeida.
2
CÂMARA, apud PAGE, Joseph A. A Revolução que nunca houve: O Nordeste do Brasil 1955-1964.
Rio de Janeiro, Record, 1972.. p. 195.
3
O Ministério do Trabalho instituiu os instrumentos que possibilitariam a tutela estatal sobre os
sindicatos rurais do mesmo modo em que havia sobre os sindicatos de trabalhadores urbanos.
3

movimento camponês, a exemplo da Vanguarda Leninista, mas também as


entidades partidárias, destacando-se o PCB, e grupos ligados à Igreja Católica que
sentiam que não seria possível assistir passivamente que rebanhos inteiros de
trabalhadores rurais passassem a seguir o catecismo das Ligas Camponesas, que
também se incorporaram ativamente na disputa pelas entidades sindicais. O
sindicato dos trabalhadores rurais de També estava sob o domínio do grupo ligado
aos padres Crespo e Melo4, até que a persistência e o trabalho da Vanguarda
Leninista acabou por assegurar que o grupo tomasse o controle sobre o sindicato
local.

O ato projetado para o dia 8 de agosto de 1963 no Engenho Oriente era uma
ação promovida pelo sindicato. Cobrar o pagamento do 13º salário era normalmente
um motivo que causava grande fúria aos proprietários ainda não acostumados ou
dispostos a arcar com este ônus trabalhista e tais reivindicações motivavam reações
que podiam mesmo chegar a ser drásticas.5 O protesto chefiado por Jeremias,
desgraçadamente, acabou tendo um final dramático.

Por volta das 13:00h, os trabalhadores do engenho já retornavam a suas


atividades e postos de trabalho após o intervalo do almoço e a marcha de
manifestantes guiada por Jeremias se aproximava da casa-grande. No percurso até
a sede do Engenho Oriente, Jeremias conclamava os trabalhadores do local para
que estes interrompessem suas atividades e aderissem ao grupo, engrossando
assim a comitiva em protesto pela garantia do cumprimento da obrigação do
pagamento do 13º salário que estava atrasado no Engenho Oriente.

A comitiva seguia a passos ligeiros pela propriedade. Ao longo da caminhada,


uma ou outra adesão era realizada, embora não fosse possível deixar de reconhecer
que o temor em tomar parte da manifestação pudesse ocorrer aos trabalhadores e
residentes do engenho, tão dependentes e subordinados ao seu proprietário. No
percurso, antes de chegar a uma porteira que dava acesso à casa-grande, o
tratorista, que estava nas proximidades, se dirigiu ao grupo advertindo que não seria

4
Através da SORPE – Serviço de Orientação Rural de Pernambuco – os padres buscavam impor
uma barreira ao avanço das Ligas e à influência de Francisco Julião sobre os trabalhadores rurais no
Estado. A SORPE, em princípio, buscaria estabelecer entendimentos entre os lados conflituosos no
campo sem que fosse necessário o enfrentamento mais radical de ambos os lados, ou, em outras
palavras, procurava a conciliação entre proprietários e trabalhadores.
5
Um exemplo dos desdobramentos mais cruéis da resistência dos proprietários ocorreu na Usina
Estreliana, em Ribeirão, no 7 de janeiro de 1963, quando houve um extermínio sumário de
trabalhadores que reivindicavam, através de um ato de protesto, que o 13º. salário fosse pago.
4

permitido o avanço além daquele ponto. Também foi visto um outros homens, que
armados ameaçavam quem ousasse seguir adiante. Jeremias, como líder dos
manifestantes, se dirigia a todos afirmando que falariam com o proprietário e que
todos buscassem manter-se calmos, que aquela deveria ser uma manifestação
pacífica. Contudo, Jeremias seguiu avançando em direção à porteira, quando, de
repente, recebeu um tiro que foi disparado por um atirador que se encontrava
escondido por trás de uma moita próxima à porteira. Diversos outros disparos foram
feitos em seguida com o objetivo de dispersar os cerca de trezentos manifestantes
que estavam no local. Quinze pessoas saíram-se feridas em decorrência do tumulto
ou por terem sido também vítimas dos disparos e Jeremias acabou sendo morto.
Além de vitimado pelo disparo de rifle em seu peito, o jovem sindicalista teve ainda
seu crânio esmagado por pancadas que foram desferidas mesmo após caído na
margem da estrada de acesso à sede do engenho.

