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1

O TRABALHADOR.
Domínio e Figura.
por
Ernst Jünger

Introdução, tradução e notas


de
Alexandre Franco de Sá

Título Original:
Der Arbeiter. Herrschaft und Gestalt
Tradução feita a partir de:
[Ernst JÜNGER. Werke. Vol.8, Essays II. Estugarda, Ernst Klett Verlag,
1981.]
2

INTRODUÇÃO À EDIÇÃO
PORTUGUESA DE DER ARBEITER.
UMA CONFRONTAÇÃO COM ERNST JÜNGER

«É falso dizer que a história não é


previsível. Inúmeras vezes ela foi profetizada.
[...] Certamente que só cabe antecipar a
estrutura geral do futuro.»

José Ortega y Gasset. La rebelión de las


masas; pp.99-100

1. Um livro polémico: entre a civilização e a guerra.

Publicado em 1932, na véspera da conquista do poder na


Alemanha pelos nacionais-socialistas, O Trabalhador é uma obra
abordável em dois planos distintos.
Num primeiro plano, mais superficial, aparece como uma obra
intimamente marcada pela sua situação histórica, animada pela tentativa
de participação do seu autor nos acontecimentos que então se
desenvolviam. É possível ler O Trabalhador como um testemunho da
intervenção política e social de Ernst Jünger na Alemanha de Weimar,
vinculado à área política que Armin Mohler tornou conhecida como a
“revolução conservadora”. Depois de várias vezes ferido em combate e
de condecorado por bravura com a Pour le mérite, Ernst Jünger tornara-
se sobretudo conhecido pela publicação, em 1920, dos seus diários de
guerra, sob o título Em tempestades de aço. As suas relações com os
3

círculos nacionalistas são, nessa época, abundantes, sobretudo com os


nacionais-bolchevistas de Ernst Niekisch. A publicação de O Trabalhador
em 1932, precedida de A Mobilização Total em 1930, aparecia assim, à
primeira vista, como a tentativa de intensificar a sua participação política
no contexto da República de Weimar — numa Alemanha subjugada
pelas potências beligerantes vencedoras, mergulhada numa inflação
imparável, humilhada e revoltada contra os excessos do Tratado de
Versailles e as exigências das reparações, espartilhada entre a ameaça
bolchevista, temida pelo exemplo sangrento da revolução russa de 1917,
e a esperança de um renascimento alemão pela via de movimentos
mobilizadores e tempestivos, cujo carácter novo, viril e mesmo violento
era suficientemente indeterminado para poder trazer em si, não apenas a
superação do declínio alemão, mas também a derrota de uma burguesia
liberal acomodada, próxima da França nos seus apelos retóricos à
liberdade, à razão, à paz e aos direitos humanos. Em O Trabalhador,
Jünger não esconde o seu desejo de intervenção, afirmando que os
alemães «podem afirmar com orgulho terem sido maus burgueses»1, que
«o vestuário burguês faz uma figura infeliz particularmente no alemão»2,
que o espectáculo indigno do liberalismo burguês «pode bem realizar-se
na Alemanha, mas de modo nenhum dentro da realidade alemã»3 e que
a sua derrota «significa o mesmo que uma nova ascensão da
Alemanha»4.
Contudo, O Trabalhador é muito mais que um escrito de
intervenção. Num segundo e menos imediato plano de análise, ele
consiste num ensaio filosófico, no qual ocorre uma confrontação
poderosa — uma confrontação pensante — com a história da
humanidade ocidental em geral, e com a era histórica a que o Ocidente
chegou em particular, na qual se tenta tornar inteligíveis os seus

1
Ernst JÜNGER. “Der Arbeiter. Herrschaft und Gestalt” in Sämtliche Werke. Essays II.
Estugarda, Klett-Cotta, 1981; p.17.
2
Idem, p.128.
3
Idem, p.28.
4
Idem, p.31.
4

fenómenos fundamentais e compreender a necessidade do seu


desenvolvimento. Entre estes fenómenos, um há que, pela sua natureza,
assume um significado maximamente relevante. Trata-se da Guerra
Mundial de 1914-1918. O século XX começa com a primeira guerra à
qual é dado um alcance planetário. E é este fenómeno que o marca com
um carácter essencialmente paradoxal. Ele despoja-o da sua
inteligibilidade imediata e exige, consequentemente, um pensar que se
confronte com a estranheza deste mesmo carácter. Por outras palavras,
o fenómeno da guerra surge para Jünger, não apenas como uma
experiência ocasional dolorosa, como a vivência marcante de uma
geração, mas como um acontecimento que destoa do sentido e da
coerência do movimento histórico tal como foi considerado em geral pelo
século XIX e que, nessa medida, na medida em que manifesta algo de
novo e surpreendente, exige uma confrontação pensante com esse
mesmo movimento.
O carácter paradoxal do século XX torna-se claro, se este for
confrontado com o século que o antecede. O século XX nascente tinha
sido considerado como o século em que as características do século XIX
atingiriam um plano supremo de desenvolvimento. Ao começar a
escrever O Declínio do Ocidente em 1912, Oswald Spengler apresentava
explicitamente o século XIX, com as suas instituições liberais, com os
seus direitos do homem individual, com a sua técnica, com o seu
socialismo, como o introdutor da morte da cultural fáustica ocidental, ou
seja, como o introdutor do momento em que esta cultura se desvitalizava,
atingindo o estado da “civilização”. A civilização, «compreendida como a
consequência lógico-orgânica, como a completude e a saída de uma
cultura», ou seja, como o seu «destino incontornável»5, surgira no
Ocidente no século XIX: «A passagem da cultura para a civilização
cumpre-se na antiguidade no século IV, no Ocidente no século XIX»6. O

5
Oswald SPENGLER. Der Untergang des Abendlandes I. Munique, Beck’sche
Verlagsbuchhandlung, 1923; p.42.
6
Idem, p.43.
5

século XX que se iniciava podia então ser visto por Spengler como a
completude da desvitalização ocidental iniciada no século XIX, sobretudo
através de dois fenómenos fundamentais. Por um lado, o homem
tornava-se massa, reunido em aglomerações urbanas, em metrópoles
cuja organização as constitui como aparelhos que o reduzem a uma
mera função: «A metrópole significa o cosmopolitismo no lugar da
“pátria”, o frio sentido dos factos no lugar da veneração pelo tradicional e
pelo idoso, a irreligião científica como fossilização da precedente religião
do coração, a “sociedade” no lugar do Estado, os direitos naturais em vez
dos direitos adquiridos. [...] À metrópole não pertence um povo, mas uma
massa»7. Por outro, o mundo tornava-se numa grandeza, já não
puramente representável como o objecto do conhecimento moderno, já
não como uma barreira resistente a ultrapassar, mas como um
património tecnicamente mobilizável. Ele é agora um armazém de
recursos e instrumentos, acessível à sua utilização e mesmo violação
pela pura vontade do homem: «O sonhador antigo “contemplava” como a
divindade de Aristóteles, o sonhador árabe procura como alquimista o
meio mágico, a pedra dos sábios, com a qual trazia à sua posse os
tesouros da natureza, o sonhador ocidental quer dirigir o mundo segundo
a sua vontade»8.
As análises de Spengler marcaram decisivamente a
autointerpretação do século XX ocidental. E marcaram-na numa dupla
perspectiva: por um lado, influenciaram o modo como o século XX, no
seu começo, se interpretou a si mesmo; por outro, influenciaram a
própria realidade interpretada, realidade essa que foi constituída por um
incontornável sentimento de declínio. Um tal sentimento alimentava-se
sobretudo de um ambiente de esgotamento, de “fim da história”: diante
de um mundo definitivamente conquistado pela técnica, a vida tornara-se
confortável, tranquila, pacificada e, neste sentido, despojada da

7
Idem, p.45.
8
Oswald SPENGLER. Der Untergang des Abendlandes II. Munique, Beck’sche
Verlagsbuchhandlung, 1922; p.627.
6

virilidade, da luta e da violência que a constituem na sua mais íntima


essência. Numa palavra, a vida ocidental estava agora desvitalizada,
dominada por um tédio que, como escrevia Baudelaire, «num simples
bocejo engoliria o mundo»9. O Ocidente, nas palavras de Spengler,
civilizara-se, envelhecera, ganhara o aspecto do saeculum senescens
com que outrora S. Agostinho caracterizara a civilização romana.
A massificação do homem ocidental assinalada por Spengler, a par
do aparecimento das grandes aglomerações urbanas, foi exaustivamente
explorada para a compreensão do declínio ocidental. José Ortega y
Gasset assinala como a marca característica do tempo a “rebelião das
massas”, ou seja, a identificação do homem como igual a todos os outros
homens, a inexistência de minorias cuja excelência esteja incumbida de
guiar — como diz Ortega y Gasset, de “mandar” — a grande massa dos
homens. Evitando a identificação do conceito de massa com o
proletariado marxista, Ortega y Gasset esclarece: «A massa é o conjunto
de pessoas não especialmente qualificadas. Não se entenda, pois, por
massas só, nem principalmente, as “massas operárias”»10; «Diante de
uma só pessoa podemos saber se é massa ou não. Massa é todo aquele
que não se valoriza a si mesmo — para o bem e para o mal — por
razões especiais, mas que se sente “como toda a gente” e que, no
entanto, não se angustia, que se sente bem ao sentir-se idêntico aos
demais»11. No ano de 1927, com a publicação de Ser e Tempo, Martin
Heidegger contribuía decisivamente, sem o mencionar, para o
esclarecimento do conceito de massa. A massa, à qual Heidegger
chamava aqui o “toda a gente” (das Man), era a possibilidade pela qual a
existência humana (Dasein)12 se furtava à inquietação da angústia, se
tranquilizava numa existência quotidiana determinada como inautêntica.

9
Charles BAUDELAIRE. As flores do mal. Trad. Fernando Pinto do Amaral. Lisboa, Assírio &
Alvim, 1992; pp.46-47.
10
José ORTEGA Y GASSET. La Rebelión de las Masas. Madrid, Revista de Occidente, 1958;
p.52.
11
Idem, p.54.
12
Traduzimos aqui Dasein por existência, sem entrar na problemática heideggeriana da sua
tradução.
7

O homem, considerado no seu modo de ser enquanto existência, era, à


partida e quase sempre, os “outros”, “a gente”: «“Os outros”, que são
assim mencionados para se esconder a essencial pertença própria a
eles, são aqueles que, à partida e quase sempre, no ser-uns-com-os-
outros quotidiano, “existem”»13; «Na utilização dos meios de transporte
públicos, no emprego dos orgãos de informação (jornal), qualquer um é
como o outro. Este ser-uns-com-os-outros dissolve completamente a
existência própria no modo de ser “dos outros”, de tal modo que os
outros ainda desaparecem mais na sua diferença e expressividade.
Nesta ausência de notoriedade e de perceptibilidade, a gente desdobra a
sua autêntica ditadura. Apreciamos e divertimo-nos, como a gente
aprecia; lemos, vemos e julgamos sobre a literatura e a arte, como a
gente vê e julga; mas também nos retiramos da “grande multidão”, como
a gente se retira; achamos “revoltante” aquilo que a gente acha
revoltante»14.
Sendo “a gente”, o homem ocidental liberta-se da exigência de ser
“ele mesmo”, na angústia que tal implica, ganhando uma existência
média e tranquila. A desistência de “ser autêntico”, de “ser si-mesmo”, é
o sacrifício exigido por esta tranquilidade. Se Heidegger deu à análise do
“toda a gente” um carácter ontológico, o carácter de uma fenomenologia
do modo de ser do ente que constitui a existência, esta análise não
deixou de ser explicitamente apropriada para a caracterização daquilo a
que Spengler chamaria o homem civilizado ocidental. No mesmo ano em
que Ernst Jünger publica O Trabalhador, em 1932, Karl Jaspers publica
A Situação espiritual do Tempo. Nessa obra, a análise heideggeriana do
“toda a gente” é utilizada para a caracterização do homem ocidental
massificado. Ameaçado por um aparelho que tudo abrange e mobiliza,
funcionalizado até ao ponto da «angústia diante do fim daquilo pelo que
vale a pena viver»15, o homem ocidental torna-se massa — e, «quando

13
Martin HEIDEGGER. Sein und Zeit. Tübingen, Max Nimeyer, 1986; p.126.
14
Idem, pp.126-127.
15
Karl JASPERS. Die geistige Situation der Zeit. Berlim, Walter de Gruyter, 1979; p.55.
8

existe como massa, já não é ele mesmo»16 — e tranquiliza-se através da


sua massificação: «Na ordem existencial, encontram-se festivais para
esquecer e para tranquilizar. As organizações criam uma consciência de
pertença. O aparelho promete seguranças. Os médicos não falam da
morte aos doentes ou aos que se crêem doentes»17. Também Ernst
Jünger insiste no carácter tranquilizador da massificação do homem. Na
era da civilização, na era burguesa, com a massificação e
funcionalização do homem, parece conquistar-se definitivamente a
segurança. O homem tornado igual a todos os outros de acordo com
uma razão desvitalizada, métrica e abstracta, o homem despojado do
seu enraizamento numa história ou num povo, num estado ou numa
corporação, é um homem cuja existência se defende contra a entrada no
seu seio da própria vida. É assim que Jünger escreve que o burguês está
«remetido à defesa», desejoso de «impermeabilizar hermeticamente o
espaço vital»18. O burguês deve ser concebido «como o homem que
reconhece a segurança como um valor supremo»19; e «as grandes
cidades aparecem, em torno da viragem do século, como os baluartes
ideais da segurança»20.
A conquista técnica do mundo surge relacionada com a
massificação do homem através do seu carácter tranquilizador. O
homem ocidental é, no século XIX, como Ortega y Gasset lhe chama, um
“senhorzinho satisfeito”, entediado numa vida de absoluta segurança, de
total tranquilidade: «A civilização do século XIX é de índole tal que
permite ao homem médio instalar-se num mundo de abundância, do qual
percebe só a superabundância de meios, mas não as angústias.
Encontra-se rodeado de instrumentos prodigiosos, de medicamentos
benéficos, de Estados providência, de direitos cómodos. Ignora, pelo
contrário, o difícil que é inventar esses medicamentos e instrumentos, e

16
Idem, p.36.
17
Idem, p.57.
18
Ernst JÜNGER. Op. Cit., p.52.
19
Idem, p.54.
20
Idem, p.53.
9

assegurar para o futuro a sua produção. [...] Este desequilíbrio falsifica-o,


vicia-o na sua raiz de ser vivente, fazendo-o perder contacto com a
substância mesma da vida, que é absoluto perigo, radical problematismo.
A forma mais contraditória da vida humana que pode aparecer na vida
humana é o “senhorzinho satisfeito”»21. A técnica fecha o homem num
mundo seguro, impermeável ao irromper da violência da própria vida. As
conquistas técnicas, associadas às instituições políticas liberais,
articulam-se assim justamente para domesticar os conflitos, excluindo a
possibilidade de lutas de natureza existencial, onde se decida a própria
vida, ou seja, evitando o irromper da guerra e o desmoronamento da
segurança que a guerra significaria. A conquista técnica do mundo
consegue unir todos os homens e todas as nações na constituição de um
mundo tranquilizado, assegurando o bem-estar do “senhorzinho
satisfeito” e afastando qualquer ameaça de perigo. É assim que Carl
Schmitt, padrinho de um dos filhos de Ernst Jünger, num texto de 1929
intitulado A Era das Neutralizações e das Despolitizações, insiste neste
desejo de segurança, neste desejo de evitar a guerra, como o motor da
própria conquista técnica do mundo e, consequentemente, da
massificação do homem: «Aqui parecem poder unir-se rapidamente
todos os povos e nações, todas as classes e confissões, todas as idades
humanas e todos os sexos, pois todos se servem com a mesma
evidência das vantagens e comodidades do conforto técnico»22.
E é ao considerarmos este desejo de segurança do homem
ocidental que o carácter paradoxal da emergência do século XX se torna
manifesto. Se a massificação do homem e o desenvolvimento da técnica
se justificava em função da criação de um mundo familiar e seguro,
entediante e despojado de aventura, livre das inquietações e do perigo,
se a civilização ocidental de Spengler se caracterizava, na sua fatal
desvitalização, pela sua absoluta segurança e tranquilidade, como é

21
José ORTEGA Y GASSET. Op. Cit., pp.154-155.
22
Carl SCHMITT. “Das Zeitalter der Neutralisierungen und Entpolitisierungen” in Der Begiff des
Politischen. Berlim, Duncker & Humblot, 1996; p.90.
10

possível que o século que a deveria cumprir definitivamente fosse


saudado no seu aparecimento pelo metralhar das armas da primeira
guerra planetária? A perplexidade diante deste acontecimento obrigou, à
partida, à revisão das conexões demasiado apressadas e optimistas
entre técnica e segurança, herdeiras ainda de um iluminismo ingénuo,
crente no progresso e na bondade natural do homem.
Carl Schmitt, no texto já mencionado, sublinha o carácter
meramente instrumental da técnica. Longe de corresponder a um estado
de “paz perpétua”, de racionalidade e de tranquilidade, a técnica é
«culturalmente neutra»23: «Qualquer tipo de cultura, qualquer povo e
qualquer religião, qualquer guerra e qualquer paz pode-se servir da
técnica como arma»24. Jünger, por seu lado, admitindo que «a técnica
aparece no espaço burguês como um orgão do progresso»25, contesta
também esta apropriação da técnica pelo iluminismo como indevida: «É
incontestável que é uma locomotiva que pode mover uma companhia de
soldados em vez de um vagão restaurante, que é um motor que pode
mover um tanque em vez de um carro de luxo — ou seja, que o aumento
do tráfego não apenas junta mais depressa os europeus bons, mas
também os maus»26. A técnica pode então aparecer com um aspecto
diferente daquele que a apresentava como um instrumento da
progressiva emancipação e segurança do homem.
É sobretudo Ortega y Gasset quem critica a visão de Spengler da
passagem da cultura à civilização como «demasiado optimista»27. Para
Ortega y Gasset, a civilização ocidental desenvolvera um tipo de homem
que, longe de ser civilizado e emancipado, se encontrava diante de um
mundo dominado pela técnica como um bárbaro. Num mundo
conquistado tecnicamente, os produtos e as conquistas da técnica
tornaram-se naturais. E o homem está diante deles não como dominador,

23
Idem, p.91.
24
Idem, p.90.
25
Ernst JÜNGER. Op. Cit., p.166.
26
Idem, p.167.
27
José ORTEGA Y GASSET. Op. Cit., p.132.
11

mas como dominado e fascinado por eles. O homem “civilizado” de


Spengler é afinal, como o homem primitivo, um bárbaro, tão dependente
da técnica como o primitivo o era da natureza, distinguindo-se esta
apenas por não poder assegurar o estado de bem-estar e de conforto
que aquela promete: «O homem-massa crê que a civilização em que
nasceu e que usa é tão espontânea e primigénia como a natureza, e ipso
facto converte-se em primitivo»28.
Mas como compreender, no culminar de uma era de civilização, a
emergência da barbárie? Melhor: como compreender a coincidência do
total domínio do mundo pelo homem, através da técnica, com a
submissão deste mesmo homem às forças da técnica que dele
brotaram? Como é possível que a era da total mobilização do mundo
pelo homem — saudada no século XIX como a era da segurança e da
afirmação do homem na sua liberdade e individualidade — culmine no
envolvimento do homem na própria mobilização, na descoberta do
homem como aquele que supremamente está mobilizado? É no
horizonte destas interrogações que O Trabalhador, recolhendo os
escombros da civilização e saudando a emergência da guerra, encontra
a sua génese.

2. Um mundo configurado pelo trabalhador.

No século XIX, a civilização estabelecera uma visão do homem, da


sociedade e do mundo que parecia consagrar-se como definitiva. O
homem aparece aqui como um indivíduo marcado, na sua essência, por
uma liberdade fundamental. Ser homem é, à partida, não pertencer ao
conjunto das coisas determinadas pela lei da natureza, estar livre de
determinações naturais. E a sociedade, por seu lado, é apenas a
garantia de que a liberdade essencial do homem não seja fonte de

28
Idem, p.141.
12

conflitos: ela é formada pelo acordo de todos os homens quanto à


limitação da sua liberdade inicial. Por outras palavras, a sociedade não
pode deixar de ser o resultado de um contrato entre homens
essencialmente livres. Por fim, o mundo, entendido como a totalidade
dos objectos dispostos diante da liberdade humana como coisas
naturais, sujeitas à lei da natureza, não é senão, para o sujeito livre que o
homem é, o seu objecto. Tal objecto dispõe-se diante do homem, à
partida, como uma resistência, como uma barreira cuja superação exige
esforço. A este esforço exigido pela superação das barreiras naturais, ao
processo pelo qual a natureza se vai tornando cada vez menos hostil e
mais dócil, cada vez menos selvagem e mais dominada, àquilo a que
Marx chamou a “humanização da natureza”, chama-se trabalho. E este
trabalho transforma, não apenas a natureza, mas o próprio homem.
Quanto mais a natureza é dominada, tanto mais o homem se torna
dominador. Quanto menor é a resistência que esta oferece, tanto menor
é o trabalho que se exige na sua dominação. É a esta dominação do
mundo que se chama técnica. Deste modo, quanto mais desenvolvida for
a técnica, quanto maior for o domínio do mundo, tanto menor será a
necessidade de o homem trabalhar. A técnica adquire assim, à luz da
civilização, o seu significado emancipador: dominar tecnicamente o
mundo significa então, para o homem, libertar-se progressivamente da
necessidade do trabalho e, nessa medida, conquistar-se
progressivamente como indivíduo senhor de si, da sua vida e do seu
tempo.
O fenómeno da guerra obriga, no entanto, a uma meditação mais
profunda sobre a essência da técnica. Se a essência da técnica
consistisse na emancipação do homem, esta não poderia progredir no
sentido de uma “mobilização total”, tal como Jünger a assinala já em
1930. No seu ensaio A Mobilização Total, afirma que «o sonho da
13

liberdade desaparece como sob as asas férreas de uma tenaz»29. A


emergência da guerra no final da civilização prova que a essência da
técnica se encontra não na emancipação do homem, mas na dominação
do mundo. E, nesta total dominação do mundo, nesta “mobilização total”,
o próprio homem é ele mesmo mobilizado. Mas quem é o sujeito desta
mobilização, sujeito este para quem o próprio homem surge como um
objecto de mobilização? A resposta de Jünger é inevitável: trata-se de
uma vontade que já não é humana, de uma vontade de constante
aumento do poder desta mesma vontade até à conquista de uma
mobilização total do mundo. Por outras palavras: trata-se daquilo que
Nietzsche assinalou como a vontade de poder. Esta vontade de poder
manifesta-se como a necessidade de querer uma crescente dominação
do mundo. E se ao esforço de dominação do mundo se chama trabalho,
a vontade de poder não pode deixar de ganhar forma como vontade de
trabalho.
O homem não é então, como o caracterizara a civilização, um ente
destinado a uma progressiva liberdade. Melhor dizendo: a mobilização
total implica a transformação do próprio conceito de liberdade. Jünger
pode então falar de uma outra liberdade, cuja essência não está na sua
emancipação e libertação de leis e determinações, mas na aceitação do
seu vínculo à necessidade da vontade de poder. Esta consiste na mais
íntima verdade do ser do homem, no elemento mais nuclear da sua vida
humana, no seu mais incontornável destino. O trabalho descobre-se
então como coincidente com a própria vida humana em geral, na sua
concomitante grandeza e pequenez, tristeza e orgulho — «tristeza pela
fugacidade de todos os esforços; orgulho pela vontade que, apesar
disso, sempre de novo nos seus símbolos procura expressar que
pertence ao imperecível»30. É justamente enquanto expressão desta
vontade imperecível que o trabalho se identifica com a própria vida: «O

29
Ernst JÜNGER. “Die totale Mobilmachung” in Essays I. vol. V. Estugarda, Ernst Klett Verlag,
s.d.; p.145.
30
Ernst JÜNGER. Der Arbeiter, p.67.
14

trabalho é o ritmo do punho, dos pensamentos, do coração, a vida de dia


e de noite, a ciência, o amor, a arte, a fé, o culto, a guerra; o trabalho é a
oscilação do átomo e a força que move as estrelas e os sistemas
solares»31.
Na era burguesa da civilização, a realidade essencial da vontade
de poder parece não estar presente. Com esta ausência, o homem
ganha segurança, conquista-se como indivíduo, detentor de uma
liberdade abstracta, desvinculado de laços que o aprisionem. Deste
modo, a era burguesa consiste necessariamente na atribuição ao
trabalho e à técnica de um carácter que não é o seu. O trabalho aparece
aqui «como mau»32, como o tributo doloroso a pagar à vida pela
subsistência individual, como um mal necessário de cujo peso o homem,
tanto quanto possível, se deseja ir progressivamente livrando. E a técnica
pode aparecer, como vimos, como a progressiva emancipação do
homem face à necessidade do trabalho. A atribuição marxista do estatuto
de trabalhador exclusivamente a uma classe, assim como a tentativa de
ligar o movimento dos trabalhadores à reivindicação dos direitos e das
liberdades burguesas, são assim encaradas por Jünger como «a parte da
herança burguesa» de um trabalhador que ainda «se afasta visivelmente
de si»33.
Contudo, toda a história é, enquanto história, expressão da
vontade de poder que constitui a essência humana e, nessa medida,
expressão do trabalho enquanto manifestação da relação entre a
vontade e o mundo. Assim, a recusa do elementar ou da vida pela era
burguesa da civilização, longe de ser uma ausência de presença, é
apenas uma presença pela ausência, ou seja, um modo particular de
presença. É certo que o burguês quase moveu o elementar e o vital para
fora da vida humana, «quase conseguiu persuadir o coração aventuroso
de que o que é perigoso não está de todo presente e de que uma lei

31
Idem, p.72.
32
Idem, p.71.
33
Idem, p.31.
15

económica governa o mundo e a sua história»34. Mas é também certo


que «o elementar está sempre presente», que «embora a sua exclusão
possa alcançar um grau elevado, são postas a este processo
determinadas fronteiras, pois o elementar não apenas pertence ao
mundo exterior, mas também está atribuído à existência de cada singular
como um dom que não se pode perder»35: «As fontes do elementar são
de dois tipos. Por um lado, estão no mundo, que é sempre perigoso, tal
como o mar esconde em si o perigo também durante a mais profunda
calmaria. Por outro, estão no coração humano, que anseia por jogos e
aventuras, por ódio e amor, por triunfos e quedas, que se sente tão
necessitado do perigo como da segurança»36. Assim, a uma história
constituída pela recusa do elementar, correspondendo a uma vã tentativa
humana de combater e eliminar o perigo próprio da vida, segue-se
necessariamente uma história em que tal tentativa é percebida na sua
impossibilidade, e em que o elementar e a vida ganham uma expressão
explícita. Se o trabalho é a expressão necessária da vontade de poder, a
figura histórica em que a vontade de poder encontra expressão explícita
não pode deixar de ser a ordenação do mundo segundo a figura do
trabalhador, ou seja, a descoberta, sobreposto a todos os aspectos
especiais da vida, de um “carácter total do trabalho”.
A passagem da civilização para a guerra marca então, para
Jünger, a emergência de uma era em que a essência humana adquire
explicitamente os seus mais duros e rigorosos contornos, através da
relação entre a vontade de poder e o trabalho. Por um lado, a vontade
humana não é aqui um arbítrio livre, solto de um vínculo imediato a leis
naturais que a determinem, mas a pura vontade de crescimento da
vontade e, com ela, a necessidade de querer um crescente aumento do
desempenho da vontade na sua dominação do mundo. Por outro, o
trabalho surge como a manifestação da vontade que se reconhece como

34
Idem, p.59.
35
Idem, p.56.
36
Idem, pp.56-57.
16

vontade de poder, ou seja, como o exercício de uma cada vez mais


poderosa mobilização do mundo. A técnica, por seu lado, não é aqui um
«meio neutral»37, não aparece como um mero instrumento adequado a
qualquer força que o domine, mas justamente como «a mobilização do
mundo pela figura do trabalhador»38. E quem é o homem que assume, na
sua essência, a vontade de poder e o trabalho em que se expressa a sua
necessidade? Quem é o homem configurado como trabalhador? Este
homem é o herói anónimo de um “realismo heróico”, que se dispõe ao
sacrifício da sua individualidade num mundo totalmente mobilizado. Este
homem não é senão expressão da figura do trabalhador, onde o próprio
corpo se submete corajosamente à dor de uma vontade pronta a
mobilizá-lo como objecto: este «homem consegue tratar o espaço pelo
qual tem parte na dor, isto é, o corpo, como objecto»39. Este homem é,
não um indivíduo, mas um tipo. Ele não é senão a expressão provisória
da vontade de poder que mobiliza o mundo do trabalho, a ocasional
manifestação de uma figura típica.

3. O Trabalhador e a “questão dos nossos dias”: o barco e a


floresta.

A determinação do homem como trabalhador, ou seja, como


figura típica, não pode hoje deixar de ser questionada. E não o pode no
problema fundamental que levanta: o problema da liberdade.
A liberdade não é, no meio dos problemas com que a natureza
humana se depara, um problema entre outros. Ela é a marca mais
própria e fundamental do ser humano, de tal forma que o homem pôde
ser caracterizado no seu ser, à partida, pela sua não determinação, pela

37
Idem, p.170.
38
Idem, p.165.
39
Ernst JÜNGER. “Über den Schmerz” in Essays I. vol. V. Estugarda, Ernst Klett Verlag, s.d.;
p.164.
17

sua liberdade diante de quaisquer vínculos. A própria história humana


pôde ser vista como um percurso de progressiva conquista pelo homem
de si mesmo, coincidente com a progressiva entrada na esfera da
liberdade humana das múltiplas dimensões em que um homem encontra
a sua identidade. Desde a reivindicação da liberdade de escolha da
religião, a história pôde-se configurar como um progressivo alargamento
da liberdade de escolha do homem: a escolha dos seus dirigentes
políticos, a escolha dos seus costumes, a escolha da sua moral, a
escolha da sua nacionalidade, a escolha da sua sexualidade, a escolha
do seu aspecto físico.
Diante desta visão da história como um percurso progressivo para
a liberdade, como abordar O Trabalhador de Jünger? Se o homem
configurado como trabalhador não é senão a expressão singular de uma
vontade de poder, poder-se-á dizer que este homem típico é livre? Se o
homem, enquanto figura típica, é apenas a expressão singular de uma
vontade de poder, essa vontade, na liberdade que a constitui, não é o
arbítrio subjectivo de uma ausência de determinações, mas
exclusivamente a necessidade de querer um cada vez maior poder da
própria vontade. Por outras palavras, não é o homem que detém a
vontade de poder, não é o arbítrio humano que dispõe do poder da
vontade, mas passa-se justamente o contrário: é o próprio homem a ser
possuído pela vontade de poder. A liberdade humana, considerada como
o exercício da vontade, é o exercício do sacrifício de um arbítrio, de uma
liberdade desvinculada, ao vínculo incontornável de uma necessidade.
Ela não é senão «a expressão particular do necessário»40. Daí que
Jünger possa escrever que «com a sua figura, o homem descobre ao
mesmo tempo a sua determinação, o seu destino, e é esta descoberta
que o torna capaz do sacrifício que ganha no sacrifício de sangue a sua

40
Ernst JÜNGER. Der Arbeiter, p.64.
18

expressão mais significativa»41, e que «a mais profunda felicidade do


homem consiste em ser sacrificado»42.
Jünger caracteriza o trabalhador «por ser capaz, a partir do fundo
do seu ser, de uma liberdade totalmente diferente da liberdade
burguesa»43. E esta liberdade consiste na submissão a uma vontade
superior à vontade individual. Tal vontade superior, na sua supra-
individualidade, só na vontade de um Estado pode encontrar
acolhimento. O trabalhador é então um tipo cuja vontade não é senão
serviço, não é senão a expressão singular da vontade de um Estado. E
este Estado aparece então também ele como um servo da vontade de
poder, como um “Estado de trabalho”. Depois de uma primeira fase de
destruição do Estado da era liberal, com as suas restrições de
intervenção, com as garantias individuais e com a sua diferenciação de
classes e estados, fase essa que culminou na Grande Guerra, o Estado
entra então, por mão da era do trabalhador, numa fase em que é
comparável «não a um navio de passageiros ou a um navio social, mas
antes a um navio de guerra»44, na medida em que «se assinala através
da concepção e da execução de grandes planos»45. E, em O
Trabalhador, Jünger não hesita em caracterizar os Estados totalitários —
no ano de 1932, a Rússia bolchevista e a Itália fascista46 — como mais
adequados à concepção e execução destes mesmos planos, ou seja, à
total conquista técnica enquanto Mobilização Total.
Diante desta visão da liberdade, não se poderá escapar a duas
perguntas incontornáveis. Em primeiro lugar, dever-se-á perguntar se
uma tal visão não é hoje meramente anacrónica, situando O Trabalhador
como uma obra datada, expressão sobretudo do contexto vivido pela
Europa aquando da emergência dos totalitarismos dos anos 20 e 30.

41
Idem, p.42.
42
Idem, p.78.
43
Idem, p.23.
44
Idem, p.213.
45
Idem, p.203.
46
Cf. Idem, p.304.
19

Como se pode entender esta identificação entre liberdade e serviço,


presente em O Trabalhador? Ela é a mera expressão da pertença da
obra a uma situação hoje definitivamente ultrapassada? Ou, pelo
contrário, ela é mais profunda, residindo em algum fundamento ainda
hoje em vigor? Em segundo lugar, não se poderá deixar de perguntar
pela atitude necessária face a esta identificação. A primeira questão é
essencialmente teórica, procurando, no fundo, compreender o motor que
está na base do movimento histórico de passagem para a era do carácter
total do trabalho. A segunda questão, pelo contrário, é essencialmente
prática, procurando abordar o modo como agir face à visão jüngeriana do
advento de uma era do trabalhador.
A primeira pergunta interroga-se sobre o fundamento da redução
da liberdade humana ao serviço de uma vontade supra-individual. A esta
redução da liberdade ao serviço corresponde a redução da vontade à
vontade de poder, a redução do singular ao tipo, a redução do homem a
servidor do Estado, a redução do mundo a uma grandeza mobilizável
pela técnica, a redução do múltiplo à unidade de uma construção
orgânica determinada pela figura do trabalhador. E como base comum
deste movimento pode ser assinalada a própria redução. A liberdade só
pode ser compreendida como serviço num mundo reduzido ao
completamente acessível; num horizonte em que o transcendente se
reduz a fantasias, sentimentos e projecções, em que o homem se reduz
à sua função, em que o mistério do ser se reduz ao nada. E é nesta
redução ao nada que Jünger reconhece a essência do niilismo. É assim
que, por ocasião do sexagésimo aniversário de Heidegger, num escrito
intitulado Sobre a Linha, escreve: «O mundo niilista é, segundo a sua
essência, um mundo reduzido e que se reduz ainda mais, tal como
corresponde necessariamente ao movimento até ao ponto zero. O
sentimento fundamental nele dominante é o da redução e o de ser
reduzido»47.

47
Ernst JÜNGER. “Über die Linie” in Essays I. vol. V. Estugarda, Ernst Klett Verlag, s.d.; p.265.
20

Torna-se assim visível a essência que se esconde no advento da


era do trabalhador, com a sua redução do homem ao tipo, do mundo à
construção orgânica mobilizável e da liberdade ao serviço — tal essência
consiste no niilismo. E com esta clarificação torna-se também perceptível
a actualidade da obra de Jünger. Vivemos hoje num mundo novamente
pacificado, sucessor da catástrofe da Segunda Guerra Mundial e da
Guerra Fria. Por um lado, o mundo parece ter regressado a uma “era
burguesa”, na qual os direitos humanos, a liberdade e a racionalidade, se
erguem sobre os escombros dos Estados totalitários. Por outro, sob uma
retórica burguesa, liberal e humanista, é a impetuosidade de uma
vontade de poder, traduzida num cada vez maior domínio técnico do
mundo, que a cada passo se impõe como objecto da mais rigorosa
planificação. E estes dois aspectos, longe de serem contraditórios entre
si, são apenas as duas faces de um mesmo percurso niilista. Não são as
guerras destruidoras, a violência visível dos massacres, a repressão
patente da censura, o Estado totalitário e policial, o que na era niilista do
trabalhador é essencial. Deste modo, a redução da liberdade ao serviço
não se pode esgotar no mero fenómeno da explícita absorção pelo
Estado da vida privada, ou da violação por um Estado totalitário das mais
ínfimas liberdades individuais. Assim, apesar dos resultados da Segunda
Guerra Mundial, poder-se-á dizer que não estamos hoje fora do percurso
niilista da era do trabalhador. E não o estamos porque a sua essência
consiste na redução constante, na aproximação crescente de um
“meridiano zero” cuja linha se depara no caminho do homem como um
desafio incontornável. As análises de Jünger possuem até, em larga
medida, um carácter profético: homogeneizado pela técnica, o mundo é
hoje cada vez mais uma construção orgânica, em que tudo é
interdependente, em que nada pode ser único ou separado; e,
uniformizado por uma imprensa e por uma publicidade usadas
tecnicamente, o homem é hoje mais do que nunca uma figura típica,
21

caracterizada por pensamentos e opiniões, por gostos e sentimentos


típicos.
É no horizonte desta aproximação que a segunda pergunta surge
como inevitável: diante do niilismo, diante da redução do homem à figura
típica do trabalhador, que fazer? No contexto alemão de 1932, Jünger
não pode deixar de ver na participação da Mobilização Total, na
participação da figura do trabalhador, o único destino possível. Em O
Trabalhador, a liberdade humana não é senão serviço: «Tomar parte
aqui e servir, tal é a tarefa que é esperada de nós»48. Em Sobre a dor,
ensaio que foi publicado quatro anos após o Trabalhador, Jünger fala
ainda do serviço, da assunção da vontade do Estado pela vontade
individual, como a mais alta, talvez até como a única efectiva forma de
liberdade. Trata-se da liberdade de, assumindo o destino marcado pela
vontade de poder, reduzir-se a um objecto por ela mobilizado: «a estas
massas restou apenas ainda uma liberdade, a liberdade da concordância
[...] Mas isto não significa outra coisa do que a transformação das
massas de uma grandeza moral num objecto»49. Tal atitude corresponde
à que Jünger, em O Trabalhador, descreve como o “realismo heróico”.
Mas esta atitude, que corresponde a ver sem valorizar50, e a aceitar a
sua participação com júbilo — como os «voluntários que saudaram com
júbilo a grande guerra e que saúdam tudo quanto dela se seguiu e
seguirá»51 —, não pode deixar de se mostrar insustentável. Ver o niilismo
e participar do niilismo é já, à partida, tomar consciência do niilismo
enquanto tal e, pelo menos nessa medida, rebelar-se contra ele.
Só a cegueira possibilita ao homem reduzir-se a uma peça na
engrenagem do barco veloz em que o Estado — já não o “nosso Estado”,
mas o “Estado mundial” — se tornou. Daí que a visão exigida pelo
realismo heróico conduza não apenas à participação, mas, nessa

48
Ernst JÜNGER. “Der Arbeiter”, p.311.
49
Ernst JÜNGER. “Über den Schmerz” in Essays I. vol. V. Estugarda, Ernst Klett Verlag, s.d.;
p.178.
50
Cf. Ernst JÜNGER. Der Arbeiter, p.140.
51
Idem, p.41.
22

participação, à rebeldia. A descrição da vida social e estatal como um


barco, como já acontece em O Trabalhador, exige, pelo menos, a
consciência de que se está embarcado. E esta tomada de consciência
arrasta consigo uma atitude diferente da cega e jubilosa participação.
Assim, noutro texto, Jünger pode escrever: «O indivíduo já não está na
sociedade como uma árvore no bosque, assemelha-se, ao invés, ao
passageiro numa embarcação, que se move rapidamente e que se pode
chamar “Titanic” ou também Leviatã. Desde que faça bom tempo e a
paisagem seja agradável, ele mal se aperceberá do decréscimo de
liberdade em que caiu. Sobrevém, pelo contrário, um optimismo, uma
consciência de poder, provocada pela velocidade. O que se há-de
transformar, quando aparecem ilhas vulcânicas e icebergues»52. E é
diante desta consciência de que se está embarcado, seja na atmosfera
guerreira de um couraçado, seja no ambiente luxuoso de um Titanic, que
«a liberdade» surge como aquele que «é hoje o grande tema»53.
Tal tema pergunta «se a liberdade ainda é possível»54 e,
consequentemente: «o que fazer nesta situação?»55. E é a própria
consciência de que se está embarcado que possibilita a resposta à
pergunta: se o homem está hoje reduzido ao trabalhador, se a sua
liberdade está hoje reduzida ao serviço, a resistência a esta redução não
pode deixar de ser a outra face, o complemento indestrutível e
insuperável do “carácter total do trabalho”. Oposta à figura do
trabalhador, mas pertencente a esta, surge então a figura do resistente;
oposto ao movimento do barco, mas dentro deste mesmo movimento,
surge o passo da floresta, a solidez intemporal de quem, mesmo
embarcado, contra tudo e todos, mantém o acesso à terra firme. É certo
que «uma grande maioria não quer a liberdade»56; mas também o é que

52
Ernst JÜNGER. “Der Waldgang” in Essays I. vol. V. Estugarda, Ernst Klett Verlag, s.d.;
pp.319-320 (citamos a trad. portuguesa de Maria Filomena Molder: O Passo da Floresta.
Lisboa, Cotovia, 1995; pp.34-35).
53
Idem, p.366 (trad. port., p.79).
54
Ernst JÜNGER. “Über die Linie”, p.281.
55
Idem, p.271.
56
Ernst JÜNGER. Der Waldgang, p.375 (trad. port: p.88).
23

«é preciso ser livre, para chegar a ser livre»57, que «é preciso que o
homem que está no barco tome por medida aquele que está na
floresta»58. É no passo da floresta, onde se «mantém uma relação com a
liberdade», que «vive a vontade originária da resistência»59. E é para
esta resistência da liberdade, para esta afirmação do homem na sua
dignidade essencial de resistente, que a consciência do “carácter total do
trabalho”, a descrição por Jünger da figura do trabalhador na era do
niilismo, conduz. É como corolário das análises de O Trabalhador que
poderiam aparecer as palavras de Jünger em Sobre a Linha: «Um
homem basta como testemunha de que a liberdade ainda não
desapareceu»60.

Alexandre Franco de Sá
Junho de 2000

57
Idem, p.375 (trad. port: p.88).
58
Idem, p.357 (trad. port.: p.70).
59
Idem, p.366 (trad. port.: p.79).
60
Ernst JÜNGER. “Über die Linie”, p.283.
24

Prefácio à edição das Obras Completas

A obra sobre o trabalhador apareceu no Outono de 1932, num


tempo em que já não subsistia qualquer dúvida quanto à
insustentabilidade do antigo e à adveniência de novas forças. Ela
apresentou e apresenta a tentativa de conquistar um ponto a partir do
qual os acontecimentos, na sua multiplicidade e oposição, não apenas se
devam conceber, mas também, embora perigosamente, se devam
saudar.
O aparecimento deste livro pouco antes de uma das grandes
viragens não é acidental; e não faltaram vozes que lhe atribuíram uma
influência sobre ela. Como é natural, tal nem sempre foi referido como
um reconhecimento, e, infelizmente, também não posso concordar com
isso ⎯ em primeiro lugar, porque não sobrevalorizo a influência dos
livros sobre a acção; e, depois, porque este apareceu demasiado pouco
tempo antes dos acontecimentos.
Se os grandes intervenientes se tivessem orientado segundo os
princípios aqui desenvolvidos, ter-se-iam abstido de muita coisa que não
era precisa, e que era até sem sentido, e teriam feito o necessário,
provavelmente mesmo sem a violência das armas. Em vez disso,
introduziram uma engrenagem cujo significado se escondia onde menos
suspeitavam: na continuação da dissolução do Estado-Nação e das
ordens que lhe estão ligadas. A partir deste aspecto explica-se aquilo
que foi dito sobre o “burguês”61.

61
N. do T.: O termo burguês traduz o termo alemão Bürger. Convém, no entanto, notar que a
palavra alemã Bürger tem um significado abrangente, do qual Jünger maximamente se
apropria. O “burguês” de Jünger não é, como se poderia à partida pensar, o representante de
uma classe ou uma categoria económica, mas o representante de uma era histórica, marcada
pela concepção do homem como cidadão (palavra que é também uma tradução possível para
o termo Bürger), como indivíduo determinado por uma racionalidade abstracta e igualitária.
25

O que tinha acontecido noutras partes do planeta e tinha custado


a vida a milhões não devia ser descurado, e tanto menos quanto não
bastavam os meios tradicionais. Diante disso, permanece uma questão
académica saber se ainda devia dominar em geral a dupla tarefa tanto de
um aligeiramento grosseiro da bagagem para a preservação da
substância nuclear como também de uma aceleração da marcha para
além do progresso, ou se, na perspectiva da preparação, primeiro de
1848, depois de 1918, tinha sido perdido algo irrecuperável. Tal diz
respeito à diferença da democracia alemã em relação à democracia
mundial e não toca no problema.
Que aqui eram suspeitadas e sondadas não apenas grandezas
nacionais, políticas, geográficas e etnológicas, mas as vanguardas de um
novo poder terreno, podia ser entretanto atestado mais
pormenorizadamente. Tal foi já então também reconhecido por alguns
leitores, embora, em todos os tempos, o episódico e o acidental, o
primeiro plano político e polémico de um problema, tenha preso mais
fortemente a atenção do que o seu núcleo substancial. Contudo, este
actua sobre a duração, mesmo se em roupagens que mudam
constantemente.
Assim, enquanto as potências históricas, e mesmo onde elas
construíram impérios, se esgotam, vemos, ao mesmo tempo, à escala
mundial e para além dela, crescer algo maior, do qual, à partida, apenas
captamos a potência dinâmica. Tal é um sinal de que o ganho do livro se
encontra noutro lugar que não no que dentro das contendas se supõe. A
cegueira parcial pertence, no entanto, ao plano. Inabalável, saindo do
caos sempre mais actuante, permanece apenas a figura do trabalhador.