O conservador Diário de Pernambuco tratou de noticiar o acontecimento no


dia seguinte sem deixar de qualificar Jeremias como um “comunista fichado pela
SSP”, um “líder vermelho” e “insuflador do movimento”, que se fazia acompanhar por
diversos “elementos alheios às atividades agrárias” e ainda “numerosos conhecidos
comunistas”, seguidos por trabalhadores do Engenho Pará, “todos armados de
facões, estrovengas, espingardas de caça, punhais, peixeiras, etc”.6 O clamor
anticomunista começava a se manifestar em torno do “Caso Jeremias”.

A então gestão do Governo Estadual, que era chefiada por Miguel Arraes,
havia sido eleita no ano anterior, contrariando os desejos conservadores e mesmo
reacionários dos grupos ligados à grande propriedade agrária, do conservadorismo
urbano e os investimentos do IBAD.7 Arraes buscou estabelecer os limites legais e
constitucionais como esteio para a ação governamental no tocante aos conflitos no
campo, procurando, ao mesmo tempo, “neutralizar a oposição das oligarquias mais
tradicionais e da burguesia urbana e agroindustrial e assegurar uma base de
legitimação mais ampla para o seu governo”.8 Esta estratégia de ação preconizava o

6
DIÁRIO DE PERNAMBUCO. Recife, 9 de agosto de 1963.
7
O IBAD (Instituto Brasileiro para a Ação Democrática) foi criado com o objetivo de minar as
campanhas dos candidatos esquerdistas ou “subversivos” através do investimento direto em ações
localizadas em cidades ou estados que pudessem exercer influência nos resultados das eleições. O
instituto era financiado por empresários brasileiros, contudo, há fortes indícios de que fundos norte-
americanos também constituíssem a receita do órgão, que tinha ainda fortes vínculos cooperativos
com a CIA.
8
AZEVÊDO, Fernando Antônio. As Ligas Camponesas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. p. 106.
5

emprego dos dispositivos legais imparcialmente, sem dispor, deste modo, a


capacidade coercitiva do poder governamental em serviço da classe dominante.
Fernando Antônio Azevedo observa sobre estas práticas políticas adotadas por
Arraes que

dentro dos estreitos marcos do nosso liberalismo e presas ao limite


da democracia formal estabelecida em 1945 eram, contudo, dentro
do quadro político regional, atos praticamente revolucionários, na
medida em que abriram espaço para a participação das camadas
populares.9
Pressionado entre a esquerda, recebendo acusações de agir moderadamente
quanto ao enfrentamento das questões mais imediatas das classes populares, e
acuado pela direita, sendo taxado de subversivo e comunista, Arraes buscou
estabelecer, quanto às tensões no campo, que fossem reduzidas as ocupações e
greves por parte os trabalhadores e tentou impor aos proprietários a obediência ao
ETR. O “Acordo do Campo”, assinado por proprietários, fornecedores, entidades
representativas dos trabalhadores rurais (incluindo as Ligas Camponesas) foi
conduzido pelo governo como tentativa de estabelecer entendimentos que
redundassem na diminuição dos conflitos no campo, contudo, a insistência dos
proprietários em descumprir dispositivos do ETR (como o pagamento do 13º salário)
e a radicalização do movimento camponês pela reforma agrária não efetivaram os
efeitos planejados ao acordo.

Através de um ofício expedido em 9 de agosto de 196310, dia seguinte ao


crime ocorrido no Engenho Oriente, o então Secretário de Estado dos Negócios do
Interior e Justiça, Fernando Jungman, apesar de ressaltar que o referido incidente
entre “camponeses e proprietários” era fato “público e notório”, cientificou
oficialmente o Procurador Geral do Estado, Luiz Gonzaga Arcoverde, que o clima de
comoção e turbulência era intenso no município, que se encontrava “revoltado com a
chacina e vivendo horas de grande intranqüilidade”. Diante destas condições
conturbadas em També e talvez considerando a potencial dimensão que mais este
crime poderia tomar, o Secretário solicitou que o Procurador Geral designasse, com
a necessária urgência, um promotor público para o acompanhamento do recém
instaurado inquérito policial. A atribuição competente ao procurador, conforme a

9
Idem.
10
Folha 31 dos autos do processo de denúncia (Processo 58.060) contra Murilo Borba da Silva e
Francisco Santana Nunes: Certidão do Ofício 505/63 da Secretaria de Estado dos Negócios do
Interior e Justiça – Gabinete do Secretário, expedido em 9 de agosto de 1963.
6

solicitação do Secretário, deveria ser, de um modo geral, “tudo providenciar e


requerer para o completo esclarecimento do fato criminoso e punição dos
culpados”11, ou seja, em termos oficiais e imediatos, a intenção do Executivo era
averiguar a culpa e viabilizar para o encaminhamento à Justiça os responsáveis pelo
crime. No mesmo dia, o Procurador Geral do Estado designou, por ofício ao
Secretário do Interior e Justiça, o então promotor da comarca de Santa Maria da Boa
Vista12, Murilo Barbosa da Silva, para “acompanhar o inquérito policial que irá apurar
os graves e lamentáveis fatos ocorridos ontem no Engenho Oriente” (grifo nosso).

Também em 9 de agosto, por meio de uma portaria, o 1º . Tenente da Polícia


Militar, Francisco Santana Nunes, que era até então assistente militar da Secretaria
de Segurança Pública, foi destacado pelo secretário, Cel. Humberto Freire de
Andrade, para exercer a função de Delegado Especial, presidindo a Comissão
Especial de Inquérito. Os trabalhos investigativos da Comissão, segundo atestaram
os seus condutores, transcorreram em situação conturbada. Durante as
investigações e tomada de depoimentos, os membros da Comissão eram
pressionados, coagidos e ameaçados pelos proprietários, que, como declarou Murilo
Barbosa em depoimento, “viviam seguindo os seus passos, conduzindo, inclusive,
pessoas em veículos, armadas”. Houve ocasiões em que os depoimentos eram
tomados na própria sede do Engenho Oriente ou em outros locais e propriedades
dos suspeitos indiciados e nestas circunstâncias a coação ameaçadora era ainda
mais intensa. Em algumas ocasiões, verdadeiras “caravanas” de proprietários de
terras daquela região compareceram durante a prestação de depoimentos e estes
“observadores”, ostensivamente armados, rondavam ameaçadoramente os locais.

É fácil compreender que a situação dos integrantes da Comissão Especial de


Inquérito era efetivamente conturbada. A determinação do governo em fazer com
que a legalidade fosse respeitada implicava no choque direto com os grupos que
habitualmente recorriam à prática de atos arbitrários, muitas vezes violentos e
extremos, para impor seu domínio coercitivo sobre as massas trabalhadoras. A
certeza da impunidade ou da indiferença do Poder Público quanto aos desmandos
praticados no campo era mais que um aspecto favorável a tais práticas, chegava a
11
Idem.
12
O município sertanejo de Santa Maria da Boa Vista localiza-se geograficamente na região do Vale
do São Francisco e o fato de ter sido nomeado um promotor de uma comarca tão distante acabou
tornando-se, por parte dos questionadores sobre a condução da investigação, um elemento a
desqualificar o promotor no processo de denuncia no qual foi enquadrado, sob vigência do AI-1.
7

ser um estímulo à perpetuação da violência como instrumento de manutenção da


“ordem” no meio rural. As atividades investigativas do Ministério Público, portanto,
sofriam graves e intensas coações que poderiam inibir tanto o andamento de
inquéritos, quanto até exercer sob elas uma influência que bem poderia influir no
encaminhamento de resultados absolutamente maculados por vícios e vínculos com
o poder dos grandes proprietários, lideranças políticas e mandatários ligados ao
latifúndio.
8