Desde há muito ⎯ autenticamente, desde a impressão da


primeira edição ⎯ ocupam-me planos para a revisão do livro sobre o
trabalhador. Eles estão mais ou menos realizados, e variam desde uma
26

edição “revista” e “profundamente revista” até uma segunda ou nova


versão.
Se, apesar disso, se assumiu nas Obras Completas o texto
intacto da terceira edição (1942), isso foi sobretudo por razões de
documentação. Muito do que então actuava de um modo surpreendente
ou também provocatório entrou hoje na experiência quotidiana. Ao
mesmo tempo, passou aquilo que exigia réplica. É também precisamente
por isso que, mais facilmente do que então, se deixa subordinar a
situação de partida e, nela, o episódico ao núcleo imutável do livro: a
concepção da figura.
Em todo o caso, também os princípios, no decorrer dos anos, se
estendem em considerações mais ou menos abrangentes. Algumas
delas encontram-se nos volumes de ensaios desta edição, outras estão
aqui compiladas em apêndice62.

Wilflingen, 16 de Novembro de 1963

62
N. do T.: O volume 8 das Obras Completas de Ernst Jünger contém, para além de Der
Arbeiter, o ensaio Maxima – Minima, publicado pela primeira vez em 1964, composto de
anotações à obra Der Arbeiter e de excertos de correspondência sobre ela.
27

Prefácio à primeira edição

O plano deste livro consiste em tornar visível, além das teorias,


além das facções políticas, além dos preconceitos, a figura do
trabalhador como uma grandeza actuante, que já entrou na história
poderosamente e determina imperativamente as formas de um mundo
modificado. Na medida em que aqui se trata menos de novos
pensamentos ou de um novo sistema do que de uma nova realidade,
tudo recai na intensidade da descrição, que pressupõe olhos aos quais
seja dada a visão completa e imparcial.
Se bem que esta intenção fundamental se sedimentou em cada
frase, o material exibido está de um modo tal que corresponde à visão de
conjunto, necessariamente limitada, e à experiência particular do
singular. Se apenas se conseguiu tornar visível uma barbatana do
Leviatã, tanto mais facilmente avança o leitor para descobertas próprias,
quando é atribuído à figura do trabalhador não um elemento de pobreza,
mas um elemento de plenitude.
Tenta-se apoiar esta importante colaboração através da
metodologia da conferência, que se esforça por proceder de acordo com
as regras do exercício militar, para o qual uma matéria diversificada
serve como ocasião para o treino de uma e da mesma intervenção.
Importante é, não as ocasiões, mas a segurança instintiva da
intervenção.

Berlim, 14 de Julho de 1932


28

I PARTE
29

A ERA DO TERCEIRO ESTADO COMO UMA ERA DO


DOMÍNIO APARENTE

1.

O domínio do terceiro estado nunca conseguiu tocar, na


Alemanha, aquele núcleo mais íntimo que determina a riqueza, o poder e
a plenitude de uma vida. Olhando para mais de um século de história
alemã, podemos admitir com orgulho que fomos maus burgueses. Não
era para o nosso perfil63 que estava talhado o fato, que doravante é
destruído até aos últimos fios e sob cujos farrapos aparece já uma
natureza mais selvagem e mais inocente que aquela cujos sons
sentimentais já cedo fizeram estremecer o pano atrás do qual o tempo
escondia o grande espectáculo da democracia.
Não, o alemão não era nenhum bom burguês, e era-o menos
onde era mais forte. Por todo o lado onde mais profunda e ousadamente
se pensou, onde mais vivamente se sentiu, onde mais inexoravelmente
se combateu, é inconfundível a revolta contra os valores que a grande
declaração de independência da razão ergueu sobre o seu escudo. Mas
nunca como aqui estiveram mais sós os portadores daquela
responsabilidade imediata que se caracteriza como génio, nunca como
aqui estiveram mais ameaçados na sua obra e actuar, e nunca o puro
desdobramento do herói foi mais pobremente nutrido. As raízes tinham
de ser plantadas profundamente através de um solo árido para atingir as

63
N. do T.: O termo que traduzimos por perfil é Figur, reservando o termo figura para a
tradução de Gestalt. Se a Gestalt é a figura, no sentido da forma que se imprime como cunho
num fenómeno, a Figur é apenas o aspecto mais superficial, o perfil, de um determinado
fenómeno.
30

fontes nas quais está instalada a unidade mágica de sangue e de espírito


que torna a palavra irresistível. Também difícil era, para a vontade,
alcançar aquela outra unidade de poder e direito que ergue a
peculiaridade, diante do estranho, à dignidade de lei.
Daí que este espaço de tempo fosse superabundante em grandes
corações cuja última insurreição consistiu em pôr termo ao próprio bater,
superabundante em espíritos elevados para os quais parecia bem vinda
a calma do mundo das sombras. Ele foi rico em políticos aos quais se
negavam as fontes do tempo, e que tinham de criar a partir do passado
para serem activos para o futuro; rico em batalhas nas quais o sangue se
pôs à prova em outras vitórias e derrotas diferentes do espírito.
Sucedeu assim que todas as posições que o alemão, neste
tempo, conseguiu possuir não satisfazem, mas lembram nos seus pontos
decisivos aquele estandarte de combate cujo sentido consiste na ordem
de marcha de exércitos ainda longínquos. Esta discrepância pode-se
comprovar por todo o lado, em cada coisa; o seu fundamento está em
que o alemão não sabia fazer qualquer uso daquela liberdade que lhe foi
ordenada com todas as artes da espada e da persuasão e que
experimentava o seu estabelecimento na proclamação dos direitos
humanos universais: esta liberdade era para ele um instrumento que não
possuía qualquer relação aos seus orgãos mais íntimos.
Assim, era fácil adivinhar, onde se começou a falar esta
linguagem na Alemanha, que se tratava apenas de más traduções, e a
desconfiança de um mundo no qual estava o berço da civilidade
burguesa era tanto mais legítima quanto sempre de novo uma linguagem
originária procurou fazer-se ouvir, sobre cujo perigoso e diferente
significado não era possível qualquer dúvida. Conservava-se a suspeita
de que aqui não foram levadas a sério valorizações tão caras e valiosas;
suspeitava-se atrás da sua máscara uma força incalculável e indomável,
uma força que farejava o seu último refúgio numa relação originária que
lhe era própria ⎯ e suspeitou-se correctamente.
31

Pois nesta terra é irrealizável um conceito de liberdade que se


deixe aplicar a qualquer grandeza que lhe seja submetida, como uma
medida fixa e em si mesma carente de conteúdo. Em vez disso, aqui foi
válido desde sempre o seguinte: que a medida da liberdade de que uma
força dispõe corresponde exactamente à medida do vínculo que lhe está
reservado, e que no alcance da vontade libertada se manifesta o alcance
da responsabilidade que confere a esta vontade a sua legitimação e
validade. Tal expressa-se deste modo: que nada consegue entrar na
nossa realidade, ou seja, na nossa história, no seu significado supremo,
de acordo com o seu destino, senão aquilo que leva o cunho desta
responsabilidade. Não é preciso falar-se sobre este cunho, pois como ele
é imediatamente concedido, também há sinais nele gravados que uma
obediência sempre pronta consegue imediatamente ler.
É assim: que a nossa liberdade, em todo o lado, se manifesta
mais poderosamente onde é transportada pela consciência de que ela é
um feudo. Esta consciência sedimentou-se em todas aquelas máximas
inesquecíveis com as quais a velha nobreza da nação cobriu o escudo
do povo; governa o pensar e o sentimento, a acção e a obra, a arte do
Estado e a religião. Daí que o mundo seja sempre abalado nas suas
fundações quando o alemão reconhece aquilo que a liberdade é, ou seja,
quando ele reconhece aquilo que é o necessário. Aqui nada se deixa
desviar, e mesmo que o mundo acabasse a ordem tem de ser executada,
se o apelo for ouvido.
Avaliar-se-á sempre demasiado estreitamente uma propriedade
que, mais do que todas as outras, se reserva para a caracterização do
alemão — a ordem — se não se conseguir reconhecer nela o reflexo
robusto da liberdade. A obediência é a arte de escutar, e a ordem é o
estar preparado para a palavra, o estar preparado para o comando que,
como o raio de um relâmpago, vai do cume às raízes. Cada um e cada
32

coisa está na ordem feudal e o guia64 é reconhecido em ele ser o


primeiro servo, o primeiro soldado, o primeiro trabalhador. Daí que tanto
a liberdade como a ordem se relacionem não com a sociedade, mas com
o Estado, e que o modelo de cada organização seja a organização militar
e não o contrato social. Daí que o estado do nosso mais extremo vigor
seja atingido quando não persiste nenhuma dúvida sobre o comando e o
séquito.
Deve-se reconhecer o seguinte: que domínio e serviço são um e
o mesmo. A era do terceiro estado nunca reconheceu o admirável poder
desta unidade, pois os prazeres demasiado fáceis e demasiado humanos
pareciam-lhe desejáveis. Daí que todos os pontos que, nesta era, o
alemão conseguiu atingir tivessem sido não obstante atingidos: o
movimento encontrou-se em todas as áreas num elemento estranho e
não natural. O fundo real como que só com escafandros podia ser
pisado; o trabalho decisivo realizou-se num espaço mortal. Honra a estes
caídos que a tremenda solidão do amor ou do conhecimento
despedaçou, ou que o aço deitou por terra sobre as ardentes colinas do
combate!
Mas não há regresso. Quem hoje na Alemanha está ávido de um
novo domínio, esse volta o olhar para onde vê no trabalho uma nova
consciência da liberdade e da responsabilidade.

64
N. do T.: O termo alemão traduzido por guia é Führer. Tendo em conta a sua determinação
como aquele que conduz ou que guia, assim como a impossibilidade da sua redução a um
simples chefe, pareceu-nos a tradução mais adequada.
33

O TRABALHADOR NO REFLEXO DO MUNDO BURGUÊS

2.

Procuremos antes de mais esta consciência onde ela opera mais


impetuosamente, mas procuremo-la com amor, com vontade de indicar
aquilo que permanece! Voltemo-nos então para o trabalhador65, o qual já
cedo se referiu a uma inexorável oposição a todas as valorizações
burguesas e retirou do sentimento desta oposição a força para os seus
movimentos.
Estamos suficientemente afastados dos inícios destes
movimentos para podermos ser justos para com eles. Não se pode
escolher o banco da escola no qual se forma o carácter, porque a escola
é determinada pelos pais, mas chega o dia em que se sente ter
ultrapassado a idade e se reconhece a vocação autêntica. Deve-se
pensar nisto quando se investiga os meios do trabalhador na sua força
de combate, e deve-se bem ter em conta que eles surgiram no combate
e que no combate cada posição é ocupada sob a influência do opositor.
Seria assim demasiado fácil reprovar ao trabalhador que a sua
substância66, como um metal que ainda não se fundiu em pureza, seja

65
A palavra “trabalhador” é aqui, como outras palavras, empregue como conceito orgânico, isto
é, ela sofre modificações no decorrer da consideração que devem ser vistas
retrospectivamente.
66
N. do T.: A palavra que aqui se traduz e traduzirá por substância é Bestand. Tal palavra, que
significa aquilo que permanece, aquilo em que algo consiste (besteht), é usada frequentemente
por Jünger para a significação do fundo, do núcleo imutável que pode manifestar-se
fenomenicamente em formas variadas. Pensamos que substância é, neste sentido, o termo
mais adequado para a sua tradução.
34

penetrada por valorizações burguesas, e que a sua linguagem, a qual


pertence indubitavelmente ao século XX, seja rica em conceitos que são
formados pelos questionamentos do século XIX. Pois, quando começou
a falar pela primeira vez, ele estava destinado ao uso destes conceitos
para se fazer compreensível, e a delimitação das suas reivindicações foi
determinada pelas reivindicações do opositor. Assim, cresceu lentamente
e sob pressão contra o tecto burguês, para finalmente o rebentar, e não é
de admirar que leve as marcas deste crescimento.
Não é apenas a resistência que deixa estas marcas, mas também
a alimentação. Vimos que, por boas razões, na Alemanha o terceiro
estado não era capaz de chegar a um domínio público e reconhecido.
Assim, coube ao trabalhador a admirável tarefa suplementar de
recuperar este domínio, e é um acto muito significativo que ele, à partida,
tenha tido de levar ao domínio o estranho que estava misturado com os
seus esforços, para assim experimentar que ele não lhe era próprio.
Como foi dito, tais são as marcas da alimentação, e a separação do que
não é proveitoso elimina-las-á. Mas também como poderia ser de outra
forma, se os primeiros professores do trabalhador eram de proveniência
burguesa e se a instalação dos sistemas nos quais a jovem força foi
colocada correspondia a modelos burgueses!
Explica-se assim que a recordação do matrimónio sangrento da
burguesia com o poder, a recordação da Revolução Francesa, tenha sido
a fonte da qual se alimentaram e orientaram as primeiras
movimentações. Mas há tão poucas repetições do processo histórico
quanto transmissões do seu conteúdo vivo. Deu-se assim que, na
Alemanha, por todo o lado onde se julgava realizar trabalho
revolucionário, se teatralizava a revolução, e que as autênticas
transformações se cumpriam sem serem vistas, seja em quartos
tranquilos, seja ocultamente sob as cortinas ardentes da batalha.
35

Mas o que era realmente novo não precisava que se acentuasse


que se encontra em revolta, e a sua suprema periculosidade funda-se no
facto de que está presente.

3.

Daí que de uma débil colocação do olhar brote, em primeiro lugar,


a identificação do trabalho67 com um quarto estado.
Só a um espírito habituado a imagens mecânicas é que o
processo da sequência do domínio se pode apresentar de tal modo que,
como o ponteiro do relógio lança as suas sombras sobre as horas, um
estado depois de outro dirija o quadro do poder, enquanto por baixo já
uma nova classe cresce até à consciência.
Foi antes só a burguesia que se sentiu como estado neste sentido
particular; ela desligou esta palavra, que é de muito antiga e boa
proveniência, das correlações que cresceram com ela, despiu-a do seu
sentido e fez dela nada mais que uma máscara do interesse.
Daí que haja um ponto de vista burguês sob o qual o trabalho é
interpretado como um estado, e que a esta interpretação subjaza uma
astúcia inconsciente que procura encaixar as novas reivindicações num
quadro velho que deve possibilitar o prosseguimento da discussão. Pois
onde o burguês pode discutir, onde pode negociar, é aí que está em
segurança. No entanto, a rebelião do trabalho não será uma segunda e
descorada infusão, preparada segundo receitas envelhecidas. Não é na
sequência temporal do domínio, na oposição entre o velho e o novo, que

67
N. do T.: O termo trabalho é, ao longo desta tradução, usado geralmente para traduzir a
palavra Arbeit. Contudo, ele traduz aqui o termo Arbeitertum, o qual poderia ser traduzido,
noutro contexto, como a classe operária ou classe dos trabalhadores, oposta à burguesia
(Bürgertum). Contudo, Jünger procura explicitamente libertar os termos Arbeit, Arbeiter e
Arbeitertum do seu cunho marxista, pelo que preferimos traduzir Arbeitertum pelo termo mais
abrangente de “o trabalho”: lembremo-nos de que entre trabalho (Arbeitertum) e burguesia
(Bürgertum) existe, como diz Jünger, não uma oposição dialéctica, mas «uma diferença de
plano» (§3); ou que, como adiante esclarece, o trabalho está, em relação à burguesia, «não
numa relação de oposição, mas de alteridade» (§4).
36

repousa a diferença essencial existente entre o burguês e o trabalhador.


Que os interesses que se tornaram fracos são dissolvidos por interesses
mais jovens e mais brutais, é tão evidente que se pode deixar a sua
consideração.
Em vez disso, o que suscita a maior atenção é o facto de entre o
burguês e o trabalhador haver, não apenas uma diferença na idade, mas
sobretudo uma diferença de plano. Nomeadamente, o trabalhador está
numa relação com potências elementares de cuja mera presença o
burguês nunca sequer suspeita. Como será exposto, ligado com isto está
que o trabalhador, a partir do fundo do seu ser, seja capaz de uma
liberdade totalmente diferente da liberdade burguesa, e que as
reivindicações que ele tem ao estar preparado sejam muito mais
abrangentes, muito mais significativas, muito mais temíveis que as de um
estado.

4.

Em segundo lugar, cada frente pode ser considerada apenas


como uma frente provisória, apenas como uma frente dos primeiros
combates nos postos avançados, que traz o trabalhador a uma posição
de combate que se limita ao ataque contra a sociedade. Pois também
esta palavra experimentou na era burguesa a sua queda de valor; ela
obteve um significado particular cujo sentido é a negação do Estado
enquanto supremo meio de poder.
Aquilo que subjaz a este desejo, no seu íntimo, é a necessidade
de segurança e, deste modo, a tentativa de repudiar o que é perigoso e
de impermeabilizar o espaço vital de tal modo que se evite que ele
irrompa. É certo que o que é perigoso está sempre presente, e que
triunfa mesmo sobre as mais subtis astúcias com que se o ilude; de
facto, entra vezes sem conta nestas astúcias para com elas se mascarar,
37

e isso dá à civilidade o seu duplo rosto ⎯ são demasiado conhecidas as


estreitas ligações existentes entre a irmandade e o cadafalso, entre os
direitos humanos e as batalhas mortíferas.
Mas seria erróneo assumir que o burguês alguma vez, mesmo no
seu melhor tempo, tenha evocado o que era perigoso com as próprias
forças; tudo isto se assemelha antes a um terrível riso de escárnio da
natureza sobre a sua subordinação à moral, a um júbilo furioso do
sangue sobre o espírito, quando estiver acabado o prelúdio dos belos
discursos. Daí que seja negada qualquer relação entre a sociedade e o
elementar, e isto com um dispêndio de meios que permanecerá
incompreensível a quem não adivinhar aqui o mais secreto ideal como o
pai dos pensamentos.
Esta negação realiza-se de tal modo que remete o elementar para
o reino do erro, dos sonhos ou de uma vontade necessariamente má, de
tal modo que o põe como sendo de significado igual ao próprio sem
sentido. A reprovação de estupidez e de imoralidade é aqui a decisiva e,
como a sociedade se determina através de ambos os supremos
conceitos da razão e da moral, esta reprovação apresenta o meio através
do qual se bane o opositor do espaço da sociedade, ou seja, do espaço
da humanidade e, assim, do espaço da lei.
A esta diferenciação corresponde um processo que sempre de
novo se observou com espanto: que a sociedade, como um mote, tenha
declarado abolida a pena de morte precisamente durante os pontos mais
sangrentos da guerra civil, e que tenha oferecido as suas melhores ideias
sobre a carência de ética e de sentido da guerra sempre que os campos
de batalha se cobriam de cadáveres.
No entanto, significaria sobrestimar o burguês, se se quisesse
supor uma intenção atrás desta dialéctica sumamente estranha, pois em
mais nenhuma zona ele se leva mais a sério do que nas zonas racional e
moral; ele é mesmo, nos seus fenómenos mais significativos, a unidade
do racional com o próprio moral.
38

O elementar impõe-se-lhe antes a partir de uma esfera totalmente


diferente da esfera da sua autêntica robustez, e é com terror que
reconhece aquele ponto em que a negociação está terminada.
Eternamente deleitar-se-ia nas suas belas denúncias, cujos pilares
fundamentais são a virtude e a justiça, se a plebe não lhe trouxesse, no
instante certo, o inesperado presente da sua força, mais poderosa mas
sem figura, que se alimenta das forças originárias do pântano.
Eternamente saberia manter em suspenso o equilíbrio das potências,
como uma obra de arte que existe por causa de si mesma, se de vez em
quando não se manifestasse, para além dele, o guerreiro, que ele
consente contra vontade e estando constantemente preparado para
negociar. Mas ele recusa a responsabilidade, pois reconhece a sua
liberdade no universalmente moral, e não no modo e na peculiaridade.
Não se pode referir para isso melhor exemplo do que ele aniquilar o
agente e o autor de um atentado que pela primeira vez lhe arromba as
portas do domínio, como se a sua tarefa estivesse terminada. A reclusão
das paixões é o certificado com o qual abandona os despojos das
revoluções, e o enforcamento dos carrascos é a peça satírica que
encerra a tragédia da rebelião.
Do mesmo modo, recusa a mais elevada fundamentação da
guerra, o ataque, porque muito bem sente que esta não lhe é adequada,
e onde, mesmo que seja pela mais manifesta utilidade própria, chamou
pela ajuda dos soldados, ou se vestiu ele mesmo como soldado, nunca
renunciará ao juramento de que tal acontece para defesa, se possível
para a defesa da humanidade. O burguês só conhece a guerra de
defesa, isto é, não conhece em geral a guerra, já porque está excluído,
segundo a sua essência, de todos os elementos bélicos. No entanto, por
outro lado, é incapaz de evitar a sua penetração nas suas ordens, porque
todas as valorizações que tem para lhes contrapor são de uma dignidade
menor.
39

Entra aqui o jogo engenhoso dos seus conceitos, e a sua política,


até mesmo o próprio universo, é para ele um espelho no qual quer
continuar a ver constantemente confirmada a sua virtude. Seria instrutivo
observá-lo naquele infatigável trabalho de acabamento que tão
longamente sabe aplanar o cunho duro e necessário da palavra até que
transpareça uma moralidade universalmente vinculativa ⎯ seja que ele
queira reconhecer na conquista de uma colónia a sua penetração
pacífica, na separação de uma província o direito de autodeterminação
do povo ou na pilhagem do derrotado uma reparação. Mas é suficiente
conhecer os métodos para adivinhar que a concepção deste vocabulário
começou com a identificação do Estado e da sociedade.
Mas quem quer que tenha concebido isto conceberá também o
grande perigo, o grande roubo de reivindicações, que se esconde no
facto de se ter indicado ao trabalhador a sociedade como o supremo
objectivo do ataque. As ordens de ataque decisivas apresentam ainda
todas as características de uma era na qual de certo era tão evidente que
um poder que desperta se tivesse de reconhecer como estado, como era
evidente que a realização da conquista do poder se tivesse de
caracterizar como uma mudança do contrato social.
Deve-se então reparar no seguinte: que esta sociedade não é
uma forma em si, mas apenas uma das formas fundamentais da
representação burguesa. Tal mostra-se no facto de não haver na política
burguesa nenhuma grandeza que não seja concebida como sociedade.
É sociedade toda a população do globo terrestre que se
apresenta ao conceito como a imagem ideal de uma humanidade, cuja
fragmentação em Estados, nações ou raças, no fundo, não repousa
senão num erro de pensamento. Este erro de pensamento, no entanto, é
corrigido no curso do tempo através de contratos, através do iluminismo,
através da civilidade ou, simplesmente, através do progresso dos meios
de transporte.
40

É sociedade o Estado cuja essência se esbate no mesmo grau


em que a sociedade o subordina às suas medidas. Este ataque tem lugar
através do conceito de liberdade burguesa, cuja tarefa é a transmutação
de todos os vínculos responsáveis em relações contratuais até à
rescisão.
Na mais estreita relação com a sociedade está, finalmente, o
singular, aquele perfil admirável e abstracto do homem, a mais valiosa
descoberta da sensibilidade burguesa e, ao mesmo tempo, o objecto
inesgotável da sua imaginação artística. Como a humanidade é o
cosmos desta representação, assim é o homem o seu átomo. Contudo,
na prática, o singular não se vê contraposto à humanidade, mas à
massa, ao seu reflexo exacto neste mundo sumamente esquisito,
sumamente imaginário. Pois a massa e o singular são um, e é desta
unidade que se dá a assombrosa dupla imagem da mais variada e
confusa anarquia e da ordem social austera da democracia, dupla
imagem essa que foi o espectáculo de um século.
Mas pertence às características de um novo tempo que nele a
sociedade burguesa, independentemente de ela apresentar o seu
conceito de liberdade na massa ou no indivíduo, esteja condenada à
morte. O primeiro passo consiste em já não se pensar e sentir nestas
formas, o segundo em já não se estar nelas activo.
Tal não significa menos que o ataque a tudo o que torna a vida
valiosa para o burguês. Daí que para ele seja uma questão vital que o
trabalhador se conceba como o futuro suporte da sociedade. Pois se
apenas isto pertencer à substância dogmática, a forma fundamental da
visão burguesa é salva e, deste modo, é assegurada a mais subtil
possibilidade do seu domínio.
Assim, não é de admirar que em todas as prescrições que o
espírito burguês prescreveu ao trabalhador a partir das suas cátedras e
águas-furtadas, a sociedade é colocada, não no seu aparecimento, mas,
muito mais eficazmente, nos seus princípios. A sociedade renova-se
41

através de aparentes ataques a si mesma; o seu carácter indeterminado,


ou antes a sua ausência de carácter, traz consigo que ela também ainda
consiga abarcar em si a sua mais intensa auto-negação. Os seus meios
são duplos: ou remete a negação para o seu pólo individualmente
anarquista, e encorpora-o na sua substância ao submetê-la ao seu
conceito de liberdade; ou prende-a ao pólo aparentemente oposto da
massa em si, e transforma-a aí, através da contagem, através da
votação, através da negociação ou da discussão, num acto democrático.
A sua disposição feminina trai-se em ela não procurar colocar a
partir de si qualquer oposição, mas procurar assumi-la em si. Sempre
onde se lhe depara uma reivindicação caracterizada como decisiva, a
sua mais subtil corrupção consiste em a explicar como uma manifestação
do seu conceito de liberdade, e em a legitimar deste modo diante do
fórum da sua lei fundamental, isto é, em torná-la inócua.
Isto deu à palavra radical o seu insuportável mau sabor burguês,
e, diga-se de passagem, isto torna aquele radicalismo em si num negócio
lucrativo, do qual retirou o seu único alimento, uma atrás da outra, uma
geração de políticos e uma geração de artistas. O último recurso da
estupidez, da insolência e da incapacidade sem esperança é o de passar
pela intrujice, na medida em que se adorna com as plumas de uma
disposição que não é nada senão radical.
Há muito tempo, já há demasiado tempo que o alemão habita
junto deste espectáculo indigno. A sua única desculpa é a sua crença de
que em cada forma está incluído necessariamente um conteúdo, e o
único consolo o de que este espectáculo pode bem realizar-se na
Alemanha, mas de modo nenhum dentro da realidade alemã. Pois tudo
isto recai no reino do esquecimento ⎯ não daquele esquecimento que se
assemelha à hera que cobre as ruínas e os túmulos dos caídos, mas de
um outro terrível esquecimento que manifesta a mentira e o que nunca
foi, na medida em que os pulveriza sem deixar marcas nem frutos.
42

Deve ser deixada para uma investigação suplementar particular,


descobrir até que ponto o pensar burguês conseguiu introduzir
ludibriosamente a imagem da sociedade, sob a miragem da sua auto-
negação, nos primeiros esforços do trabalhador. Descobrir-se-á aqui a
liberdade do trabalhador como uma nova cópia do padrão burguês de
liberdade, no qual doravante o destino é indicado muito abertamente
como uma relação contratual até à rescisão e o mais elevado triunfo da
vida como uma alteração deste contrato. Reconhecer-se-á aqui o
trabalhador como o imediato sucessor do singular racional-virtuoso e
como o objecto de uma segunda sensibilidade, que não é em nada
diferente da primeira senão numa indigência maior. Numa
correspondência exacta, descobrir-se-á aliás o trabalho68 como a
reprodução da imagem ideal de uma humanidade em cuja simples utopia
já está contida a negação do Estado e dos seus fundamentos. É isto e
nada senão isto que significa a reivindicação que se esconde atrás de
palavras como “internacional”, “social” e “democrático” ⎯ ou antes, que
se escondeu, pois, mesmo para quem perceba de adivinhas, não ficará
nada senão o espanto de que se acredite poder abalar o mundo burguês
precisamente através das exigências nas quais ele próprio se confirmava
o mais nitidamente possível.
Mas chama-se suplementar a esta investigação porque a
confirmação se realizou já no mundo visível. Pois, de facto, o burguês
conseguiu assegurar-se, com a ajuda do trabalhador, um grau de poder
dispor das coisas como não lhe esteve destinado em todo o século XIX.
E, de novo, abre-se uma plenitude de imagens simbólicas, se se
recorda do instante em que deste modo, na Alemanha, a sociedade
chegou ao domínio. Deve-se abstrair aqui do facto de que este instante
coincidiu com o instante em que o Estado se encontrava no maior e mais
terrível perigo e em que o guerreiro alemão combatia o inimigo. Pois o

68
N. do T.: O termo alemão traduzido aqui por trabalho é Arbeiterschaft, que alude ao carácter
próprio do trabalho.
43

burguês, então, não conseguiu implantar aquela medida ínfima em força


elementar que, sob estas circunstâncias, exigia um novo ataque aparente
sobre si mesmo, isto é, sobre um regime aburguesado no seu núcleo
desde há muito. Não foi dele que foram disparados aqueles poucos
disparos de que se precisava para tornar visível o fim de uma parte da
história alemã, e a sua actividade não consistiu em reconhecê-la, mas na
sua utilização.
Desde há bastante tempo que ele esteve à espera de poder
começar as negociações, e as suas negociações alcançaram aquilo que
não tinha sido alcançável ao mais extremo esforço de todo um mundo.
Mas aqui a fala tem de se impor uma paragem e recusar ocupar-
se com os pormenores daquela imensa tragicomédia que começou com
os conselhos de trabalhadores e de soldados cujos membros se
distinguiam por nunca terem trabalhado nem combatido, nos quais aliás
o conceito burguês de liberdade se manifestava como a fome de sossego
e de pão; tragicomédia essa que então se continuava através do acto
simbólico da entrega das armas e dos navios, que ousava não apenas
debater sobre uma culpa alemã contra a imagem ideal da humanidade,
mas também reconhecê-la, que com uma impudícia inconcebível tentava
erguer os mais poeirentos conceitos do liberalismo à dignidade de uma
ordem alemã, e na qual, de um modo completamente inequívoco, se
manifestava doravante o triunfo da sociedade sobre o Estado como uma
progressiva e combinada alta traição, e traição de lesa-pátria, do comum
e demasiado comum à substância alemã. Aqui cessa qualquer
discussão, pois aqui impõe-se aquele silêncio que dá um pressentimento
do silêncio mortal. Aqui, a juventude alemã contemplou o burguês no seu
último e no seu menos disfarçado aparecimento, e foi aqui que ela, nas
suas melhores encorporações, quer de soldado, quer de trabalhador, se
declarou logo por uma rebelião em que se chegou à expressão segundo
a qual, neste espaço, é infinitamente mais desejável ser criminoso que
burguês.
44

Deve-se diferenciar a partir daqui, por importante que seja, entre


o trabalhador como um poder emergente no qual repousa o destino da
terra e os trajos com que o burguês veste este poder, com base no que
este o serve como marionete no seu jogo artificial. Esta diferença é uma
diferença entre a ascensão e o declínio69. E esta é a nossa fé: que a
ascensão do trabalhador significa o mesmo que uma nova ascensão da
Alemanha.
Na medida em que o trabalhador trouxe ao domínio a sua parte
da herança burguesa, ele afastou-se visivelmente, ao mesmo tempo, de
si, semelhante a uma boneca cheia de palha seca em que se mexe há
mais de um século. Já não pode escapar ao seu olhar que a nova
sociedade é um segundo decalque, e mais barato, da velha.
Eternamente se faria assim uma cópia a seguir à outra,
eternamente se alimentaria o curso da máquina através da invenção de
novas oposições, se o trabalhador não concebesse que ele não está
numa relação de oposição a esta sociedade, mas de alteridade.
Ele só se manifestará como o verdadeiro inimigo mortal da
sociedade quando recusar pensar, sentir e ser nas suas formas. Mas tal
acontece quando reconhecer que tem sido até agora, nas suas
reivindicações, demasiado modesto, e que o burguês o ensinou a desejar
apenas aquilo que precisamente ao burguês parece desejável.
Mas a vida esconde algo mais e algo diferente do que aquilo que
o burguês compreende como bens, e a mais elevada reivindicação que o
trabalhador consegue fazer não consiste em ser o portador de uma nova
sociedade, mas o portador de um novo Estado.
Só neste instante é que ele declara o combate de vida ou de
morte. Então, do singular, que no fundo não é mais que um empregado,
surge um guerreiro, da massa surge o exército, e a colocação de uma

69
N. do T.: As palavras aqui traduzidas por ascensão e declínio são respectivamente Aufgang
e Untergang, palavras que se mantêm relacionadas como movimentos de sentido contrário, e
que, por exemplo, Martin Heidegger utiliza para traduzir os conceitos gregos de geração e
corrupção.
45

nova ordem de comando surge no lugar da alteração do contrato social.


Isto afasta o trabalhador da esfera das negociações, da compaixão, da
literatura, e ergue-o à esfera da acção, transforma os seus vínculos
jurídicos em militares ⎯ isto é, ele possuirá guias, em vez de defensores,
e a sua existência tornar-se-á medida, em vez de precisar de
interpretação.
Pois o que são os seus programas até agora senão os
comentários a um texto originário que ainda não está escrito?

5.

Finalmente, e em terceiro lugar, deve-se destruir a lenda da


qualidade fundamental do trabalhador como uma qualidade económica.
Em tudo o que foi pensado e dito sobre isso, trai-se a tentativa da
aritmética de transformar o destino numa grandeza que se deixa resolver
com meios de cálculo. Esta tentativa deve ser seguida até aos tempos
em que se descobriu no Taiti e na Ile de France o arquétipo do homem
racional-virtuoso e, deste modo, feliz, tempos em que o espírito se
começou a ocupar com os mistérios perigosos do direito do trigo e em
que a matemática pertencia àqueles jogos subtis com os quais a
aristocracia se divertia na véspera da sua decadência.
Foi aqui criado o modelo que experimentava a sua interpretação
inequivocamente económica, na medida em que a reivindicação de
liberdade do singular e da massa se fundamentava como uma
reivindicação económica dentro de um mundo económico. A
confrontação, suscitada por esta reivindicação, entre as escolas
materialista e idealista forma uma das partes do infinito diálogo burguês;
ela é uma segunda infusão daquela primeira discussão dos
enciclopedistas sob os telhados de Paris. De novo são representados os
46

velhos perfis, e nada é mudado senão o esquema que se lhes contrapõe


e que doravante se tornou num puro esquema económico.
Levaria demasiado longe acompanhar como a discussão se
alimenta através da distribuição variada dos antigos sinais e como se
anima através da sua troca; importante é apenas que se veja como é que
abrange numa ordem unitária a luta das opiniões e os seus portadores.
A imagem ideal racional-virtuosa do mundo coincide aqui com
uma utopia económica do mundo, e são reivindicações económicas as
reivindicações a que qualquer questionamento se refere. O inelutável
está em que dentro deste mundo de exploradores e explorados não é
possível qualquer grandeza sobre a qual não se decida a partir de uma
instância suprema do económico. Há aqui dois tipos de homem, dois
tipos de arte, dois tipos de moral ⎯ mas quão pouca sagacidade há em
reconhecer que é uma e a mesma fonte que os alimenta.
É também a um e ao mesmo progresso que os portadores do
combate económico remetem a sua justificação ⎯ eles encontram-se na
reivindicação fundamental de serem os portadores da prosperidade, e
acreditam poder abalar a posição do opositor na mesma precisa medida
em que conseguem a refutação desta reivindicação.
Mas basta ⎯ qualquer participação nesta discussão inclui em si a
sua continuação. Aquilo que tem de ser visto é a presença de uma
ditadura do pensar económico em si, cujo âmbito abrange e limita nas
suas medidas qualquer ditadura possível. Pois dentro deste mundo não é
realizável nenhum movimento que não remexesse de novo o turvo lodo
dos interesses, e não há aqui nenhuma posição a partir da qual possa
resultar a ruptura. Pois é a economia em si, a interpretação económica
do mundo, que constrói o ponto central deste cosmos, e é ela que dá a
cada uma das suas partes a sua gravitação.
Seja qual for a parte que se consiga pôr na posse do poder de
dispor das coisas, ela será sempre dependente da economia como
supremo poder de dispor das coisas.
47

O mistério que aqui se esconde é de uma natureza simples:


consiste em, por um lado, a economia não ser nenhum poder que tenha
de entregar a liberdade, e em, por outro lado, um sentido económico não
conseguir chegar aos elementos da liberdade ⎯ e, no entanto, precisa-
se dos olhos de uma nova estirpe para que este mistério possa ser
adivinhado.
Aqui torna-se talvez precisa uma nota pela qual deve ser
impedida a possibilidade de uma confusão: a negação do mundo
económico como um mundo que determina a vida, ou seja, como um
poder de destino, é uma contestação de dignidade, mas não de
existência. Pois não se trata do aumento no deserto do bando daqueles
pregadores aos quais parece alcançável um outro espaço apenas
através das portas das traseiras. Para o poder real não há nenhum
acesso que não seja questionado.
Idealismo ou materialismo ⎯ esta é uma oposição de espíritos
imundos cuja força de representação não cresceu nem da ideia nem da
matéria. A dureza do mundo só é domesticada pela dureza, não por
prestidigitações.
Compreendamo-nos bem: não se trata de neutralidade
económica, não se trata de o espírito se afastar de todos os combates
económicos, mas, pelo contrário, de ser dada a estes combates a
suprema intensidade. Contudo, isto não acontece na medida em que a
economia determina as regras do combate, mas na medida em que uma
lei superior de combate também impera sobre a economia.
Por esta razão é tão importante para o trabalhador que ele recuse
qualquer explicação que procure interpretar o seu aparecimento como
um aparecimento económico, mesmo como um testemunho de
processos económicos, isto é, no fundo, como um tipo de produto
industrial, e que veja a proveniência burguesa destas explicações.
Nenhuma medida pode talhar mais eficazmente estes vínculos fatais do
que a declaração de independência do trabalhador relativamente ao
48

mundo económico. Tal não significa como que a renúncia a este mundo,
mas a sua subordinação a uma reivindicação de domínio de um tipo mais
abrangente. Significa que não é a liberdade económica e que não é o
poder económico que são o eixo da rebelião, mas o poder em geral.
Na medida em que o burguês projectou os seus próprios
objectivos nos do trabalhador, ele limitou, ao mesmo tempo, o objectivo
do ataque a um objectivo de ataque burguês. Mas hoje suspeitamos a
possibilidade de um mundo mais rico, mais profundo e mais frutífero.
Para realizá-lo não basta um combate de libertação, cuja consciência se
alimenta do facto da exploração. Tudo depende antes de o trabalhador
reconhecer a sua supremacia e de se criar, a partir dela, os padrões
próprios do seu domínio futuro. Tal robustecerá o ímpeto dos seus meios
⎯ da tentativa de debilitar o opositor através da rescisão surge a sua
submissão através da conquista.
Tais já não são os meios do empregado, cuja felicidade suprema
consiste em poder ditar o seu contrato de emprego, e que, no entanto,
nunca se consegue elevar acima da mais íntima lógica deste contrato; já
não são os meios do enganado e do deserdado, que vê em cada nível
que alcança uma nova perspectiva de engano. Não são esses os meios
do rebaixado e ultrajado, mas antes os meios do autêntico senhor deste
mundo, os meios do guerreiro que dispõe das riquezas de províncias e
de grandes cidades, e que dispõe tanto mais seguramente delas quanto
mais as souber desprezar.

6.

Olhemos para trás: foi o século XIX que interpretou o trabalhador


como o representante de um novo estado, como o portador de uma nova
sociedade e como um orgão da economia.
49

Esta interpretação indica ao trabalhador uma posição aparente


dentro da qual a ordem burguesa é assegurada nos seus princípios
decisivos. Consequentemente, qualquer ataque a partir desta posição
pode apenas ser um ataque aparente que conduz a uma cunhagem mais
intensa das valorizações burguesas. Qualquer movimento realiza-se
teoricamente no quadro de uma envelhecida utopia da sociedade e da
humanidade; na prática, volta a trazer ao domínio o perfil do hábil
encarregado de negócios, cuja arte consiste em negociar e em mediar.
Tal é fácil de verificar quando se testa os resultados dos movimentos de
trabalhadores. Aquilo que, para além disso, já se torna visível na
alteração do poder político é o mais profundamente possível indesejado,
retira-se à arte burguesa da interpretação e contradiz inteiramente todas
as predições no sentido da utopia da sociedade humanitária.
As representações para debaixo de cujo encanto se procurou
trazer o trabalhador não bastam, no entanto, para a solução das grandes
tarefas de uma nova era. Por mais subtilmente que se façam os cálculos,
cujo resultado não devia ser senão a felicidade, permanece contudo
sempre um resto que se furta a qualquer dissolução e que se torna
assinalável na substância humana como renúncia ou como desespero
crescente.
Se se quiser ousar uma nova investida, tal pode acontecer
apenas na direcção de novos objectivos. Tal pressupõe uma outra frente,
aliados de outro tipo. Pressupõe que o trabalhador se conceba numa
outra forma e que se expresse nos seus movimentos já não um reflexo
da consciência burguesa, mas uma auto-consciência que lhe seja
própria.
Levanta-se assim a questão de saber se na figura do trabalhador
não se esconde mais do que até agora se julgou adivinhar.
50
51

A FIGURA COMO UM TODO QUE ABRANGE MAIS DO QUE A


SOMA DAS SUAS PARTES

7.

Para a resposta à questão que foi posta é de pressupor aquilo


que deve ser concebido como figura. Este esclarecimento de modo
nenhum pertence a notas marginais, por muito pouco espaço que aqui
lhe possa ser dedicado.
Se, no que se segue, se falar, à partida, de figuras como de uma
pluralidade, tal acontece por causa de uma falta provisória de hierarquia,
que é remediada no decorrer da investigação. Não é a lei da causa e
efeito que decide sobre a hierarquia no reino da figura, mas uma lei de
outro tipo, a lei da estampa e do cunho; e veremos que, na época em
que entramos, o cunho do espaço, do tempo e do homem deve ser
reconduzido a uma única figura, a figura do trabalhador.
Independentemente desta ordem, chame-se provisoriamente
figura às grandezas tal como se oferecem a um olhar que concebe que o
mundo se organiza segundo uma lei mais decisiva do que a lei da causa
e efeito, sem contudo ver a unidade sob a qual se cumpre esta
organização.

8.

Na figura assenta o todo que abrange mais do que a soma das


suas partes e que é inalcançável para uma era anatómica. É
característico de um tempo que se avizinha que se continue a ver, a
sentir e a agir nele sob o encanto das figuras. É o grau em que se lhe
52

torna visível a influência das figuras que decide sobre a dignidade de um


espírito, sobre o valor de um olhar. Já estão presentes os primeiros
esforços significativos; eles não devem ser descurados nem na arte, nem
na ciência, nem na fé. Também na política tudo depende de que se traga
à luta figuras, e não conceitos, ideias ou meros fenómenos.
Desde o instante em que a vivência se dê em figuras, tudo se
torna figura. A figura não é então nenhuma nova grandeza que se
deveria descobrir nas já conhecidas, mas, através de uma nova
orientação do olhar, o mundo aparece como um palco de figuras e das
suas relações. Tal não se apresenta, para indicar um erro característico
do tempo de passagem, como se o singular desaparecesse e apenas
tivesse de retirar o seu sentido de corporações, de comunidades ou de
ideias enquanto unidades sobrepostas. Também no singular se
representa a figura, cada unha, cada átomo nele é figura. E a ciência do
nosso tempo não começou já, aliás, a ver os átomos já não como as
partes mais pequenas, mas como figuras?
Uma parte é certamente tão pouco uma figura quanto uma soma
de partes pode dar uma figura. Deve-se ter isto em conta quando se
quiser empregar a palavra “homem” num sentido que se movimenta além
dos modos de falar. O homem possui figura na medida em que é
concebido como o singular concreto e captável. Mas tal não vale para o
homem puro e simples, o qual é apenas um dos padrões do
entendimento e pode significar tudo ou nada, mas em nenhum caso algo
determinado.
O mesmo vale para as figuras mais abrangentes às quais o
singular pertence. A pertença não pode ser calculada nem através da
multiplicação nem através da divisão ⎯ muitos homens ainda não dão
qualquer figura, e nenhuma fragmentação da figura reconduz ao singular.
Pois a figura é o todo que contém mais do que a soma das suas partes.
Um homem é mais do que a soma dos átomos, dos membros, orgãos e
líquidos de que é composto, um casamento é mais do que o homem e a
53

mulher, uma família mais do que o homem, a mulher e a criança. Uma


amizade é mais do que dois homens e um povo é mais do que aquilo que
pode ser expresso através do resultado de um recenseamento ou
através de uma soma de votações políticas.
No século XIX, habituou-se-se a remeter para o reino dos sonhos
qualquer espírito que se procurasse referir a este mais, a esta
totalidade70, como se eles tivessem lugar num mundo mais bonito, mas
não na realidade.
Mas não pode haver dúvida de que é precisamente a valorização
contrária que é dada, e de que também no político qualquer espírito de
menor dignidade é aquele a quem falta o olhar para este mais. Ele pode
desempenhar um papel na história do espírito, na história da economia,
na história das ideias — mas a história é algo mais; ela é figura, tanto
quanto tem por conteúdo o destino das figuras.
Certamente — e esta interpolação poderá indicar mais
intensamente aquilo que deve ser concebido como figura — certamente
a maior parte dos adversários dos lógicos e matemáticos da vida
movimentava-se num plano que não estava em nenhuma diferença de
dignidade em relação àquele que eles combatiam. Pois não há nenhuma
diferença em alguém se referir a uma alma separada ou a uma ideia
separada em vez de a um homem separado. A alma e a ideia, neste
sentido, nem são figura, nem há entre elas e o corpo ou a matéria uma
oposição convincente.
A isso parece contradizer a experiência da morte, na qual, para a
representação que nos é transmitida, a alma deixa o casulo do corpo e,
assim, a parte imperecível do homem deixa a parte perecível. É, no
entanto, um erro, uma doutrina estranha, que o homem moribundo deixe
o seu corpo — a sua figura entra antes numa nova ordem que é
incompatível com qualquer comparação espacial, temporal ou causal.
Deste saber brotou a intuição dos nossos antepassados segundo a qual
54

o guerreiro, no momento da morte, era conduzido ao Walhalla71 — não


era como alma que era lá acolhido, mas numa corporeidade
resplandecente de que o corpo vivo72 do herói na batalha era uma
elevada alegoria.
É muito importante que continuemos a avançar para uma
completa consciência do facto de que o cadáver não é como que o corpo
sem alma. Entre o corpo no segundo da morte e o cadáver no segundo
que se lhe segue não há a mínima relação; isso indica que o corpo
abrange mais do que a soma dos seus membros, enquanto o cadáver é
igual à soma das suas partes anatómicas. É um erro que a alma deixe
atrás de si, como uma chama, pó e cinza. Da mais elevada relevância,
no entanto, é o facto de a figura não estar submetida aos elementos do
fogo e da terra e, por conseguinte, de o homem, enquanto figura,
pertencer à eternidade. Na sua figura, independentemente de qualquer
valorização apenas moral, de qualquer redenção e de qualquer “esforço
ansioso”, repousa o seu merecimento inato, imutável e imperecível, a sua
existência suprema e a sua mais profunda comprovação. Quanto mais
nos dedicarmos ao movimento, tanto mais intimamente temos de estar
convictos de que atrás dele se esconde um ser em repouso e de que
qualquer aumento de velocidade é apenas a tradução de uma linguagem
originária imperecível.
A partir desta consciência, dá-se uma nova relação ao homem,
um amor mais quente e uma inclemência mais terrível. Dá-se a
possibilidade de uma anarquia mais jovial que, ao mesmo tempo,

70
Uma informação mais aproximada sobre a palavra total, a qual desempenhará ainda um
papel no que se seguirá, é conferida pelo escrito A mobilização total (Berlim, 1930).

71
N. do T.: O Walhalla é, na mitologia escandinava e germânica, o palácio situado em Asgard,
o reino dos deuses, com quinhentas e quarenta portas e um tecto constituído por escudos. Era
para lá que as valquírias encaminhavam os guerreiros mortos em combate, onde permaneciam
a combater durante o dia e a banquetear-se durante a noite com Odin ou Wotan, o Rei dos
deuses.
72
N. do T.: Jünger faz aqui entrar a distinção alemã entre um corpo enquanto mera unidade
material (Körper) e um corpo enquanto “corpo vivo”, corpo animado por uma vida, pela Leben
55

coincida com a ordem mais rigorosa — um espectáculo, como é já


indicado nas grandes batalhas e nas cidades gigantescas, cuja imagem
está no começo do nosso século. Neste sentido, o motor não é o
dominador, mas o símbolo do nosso tempo, a imagem simbólica de um
poder para o qual a explosão e a precisão não são quaisquer opostos.
Ele é o instrumento ousado de uma espécie humana que consegue com
entusiasmo romper no ar e que vê neste acto ainda uma comprovação
da ordem. A partir desta atitude, que não é realizável nem para o
idealismo nem para o materialismo, mas que tem de ser referida como
um realismo heróico, dá-se aquela medida mais extrema da força de
ataque de que estamos precisados. Os seus portadores são da espécie
daqueles voluntários que saudaram com júbilo a grande guerra e que
saúdam tudo quanto dela se seguiu e seguirá.
Como se disse, também o singular possui figura, e o direito à vida
mais imponente e inalienável, que partilha com as pedras, as plantas, os
animais e as estrelas, é o seu direito à figura. Como figura, o singular
abrange mais do que a soma das suas forças e faculdades; é mais
profundo do que consegue adivinhar nos seus mais profundos
pensamentos, e mais poderoso do que o que pode expressar na sua
acção mais poderosa.
Assim, transporta em si o padrão, e a mais elevada arte da vida,
na medida em que vive como singular, consiste em se tomar a si mesmo
como padrão. Isso constitui o orgulho e o luto de uma vida. Todos os
grandes instantes da vida, os sonhos ardentes da juventude, a
embriaguês do amor, o fogo da batalha, coincidem com uma consciência
mais profunda da figura, e a recordação é o regresso mágico da figura
que toca o coração e o persuade da imperecibilidade destes instantes. O
mais amargo desespero de uma vida está em não se ter preenchido, em
não estar à altura de si mesma. O singular assemelha-se aqui ao filho
pródigo que, no estrangeiro, desperdiça ociosamente a sua parte da

(Leib). Para manter essa diferença, optou-se por traduzir aqui Körper por corpo e Leib por
56

herança, por maior ou mais pequena que tenha sido — e, no entanto,


não pode haver dúvida quanto à sua reaceitação na pátria. Pois a parte
inalienável da herança do singular é que pertence à eternidade, e, nos
seus instantes mais elevados e indubitáveis, ele está completamente
consciente disso. É sua tarefa expressar isso no tempo. Neste sentido, a
sua vida torna-se numa alegoria da figura.
Mas, além disso, o singular está inserido numa grande hierarquia
de figuras — potências que não se pode sequer representar de um modo
suficientemente real, corpóreo e necessário. Diante delas, o próprio
singular torna-se numa alegoria, num representante, e o ímpeto, a
riqueza, o sentido da sua vida depende da medida em que é envolvido
na ordem e na luta das figuras.
As figuras genuínas reconhecem-se em lhes poder ser dedicada
a soma de todas as forças, em lhes poder ser atribuída a mais elevada
veneração, em se lhes poder contrapor o mais extremo ódio. Como elas
escondem em si o todo, reclamam o todo. Sucede assim que, com a sua
figura, o homem descobre ao mesmo tempo a sua determinação, o seu
destino, e é esta descoberta que o torna capaz do sacrifício que ganha
no sacrifício de sangue a sua expressão mais significativa.

9.

A era burguesa não conseguiu ver o trabalhador numa hierarquia


determinada pela figura, porque não lhe estava dada uma relação
genuína ao mundo das figuras. Aqui tudo se derreteu em ideias,
conceitos ou simples fenómenos, e os dois pólos deste espaço fluído
eram a razão e a sensibilidade. Na última diluição, a Europa, o mundo
ainda hoje está inundado deste líquido, deste descorado verniz de um
espírito que se tornou senhor de si mesmo.

corpo vivo.
57

Mas sabemos que esta Europa, que este mundo, na Alemanha,


apenas possuem a dignidade de uma província cuja administração não
tem sido a tarefa dos melhores corações, nem sequer das melhores
cabeças. Já cedo neste século se viu o alemão em rebelião contra este
mundo, e representado pelo soldado da frente alemão enquanto portador
de uma figura genuína. Tal foi, ao mesmo tempo, o começo da revolução
alemã, que já no século XIX foi anunciada por elevados espíritos e que
só pode ser concebida como uma revolução da figura. Se esta rebelião,
no entanto, foi apenas um prelúdio, a razão está em ela, na sua completa
extensão, ainda ter carecido da figura, da qual já era uma alegoria cada
soldado que, só e desconhecido, caía dia e noite em todas as fronteiras
do império.
Pois, em primeiro lugar, o comando73 estava demasiado
saturado, demasiado persuadido dos valores de um mundo que
reconhecia unanimemente na Alemanha o seu mais perigoso adversário;
e era de justiça que este comando fosse derrotado e eliminado, enquanto
o soldado da frente alemão se mostrava não apenas como invencível,
mas também como imortal. Cada um destes caídos está hoje mais vivo
que então, e isso vem de eles, enquanto figura, pertencerem à
eternidade. O burguês, porém, não pertence às figuras; por isso, o tempo
devora-o, mesmo que se ornamente com a coroa do príncipe ou com a
púrpura do comandante.
Mas, por outro lado, vimos que a rebelião do trabalhador foi
preparada na escola do pensar burguês. Assim, ela não podia coincidir
com a rebelião alemã, e tal mostra-se em a capitulação diante da
Europa, a capitulação diante do mundo se ter realizado, por um lado,
através de uma classe superior burguesa de velho estilo e, por outro
lado, através dos porta-vozes também burgueses de uma assim
chamada revolução, ou seja, no fundo, através dos representantes de
uma e da mesma espécie humana.
58

Contudo, na Alemanha, nenhuma rebelião que se dirija contra a


Alemanha pode possuir a dignidade de uma nova ordem. Ela já está
votada ao fracasso porque vai contra uma legalidade da qual nenhum
alemão se pode retirar sem se furtar a si mesmo às mais misteriosas
raízes da sua força.
Daí que entre nós só possam combater pela liberdade aquelas
potências que, ao mesmo tempo, são as portadoras da responsabilidade
alemã. Mas como pôde o burguês confiar esta responsabilidade ao
trabalhador, se ele mesmo não participava dela? Do mesmo modo que,
na medida em que governava, era incapaz de pôr irresistivelmente em
acção a força elementar do povo, não estava à altura, na medida em que
desejava o governo, de pôr em movimento revolucionariamente esta
força elementar. Daí que procurasse envolvê-la na sua traição contra o
destino.
Esta traição é insignificante na sua propriedade de alta traição, na
qual tem de ser reconhecida como um processo de autoaniquilamento da
ordem burguesa. Mas é, ao mesmo tempo, traição à pátria, na medida
em que o burguês procurava implicar a figura do império no seu
autoaniquilamento. Como não lhe é dada a arte de morrer, procurava
adiar o momento da sua morte, custasse o que custasse. A culpa de
guerra do burguês está em que ele nem era capaz de conduzir realmente
a guerra, isto é, no sentido de uma Mobilização Total, nem de a perder —
ou seja, de ver em declínio a sua mais elevada liberdade. O que
diferencia o burguês do soldado da frente é que o burguês também na
guerra procurava entrever qualquer oportunidade para a negociação,
enquanto a guerra significava para o soldado um espaço no qual se
tratava se morrer, isto é, de viver de tal modo que a figura do império
fosse confirmada — daquele império que, mesmo que nos levem o
corpo, tem de permanecer connosco.

73
N. do T.: A palavra que aqui traduzimos por comando é Führung, a “condução”, que aqui tem
o sentido de uma referência à “classe dirigente”.
59

Há duas espécies humanas, das quais se reconhece uma


preparada para negociar a qualquer preço, a outra preparada para
combater a qualquer preço. A arte de educação do burguês em relação
ao trabalhador consistiu em tê-lo educado para parceiro de negociação.
O sentido que se esconde atrás disso, e que consiste no desejo de
prolongar a duração da vida da sociedade burguesa a qualquer preço,
poderia permanecer escondido tanto tempo quanto esta sociedade
possuía no equilíbrio das potências um retrato extra-político. A sua
tendência orientada contra o Estado teve de se manifestar no mesmo
instante em que entre estas potências aparecia uma outra relação que
não a da negociação. No entanto, a última vitória da Europa ajudou o
burguês a, mais uma vez, possibilitar um daqueles espaços artificiais
vistos a partir dos quais a figura e o destino são de significado igual ao
sem sentido. É o mistério da derrota alemã, que a continuidade de um tal
espaço, a continuidade da Europa, fosse o mais silencioso ideal do
burguês.
Manifestava-se aqui doravante também muito claramente o papel
indigno que destinara ao trabalhador, na medida em que soube passar-
lhe, na política interna, com grande habilidade, a consciência de um
domínio cujas reivindicações tinham de se salientar, relativamente a uma
relação de culpa na política externa, cada vez mais como uma mudança
sem fundo. A extensão do protesto é, ao mesmo tempo, a última
extensão de vida da sociedade burguesa, e também até aqui se
expressa a sua existência aparente, a qual procura apoiar-se nos há
muito usados capitais do século XIX.
Mas tal é o espaço que o trabalhador não tem de combater, pois
deparará sempre nele com nada mais do que negociações e
concessões, mas que só precisa de sacudir de si com desprezo. É o
espaço cuja fronteira externa brota da impotência e cuja ordem interna
brota da traição. Foi assim que a Alemanha se tornou uma colónia da
Europa, uma colónia do mundo.
60

Contudo, o acto através do qual o trabalhador consegue sacudir


este espaço consiste precisamente em ele se reconhecer como figura e
dentro de uma hierarquia de figuras. Aqui se fundamenta a mais
profunda justificação para o combate pelo Estado, a qual doravante não
se tem de referir a uma nova interpretação do contrato, mas a um
encargo imediato, a um destino.

10.

A visão de figuras é um acto revolucionário na medida em que


reconhece um ser na plenitude completa e unitária da sua vida.
A grande supremacia deste acontecimento é que ele se realiza
para além tanto das valorizações morais e estéticas como também das
valorizações científicas. Neste âmbito, à partida, não se trata de saber se
algo é bom ou mau, belo ou feio, falso ou certo, mas de saber a que
figura pertence. Com isso, a circunscrição da responsabilidade estende-
se de um modo tal que é completamente incompatível com tudo aquilo
que o século XIX compreendeu como justiça: é a legitimação ou a culpa
do singular, que ele pertença a esta ou àquela figura.
No mesmo instante em que tal é conhecido e reconhecido,
desmorona-se a aparelhagem gigantescamente complicada que uma
vida que se tornou muito artificial instalou para a sua protecção, porque
aquela atitude que, no começo da nossa investigação, caracterizámos
como uma inocência selvagem já não precisa dela. Tal é a revisão da
vida pelo ser, e quem conhece novas, maiores possibilidades da vida,
saúda esta revisão na medida e na desmedida da sua inexorabilidade.
Um dos meios para a preparação de uma vida nova e mais
ousada consiste no aniquilamento das valorizações do espírito separado,
do espírito que se tornou senhor de si mesmo, na destruição do trabalho
de educação que a era burguesa realizou no homem. Para que tal
61

aconteça a partir do fundamento, e não como que no modo de uma


reacção que quer atrasar o mundo cento e cinquenta anos, é preciso ter
passado por esta escola. Trata-se agora da educação de uma espécie
humana que possui a certeza desesperada de que as reivindicações da
justiça abstracta, da investigação livre, da consciência moral artificial se
puseram à prova diante de uma instância mais elevada do que a que
pode ser percebida, em geral, dentro de um mundo da liberdade
burguesa.
Se, à partida, isso acontece no pensar, é porque o opositor se
deve procurar no campo da sua robustez. A melhor resposta à alta
traição do espírito contra a vida é a alta traição do espírito contra o
“espírito”; e pertence aos grandes e cruéis prazeres do nosso tempo
participar neste trabalho de explosão.

11.

Uma consideração do trabalhador adequada à figura poderia


ligar-se aos dois fenómenos a partir dos quais o pensar burguês já
ganhou o conceito de trabalhador — à comunidade e ao singular —, cujo
denominador comum consistia na representação que o século XIX
possuía do homem. Estes dois fenómenos mudam o seu significado
quando uma nova imagem do homem é posta neles em acção.
Seria assim profícuo seguir como o singular, sob aspectos
heróicos, aparece, por um lado, como o soldado desconhecido que é
aniquilado nos campos de batalha do trabalho, e como, por outro lado,
precisamente por isso, surge como o senhor e ordenador do mundo,
como tipo74 que comanda na posse de uma omnipotência até agora só

74
N. do T.: Por tipo traduzimos aqui o termo Typus, central em Jünger. O tipo expressa, em
Jünger, o modo pelo qual a unidade singular aparece determinada numa era configurada pela
figura do trabalhador. Este singular é, já não um indivíduo, tal como uma era burguesa o
entendeu, mas a expressão de um tipo, de uma figura típica que ultrapassa a sua
individualidade.
62

obscuramente suspeitada. Ambos os lados pertencem à figura do


trabalhador, e é isso que as une o mais profundamente possível onde se
medem uma à outra no combate mortal.
Do mesmo modo, a comunidade aparece, em primeiro lugar,
como sofredora, na medida em que é a portadora de uma obra diante de
cujo ímpeto mesmo a mais elevada pirâmide se assemelha à ponta de
um alfinete; e, no entanto, por outro lado, aparece como a unidade
significativa cujo sentido é completamente dependente do perseverar ou
não perseverar precisamente desta obra. Daí que bem se cuide entre
nós de discutir de que espécie deve ser a ordem na qual a obra tem de
ser servida e governada, enquanto a própria necessidade desta obra
pertence ao destino e, assim, está além dos questionamentos.
Tal expressa-se, entre outras coisas, em que mesmo dentro dos
movimentos de trabalhadores até agora nunca teve lugar uma negação
do trabalho como facto fundamental. Que mesmo onde tais movimentos,
crescidos na escola do pensar burguês, já conquistaram o poder a
consequência imediata tenha sido um trabalho aumentado, não
diminuído, tal é um fenómeno que tem de encher o espírito de atenção e
confiança. Tal assenta, como ainda deve ser exposto, por um lado, em
que já o nome “trabalhador” nada pode indicar senão uma atitude que
reconhece o seu encargo, e daí a sua liberdade, no trabalho. Mas, por
outro, manifesta-se aqui muito claramente que o móbil essencial não é a
submissão, mas um novo sentimento de responsabilidade, e que os reais
movimentos de trabalhadores não são para ser concebidos, como fez o
burguês, independentemente de os ter afirmado ou negado, como
movimentos de escravos, mas como movimentos de senhores
encapotados. Quem quer que seja que o tiver reconhecido, reconhece
também a necessidade de uma atitude que o torne digno do uso do título
de trabalhador.
Não se deve então estar ligado à comunidade e ao singular,
embora ambos também sejam para conceber de acordo com a figura.
63

Muda-se então o conteúdo destas palavras, e veremos quanto o singular


e a comunidade são diferentes, dentro do mundo do trabalho, do
indivíduo e da massa do século XIX. O nosso tempo esgotou-se nesta
contraposição de um modo muito semelhante àquelas outras
contraposições de ideia e matéria, sangue e espírito, poder e direito a
partir das quais se dão apenas interpretações perspectivistas,
contraposição essa através da qual é iluminada esta ou aquela
reivindicação de participação. Trata-se muito mais de procurar a figura do
trabalhador num plano a partir do qual quer o singular quer as
comunidades devem ser concebidas como alegorias, como
representantes. Representantes do trabalhador, neste sentido, são tanto
as supremas sublimações do singular, tais como foram suspeitadas já
antes no super-homem75, como também aquelas comunidades que
vivem como formigas no encanto da obra, a partir das quais a
reivindicação da peculiaridade é considerada como uma manifestação
inadequada da esfera privada. Ambas estas atitudes de vida se
desenvolveram na escola da democracia; de ambas se pode dizer que
passaram por ela e que doravante, a partir de duas orientações
aparentemente opostas, participam no aniquilamento das velhas
valorizações. Mas ambas são, como foi dito, alegorias da figura do
trabalhador, e a sua íntima unidade mostra-se na medida em que a
vontade da ditadura total se reconhece no espelho de uma nova ordem
enquanto vontade de Mobilização Total.
Mas qualquer ordem, seja ela como for, assemelha-se à rede
graduada que é estendida sobre um mapa e que só ganha significado
através da paisagem com a qual se relaciona — assemelha-se aos
nomes das dinastias que mudam, dos quais o espírito não precisa de se
lembrar enquanto é abalado pelos seus monumentos.
Assim, também a figura do trabalhador repousa mais profunda e
estavelmente no ser do que todas as alegorias e ordens através das

75
E isso através do medium do indivíduo burguês.
64

quais ela se confirma, mais profundamente do que constituições e obras,


do que homens e as suas comunidades, que são como as feições em
mudança de um rosto cujo carácter fundamental permanece inalterável.

12.

Visto na plenitude do seu ser, e na violência de um cunho que


apenas começou, a figura do trabalhador aparece em si rica em
contradições e tensões, e, no entanto, de uma espantosa unidade e
completude em relação ao destino. Ela ser-nos-á assim manifesta, de
vez em quando, em instantes em que nenhum fim e nenhuma intenção
perturbe a meditação — como poder subjacente e pré-formado.
É assim que, por vezes, quando de repente a tempestade dos
martelos e das rodas que nos rodeia se silencia, a tranquilidade que se
esconde atrás da desmedida do movimento parece contrariar-nos quase
corporalmente, e é bom o costume que no nosso tempo, para honrar os
mortos ou para gravar na consciência um instante de significado
histórico, declara suspenso o trabalho por um intervalo de minutos, como
por um comando supremo. Pois este movimento é uma alegoria da força
mais íntima, no sentido em que o significado misterioso de um animal se
manifesta o mais claramente possível no seu movimento. Mas o espanto
sobre a sua suspensão é, no fundo, o espanto sobre o ouvido julgar
perceber, por um instante, as fontes mais profundas que alimentam o
curso temporal do movimento, e isso eleva este acto a uma dignidade de
culto.
O que distingue as grandes escolas do progresso é faltar-lhes a
relação às forças originárias e a sua dinâmica ser fundada no curso
temporal do movimento. Tal é a razão pela qual as suas conclusões,
sendo em si persuasoras, estão não obstante condenadas, como por
uma matemática diabólica, a desembocar no niilismo. Experimentámos
65

isto nós mesmos ma medida em que tomámos parte no progresso e


assumimos, como a grande tarefa de uma estirpe que vivia há muito
numa paisagem originária, voltar a produzir o vínculo imediato com a
realidade.
A relação do progresso com a realidade é de uma natureza
derivada. Aquilo que é visto é a projecção da realidade na periferia do
fenómeno; tal pode-se mostrar em todos os grandes sistemas do
progresso e vale também para a sua relação ao trabalhador.
E, no entanto, do mesmo modo que o iluminismo é mais profundo
que o iluminismo, também o progresso não está sem pano de fundo.
Também ele conheceu aqueles instantes de que precisamente se falou.
Há uma embriaguês do conhecimento que é mais do que de origem
lógica, e há um orgulho nas proezas técnicas, no começo do domínio
ilimitado sobre o espaço, que possui uma suspeita da mais misteriosa
vontade de poder, para a qual tudo isto é apenas um armamento para
combates e rebeliões insuspeitados, e precisamente por isso tão valioso
e necessitado de um cuidado ainda mais afectuoso do que o que um
guerreiro dedica às suas armas.
Daí que para nós esteja fora de questão aquela atitude que
procura contrapor ao progresso os meios inferiores da ironia romântica e
que é a característica segura de uma vida enfraquecida no seu núcleo. A
nossa tarefa não é ser o adversário do tempo, mas a sua última cartada,
cuja entrada em acção deve ser concebida tanto na sua extensão como
na sua profundidade. O pormenor que tão vincadamente os nossos pais
iluminaram muda o seu significado quando é visto numa imagem maior.
O prolongamento de um caminho que parecia conduzir à comodidade e à
segurança entra doravante na zona daquilo que é perigoso. Neste
sentido, o trabalhador, para além do pormenor que o progresso lhe
assinalou, aparece como o portador da substância heróica fundamental
que determina uma nova vida.
66

Mas é onde sentimos a obrar esta substância que estamos perto


do trabalhador, e nós somos trabalhadores, na medida em que ela
pertence à nossa parte da herança. Tudo aquilo que sentimos no nosso
tempo como admirável, e que ainda nos fará aparecer, nas lendas dos
séculos mais longínquos, como uma estirpe de feiticeiros poderosos,
pertence a esta substância, pertence à figura do trabalhador. É ela que
opera na nossa paisagem, a qual só não sentimos como infinitamente
estranha porque nascemos nela; o seu sangue é o combustível que
impulsiona as rodas e fumega nos seus eixos.
Na consideração deste movimento, apesar de tudo monótono,
que lembra um campo cheio de mosteiros tibetanos, na consideração da
ordem rigorosa destes sacrifícios, que se assemelha aos esboços
geométricos das pirâmides, sacrifícios tais como ainda não exigiu
nenhuma Inquisição nem nenhum Moloch76, e cujo número se multiplica
a cada passo com uma segurança mortal — como poderia aqui um olhar
que realmente quer ver furtar-se à visão de que atrás do véu da causa e
efeito, que se agita sob os combates do dia, operam o destino e a
veneração?

76
N. do T.: Ligado a Baal, adorado pela tribo dos amonitas e moabitas, Moloch é um deus de
carácter malévolo, que exigia sacrifícios humanos.
67

O IRROMPER DE POTÊNCIAS ELEMENTARES


NO ESPAÇO BURGUÊS

13.

Foi até agora pressuposto que é próprio do trabalhador uma nova


relação ao elementar, à liberdade e ao poder.
O desejo do burguês de impermeabilizar hermeticamente o
espaço vital contra o irromper do elementar é a expressão,
particularmente bem sucedida, de um remoto desejo de segurança, que
se pode acompanhar por todo o lado na história da natureza e do
espírito, e mesmo em qualquer vida singular. Neste sentido, esconde-se
atrás do aparecimento do burguês uma possibilidade eterna que
qualquer era, qualquer homem encontrará em si — de modo semelhante
a para qualquer era, para qualquer homem estão disponíveis as eternas
formas do ataque e da defesa, apesar de não ser um acaso qual destas
formas é empregue na decisão.
O burguês vê-se, desde o início, remetido à defesa, e entre os
muros de um burgo e os de uma cidade expressa-se a diferença entre
um último e um único abrigo. Aqui é também indicado porque é que a
advocacia desempenha desde o início, na política burguesa, um papel
particular e, do mesmo modo, porque é que, em guerras entre
democracias nacionais, se discute sobre quem é o atacado. A esquerda
é a mão da defesa.
Nunca o burguês se sentirá impelido a procurar o destino, de livre
vontade, no combate e no perigo, pois o elementar repousa além do seu
68

círculo, é o irracional e, deste modo, o pura e simplesmente imoral.


Assim, procurará sempre afastar-se dele, independentemente de ele lhe
aparecer como poder e paixão ou nos elementos originários do fogo,
água, terra e ar.
Sob este ponto de vista, as grandes cidades aparecem, em torno
da viragem do século, como os baluartes ideais da segurança, como o
puro e simples triunfo do muro que, desde há mais de um século, se
retirou das muralhas envelhecidas e que, como pedra, como asfalto,
como vidro, abarca a vida numa ordem faviforme e penetrou na sua mais
íntima ordem. Cada vitória da técnica é aqui uma vitória do conforto, e a
entrada dos elementos é determinada pela economia.
Contudo, o extraordinário da era burguesa está menos no desejo
de segurança do que no carácter exclusivo que é próprio destes
esforços. Está em o elementar aparecer aqui como o sem sentido e,
deste modo, o muro divisório da ordem burguesa se apresentar, ao
mesmo tempo, como o muro divisório da razão. Assim, o burguês afasta-
se de outros fenómenos, do crente, do guerreiro, do artista, do
marinheiro, do caçador, do criminoso e, como foi afirmado, também do
trabalhador.
Talvez já se torne clara, nesta passagem, a razão da aversão que
o burguês sente diante destes e de outros fenómenos que, já nas suas
roupas, trazem para as cidades como que o odor do que é perigoso. É a
aversão diante do ataque, não contra a razão, mas contra o culto da
razão que se dá através da mera presença destas atitudes de vida.
Uma das jogadas do pensar burguês desemboca em
desmascarar o ataque ao culto da razão como ataque à razão e, assim,
em liquidá-lo como irracional. Deve-se sustentar contra ela que só dentro
do mundo burguês existe uma congruência destes dois ataques, pois
como há uma concepção burguesa de trabalhador, assim há também
uma razão especificamente burguesa, que se distingue precisamente por
69

ser incompatível com o elementar. Esta característica, porém, de modo


nenhum ocorre nas atitudes de vida referidas.
Assim, a batalha é para o guerreiro um acontecimento que se
cumpre numa ordem superior; o conflito trágico é para o poeta um estado
no qual o sentido da vida pode ser captado de um modo particularmente
claro; e uma cidade em chamas ou desertificada por um tremor de terra é
para o criminoso um campo de actividade acrescida.
Do mesmo modo, o homem crente participa num círculo mais
alargado da vida com sentido. O destino, através da infelicidade e do
perigo, assim como através do milagre, inclui-o imediatamente numa
ordem regente mais poderosa, e o sentido desta intervenção é
reconhecido na tragédia. Os deuses gostam de se manifestar nos
elementos, em estrelas resplandecentes, no trovão e no relâmpago, na
sarça ardente que a chama não consome. Zeus treme de prazer no trono
supremo, enquanto o globo terrestre ecoa sob a batalha dos deuses e
dos homens, porque vê aqui violentamente confirmado todo o alcance do
seu poder.
São dadas ao homem relações maiores e menores ao elementar,
e há vários planos nos quais tanto a segurança como o perigo são
abarcados por uma e a mesma ordem. O burguês, pelo contrário, deve
ser concebido como o homem que reconhece a segurança como um
valor supremo e que determina a condução da sua vida de acordo com
isso.
O poder supremo pelo qual vê esta segurança assegurada é a
razão. Quanto mais perto se encontrar do seu centro, tanto mais se
dissolvem as escuras sombras nas quais se esconde o que é perigoso,
que às vezes, em tempos durante os quais quase nem uma nuvenzinha
parece perturbar o céu, se perde nas grandes distâncias.
No entanto, o perigo está sempre presente; ele procura
eternamente, como um elemento, romper as barreiras com as quais a
ordem se rodeia e, segundo as leis de uma secreta mas incorruptível
70

matemática, torna-se mais ameaçador e mais mortal numa medida


proporcional à ordem tê-lo compreendido separado de si. Pois o perigo
não apenas quer ter parte em qualquer ordem, mas é também a mãe
daquela segurança suprema da qual o burguês nunca pode tornar-se
participante.
Pelo contrário, o estado ideal de segurança que o progresso
deseja alcançar consiste no domínio mundial da razão burguesa, que
não apenas deve diminuir as fontes do que é perigoso, mas, por fim,
também as deve secar. O acto em que tal acontece é precisamente o
acto segundo o qual o que é perigoso, no brilho da razão, se manifesta
como o sem sentido e, deste modo, se perde da sua reivindicação de
realidade. Trata-se, neste mundo, de ver o que é perigoso como o sem
sentido, e este é superado no mesmo instante em que, no espelho da
razão, aparece como erro.
Tal pode-se indicar, em pormenor, em todo o lado dentro da
ordem espiritual e fáctica do mundo burguês. Manifesta-se, em visão de
conjunto, no desejo de ver o Estado — que assenta na hierarquia —
como sociedade, cujo princípio fundamental é a igualdade e que se
fundou através de um acto da razão. Manifesta-se na montagem
abrangente de um sistema de segurança através do qual não apenas o
risco da política externa e interna, mas também, em igual medida, o da
vida privada deve ser disperso, e, assim, submetido à razão — em
esforços em que se procura resolver o destino através do cálculo de
probabilidades. Manifesta-se, além disso, nos numerosos e muito
embrulhados esforços para reconhecer a vida da alma como um curso de
causa e efeito e, deste modo, para transportá-la de um estado
incalculável para um estado calculável, ou seja, para incluí-la no círculo
de domínio da consciência.
Todos os questionamentos dentro deste espaço, sejam de uma
natureza artística, científica ou política, remetem para que o conflito seja
evitável. Se ele, apesar disso, surge, como não se pode ignorar diante
71

dos factos permanentes da guerra ou do crime, trata-se de apontá-lo


como um erro cuja repetição se deve evitar através da educação ou
através do iluminismo. Estes erros surgem apenas porque ainda não
chegaram a um conhecimento universal os factores daquele grande
cálculo cujo resultado será o povoamento do globo terrestre com uma
humanidade unida, tão fundamentalmente boa como fundamentalmente
racional e, consequentemente, também fundamentalmente segura.
A crença na força persuasora destas visões é uma das razões
pelas quais o iluminismo tende a sobrevalorizar as forças que lhe são
dadas.

14.

Já vimos que o elementar está sempre presente. Embora a sua


exclusão possa alcançar um grau elevado, são postas a este processo
determinadas fronteiras, pois o elementar não apenas pertence ao
mundo exterior, mas também está atribuído à existência de cada singular
como um dom que não se pode perder. O homem vive de modo
elementar, tanto na medida em que é um ser natural como também na
medida em que é um ser daimoníaco77. Nenhum silogismo da razão pode
substituir o bater do coração ou a actividade dos rins, e não há grandeza,
mesmo que seja a própria razão, que não se subordine, de tempos a
tempos, às pequenas ou orgulhosas paixões da vida.
As fontes do elementar são de dois tipos. Por um lado, estão no
mundo, que é sempre perigoso, tal como o mar esconde em si o perigo
também durante a mais profunda calmaria. Por outro, estão no coração
humano, que anseia por jogos e aventuras, por ódio e amor, por triunfos

77
N. do T.: Na tradução de dämonisches Wesen, preferimos traduzir por ser daimoníano em
vez de ser demoníaco, na medida em que Jünger se refere à concepção grega do homem
como um daimon, como um ente hierarquicamente situado num ponto intermédio entre os
mortais e os imortais.
72

e quedas, que se sente tão necessitado do perigo como da segurança, e


para quem um estado fundamentalmente seguro aparece, com razão,
como um estado incompleto.
Uma escala para o alcance do domínio das valorizações
burguesas é então até que ponto de afastamento parece retroceder o
elementar — parece, pois veremos ainda como ele se sabe esconder no
centro do mundo burguês sob máscaras inofensivas. Antes de mais,
deve-se verificar que ele aparece diante do defensor nato numa estranha
posição defensiva — na do romantismo. Aparece no homem como a
atitude romântica e no mundo como o espaço romântico.
Ao espaço romântico não está dado um centro próprio; consiste
apenas na projecção. Ele está na sombra do mundo burguês, cuja fonte
de luz não apenas determina a sua extensão, mas que também, por todo
o lado e sempre, a consegue dissolver com facilidade. Tal expressa-se
em o espaço romântico nunca aparecer como presente, ou seja, em o
afastamento dever ser referenciado como a sua característica essencial
— no entanto, um afastamento cuja escala é ganha no presente.
Proximidade e distância, claridade e escuridão, dia e noite, sonho e
realidade são os pontos de orientação do ponto romântico.
No seu afastamento do presente temporal, a situação do espaço
romântico aparece como passado, e como um passado colorido pelo
sentimento reactivo (ressentiment) contra o estado vigente no momento.
O afastamento do presente espacial apresenta-se como a fuga de um
espaço completamente seguro e penetrado pela consciência, e daí que o
número das paisagens românticas se dissolva numa relação proporcional
com a marcha triunfal da técnica enquanto mais agudo meio da
consciência. Ainda ontem elas talvez estivessem “longe, na Turquia”, ou
na Espanha e na Grécia; ainda hoje, na zona de floresta virgem em torno
do equador ou nas calotes polares; mas amanhã, as últimas manchas
brancas deste mapa admirável da saudade humana terão desaparecido.
73

Para nós, trata-se de saber que o admirável, naquele sentido que


tão amorosamente sabe evocar o soar dos sinos medievais e o perfume
de flores exóticas, pertence às evasivas do que foi submetido. O
romântico tenta introduzir as valorizações de uma vida elementar, de cuja
validade suspeita sem participar dela, e daí vem que o engano ou a
desilusão não pode ficar de fora. Reconhece a incompletude do mundo
burguês, ao qual, no entanto, não sabe contrapor nenhum outro meio
senão a fuga. No entanto, quem for realmente vocacionado está, em
cada hora e em cada lugar, no espaço elementar.
Foi assim que vivenciámos o espectáculo de o triunfo do mundo
burguês se expressar no desejo de criar parques de protecção natural
em que o último resto do que é perigoso ou do que é extraordinário fosse
conservado como curiosidade. Não há grande diferença entre a
conservação dos últimos búfalos em Yellowstone-Park78 e a alimentação
daquela classe de homens de todas as cores cuja tarefa consiste na
ocupação com outros mundos.
Do mesmo modo que o espaço romântico aparece no
afastamento, com todas as características da miragem, assim a atitude
romântica aparece como protesto. Mas há tempos em que qualquer
relação do homem com o elementar surge como vocação romântica na
qual já está prefigurado o ponto de ruptura. Depende do acaso se esta
ruptura se torna visível como queda na distância, na embriaguês, na
loucura, na miséria ou na morte. Tudo isto são formas de fuga em que o
singular, depois de ter percorrido a circunvalação do mundo espiritual e
corporal em busca de uma saída, depõe as armas. Por vezes, esta
deposição das armas tem lugar na forma de um ataque, tal como se
dispara às cegas de um navio a afundar-se, ainda uma vez, a um
costado.
Voltámos a aprender a reconhecer o valor dos sentinelas que
caíram nos postos perdidos. Há muitas tragédias a que se liga um
74

grande nome, e há outras, anónimas, através das quais são atingidas


pelo irromper de gases venenosos, e roubadas ao ar da vida, inteiras
camadas de gente.
O burguês quase conseguiu persuadir o coração aventuroso de
que o que é perigoso não está de todo presente e de que uma lei
económica governa o mundo e a sua história. Aos jovens que deixam a
casa dos pais de noite e no meio da névoa, diz o seu sentimento que nos
temos de afastar até muito longe na busca do perigo, por mar até à
América, para a legião estrangeira nas terras onde cresce a pimenta.
Tornam-se assim possíveis fenómenos que quase não ousam falar a sua
linguagem própria e superior, seja ela a do poeta que a si mesmo se
compara ao albatroz, cujas poderosas asas, feitas para a tempestade,
apenas são, num ambiente estranho e sem vento, um objecto de
maçadora curiosidade, seja a do guerreiro nato que aparece como
mandrião, pois a vida dos merceeiros enche-o de repugnância.

15.

O rebentar da guerra mundial põe um largo e definitivo ponto final


neste tempo.
No júbilo dos voluntários que o saúdam está mais que a redenção
de corações aos quais se manifesta, durante a noite, uma vida nova,
mais perigosa. Esconde-se nele, ao mesmo tempo, o protesto
revolucionário contra as velhas valorizações cuja validade
inexoravelmente passou. Corre a partir daqui um matiz novo, elementar,
na corrente dos pensamentos, sentimentos e factos. Tornou-se
desnecessário ocupar-se ainda com uma transmutação dos valores — é
suficiente ver o novo e participar.

78
N. do T.: Inaugurado em 1872, o Yellowstone National Park é a maior e mais antiga reserva
natural dos Estados Unidos da América.
75

A partir deste instante modifica-se também, de um modo muito


estranho, a aparente congruência do espaço elementar com o espaço
romântico. O protesto da camada activa, no mais profundo sentido, que
age voluntariamente onde tudo o mais parece como que afectado pelo
rebentar de uma catástrofe natural, refere-se certamente, à partida, na
sua superficialidade ideal, ainda ao espaço romântico. No entanto,
distingue-se do protesto romântico ao orientar-se, ao mesmo tempo, para
um presente, para um indubitável aqui e agora.
Assim, logo se torna claro que as fontes de força alimentadas
pela distância ou pelo passado, como as da fantasia aventurosa ou as de
um patriotismo convencional, se tornaram insuficientes. A realidade do
combate exige outras reservas, e é uma diferença de dois mundos a que
se manifesta entre o entusiasmo de uma tropa que vai para o campo e as
suas acções no campo cheio de crateras de uma batalha de materiais. É
por isso que também é impossível considerar este processo ainda a
partir de uma qualquer perspectiva romântica. Para de algum modo
poder participar dele, tem de se tomar parte de uma nova independência.
O seu aparecimento exige o conhecimento de um outro pró e contra,
diferente do que o que está contido nas categorias do século XIX.
Manifesta-se aqui também muito claramente o alcance da
permissão do protesto romântico. Está condenado ao niilismo, na medida
em que existia como fuga, na medida em que existia como a contradição
de um mundo a afundar-se e, deste modo, numa dependência
incondicional dele. Mas na medida em que no meio dele se escondia
uma parte da herança genuína e heróica, na medida em que no meio
dele se escondia amor, ele chega, através do espaço romântico, à esfera
do poder.
Está aqui o mistério a partir do qual uma e a mesma geração
pôde alcançar desfechos aparentemente contraditórios, ser despedaçada
na guerra ou, através da grande proximidade da morte, do fogo e do
sangue, tornar-se participante de uma saúde até agora nunca sentida. A
76

guerra mundial não foi disputada apenas entre dois grupos de nações,
mas também entre duas eras, e, neste sentido, há na nossa terra tanto
vencedores como vencidos.
Ao passo do protesto romântico para a acção, cuja característica
já não é a fuga mas o ataque, corresponde a transformação do espaço
romântico no espaço elementar. Este processo cumpre-se na medida em
que o que é perigoso, que estava banido nas fronteiras mais afastadas,
parece refluir em grande velocidade para os centros. Assim, é mais do
que um acaso que o motivo para a guerra mundial se dê em torno da
Europa, numa atmosfera de penumbra política.
Em todas as tensões deste tempo, ficam fora as zonas
tempestuosas que criam os primeiros relâmpagos. Mas doravante
inflamam-se as áreas seguras da própria ordem, como pólvora para
disparar que ficou muito tempo seca, e o desconhecido, o extraordinário,
o que é perigoso não apenas se torna o habitual — torna-se também o
permanente. Depois do armistício que só aparentemente terminou o
conflito, mas na verdade cerca e mina todas as fronteiras da Europa com
inteiros sistemas de novos conflitos, fica um estado em que a catástrofe
aparece como o a priori de um pensar modificado.
Correlativamente a este processo, o conceito de ordem torna-se
doravante, no próprio velho sentido, um conceito romântico. O burguês
vive de qualquer modo num bom velho tempo antes da guerra, e aparece
como o homem que procura retirar-se de uma realidade completamente
perigosa através da fuga para a segurança tornada utópica79. Prossegue
os seus velhos esforços — como, numa inflação, ainda se usa durante
um período de tempo a moeda habitual —, mas as suas valorizações
perderam o seu curso; e, atrás de slogans como “tranquilidade e ordem”,
“comunidade do povo”, “pacifismo”, “paz económica”, “entendimento”, em

79
Não é por acaso que hoje a segurança é exigida precisamente pelos chamados Estados
vencedores, particularmente pela França enquanto poder burguês par excellence. A
característica do real vencedor consiste, pelo contrário, em poder dispensar a segurança, isto
é, em poder guardar protecção porque se a possui em abundância.
77

suma, atrás do último apelo à razão do século XIX não se pode deixar de
reconhecer uma atitude mais fraca — pertencem ao vocabulário da
restauração burguesa, cujas constituições se assemelham aos tratados
de paz ao serem estendidos como um véu fino e provisório sobre o
prosseguimento intensificado dos armamentos.
O que é perigoso, que apareceu sob o sinal do passado e da
distância, domina agora o presente. Parece ter irrompido nele vindo de
tempos primordiais e da amplidão dos espaços, como que sob o aspecto
de um astro ameaçador cujo regresso dos abismos cósmicos se
realizasse nos caminhos de uma legalidade desconhecida. Nem o
espírito do progresso nem os esforços febris de uma camada dirigente,
tremendo no seu íntimo diante da decisão, conseguiram evitar a entrada
do combate, o qual, onde foi realmente travado, continua e continuará a
aparecer, sem se reparar no aumento e aperfeiçoamento dos meios,
como um combate do homem contra o homem. São estas as formas de
um tempo originário que se julga ainda vivo apenas na recordação ou
nas grandes florestas da América do Sul. Da terra despedaçada pelo
fogo e embebida em sangue surgem espíritos que não se deixam
encantar com o silêncio dos canhões; em vez disso, influenciam de um
modo estranho todas as valorizações existentes e dão-lhes um sentido
modificado.
Tivessem uns reconhecido isto como uma recaída numa barbárie
moderna, tivessem-no outros saudado como um banho de aço — o mais
importante é ver que um afluente novo e ainda indomado de forças
elementares se apoderou do nosso mundo. Sob a segurança
enganadora da ordem envelhecida, que é apenas possível enquanto
ainda existir o cansaço, estas forças estão demasiado próximas, são
demasiado destruidoras, de tal modo que o simples olhar as poderia
abarcar. A sua forma é a da anarquia, que, nos anos de uma assim
chamada paz, surge nos bandos ardentes como um vulcão à superfície.
78

Quem aqui ainda acreditar que este processo se deixa domar


através de ordens de velho estilo pertence à raça dos vencidos, que está
condenada ao aniquilamento. Dá-se antes a necessidade de novas
ordens em que esteja incluído o extraordinário — de ordens que não
estejam calculadas para a exclusão do que é perigoso, mas criadas por
um novo casamento da vida com o perigo.
Todos os sinais apontam para esta necessidade, e não pode
deixar de ser reconhecido que, dentro de tais ordens, é ao trabalhador
que está atribuída a posição decisiva.
79

DENTRO DO MUNDO DO TRABALHO, A REIVINDICAÇÃO DA


LIBERDADE SURGE COMO REIVINDICAÇÃO DE TRABALHO

16.