Depoimentos:

Trinta e três depoentes foram arrolados pela comissão de inquérito para


depor sobre o incidente que terminou por ocasionar a morte do líder sindical e no
ferimento de outros quinze trabalhadores rurais. Além de prestarem depoimentos
indivíduos suspeitos pela prática do crime, foram interrogados também testemunhas
que presenciaram os momentos de tumulto, bem como pessoas que saíram-se
também vitimadas pelo ataque13. Conforme alguns destes depoimentos, a ação
ocorrida no Engenho Oriente pode ser descrita como uma cena de emboscada.

A testemunha Júlio Henrique da Silva, trabalhador e residente no próprio


Engenho Oriente, segundo o relato de seu depoimento no auto de declarações,
estava trabalhando sob a chefia do feitor Manoel Correia da Silva quando
presenciou a aproximação do grupo de trabalhadores manifestantes liderados por
Jeremias. No decorrer da marcha, os manifestante, e, principalmente Jeremias,
conclamava e estimulava a adesão dos trabalhadores do Engenho Oriente à marcha
que seguia seu rumo em direção à sede da propriedade. O depoente teria aderido à
marcha e a acompanhava, seguindo seu rumo em direção à casa grande e quando
já se aproximavam da porteira que dava acesso ao destino da marcha, percebeu,
próximo à porteira, a presença de um homem forte e por ele desconhecido armado
de um rifle. Este homem bradava que não iria permitir que ninguém avançasse o
obstáculo. Logo em seguia, verificou a aproximação do tratorista, identificado por
Abel, que tentou impedir a passagem dos manifestantes. A tentativa de interrupção
do cortejo dos manifestantes não surtiu o pretendido efeito, pois pareceu inflamar
ainda mais os ânimos do grupo. No instante em que os manifestantes pareciam
estar mais inflamados, Jeremias dirigiu a ao grupo sua voz de liderança
recomendando que todos mantivessem a calma e esclarecendo que a manifestação
haveria de ser pacífica. Sem determinar informações sobre tempo transcorrido
durante as cenas ocorridas, a testemunha afirmou ter ouvido disparos de arma de
arma de fogo. Percebeu que o tratorista e o homem moreno haviam se escondido
assim que os tiros começaram a ser disparados. Jeremias tombou ao lado da
estrada logo após o primeiro tiro e a testemunhou chegou a afirmar ter ouvido o seu
13
Nos autos processuais da denúncia não estão contidas as certidões das declarações de todos os
depoimentos tomados pela comissão de inquérito. O conjunto destes depoimentos está contido nos
autos do processo criminal de apuração do “Caso Jeremias”. Do conjunto de depoimentos, constam
nos autos apenas os termos de declarações de apenas quatro depoentes, que são citados neste
trabalho no decorrer deste capítulo.
9

gemido ao ser atingido. Diversos outros disparos partiram das imediações da


porteira e o declarante fugiu do local em pânico, procurando refúgio em sua casa.