Na grande proximidade da morte, do sangue e da terra, o espírito


assume traços mais duros e cores mais vivas. A existência, em todas as
suas camadas, está mais intensamente ameaçada, até àquele tipo de
fome, quase caído no esquecimento, diante do qual falha qualquer
regulamentação económica e que põe a vida diante da escolha entre o
declínio e a conquista.
Uma atitude que queira estar à altura destas decisões tem de,
dentro de uma destruição cujo alcance ainda não se pode prever,
alcançar aquele ponto a partir do qual a liberdade pode ser sentida. Às
características da liberdade pertence a certeza de ter parte nos mais
íntimos germes do tempo — uma certeza que dá asas admiráveis aos
actos e aos pensamentos e na qual a liberdade do agente se reconhece
como a expressão particular do necessário. Este reconhecimento, em
que destino e liberdade se encontram como no fio da navalha, é o sinal
de que a vida ainda está em jogo e de que se concebe como portadora
de poder e responsabilidade históricos.
Onde esta visão estiver presente, o irromper do elementar
apresenta-se como um daqueles declínios em que se esconde uma
passagem80. Quanto mais profunda e impiedosamente as chamas
destroem a substância do passado, tanto mais movimentado, ligeiro e

80
N. do T.: É impossível manter a relação entre as duas palavras alemãs traduzidas por
declínio e passagem: respectivamente Untergang e Übergang. O sentido é o de que há um
declínio, um “caminho descendente” (Unter-gang), que se constitui como um “caminho de
passagem” (Über-gang), dirigido para algo novo.
80

sem contemplações será o novo ataque. A anarquia é aqui uma pedra de


toque do indestrutível que, com luxúria, se experimenta dentro do
aniquilamento — assemelha-se à confusão das noites cheias de sonhos,
a partir das quais o espírito se eleva com novas forças para novas
ordens.
Mas que o regresso das inquebrantáveis paixões e dos impulsos
fortes e imediatos se realize numa paisagem da mais intensa
consciência, e que assim se torne possível um insuspeitado e ainda por
experimentar aumento dos meios e das potências de vida de ambos os
lados, tal é o que dá precisamente a este século o seu rosto mais
próprio. Pela primeira vez de um modo claro, surge esta imagem — da
qual um espírito profético procurava dar uma representação nas figuras
da renascença — no soldado real e invencível da grande guerra, que,
nos seus instantes decisivos, nos quais se lutou pelo novo rosto da terra,
é concebido em igual medida como um ser do mundo originário e como o
portador da mais fria e cruel consciência. Separam-se aqui as linhas da
paixão e da matemática.
Do mesmo modo que só agora, tarde e apenas através da força
do poeta, pode ser mostrado que o acontecimento era pleno de sentido,
no meio de um fogo infernal alimentado por instrumentos de precisão,
além de todos os questionamentos e independentemente deles, é muito
difícil reconhecer a referência essencial do trabalhador ao mundo do
trabalho, do qual esta ígnea paisagem é a imagem simbólica guerreira.
Não faltam de certo esforços para interpretar este mundo, mas
não é nem de um tipo particular de dialéctica nem de interesse que se
pode esperar esta interpretação. Todos estes esforços referem-se a um
ser que também ainda abarca as suas asas mais externas. No entanto, é
um espectáculo avassalador ver que intensidade de entendimento, que
medida de fé, que soma de sacrifícios se consomem em combates
parciais — um espectáculo que só aparece suportável sob o pressuposto
de que qualquer destes ataques possui o seu papel dentro da operação
81

conjunta. E cada golpe, por mais às cegas que seja dado, assemelha-se
realmente a um golpe de cinzel que grava mais intensamente, a partir do
indeterminado, um qualquer dos traços deste tempo anteriormente
formados.
A medida de carência e de perigo, a destruição dos antigos
vínculos, a abstracção, a especialização e o ritmo de cada actividade
desligam cada vez mais intensamente umas das outras as posições
singulares e alimentam no homem o sentimento de estar perdido numa
densa floresta impenetrável de opiniões, acontecimentos e interesses.
Aquilo que aqui aparece como sistemas, profecias e exigências de fé
assemelha-se ao relampejar de projectores, em que se dividem
fugazmente luz e sombras e que, logo depois, deixa atrás de si uma
insegurança maior, trevas mais profundas. Tudo isto são novos tipos de
divisões a que a consciência submete o ser e através das quais, no
fundo, pouco é mudado. Às vivências espantosas pertence a
familiaridade com os assim chamados espíritos condutores do tempo, e
com a elevada medida em direcção e legalidade que o tempo, apesar
destes espíritos, possui.
Pois, apesar de tudo, na base desta confusão está um
denominador comum cuja essência é certamente muito diferente daquilo
que uma simples vontade de entendimento sonha. A fé no sentido deste
nosso mundo não é apenas uma necessidade que na sua linha não
precisa de enfraquecer a posição de combate, seja ela qual for, mas,
pelo contrário, é a necessidade que reivindica para si as reais forças do
tempo — é também a característica de qualquer atitude que ainda
possua um futuro. Que certamente a segurança, no meio de um aparente
estado puramente dinâmico, no qual não se pode reconhecer nenhum
eixo, é mais difícil de alcançar do que antes, tal é verdade e é, numa era
humana de presunção enganadora e de poses de força, digno de louvor.
A liberdade não pode ser sentida nos pontos de padecimento,
mas nos da actividade, da mudança activa do mundo. Mesmo que os
82

portadores da força real possam estar divididos — cada um deles tem, às


vezes, de perseguir a certeza de que, para além das relações empíricas,
para além dos interesses, está ligado o mais profundamente possível ao
seu espaço e ao seu tempo. Esta participação, esta estranha e dolorosa
felicidade de uma existência se tornar participante na duração de
instantes, é o sinal de que ela não apenas pertence à matéria da
natureza, mas também à da história — de que ela reconhece a sua
tarefa. Esta pertença à obra, de certo, toca tão duramente nas fronteiras,
tão duramente nas margens em que a força criadora corre para a
articulação espacio-temporal, que só se pode torná-la intuível em
imagens a grande distância.

17.

Assim, talvez em nenhuma parte mais claramente do que na


contemplação de ruínas, que nos são deixadas como testemunhos de
unidades de vida que se afundaram, o espírito seja tocado pelo
significado da obra. Não é apenas a destruição cujo triunfo desperta a
pergunta pelo indestrutível — pelo secreto conteúdo destas oficinas há
muito abandonadas, cujo significado, como muito bem sentimos, não
pode, no entanto, perder-se.
De algum modo, o ruído daqueles tempos parece, vindo de uma
grande distância, penetrar no silêncio que circunda os seus símbolos
despedaçados, tal como o sussurro do mar se mantém nas conchas dos
búzios que as vagas deitaram fora. É um ruído que sabemos muito bem
perceber, precisamente nós cuja pá escava em busca dos restos de
cidades das quais até os nomes entraram no esquecimento.
Estas pedras, que estão escondidas sob a hera ou sob a areia do
deserto, não são apenas um monumento do poder dos poderosos, mas
também do trabalho anónimo, do mais pequeno gesto, que aqui se
83

realizou. Em cada uma delas entrou o alarido de pedreiras esquecidas,


os perigos de rotas terrestres e marítimas desaparecidas, a turba das
cidades portuárias, os planos dos mestres de obra e o peso do trabalho
forçado, o espírito, o sangue e o suor de raças que há muito passaram.
São uma imagem simbólica da unidade de vida mais profunda, que o dia
só raramente manifesta.
É por isso que qualquer espírito que possua uma relação à
história se sente atraído por estas cidades diante das quais se cruzam
estranhamente a tristeza e o orgulho: a tristeza pela fugacidade de todos
os esforços; o orgulho pela vontade que, apesar disso, sempre de novo
nos seus símbolos procura expressar que pertence ao imperecível.
Mas esta vontade também vive em nós e na nossa actividade.

18.

Procuremos o retrato da vontade, que, nas fronteiras do tempo,


como que aparece diluído e purificado dos jogos e contra-jogos das
intenções, também nas fronteiras do espaço.
As grandes cidades em que vivemos existem, na nossa
representação, com justiça como os focos de todos os opostos que são
pensáveis. Dois arruamentos podem ser distanciados um do outro como
o Pólo Norte e o Pólo Sul. A frieza das relações entre singulares, entre os
transeuntes, é extraordinária. Há aqui o lucro, o divertimento, o tráfego, o
combate pelo poder económico e político. Cada edifício está construído
por uma decisão determinada e para um fim determinado. Os estilos
intercalaram-se de diversos modos uns com os outros; os velhos lugares
de culto estão circundados por estações e armazéns, nos subúrbios
ainda há quintas dispersas aqui e ali pela rede de fábricas, locais de
desporto e bairros residenciais.
84

Bem, este todo deixa-se abordar de diversos modos, sempre de


acordo com os meios e com os questionamentos pelos quais isso
acontece. É sem dúvida um local de produção, também de consumo, de
exploração, de relações sociais, de ordem, de crime ou ainda do que
mais se quiser.
Cada uma das ciências singulares, ligadas entre si
funcionalmente, consegue colocar os seus conceitos como denominador
sob este mecanismo, e surgem diariamente novas ciências, sempre de
acordo com aquilo que é preciso. Para o sociólogo, o todo é sociológico;
para o biólogo, biológico; para o economista, económico em cada
pormenor, desde os sistemas do pensar até à moeda de um centavo.
Este absolutismo é o privilégio incontestável da intuição conceptual —
sendo pressuposto que os conceitos são formados puramente em si, isto
é, segundo as leis da lógica.
Independentemente disto, numa tal cidade vivem milhões de
homens que conseguem julgar a sua situação menos através da intuição
abstracta do que através da intuição imediata — de correlativa variedade
são os enunciados sobre o para quê da sua existência. Finalmente,
também se dão aqui não apenas muitos e quaisquer princípios para a
penetração artística, mas todos estes contributos para a comédia
humana podem acontecer, por seu lado, segundo as diferentes receitas
das escolas idealista, romântica ou materialista. Mas basta — as infinitas
possibilidades de diferenciação são demasiado conhecidas. Na medida
em que uma força sabe renunciar a elas, anuncia o alcance das suas
reivindicações.
Representemo-nos então esta cidade a uma distância maior do
que a que conseguimos alcançar até agora com os nossos meios — de
um modo semelhante a como se ela fosse observada por telescópio da
superfície da Lua. A uma tão grande distância, fundem-se umas nas
outras as diferenças dos objectivos e dos fins. A participação do
observador torna-se, de algum modo, ao mesmo tempo mais fria e mais
85

ardente, mas em todo o caso diferente da relação que o singular possui


lá em baixo, como parte do todo. Aquilo que talvez seja visto é a imagem
de uma estrutura particular, da qual se deve adivinhar, a partir de
variados sinais, que se alimenta dos sucos de uma grande vida. O
pensamento da sua diferenciação está aqui tão afastado como
geralmente está afastado do singular ver-se microscopicamente, isto é,
ver-se como uma soma de células.
A um olhar que esteja separado por uma distância cósmica dos
jogos e contra-jogos dos movimentos, não pode escapar que aqui uma
unidade criou o seu retrato espacial. Este modo de observação
diferencia-se dos esforços para conceber a unidade da vida na sua mais
superficial possibilidade, nomeadamente como adição, ao captar a forma
criadora, a obra, que se dá apesar de todas as oposições ou com a sua
ajuda.

19.

Sabemos certamente que não é dado ao homem observar o seu


tempo com os olhos de um arqueólogo a quem o seu sentido secreto se
manifestasse como que na visão de uma máquina eléctrica ou de uma
máquina de tiro rápido. Nem sequer somos astrónomos aos quais o
nosso espaço se apresente como forma de uma geometria que torna
imediatamente inequívocas as forças e contra-forças de um sistema de
coordenadas escondido.
A atitude do singular é antes dificultada por ele mesmo ser
contrário, isto é, por ele mesmo se encontrar na posição mais avançada
do combate e do trabalho. Manter-se dentro desta posição e, no entanto,
não se esgotar nela; ser não apenas material, mas, ao mesmo tempo,
portador do destino; conceber a vida não apenas como campo do
necessário, mas, ao mesmo tempo, da liberdade — tal é uma capacidade
86

que já foi caracterizada como o realismo heróico. Esta faculdade, este


real luxo de uma estirpe ameaçada pelo extraordinário, está na base de
um estranho espectáculo no qual o nosso tempo nos deixa participar:
que no meio de um espaço cheio de hostilidade anárquica comece a
crescer uma camada dirigente unida.
Na medida em que o singular se sente pertencente ao mundo do
trabalho, a sua concepção heróica da realidade manifesta-se em ele
conceber-se como representante da figura do trabalhador. Indicámos
esta figura como o mais íntimo portador, como a substância nuclear
simultaneamente activa e passiva deste nosso mundo, completamente
diferente de qualquer possibilidade de outro tipo. Da secreta vontade de
representar esta substância explica-se a manifesta congruência das
ideologias em uso, tal como o combate moderno pelo poder as
desenvolveu em variados matizes. Assim, quase não há movimento que
pudesse renunciar à reivindicação de ser um movimento de
trabalhadores, não há nenhum programa no qual a palavra “social” não
possa ser descoberta nas primeiras frases.
Tem de ser visto que aqui, para além daquela mistura de
economia, compaixão e submissão, para além dos sentimentos
reflectidos dos deserdados, começa a anunciar-se uma vontade de poder
cada vez mais clara, ou antes que há muito está presente uma nova
realidade que, no combate, aspira à sua expressão inequívoca em todas
as áreas da vida. A diversidade das formulações com que a vontade
ensaia é insignificante diante do facto de que só há uma forma na qual
em geral se pode querer.
Aos ardilosos caçadores de votos, aos merceeiros da liberdade,
aos palhaços do poder, que só conseguem conceber o sentido como fim
e a unidade como número, perturba uma obscura suspeita daquela nova
grandeza como a qual a liberdade tem de surgir no meio do mundo do
trabalho. Mas como estão completamente dependentes do esquema
moral de uma cristandade corrompida, em que o próprio trabalho
87

aparece como mau e que traduz a fuga bíblica na relação material entre
exploradores e explorados, mostram-se como incapazes de ver a
liberdade de outro modo que não como um negativo, como a redenção
de quaisquer males que sejam.
Mas nada é mais elucidativo do que, dentro de um mundo no qual
o nome do trabalhador possui o significado de uma marca de dignidade e
o trabalho é concebido como a sua mais íntima necessidade, a liberdade
se apresentar como expressão precisamente desta necessidade, ou, por
outras palavras, do que qualquer reivindicação de liberdade aparecer
como uma reivindicação de trabalho.
Só quando vem à luz a reivindicação de liberdade nesta acepção
se pode falar de um domínio, de uma era do trabalhador. Pois não se
trata de uma nova camada política ou social tomar o poder, mas de uma
nova humanidade, igual a todas as grandes figuras históricas, encher
com pleno sentido o espaço do poder. Daí que tenhamos recusado ver
no trabalhador o representante de um novo estado, de uma nova
sociedade, de uma nova economia, pois ele ou é nada ou é mais, ou
seja, ele é o representante de uma figura peculiar, que age segundo leis
próprias, que segue uma vocação própria e que participa de uma
liberdade particular. Do mesmo modo que a vida cavaleiresca se
manifestava em qualquer pormenor da atitude de vida se basear no
sentido cavaleiresco, assim a vida do trabalhador é ou autónoma,
expressão de si mesma e, assim, domínio, ou não é nada senão um
desejo de participação em direitos poeirentos, na fruição, tornada
insípida, de um tempo que passou.
Para poder conceber isso, tem de se ser capaz de uma outra
concepção do trabalho diferente da até agora. Tem de se saber que,
numa era do trabalhador, se esta usa com justiça o seu nome e não
como todos os partidos hodiernos se caracterizam como partidos de
trabalhadores, nada pode haver que não seja concebido como trabalho.
O trabalho é o ritmo do punho, dos pensamentos, do coração, a vida de
88

dia e de noite, a ciência, o amor, a arte, a fé, o culto, a guerra; o trabalho


é a oscilação do átomo e a força que move as estrelas e os sistemas
solares.
Mas tais reivindicações, e muitas outras sobre as quais ainda se
falará, em particular a reivindicação de dar um sentido, são a
característica de uma camada de senhores em crescimento. O
questionamento de ontem era: como ganha o trabalhador participação na
economia, na riqueza, na arte, na formação, na grande cidade, na
ciência? Mas amanhã será: como têm de parecer todas estas coisas no
espaço de poder do trabalhador, e que significado lhes será atribuído?
Assim qualquer reivindicação de liberdade só é possível, dentro
do mundo do trabalho, enquanto aparecer como reivindicação de
trabalho. Tal significa que a medida da liberdade do singular corresponde
exactamente à medida na qual ele é trabalhador. Ser trabalhador, ser
representante de uma grande figura que entra na história, significa: tomar
parte numa nova humanidade, destinada ao domínio pelo destino. É
então possível que esta consciência de uma nova liberdade, a
consciência de estar no lugar decisivo, possa ser sentida tanto no espaço
do pensar como atrás de máquinas sibilantes e na turba de cidades
mecânicas? Não apenas possuímos sinais de que isso é possível, mas
também acreditamos que isso é o pressuposto de qualquer intervenção
real e que é precisamente aqui que está o ponto decisivo de mudanças
com as quais jamais um redentor se permitiu sonhar.
No mesmo instante em que o homem se descobre como senhor,
como portador de uma nova liberdade, seja isso em que situação for, as
suas relações tornam-se outras desde a raiz. Quando isto for concebido,
muitas coisas que ainda hoje são desejáveis aparecerão como nada. É
de prever que, num mundo do trabalho puro, os pesos do singular não
diminuirão, mas até crescerão — mas, ao mesmo tempo, forças
completamente diferentes ficarão livres para vencê-los. Uma nova
consciência de liberdade coloca novas relações hierárquicas, e aqui
89

esconde-se uma felicidade mais profunda, uma felicidade mais equipada


para a renúncia, se se deve em geral falar de felicidade.

20.

Onde, no meio das mais extremas privações, cresce o sentimento


para as grandes tarefas da vida — e este sentimento, do qual
procurámos dar algumas imagens, está em crescimento —, preparam-se
coisas extraordinárias.
Este cultivo rigoroso de uma estirpe que se forma no deserto de
um mundo completamente racionalizado e moralizado sugere a
comparação com o desenvolvimento do prussianismo. Deve-se dizer que
o conceito prussiano de dever, no seu carácter inteligível, se deixa
abrigar completamente no mundo do trabalho, mas que a medida das
reivindicações que aqui são feitas ainda é de um alcance
significativamente maior. Não é por acaso que a filosofia prussiana pode
ser apontada em todo o lado onde no mundo se podem observar novos
esforços.
No conceito prussiano de dever cumpre-se a domesticação do
elementar, tal como nos entrou na memória no ritmo das marchas, na
condenação à morte do herdeiro da coroa, nas batalhas grandiosas que
tinham de ser ganhas com uma nobreza amansada e com mercenários
adestrados.
No entanto, o único herdeiro possível do prussianismo, o
trabalho81, não exclui o elementar, mas inclui-o; passou pela escola da
anarquia, pela destruição dos antigos vínculos e, por isso, tem de
executar a sua reivindicação de liberdade num novo tempo, num novo
espaço e através de uma nova aristocracia.

81
N. do T.: O termo traduzido aqui por trabalho é Arbeitertum. O trabalho (Arbeitertum), oposto
à burguesia (Bürgertum), é então herdeiro do prussianismo (Preußertum).
90

A peculiaridade e o alcance deste processo estão dependentes


da relação do trabalhador ao poder.
91

O PODER COMO REPRESENTAÇÃO DA FIGURA DO


TRABALHADOR

21.

A prova da validade universal da vontade de poder está dada


anteriormente — num trabalho que também soube minar até os mais
profundos caminhos de uma moral de velho estilo e defraudar ainda
qualquer uma das suas astúcias.
Este trabalho tem dois rostos, na medida em que, por um lado,
pertence a um tempo que ainda dá valor à descoberta de verdades
universais e que, por outro lado, para além disso, reconhece a própria
verdade como uma expressão da vontade de poder. Cumpre-se aqui a
explosão decisiva; mas como seria possível à vida viver mais do que um
instante fugaz neste ar mais forte e mais puro, mas ao mesmo tempo
mortal, de um espaço pan-anarquista, deter-se diante deste mar “de
forças em si mesmas tempestuosas e a crescer”, sem, logo depois, se
lançar na mais dura rebentação como portadora de uma muito
determinada vontade de poder, que possui um modo próprio e objectivos
próprios?
Nada é mais apropriado para favorecer uma moral guerreira da
mais elevada dignidade do que o aspecto violento de um mundo que se
encontra numa revolta ininterrupta. Mas agora ergue-se a pergunta pela
legitimação, por uma referência ao poder particular e necessária, mas de
modo nenhum conforme à vontade, referência essa que também se pode
assinalar como encargo.
92

É precisamente esta legitimação que deixa aparecer um ser já


não com um poder puramente elementar, mas como poder histórico. A
medida de legitimação decide sobre a medida de domínio que pode ser
alcançada pela vontade de poder. Chamamos domínio a um estado no
qual o espaço de poder ilimitado é referido a um ponto a partir do qual
aparece como espaço do direito.
A pura vontade de poder, pelo contrário, possui tão pouca
legitimação como a vontade de fé — não é a plenitude, mas um
sentimento de falta que se expressa em ambas estas atitudes, nas quais
o romantismo se despedaçou em si mesmo.

22.

Há tão pouco um poder abstracto como há uma liberdade


abstracta. O poder é um sinal da existência, e, correlativamente, também
não há quaisquer meios de poder em si, mas os meios obtêm o seu
significado através do ser que deles se serve.
Na era do domínio aparente burguês, ou já não se pode ou ainda
não se pode falar de poder. A desintegração do Estado absoluto pelos
princípios universais aparece como um acto grandioso de
enfraquecimento e desvalorização de um mundo formado. Visto por uma
perspectiva modificada, esta terraplanagem de todas as fronteiras
apresenta-se, no entanto, como um acto da Mobilização Total, como a
preparação do domínio de grandezas novas e diferentes, cuja
emergência não se fará notar.
Na história das descobertas geográficas e cosmográficas,
naquelas invenções cujo mais secreto sentido se manifesta como uma
furiosa vontade de omnipotência, omnipresença e omnisciência, uma
furiosa vontade da mais ousada eritis-sicut-Deus, o espírito como que se
precipitou para além de si, para acumular um material que aguarda pela
93

ordem e por uma poderosa penetração. Surgiu assim um caos de factos,


meios de poder e possibilidades de movimentos que está pronto como
instrumentário para um domínio de grande estilo.
A autêntica razão do sofrimento do mundo, que cresceu muito,
que se tornou muito universal, está em um tal domínio ainda não estar
realizado e em vivermos, por isso, num mundo em que os meios
aparecem como mais significativos que o homem. No entanto, todas as
confrontações, todos os combates que observámos no seio dos povos e
entre povos, assemelham-se a tarefas como cujo resultado é esperado
uma nova e mais decisiva espécie de poder. A última fase, ainda não
encerrada, do decurso do velho mundo consiste em cada uma das suas
forças se procurar armar com reivindicações imperialistas.
Tais reivindicações são hoje feitas não apenas por nações e por
cultos, mas também por formações espirituais, económicas e técnicas de
tipo muito diferenciado. Deve-se observar de novo aqui como a era do
liberalismo criou os pressupostos para estes esforços de um tipo
completamente novo. De uma instrução formal que coloca certos valores
como universalmente válidos aproveitaram-se forças muito diferenciadas
e, em parte, muito estranhas ao liberalismo — formou-se aqui um
medium que dá à linguagem um grande alcance.
Esta metódica moderna não se pode nem sobrevalorizar nem
subvalorizar: é correctamente avaliada quando se vê nela uma nova
táctica, cujas formas só ganham objectivo e conteúdo através do poder
que delas se serve. O eterno erro da insuficiência consiste em ela cuidar
de levar a sério estas formas em si. Daí que a palavra da tomada do
poder pertença às frases atrás das quais se esconde de preferência a
incapacidade de uma vida enfraquecida. Nada é mais apropriado a
manifestar esta incapacidade do que um estado que a leva à posse dos
meios de poder.
Onde se dá um estado de puro movimento, de insatisfação
demasiado fácil, emerge sempre o poder como o objectivo de todos os
94

objectivos, como a panaceia dos mercadores de ópio políticos. No


entanto, o poder não é, tão pouco como o é a liberdade, uma grandeza
que pode ser captada em qualquer lugar no espaço vazio, ou com a qual
qualquer nada consegue pôr-se em relação de qualquer maneira. Ele
está antes numa ligação inseparável com uma unidade de vida sólida e
determinada, com um ser indubitável — é precisamente a expressão de
um tal ser que aparece como poder e sem a qual a condução das
insígnias não possui nenhum significado.
Neste sentido, num real movimento de trabalhadores, o poder
substancial que está dentro dele é muito mais importante do que o
combate por um poder abstracto, cuja posse ou não posse é tão
inessencial como uma liberdade abstracta.
Que o trabalhador assume realmente uma posição decisiva, tal
pode-se concluir de hoje qualquer grandeza que possua vontade de
poder se procurar colocar numa relação com ele. Assim, há partidos de
trabalhadores, movimentos de trabalhadores, governos de trabalhadores
de variados tipos. Mais do que uma vez se vivenciou, no nosso tempo,
que o trabalhador “conquistou o Estado”. Este espectáculo é
insignificante se, como o seu resultado, vier à luz uma fortificação da
ordem burguesa e uma última infusão dos princípios liberais.
Experiências deste tipo, por um lado, apontam para que aquilo que hoje
se compreende como poder estatal não possua qualquer carácter
existencial; mas, por outro lado, deve-se concluir delas que o trabalhador
ainda não se concebeu na sua alteridade.
No entanto, é precisamente esta alteridade, este ser peculiar do
trabalhador que assinalámos como a sua figura, que é muito mais
significativa do que aquela forma do poder que em geral não deve ser
querida. Este ser é poder num sentido completamente diferente, é o
capital original que se introduz no Estado como no mundo e que cunha
as suas próprias organizações, os seus próprios conceitos.
95

O poder dentro do mundo do trabalho não pode, por isso, ser


outra coisa do que representação da figura do trabalhador. Está aqui a
legitimação de uma vontade de poder particular e de um novo tipo.
Reconhece-se esta vontade em ela ser a senhora dos seus meios e
armas de ataque, e em ela não possuir nenhuma relação a eles que seja
derivada, mas uma relação substancial. Tais armas não precisam de ser
novas; uma força original mostra-se antes precisamente em descobrir no
que é conhecido reservas insuspeitadas.
Um poder legitimado pela figura do trabalhador, na medida em
que aparece como linguagem, tem de deparar com o trabalhador como
com uma camada completamente diferente do que como pode ser
captado através das categorias do século XIX. Ele tem de deparar com
aquela humanidade que concebe a sua reivindicação de liberdade como
reivindicação de trabalho e que possui já sentido para uma nova
linguagem de comando. Já a mera presença de uma tal espécie humana,
já o mero emprego de uma tal linguagem, é mais ameaçador para o
Estado liberal do que o inteiro jogo do aparato social, que nunca
eliminará o liberalismo até porque pertence às suas invenções.
Qualquer atitude à qual esteja dada uma relação real ao poder
também se deixa reconhecer em ela conceber o homem não como o
objectivo, mas como um meio, como o portador tanto do poder como da
liberdade. O homem desdobra a sua suprema força, desdobra o domínio
por todo o lado onde está ao serviço. O mistério da linguagem de
comando genuína é que ela não faz promessas, mas põe exigências. A
mais profunda felicidade do homem consiste em ser sacrificado; e a
suprema arte do comando, em indicar objectivos que sejam dignos do
sacrifício.
A existência de uma nova humanidade é um capital que ainda
não foi reivindicado. Esta humanidade é a mais intensa arma de ataque,
o meio de poder supremo que está à disposição da figura do trabalhador.
96

O manejo seguro, a aplicação precisa deste meio de poder é uma


inconfundível característica de estar em obra uma nova arte estatal, uma
nova estratégia.

23.

Do mesmo modo, os meios de destruição através dos quais a


figura do trabalhador se circunda com uma zona de aniquilamento
possuem a dignidade de armas de ataque, sem eles mesmos estarem
submetidos ao seu efeito.
Pertencem aqui os sistemas de um pensar dinâmico, orientados
contra as áreas de uma fé enfraquecida, nas quais se tornou impotente a
espada do Estado, se apagou o fogo da Inquisição. Qualquer instinto
genuíno pode ser reconhecido em ele conceber que não se pode tratar
aqui, no fundo, nem de novos conhecimentos nem de uma nova
conformidade a fins, mas que é a pergunta de um novo domínio que, em
todas as áreas da vida, está em jogo.
Esta pergunta já está decidida em sentido negativo, de tal modo
que os limites ao verdadeiro poder estão fechados a todas as forças
excepto uma única. Deve-se bem diferenciar entre uma zona na qual se
é objecto ou sujeito de destruição, e uma outra na qual se é superior à
destruição. Deve-se observar aqui que é precisamente a aparente
validade universal de um estado de força que está à altura dela que joga
com meios de poder particularmente perigosos. Este jogo pertence
àqueles nos quais aparentemente pode ganhar qualquer jogador
participante, mas na realidade só o banco.
Tem de se saber isto, quando se quiser apreciar estados
concretos do pensar dinâmico, como a técnica, na sua dignidade de
poder. Também a técnica é aparentemente uma área universalmente
válida, neutra, que dá entrada a qualquer força que seja. Visto
97

formalmente, não há diferenças se um homem privado, com vontade de


lucro, adquirir uma fábrica de máquinas, se uma cabana ou um palácio
forem equipados com ligação eléctrica, se uma encíclica papal se servir
da rádio ou se um povo de cor produzir teares mecânicos e lançar
couraçados à água. No entanto, aquilo que se esconde atrás destas
alterações, sobre cujo ritmo nos cansámos de espantar, são questões
completamente diferentes das da praxis ou do conforto.
Falar do percurso de vitória da técnica é um resto da terminologia
do iluminismo. Pode passar, se se vê os cadáveres que este percurso
deixa atrás de si no seu caminho. Não há uma técnica em si, como não
há uma razão em si; cada vida tem a técnica que lhe é adequada, que
lhe é inata. A recepção de uma técnica estranha é um acto de
submissão, cujas consequências são tanto mais perigosas quanto este
se cumpre, à partida, no espírito. Aqui, a perda tem necessariamente de
ser maior do que o ganho. A técnica de máquinas deve ser concebida
como o símbolo de uma figura particular, a do trabalhador — se alguém
se servir das suas formas faz o mesmo que se assumisse o ritual de um
culto estranho.
Explica-se também a partir daqui que por todo o lado onde a
técnica deparou com o resto dos três velhos, dos três “eternos” estados,
ainda conservados sob o tecto burguês, fosse particularmente decidida a
resistência contra a penetração das suas formas. Cavaleiros, sacerdotes
e camponeses bem adivinhavam que aqui havia mais a perder do que o
burguês em geral podia suspeitar — daí que não seja pouco atractivo
seguir o seu combate, que frequentemente toca o tragicómico. Mas o
capricho daquele general de artilharia, que queria saber disparada a
salva de honra sobre o seu túmulo não por canos estriados mas pelas
velhas espingardas carregadas pela boca, tinha o seu bom sentido. O
soldado real só de má vontade empunha os novos meios de guerra que a
técnica lhe põe à disposição. Nos exércitos modernos, armados com os
últimos meios técnicos, já não esgrima uma classe guerreira pertencente
98

a um estado que se serve destes meios técnicos, mas estes exércitos


são a expressão guerreira que a figura do trabalhador se concede.
De modo semelhante, nenhum sacerdote cristão podia duvidar de
que numa chama eterna que se substitui por uma lâmpada eléctrica não
se deve ver uma questão sacral, mas uma questão técnica. Mas se,
como vimos, não há de todo questões puramente técnicas, está fora de
questão que aqui estejam em jogo sinais estranhos. Daí que o estado
sacerdotal possua um instinto ainda mais profundo onde identifica o reino
da técnica com o reino de Satã do que onde põe o microfone junto do
corpo de Cristo.
Do mesmo modo, já não se pode falar em geral de um estado
campesino onde o camponês se serve da máquina. A indolência deste
estado, frequentemente pintada de um modo supersticioso, sobre a qual
muitas vezes se lamentaram os químicos agrários, os mecânicos e os
economistas políticos do século XIX, não brota de uma falta de sentido
económico, mas do daltonismo inato para um modo muito determinado
de economia. Chegou-se assim a que frequentemente as quintas e
plantações nas áreas coloniais sejam exploradas com máquinas às quais
ainda está fechado o campo que faz fronteira com a fábrica que produz
estas máquinas. O camponês que, em vez de com cavalos, começa a
trabalhar com forças de cavalos a vapor, já não pertence a nenhum
estado. Ele é trabalhador sob condições particulares, e actua na
destruição da ordem dos estados tanto como os seus antepassados que
imediatamente se entregaram à indústria. O novo questionamento ao
qual se vê submetido consiste para ele, não menos do que para o
trabalhador industrial, em representar a figura do trabalhador ou em
desaparecer.
Encontramos aqui novamente confirmado que por trabalhador
não se deve compreender nem um estado, no velho sentido, nem uma
classe, no sentido da dialéctica revolucionária do século XIX. Pelo
contrário, as reivindicações do trabalhador ultrapassam todas as
99

reivindicações dos estados. Em particular, nunca se chegará a resultados


claros se pura e simplesmente se identificar o trabalhador com a classe
dos trabalhadores industriais. Isso é, em vez de ver a figura, satisfazer-se
com um dos seus fenómenos — a consequência tem de ser um olhar
turvo para as reais relações de poder. A verdade é que se viu no
trabalhador industrial uma gente particularmente endurecida, através de
cuja existência se tornou sobretudo clara a impossibilidade de prosseguir
a vida nas velhas formas. Pô-la no sentido de uma política de classes de
velho estilo não significa então outra coisa do que, onde se trata de
decisões últimas, esgotar-se em resultados parciais.
Estas decisões pressupõem uma relação mais fria e mais ousada
ao poder, a qual passou pelos sentimentos reflexos dos subjugados e
pelo amor às coisas envelhecidas, e os superou.

24.

O globo terrestre está coberto pelos escombros de imagens


despedaçadas. Participamos no espectáculo de um declínio que só se
pode comparar com catástrofes geológicas. Seria perder tempo, tomar
parte no pessimismo dos destruídos ou no optimismo superficial dos
destruidores. Num espaço esvaziado de qualquer domínio real até aos
últimos limites, a vontade de poder está atomizada. No entanto, a era das
massas e das máquinas apresenta a forja gigantesca de um império em
crescimento, a partir do qual qualquer declínio aparece como querido,
como preparação.
A aparente validade universal de todos os estados cria um
medium ilusório que empurra invisivelmente para o chão os subjugados e
os torna, onde eles julgam escolher ou mesmo enganar, nos objectos de
uma vontade ainda impessoal. Os meios de poder, que facilmente, tão
facilmente, estão à disposição de qualquer força, tornam todos os pesos,
100

com uma segurança diabólica, mais opressores, e pelo menos em


relação à validade universal do sofrimento não pode haver dúvida.
No entanto, o sítio em que não se pega pela lâmina e a partir do
qual a dominação destes meios é possível não é universalmente
acessível. Esta dominação é muito diferente do mero uso. É a
característica do domínio, da vontade de poder legitimada. A realização
deste domínio é da maior importância para todo o mundo, apesar de só
num ponto poder ser bem sucedida. Só a partir de um tal ponto se
podem resolver aquelas questões de segundo plano, que hoje aparecem
ao homem como as mais importantes precisamente porque nelas a falta
de domínio vem à luz com os sintomas do sofrimento. A regulamentação
das funções da economia e da técnica mundiais, a produção e
distribuição dos bens, a limitação e partilha das tarefas nacionais
pertencem aqui.
Compreende-se que uma nova ordem mundial, como
consequência do domínio mundial, não se dê como um presente do céu
ou como produto de uma razão utópica, mas que passa pelo caminho do
trabalho de uma cadeia de guerras e de guerras civis. O armamento
extraordinário que em todos os espaços e em todas as áreas da vida se
pode observar mostra que o homem está disposto a realizar este
trabalho. É isto que enche de esperança a quem quer que ame, no mais
íntimo, o homem.
É de sintomático valor que hoje se procure dar o sinal da
revolução no combate pelo poder dentro dos Estados, e o sinal da
revolução mundial nos confrontos dos Estados entre si, na medida em
que se se coloca em referência ao trabalhador. Tem de se evidenciar
quais das múltiplas manifestações da vontade de poder que se sentem
chamadas possui legitimação. O atestado desta legitimação consiste na
dominação das coisas que se tornaram desmedidas — na domesticação
do movimento absoluto que só se pode realizar através de uma nova
humanidade.
101

A nossa crença é que uma tal humanidade já está presente.


102

A RELAÇÃO DA FIGURA AO MÚLTIPLO

25.

Até agora, no decurso da exposição, tratou-se de veicular uma


suspeita do modo como uma figura se começa a assinalar na substância
humana. Há ainda a dizer algumas palavras sobre o sentido a partir do
qual uma tal tarefa se concebe como necessária e a cujas fronteiras se
tem de limitar.
Este sentido, em primeiro lugar, não pode ser procurado no
prosseguimento de um interesse particular. Não se trata então de
acrescentar às múltiplas representações que o trabalhador até agora
encontrou, e que ainda encontrará, mais uma representação que erga,
segundo o modelo habitual, a reivindicação de verdade e de um carácter
decisivo particulares, para retirar para si uma parte das forças de fé e de
vontade que hoje por todo o lado estão livres.
Tem antes de se saber que uma tal figura está além da dialéctica,
apesar de alimentar a dialéctica a partir da sua substância e de a
abastecer com conteúdos. Ela é, no sentido mais significativo, um ser, e
isso expressa-se em relação ao singular de tal modo que ele ou é
trabalhador ou não é ele — completamente insignificante é, pelo
contrário, a mera reivindicação de sê-lo. Esta é a questão de uma
legitimação que escapa tanto à vontade como também ao conhecimento,
para não falar de indicações sociais ou económicas.
Mas do mesmo modo que não se pode chegar a representar uma
qualquer facção política como instância decisiva, também não se pode
103

compreender atrás da palavra “trabalhador” uma circunscrição do todo,


da comunidade, do bem-estar do povo, da ideia, do orgânico, ou como
ainda se possam chamar aquelas grandezas com as quais o espírito
julga alcançar, sobretudo na Alemanha, os seus triunfos quietistas sobre
a realidade. Tal é um vocabulário dos mestres vidreiros, do qual se pode
fazer uso se as coisas estiverem em ordem.
Contudo, uma nova imagem do mundo não se mostra por as
oposições se desvanecerem, mas por elas se tornarem mais implacáveis
e por cada âmbito, mesmo o âmbito mais longínquo, ganhar um carácter
político. Que atrás da plenitude dos confrontos se esconda o esboço de
uma figura emergente — isso não se deve reconhecer em os parceiros
se unirem, mas em os seus objectivos se tornarem muito semelhantes,
de tal modo que cada vez mais inequivocamente só há uma orientação
na qual em geral se pode querer.
Tal não significa, para quem quer que não se saiba satisfazer
com a pura observação, nenhuma dissolução do conflito, mas uma
intensificação. Torna-se mais estreito o espaço no qual se se tem de
afirmar. Daí que não se seja superior às facções partidárias na medida
em que se se retira delas, mas na medida em que se as utiliza. Uma
força real não aplica a vantagem de que dispõe a contornar as
oposições, mas a passar através delas. Não se reconhece em descansar
ao Sol no sentimento da supremacia, a partir do alto observatório de um
todo ilusório, mas em esforçar-se por procurar o todo no combate e em
voltar a emergir a partir das facções partidárias, nas quais qualquer
mínima capacidade se consome e decai. Na vantagem, na desmesura,
trai-se a referência à figura, uma referência que, vista temporalmente, é
sentida como relação ao futuro.
É esta vantagem que aparece, aquém da zona de combate, como
íntima certeza e, no seu diâmetro, como domínio. Está aqui também,
dentro dos Estados e dentro dos Impérios, a raiz da justiça que apenas
pode ser exercida por forças que sejam mais do que partido, mais do que
104

nação, mais do que grandezas particularizadas e delimitadas — ou seja,


por forças às quais está dado um encargo.
Daí que se tenha de tornar claro de onde é que se se recebe o
seu encargo.

26.

Em segundo lugar, em relação à figura, é preciso libertar-se do


pensamento do desenvolvimento, o qual penetra completamente a nossa
era em nada menos do que o seu modo de observação psicológico e
moral.
Uma figura é, e nenhum desenvolvimento a acrescenta ou
diminui. A história do desenvolvimento não é por isso história da figura,
mas, no máximo, o seu comentário dinâmico. O desenvolvimento
conhece o início e o fim, o nascimento e a morte, dos quais a figura está
privada. Do mesmo modo que a figura do homem era antes do
nascimento e será depois da morte, uma figura histórica é, no mais
profundo, independente do tempo e das mudanças das quais parece
brotar. Os seus recursos são maiores, a sua fecundidade é imediata. A
história não produz quaisquer figuras, mas muda-se com a figura. Ela é a
tradição que a si mesma se dá um poder vencedor. É assim que as
famílias romanas retrocediam a sua origem até aos semideuses, e é
assim também que se terá de escrever sobre a figura do trabalhador a
partir de uma nova história.
Tem de ser feita esta verificação na medida em que hoje qualquer
interpretação do nosso tempo se impregna com sentimentos optimistas
ou pessimistas, respectivamente se tiver um determinado
desenvolvimento por concluído ou ainda no melhor caminho.
Em oposição a isto, assinalámos como a atitude de uma nova
estirpe o realismo heróico, o qual conhece tão bem o trabalho do ataque
105

como o dos postos perdidos, mas para o qual é de um significado inferior


se faz melhor ou pior tempo. Há coisas que são mais importantes e mais
próximas do que o início e o fim, a vida e a morte. Ao real empenho é
sempre alcançável o que é mais elevado; sejam referidos como exemplo
os mortos da Guerra Mundial, cujo significado não é minimamente
diminuído por terem caído precisamente neste e em nenhum outro
tempo. Eles caíram tanto para o futuro como caíram no sentido da
tradição. Tal é uma diferença que, no instante da mudança através da
morte, se dilui num significado superior.
É neste sentido que a juventude se tem de educar. A indicação de
uma figura nada pode prometer; pode, no máximo, dar um símbolo de
que a vida hoje, como antes, possui dignidade, e de que ela, para aquele
que a sabe viver, pode bem valer a pena.
Tal pressupõe certamente uma peculiar consciência da dignidade,
nem herdada nem adquirida, que é possível precisamente à vida muito
simples e que tem de ser reconhecida como a característica de uma
nova aristocracia.

27.

Resulta daqui, em terceiro lugar, que a questão do valor não seja


a decisiva. Do mesmo modo que a figura se deve procurar além da
vontade e além do desenvolvimento, ela também está além dos valores:
não possui qualquer qualidade.
A morfologia comparada, tal como hoje se pratica, não permite
por isso qualquer prognóstico válido. Ela é antes um assunto de museu,
uma ocupação para coleccionadores, românticos e apreciadores de
grande estilo. A multiplicidade de tempos passados e de espaços
longínquos impõe-se como uma orquestra variada e sedutora, com a
qual uma vida enfraquecida nada consegue orquestrar senão a própria
106

fraqueza. A insuficiência não é, contudo, mais suficiente por se criticar a


si mesma escondida numa pele de leão. Esta atitude é semelhante à
daquele general que envelheceu com a táctica linear, o qual não
reconhece a sua derrota porque foi alcançada contra as regras da arte.
Mas não há quaisquer regras da arte neste sentido. É uma nova
era que decide aquilo que deve valer como arte, como medida. Aquilo
que distingue duas eras não é o maior ou menor valor, mas pura e
simplesmente a alteridade. Daí que discutir aqui a questão do valor quer
dizer querer introduzir regras de jogo que não estão no lugar. Saber
pintar imagens só pode valer como medida para um qualquer tempo
quando isso é ainda um objectivo ambicionado para uma capacidade
insuficiente: aí vive-se de um crédito patente. Mais importante é procurar
os lugares em que o nosso tempo nos dá crédito.
Vivemos num estado em que muito dificilmente se pode dizer
aquilo que em geral é digno de valor, se, pelo contrário, não se quiser
ficar contente com puros modos de falar — num estado em que, em
primeiro lugar, se tem de aprender a ver. Isso vem de uma hierarquia não
ser imediatamente rendida por outra, mas de a marcha conduzir a
trajectos nos quais os valores estão na penumbra e as ruínas parecem
mais significativas do que o fugaz alojamento que cada manhã é
abandonado.
Tem-se de ultrapassar aqui um ponto a partir do qual o nada
aparece como mais desejável do que qualquer coisa em que habite ainda
a mais pequena possibilidade de dúvida. Deparar-se-á aqui com uma
sociedade de almas primitivas, com uma raça originária, que ainda não
surgiu como sujeito de uma tarefa histórica e, por isso, está livre para
novos encargos.
Só a partir daqui se dá um novo e mais decisivo sistema de
relações. Não há aqui nenhum tipo de moeda que seja aceite por
confiança e fé. As velhas moedas são lançadas fora ou guarnecidas com
um novo cunho — no que pode ser deixado em suspenso se o metal em
107

que elas são cunhadas possui ou não um valor absoluto. Os valores são
postos em relação à figura não qualitativa, mas criadora. Daí que sejam
relativos, certamente no sentido de uma unilateralidade guerreira a partir
da qual é contestada qualquer objecção de outro tipo. Assim, não apenas
é possível, mas também provável, que o nosso estado seja já visto e
avaliado nas anteriores visões dos monges cristãos — como a chegada
do Anticristo. Um tal juízo tanto pode ser válido como pode ser visto, a
partir de uma perspectiva modificada, como não vinculativo ou como
matéria de valorização própria. O mistério que se esconde atrás desta
contradição não pertence ao tema: não pertence às questões da mais
elevada arte da guerra, mas às da teologia.
Estas delimitações permitem conceber que uma figura não possa
ser descrita no sentido habitual. O nosso olhar está aquém do prisma
que quebra o raio colorido em luzes variadas. Vemos a limalha, mas não
vemos o campo magnético cuja realidade determina a sua ordem.
Surgem assim novos homens e, com eles, muda-se a cena, tal como se
movimenta uma encantadora encenação. A eterna luta começa e outras
questões começam a circular, e outras coisas aparecem como
desejáveis. Tudo já lá estava desde sempre e, de um modo decisivo,
tudo é novo. O que é admirável é suspeitar quão mais profundo é o
homem do que o seu fenómeno, que ele nos oferece — quão mais subtil
do que as intenções que ele presume seguir, quão mais significativo do
que os mais ousados sistemas, através dos quais consegue dar
testemunho de si.
Se conseguimos, na descrição de algumas alterações que temos
como significativas na substância humana, onde se fala da figura, deixar
aberto um lugar vazio, uma janela que só pode ser enquadrada através
da linguagem e que tem de ser preenchida pelo leitor através de uma
outra actividade que não a de ler, damos por cumprida esta parte
preparatória da nossa tarefa.
108

II PARTE
109

DO TRABALHO COMO MODO DE VIDA

28.

O processo em que se expressa, numa humanidade particular,


uma nova figura, a figura do trabalhador, apresenta-se, em relação à
dominação do mundo, como a emergência de um novo princípio, o qual
pode ser assinalado como trabalho. É através deste princípio que são
determinadas as únicas formas de confronto possíveis no nosso tempo;
ele suporta a plataforma sobre a qual exclusivamente se pode com
sentido confrontar, se se pensar em geral em confrontar. Está aqui o
arsenal dos meios e dos métodos em cuja manipulação superior se
reconhece os representantes de um poder emergente.
O estudo deste modo de vida em transformação persuadirá quem
quer que queira em geral admitir que o mundo está numa mudança
decisiva, numa mudança que traz em si o seu próprio sentido e a sua
própria legalidade, de que o trabalhador deve ser concebido como o
sujeito desta mudança. Do mesmo modo que uma consideração
profícua, para chegar a resultados não contraditórios nos pormenores,
tem de captar o trabalhador como o portador de uma nova humanidade,
de um modo completamente independente de qualquer valorização,
também o próprio trabalho, à partida, tem de se lhe apresentar como um
novo modo de viver, cujo objecto aparece como o globo terrestre e que
só ganha valor e diferença no contacto com a sua multiplicidade.
O significado de um novo princípio neste sentido não se deve
procurar em elevar a vida a um nível mais elevado. Está antes na
alteridade, na alteridade que pura e simplesmente pressiona. Assim, o
110

emprego da pólvora provoca uma imagem modificada da guerra, da qual,


no entanto, não se pode dizer que seja superior em dignidade à imagem
da arte da guerra cavaleiresca. Contudo, a partir deste instante, é um
absurdo ir para o campo sem canhões. É reconhecido um novo princípio
em ele não se poder medir com velhas categorias e em não poder furtar-
se ao seu emprego, independentemente de se ser sujeito ou objecto
deste emprego.
Segue-se daqui que para ver a palavra “trabalho” no seu
significado modificado se tem de dispor de novos olhos. Esta palavra não
tem nada a ver com um sentido moral, tal como se expressa na
expressão do suor do rosto. É muito bem possível desenvolver uma
moral do trabalho; neste caso são aplicados conceitos de trabalho a
conceitos morais, mas não o contrário. O trabalho também não é aquele
trabalho sans phrase, tal como aparece nos sistemas do século XIX
como a medida fundamental de um mundo económico. Que as
valorizações económicas se estendem muito longe, e que se estendem
mesmo aparentemente de um modo absoluto, explica-se por o trabalho
também se poder interpretar economicamente, mas não por significar a
mesma coisa que a economia. Pelo contrário, ele ergue-se violentamente
para além de todo o económico, sobre o qual consegue decidir de um
modo não simples, mas complexo, e de cujo âmbito só se podem obter
resultados parciais.
Finalmente, o trabalho não é nenhuma actividade técnica. É
incontestável que é precisamente esta nossa técnica que transmite os
meios decisivos; contudo, não são eles que mudam o rosto do mundo,
mas a vontade peculiar que está atrás deles e sem a qual eles não são
mais do que brinquedos. Através da técnica, nada é poupado, nada é
simplificado e nada é resolvido — ela é o conjunto de instrumentos, a
projecção de um modo de vida particular para a qual trabalho é a
expressão mais simples. Assim, um trabalhador levado para uma ilha
solitária permaneceria tanto um trabalhador como Robinson permaneceu
111

um burguês. Não poderia combinar dois pensamentos, guardar um


sentimento, considerar uma coisa do seu ambiente, sem que nisso se
espelhasse esta sua propriedade particular.
O trabalho não é então uma actividade pura e simples, mas a
expressão de um ser particular que procura realizar o seu espaço, o seu
tempo, a sua legalidade. Daí que não conheça qualquer oposição fora de
si mesmo; assemelha-se ao fogo que, consumindo e alterando tudo o
que é inflamável, só pode ser combatido através do seu próprio princípio,
através de um contra-fogo. O espaço do trabalho é ilimitado, tal como o
dia de trabalho abrange vinte e quatro horas. O contrário do trabalho não
é o repouso ou o ócio, mas, sob este ponto de vista, não há nenhum
estado que não seja concebido como trabalho. Como exemplo prático
disso, pode-se referir o modo em que já hoje é produzido o
restabelecimento do homem. Ou ele traz um carácter de trabalho muito
manifesto, como o desporto, ou apresenta, como o divertimento, a
festividade técnica, a estadia no campo, um contrapeso ligeiramente
colorido dentro do trabalho, mas de nenhum modo o contrário do
trabalho. A isto se liga a crescente carência de sentido dos Domingos e
feriados de estilo antigo — daquele calendário que cada vez menos
corresponde a um ritmo de vida modificado.
É inconfundível que esta traço total também está vivo nos
sistemas da ciência. Se considerarmos o modo em que a física mobiliza
a matéria, em que a zoologia procura adivinhar a energia potencial da
vida sob os seus esforços proteiformes, em que a própria psicologia se
esforça por ver o sono ou o sonho como acções, torna-se claro que aqui
não está em obra o conhecimento puro e simples, mas um pensar
específico.
Em tais sistemas mostram-se já sistemas do trabalhador, e é um
carácter de trabalho que determina a sua imagem do mundo.
Certamente, tem de se mudar o ponto de vista para o reconhecer
realmente; não se pode olhar para a perspectiva do progresso, mas a
112

partir de onde esta perspectiva perde o seu interesse — e o perde


porque uma identidade particular de trabalho e ser consegue garantir
uma nova segurança, uma nova estabilidade.
Aqui, os sistemas mudam efectivamente o seu sentido. Na
mesma medida em que o seu carácter de conhecimento perde em
significado, influencia-os um carácter de poder peculiar. Tal assemelha-
se ao facto através do qual um ramo da técnica aparentemente pacífico,
como a perfumaria, se descobre um dia como produtor de meios de
guerra química e se vê reivindicado como tal. Um pensar puramente
dinâmico, que em si, como qualquer estado puramente dinâmico, não
pode significar outra coisa que dissolução, torna-se positivo, torna-se
numa arma, por estar relacionado a um ser, por estar relacionado à
figura do trabalhador.
Assim considerado, o trabalhador está num ponto ao qual a
destruição já não é aplicável. Tal vale tanto para o mundo como política
como para o mundo como ciência. O que aqui se torna assinalável como
a falta de uma oposição essencial, de um oposto, aparece ali como uma
nova imparcialidade, como um novo serviço da ratio ao ser, o qual rompe
a zona do conhecimento puro e das suas garantias, ou seja, da dúvida,
e, deste modo, coloca a possibilidade de uma fé. Tem de se estar onde a
destruição não deve ser tida como conclusão, mas como antecipação.
Tem de se ver que o futuro consegue penetrar no passado e no
presente.
O trabalho, o qual pode ser tomado como modo de vida em
relação ao homem, e como princípio em relação à sua eficácia, aparece
como estilo em relação às formas. Estes três significados fundem-se uns
nos outros de modo variado, mas, no entanto, remetem para a mesma
raiz. Certamente que a mudança de estilo se torna visível mais tarde do
que a do homem e dos seus esforços. Tal explica-se por a consciência
ser o seu pressuposto ou, para o expressar de outro modo, por a
cunhagem ser o último acto através do qual se faz notada uma moeda.
113

Assim, para referir exemplos, um funcionário, um soldado, um agricultor


ou uma comunidade, um povo, uma nação podem já estar num campo
de forças completamente alterado sem estarem disso conscientes.
Diante destes representantes do trabalhador, que já o são sem o
saberem, estão outros que crêem ser trabalhadores sem que possam ser
referidos já como tal — fenómenos como os que a velha terminologia
procura captar com o conceito de trabalhador sem consciência de classe.
Já vimos, no entanto, que não basta uma consciência de classe
neste sentido, mas que esta, do mesmo modo que pertence aos
resultados do pensar burguês, também apenas consegue efectuar uma
extensão e uma diluição do estado burguês. Trata-se, por isso, de muito
mais do que de consciência de classe, porque o domínio que está em
questão tem um carácter total que só através de uma grande
envergadura, mas não através de uma oposição, através de uma última
consequência, pode chegar a apresentar-se dentro do velho mundo.
Quem desejar um domínio das forças realmente produtivas tem
também de ser capaz de representar-se a produção real como uma
grande e abrangente fecundidade que vai até ao todo. Pois não se trata
de esquematizar o mundo, de o moldar sob quaisquer reivindicações
especiais, mas de o digerir. Enquanto espíritos monótonos estiverem a
trabalhar, o futuro não pode aparecer sob mais nenhum aspecto senão
sob o que é prosaico. Por muito que certamente se tenha de reconhecer
o princípio fundamental como simples e livre de valores, tem também de
se ver que a possibilidade da configuração é infinita.
Que o novo estilo enquanto sedimentação de uma consciência
modificada ainda não seja reconhecível, mas apenas se possa suspeitar,
tal deve-se a o passado já não ser real e a o que é vindouro ainda não
ser visível. Daí que seja desculpável o erro que sustenta a uniformização
do velho mundo como a característica decisiva do nosso estado. No
entanto, este modo de uniformização pertence ao reino da decomposição
— é a uniformidade da morte que reveste o mundo. Preguiçosa, a
114

corrente alterada corre, ainda durante um período de tempo, entre as


margens habituais, de modo semelhante a como, ainda durante algum
tempo, se construiu caminhos de ferro como diligências, automóveis
como carroças, fábricas no estilo de igrejas góticas, ou a como na
Alemanha, ainda quinze anos depois da guerra mundial, se se abrigou no
abrigo do estado anterior à guerra. Mas são novas tensões, novos
mistérios, que a corrente esconde em si, e para os quais se tem de
robustecer os olhos.
A destruição cai como a geada sobre o mundo em declínio, cheio
de lamentos de que os bons tempos passaram. Estes lamentos são tão
infinitos como o próprio tempo; é a linguagem da antiguidade que neles
se expressa. Mas também por muito que a configuração se possa alterar
e os seus representantes possam mudar, é, no entanto, impossível que a
soma, a potência da força vital, se torne menor. Qualquer espaço
abandonado é preenchido por novas forças. Para mais uma vez referir a
pólvora, estão conservados suficientes documentos nos quais é
lamentada a destruição das praças fortes, das sedes de uma vida
orgulhosa e independente. Mas eis que aparecem os filhos da nobreza
nos exércitos dos reis; são outras as coisas pelas quais se combate, em
outras batalhas de outros homens. Aquilo que permanece é a vida
elementar e os seus motivos, mas altera-se sempre a linguagem em que
ela é transposta, altera-se sempre a distribuição dos papéis em que o
grande jogo se repete. Os heróis, os crentes e os amantes não morrem;
são descobertos de novo em cada época, e, neste sentido, o mito ergue-
se em qualquer tempo. O estado em que nos encontramos é semelhante
a um intervalo em que a cortina caiu e se realiza a confusa mudança do
pessoal e dos apetrechos.
Se o estilo, o tornar-se visível das novas linhas, pode ser tomado
como a conclusão, como a cunhagem de mudanças precedentes, então,
ao mesmo tempo, ele coloca o começo do combate pelo domínio do
mundo objectivo. Este domínio, segundo a sua essência, está
115

certamente já realizado, mas, para sair do seu carácter anónimo, precisa


como que de uma linguagem na qual se possa negociar, na qual a ordem
de comando se possa formular e possa ser perceptível aos súbditos.
Precisa do cenário que torna visível quais as coisas que são desejáveis e
com que meios as pode confrontar.
As mudanças aniquiladoras das formações naturais e espirituais
em toda a superfície terrestre devem ser tomadas como os preparativos
de um tal cenário. As massas e os indivíduos, as estirpes, as raças, os
povos, as nações, as paisagens, assim como as pessoas, as profissões,
as instituições, os sistemas e os Estados estão em igual medida
expostos a um ataque que, à partida, aparece como a completa
aniquilação da sua legalidade. Este estado é preenchido ideologicamente
por debates entre os defensores de valorizações destinadas ao declínio e
as cabeças ocas para as quais o próprio verniz niilista se representa
como valor.
Aquilo que nele é exclusivamente digno de nota é a preparação
de uma nova unidade do local, do tempo e da pessoa, de uma unidade
dramática cuja chegada pode ser suspeitada atrás dos destroços da
cultura e sob a máscara mortal da civilização.

29.

No entanto, quão longínquo está o estado em que nos


encontramos daquela unidade que consegue garantir uma nova
segurança e hierarquia de vida. Não há aqui nenhuma unidade visível
fora a da mudança rápida.
A observação tem de se acomodar a este facto se não se lembrar
de se satisfazer com a segurança enganadora de ilhas artificiais.
Certamente, não há aqui falta de sistemas, de princípios, de autoridades,
de professores e de mundividências — mas o que neles é suspeito é que
116

se tornaram demasiado fáceis. O seu número cresce na mesma medida


em que a fraqueza se sente carente de uma segurança duvidosa. Isto é
um espectáculo de charlatães que prometem mais do que pode ser
suportado, e de pacientes aos quais a saúde artificial dos sanatórios
aparece como desejável. Finalmente, teme-se o ferro ao qual, no
entanto, não se escapa.
Temos de ver que nascemos numa paisagem de gelo e de fogo.
O passado está feito de tal modo que não se pode estar preso a ele, e o
vindouro de tal modo que não se pode instalar-se nele. Esta paisagem
pressupõe como atitude uma superabundância de cepticismo guerreiro.
Não se pode ser encontrado nas partes da frente que devem ser
defendidas, mas naquelas onde se ataca. Tem de se compreender, para
chamar a si as reservas, que elas são invisíveis e estão escondidas de
um modo mais seguro do que em sepulturas blindadas. Não há
bandeiras para além das que se levam sobre o corpo. É possível possuir
uma fé sem dogma, um mundo sem deuses, um saber sem máximas e
uma pátria que não pode ser ocupada por nenhum poder do mundo? São
questões nas quais o singular tem de testar o grau do seu armamento.
De soldados desconhecidos não há falta; mais importante é o reino
desconhecido, sobre cuja existência não é preciso nenhum acordo.
Só assim aparece o palco deste tempo na sua correcta
iluminação: como um campo de batalha, mais tenso e rico de decisões
do que qualquer outro, para aquele que o sabe apreciar. O secreto centro
de atracção que concede aos movimentos o seu valor é a vitória, cuja
figura representa os esforços e sacrifícios também das partes derrotadas.
Só que aqui não está em casa ninguém que não se lembre de fazer a
guerra.
Só assim, a partir da consciência de uma atitude guerreira, é
possível atribuir às coisas que nos rodeiam o valor que lhes é devido. É
um valor como o que é próprio dos pontos e sistemas de um campo de
batalha: um valor táctico. Ou seja, que no curso do movimento há coisas
117

de uma seriedade mortal que, no entanto, se tornam insignificantes


quando o movimento passou por elas, de modo semelhante a como, no
campo de batalha, uma aldeia abandonada, uma parte de floresta
devastada aparece como o símbolo táctico da vontade estratégica e,
enquanto tal, é digna do supremo esforço. É neste sentido que se deve
ver o nosso mundo, se não se pensar em resignar: completamente em
movimento e, no entanto, ansiando pelo que é fixo; deserto e, no entanto,
não sem sinais ígneos pelos quais a mais íntima vontade se vê
confirmada.
Aquilo que pode ser visto não é a ordem definitiva, mas a
mudança da ausência de ordem debaixo da qual se pode adivinhar uma
grande lei. É a troca de posição que diariamente exige a tomada de um
novo ponto, enquanto a parte da Terra que está por descobrir ainda
permanece no escuro. No entanto, sabemos que ela está presente, que
ela é real, e esta certeza expressa-se em participarmos no combate.
Assim, realizamos certamente mais do que suspeitamos, e aquilo que
nos recompensa é a transparência com a qual este mais ilumina por
vezes a nossa actividade.
Se aqui, depois de termos falado do homem, falamos da sua
actividade, e se a tomamos a sério, tal só pode acontecer no sentido
desta transparência.
Sabemos qual a figura cujo contorno se começa deste modo a
desenhar.
118

O DECLÍNIO DA MASSA E DO INDIVÍDUO

30.

Para Aasvero82, que no ano de 1933 começa de novo a sua


caminhada, a sociedade humana e a sua actividade oferecem um
aspecto estranho.
Ele deixou-a num tempo em que a democracia, depois de várias
tempestades e oscilações, se começava a instalar na Europa, e
reencontra-a numa constituição em que o domínio desta democracia se
tornou tão indubitável, tão evidente, que pode prescindir do seu
predicado dialéctico, o liberalismo — se ainda não na sua solene
fraseologia, pelo menos na realidade. A consequência deste estado é
uma espantosa e perigosa igualdade na substância humana — perigosa
porque se perderam as garantias da velha organização.
Que visão se oferece a uma consciência apátrida que se vê
atirada para o centro de uma das nossas grandes cidades e, como em
sonhos, tenta adivinhar a legalidade dos acontecimentos? É a visão de
um movimento crescente que se cumpre com rigor impessoal. Este
movimento é ameaçador e uniforme; empurra filas de massas mecânicas
umas atrás das outras, cuja simétrica maré se regula através de sinais
auditivos e visuais. É uma ordem meticulosa que imprime, nesta
engrenagem em movimento e rotação que lembra o percurso de um
relógio ou de um moinho, o selo da consciência, do trabalho preciso e

82
N. do T.: Aasvero é a imagem do judeu errante.
119

conforme ao entendimento; no entanto, o todo aparece, ao mesmo


tempo, como que lúdico, no sentido de um automático passar o tempo.
Esta impressão cresce em certas horas em que o movimento
atinge o grau de uma orgia que anestesia e esgota os sentidos.
Escaparia talvez à percepção que pesos são aqui ultrapassados, se ele
não chamasse a atenção, através de sons sibilantes e ululantes nos
quais se expressa imediatamente uma implacável ameaça de morte,
para o grau de forças mecânicas que aqui estão em obra. Realmente, o
tráfego desenvolveu-se no sentido de uma espécie de Moloch, que, ano
sim, ano não, devora uma soma de vítimas que só se podem comparar
às da guerra. Estas vítimas caem numa zona moralmente neutra; o modo
em que são percebidos é de natureza estatística.
No entanto, o tipo de movimento de que aqui se fala domina não
apenas o ritmo dos cérebros artificiais, frios e ardentes, que o homem fez
para si e nos quais fosforiza o brilho de luzes geladas. Ele é perceptível
até onde o olhar alcança, e o olhar, neste tempo, alcança longe. Também
não é só do tráfego — a superação mecânica da distância que anseia
alcançar a velocidade da bala — que o movimento se apoderou, mas de
qualquer actividade pura e simples. Ele pode observar-se nos campos
onde se semeia e se colhe, nas covas das quais se arranca o minério e o
carvão, e nas barragens diante das quais estanca a água dos rios e dos
lagos. Trabalha, em milhares de variações, na mais pequena mesa de
trabalho como nos grandes bairros da produção. Não falta nem nos
laboratórios de ciência, nem nos escritórios de negócios, nem em
qualquer edifício de propriedade privada ou pública. Não há ainda
nenhum local tão afastado, seja ele o de um barco a afundar-se no
oceano nocturno ou o de uma expedição que entrou no gelo polar, em
que não martele, produza ou dê os seus sinais. Está tanto onde se age e
pensa como onde se combate e onde se se diverte. Há aqui locais tão
maravilhosos quanto angustiantes em que a vida se reproduz através de
fitas em movimento, enquanto ressoa a linguagem e a música de vozes
120

artificiais. Há campos de batalha como paisagens lunares em que reina


uma troca abstracta de fogo e movimento.
Este movimento só pode ser visto realmente com os olhos de um
estrangeiro porque abrange tão completamente a consciência dos que
nele nasceram como o meio do ar que se respira, e porque é tão simples
como maravilhoso. Daí que seja extremamente difícil, e mesmo
impossível, descrevê-lo, tal como é impossível descrever o timbre de
uma língua ou o ruído de um animal. Apesar disso, é suficiente tê-lo visto
uma vez onde quer que seja para o voltar a reconhecer em qualquer
lado.
Nele se anuncia a linguagem do trabalho, uma linguagem tão
primitiva quanto abrangente, que anseia traduzir-se em tudo aquilo que
pode ser pensado, sentido e querido.
A pergunta pela essência desta linguagem, que surgirá no
observador, sugere a resposta de que esta essência se deve procurar
completamente no mecânico. No entanto, na mesma medida em que o
material da observação se acumula, impõe-se o reconhecimento de que
neste espaço se desvanece a velha distinção entre forças mecânicas e
orgânicas83.
Todas as fronteiras se encontram aqui estranhamente esbatidas,
e seria ocioso querer ponderar se é a vida que sente o ímpeto para se
manifestar mecanicamente, ou se são potências particulares, com um
revestimento mecânico, cujo encanto se começa a espalhar sobre a
substância vital. Ambas as coisas se podem em si desenvolver
coerentemente, com a diferença de que a vida aparece naquela como
activa, inventiva, construtiva, e nesta como passiva e afastada do seu
autêntico âmbito. Contudo, querer raciocinar aqui é apenas sujeitar a
eternamente indecidível pergunta pela liberdade da vontade a uma troca
de campo. Venha o irromper de que regiões vier, e tenha-se de o
confrontar como se tiver — da sua realidade incontornável não pode
121

haver dúvida. Tal torna-se claro em todo o seu alcance se se olhar para o
papel do próprio homem neste espectáculo — independentemente de se
o reconhecer como o seu actor ou como o seu autor.

31.

Certamente — e isso é estranho numa era em que ele surge en


masse — há um esforço particular para ver em geral o homem. É uma
experiência que sempre de novo enche de espanto o caminhante no
meio desta paisagem inaudita, concebida ainda no início do seu
desenvolvimento: que ele a pode atravessar dias inteiros sem que uma
pessoa particular, um rosto humano particular tenha permanecido retido
na sua lembrança.
É certo que está fora de questão que o singular já não apareça,
como na era do absolutismo do príncipe, numa completa plasticidade à
frente do seu pano de fundo natural, arquitectónico e social. Mais
significativo é, no entanto, que também o reflexo desta plasticidade —
que, por meio do conceito da liberdade burguesa, passou para o
indivíduo — se comece a dissolver e que por todo o lado onde é
reivindicado comece a roçar o ridículo. Assim, o fato burguês, e
sobretudo o fato de cerimónia burguês, começa de algum modo a tornar-
se ridículo — do mesmo modo que o exercício dos direitos burgueses,
particularmente do direito de voto, e que as personalidades e
associações através das quais este direito se representa.
Assim, o singular já não se consegue revestir com a dignidade da
pessoa, tão pouco como ele aparece como indivíduo ou como a massa
aparece como soma, como um conjunto contável de indivíduos. Onde
quer que se a possa encontrar é inconfundível que uma outra estrutura
começa a entrar nela. Ela oferece-se à percepção em séries, em

83
Como se torna particularmente claro na observação das mais pequenas e das maiores
122

entrelaçados, em correntes e faixas de rostos que se sucedem de um


modo fulminante, também em colónias como que de formigas cujo
movimento para a frente já não está entregue ao acaso, mas a uma
disciplina automática.
Também em locais onde não é o dever, o negócio, a profissão,
mas a política, o divertimento, o espectáculo que dá a ocasião para a
formação das massas, esta mudança não se pode ignorar. Já não se se
associa, mas marcha-se. Já não se pertence a uma associação ou a um
partido, mas a um movimento ou a um séquito. Independentemente de o
próprio tempo limitar a diferença entre os singulares a uma medida muito
pequena, tem-se ainda uma predilecção particular pelo uniforme, pelo
ritmo dos sentimentos, dos pensamentos e dos movimentos.
Assim, já não pode suscitar admiração no observador que aqui
tenha desaparecido quase qualquer vestígio de uma organização de
estados. Aquilo que ainda se manteve da representação dos estados tem
lugar em ilhas artificiais84. Na vida pública, os gestos, a linguagem, o traje
dos estados suscita admiração, no caso de não se desculparem através
de ocasiões cujo sentido se pode assinalar como atavismo festivo. Os
locais em que a Igreja hoje procura as suas decisões não estão onde o
seu representante aparece de hábito, mas com o traje de plenipotenciário
político85. Do mesmo modo, a guerra não é feita onde se vê o soldado
com o adorno das insígnias do estado cavaleiresco, mas onde serve
imperceptivelmente os volantes e as alavancas das suas máquinas de
combate, onde põe uma máscara e, com invólucros de protecção,
atravessa zonas gaseadas, ou onde, no zumbido dos telefones e no
matraquear dos transmissores de notícias, se dobra sobre os seus
mapas.

formações, como as células e os planetas.


84
Um exemplo para o conceito de ilha artificial: a Igreja à Memória do Imperador Guilherme,
em Berlim.
85
Na emergência da ordem dos jesuítas e do exército prussiano, na sequência da reforma,
apontam-se já, valorizados naturalmente a partir da figura do trabalhador, princípios de
trabalho.
123

Do mesmo modo que já só se pode descobrir vestígios de uma


organização de estados, e da correspondente plenitude das pessoas que
os representam, pode-se observar que a diferenciação dos indivíduos
segundo as classes, castas ou mesmo segundo profissões se tornou,
pelo menos, difícil. Onde quer que se procure ordenar e classificar de
acordo com classes, ética, social ou politicamente, não se está nos
postos decisivos da frente — está-se a movimentar numa província do
século XIX que o liberalismo, numa actividade de décadas, por meio do
direito de voto universal, do dever militar universal, da formação
universal, da mobilidade das propriedades fundiárias e de outros
princípios, nivelou até um grau que deixa aparecer como uma brincadeira
qualquer esforço posterior nesta direcção e com estes meios.
Mas aquilo que talvez não possa ser visto com esta nitidez é a
maneira na qual a diferença das profissões também se começa a
desgastar. À primeira vista, pelo contrário, o observador não se pode
furtar à impressão de uma multiplicidade extraordinária. Contudo, há uma
grande diferença entre o modo de atribuição da actividade através das
velhas corporações86, e o modo em que o trabalho hoje se especializa.
Naquela, o trabalho é uma grandeza estável e divisível; nesta, uma
função que se põe totalmente em relação. Daí que aqui não apenas surja
como trabalho muitas coisas de que antes quase não se podia sonhar,
como o jogar futebol, mas que também um carácter total do trabalho
influencie cada vez mais poderosamente as áreas especializadas. Mas o
carácter total do trabalho é o modo no qual a figura do trabalhador
começa a penetrar o mundo.
Sucede então que, enquanto aumenta o crescimento e a
dispersão de áreas singulares e, deste modo, de profissões, de modos e
possibilidades de actividade, esta actividade, ao mesmo tempo, se
uniformiza e, em cada uma das suas nuances, como que expressa o
mesmo movimento originário. Surge então a imagem de um estranho
124

esforço que se deixa observar através de milhares de pormenores. Dá-se


uma identidade assombrosa dos acontecimentos que, de novo, só se
pode captar no seu alcance completo através do olho de um estrangeiro.
Esta agitação é semelhante às imagens em mutação de uma lanterna
mágica que uma constante fonte de luz ilumina. Como é que Aasvero
pode diferenciar se está presente numa recepção num atelier fotográfico
ou numa investigação numa clínica para doenças internas, se cruza um
campo de batalha ou um terreno industrial; e em que medida se deve
considerar como funcionário o homem que impele os milhões de coisas
que entram num banco ou num serviço de cheques postais para uma
máquina de carimbos, e como trabalhador aquele outro que repete o
mesmo movimento numa máquina perfuradora de uma fábrica de metal?
E sob que pontos de vista se diferenciam a si mesmos os que assim
actuam?
Relacionado com isto está que o conceito de desempenho
pessoal se começa a modificar de um modo incisivo. O fundamento
autêntico deste fenómeno deve ser procurado em o centro de gravidade
da actividade se deslocar do carácter individual do trabalho para o
carácter total do trabalho87. Na mesma medida, torna-se mais inessencial
a que fenómeno pessoal, a que nome se prende o trabalho. Tal não vale
apenas para o acto autêntico, mas para qualquer tipo de actividade em
geral. Deve-se aqui referir o aparecimento do soldado sem nome, do qual
se tem de saber que pertence ao mundo das figuras, mas não a um
mundo da paixão individual.
No entanto, não há apenas o soldado desconhecido, há também
o Chefe do Estado-Maior desconhecido. Para onde quer que o olhar se
dirija, recai sobre um trabalho que é realizado neste sentido anónimo. Tal

86
N. T.: A palavra traduzida aqui por corporações é Gilden, a qual se refere às corporações ou
aos grémios medievais alemães.
87
Daí que fracassem aquelas medidas através das quais a consciência de trabalho individual,
dentro da fábrica, deve ser fortalecida. A necessidade de um trabalho manual estereotipado
não pode ser justificado em nenhum plano em que o prazer ou o não prazer do indivíduo
desempenhe um papel.
125

vale também para áreas com as quais o esforço individual parece estar
numa relação particular e às quais se refere com predilecção — para a
actividade construtiva.
Assim, não apenas a verdadeira origem das mais importantes
invenções científicas e técnicas está frequentemente no escuro, mas
também se multiplica a duplicidade da autoria de um modo que ameaça
o sentido do direito de patente. Este estado é semelhante a um
entrelaçado em que qualquer nova malha é fiada através de um grande
número de fios. É certo que são mencionados muitos nomes, mas esta
menção possui algo acidental. Assemelha-se ao acender-se
momentâneo de um elo de ligação cujos pressupostos estão no escuro.
Há um prognóstico das descobertas que dão à intervenção individual feliz
um carácter secundário: materiais de química orgânica, nunca ainda
vistos e, no entanto, conhecidos até às suas propriedades, estrelas que
estão calculadas mas ainda não estão descobertas por nenhum
telescópio.
Seria, diga-se de passagem, uma tentativa superficial, transferir o
crédito que aqui o singular parece ter perdido para forças colectivas, tais
como institutos científicos, laboratórios técnicos ou companhias
industrias; mais facilmente se poderia tê-lo como uma dívida que é
reembolsada aos inventores do rebanho, da vela ou da espada. No
entanto, mais importante é ver que o carácter total do trabalho rompe
tanto as fronteiras colectivas como as individuais e que é a esta fonte
que se relaciona qualquer conteúdo produtivo do nosso tempo.
Melhor ainda se deixa adivinhar até que grau do processo de
dissolução do indivíduo já se avançou a partir do modo em que a relação
entre os sexos se começa a alterar. Levanta-se aqui a questão de saber
se uma tal mudança é então em geral possível. Certamente não no
sentido em que esta relação pertence às relações elementares, às
relações originárias, tal como o combate. No entanto, pode-se aqui
observar a mesma troca que dá à guerra, na era do trabalhador, um rosto
126

completamente distinto do que na era burguesa — um rosto que, ao


mesmo tempo, traz traços de uma maior sobriedade como de uma mais
forte força elementar.
É neste sentido que se pode dizer que com a descoberta do
indivíduo se ligava a descoberta de um novo amor, ao qual, apesar de
alcançar as profundezas, está dada uma duração. As cores ardentes da
Nova Heloísa88 empalideceram, como as cores ingénuas com que é
retratado o despertar de Paul e Virginie nas suas florestas virgens, e já
nenhum chinês pinta “num copo, com uma mão minuciosa, Werther e
Lotte”. Também isto se tornou nos bons velhos tempos, e este
conhecimento apresenta-se ao homem, como qualquer conhecimento
deste tipo, como um processo de empobrecimento.
Quando Aasvero abandona as grandes cidades para caminhar
pela paisagem, torna-se a testemunha de um novo regresso à natureza.
Encontra os cursos dos rios, os lagos, as florestas, as costas do mar e as
encostas nevadas dos montes colonizados por estirpes cuja ocupação
lembra a vida dos índios, dos insulares dos mares do sul ou dos
esquimós.
Esta já não é aquela natureza que se gozava nas pequenas
fazendas e casas de caça, a mil passos de Trianon89, nem também
aquele “céu mais azul” de Itália, daquela Florença em que o indivíduo
burguês parasitava os corpos e os membros da renascença.
Deve ser antes caracterizada como um modo particular do novo
sansculottism90, como um fenómeno que é consequência necessária da
democracia, tal como já encontrou a sua anterior expressão nas Folhas
de Erva91. Também aqui está formada uma epiderme niilista — higiene,
cultos solares superficiais, desporto, cultura do corpo, numa palavra: um

88
N. T.: Jünger refere-se ao livro de Rousseau Joulie ou la nouvelle Hélouise, de 1761.
89
N. do T.: O Grand e Petit Trianon são villas, situadas nos jardins do Palácio Real de
Versailles.
90
N. do T.: O termo sansculottism refere-se aos movimentos das camadas mais miseráveis na
França revolucionária.
91
N. do T.: Jünger refere-se às poesias de Walt Whitman, no livro intitulado Leaves of Grass,
publicado em 1855.
127

ethos de esterilidade que não merece consideração, tal como é em geral


característico para este tempo um estranho equívoco entre a sucessão
rigorosa dos factos e as fundamentações morais e ideológicas que os
acompanham. Seja como for, torna-se claro que aqui já não se pode falar
de relações entre indivíduos.
As características a que é dado valor modificaram-se; elas
determinam-se por aquela natureza mais simples e mais estúpida que
remete para aqui começar a estar viva uma vontade de formação da raça
— uma vontade de educar um tipo determinado, cujo equipamento é
mais unido e proporcionado às tarefas dentro de uma ordem que o
carácter total do trabalho determina. Relacionado com isto está que as
possibilidades da vida em geral diminuam numa medida crescente, no
interesse de uma única possibilidade que, por assim dizer, consome
todas as outras e corre para o estado de uma ordem de aço. Este futuro
cria a raça de que precisa, e basta espreitar as crianças nos seus jogos
para saber que se podem esperar delas estranhas coisas.
Pode não se dar relevância à vontade de infecundidade se se
lembrar de procurar a vida onde ela é o mais forte possível — quem
duvidaria então do destino daquilo que aqui perece? Tal é um dos modos
em que o indivíduo morre, e talvez o menos colorido; a sua
fundamentação é de natureza individual, a sua prática digna de louvor.
No entanto, aquilo que, sob o deserto dos debates jurídicos e médicos,
ainda não pode ser suspeitado no seu completo alcance é a
possibilidade de novas e temíveis intromissões do Estado na esfera
privada, as quais estão iminentes sob a máscara da solicitude higiénica e
social.
Um desenvolvimento que parecia prometer, ainda na viragem do
século, uma nova Sodoma e Gomorra, um mais extremo refinamento das
fibras nervosas, começa então a tomar uma mudança tão surpreendente
como muitos outros. A Paris deste tempo, com a sua exportação de
roupas, comédias, romances morais e sociais tornou-se, de algum modo,
128

província; aqui, o burguês viajante procura divertir-se, tal como em


Florença se procura formar.
Do mesmo modo, o boémio, com os seus jornais e cafés, com a
sua veia artística dos pensamentos e dos sentimentos tornou-se num
perfil provinciano; ele adoece com a sociedade burguesa, de cuja
substância é completamente dependente seja qual for a posição da sua
negação que possa detectar. Ainda no primeiro terço do século XX,
vemo-lo a obrar com meios de subtileza microscópica; na descrição de
processos de doença e decomposição, de aberrações e de oníricas
paisagens fantasmagóricas, realiza um processo que se pode assinalar
como aniquilação através do polimento. Também na profissão paralela
dele derivada, na crítica da sociedade, alcançou um grau absurdo de
consequência; vê-se com espanto posto em movimento o velho e usado
aparelho para assegurar a cabeça, a existência individual de um
qualquer assassino que mata para roubar ou para violar, enquanto povos
inteiros estão em solo vulcânico e a vida que surge se estraga em
centenas de milhares de sementes.
Aquilo que neste contexto há a dizer sobre a arte e a política
exige exposições particulares. Esta incursão deve, à partida, ser
suficiente para indicar aquilo que aqui deve ser compreendido como a
dissolução do indivíduo. Um caminho informativo através de um qualquer
dos nossos campos de observação comprovará e abastecerá o que foi
dito com um qualquer material.
O modo como o indivíduo morre tem muitos matizes — desde os
tons variados em que a linguagem do poeta, o pincel do pintor esgota as
últimas possibilidades à beira da ausência de sentido, até ao cinzento da
nua e quotidiana vida de miséria, da morte económica, tal como a
inflação, um curso monetário anónimo e demoníaco, uma guilhotina
invisível da existência económica a preparou para incontáveis vítimas
desconhecidas.
129

Manifesta-se aqui a intervenção da verdadeira revolução, da


revolução que está de acordo com o ser, a qual encontra tanto o que é
mais visível como o que é mais escondido e diante da qual qualquer tipo
de dialéctica revolucionária aparece como insípida.

32.

O palco em cujas fronteiras o declínio do indivíduo se cumpre é a


existência do singular. É uma questão de segunda ordem a de saber se
aqui a morte do indivíduo coincide com a morte do singular, tal como
acontece através do suicídio ou através do aniquilamento, ou se o
singular sobrevive a esta perda e ganha ligações a novas fontes de força.
Este processo, que hoje se pode apontar como experiência
também na mais pequena existência, oferece-se com clareza particular
no modo como a guerra formou o destino do singular.
Lembre-se aqui o famoso ataque dos regimentos de voluntários
de guerra em Langemarck92. Este acontecimento, que possui um
significado menos guerreiro do que histórico-espiritual, está em relação à
questão acerca de que atitude de elevada dignidade é em geral possível
no nosso tempo e no nosso espaço. Vemos aqui desmoronar-se um
ataque clássico, independentemente da força da vontade de poder que
anima os indivíduos, e dos valores morais e espirituais pelos quais ela é
marcada. A vontade livre, a formação, o entusiasmo e a embriaguês do
desprezo pela morte não são suficientes para superar a gravitação dos
poucos cem metros em que governa o encanto da morte mecânica.
Dá-se assim a imagem peculiar, verdadeiramente
fantasmagórica, de um morrer no espaço da ideia pura, de um declínio
em que, como num pesadelo, nem o esforço absoluto da vontade
consegue impulsionar uma resistência demoníaca.

92
N. do T.: Langemarck é uma vila belga onde decorreu um dos mais sangrentos episódios da
Primeira Guerra Mundial.
130

O obstáculo que aqui ordena a paragem também ao bater do


mais ousado coração não é o homem numa actividade qualitativamente
superior — é o emergir de um novo e temível princípio que aparece como
negação. O abandono em que se cumpre aqui o destino trágico do
indivíduo é a imagem simbólica do abandono do homem num novo
mundo, não investigado, cuja lei de aço é sentida como carente de
sentido.
Este acontecimento só é novo com base na sua superfície
guerreira; nele repete-se em segundos um processo de aniquilação que
já ao longo de um século se podia observar no indivíduo significativo —
nos portadores daqueles orgãos mais subtis que já anteriormente
sucumbiam ao sopro de um ar em que a consciência universal ainda
sentia o sentimento de boa saúde. Anunciava-se aqui a extinção de uma
espécie humana particular, no ataque aos seus postos avançados. Mas
os sentimentos do coração e os sistemas do espírito são refutáveis,
enquanto um objecto é irrefutável — e um tal objecto é a metralhadora.
Aquilo que subjaz, no seu núcleo, ao acontecimento de
Langemarck é a entrada de uma oposição cósmica que constantemente
se repete quando a ordem mundial está abalada, e que se expressa aqui
nos símbolos de uma era técnica. É a oposição entre fogo solar e
telúrico, que aparece aqui como chama espiritual e ali como terrena,
como luz ou como fogo — um intercâmbio de juramentos entre os
“cantores nas colinas sacrificiais” e as forjas que têm ao serviço as forças
dos metais, do ouro e do ferro. Os portadores da ideia — que, afastada
dos arquétipos, se tornou numa imagem mais bonita — são deitados ao
chão pela matéria, pela mãe das coisas. Mas é este contacto que,
segundo a lei mítica, os dota de novas forças. Aquilo que morre, aquilo
que cai, é o indivíduo enquanto representante de uma ordem
enfraquecida e destinada ao declínio. O singular tem de passar através
desta morte, independentemente de o seu percurso visível à vista ser ou
131

não acabado através dele, e é uma bela visão quando não se desvia
dele, mas deseja procurá-lo no ataque.

33.

Voltemo-nos então para a diferença significativa que existe entre


este escol tardio da juventude burguesa e aquele tipo de combatentes
que foi formado pela própria guerra e que no decurso das suas últimas
grandes batalhas se pode observar numa cunhagem cada vez mais
intensa. Deparamos aqui, nos centros de força escondidos a partir dos
quais se realiza a dominação da zona de morte, com uma humanidade
que se desenvolveu em exigências novas e peculiares.
Nesta paisagem, na qual só muito dificilmente o singular se pode
descobrir, o fogo ocupou tudo aquilo que não possui carácter objectivo.
Nos seus acontecimentos manifesta-se um máximo de acção num
mínimo de porquê e para quê. Qualquer tentativa de ainda a harmonizar
com uma esfera individual, matizada de romantismo ou idealismo,
desemboca imediatamente no sem sentido.
A relação à morte modificou-se; a sua mais extrema proximidade
prescinde de qualquer sentimento que ainda possa ser interpretado como
carácter solene. O singular é atingido pelo aniquilamento em instantes
preciosos nos quais está submetido a um máximo de exigências vitais e
espirituais. A sua força de combate não é de nenhum valor individual,
mas de um valor funcional; já não se cai, mas fica-se fora de uso93.
Também aqui se pode observar como o carácter total do trabalho,
que neste caso aparece na sua propriedade de carácter total do
combate, se expressa num sem número de modos especiais de
combater. No tabuleiro de xadrez da guerra apareceu um grande número

93
N. do T.: Nesta expressão, os verbos traduzidos por cair e por ficar fora de uso,
respectivamente fallen e ausfallen, têm uma relação possibilitada pela identidade do radical
cuja conservação é impossível em português.
132

de novos perfis, enquanto se simplificou o modo de jogar. A medida da


eticidade do combate, cuja lei fundamental permanece a mesma para
todos os tempos — matar o inimigo —, começa cada vez mais
inequivocamente a ser idêntica à medida na qual o carácter total do
trabalho pode ser realizado. Tal vale tanto para o campo de efeitos dos
Estados combatentes como para o dos singulares que combatem.
Tornaram-se aqui história imagens de uma suprema disciplina do
coração e dos nervos, as quais se podem pôr, como iguais, ao lado das
melhores tradições — provas de uma frieza extrema, austera e como que
metálica, a partir das quais a consciência heróica sabe tratar o corpo
como puro instrumento e arrancar-lhe, para além das fronteiras do
instinto de auto-conservação, ainda uma série de desempenhos
complicados. No turbilhão em chamas dos aviões abatidos, nos
compartimentos estanques dos submarinos afundados no fundo do mar,
tem ainda lugar um trabalho que autenticamente está já além do círculo
da vida, de que não há registo e que se pode caracterizar, em sentido
eminente, como travail pour le Roi de Prusse.
Deve-se reparar particularmente em que estes portadores de uma
nova força de combate só se tornam visíveis nas partes mais tardias da
guerra, e em que a sua alteridade emerge na mesma medida em que se
decompõe a massa dos exércitos formados segundo os princípios do
século XIX. Também se os encontra sobretudo onde a peculiaridade da
sua era já se expressa com particular clareza no emprego dos meios:
nas esquadrilhas terrestres e aéreas, nas tropas de assalto em que a
infantaria, em desagregação e desmoralizada pelas máquinas, ganha
uma nova alma, e nas partes da frota que se endureceram no hábito do
ataque.
Também se modificou o rosto que olha o observador sob o elmo
de aço ou o capacete de protecção. Como se pode observar numa
reunião ou numa fotografia de grupo, na escala das suas apresentações,
perdeu em variedade e, com isso, em individualidade, enquanto ganhou
133

em intensidade e determinação da cunhagem singular. Tornou-se


metálico, como que galvanizado na sua superfície, a ossatura mostra-se
claramente, os traços são poucos e intensos. O olhar é calmo e fixo,
treinado na consideração de objectos que se têm de captar em estados
de alta velocidade. Este é o rosto de uma raça que se começa a
desenvolver sob as peculiares exigências de uma nova paisagem e que
o singular não representa como pessoa ou como indivíduo, mas como
tipo.
Pode-se reconhecer a influência desta paisagem com a mesma
segurança com que se pode reconhecer a influência das regiões
naturais, florestas virgens, montes ou costas. As características
individuais retrocedem cada vez mais para trás do carácter de uma
legalidade sobreposta, para trás de uma tarefa completamente
determinada.
Assim, por exemplo, por volta do fim da guerra, torna-se cada vez
mais difícil diferenciar o oficial, porque a totalidade do processo de
trabalho esbate as diferenças de classes e de estado. Por um lado, a
actividade do combate cria dentro da tropa uma espécie unida de
capatazes experimentados; por outro, multiplicam-se as importantes
funções cuja atribuição torna indispensável um escol de novo tipo. Assim,
a aviação, e em particular a aviação de combate, não é nenhuma
ocupação que seja conforme ao estado, mas uma ocupação que é
conforme à raça. O número dos singulares que numa nação são capazes
de tão elevados desempenhos é tão limitado que a pura aptidão tem de
bastar como legitimação. Nos métodos psicotécnicos vemos uma
tentativa de captar este facto com meios científicos.
Esta mudança não apenas se pode observar no âmbito do
trabalho concreto de combate; ela irrompe também nas áreas de um
comando mais elevado. Assim, há inteligências que são especialmente
aptas para a execução de quadros de combate muito determinados,
como o combate defensivo de grande estilo, e que já não estão activas
134

no fundo das unidades do exército próprio, mas surgem em funções


estrategicamente onde quer que, na extensão da frente, se comece a
desenvolver a imagem abstracta de um tal processo de batalhas. São
desempenhos de aptidões quase sempre desconhecidas, cujo valor
típico ultrapassa, em larga medida, o valor individual.
Mas também abstraindo de tais fenómenos puramente militares,
torna-se cada vez mais difícil determinar em que lugares é realizado um
trabalho de guerra decisivo. Tal expressa-se particularmente em no curso
da própria guerra aparecerem surpreendentemente novos géneros de
armas e de procedimentos de combate, o que de novo pode ser tido
como sinal do facto sobreposto de que a frente de guerra e a frente de
trabalho são idênticas. Há tantas frentes de guerra quanto frentes de
trabalho; daí que se multiplique o número dos especialistas na mesma
medida em que a sua actividade começa a tornar-se mais inequívoca,
isto é, expressão do carácter total do trabalho. Também isto contribui
para a inequivocidade do tipo através do qual a espécie humana decisiva
se manifesta.
Mesmo que através destas mudanças a substância humana, no
seu conjunto, não possa permanecer intocada, o número dos
representantes activos do processo de trabalho, como já indicámos, é
limitado. Vemos aqui surgir um tipo de guarda, uma nova espinha dorsal
das organizações combatentes — um escol que também se pode
caracterizar como ordem. O tipo cunha-se numa clareza particular nos
focos em que se concentra o sentido do acontecer. Vemos aqui já mais
claramente porque é que o esboço de uma nova relação ao elementar, à
liberdade e ao poder era necessário como esboço de afirmação de um
ser determinado segundo a raça, segundo a vontade e segundo a
capacidade. Os princípios do século XIX, particularmente a formação
universal e o dever militar universal, não são suficientes para realizar a
mobilização nos seus últimos e mais duros graus. Tornaram-se numa
plataforma sobre a qual se começa a erguer um nível diferente.
135

34.