Também residente no Engenho Oriente, o tirador de leite Manoel da Silva do


Nascimento, além de ter oferecido seu testemunho sobre o crime, prestou uma série
de denúncias sobre a situação dos trabalhadores do engenho e outras que
levantavam mais suspeitas sobre o caso. O estado de submissão e abusos
praticados pelo empregador e proprietário do engenho, José Borba, havia motivado
os trabalhadores a realizar uma greve, que fora inicialmente prevista para o dia 4 de
agosto (quatro dias antes do assassinato e Jeremias), mas que acabou não sendo
efetivada porque o proprietário decidiu desistir de cobrar a taxa de habitação de 10%
sobre os vencimentos dos trabalhadores. Também eram freqüentes as cobranças e
descontos de outras “despesas” que o proprietário efetuava sobre os ordenados dos
trabalhadores do engenho. O próprio depoente já havia tido em seu salário
descontos irregulares, como consta nos autos de declaração, onde registra-se:

que o depoente casou-se o ano passado no dia vinte e cinco de


julho; que a esposa do depoente no dia dez do corrente a luz a um
filho sob intervenção médica, parto cesariano, em Timbaúba, em que
seu José Borba, passou a descontar cem cruzeiros por semana para
amortizar as despesas do parto da esposa do depoente; que atingiu
a quantia de oito mil cruzeiros14 (...)
A testemunha confirmou o fato de que Jeremias havia se tornado uma
liderança evidente para os trabalhadores rurais e uma ameaça para os proprietários
e de maneira particular para o proprietário do Engenho Oriente. Segundo o
depoente, a dureza de José Borba contra seus trabalhadores e seu
descontentamento quanto à ação de Jeremias vinham sendo acentuadas. Nos autos
de declaração, consta-se mais que:

José Borba começou a pagar o salário atrasado por causa das


pressões de Jeremias que vinha fazendo nos engenhos, e a partir de
então não mais permitiria que os trabalhadores tirassem nem folhas
de eucaliptos para fazer um chá, pois se tirassem mais de uma folha
mandava buscar e que também não emprestaria mais dinheiro a
ninguém e nem financiava mais remédios nem mesmo se fosse para
pagar, e disse ainda o senhor José Borba que se morresse um
trabalhador no serviço ficava por lá mesmo, e se os outros
trabalhadores tivessem com pena, que o socorresse; que seu José
Borba repetia constantemente: “Vá procurar Jeremias, que ele é o
pai de vocês” (grifo nosso).15

14
O depoente declarou que seu ordenado semanal como tirador de leite era de Cr$ 700,00.
15
Declaração extraída dos termos constantes nos autos processuais.
10

O depoente afirmou ainda ter testemunhado uma conversa entre José Borba
e um homem identificado como Nilton, que discutiam sobre o ameaçador Jeremias.
Durante esta conversa, “seu” Nilton teria dito expressamente que Jeremias era um
“agitador” e, como se lê nos autos, José Borba havia retrucado que, além de ser um
“cabra safado”, o sindicalista “merecia morrer” (grifo nosso). O trabalhador do
engenho teria observado que no dia 4 de agosto16, percebeu no engenho a presença
de quatro homens estranhos, os quais presumiu terem sido conduzidos à
propriedade por Nilton, pois dois deles foram vistos em companhia deste trafegando
num automóvel Rural. O depoente soube por um destes homens que eles teriam
sido trazidos ao engenho para conter uma greve que os trabalhadores rurais tinham
o intento de fazer em cobrança ao pagamento do 13º salário. As denúncias feitas
pelo tirador de leite de 25 anos de idade davam conta de que os forasteiros, o
homem conhecido por Nilton, além do proprietário do engenho, andavam armados.
O tratorista Abel, que tentou impedir a passagem dos manifestante pelo acesso à
sede do engenho havia, segundo o depoente, recebido de José Borba um revólver
calibre 38 e que fazia questão de expor esta arma a todos – Manoel da Silva do
Nascimento chegou a declarar que nunca havia visto um revólver 38 até a ocasião
em que Abel decidiu lhe expor a arma, numa evidente ostentação de que era
homem de confiança do proprietário. Abel havia deixado de dedicar-se à manobra
do trator para assumir uma função tipicamente de capanga, acompanhando José
Borba em freqüentes saídas do engenho.