Voltemo-nos, no entanto, para as grandes cidades, nas quais o


processo decisivo não se observa menos claramente. Certamente que o
temos de procurar onde já aparece visivelmente. Já notámos que o
singular desaparece dentro do processo no seu conjunto; vê-lo requer
um grande esforço. A razão disso não é apenas que ele só en masse se
possa observar.
Em vez disso, a massa, neste sentido, desaparece das cidades,
tal como desapareceu dos campos de batalha onde apareceu com as
guerra revolucionárias. Ao processo de dissolução a que o indivíduo
singular está submetido não se pode furtar também o conjunto dos
indivíduos, na medida em que aparece como massa.
A velha massa, tal como se corporizava na multidão dos
Domingos e feriados, na sociedade, nas assembleias políticas como
factor de voto e de adesão ou na revolta das ruas, a massa tal como se
juntou diante da Bastilha, cujo peso de impacto brutal, em cem batalhas,
foi lançado no prato da balança, cujo júbilo ainda abalava as metrópoles
no rebentar da última guerra e cujo exército cinzento, na desmobilização,
se perdeu por todos os cantos como um fermento de decomposição: a
massa pertence ao passado, tanto quanto quem quer que ainda se lhe
refira como a uma grandeza decisiva. Do mesmo modo que ela, quando
procurava furar as barreiras ardentes das frentes de combate do século
XX, na sua propriedade de massa, recebia uma lição mortal com um
pequeno dispêndio de forças, foram-lhe preparados desde aí alguns
Tannenberg94 a que não se liga nem lugar nem nome.
Os movimentos da massa, por todo o lado onde lhe é contraposta
uma atitude realmente decidida, perderam o seu irresistível encanto —
136

de modo semelhante a como dois ou três velhos guerreiros, atrás de uma


metralhadora intacta, também não se perturbam pela informação de um
batalhão inteiro estar a avançar. A massa já não é hoje capaz de atacar;
já não é sequer capaz de se defender.
Este facto torna-se palpável em muitos fenómenos, como é o
caso das assembleias, na forma como são convocadas no nosso tempo
pelos partidos. Tais assembleias foram anteriormente vigiadas pela
polícia; hoje até se pode dizer que a polícia assume o papel de
protectora. Esta relação torna-se mais clara onde a massa começa a
separar orgãos próprios de autoprotecção, tais como foram formados,
depois da guerra, como esquadrilhas de protecção95, como protecção
dos espaços públicos ou sob outras designações. Dez milhares precisam
de algumas centenas para a sua protecção, e descobrir-se-á que nestas
poucas centenas se expressa uma espécie humana completamente
diferente do que a representada pelo indivíduo que se reúne como
massa.
Juntamente com isto, surge o facto mais abrangente de o papel
dos partidos de velho estilo, na sua propriedade e tarefa de grandezas
formadoras de massas, estar no essencial acabado. Quem hoje ainda se
ocupa com a formação de tais grandezas, lida com desvios políticos.
Aqui os indivíduos são amontoados como areia numa colina que também
se desfaz como areia.
Estes fenómenos assentam particularmente em a massa não se
transformar na mesma medida do que se pode observar em âmbitos
singulares, como o da organização policial, nos quais, pelo menos, o
carácter especializado do trabalho já se desenvolveu mais claramente.
Esta transformação, ou antes, a substituição da massa por grandezas de
um novo tipo, cumprir-se-á seja como for, do mesmo modo como, no

94
N. do T.: Em Agosto de 1914, em Tannenberg, o exército alemão esmagou as tropas do
exército russo, as quais eram muito superiores em número.
95
N. do T. A expressão esquadrilhas de protecção traduz aqui as Schutzstaffeln, mais
conhecidas pela sigla SS.
137

primeiro terço do século XX, já se cumpriu em relação às representações


físico-químicas da matéria. A existência da massa está ameaçada na
mesma medida em que o conceito de segurança burguesa se tornou
enganador.
O tráfego, o cuidado das mais elementares carências, como fogo,
água e luz, um sistema de crédito desenvolvido e muitas outras coisas
das quais ainda se falará assemelham-se a finas cordas, a veias a
descoberto, com as quais o corpo amorfo da massa está ligado à morte e
à vida. Este estado incita necessariamente à intervenção monopolista,
capitalista, sindicalista ou também criminosa, a qual ameaça os milhões
da população, através de todos os graus de carência, até ao terror do
pânico. Nenhuma decisão da massa determina o aumento anónimo dos
preços, a protecção da moeda, o modo de pagamento de tributos, o
misterioso magnetismo da corrente de ouro. Ao mais elevado aumento
do alcance das armas, que já ameaça numa questão de horas
metrópoles indefesas, corresponde uma técnica da subversão política
que já não procura lançar as massas na rua, mas apoderar-se, com
tropas de assalto decididas, dos pontos que constituem o coração e o
cérebro das cidades que têm o governo. A ele corresponde também o
equipamento da polícia com meios cujo efeito consegue pulverizar dentro
de segundos qualquer massa insubordinada. O grande crime político já
não é dirigido contra os representantes pessoais ou individuais do
Estado, contra ministros, príncipes ou representantes dos estados, mas
contra pontes de comboio, antenas de rádio ou depósitos industriais.
Atrás dos métodos individuais dos anarquistas sociais, por um lado, e,
por outro lado, do terror de massas, anunciam-se novas escolas do acto
político violento.
Mas tudo isto, o detalhe através do qual o espaço vital da massa
do século XIX é diminuído, torna-se visível de um modo puramente
fisionómico num passeio de observação por um qualquer quarteirão de
uma grande cidade — no que novamente se tem de tornar claro que
138

também esta “nossa” cidade, cujo crescimento foi certamente formado


através destas massas, pertence aos fenómenos da passagem.
Tudo isto se pode então observar na falta de atenção com que o
transeunte é posto de lado como uma espécie em extinção pelos meios
de transporte, assim como na velocidade assombrosa com que qualquer
tipo de sociedade, como a dos espectadores de teatro, se dispersa na
agitação das ruas.
As imagens de cidades inteiras estão cobertas por um sentimento
de decomposição, tal como já se anunciava no romance naturalista,
através de um optimismo superficial, e tal como então se torna mais claro
e mais desesperado numa série de estilos fugazes em declínio, como um
amarelecimento colorido, um esgotamento, uma deformação explosiva
ou uma objectividade esquelética.
Nas ermas paisagens de Manchester do Leste, nos xadrezes
poeirentos da City, nas vivendas dos arredores do Oeste, nas casernas
dos proletários do Norte e nos pequenos quarteirões burgueses do Sul, é
um e o mesmo acontecimento que se espelha em vários matizes.
Esta indústria, este negócio, esta sociedade estão votados ao
declínio, cujo bafo brota de todas as fendas e articulações do conjunto
desagregado. Aqui o olhar encontra novamente a paisagem das batalhas
de materiais com todas as características de um clima mortal. É certo
que os salvadores estão a obrar, e que a velha luta entre as escolas
individualista e socialista, isto é, o grande diálogo do século XIX consigo
mesmo, se reacendeu num novo plano, mas isso nada muda no velho
ditado segundo o qual não há remédio contra a morte.
Não é então dentro desta massa que procuramos o singular.
Encontramos aqui apenas o indivíduo em declínio, cujos sofrimentos se
sepultaram em dez milhares de rostos e cuja visão enche o observador
com um sentimento de carência de sentido, de fraqueza. Vê-se os
movimentos tornarem-se mais débeis, tal como numa vasilha cheia de
infusões em que caiu uma gota de ácido clorídrico.
139

Se este processo se realiza sem rumor ou de um modo


catastrófico, é uma diferença na forma, mas não na substância.

35.

São antes contextos de outro tipo dentro dos quais se começa a


anunciar o novo tipo, a espécie do século XX.
Vemo-lo emergir dentro de formações aparentemente muito
diferenciadas que se podem assinalar, muito em geral, como construções
orgânicas. Estas formações, de um modo que ainda não é claro, elevam-
se acima do nível do século XIX, do qual, no entanto, se devem
diferenciar completamente. A sua característica comum consiste em
nelas o carácter especializado do trabalho ser a maneira na qual a figura
do trabalhador se expressa de um modo organizador — na qual ela
ordena e diferencia a substância vital.
No curso da investigação, abordámos já algumas de tais
construções orgânicas nas quais o mesmo poder metafísico, a mesma
figura que, enquanto técnica, mobiliza a matéria, começa doravante a
submeter também as unidades orgânicas. Considerámos então o escol
que ganha influência no processo de combate, através do caminho
monótono das batalhas de materiais, os novos tipos de forças que
quebram os aparelhos partidários, ou as comunidades de camaradagem
no seu operar, que é tão diferente dos encontros da velha sociedade
como uma plateia de teatro de 1860 é diferente das filas de espectadores
de um cinema ou de um ringue de desporto.
Que as forças que provocam tais agrupamentos se tornaram
diferentes, tal anuncia-se já de muitos modos numa mudança dos
nomes. “Desfile” em vez de “reunião”, “séquito” em vez de “partido”,
“campo” em vez de “congresso” — expressa-se assim que a decisão
voluntária de uma série de indivíduos já não é considerada como o
140

pressuposto implícito do encontro. Este pressuposto desperta antes já o


insignificante ou o ridículo, tal como se torna claro em palavras como
“união”, “reunião” e outras.
A uma construção orgânica não se pertence através da decisão
da vontade individual, ou seja, através do exercício de um acto da
liberdade burguesa, mas através de um entrelaçamento fáctico que o
carácter especializado do trabalho determina. Assim, para escolher um
exemplo banal, é tão fácil entrar num partido ou sair dele como é difícil
sair de associações do tipo daquelas a que se pertence enquanto
receptor da corrente eléctrica.
É esta mesma diferença entre uma participação pela
mundividência e uma participação substancial que provoca que um
sindicato possa ascender à dignidade de uma construção orgânica,
enquanto isso é impossível ao partido que lhe está intimamente ligado. O
mesmo vale para os novos tipos de organizações políticas de combate,
cuja oposição aos partidos que nelas procurem criar orgãos muito em
breve se tornará visível.
Um meio simples para verificar em geral até que ponto se é
ocupado ainda pelo mundo do século XIX consiste em investigar quais
das relações em que nos encontramos são e quais não são rescindíveis.
Um dos esforços do século XIX, correspondendo à concepção
fundamental segundo a qual a sociedade surgiu através do contrato,
desemboca na mudança de qualquer relação possível numa relação
contratual rescindível. Assim, atingiu-se consequentemente um dos
ideais deste mundo quando o próprio indivíduo pode por si mesmo
rescindir o seu carácter da sua estirpe, ou seja, quando o pode
determinar ou mudar através de uma simples inscrição no registo dos
estados.
Daí que a greve e o despedimento, a aplicação explosiva da
rescisão enquanto meio supremo no combate económico, pertençam ao
procedimento da sociedade do século XIX tão evidentemente como são
141

inadequados ao rigoroso mundo do trabalho do século XX. O sentido


secreto de qualquer combate económico do nosso tempo desemboca em
elevar a economia, também na sua totalidade, à dignidade de uma
construção orgânica, como a qual é furtada à iniciativa tanto do indivíduo
isolado como também do indivíduo que emerge en masse.
Mas tal só pode acontecer se a espécie humana, que não se
pode de todo conceber noutras formas que não nestas, se extinguiu ou
estiver constrangida a extinguir-se.
142

A RENDIÇÃO DO INDIVÍDUO BURGUÊS


PELO TIPO DO TRABALHADOR

36.

Se agora captarmos com o olhar o tipo, o pioneiro nascido de


uma nova paisagem, tal como se nos depara dentro de uma configuração
de novo tipo, isso tem de acontecer sob a renúncia a qualquer modo de
valorização que esteja fora do campo de visão. O único modo de
valorização que aqui está em questão deve ser procurado dentro do
próprio tipo, e isso de um modo vertical, no sentido de uma hierarquia
própria, e não de um modo horizontal, em comparação com quaisquer
fenómenos de um outro espaço ou de um outro tempo. Já indicámos que
é incontestável um processo de empobrecimento. Ele repousa no facto
fundamental de a vida se consumir a si mesma, tal como acontece dentro
da crisálida em que a imago consome a lagarta.
Trata-se de conquistar um ponto de observação a partir do qual
os locais de perda possam ser vistos como a massa rochosa que se
perdeu durante a formação de uma estátua de pedra. Chegámos a uma
parte em que a história do desenvolvimento se torna impotente, se não
for empreendida com sinais invertidos; isto é, empreendida a partir de
uma perspectiva a partir da qual a figura, enquanto ser não submetido ao
tempo, determina o desenvolvimento da vida em devir. Mas aqui
descobrimos uma mudança que a cada passo ganha em inequivocidade.
Esta inequivocidade expressa-se também no tipo, no qual a
mudança se começa a anunciar, e a primeira impressão que suscita é a
143

de um certo vazio e uniformidade. É esta mesma uniformidade que torna


muito difícil a diferenciação individual dentro de uma substância de raças
estranhas, animais ou humanas.
Aquilo que à partida se mostra, de um modo puramente
fisionómico, é a rigidez do rosto, como uma máscara, que é tanto
adquirida como acentuada e aumentada através de meios exteriores,
como a ausência de barba, o penteado e um chapéu justo. Que neste
carácter de máscara, que desperta nos homens uma impressão metálica,
nas mulheres uma impressão cosmética, venha à luz um processo muito
incisivo, pode-se concluir já de ele mesmo conseguir polir as formas
através das quais o carácter dos sexos se torna fisionomicamente visível.
Não é por acaso, diga-se de passagem, o papel que desde há pouco a
máscara recomeça a desempenhar na vida quotidiana. Ela aparece de
modos variados em locais onde irrompe o carácter especializado do
trabalho, seja como máscara de gás, com a qual se procura equipar
populações inteiras, seja como máscara de rosto para o desporto e para
altas velocidades, tal como a possui qualquer automobilista, seja como
máscara de protecção no trabalho num espaço ameaçado por radiações,
explosões ou difusão de narcóticos. É de supor que caiba ainda à
máscara tarefas inteiramente diferentes daquelas que se pode hoje
suspeitar — no contexto de um desenvolvimento dentro do qual a
fotografia adquire a dignidade de uma arma política de ataque.
Este carácter de máscara não se pode apenas estudar na
fisionomia do singular, mas em todo o seu perfil. Assim, pode-se
observar que é dedicada grande atenção ao exercício do corpo, um
exercício completamente determinado e planeado, o training. Nos últimos
anos multiplicaram-se as ocasiões através das quais o olhar se habitua à
visão de corpos mais nus, cultivados de um modo muito uniforme.
A direcção deste processo torna-se mais clara na mudança que
se realiza em relação ao vestuário. O traje burguês, que se manteve da
mesma forma por cento e cinquenta anos e que, no seu significado, pode
144

ser tomado como a reminiscência informal das velhas fardas dos


estados, começa a tornar-se de algum modo absurdo em qualquer dos
seus pormenores. Que nunca se tomou este traje inteiramente a sério,
isto é, que nunca se lhe concedeu a dignidade de uma farda, resulta de
se procurar evitá-lo em todo o lado onde ainda se pôde manter uma
consciência do estado no sentido antigo, ou seja, onde se combateu,
onde se exerceu um cargo administrativo, onde se pregou ou onde se
julgou.
No entanto, uma tal representação tinha de estar numa oposição
necessária à consciência dominante da liberdade burguesa. Daí também
que na segunda metade do século XIX se torne impossível abrir um
jornal satírico sem que se se depare com as apresentações da toga, do
hábito, da sotaina ou do casaco de pele de arminho, cuja intenção
desemboca na prova de que os portadores destas fardas não são
pertencentes ao reino humano, mas a um qualquer reino de animais ou
de marionetes. Não se pode ir ao encontro de tais ataques da ironia se
se abandonou os meios do patíbulo ou do fogo. Daí que a farda se
comece cada vez mais a restringir ao campo do uso interno ou da
ocasião extraordinária; evita a vida pública que ganha influência de dia
para dia, sob a influência dos meios de transporte, da liberdade de
imprensa, da fotografia.
Por volta do fim do século, é exercido o acto decisivo da
inscrição, por um funcionário do estado em vestuário burguês, das partes
da vida elementar no registo público; anuncia-se aqui uma vitória que o
Estado-Nação alcançou sobre a Igreja, com a aplicação de meios
liberais. Nos parlamentos continentais do século XIX é desconhecida
uma toga parlamentar particular; o vestuário burguês segue unido da ala
direita à ala esquerda. Para as grandes sessões no Verão de 1914, uma
parte dos deputados aparece de uniforme; depois da guerra, emergem
facções inteiras em fardas particulares de uma uniformidade militar.
Também os ministros não se destacam particularmente, se se quiser
145

abstrair de excepções tais como o uniforme de general que está à


disposição do Presidente do Conselho de Ministros prussiano. A fuga da
representação torna-se universal e assume formas estranhas. Onde se
se expõe à vida pública, gosta-se de o fazer discretamente ou em partes
da esfera privada e íntima. Evita-se mostrar uma outra qualidade que não
a de indivíduo. Mostra-se à massa como se come e bebe, e o que se faz
no desporto ou nas casas de campo; surgem aquelas imagens em que o
ministro aparece em fato de banho, o monarca constitucional em traje de
rua e num ambiente ligeiro de conversa.
No começo do século, a decadência no modo como as massas se
vestem corresponde à decadência da fisionomia individual. Talvez não
haja nenhum outro tempo em que se se encontra tão mal e
absurdamente vestido como agora. Esta visão desperta a impressão de
que é como se a substância de imensas feiras da ladra se espalhasse
sobre as ruas e as praças numa enorme variedade, e aí fosse nivelada
com uma dignidade grotesca. Já se sentiu isto de muitos modos antes da
guerra e, como se pode observar dentro do movimento juvenil alemão, já
se tentou alterá-lo. Esta tentativa, no entanto, por causa da atitude
romântico-individualista que lhe estava subjacente, estava condenada ao
fracasso.
Diga-se de passagem, o vestuário burguês faz uma figura infeliz
particularmente no alemão. Daqui se explica que se o “reconheça” no
estrangeiro com uma segurança infalível. A razão deste muito notório
fenómeno está em que, no mais íntimo, lhe falta qualquer relação à
liberdade individual e, deste modo, à sociedade burguesa. Tal expressa-
se também na atitude. Daí que onde se o encontra no papel do viajante
por divertimento ou do viajante em comitiva, ele desperta a impressão de
um peculiar embaraço e de uma particular desarticulação: falta-lhe
urbanidade.
No entanto, estas coisas mudam-se por todo o lado onde se nos
depara o singular já dentro das construções orgânicas, ou seja, em
146

contacto imediato com o carácter especializado do trabalho. Temos aqui


de trazer de novo à memória que este carácter do trabalho nada tem a
ver com a profissão ou com a actividade operante, no sentido antigo,
mas que possui o significado de um novo estilo, de um novo modo no
qual a vida em geral aparece.
Neste sentido, o vestuário burguês tornou-se civil, o qual já não
se encontra em geral onde o estilo de trabalho começa a romper, isto é,
onde hoje uma coisa é tratada com seriedade real. Já se pode falar aí de
uma farda típica de trabalho, de uma farda que possui o carácter de um
uniforme na medida em que o carácter do trabalho e o carácter do
combate são idênticos.
Talvez em nenhum lugar se possa observar isto melhor do que na
mudança que se realiza em relação ao próprio uniforme, na mudança
cujo primeiro sinal se anuncia em as cores variadas da farda se
reduzirem aos matizes monótonos da paisagem do combate. Este é um
dos símbolos em que a dissolução do estado guerreiro se torna visível, e
ele aparece, como todos os símbolos do nosso tempo, sob a máscara de
uma legalidade absoluta. O desenvolvimento desemboca em o uniforme
do soldado aparecer cada vez mais inequivocamente como um caso
especial do uniforme de trabalho. Falta aqui também a diferença entre o
uniforme de guerra e de paz ou de parada. A parada é a imagem
simbólica da suprema preparação para a guerra e, enquanto tal, expõe
os últimos e mais eficazes meios do tempo.
A farda de trabalho não é uma farda de estado, tão pouco como o
próprio trabalhador deve ser tomado como o representante de um
estado. Muito menos se pode considerá-la como uma característica de
classe, ou seja, como a farda do proletariado. O proletariado, neste
sentido, é a massa de estilo antigo, tal como a sua fisionomia individual é
a do burguês sem colarinho. Representa um conceito económico-
humanitário muito vago, mas não uma construção orgânica, ou seja, um
147

símbolo da figura — do mesmo modo que o proletário deve ser tomado


como indivíduo sofredor, mas não como tipo.
Enquanto o vestuário burguês se desenvolveu com base nas
velhas fardas dos estados, a farda de trabalho ou o uniforme de trabalho
indicam um carácter em si autónomo e completamente diferente; elas
pertencem às marcas exteriores de uma revolução sans phrase. A sua
tarefa não é a de realçar a individualidade, mas a de acentuar o tipo —
daí também que apareçam por todo o lado onde se formam novas
equipas, seja na área do combate, do desporto, da camaradagem ou da
política. Do mesmo modo, tornam-se visíveis nas muitas ocasiões onde
se pode falar de uma equipagem96, ou seja, onde o homem pode ser
visto numa estreita união — numa união centáurica — com os seus
meios técnicos. É manifesto que se multiplicam as ocasiões em que se
torna exigível uma farda especial. Mas o que talvez ainda não seja tão
manifesto é o facto de que, debaixo da soma destas ocasiões, se
esconde o carácter total do trabalho.
Surge assim que as massas apareçam aos Domingos
particularmente mal vestidas — em todo o caso, pior do que as equipas
desportivas ou os corredores de automóveis para cujos desafios afluem,
mas pior também do que a maioria dos singulares que a compõem na
sua actividade quotidiana. Tal relaciona-se, por um lado, com o Domingo
ser um símbolo de certas ordens de culto em decadência, e, por outro,
com o conceito de quarto confortável do qual o homem se separa de má
vontade. Um tal quarto confortável é também a individualidade; fica-se-
lhe agarrado, procura-se expressá-lo, apesar de se reduzirem e
desvalorizarem as ocasiões em que se pode fazer uso dele. A partir
daqui explica-se também a grande fraqueza e insegurança da atitude
ideológica que hoje se pode observar no singular, em oposição ao

96
N. do T.: A palavra traduzida como equipagem é Besatzung: expressa o conjunto das tropas
que ocupam (besitzen) território inimigo, mas também a guarnição que se une na defesa de
algo ou a equipagem de homens que em conjunto fazem funcionar determinados meios
técnicos. A tradução por equipagem pareceu-nos, no contexto, devida à sua abrangência, a
mais conveniente.
148

significado e ao carácter consequente dos contextos objectivos em que


está incluído. Este desequilíbrio, esta perda, no entanto, torna-se-á
imperceptível na mesma medida em que o carácter total do trabalho
aumentará as suas reivindicações aos singulares. Sabemos que esta
reivindicação dirige-se ao todo. À representação de uma imagem total do
mundo, tal como começa a emergir atrás das máscaras racionais e
técnicas, pertence também uma unidade bem articulada da farda em que
surge então um sentido completamente novo.
Limitemo-nos, por agora, ao presente. Observámos que a farda,
assim como o hábito em geral, seja em conjunto com a formação de
novas equipas, seja em ligação com o emprego de meios técnicos, se
torna mais primitiva — mais primitiva num sentido que se pode tomar
como uma característica relativa à raça. A caça e a pesca, a estadia sob
determinados climas, a lida com animais, em particular com cavalos,
geram uma uniformidade semelhante. Esta uniformidade é uma das
marcas do aumento dos contextos objectivos pelos quais o singular é
reivindicado. A soma destes contextos objectivos está concebida em
crescimento; já roçámos alguns, e tocaremos outros quando se falar
mais de perto das construções orgânicas.

37.

Partimos da impressão de máscara que a visão do tipo desperta e


que também é sublinhada pela farda. Algumas considerações sobre a
atitude e a gestualidade poderão completar o esboço desta primeira
impressão.
Na concepção de homem e de grupos humanos, tal como se
pode estudar na pintura dos últimos cem anos, trai-se um progressivo
ataque à determinação do contorno. A relação dos homens uns com os
outros, tal como a escola romântica nos colocou diante dos olhos em
149

partes de ruas, praças, parques ou espaços fechados, está ainda


animada por uma harmonia tardia, por uma segurança fugaz, na qual
ressoa o grande modelo e que corresponde à sociedade da restauração.
Só a partir desta atmosfera são concebíveis aqueles escândalos
que se podiam ligar ao emergir dos primeiros retratos impressionistas
nos salões e que são para nós hoje completamente incompreensíveis.
Encontramos aqui o homem, seja singularmente ou em grupos, numa
atitude estranhamente relaxada e descontextualizada, que, de modo
variado, ainda precisa da penumbra para se desculpar. Assim, os jardins
no brilho dos lampiões, os boulevards na luz artificial dos primeiros
candelabros a gás, as paisagens na névoa, no crepúsculo ou no brilho
reluzente do Sol são amados como motivos.
Este processo de decomposição intensifica-se de década em
década até atingir, numa série de espantosas e em parte brilhantes
ramificações, as fronteiras do niilismo; corre em paralelo com a morte do
indivíduo e a eliminação da massa como meio político. Quase já não se
pode falar aqui de escolas artísticas, mas antes de uma série de
estações clínicas através das quais é registada e mantida qualquer
convulsão que um organismo em declínio traz à luz.
A sedimentação desta inexorabilidade com que uma música
colorida acompanha o declínio e o sofrimento do indivíduo não
apresenta, no entanto, a única fonte óptica que está à disposição da
observação. Não é nenhuma coincidência casual que, ao mesmo tempo
da incisão indicada, o olhar frio e desapaixonado do olho artificial comece
a incidir sobre homens e coisas, e há uma relação muito elucidativa entre
aquilo que o olho do pintor consegue reter e aquilo que o consegue a
lente fotográfica.
Deve-se aqui mencionar um facto de que só brevemente, com
espanto, se tomou conhecimento: que os primeiros retratos fotográficos
são muito superiores aos hodiernos quanto ao carácter individual. Em
muitas destas imagens anuncia-se a atmosfera de pinturas, de um modo
150

que esbate as fronteiras entre arte e técnica. Procurou-se explicar isto


através de diferenças de procedimento, através de diferenças como as
que existem entre trabalho manual e trabalho mecânico: e também isto
está certo.
Mas o resultado sobreposto é o de que o raio de luz, nesse
tempo, encontrava ainda um carácter individual de uma densidade muito
maior do que é hoje possível. Este carácter, que se reflecte a si mesmo
nos mais pequenos objectos de uso que permaneceram conservados, dá
também àquelas imagens a sua dignidade particular. A queda da
fisionomia individual e social, tal como a trata a pintura, também se pode
então acompanhar na fotografia; conduz a um plano em que a
observação de vitrinas, tal como as expõem os fotógrafos nos subúrbios,
se torna numa vivência fantasmagórica.
Mas, ao mesmo tempo, pode-se observar um aumento na
precisão dos meios, que seria impensável se o seu sentido se devesse
limitar à fixação do insignificante. Também não é este de modo nenhum
o caso. Descobrimos antes que a vida começa a mostrar partes que são
particularmente apropriadas para a lente, e isso de um modo
completamente diferente do que para o lápis de desenho. Isso vale
sobretudo onde a vida entra na construção orgânica e, assim, também
para o tipo, que aparece com e nestas construções.
O sentido da fotografia muda-se para o tipo, e, deste modo,
também se muda aquilo que se compreende por um “bom rosto”. A
direcção desta mudança apresenta-se também aqui como um progredir
da ambiguidade para a inequivocidade. O raio de luz procura qualidades
diferentes, nomeadamente intensidade, determinação e carácter
objectivo. Pode-se indicar os inícios nos quais a arte se procura orientar
nesta lei óptica, e se procura equipar a partir daqui com meios de um
novo tipo.
Contudo, nunca se pode esquecer de que aqui não se trata de
causa e efeito, mas de simultaneidade. Não há nenhuma lei puramente
151

mecânica; estas mudanças na substância mecânica e orgânica estão


reunidas pelo espaço sobreposto a partir do qual se determina a
causalidade dos acontecimentos singulares.
Assim, não há nenhum homem mecânico; há máquinas e homens
— mas há certamente uma união profunda entre a simultaneidade dos
novos meios e de uma nova humanidade. Para captar esta união, tem de
se esforçar por ver através das máscaras do tempo, feitas de aço e
humanas, para adivinhar a figura, a metafísica, que as movimenta.
Assim, e só assim, a partir do espaço de um supremo carácter
unitário, se pode tomar a relação existente entre uma espécie humana
particular e os meios peculiares que estão à sua disposição. Por todo o
lado onde aqui é sentida uma dissonância, o erro deve ser procurado no
local do observador, mas não no ser.

38.

Na fotografia, surge ainda mais claramente o facto de que aqui se


realiza uma representação do tipo, não do indivíduo.
No declínio do espectáculo clássico, cujas últimas e lamentáveis
fases ainda vivemos, pode-se reconhecer um processo que já está
decidido por volta do fim do século XVIII. Pois nele não se reflecte o
declínio do indivíduo, mas da pessoa em que se expressa o mundo dos
estados. Ao teatro não pertence apenas a peça, não pertence apenas o
espectador; pertence-lhe o ar vital, que sopra das estradas e praças, das
côrtes e das casas, e faz estremecer as chamas das velas nos lustres.
Pertence-lhe o príncipe absoluto cujo presente visível forma o ponto
central que garante a unidade interna do processo.
Mas tudo isto, esta harmonia para nós totalmente irrepresentável,
que se nos depara por vezes como o eco de uma música maravilhosa,
torna-se mera reminiscência desde o instante em que o desejo do
152

homem se orienta dos princípios absolutos para os princípios universais.


O facto de a peça clássica ter perdido a relação à vida real anuncia-se
em um novo círculo de espectadores a procurar para se edificar. Talvez
nada torne esta perda de unidade mais clara do que o limite que se
ergue entre o palco e o espaço do espectador; já há muito que
desapareceram aquelas poltronas através das quais uma parte da plateia
se estende até ao palco.
No entanto, este limite invisível que transforma o palco em tribuna
não apenas separa o espectador do actor, mas também separa o actor
da peça. A decadência do teatro manifesta-se em o grande actor
aparecer com a derrocada do mundo dos estados, e em começar a fazer
um nome, como se pode observar em Londres, Paris e Berlim. Contudo,
este grande actor não é nada senão o indivíduo burguês, cuja
emergência pulveriza a legalidade da peça clássica também sobre o
palco.
Na vitória da concepção sobre as regras do jogo e os caracteres
tradicionais repete-se a vitória do indivíduo sobre a pessoa. O teatro de
côrte da monarquia constitucional decai numa ocasião cultural, numa
instituição moral, num significado de museu. A vida pública que cada vez
mais inequivocamente corporaliza não é a de um público privilegiado,
mas a de um público que paga e a de uma crítica que é paga. Assim, de
modo nenhum está apto a esquivar-se à sanção dos ataques sucessivos
da anarquia vital, do chamado drama burguês e da discussão social.
Em todo o caso, permanece uma aparência de unidade exterior,
enquanto no palco popular da democracia burguesa o teatro se
desmorona numa série de elementos autónomos e em combate.
Encontramo-lo aqui como instrumento da formação universal, como
empreendimento, como associação, como assunto de partidos, numa
palavra, como expressão de todos os esforços que são peculiares à
sociedade burguesa. Este teatro é certamente tão pouco teatro como
esta sociedade é sociedade em sentido real. A ruptura decisiva, como se
153

disse, surge cedo; tornou-se histórica nos grandes escândalos teatrais


em que a velha sociedade expressou que já não se sentia a si mesma
como unidade.
Para poder ver nos cinemas, tal como se começam a desenvolver
no nosso tempo, não uma continuação desta degradação num plano
modificado, mas a expressão de um princípio que é pura e simplesmente
de outro tipo, tem de ser claro que também aqui o carácter técnico, a
aparelhagem, não é o decisivo. Tal resulta já de este carácter técnico
também ter entrado no teatro, tal como se torna visível no palco giratório,
nas representações em série e em outros fenómenos.
O ponto de vista da qualidade através do qual o teatro se procura
consolidar está, por isso, errado. Primeiro que tudo, tem de se saber que
hoje atrás da reivindicação de qualidade estão escondidas duas
valorizações muito diferentes. A qualidade individual é muito diferente
daquela que o tipo reconhece. Na última fase do mundo burguês,
entende-se por qualidade o carácter individual, e particularmente o
carácter individual, o modelo único, de uma mercadoria. Assim, o quadro
de um velho mestre ou o objecto que se compra na loja de antiguidades
tem qualidade num sentido completamente diferente do que era em geral
representável no tempo do seu nascimento. O facto da publicidade, cuja
tecnicidade é posta em movimento de um e mesmo modo para uma
marca de cigarros como para a festa do centenário de um clássico, trai
muito claramente até que ponto qualidade e valor comercial se tornaram
idênticos. A qualidade, neste sentido, é uma subespécie da publicidade
através da qual o carácter individual é apresentado à massa como uma
necessidade. Mas como o tipo já não sente esta necessidade, este
processo torna-se, em relação a ele, numa pura ficção. Assim, um
homem que guia um determinado carro nunca se imagina seriamente
estar na posse de um meio talhado para a sua individualidade. Pelo
contrário, desconfiaria, e com razão, de um carro que só existisse num
modelo único. O que implicitamente pressupõe como qualidade é antes o
154

tipo, a marca, o modelo bem construído. A qualidade individual possui


para ele, em vez disso, o estatuto de uma curiosidade ou de um assunto
de museu.
A mesma ficção é aplicada onde o teatro, em oposição ao
cinema, reivindica para si qualidade, ou seja, neste caso, superioridade
artística. O conceito de representação única surge aqui como a
promessa de uma vivência única. Mas esta vivência única pertence às
questões individuais de primeira importância. Era desconhecida antes da
descoberta do indivíduo burguês, pois o absoluto e o único excluem-se
necessariamente, e perde o seu significado num mundo em que o
carácter total do trabalho começa a abrir caminho.
A vivência única é a vivência do romance burguês, o qual é o
romance de uma sociedade de Robinsons. O intermediário da vivência
única no teatro é o actor na sua propriedade de indivíduo burguês; daí
que também a crítica teatral se tenha transformado cada vez mais
inequivocamente numa crítica de actores. Correspondem a isso as fatais
definições a que o século XIX submeteu a arte, como um “pedaço de
natureza, visto por um temperamento” ou um “dia de julgamento sobre o
próprio eu” e coisas semelhantes — definições cuja característica comum
está na elevada dignidade que é apontada à vivência individual.
As controvérsias deste tipo sobre a qualidade são conduzidas
sobre eixos que se tornaram imaginários. Para comparar entre o teatro e
o cinema, a arte, como meio de comparação, não está dada de nenhum
modo, e isso sobretudo num tempo em que ou já não se pode ou ainda
não se pode falar de arte. A questão decisiva de que se trata e de que
ainda hoje não se está de todo consciente é antes esta: através de qual
destes dois meios o tipo se representa com uma maior intensidade. Só
quando se conceber isto, só quando se conceber que aqui não se trata
de diferenças de dignidade, mas de alteridade, estar-se-á apto para ver
as coisas com o necessário desprendimento. Conceber-se-á a diferença
que se apresenta no público de um teatro e de um cinema situado
155

imediatamente ao lado, embora a soma dos singulares seja talvez a


mesma em ambos os casos. Conceber-se-á porque é que se procura
adivinhar no actor a individualidade, a concepção, enquanto esta
individualidade, no actor de cinema, não pertence de todo aos
pressupostos. Há uma diferença entre a máscara do carácter e o
carácter de máscara de todo um tempo.
O actor de cinema está subordinado a uma outra lei, na medida
em que a sua tarefa assenta na representação do tipo. Daí que não se
exija dele a unicidade, mas a inequivocidade. Não se espera que
expresse a harmonia infinita, mas o ritmo preciso de uma vida. Cabe-lhe
por isso representar a legalidade dentro de um espaço determinado e
muito objectivo, cujas regras entraram na carne e no sangue até do
último espectador.
Talvez em nenhum lado se torne mais claro o quanto assim é do
que onde o filme parece tratar o tema oposto, ou seja, a subordinação do
homem a este espaço. Assim, o nosso tempo produziu um modo
particular do grotesco, cuja comédia está em o homem aparecer como o
joguete de objectos técnicos. São construídas casas altas só para que
alguém se precipite delas, o sentido do tráfego é que se seja atropelado,
o dos motores é que se expluda com eles.
Esta comédia surge às custas do indivíduo que não domina as
regras fundamentais de um espaço muito preciso e a gestualidade que
lhes é natural; e o contraste que expressa assenta precisamente em
estas regras serem completamente evidentes para o espectador. É então
o tipo que se diverte à custa do indivíduo.
Tem aqui lugar, no fundo, uma redescoberta do riso como
característica de uma inimizade terrível e primitiva, e estas
representações no meio dos centros da civilização, no meio de espaços
seguros, quentes e bem iluminados, são comparáveis a episódios de
batalhas em que se abate com metralhadoras tribos armadas com arcos
e flechas.
156

O carácter inofensivo, a boa consciência, o desprendimento de


todos os participantes são, em larga medida, características da revolução
sans phrase. Este tipo de comédia, de destruição através do riso,
pertence ao tempo da passagem. O seu efeito começa já hoje a
empalidecer, e, quando dentro de cinquenta anos se desenterrar dos
arquivos um tal filme, ele não será compreensível, tão pouco como hoje
uma apresentação da Mère coupable97 ainda consegue voltar a despertar
os sentimentos do indivíduo que se torna consciente de si mesmo.
O facto de que aqui se trata do reflexo de um espaço de outro tipo
resulta também da verificação de que a transposição de uma peça
clássica para o teatro burguês pode ser tomada como uma repetição
num meio mais fraco, enquanto na transposição para o cinema não
permanece conservado sequer um vestígio do antigo corpo. No filme em
que a peça clássica aparece como motivo, ela é muito menos aparentada
com o seu modelo do que com o noticiário político ou com as cenas de
caça em África que estão simultaneamente em cena. Mas isso é a
característica de uma reivindicação de totalidade. Seja qual for a parte da
história, seja qual for a paisagem geográfica, seja qual for o sector social
que possa servir como tema, é a uma e à mesma questão que neste
tema se procura responder. Daqui se explica que os meios com os quais
se trabalha são, em larga medida, sincrónicos, uniformes e inequívocos
— numa palavra, que são meios típicos.
Tal é particularmente ilustrado através das características
exteriores. O cinema não conhece nenhumas representações únicas e,
em sentido autêntico, também não conhece nenhuma estreia; um filme
passa ao mesmo tempo em todos os quarteirões da cidade e deixa-se
repetir sem problemas, com uma precisão matemática que se estende
aos segundos e aos milímetros. O público não é nenhum público
particular, nenhuma comunidade estética; antes apresenta
completamente a vida pública, que também se pode encontrar em

97
N. do T.: Título da peça de Beaumarchais, a qual encerra a trilogia composta pelo Barbeiro
157

qualquer outro ponto do espaço vital. É também de notar que a influência


da crítica diminui; é substituída pelo anúncio, ou seja, pelo publicidade.
Do actor é exigida, como se disse, não a representação do indivíduo,
mas do tipo. Tal pressupõe uma grande inequivocidade de mímica e
gestualidade — uma inequivocidade que só ganhou intensidade há
pouco, com a introdução da voz artificial, e que ainda aumentará através
de outros meios.

39.

Queremos aqui recordar mais uma vez que a nossa tarefa


consiste em ver, não na valorização. Mas onde virmos, a objecção de
que aqui talvez se trate de uma fruição completamente abstrusa é tão
secundária como aquela outra de que o homem em armadura talvez
tivesse mais valor do que o homem com a espingarda. A vida passa
sobre tais objecções tidas como inadmissíveis, e a tarefa do realismo
heróico é a de confirmar-se apesar disso e precisamente por isso.
Não se trata para nós, como já foi dito noutros lugares, do velho
ou do novo, também não se trata de meios ou de instrumentos. Trata-se
antes de uma nova linguagem que, de repente, é falada, e o homem
responde ou permanece mudo — e isso decide sobre a sua realidade.
Este outro é a grande surpresa que mantém a vida em prontidão,
o triunfo ou a morte. Emerge em pontos e irradia um círculo de
aniquilação que se supera ou ao qual se sucumbe. O bater dos teares de
Manchester, o matraquear das metralhadoras de Langemarck — são
sinais, palavras e frases de uma prosa que quer ser interpretada e
dominada por nós. Desiste-se quando se pensa em não ouvir isso,
quando se pensa em liquidar isso como sem sentido. Trata-se de se

de Sevilha e As Bodas de Fígaro; a primeira representação teve lugar a 26 de Junho de 1792.


158

adivinhar a lei secreta, mítica hoje e para todos os tempos, e de se servir


dela como arma. Trata-se de ter em seu poder a linguagem.
Se aqui nos compreendermos, já não é precisa mais nenhuma
palavra. Também nos compreendemos em a observação do homem, a
forma suprema de caça, prometer precisamente no nosso tempo uma
presa particular. A crítica, a dúvida incondicionada, o trabalho infatigável
da consciência amadureceram um estado que permite a observação
imperturbada do crítico, o qual está demasiado ocupado para ver o que é
simples. Achar-se-á que os homens não são significativos onde se têm
como tal — não onde são problemáticos, mas onde não o são.
Para servir Aasvero, não se o conduzirá para as bibliotecas onde
se amontoa livro sobre livro — ou se se o conduzir para lá, será só para
lhe mostrar como os livros estão ligados, que títulos se ama e como o
público está vestido. Será preferível conduzi-lo para estradas e praças,
para casas e côrtes, para aeroportos e metropolitanos — para onde o
homem vive, combate ou se diverte, numa palavra, para onde está no
trabalho. O gesto com que o singular abre e sobrevoa o seu jornal é mais
elucidativo do que todos os artigos de fundo do mundo, e nada é mais
instrutivo do que estar um quarto de hora num cruzamento de ruas. O
que seria então mais simples ou também mais entediante que o
automatismo do tráfego — mas não é isto também um sinal, uma
imagem para o quanto hoje o homem se começa a movimentar sob
comandos silenciosos e invisíveis?
O espaço vital ganha em inequivocidade, em evidência; ao
mesmo tempo, cresce a ingenuidade, a inocência com que se se
movimenta neste espaço. Mas aqui esconde-se a chave para um outro
mundo.
Levanta-se agora a questão de saber se atrás das máscaras do
tempo nada mais há para procurar senão a morte do indivíduo que
enrijece a fisionomia e que, no fundo, significa mais e algo mais doloroso
do que apenas o corte que separa dois séculos. Pois este corte significa,
159

ao mesmo tempo, a última volatilização da alma antiga, cuja dissolução


começou já cedo, com a conclusão de estados universais e antes da
emergência da pessoa absoluta.
160

A DIFERENÇA ENTRE
AS HIERARQUIAS DO TIPO E DO INDIVÍDUO

40.