O tirador de leite não estava presente no exato local do tiroteio, embora tenha
escutado os disparos durante cerca de cinco minutos. O temor de que algo pudesse
ter ocorrido à sua família o fez correr para sua casa e cessado o tiroteio, resolveu
tirar sua esposa e filho do engenho, quando no caminho viu seguirem em alta
velocidade a perua de José Borba, o jipe de Nilton, uma picape pertencente a um
certo “seu” Rominho, estando todos esses veículos lotados.

O depoente, que havia ficado satisfeito por saber que Jeremias iria cobrar o
pagamento do 13º salário dos trabalhadores do Engenho Oriente (porque ele
pretendia “empregar o dinheiro na compra de um chapéu”), só tomou ciência da
16
Temos que deduzir algumas das datas constantes nos autos de declaração, sobretudo datas
próximas ao crime, porque estes documentos, que estão presentes no processo de denúncia na
forma de certidões assinadas pelo 2º tabelião público do Cartório do 2º Ofício da Comarca de També,
não possuem datação alusiva à sua produção. Os autos de declaração originalmente fizeram parte
dos autos do inquérito policial.
11

morte do líder sindical quando deixou sua família na vila de Ferreiros. Na ocasião
tomou ainda conhecimento de que o tiroteio deixou mais oito pessoas feridas.

O trabalhador rural João Penha, 47 anos de idade e residente no Engenho


Oriente, afirmou que passou a receber salário mínimo graças à ação de Jeremias,
porque o jovem sindicalista “defendia os pobres”. Apesar de ressaltar o benefício do
salário mínimo que passou a receber através da atuação de Jeremias, o depoente
afirmou que extraía sua subsistência dos quarenta quadros de terras que cultivava
no engenho e que “tem que dar seis dias por semana a seu José Borba”.17 O
depoente, que gostava de Jeremias porque o sindicalista era “o pai da pobreza”,
afirmou ter visto três homens estranhos no dia 4 de agosto no Engenho Oriente,
também afirmou que a chegada destes homens possuía relação com a ameaça de
realização da greve e que eles ficaram no engenho até a eclosão do tiroteio. João
Penha afirmou que viu que um grupo de trabalhadores do Engenho Oriente havia
saído, na terça-feira, dia 6 de agosto, em busca de Jeremias em Serrinha com o
propósito de convida-lo para tratar do pagamento do 13º salário dos trabalhadores
do engenho, uma vez que José Borba se recusava a cumprir com esta obrigação.
Como Jeremias não estava em Serrinha na ocasião, o grupo resolveu adiar o convite
para a quinta-feira, dia 8 de agosto, pois naquele dia Jeremias estria na Vila de
Ferreiros participando de um comício. Jeremias atendeu ao convite, resolvendo
realizar o comício – inicialmente previsto para as 13:00h – depois do retorno do
Engenho Oriente.18 O depoente estava cortando lenha próxima à porteira juntamente
com outro trabalhador e nas imediações estavam o vigia, de nome Arcanjo, que
portava um rifle e mais um outro homem, também armado de um rifle, chamado
Severino Inácio. O depoente havia percebido que por esta ocasião o tratorista Abel
estava por perto e também estava armado e um outro homem armado, que era vigia

17
Note-se que a caracterização do vínculo desta testemunha ao engenho é ambígua. Recebiam
salário, naturalmente, os trabalhadores de eito que se enquadravam nos parâmetros usuais
característicos da categoria específica de assalariados, enquanto aqueles que tiravam sua
subsistência essencialmente de pequenos lotes que exploravam e pagavam cambão não se
enquadravam nestes parâmetros. Algum trabalhador que presta seis dias de cambão não poderia ser
caracterizado formalmente como assalariado. Assalariados poderiam residir nos limites da
propriedade onde trabalhavam ou não (no caso dos “bóias-fria”), mas foreiros, necessariamente,
lidavam com terras que pertenciam à fazenda ou engenho ao qual estavam vinculados (ainda que
suas residências fixas não tivessem, obrigatoriamente, que ser nesta mesma propriedade). Há uma
interrogação marcada por caneta na certidão do termo de declarações desta testemunha no trecho no
qual está registrado o seu vínculo ao engenho, sinal de que este dúbio enquadramento chamou a
atenção nos autos do processo de denúncia.
18
A “multidão” que estava em companhia do sindicalista era composta possivelmente por
trabalhadores que deveriam estar presentes no comício.
12

do engenho Peluris, conhecido por Adelino rondava o local. Quando a comitiva de


manifestantes se aproximava do local, o vigia Severino Inácio mandou que o
depoente e o outro trabalhador interrompessem o serviço que estavam cumprindo.
Este mesmo Severino Inácio, como é registrado no depoimento, dirigiu à Jeremias
em voz alta a ordem: “para lá! Não venha não, daí para traz!”. Jeremias teria
sinalizado que não tinha intenção de provocar, “pediu a paz, três vezes”. Logo em
seguida, o depoente afirmou ter ouvido um apito partindo da casa-grande, onde
estavam os senhores de engenho José Borba, Nilton Correia, Pedro Campos,
Joaquim Campos, Manoel Nunes, Mofêda e Oscar de Melo. O depoente afirmou
mais que presenciou quando o vigia Severino Inácio apontou o rifle e atirou contra
Jeremias e viu ainda que Abel, Arcanjo e Adelino também dispararam contra os
camponeses, que dispersaram em desespero. O depoente, que também tratou de
fugir do local do conflito, afirmou ainda que, embora tenha visto que os camponeses
portavam estrovengas, foices, cacetes e cerca de três espingardas de “passarinhar”,
não os viu atirar em nenhuma direção.

O auto de declarações do depoimento do feitor Manoel Correia da Silva,


também residente no Engenho Oriente, é mais sucinto. Ele afirmou que chefiava o
trabalho de dezenove homens que roçavam o mato no momento em que percebeu a
aproximação dos manifestantes. Alguns dos manifestantes aproximaram-se para
chamar os trabalhadores que estavam sob a chefia do feitor para que estes
aderissem ao protesto, que era pelo pagamento do 13º salário dos trabalhadores do
engenho. Todos seguiram e acompanharam Jeremias até a metade do balde do
açude, ocasião em que foram os manifestantes interrompidos pelo tratorista, que
ordenou que os trabalhadores parassem. O depoente também confirma que
Jeremias havia anunciado que não pretendia entrar em conflito e viu quando o
sindicalista foi atingido e tombou na margem da estrada, O depoente também tratou
de fugir do local e procurar abrigo do tiroteio.

Estes quatro depoimentos, tomados de quatro diferentes testemunhas,


apresentam perspectivas sobre um mesmo fato. Os quatro depoentes
testemunharam ao mesmo acontecimento, contudo, a partir de diferentes posições.
As informações que prestaram convergem quanto aos principais aspectos factuais
relativos ao incidente, embora tenham partido de diferentes pontos de observação,
de diferentes ângulos. Associadas, as perspectivas captadas desde os depoimentos
13

permitem com que seja possível obter uma dimensão mais ampliada do atentado
que vitimou fatalmente o líder sindical Jeremias e que deixou diversos outros
manifestantes feridos.

Pelo que se pode captar através destes depoimentos, somos levados a crer
que já havia um cenário pronto para que o desfecho de um drama fosse encenado
no Engenho Oriente. O alarde de uma greve já vinha sendo alimentado, logo, os
precavidos proprietários trataram de garantir os seus próprios meios de resistência e
repressão a qualquer iniciativa mais agressiva dos manifestantes, que eram
articuladamente aguardados em sua zona de martírio.

O principal líder do sindicato camponês da região era a vítima mais evidente e


não foi casualidade que tenha sido exatamente Jeremias o alvo do primeiro e
certeiro disparo, sendo a única vítima fatal de todo o incidente.

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