Considerámos as características exteriores do tipo em exemplos


cujo número se deixa multiplicar de um modo qualquer. O processo
comum que está subjacente a estas características consiste no
desaparecimento da individualidade, o qual é sentido como perda nas
variadas situações da passagem.
Pode-se acompanhar esta perda desde as supremas formas de
sacrifício até às do definhar vegetativo, da morte burguesa. O
representante eminente do indivíduo, o génio, é em primeiro lugar
apanhado pela atmosfera de declínio. O ataque da morte às massas, que
se cumprirá ainda ininterruptamente e num tempo indeterminado, seja
ele invisível ou visível e catastrófico, conclui o processo. Quando se
reconhecer isso, já não vale a pena ocupar-se com os pormenores.
Tem, no entanto, de ser claro que esta definição do tipo possui
um carácter negativo. Quando se retira o indivíduo do indivíduo, é o nada
que fica. Esta demonstração foi empreendida vezes sem conta no nosso
tempo, prática e teoricamente, e com um grande gasto de meios. Pode-
se trancar as actas, quando se alcançou este ponto — pressupondo-se
que ainda se pensa fixar-se no conceito de desenvolvimento, que
pertence aos conceitos nucleares da mundividência do século XIX. É o
curso de um desenvolvimento ilimitado, o movimento indefinido da razão
161

sobreposta à natureza, que confirma a vivência única do indivíduo e lhe


dá perspectivas.
Mas nada nos obriga a fixarmo-nos nos dicionários dos quais
estes conceitos são retirados. A conclusão do desenvolvimento do
indivíduo, isto é, a sua morte, é uma característica do tipo apenas na
medida em que pertence aos seus pressupostos incondicionais. Só a
completa dilaceração, o tornar-se sem sentido das velhas articulações,
torna possível que surja a realidade de um outro campo de forças.
A característica muito mais importante e a liberdade autêntica do
tipo consiste precisamente em ele pertencer a um tal campo de forças.
Este campo é dominado pela figura do trabalhador. Mas onde surgem
figuras, retira-se, como qualquer conceito, também o conceito de
desenvolvimento. A figura não exclui o desenvolvimento, mas inclui-o,
como uma projecção no plano causal — do mesmo modo que aparece
como um novo centro de historiografia.
A força essencial do tipo está em ele se referir a um outro
presente, a um outro espaço, a uma outra lei, como cujo ponto central é
dada a figura — numa palavra, em ele falar uma outra linguagem. Mas
onde é falada uma outra linguagem, está encerrado o debate e começa a
acção. Começa a revolução, como cujo mais forte meio se pode
considerar a pura existência, o mero estar presente. Esta existência está
em si acabada, é senhora da enciclopédia dos seus conceitos; não se
submete, em relação à hierarquia, a nenhuma comparação, mas contém
em si mesma os meios que são exigíveis para a verificação desta ordem.
Se assim é, então as marcas de uma hierarquia peculiar têm de estar já
assentes na primeira emergência do tipo.
Assim, aquilo que faz aparecer como muito difícil, à primeira vista,
a verificação de uma nova hierarquia, é o facto de um nivelamento
abrangente a que a substância humana se mostra submetida. Esta
terraplanagem parece já começar com a marcha triunfal dos princípios
162

universais, com a exigência da igualdade de tudo aquilo que tem um


rosto humano.
Só que se mostra, num olhar mais intenso, que esta igualdade
possui as suas fronteiras. Tal como o conceito de desenvolvimento forma
o pano de fundo natural, assim o conceito de liberdade burguesa forma o
pano de fundo jurídico através do qual o indivíduo se vê confirmado na
posse da sua vivência única. Mas aqui cessa a partição. O indivíduo é,
como já diz o seu nome, a molécula inatacável da ordem do mundo,
cujas articulações ele determina através de ambos os pólos — que lhe
são dados pelo direito natural — do racional e do costume. Esta
dignidade não apenas lhe é confirmada através das primeiras frases de
todas as constituições do século XIX, mas também através das grandes
palavras com as quais o espírito saúda a sua primeira emergência,
desde a “lei moral em mim” até à “suprema felicidade das crianças da
terra”, que é vista na consciência da “personalidade”.
Só assim, enquanto culto do indivíduo, se pode conceber também
o enorme efeito que a fisionomia por volta do fim do século XVIII
desencadeou. É a descoberta do indivíduo ético, que coincide
temporalmente com a descoberta do indivíduo natural e, deste modo,
racional no Taiti. À mesma tensão pertencem também as palavras
“genial” e “sentimental”. Este culto produz então um estado em que não
apenas a história da cultura e a história da guerra são vistas como
resultado da vontade individual, sob a particular primazia da Renascença
e da Revolução Francesa — mas em que são também, em parte,
substituídas pela biografia do indivíduo histórico e artificial. Surgem
assim inteiros sistemas de biografias, nos quais a existência do indivíduo
significativo é lavada e desfiada até ao dia e à hora. O material é
inesgotável, pois é de novo a concepção individual que o pode, de um
modo qualquer, iluminar. O tema é sempre o mesmo; trata do
desenvolvimento e da vivência única. A mesma medida é levada também
para o indivíduo económico, que está no ponto central da observação
163

económica, seja como o portador da produção, seja como orgão da


iniciativa no meio de um desenvolvimento progressivo que doravante
aparece como a lei de bronze económica da concurrência.
Para conceber que neste espaço a igualdade teórica se possa
muito bem unir com uma hierarquia prática, tem de se saber que o
indivíduo se deixa considerar aqui, à vontade, como a regra ou como a
excepção. A descoberta do homem que enebriou os espíritos é uma
descoberta com limitações; ela só se relaciona ao homem na sua
propriedade específica enquanto indivíduo. Na medida em que o
singular, enquanto tal, emerge, pode permitir-se muito; dispõe de
privilégios maiores do que o que em outros tempos, mais rigorosos, foi
possível.
Assim, um conceito de propriedade determinado concede ao
indivíduo económico um grande poder de dispor, o qual não é
responsável nem pela comunidade, nem pelo passado e pelo futuro. Um
fornecedor de armamento pode produzir meios de guerra para qualquer
poder. Uma nova invenção é uma parte da existência individual; cabe,
consequentemente, a quem oferece mais. Uma das primeiras medidas
que se encontraram na Alemanha depois da vitória definitiva do indivíduo
consistiu não na nacionalização da grande propriedade fundiária, mas na
supressão do fideicomisso e do morgado, isto é, na transferência da
propriedade da estirpe para o indivíduo.
Do mesmo modo, notar-se-á uma muito particular e peculiar
excitação por todo o lado onde o indivíduo significativo, como o indivíduo
artístico, chega ao contacto com o processo criminal. Teoricamente,
qualquer cidadão é igual diante da lei, mas, na prática, há o desejo de
ver qualquer caso como caso de excepção, ou seja, como uma vivência
única. A demonstração da individualidade é, no mínimo, um atenuante;
daí que o parecer médico, e também nos últimos tempos o psicológico,
do mesmo modo que, em certos casos, a indicação social, se insira cada
vez mais fortemente na jurisprudência.
164

Correlativamente, para o portador da individualidade proclamada,


como a literária, o processo transfigura-se numa espécie de publicidade,
num fórum a partir do qual o singular acusa a sociedade. Já foi focada a
avaliação da existência individual, tal como se expressa no combate
exasperado em torno da pena de morte e está num estranho
desequilíbrio em relação ao número das mortes dos nascituros.
Tudo isto comprova o facto de que se possui dignidade, neste
espaço, na mesma medida em que se dispõe da individualidade. É
evidente que aqui, como em todo o lado, há regras de combate: a
individualidade é precisamente a arma que se começa a empregar, e
este facto encontrou talvez a sua mais precisa conversão no dito que se
tornou famoso acerca do caminho livre para quem for apto.
Mas quem aqui é o apto não precisa de nenhuma interpretação.

41.

A partir deste espaço, o facto de o tipo já não tomar parte neste


tipo de hierarquia só pode ser interpretado como uma característica de
ausência de valor. O objectivo da actividade educativa que transformou o
burguês em trabalhador não consistia em nada mais do que torná-lo
portador desta hierarquia específica — do que fazê-lo participar
decisivamente deste prosseguimento da velha discussão. Mostra-se, no
entanto, no nosso tempo que um tal prosseguimento já não é de todo
possível.
Daí que possa valer a pena trazer para mais próximo da vista
esta aparente ausência de valor, para ver se talvez não esteja já nela
contida a indicação de uma hierarquia de um tipo completamente
diferente. É de supor que se comece com a relação do homem ao
número, pois a reprovação de ausência de valor reveste-se de
preferência na fórmula de o singular se ter tornado cifra.
165

A mudança que aqui teve lugar deixa-se expressar o melhor


possível em no século XIX o singular aparecer como variável, e a massa
como constante, enquanto no século XX, pelo contrário, o singular
aparece como constante, mas se pode observar nas formações em que
emerge uma grande mutabilidade. Tal liga-se a que as exigências feitas
à energia potencial da vida aumentem ininterruptamente — mas isso
pressupõe um mínimo de resistência no singular. A massa é, segundo a
sua essência, desprovida de figura; daí que seja suficiente a igualdade
puramente teórica dos indivíduos que são as suas pedras de construção.
A construção orgânica do século XX, pelo contrário, é uma formação de
tipo cristalino; daí que exija do tipo que nela emerge, numa medida
completamente diferente, estrutura. Isso traz consigo que a vida do
singular ganhe em inequivocidade, em matemática. Daí que já não
continue a ser espantoso que o número, e mesmo a cifra precisa,
comece a desempenhar um papel crescente na vida; isto está em
relação com o carácter de máscara do tipo, do qual já se falou.
Como contrapartida do irromper revolucionário da fisionomia, por
volta do fim do século XVIII, pode-se aqui mencionar o renascimento da
astrologia, à primeira vista enigmático, de que nos tornámos
testemunhas. Esta preferência tem tão pouco a ver com a astrologia
clássica como a quiromancia com a moderna dactiloscopia. Vem antes
ao encontro de uma inclinação do tipo que se refere a constelações
precisas. Onde se fundem as diferenças individuais, aumenta o
significado da natividade.
Correlativamente, mudam-se também os meios para a verificação
da identidade. O indivíduo, para verificar a identidade do próprio eu,
refere-se a valores através dos quais se diferencia — ou seja, refere-se à
sua individualidade. O tipo, pelo contrário, mostra-se num esforço para
procurar marcas que estejam situadas fora da existência singular.
Deparamos assim com uma caractereologia matemática e “científica”,
com uma investigação da raça, que se estende até à medição e à
166

contagem dos glóbulos sanguíneos. Ao desejo espacial de uniformidade


corresponde, no temporal, a preferência pelo ritmo, em particular também
pela repetição — ela conduz aos esforços para ver inteiras imagens do
mundo como repetições, segundo uma lei rítmica, de um e do mesmo
processo fundamental.
Não é menos elucidativo que a representação do infinito se
comece a modificar. Vem à luz uma tendência que procura captar de
acordo com uma cifra tanto o infinitamente pequeno como o infinitamente
grande, o átomo e o cosmos, o “céu estrelado sobre mim”. É o mesmo
caso com as partes infinitamente pequenas; surge uma particular arte de
medir os processos vibratórios em que, não sem razão, o cristal
desempenha um papel. Finalmente, a parte infinitamente pequena perde
também, no desenvolvimento, o seu carácter indeterminado; a variação,
a partir de cuja infinita concorrência individual se desdobram as espécies,
torna-se mutação, a qual se torna visível, repentina e decisivamente,
como uma grandeza determinada.
Todos estes processos só se podem interpretar se se adivinhar,
atrás deles, o domínio da figura que põe ao seu serviço o sentido do tipo,
ou seja, do trabalhador. A figura não se pode captar através do conceito
universal e espiritual da infinitude, mas através do conceito particular e
orgânico da totalidade. A completude traz consigo que aqui a cifra
apareça numa dignidade completamente diferente, ou seja, numa
referência imediata à metafísica. Concebe-se que no mesmo instante a
física se tenha de alterar, que tenha de ganhar um carácter mágico?
Não menos significativa é a maneira em que a cifra aparece na
vida quotidiana. Tal pode-se observar nos ataques, tão subtis como
obstinados, através dos quais ela procura substituir o nome das pessoas.
Pertence a isto já a ordenação alfabética dos catálogos e registos não
numéricos, através da qual se encontra um esclarecimento sobre o
singular. A ordenação alfabética atribui um valor de cifra às letras; e há
uma grande diferença na sequência dos nomes, tal como ela se pode
167

estudar numa velha lista de patentes militares ou numa moderna lista de


telefones.
Do mesmo modo que se acumulam as ocasiões em que o
singular aparece de máscara, multiplicam-se os casos em que o seu
nome surge em estreito contacto com a cifra. Tal é o caso nas variadas
ocasiões, que diariamente se multiplicam, em que se pode falar de uma
ligação. O serviço de energia, de tráfego, de informação aparece como
um campo em cujo sistema de coordenadas o singular se pode assinalar
como um ponto determinado — “ele é talhado”, como quando se coloca o
disco de números de um telefone automático. O valor funcional de tais
meios cresce com o número dos participantes — contudo, este número
nunca aparece como medida no velho sentido, mas constantemente
como uma grandeza que, em cada instante, se pode precisar de acordo
com a cifra. Também o velho conceito de firma se mostra submetido a
esta transformação; já não é o nome do titular que transmite a garantia
essencial; daí que também seja empregue, como na publicidade, já não
como meio individual, mas como meio típico. Correlativamente,
multiplicam-se os casos em que os nomes das firmas surgem através do
emprego abstracto do alfabeto, ou seja, da junção de umas letras iniciais
quaisquer.
Em particular, é na estatística que emerge o desejo de dar a cada
relação uma expressão de acordo com a cifra. Aqui, a cifra aparece no
papel do conceito que, de qualquer ponto de vista, penetra de modo
variado uma e a mesma substância. A partir deste desejo, desenvolveu-
se um tipo de argumentação lógica em que é atribuído à cifra valor de
prova. Mais importante é a metódica em que o singular é iluminado não
se limitar a vê-lo como parte de uma soma, mas esforçar-se por implicá-
lo numa totalidade de fenómenos. Tal torna-se talvez claro na diferença
que existe entre, por um lado, um recenseamento ou uma contagem de
boletins de voto e, por outro, os resultados em pontos de um exame
psicotécnico ou de uma tabela de desempenhos técnicos.
168

De sublinhar é também ainda o recorde enquanto a valorização,


de acordo com a cifra, de desempenhos humanos ou técnicos. Ele é o
símbolo de uma vontade de um ininterrupto registo da energia potencial.
Do mesmo modo que espacialmente há o desejo de poder alcançar o
singular, em qualquer tempo e em qualquer ponto, há dinamicamente o
desejo de ser constantemente informado sobre as mais extremas
fronteiras da capacidade de desempenho.

42.

É claro que a vivência única e individual, neste espaço que se


tornou muito preciso e muito construtivo, com os seus relógios e
aparelhos de medição, se substitui pela vivência inequívoca e típica. O
desconhecido, o misterioso, o mágico, a multiplicidade desta vida está na
sua totalidade fechada, e participa-se neste mundo na medida em que se
está nele implicado, mas não na medida em que se lhe está contraposto.
A bipolaridade do mundo e do singular constitui a felicidade e o
sofrimento do indivíduo. O tipo, pelo contrário, dispõe cada vez menos
dos meios para se separar criticamente do seu espaço, cuja visão, a um
olhar estranho, tem de aparecer como um conto terrível ou maravilhoso.
Este processo, esta fusão manifesta-se no crescimento dos contextos
objectivos pelos quais o singular é reivindicado.
Daí também que as descobertas, neste espaço, já não apareçam
como maravilhosas, que elas pertençam a um estilo de vida evidente. A
nova descoberta do mundo através de voos audaciosos, que acontece
nos nossos dias, não é o resultados de desempenhos individuais, mas de
desempenhos típicos que hoje aparecem como recorde e amanhã se
tornaram num hábito diário. Do mesmo modo, a descoberta de uma nova
paisagem, como a de uma cidade ou de um campo de batalha, pertence
às vivências típicas. Daí também que o relatório significativo já não seja o
169

relatório individual e único, mas o que é confirmado pelo tipo. O muito


lamentado declínio da literatura não significa outra coisa senão que um
questionamento literário envelhecido perdeu a sua dignidade.
Hoje, sem qualquer dúvida, um guia dos caminhos de ferro possui
um significado maior do que o último desfiar da vivência única pelo
romance burguês. Quem procurar erguer esta vivência a ponto central de
uma paisagem de trabalho ou de combate, torna-se ridículo. As coisas
não estão aqui de tal modo que o novo espaço é desapropriado para
uma captação literária, mas antes de tal modo que qualquer
questionamento individual tem de resvalar nele. Esta captação é uma
tarefa que, na sua legalidade peculiar, ainda só está para descobrir. Só
quando for este o caso se pode voltar a falar em geral de livros e de
leitores.
Pertence, além disso, a este contexto que o morrer se tenha
tornado mais simples. Pode-se fazer esta observação em todo o lado
onde se vê o tipo a obrar. As incontáveis vítimas que a viagem aérea
exige não são capazes de influenciar o processo no mínimo que seja.
Certamente que o mesmo se pode afirmar também da viagem marítima:
navigare necesse est. Só que há uma diferença entre o declínio pela
violência da natureza e o conceito de acidente, tal como se desenvolveu
no nosso espaço. Se se quiser falar em ambos os casos de destino, o
destino aparece num como a intervenção de potências incalculáveis, e
no outro numa estreita relação ao mundo da cifra. Tal dá-lhe um
particular traço de seca necessidade.
No que toca ao sentimento, pode-se verificar isso, seja em si
mesmo ou em outros, onde a proximidade da morte aparece em conjunto
com altas velocidades. Esta velocidade cria uma espécie de austera
embriaguês, e um bando de corredores, dos quais cada singular se senta
ao volante como uma boneca, dá uma impressão de estranha mistura de
precisão e de perigo que é peculiar aos movimentos aumentados do tipo.
170

Ainda mais intensamente surge esta relação onde o homem


dispõe activamente da vida e da morte. O tipo mostra-se ocupado na
construção de armas que lhe são particularmente características. O tipo
de armas e o seu emprego modificam-se segundo são dirigidos contra a
pessoa, contra o indivíduo ou contra o tipo. Onde a pessoa surge em
combate, o confronto, independentemente de se defrontarem singulares
ou corpos de exércitos fechados, é guiado segundo as regras do duelo. A
este estado corresponde que se procure encontrar o opositor através de
armas manuais. Mesmo o velho artilheiro, o mestre de artilharia, é ainda,
de algum modo, um artesão. O indivíduo surge en masse; ele tem de ser
atingido por meios que tenham um efeito massivo. Daí que, ao mesmo
tempo com a sua entrada no espaço de combate, apareça a “grande
bateria” e, mais tarde, com a industrialização, a metralhadora.
Para o tipo, pelo contrário, o campo de batalha é o caso especial
de um espaço total; daí que se represente no combate através de meios
aos quais é peculiar um carácter total. Assim, emerge o conceito de zona
de aniquilamento, o qual é feito através do aço, do gás, do fogo ou de
outros meios, e também através da actuação política ou económica.
Nestas zonas, já não há qualquer diferença de facto entre combatentes e
não combatentes. Daí que já na última guerra a discussão do direito
internacional sobre locais abertos e fortificados, navios de guerra e
comerciais, bloqueio e liberdade dos mares, tenha assumido um carácter
puramente propagandístico. Na guerra total, qualquer cidade, qualquer
fábrica é um local fortificado, qualquer navio comercial é um navio de
guerra, qualquer meio de subsistência é contrabando, qualquer medida
activa ou passiva tem um sentido guerreiro. Que o tipo, pelo contrário,
seja encontrado como singular, como soldado, é de significado
secundário — ele é encontrado no ataque ao campo das forças em que
está implicado. Mas tal é a característica de uma crueldade muito
aumentada, de uma crueldade muito abstracta.
171

O acto de morte mais abrangente que hoje se pode observar


dirige-se contra os que não nasceram. É de prever que este fenómeno,
que, em relação ao indivíduo, possui o sentido de uma maior garantia da
condução da vida do singular, desempenhará no tipo o papel de um meio
de política de povoamento. Do mesmo modo, pode-se adivinhar sem
dificuldade a redescoberta da muito velha ciência da política de
despovoamento. Pertencem já aqui os famosos “vingt millions de trop”,
um aperçu que entretanto ganhou visibilidade através do surto
populacional, um meio através do qual se se começa a desembaraçar,
por via administrativa, de camadas sociais e nacionais.

43.

É iniludível que, neste espaço, as reivindicações que são feitas


aos singulares aumentam numa medida que até agora era
completamente irrepresentável. Às relações que aqui emergem já não se
pertence com a possibilidade de rescisão, mas através de uma
implicação existencial. No mesmo grau em que se dissolve a
individualidade, reduz-se a resistência que o singular consegue contrapor
à sua mobilização. Com cada vez menos efeitos, extingue-se o protesto
que surge da esfera privada. Queira o singular ou não o queira — ele
torna-se responsável até à última pelos contextos objectivos em que está
implicado.
As leis da guerra valem também para a economia e para qualquer
outro âmbito: já não há qualquer diferença entre combatentes e não
combatentes. Podem-se reunir bibliotecas inteiras em que ressoa, em
milhares de variações, o lamento do homem que se vê repentinamente
atacado a partir de zonas invisíveis e se vê despojado, em cada
perspectiva, do seu sentido e dos seus bens. Este é o grande, o único
172

tema da literatura do declínio dos nossos dias, mas já mais nenhum


tempo está na disposição de se ocupar com isso.
Este tipo de implicação não conhece quaisquer excepções.
Encontra a criança no berço, mesmo no corpo da mãe, tão seguramente
como o monge na cela ou como o negro que, na floresta virgem tropical,
rasga a casca da árvore da borracha. É, portanto, total, e diferencia-se
da implicação teórica nos direitos humanos universais por ser
completamente prática e irrecusável. Podia-se decidir ser ou não ser
cidadão; esta liberdade de decisão, no entanto, já não está dada em
relação ao trabalhador. Com isto já está circunscrito o mais abrangente
nível de uma hierarquia diferente; consiste na pertença inevitável ao tipo,
a qual é de acordo com o ser, numa formação, numa impressão da figura
que se realiza sob a pressão de uma legalidade de aço.
Este tipo de implicação pressupõe outras propriedades, outras
virtudes do homem. Pressupõe que o homem não apareça isolado, mas
precisamente implicado. Contudo, assim a liberdade já não significa uma
medida cujo padrão é formado através da existência individual do
singular, mas consiste no grau em que se expressa, na existência deste
singular, a totalidade do mundo em que ele está implicado. Está aqui
dada a identidade da liberdade e da fidelidade — de uma fidelidade que
pressupõe que os velhos vínculos sejam desmantelados até ao último
vestígio. Os lamentos sobre a perda destes vínculos são hoje tão
numerosos como aqueles sobre a perda da individualidade.
Mas o tipo de modo nenhum é destituído de vínculos; subordina-
se aos vínculos peculiares e mais rigorosos do seu mundo, dentro dos
quais não pode ser tolerada nenhuma articulação diferente. A vivência do
tipo não é, como se disse, única, mas inequívoca; ligado a isto está que o
singular não é insubstituível, mas completamente substituível, e isso
numa medida que é igual às exigências de qualquer boa tradição. O tipo
está remetido, de um modo completamente diferente, às virtudes da
ordem e da subordinação, e a desordem de todas as relações vitais que
173

caracteriza a nossa época de passagem explica-se a partir de as


valorizações do indivíduo ainda não estarem dissolvidas
inequivocamente, ainda não estarem dissolvidas como estilo, pelas
valorizações diferentes do tipo. Que a ditadura, em qualquer forma, se
encontra cada vez mais necessariamente, é apenas uma imagem
simbólica desta carência. Mas a ditadura é uma forma de passagem. O
tipo não conhece nenhuma ditadura, porque liberdade e fidelidade são
para ele idênticas.
A este nível, que é o mais abrangente, a esta base da pirâmide,
pertence qualquer singular sem excepção, de modo semelhante a como
qualquer singular dentro de um exército ser tratado como soldado,
independentemente de ocupar o posto de general, oficial ou praça. Este
nível é formado pelo tipo, na medida em que pode ser tomado como
expressão de uma espécie, no autêntico significado da palavra. No
entanto, sobre esta substância, em que se corporaliza não um direito
universal, mas uma obrigação total, começa já uma outra espécie activa
a desenhar-se, na qual a raça autêntica se cunha de um modo mais
intenso.
Deve-se aqui repetir que raça, dentro da paisagem do trabalho,
nada tem a ver com os conceitos raciais biológicos. A figura do
trabalhador mobiliza a substância no seu conjunto, sem qualquer
diferença. Se consegue precisamente em determinadas regiões gerar
formas maiores, e as mais elevadas formas, isso nada altera na sua
independência. Assim, para referir um exemplo que deve aliás ser
entendido com cuidado, pode ser correcto que o cobre conduza melhor
do que qualquer outro metal. Mas isso nada altera em a electricidade ser
independente do cobre. É então muito possível que o “ocidental” possa
vivenciar surpresas. No espaço do trabalho nenhuma outra coisa decide
senão o desempenho através da qual se expresse a totalidade deste
espaço. Isto é poder, e isto põe o ponto de referência num sistema cuja
situação se pode muito bem e muito significativamente alterar. Este
174

desempenho é incontestável na medida em que é corporalizado através


de símbolos objectivos, fácticos. Pertence à virtude do tipo que ele
reconheça tais símbolos, onde quer que possam aparecer.
Mas regressemos à espécie activa, ao portador do segundo nível
desta hierarquia. Esta espécie pode-se encontrar por todo o lado onde o
carácter especial do trabalho se torna claro. O que a distingue é ela não
possuir apenas uma formação passiva, mas também uma direcção.
Dentro das profissões e das terras, pode-se reconhece-la,
independentemente da especificidade da sua actividade, em já poder ser
tratada inequivocamente como trabalhador. Isto explica-se por já estar
em relação à metafísica, em relação à conformidade desta actividade
com a figura.
Tem-se hoje por vezes já a sorte de entrar no círculo de tais
existências, em torno das quais, como em torno de pontos, a nova ordem
se cristaliza. Manifesta-se aqui, independentemente das velhas
diferenciações, uma elevada medida de ímpeto e de força irradiante que
torna muito claro que, neste espaço, o trabalho é de uma dignidade
cultual. Também se encontra aqui já rostos distintos, que permitem
reconhecer que o carácter de máscara é capaz de um aumento — de um
aumento que se pode assinalar como expressão heráldica. Esta palavra
aponta para o tipo ser muito bem pensável como o ponto central de uma
nova arte — de uma arte para a qual as regras do século XIX,
particularmente as da psicologia, se tornaram inválidas.
Formam-se também já as ordens peculiares, as construções
orgânicas particulares, em que o tipo activo se une para ter efeitos. Tocá-
las-emos de mais perto numa outra ocasião; seja aqui apenas indicado
que elas se podem assinalar como ordens.
O soldado anónimo corporaliza um dos primeiros exemplos de
representantes do tipo activo — um exemplo em que aliás também a
dignidade cultual do trabalho já se expressa muito claramente. A guerra
mundial, na medida em que pertence ao século XX, não apresenta uma
175

soma de guerras nacionais. Ela deve ser antes considerada como um


processo de uma obra mais abrangente, em que a nação aparece no
papel de grandeza de trabalho. O esforço nacional desemboca numa
nova imagem, nomeadamente na construção orgânica do mundo.
Chega-se assim a que o herói deste processo, o soldado
anónimo, apareça como o portador de um máximo de virtudes activas, de
coragem, de prontidão e de espírito de sacrifício. A sua virtude está em
ser substituível e em atrás de cada caído já estar, nas reservas, aquele
que o vai render. A sua medida é a do desempenho objectivo, do
desempenho sem palavreado; daí que seja, em sentido eminente, um
portador da revolução sans phrase. Em consequência disso, todos os
outros pontos de vista, mesmo a frente em que se combate e se morre,
passam para segundo plano. Visto a partir daqui, há de facto uma
profunda irmandade entre os inimigos, uma irmandade que permanecerá
eternamente fechada ao pensar humanitário.
Enquanto na guerra mundial, tal como em geral no nosso mundo,
os níveis passivo e activo do tipo já se tornaram claramente visíveis, a
entrada do último e supremo representante no espaço de trabalho visível
ainda não foi bem sucedida. Ligado a isto está que a guerra mundial não
conseguiu produzir quaisquer decisões definitivas — qualquer ordem
intocável que garanta a segurança.
Enquanto, no nível mais baixo da hierarquia, a figura do
trabalhador toma o singular e o subordina como uma vontade cega,
como uma função planetária, ela coloca-o, num segundo nível, como
portador do carácter especializado do trabalho, numa multiplicidade de
construções planificadas. No entanto, no terceiro e supremo nível,
aparece o singular, na medida em que está imediatamente em relação ao
carácter total do trabalho.
Só com a entrada destes fenómenos se torna possível a arte do
Estado e o domínio no mais elevado estilo, isto é, o domínio mundial.
Este domínio já começa a abrir caminho parcialmente através da eficácia
176

da espécie activa, a qual, de muitos modos, quebra as fronteiras das


velhas articulações. No entanto, o tipo activo não é capaz de ultrapassar
as fronteiras que lhe são traçadas pelo carácter especializado do
trabalho; seja como economista, como técnico, como soldado, como
nacionalista, precisa da integração, do comando que cria imediatamente
a partir das fontes da dádiva de sentido.
Só no representante de tal poder é que se separam, como no pico
da pirâmide, as variadas oposições cujo jogo e contra-jogo cria a
iluminação em mudança, a penumbra que é peculiar à nossa época. Tais
oposições são o velho e o novo, o poder e o direito, o sangue e o
espírito, a guerra e a política, a ciência da natureza e do espírito, a
técnica e a arte, o saber e a religião, o mundo orgânico e mecânico.
Todas elas conseguiram ser abrangidas no espaço total; a sua unidade
torna-se manifesta numa humanidade que nasceu além das velhas
dúvidas.
A hierarquia dentro do século XIX foi então apresentada pela
medida em que se possuía individualidade. No século XX, a dignidade é
decidida através do alcance em que se representa o carácter do trabalho.
Indicámos que aqui está escondida uma nivelação — uma nivelação
mais intensa do que desde há séculos se podia observar. Não nos
podemos deixar enganar pelo nivelamento abrangente ao qual homens e
coisas estão hoje submetidos. Este nivelamento não significa outra coisa
senão a realização do nível mais baixo, da base do mundo do trabalho.
Daí vem que hoje o processo vital apareça, numa medida excessiva,
como passivo, como sofrimento. No entanto, quanto mais progredir a
destruição, a transformação, mais determinadamente se poderá
reconhecer a possibilidade de uma nova edificação, a possibilidade da
construção orgânica.
177

A TÉCNICA COMO MOBILIZAÇÃO DO MUNDO PELA FIGURA


DO TRABALHADOR

44.

Os enunciados que o contemporâneo consegue fazer sobre a


técnica dão um pobre rendimento. É particularmente manifesto que o
próprio técnico não consiga gravar a sua determinação numa imagem
que capte a vida na globalidade das suas dimensões.
A razão está em o técnico representar o carácter especializado do
trabalho, mas em não lhe ser dada nenhuma referência imediata ao
carácter total do trabalho. Onde faltar esta referência, com toda a
excelência dos desempenhos singulares, não se pode falar de uma
ordem vinculativa e em si mesma não contraditória. A carência de
totalidade manifesta-se na emergência de uma especialização
desenfreada que procura erguer os seus questionamentos particulares
ao plano decisivo. No entanto, mesmo que o mundo fosse
completamente construído até ao mais ínfimo pormenor, não seria
decidida uma única das questões significativas.
Para possuir uma relação real à técnica, tem de se ser algo mais
do que técnico. O erro que não deixa acertar o cálculo, por todo o lado
onde se procura pôr em relação a vida e a técnica, é um e o mesmo —
independentemente de se chegar a conclusões que rejeitem ou que
concordem. Este erro fundamental está em pôr-se o homem numa
relação imediata à técnica — seja se se o reconhece como o criador ou
como a vítima desta técnica. O homem aparece aqui ou como um
aprendiz de feiticeiro, que evoca forças de cujos efeitos não está à altura,
178

ou como o criador de um progresso ininterrupto que corre ao encontro de


paraísos artificiais.
No entanto, chega-se a juízos completamente diferentes quando
se reconhece que o homem não está ligado imediatamente, mas
mediatamente, com a técnica. A técnica é a maneira em que a figura do
trabalhador mobiliza o mundo. A medida em que o homem está
decididamente em relação com ela, a medida em que não é destruído,
mas estimulado, por ela, depende do grau em que representa a figura do
trabalhador. A técnica, neste sentido, é o domínio da linguagem que é
válida no espaço do trabalho. Esta linguagem não é menos significativa,
não é menos profunda, do que qualquer outra, pois possui não apenas
gramática mas também metafísica. Neste contexto, a máquina
desempenha um papel tão secundário como o homem; apenas é um dos
orgãos através dos quais esta linguagem é falada.
Se a técnica deve ser então concebida como a maneira em que a
figura do trabalhador mobiliza o mundo, tem, em primeiro lugar, de ser
provado que ela, numa relação particular, é adequada ao representante
desta figura, ou seja, ao trabalhador, e está à sua disposição; mas, por
outro lado, qualquer representante dos vínculos que estão fora do
espaço do trabalho, ou seja, o burguês, o cristão, o nacionalista, não
estará implicado nesta relação. Pelo contrário, o ataque aberto ou
secreto a tais vínculos tem de estar incluído na técnica.
Ambas as coisas são, de facto, o caso, e esforçar-nos-emos por
confirmá-lo com recurso a alguns exemplos. A obscuridade, em particular
a obscuridade romântica, que dá cor à maioria das manifestações sobre
a técnica surge da carência de pontos de vista fixos. Perde-se logo que
se reconhece a figura do trabalhador como centro em repouso de tão
variado processo. Esta figura tanto estimula a Mobilização Total como
destrói tudo o que se contrapõe a esta mobilização. Daí que, atrás dos
processos superficiais da mudança técnica, se tenha de apontar tanto
179

uma destruição abrangente como uma construção do mundo de outro


tipo, às quais é dada uma direcção muito determinada.

45.

Regressemos mais uma vez, para ilustrar isto, à guerra. Na nossa


consideração das forças actuantes em Langemarck, poderia surgir a
representação de que aqui, no essencial, se trata de um processo que se
joga entre nações. No entanto, tal é verdade apenas na medida em que
as nações combatentes apresentam as grandezas do trabalho através
das quais este processo é conduzido. No ponto central do confronto não
está a diferença das nações, mas a diferença de duas eras, das quais
uma era que surge devora uma que declina. É através disto que é
determinada a autêntica profundidade, o carácter revolucionário desta
paisagem. Os sacrifícios que são trazidos e exigidos mantêm um maior
significado por recaírem num quadro que não consegue nem pode ser
visível à consciência, mas que já é bem sentido no mais íntimo
sentimento, tal como se pode provar a partir de muitos testemunhos.
A imagem metafísica, ou seja, a imagem desta guerra segundo a
figura, aponta para outras frentes que não as que a consciência dos
participantes consegue suspeitar. Se se a considerar como um processo
técnico, ou seja, como um processo muito profundo, notar-se-á que a
intervenção desta técnica quebra mais do que a resistência desta ou
daquela nação. A troca de tiros que tem lugar em tantas e tão
diferenciadas frentes soma-se numa única e decisiva frente. Se no ponto
central do processo, ou seja, naquele lugar a partir do qual sai a soma da
destruição, mas que não está submetido ele mesmo à destruição,
reconhecemos a figura do trabalhador, abre-se-nos um carácter muito
unitário, muito lógico, do aniquilamento.
180

Explica-se assim, à partida, o facto de em cada uma das terras


participantes haver tanto vencedores como vencidos. O número dos que
foram quebrados por este ataque decisivo à existência individual é
imensamente grande, olhe-se para onde se olhar. Nisto deparar-se-á
também, por todo o lado, com uma espécie de homem que se sente
reforçada por esta intervenção e que se refere a ela como à fonte ígnea
de um novo sentimento vital.
Sem dúvida que este acontecimento, cujo verdadeiro alcance
ainda não se pode medir, ultrapassa em significado não apenas a
Revolução Francesa, mas até a Reforma Alemã. Do seu núcleo autêntico
segue-se uma fila de confrontos secundários que aceleram todos os
questionamentos históricos e espirituais e cujo fim ainda não se pode
prever. Não ter participado aqui significa uma perda que já hoje é bem
sentida pela juventude das terras neutrais. Aqui teve lugar um corte que
separa mais de dois séculos.
Agora, se investigarmos singularmente o alcance da destruição,
encontraremos que o resultado da lotaria é tão mais favorável quanto
mais longe estiver da zona que é peculiar ao tipo.
Não pode então admirar que os últimos despojos dos velhos
sistemas estatais se tenham desmoronado sob a pressão, como castelos
de cartas. Tal surge sobretudo na deficiente força de resistência das
formações monárquicas, que caem quase em conjunto,
independentemente de estarem alinhadas na frente dos grupos de
Estados subjugados ou dos vencedores. O monarca cai tanto enquanto
autocrata como enquanto dinasta que garante a união das terras
herdadas que são passadas já desde a Idade Média. Cai tanto enquanto
príncipe local, num círculo de efeitos quase puramente dissolvidos em
tarefas culturais, como enquanto primeiro bispo ou enquanto pico da
monarquia constitucional.
Ao mesmo tempo que com as coroas, caem os últimos privilégios
dos estados que a aristocracia manteve; ou seja, caem sobretudo, junto
181

da sociedade da côrte e da propriedade fundiária protegida através de


medidas particulares, os corpos de oficiais no antigo sentido, os quais
também na era do dever militar universal ainda se distinguem por todas
as características de uma comunidade de estado. O fundamento que
possibilitou este acabamento está, como vimos, em o burguês não ser
capaz por si mesmo de um desempenho guerreiro, mas estar remetido à
representação por uma casta guerreira particular. Tal muda-se na era do
trabalhador, à qual está dada uma relação elementar à guerra e que, por
isso, consegue representar-se de um modo guerreiro pelos seus meios
próprios.
A facilidade com que é varrida, ou antes, com que se desmorona
em si mesma esta inteira camada, de algum modo ainda presa ao Estado
absoluto, oferece um aspecto assombroso. Sem uma resistência digna
desse nome, sucumbe ao ataque de uma catástrofe que, no entanto, não
se limita a si, mas encontra ainda, ao mesmo tempo, massas burguesas
intactas no que toca à relação.
De facto, por um curto espaço de tempo, e isso particularmente
na Alemanha, parece que é como se, através do acontecimento, tivesse
sido lançado no colo precisamente destas massas um triunfo atrasado e
definitivo. No entanto, tem de se ver que este acontecimento que, na sua
primeira fase, emerge como guerra mundial, aparece, na segunda, como
revolução mundial, para talvez então, à vontade, tornar-se a transformar
em formas guerreiras. Nesta segunda fase, que trabalha aqui aberta, ali
secretamente, salienta-se que a possibilidade da condução de uma vida
burguesa se estreita de dia para dia mais desesperadamente.
Os fundamentos deste fenómeno oferecem-se em qualquer
campo da investigação; pode-se reconhecê-los no penetrar do elementar
no espaço vital e na simultânea perda de segurança, na dissolução do
indivíduo, no desaparecimento do património ideal e material transmitido
ou, pura e simplesmente, numa falta de forças criadoras. O autêntico
fundamento é, em todo o caso, o de o novo campo de forças, situado em
182

torno da figura do trabalhador, destruir, como todos os vínculos


estranhos, também os da burguesia.
As consequências desta intervenção suscitam uma paralisação,
por vezes quase inexplicável, das funções habituais. A literatura torna-se
insípida, apesar de procurar preparar ainda os mesmos
questionamentos; a economia adoece; os parlamentos tornam-se
incapazes de trabalho, mesmo quando não são atacados do exterior.
Que a técnica apareça neste tempo como o único poder que não
se mostra submetido a estes sintomas, trai muito claramente que ela
pertence a um outro e mais decisivo sistema de relações. Neste curto
espaço de tempo depois da guerra, os seus símbolos espalharam-se até
aos mais afastados cantos do globo terrestre mais depressa do que, há
mil anos, a cruz e o sino nas florestas virgens e nos pântanos da
Germânia. Onde penetra a linguagem de factos destes símbolos, cai a
velha lei da vida; da realidade, regressa-se à esfera romântica — mas é
preciso olhos particulares para ver aqui mais do que um processo de
puro aniquilamento.

46.

Passar-se-ia em revista o campo do aniquilamento de um modo


apenas incompleto, se não se reconhecesse também o ataque às
potências cultuais.
A técnica, isto é, a mobilização do mundo pela figura do
trabalhador, é, tal como a destruidora de qualquer fé em geral, também o
mais decidido poder anti-cristão que até hoje se manifestou. É-o numa
medida que deixa aparecer o que nela é anti-cristão como uma das
propriedades que lhe está subordinada — ela nega através da sua mera
existência. Há uma grande diferença entre os velhos assaltantes de
imagens e incendiários de igrejas e a elevada medida de abstracção a
183

partir da qual uma catedral gótica pode ser considerada, por um artilheiro
da guerra mundial, como um puro ponto de orientação na zona de
combate.
Onde emergem os símbolos técnicos, o espaço é esvaziado de
todas as forças de outro tipo, do grande e pequeno mundo dos espíritos
que nele se estabeleceu. As variadas tentativas da Igreja de falar a
linguagem da técnica apresentam apenas um meio para a aceleração do
seu declínio, para a possibilitação de um processo abrangente de
secularização. As verdadeiras relações de poder, na Alemanha, ainda
não vieram à superfície porque o domínio aparente da burguesia as
encobre. Aquilo que foi dito da relação do burguês à casta guerreira, vale
também para a sua relação às Igrejas — é estranho a estas potências,
mas, no entanto, está-lhes remetido, o que é indicado por ele estar numa
relação de subvenção a elas. Falta-lhe tanto substância guerreira como
cultual, se se quiser abstrair do culto aparente do progresso.
O trabalhador, o tipo, pelo contrário, surge da zona da antítese
liberal — não se distingue por não ter nenhuma fé, mas por ter uma outra
fé. Está-lhe reservada a redescoberta do grande facto de que a vida e o
culto são idênticos — de um facto que, abstraindo de alguns estreitos
arredores e vales de montanhas, foi perdido pelos homens do nosso
espaço.
Neste sentido, pode-se ousar afirmar que já hoje, no meio dos
círculos de espectadores de um filme ou de uma corrida de automóveis,
se pode observar uma piedade mais profunda do que a que ainda se
consegue perceber sob os púlpitos e diante dos altares. Se tal acontece
já no plano mais básico e mais sombrio, em que o homem é reivindicado
pela nova figura de um modo puramente passivo, pode-se bem suspeitar
que estão iminentes outros jogos, outros sacrifícios, outras emoções. O
papel que a técnica desempenha neste processo pode ser comparado à
posse formal do ensino romano-imperial, o qual estava à disposição dos
primeiros mensageiros cristãos diante dos duques germânicos. Aponta-
184

se um novo princípio através da criação de factos novos, de formas


peculiares e eficazes — e estas formas são profundas, porque estão
relacionadas existencialmente a este princípio. No essencial, não há
diferença entre profundidade e superficialidade.
De mencionar é ainda a decomposição da autêntica Igreja
popular do século XIX, ou seja, da veneração do progresso, através da
guerra — de mencionar sobretudo porque no espelho deste
desmoronamento se torna particularmente visível o duplo rosto da
técnica.
A técnica aparece no espaço burguês como um orgão do
progresso que se movimenta para uma completude racional-virtuosa. Daí
que esteja estreitamente vinculada às valorizações do conhecimento, da
moral, da humanidade, da economia e do conforto. O lado marcial da sua
cabeça de Jano entra mal neste esquema. Mas é incontestável que é
uma locomotiva que pode mover uma companhia de soldados em vez de
um vagão restaurante, que é um motor que pode mover um tanque em
vez de um carro de luxo — ou seja, que o aumento do tráfego não
apenas junta mais depressa os europeus bons, mas também os maus.
Do mesmo modo, a apresentação artificial de preparados de azoto actua
tanto no sentido agrícola como no sentido da técnica de explosivos.
Todas estas coisas só se deixam descurar enquanto não se entra em
contacto com elas.
Como não pode ser negado o emprego no combate de meios do
progresso, de meios “civilizadores”, o pensar burguês mostra o desejo de
os desculpar. Tal acontece através de a ideologia do progresso sobre o
acontecimento guerreiro se inverter, na medida em que a violência das
armas aparece como um lamentável caso excepcional, como um meio de
domesticação de bárbaros inclinados a não progredir. Estes meios só
competem ao carácter humano, só à humanidade, e isso também só
para o caso de defesa. O objectivo do seu emprego não é a vitória, mas
a libertação dos povos, a sua inclusão naquela comunidade que dispõe
185

de uma maior civilidade. Tal é a cobertura moral sob a qual se explora os


povos coloniais e que também se estende sobre os chamados tratados
de paz. Por todo o lado onde na Alemanha se sentiu de um modo
burguês, apressou-se a saborear com prazer estas frases e a participar
nas instituições que estão calculadas para a eternização deste estado.
As coisas estão de tal modo que a burguesia mundial em todas
as terras, e também a Alemanha não é excepção, obteve apenas uma
vitória aparente. As suas posições enfraqueceram-se na mesma medida
em que, depois da guerra, ela ganhou uma extensão planetária.
Salientou-se que o burguês não é capaz do emprego da técnica como
um meio de poder adequado à sua existência.
O estado que resultou não consiste numa nova ordem do mundo,
mas numa outra repartição da exploração. A todas as medidas que
reivindicam uma nova ordem, seja à famigerada Sociedade das Nações,
seja ao desarmamento, seja ao direito de autodeterminação das nações,
seja à criação de Estados limítrofes e pequenos e de corredores, está
posta a marca do sem sentido. Elas trazem demasiado claramente o selo
do embaraço, de tal modo que isso não poderia escapar mesmo ao
espírito dos povos de cor. O domínio destes negociantes, diplomatas,
advogados e homens de negócios é um domínio aparente que perde
terreno de dia para dia. A sua presença só se pode explicar por a guerra
ter acabado com um armistício quase escondido através de frases
liberais acaloradas, sob cuja capa continua a arder a mobilização.
Multiplicam-se as manchas vermelhas sobre o mapa, e estão iminente
explosões através das quais todo este fragor é espalhado no ar. Ele só
se tornou possível porque a resistência que a Alemanha desdobrou a
partir da mais íntima força do seu povo não foi dirigida por uma camada
de guias à disposição dos quais estava uma linguagem de comando
elementar.
Daí que um dos mais importantes resultados da guerra seja que
esta camada de guias, que não estava à altura das valorizações do
186

progresso, tenha desaparecido no naufrágio. As suas ténues tentativas


para se voltar a estabelecer ligam-se necessariamente com todas as
coisas desgastadas e poeirentas do mundo, com o romantismo, o
liberalismo, a Igreja, a burguesia. Cada vez mais claramente se
começam a separar duas frentes, a frente da restauração e uma outra
que está decidida à continuação da guerra, com todos os meios e não
apenas com os da guerra.
Mas aqui temos de reconhecer onde estão os verdadeiros
aliados. Não estão onde se quer a manutenção, mas onde se quer o
ataque; e aproximamo-nos de estados em que qualquer conflito que
rebenta numa qualquer parte do mundo fortalecerá a nossa posição. A
impotência das velhas formações manifestou-se cada vez mais
claramente antes da guerra, na guerra e depois da guerra. Contudo, para
nós, o melhor armamento está em que quer o singular quer a
colectividade se decida à condução de vida do trabalhador.
Só então se reconhecerá as reais fontes de força que estão
escondidas nos meios do nosso tempo e cujo sentido será revelado não
pelo progresso, mas pelo domínio.

47.

A guerra é um exemplo de primeiro plano porque manifesta o


carácter de poder de está dentro da técnica, excluindo todos os
elementos económicos e de progresso.
Não se se pode aqui deixar enganar pela desproporção existente
entre o gigantesco gasto de meios e os resultados. Já a formulação dos
diferentes objectivos de guerra permite reconhecer que em nenhum
ponto do mundo estava viva uma vontade proporcionada à dureza destes
meios. Mas tem de se saber que o resultado invisível é mais significativo
que o visível.
187

Este resultado invisível consiste na mobilização do mundo pela


figura do trabalhador. A sua primeira característica trai-se na repercussão
das armas contra as potências às quais não fora dada a força para a sua
utilização produtiva. Contudo, esta característica não é de todo de
natureza negativa. Nela anuncia-se a medida de um ataque metafísico,
cuja força irresistível está em o próprio atacado, e aparentemente de um
modo voluntário, escolher os meios do seu declínio. Tal é o caso não
apenas na guerra, mas por todo o lado onde o homem é posto em
contacto com o carácter especializado do trabalho.
Por todo o lado onde o homem atinge a área da técnica, vê-se
posto diante de uma alternativa incontornável. Para ele, trata-se ou de
aceitar os meios peculiares e falar a sua linguagem ou de decair. Mas
quando se aceita, e isto é muito importante, torna-se não apenas no
sujeito de processos técnicos, mas, ao mesmo tempo, no seu objecto. O
emprego dos meios arrasta todo um estilo de vida determinado segundo
ele, que se estende tanto às grandes como às pequenas coisas da vida.
A técnica não é, portanto, de todo um poder neutro, não é
nenhum reservatório de meios eficazes ou cómodos a partir do qual
qualquer uma das forças sobrevindas consiga criar como entende. Pelo
contrário, é precisamente atrás da aparência desta neutralidade que se
esconde a lógica misteriosa e tentadora com que a técnica entende
mostrar-se aos homens. Esta lógica torna-se cada vez mais clara e
irresistível, na mesma medida em que o espaço de trabalho ganha em
totalidade. Também na mesma medida, enfraquece-se o instinto dos que
são atingidos.
Instinto possuía a Igreja, quando queria destruir um saber que via
a Terra como um satélite do Sol; instinto possuía o cavaleiro que
desprezava as espingardas, o tecelão que quebrava as máquinas, o
chinês que proibia a sua importação. Mas todos eles fizeram a sua paz,
aquele tipo de paz que trai o vencido. As consequências instalam-se com
188

uma cada vez maior aceleração, com uma evidência cada vez mais
grosseira.
Ainda hoje vemos não apenas grandes partes do povo, mas
mesmo povos inteiros num combate contra estas consequências, sobre
cujo infeliz desfecho não é possível qualquer dúvida. Quem quereria
então negar a sua participação na resistência do campesinato, o qual, no
nosso tempo, conduz a esforços desesperados?
Mas lute-se aqui, tanto quanto se queira, por leis, por medidas,
por direitos de importação, por preços ⎯ a inutilidade deste combate
está em que uma liberdade tal como aqui é reivindicada já não é hoje de
todo possível. O campo que é explorado com máquinas e que é adubado
com o azoto artificial das fábricas, já não é o mesmo campo. Daí que
também não seja verdade que a existência do camponês seja intemporal
e que as grandes mudanças passem, como o vento e as nuvens, sobre a
sua terra. A profundidade da revolução em que estamos englobados
mostra-se precisamente por ela mesma despedaçar os estados
originários.
A famosa diferença entre a cidade e a terra persiste hoje apenas
ainda no espaço romântico; é tão inválida como a diferença entre um
mundo orgânico e mecânico. A liberdade do camponês não é nenhuma
outra que a de qualquer um de nós ⎯ ela está no reconhecimento de
que qualquer outro modo de condução de vida que não o do trabalhador
está para ele fechado. Tal pode-se comprovar em todos os pormenores,
e não apenas nos económicos, e é em torno disto que decorre o combate
que, no essencial, já há muito que está decidido.
Participamos aqui de um dos últimos ataques contra as relações
de estados, que actua ainda mais dolorosamente que a dizimação dos
estratos culturais dos estados pela inflação, e que talvez se deva
sobretudo comparar ao aniquilamento definitivo da velha casta guerreira
pela batalha mecânica. Entretanto, também aqui não há qualquer
regresso, e, em vez de criar parques de protecção da natureza, tem de
189

se procurar realizar uma ajuda planificada que será tanto mais eficaz
quanto mais corresponder ao sentido dos acontecimentos. Trata-se, por
isso, de realizar formas de cultivo, de exploração e de povoamento da
terra nas quais o carácter total do trabalho se expresse.
Tem lugar então, para aquele que se serve dos meios técnicos
peculiares, uma perda de liberdade, um enfraquecimento da sua lei da
vida, que atinge o que é grande e o que é pequeno. O homem que se
deixa fazer uma ligação eléctrica talvez disponha de uma maior
comodidade, mas seguramente dispõe de uma menor independência do
que aquele que queima a sua candeia. Um Estado de camponeses ou
um povo de cor que encomenda máquinas, engenheiros e trabalhadores
especializados, entra numa relação de tributo visível ou invisível que
rebenta como dinamite os seus vínculos habituais.
A “marcha triunfal da técnica” deixa para trás um extenso rasto de
símbolos destruídos. O seu resultado inevitável é a anarquia ⎯ uma
anarquia que despedaça as unidades de vida nos seus átomos. O lado
destruidor deste acontecimento é conhecido. O seu lado positivo está em
a própria técnica ser de origem cultual, em ela dispor de símbolos
peculiares e em atrás dos seus processos se esconder um combate
entre figuras. A sua essência parece de natureza niilista porque o seu
ataque se estende à soma das relações e porque nenhum valor lhe
consegue fazer resistência. Mas é precisamente este facto que tem de
causar perplexidade e que trai que ela, apesar de ela mesma ser sem
valor e aparentemente neutra, está ao serviço.
A aparente contradição existente entre a prontidão sem escolha
para tudo e todos e o seu carácter destruidor dissolve-se quando se a
reconhece no seu significado como linguagem. Esta linguagem surge
atrás da máscara de um racionalismo rigoroso, o qual consegue decidir
inequivocamente, logo à partida, as questões diante das quais está. Ela é
aliás primitiva; os seus sinais e símbolos são claros pela sua mera
190

existência. Nada parece mais eficaz, mais adequado a fins, mais cómodo
do que se servir destes sinais tão compreensíveis, tão lógicos.
Certamente muito mais difícil é reconhecer que aqui não se se
serve de nenhuma lógica em si, mas de uma lógica muito específica, a
qual, na mesma medida em que concede as suas vantagens, apresenta
as suas reivindicações peculiares e sabe dissolver todas as resistências
que não lhe são adequadas. Este ou aquele poder serve-se da técnica;
quer dizer: adequa-se ao carácter de poder que se esconde atrás dos
símbolos técnicos. Fala uma nova linguagem; quer dizer: renuncia a
todos os outros resultados que não àqueles que já estão contidos no
emprego desta linguagem, tal como o resultado na operação aritmética.
Esta linguagem é compreensível para qualquer um; quer dizer: que hoje
só há um modo de poder que em geral pode ser querido. Mas que se
procure submeter as fórmulas técnicas, enquanto puros meios para o fim,
a leis da vida que não lhe são adequadas, isso conduz necessariamente
a extensos estados de anarquia.
Correlativamente, pode-se observar que a anarquia cresce na
mesma medida em que a superfície do mundo ganha em inequivocidade
e em que se dissolve a diferencialidade das forças. Esta anarquia não é
outra coisa que o primeiro nível necessário que conduz a novas
hierarquias. Quanto maior for a esfera que a nova linguagem, enquanto
meio de entendimento aparentemente neutral, se cria, tanto maior será
também o círculo que ela encontrará na sua propriedade autêntica
enquanto linguagem de comando. Quanto mais profundamente estiverem
minados os velhos vínculos, quanto mais intensamente forem nivelados,
quanto mais os átomos estiverem soltos das suas articulações, tanto
menos resistência haverá contra uma construção orgânica do mundo.
Contudo, em relação à possibilidade de um tal domínio, deu-se no nosso
tempo uma situação à qual a história não tem nenhum exemplo para
contrapor.
191

Na técnica reconhecemos o meio mais eficaz, mais inelutável da


revolução total. Sabemos que a esfera da destruição possui um ponto
central secreto, a partir do qual se cumpre o processo aparentemente
caótico da submissão das velhas potências. Este acto mostra-se na
medida em que o submetido, seja voluntária ou involuntariamente, aceita
a nova linguagem.
Observamos que uma nova humanidade se move no ponto
central decisivo. A fase da destruição é rendida por uma ordem real e
visível, se chegar ao domínio aquela raça que sabe falar a nova
linguagem não no sentido do simples entendimento, do progresso, da
utilidade, do conforto, mas enquanto linguagem elementar. Tal será o
caso na mesma medida em que o rosto do trabalhador manifestar os
seus traços heróicos.
Só é possível pôr a técnica ao serviço, realmente e sem
contradição, quando se representar a figura do trabalhador nos
singulares e nas comunidades que dispõem dela.

48.

Se se reconhecer a figura do trabalhador, que se serve do


homem activo e passivo como um medium, enquanto ponto central
destruidor e mobilizador do processo técnico, então altera-se também o
prognóstico que se pode colocar a este processo.
Por muito movimentada, explosiva e alterável que, no seu
carácter empírico, a técnica se possa apresentar, ela conduz, no entanto,
para ordens completamente determinadas, inequívocas e necessárias,
as quais estão desde o início nela germinalmente incluídas, enquanto
tarefa, enquanto objectivo. Esta relação também se deixa expressar na
medida em que se diz que a sua linguagem peculiar se torna
compreendida cada vez mais claramente.
192

Se se reconhecer isto, então perde-se também a


sobrevalorização do desenvolvimento que é característico da relação do
progresso à técnica. Talvez muito cedo se nos tornará incompreensível o
orgulho com que o espírito humano traça as suas perspectivas ilimitadas,
e que criou uma literatura própria. Deparamos aqui com um sentimento
de marcha que dá asas à atmosfera conjuntural e em cujos vagos
objectivos estão espelhados os velhos lemas da razão e da virtude.
Trata-se da substituição da religião, e certamente da religião cristã, pelo
conhecimento que assume o papel do redentor. Num espaço em que os
enigmas do mundo estão solucionados, cabe à técnica a tarefa de
libertar o homem da maldição do trabalho e de possibilitar-lhe a
ocupação com coisas mais dignas.
O progresso emerge aqui como o princípio criador, surgido por
geração espontânea, ao qual é dedicado uma veneração particular. É de
assinalar que este progresso aparece como um crescimento ininterrupto
⎯ é semelhante a uma esfera que na mesma medida em que ganha em
superfície é posta em contacto com novas tarefas. Também aqui se pode
verificar aquele conceito de infinitude que embriaga o espírito e que, no
entanto, já não é realizável para nós.
Na visão da infinitude, da incomensurabilidade do espaço e do
tempo, o entendimento atinge o ponto em que se lhe manifesta a
limitação própria. A única saída de uma época racionalista é projectar o
progresso do conhecimento nesta infinitude ⎯ como uma luz flutuante na
imensa corrente. Mas aquilo que o entendimento não vê, é o facto de que
esta infinitude, este emergente “o que vem então?”, só é criado por ele
mesmo, e de que a sua presença não apresenta outra coisa do que a
sua própria inaptidão ⎯ a sua incapacidade para captar grandezas que
estão sobrepostas ao conjunto espácio-temporal. Sem o meio que o
transporta, o éter do espaço e do tempo, o espírito despenhar-se-ia, e é
o seu impulso de autoconservação, o seu medo, que cria esta
representação da infinitude. É precisamente por isso que este aspecto da
193

infinitude pertence à era do progresso; nem antes o houve, nem será


compreensível para as gerações posteriores.
Em particular onde as figuras determinam o pensar, não há
qualquer obrigação de ver o infinito e o ilimitado como idênticos. Aqui,
tem antes de se tornar assinalável o desejo de captar a imagem do
mundo como uma totalidade fechada e bem delimitada. Mas, deste
modo, cai também a máscara qualitativa que o progresso atribui ao
conceito de desenvolvimento. Nenhum desenvolvimento está apto a
retirar do ser mais do que nele está contido. O modo do desenvolvimento
é antes determinado pelo ser. Tal vale também para a técnica que via o
progresso sob a perspectiva de um desenvolvimento ilimitado.
O desenvolvimento da técnica não é ilimitado; está concluído no
instante em que, enquanto instrumento, ela corresponde às exigências
peculiares a que a figura do trabalhador a submete.

49.

Assim, na prática, o facto da vida dá-se para nós num espaço


provisório, do qual não é característico o desenvolvimento em si, mas um
desenvolvimento para estados muito determinados. O nosso mundo
técnico não é uma área de possibilidades ilimitadas; pelo contrário, está-
lhe antes ligado um carácter embrionário que vai ao encontro de uma
destinada maturidade. Sucede então que o nosso espaço se assemelha
a uma imensa oficina de ferreiro. Não pode escapar aos olhos que aqui
nada é criado na perspectiva de uma substância duradoura, tal como
podemos apreciar nos edifícios dos antigos, ou também no sentido em
que a arte procura gerar uma linguagem de formas válida. Qualquer meio
traz antes o carácter provisório da oficina, qualquer meio está destinado
a um emprego limitado.
194

A este estado corresponde que a nossa paisagem apareça como


uma paisagem de passagem. Não há aqui qualquer solidez das formas;
todas as formas são ininterruptamente modeladas por uma inquietude
dinâmica. Não há qualquer permanência dos meios; nada é permanente
senão o aumento da linha de desempenho, que lança hoje para o ferro
velho o instrumento ainda ontem inexcedível. Daí que também não haja
nenhuma permanência da arquitectura, da condução da vida, da
economia ⎯ todas elas dependem de uma permanência dos meios, tal
como é peculiar ao machado, ao arco, à vela e ao arado.
O singular vive dentro desta paisagem de oficinas, na medida em
que lhe é exigido o sacrifício de um trabalho parcial, de cuja fugacidade
nem para ele mesmo há qualquer dúvida. A mutabilidade dos meios tem
como consequência um investimento ininterrupto de capital e de força de
trabalho, que, apesar de se esconder debaixo da máscara económica da
concorrência, vai contra todas as leis da economia. Passam assim
gerações que não deixam atrás de si nem poupanças nem monumentos,
mas apenas um estádio determinado, uma marca da maré da
mobilização.
Evidentemente que esta relação provisória será confundida com o
estado de desarrumação que desde há mais de cem anos pertence às
características da paisagem técnica. Esta visão que fere o olhar não é
provocada apenas pela destruição da paisagem natural e cultural ⎯
explica-se pelo estado incompleto da própria técnica. Estas cidades, com
os seus fios metálicos e os seus fumos, com o seu ruído e o seu pó, com
a sua barafunda de formigueiro, com a sua confusão de arquitecturas e
de inovações, que lhes dão cada dez anos um novo rosto, são gigantes
oficinas de formas ⎯ mas elas mesmas não possuem nenhuma forma.
Falta-lhes estilo, se não se quiser assinalar a anarquia como um tipo
particular de estilo. De facto, há hoje duas valorizações quando se fala
de cidades; menciona-se ou a medida em que são museus ou a medida
em que são forjas.
195

Deve-se então verificar que o século XX, pelo menos em


aspectos parciais, já apresenta um maior asseio e uma maior
determinação das linhas condutoras, as quais traem uma clarificação
inicial da vontade de configuração técnica. Assim, pode-se notar um
afastamento da linha mais mediana, um afastamento das concessões
que ainda há pouco tempo se tinha como incontornáveis. Começa-se a
adquirir um sentido para as altas temperaturas, para a geometria glacial
da luz e para a incandescência do metal sobreaquecido. A paisagem
torna-se mais construtiva e mais perigosa, mas fria e mais brilhante;
desaparecem dela os últimos restos da comodidade. Há já partes que se
podem atravessar como áreas vulcânicas ou mortas paisagens lunares
que uma vigilância tão invisível como presente domina. Evita-se as
intenções secundárias, como as do gosto; eleva-se os questionamentos
técnicos ao plano decisivo, e faz-se bem, pois atrás destes
questionamentos esconde-se mais do que algo técnico.
Ao mesmo tempo, os instrumentos ganham em determinação, em
inequivocidade ⎯ e pode-se também dizer: em simplicidade. Aproximam-
se de um estado de perfeição ⎯ se este for alcançado, estará concluído
o desenvolvimento. Se se comparar uma série sucessiva de modelos
técnicos num daqueles novos museus que, como o Museu Alemão em
Munique, se podem assinalar como museus do trabalho, descobrir-se-á
que a complexidade não é uma característica dos estados posteriores,
mas dos estados iniciais. Para referir um exemplo, é estranho que o voo
com planador só tenha sido formado depois do voo com motor. Passa-se
com a formação dos meios técnicos algo semelhante a com a formação
das raças: a cunhagem não caracteriza o início, mas o objectivo. Não é
uma característica da raça que ela possua muitas e complicadas
possibilidades, mas possibilidades muito inequívocas e muito simples.
Assim, as primeiras máquinas também se assemelham a um material
ainda tosco que será polido num curso ininterrupto de trabalho. Por muito
que também ganhem em dimensões e funções, elas serão como que
196

mergulhadas no meio de uma maior clareza. Na mesma medida, não


apenas ganham num plano energético e económico, mas também no
plano estético ⎯ numa palavra: ganham em necessidade.
No entanto, este processo não se limita apenas à precisão do
instrumento singular ⎯ pode-se também percepcioná-lo no conjunto do
espaço técnico. Ele torna-se aqui cognoscível como um aumento em
unidade, em totalidade técnica.
Os meios técnicos penetram nos pontos, à partida, como uma
doença; mostram-se como corpos estranhos na substância que os
rodeia. As novas invenções irrompem nas mais diversas áreas com a
ausência de escolha de um projéctil. Na mesma medida, multiplica-se o
número das perturbações, dos questionamentos que se devem
solucionar. No entanto, só se pode falar de um espaço técnico quando
estes pontos estiverem entrelaçados numa espessa rede de malha. Só
então se manifesta que não há nenhum desempenho singular que não
esteja em relação com todos os outros. Numa palavra, o carácter total do
trabalho perpassa através da soma dos caracteres especializados do
trabalho.
Este complemento, que reúne formas aparentemente muito
afastadas e muito diferentes, lembra a situação de diferentes cotilédones
cujo sentido orgânico só retroactivamente se pode ver na sua unidade,
ou seja, só se pode ver na sua unidade depois da conclusão do
desenvolvimento. Na mesma medida em que o crescimento se aproxima
desta conclusão, pode-se observar que o número dos questionamentos
já não aumenta, mas diminui.
Tal mostra-se, na prática, de modos muito diferenciados. Torna-
se perceptível na medida em que a construção dos meios se torna mais
típica. Surgem assim instrumentos que unem em si um grande número
de soluções singulares, as quais como que estão neles fundidas. Na
mesma medida em que os meios se tornam mais típicos, ou seja, mais
inequívocos e mais calculáveis, determina-se a sua situação e a sua
197

dignidade no espaço técnico. Integram-se em sistemas cujos buracos se


tornam mais pequenos e cuja clareza cresce.
Tal mostra-se na medida em que o próprio desconhecido, o
insolucionado se torna calculável ⎯ ou seja, na medida em que se torna
possível um plano e um prognóstico das soluções. Dá-se um
entrelaçamento e uma assimilação cada vez mais espessos que
procuram soldar o arsenal técnico, em toda a especialização, num único
instrumento gigante que aparece como símbolo material, ou seja, como
um símbolo profundo do carácter total do trabalho.
Apenas indicar os numerosos caminhos que conduzem à unidade
do espaço técnico, seria ultrapassar o quadro, apesar de se esconder
aqui uma plenitude de momentos surpreendentes. Assim, é estranho que
a técnica instale forças motrizes cada vez mais precisas sem que por
isso a ideia fundamental dos seus meios experimente uma mudança, tal
como depois da força de vapor o motor de explosão e a electricidade,
cujo círculo de aplicação será aberto de novo, num tempo previsível, por
potências dinâmicas supremas. É como que sempre a mesma carroça
que é esperada pela nova muda. Ela dirige-se, através dos seus suportes
económicos, através da livre concorrência, através dos trustes e dos
monopólios de Estado, para a preparação de uma unidade imperial. Além
disso, pertence aqui que quanto mais claramente aparecer na sua
unidade como “grande instrumento”, tão mais variados serão os modos
em que poderá ser dirigida. Na sua penúltima fase, que se torna
precisamente visível, aparece como a serva dos grandes planos,
independentemente de estes planos se relacionarem com a guerra ou
com a paz, com a política ou com a investigação, com o tráfego ou com a
economia. Contudo, a sua última tarefa consiste em realizar o domínio
em qualquer lugar que seja, para qualquer tempo que seja e em qualquer
medida que seja.
A nossa tarefa aqui não é então acompanhar a multiplicidade
destes caminhos. Todos eles conduzem para um e o mesmo ponto.
198

Trata-se antes de que o olhar se habitue a uma diferente imagem de


conjunto da técnica. A técnica apareceu à representação, durante muito
tempo, como uma pirâmide que está na ponta e que se encontra num
crescimento ilimitado, cuja superfície livre aumenta imprevisivelmente.
Pelo contrário, temos de nos esforçar por vê-la como uma pirâmide cuja
superfície livre se estreita progressivamente e que, num tempo muito
previsível, terá alcançado o ponto conclusivo. No entanto, esta ponta
ainda invisível já determinou a dimensão do esboço. A técnica contém
em si as raízes e as sementes da sua última potência.
Explica-se a partir daqui a consequência rigorosa que se esconde
atrás da superfície anárquica do seu curso.

50.

A mobilização da matéria pela figura do trabalhador, tal como


aparece enquanto técnica, tornou-se ainda tão pouco visível no seu
último e supremo grau como a mobilização do homem por esta mesma
figura, a qual decorre paralela a esta. Este último grau consiste na
realização do carácter total do trabalho, que aparece aqui como
totalidade do espaço técnico e ali como totalidade do tipo. Estas duas
fases remetem uma à outra na sua emergência ⎯ tal torna-se
perceptível na medida em que, por um lado, o tipo precisa dos meios que
lhe são peculiares para a sua eficácia, mas, por outro lado, nestes meios
se esconde uma linguagem que só pode ser falada através do tipo. A
convergência nesta unidade expressa-se na dissolução da diferença
entre mundo orgânico e mundo mecânico; o seu símbolo é a construção
orgânica.
Levanta-se então a questão de saber até que ponto se alterarão
as formas de vida quando o estado dinâmico-explosivo em que nos
encontramos tiver sido rendido por um estado de perfeição. Falamos aqui
199

de perfeição e não de completude porque a completude pertence aos


atributos da figura, mas não aos dos seus símbolos que só são visíveis
ao nosso olhar. Daí que o estado de perfeição possua uma dignidade tão
secundária como o estado de desenvolvimento: atrás de ambos está,
enquanto grandeza sobreposta e imutável, a figura. Assim, a infância, a
juventude e a velhice do homem singular são apenas estados
secundários diante da sua figura, a qual nem começa com o nascimento
nem é encerrada com a morte. No entanto, a perfeição não significa mais
do que um grau em que a difusão da figura toca particularmente o olhar
efémero ⎯ e também aqui parece difícil decidir se ela se espelha mais
claramente na cara da criança, no actuar do homem ou naquele último
triunfo, tal como o que por vezes a máscara da morte abre.
Isso não significa outra coisa senão que também para o nosso
tempo não estão fechadas as últimas possibilidades que o homem
consegue alcançar. Tal é testemunhado por vítimas que têm de ser
avaliadas de modo tanto mais elevado quanto foram apresentadas à
beira do absurdo. Num tempo em que os valores desaparecem atrás de
leis dinâmicas, atrás da pressão do movimento, estas vítimas
assemelham-se aos caídos na tempestade, que logo desaparecem da
vista e nos quais, no entanto, se esconde uma suprema existência, a
garantia da vitória. Este tempo é rico em mártires desconhecidos, possui
uma profundidade de sofrimento cujo fundo nenhum olhar ainda viu. A
virtude que é adequada a este estado é a do realismo heróico, que não
pode ser abalado sequer pela perspectiva da completa aniquilação e da
ausência de esperança dos seus esforços. Daí que a perfeição seja hoje
uma coisa diferente de para outros tempos ⎯ talvez esteja mais onde
menos é aludida. Manifesta-se talvez o melhor possível na arte de lidar
com explosivos. Em todo o caso, não está onde se alude à cultura, à
arte, à alma ou ao valor. Disto ou já não se fala ou ainda não se fala.
A perfeição da técnica não é outra coisa que uma das
características para a conclusão da Mobilização Total em que estamos
200

compreendidos. Daí que consiga elevar a vida a um nível mais elevado


de organização, mas não, como acreditava o progresso, a um nível mais
elevado de valor. Nela, mostra-se a rendição de um espaço dinâmico e
revolucionário por um espaço estático e supremamente ordenado.
Realiza-se então aqui uma passagem da transformação para a
constância ⎯ uma passagem que certamente produzirá consequências
muito significativas.
Para conceber isto, temos de ver como é que o estado de uma
mutação ininterrupta, em que estamos implicados, reivindica para si
todas as forças e reservas de que a vida dispõe. Vivemos num tempo de
grande consumo, como cujo único efeito se pode reconhecer um impulso
mais acelerado das rodas. Em última análise, é completamente
indiferente se se consegue movimentar com a velocidade de um caracol
ou com a de um relâmpago ⎯ pressupondo-se que o movimento ponha
exigências constantes, mas não mutáveis. No entanto, o que é peculiar
na nossa situação consiste em a pressão do recorde regular os nossos
movimentos e em a medida mínima de desempenho que de nós é
exigida ganhar ininterruptamente em extensão. Este facto evita
completamente que a vida, em qualquer das suas áreas, se consiga
solidificar em ordens mais seguras e incontestáveis. A condução da vida
é antes semelhante a uma corrida mortal em que se tem de empregar
todas as forças para que não se fique à distância.
Para um espírito que não nasceu dentro do ritmo do nosso
espaço, a este processo prendem-se todas as características do
enigmático, e mesmo do louco. Têm aqui lugar, sob a máscara
implacável da economia e da concorrência, coisas espantosas. Assim,
um cristão tem de chegar ao juízo de que em formas tais como as que a
publicidade assumiu neste tempo habita um carácter satânico. As
conjuras e as contendas abstractas da luz no centro das cidades
lembram a muda e exasperada luta das plantas por terra e espaço. Ao
olhar de um oriental, tem de ser visível, de um modo puramente corpóreo
201

e doloroso, que qualquer homem, qualquer transeunte na rua, se


movimenta com todas as características de um corredor. As mais novas
construções, os meios mais eficazes, ficam apenas pouco tempo; são ou
demolidos ou reconstruídos.
Em consequência disso, não há capital no velho sentido estático;
o próprio valor do ouro é duvidoso. Já não há artesanato em que se
possa acabar de aprender, em que se possa obter uma mestria
concluída; todos nós somos aprendizes. Ao tráfego e à produção liga-se
algo sem medida e incalculável ⎯ quanto mais depressa se se consegue
movimentar, tanto menos se chega ao objectivo, e o aumento das
colheitas e da criação de bens está num estranho contraste com o
crescente depauperamento das massas. Também os meios de poder são
mutáveis; a guerra nas grandes frentes da civilização apresenta-se como
um intercâmbio febril de fórmulas de física, de química e de matemática
superior. Os imensos arsenais de aniquilamento não garantem qualquer
segurança; talvez já amanhã se tenha descoberto os pés de barro do
colosso. Nada é constante senão a mudança, e neste facto despedaça-
se qualquer esforço que esteja orientado para a posse, para a satisfação
ou para a segurança.
Bem aventurado aquele que sabe ir por outros e mais ousados
caminhos.

51.

Se reconhecermos então a figura do trabalhador como a figura


determinante e o movimento que magneticamente se impulsiona a si
mesmo, se a reconhecermos como o último e verdadeiro concorrente,
como o terceiro elemento invisível no meio das incontáveis formas da
concorrência, então sabe-se que está dado a estes processos o seu
objectivo. Suspeita-se o ponto em que se esconde a justificação de
202

vítimas caídas em locais aparentemente muito diferentes e muito


distanciados uns dos outros. A perfeição da técnica é um, e apenas um,
dos símbolos que confirmam a conclusão. Ela grava-se, como se disse,
com a cunhagem de uma raça da mais elevada inequivocidade.
O ponto temporal da conclusão do processo técnico está então
fixado na medida em que um grau muito determinado de aptidão estiver
para ser alcançado. Segundo o pensamento, esta conclusão seria
teoricamente possível em qualquer tempo ⎯ teria podido ocorrer tanto
há cinquenta anos como pode ocorrer hoje. O corredor da maratona não
anuncia uma melhor vitória do que o telégrafo sem fios. Quando a
agitação chegar à calma, qualquer instante é adequado para ponto de
partida da constância chinesa. Se, por uma qualquer catástrofe natural,
todas as terras do mundo até ao Japão se afundassem no mar, o nível
da técnica alcançado neste instante manter-se-ia provavelmente, em
todos os pormenores, inalterado durante séculos.
Os meios de que dispomos não apenas são suficientes para
preencher qualquer exigência da vida, mas o que é peculiar na nossa
situação consiste precisamente em eles realizarem mais do que deles é
esperado. A partir daqui dão-se estados em que se procura oprimir o
crescimento de meios, seja através do acordo, seja através do comando.
Esta tentativa de conter a violência indiscriminada da corrente
pode-se observar por todo o lado onde existem reivindicações de
domínio. Assim, os Estados tentam fechar-se, através de protecções
aduaneiras, contra uma concorrência sem medida; e onde estruturas
monopolistas se apoderaram de certos ramos da indústria não é raro que
se faça segredo das invenções. Pertencem aqui também os convénios
para se afastar o emprego guerreiro de determinados meios técnicos ⎯
convénios que são quebrados durante as guerras e aos quais é dado um
carácter monopolista depois da decisão do vencedor, tal como também
aconteceu depois da última guerra em relação ao direito de poder
produzir gases venenosos, tanques ou aviões de guerra.
203

Deparamos então aqui já, como em algumas outras áreas, com


uma vontade de trazer o desenvolvimento técnico para uma maior ou
menor conclusão, a fim de criar zonas que estejam retiradas da mudança
infatigável. Contudo, estas tentativas estão já condenadas a fracassar
porque nenhum domínio total e incontestável está atrás delas. Tal tem as
suas boas razões: vimos que a cunhagem do domínio corresponde à
cunhagem dos meios. Por um lado, só o espaço técnico total possibilitará
um domínio total; por outro lado, só um tal domínio possui um poder real
de dispor da técnica. No entanto, provisoriamente, será possível uma
regulamentação crescente, mas não uma fixação definitiva dos meios
técnicos.
O fundamento deste facto deve-se procurar em entre o homem e
a técnica não haver nenhuma relação de dependência imediata, mas
mediata. A técnica possui o seu curso próprio, que o homem não
consegue arbitrariamente encerrar quando o estado dos meios parece
bastar-lhe. Todos os exemplos técnicos arrastam a sua solução, e a
constância técnica não surgirá mais cedo do que quando se tiver dado
esta solução. Um exemplo para a medida em que o espaço técnico
ganha em planificação e clareza está no facto de que, pelo menos, as
soluções parciais já são muito menos o resultado de achados felizes do
que de uma marcha ordenada que alcança este ou aquele marco de
caminho num tempo cada vez mais calculável. Há já âmbitos, se bem
que não na praxis técnica, mas sim nas ciências singulares que a
antecedem, em que se pode observar um máximo de precisão técnica
que consegue dar uma representação muito clara das suas últimas
possibilidades. Aqui parecem estar por dar ainda apenas poucos passos
para alcançar a última configuração que no nosso espaço é possível. E
precisamente aqui, como que na observação dos resultados da física
atómica, ganhamos um juízo sobre a distância que ainda separa a praxis
técnica do óptimo das suas possibilidades.
204

52.

Se agora quisermos representar-nos um estado que alcance este


óptimo, tal não acontece na intenção de multiplicar o número das utopias,
das quais no nosso tempo não há qualquer falta. A utopia técnica mostra-
se através de nela a curiosidade estar orientada para o como, para o
modo. Ponha-se em suspenso que meios ainda venham a surgir, que
fontes de energia se venham a abrir e como é que se as empregará.
Muito mais significativo é o facto da conclusão em geral,
independentemente de que formas ela possa assumir. Pois só então
poder-se-á dizer que os meios possuem forma, enquanto hoje são
apenas as instrumentações fugazes de linhas de desempenho.
Não há nenhuma razão plausível que se oponha à aceitação de
que um dia se dará uma constância dos meios. Um tal permanência
durante um longo espaço de tempo é antes a regra, enquanto o ritmo
febril de mudança em que nos encontramos está sem exemplo histórico.
A duração deste tipo de mutabilidade é limitada, seja porque a vontade
que lhe está na base quebra, seja porque alcança os seus objectivos. É
porque julgamos ver tais objectivos que a consideração da primeira
possibilidade é para nós sem significado.
Uma constância dos meios, seja de que tipo for, encerra uma
permanência da condução da vida de que perdemos qualquer suspeita.
Esta permanência não se deve certamente compreender como uma
ausência de atritos no sentido racional-humanitário, não como um último
triunfo do conforto, mas no sentido de que um pano de fundo seguro e
objectivo deixa reconhecer mais nítida e claramente a medida e o nível
dos esforços, das vitórias e das derrotas humanas, do que o que é
possível no meio de um estado dinâmico-explosivo incalculável.
Queremos expressá-lo deste modo: que a conclusão da mobilização do
205

mundo pela figura do trabalhador possibilitará uma vida adequada à


figura.
Uma permanência da condução da vida neste sentido pertence
aos pressupostos de qualquer economia planificada. Enquanto capital e
força de trabalho, independentemente de quem disponha deles, forem
absorvidos pelo processo de mobilização, não se pode falar de
economia. A lei económica é aqui coberta por leis que se assemelham às
da condução da guerra ⎯ descobrimos modos de concorrência em que
ninguém ganha não só nos campos de batalha, mas também na
economia. O gasto de meios assemelha-se, do lado da força de trabalho,
a um desempenho de guerra; do lado do capital, a uma subscrição de um
empréstimo de guerra ⎯ ambos são completamente devorados pelo
processo.
Vivemos num estado em que nem o trabalho, nem a posse, nem
o património se rentabilizam, e em que o ganho diminui na mesma
medida em que aumenta a transacção. A degradação do nível de vida do
trabalhador, o período cada vez mais curto no qual o património
permanece numa só mão, a questionabilidade da posse, particularmente
da posse fundiária, e dos meios de produção em mutação disso dão
testemunho. A produção furta-se à estabilidade e, deste modo, a
qualquer calculabilidade a longo prazo. Qualquer ganho é, por isso,
devorado pela necessidade, que se dá sempre novamente, de uma maior
aceleração. Uma concorrência desmesurada atinge indiferentemente
produtores e consumidores ⎯ como exemplo, refira-se a publicidade,
que se desenvolveu para uma espécie de fogo de artifício, que estoira
somas enormes, para cuja emergência cada um tem de pagar o seu
tributo. Pertence aqui aliás o despertar inevitável de necessidades, de
comodidades sem as quais o homem julga já não poder viver, e através
das quais é aumentada a medida da sua dependência, das suas
obrigações. Estas necessidades, por seu lado, são tão múltiplas como
sujeitas a variação ⎯ há cada vez menos coisas que se adquire para o
206

tempo de uma vida. O sentido da duração, tal como se incorporou na


posse imobiliária, parece estar destinado a desaparecer, senão seria
inexplicável como hoje por um carro, que possui poucos anos de vida, se
gastam montantes com os quais poderiam ser adquiridos um vinhedo ou
uma casa de campo. Com a afluência de mercadorias que cria uma
concorrência febril multiplicam-se necessariamente os canais através dos
quais o dinheiro é absorvido. A mobilização do dinheiro tem como
consequência um sistema de crédito ao qual nem sequer o centavo pode
escapar. Surgiram assim estados em que se vive literalmente por
prestações, isto é, em que a existência económica se apresenta como a
amortização ininterrupta de créditos através do trabalho que é hipotecado
à partida. Este processo espelha-se, em dimensões gigantescas, nas
dívidas de guerra, atrás de cujos complexos mecanismos financeiros se
esconde um embargo da energia potencial, o juro de um saque
irrepresentável através da força de trabalho, e vai até à existência
privada do singular. De mencionar é ainda o desejo de trazer a posse a
formas onde habita uma completude e uma força de resistência cada vez
menor. Pertencem aqui a mutação dos restos da posse feudal em posse
privada, o modo em que se substitui as reservas individuais e sociais por
pagamentos de seguros, e sobretudo os múltiplos ataques que são
dirigidos contra o papel do ouro como símbolo do valor. Surgem aqui
formas de imposto através das quais é dada à posse uma espécie de
carácter de administração. Assim, depois da guerra, soube fazer-se da
posse imobiliária uma espécie de cobrador financeiro para programas de
construções novas. A estes ataques parciais correspondem ataques
gerais aos últimos recantos da segurança económica, na forma de
inflações e crises de tipo catastrófico.
Este estado retira-se já de qualquer regulamentação económica
porque se submete a outras leis que não as económicas. Entrámos numa
fase em que as tarefas são maiores que as receitas, e em que se torna
207

muito claro que a técnica é tão pouco uma questão económica como o
trabalhador pode ser captado por um modo de consideração económico.
Talvez, na visão das paisagens vulcânicas da batalha técnica,
tenha emergido em alguns dos participantes o pensamento de que
tarefas deste tipo são demasiado enormes para se poderem pagar, e
também a má situação das potências vencedoras, o estado universal das
dívidas de guerra, dá disso uma comprovação. O mesmo pensamento
impõe-se na consideração do estado técnico em geral. Por muito e seja
como for que também se melhore e multiplique o arsenal técnico: a
carestia do pão tem de ser a consequência.
Entrámos num processo de mobilização que possui propriedades
devoradoras, que queima os homens e os meios — e isso não mudará
enquanto o processo estiver em curso. Só depois de se alcançar uma
conclusão se pode falar, do mesmo modo que de uma ordem em geral,
também de uma economia ordenada, isto é, de uma relação calculável
entre tarefas e receitas. Só a constância incondicional dos meios,
independentemente de como sejam estes meios, é capaz de reconduzir
a concorrência desmesurada e incalculável a uma concorrência natural,
tal como se pode observar dentro dos reinos naturais ou dentro dos
estados sociais tornados históricos.
Também aqui, novamente, se manifesta a unidade do mundo
orgânico e mecânico; a técnica torna-se orgão e retrocede como poder
autónomo na mesma medida em que ganha em perfeição e, deste modo,
em evidência.
Só a constância dos meios possibilita também a regulamentação
legal da concorrência, tal como acontecia através das ordens das
corporações e do comércio, e tal como já hoje é intencionada por uniões
e monopólios estatais — certamente sem sucesso, pois precisamente os
meios são mutáveis e submetidos a ataques incalculáveis. Numa
constância de meios, aquelas despesas tornar-se-ão notadas como
poupanças que hoje a necessidade da crescente aceleração engole.
208

Além disso, é claro que só então se pode falar de mestria —


nomeadamente, quando a arte já não consistir em mudar de
aprendizagem, mas em acabar a aprendizagem. Finalmente, ao mesmo
tempo com a mutabilidade dos meios desaparece o carácter de oficina
do espaço técnico — articulação, duração e calculabilidade das
instalações serão as consequências.

53

Tocamos aqui a área da actividade construtiva, na qual a


influência de uma constância de meios se torna muito mais clara.
Abordámos já o conceito de construção orgânica, que se manifesta, em
relação ao tipo, como a estreita fusão, sem contradição, do homem com
os instrumentos que estão à disposição dele. Em relação a estes
instrumentos mesmos, pode-se falar de construção orgânica quando a
técnica alcançar aquele mais elevado grau de evidência tal como o que
habita dentro dos membros animais e vegetais. Mesmo no estado técnico
embrionário no qual nos encontramos, não se pode descurar o esforço,
ligado com a simplicidade audaciosa das linhas, não apenas de uma
economicidade acrescida, mas também de uma eficácia. Fazemos a
experiência de que o curso deste processo não apenas causa uma maior
satisfação ao entendimento, mas também à vista ⎯ e isso causado com
aquela ausência de intenção que pertence às características do
crescimento orgânico.
O máximo de construção pressupõe a conclusão da parte
dinâmico-explosiva do processo técnico, que na mesma medida, e de
certo apenas em aparência, está em contradição tanto com a forma
natural como com a forma histórica. Há, por isso, pormenores na nossa
paisagem que permaneceram estranhos ao olhar durante cem anos. A
isso pertence, como que em contraste com os meios aéreos, a visão do
209

caminho de ferro. A medida em que diminui a diferença entre meios


orgânicos e técnicos torna-se aliás captável, de um modo puramente
sentimental, e não sem razão, através do grau em que a arte consegue
tirar notas deles. Assim, até o romance naturalista só depois de décadas
toma conhecimento do facto de que há caminhos de ferro, enquanto não
se pode ver nenhuma razão pela qual a epopeia ou mesmo o poema
lírico se tivesse de fechar à consideração do voo. É muito bem pensável
um tipo de linguagem em que se falasse dos combates de aviação como
dos carros de guerra homéricos, com as suas parelhas; e o voo de
planador pode ser o objecto de uma ode não mais pequena que aquela
em que foi cantada a patinagem sobre o gelo. Está certamente aqui
também o pressuposto de uma outra humanidade; aproximamo-nos dela
na consideração da relação que se dá do tipo à arte.
Que a forma seja sentida, de algum modo, como conhecida, e
que o olhar conceba que ela seja necessariamente formada, e não de
outro modo, tal é uma característica da entrada na construção orgânica.
Nessa medida, os resto dos aquedutos na campagna correspondem ao
estado de uma perfeição técnica que ainda não se pode observar entre
nós ⎯ independentemente de os nossos dispositivos hodiernos serem
ou não mais eficazes. Está assente no carácter de oficina da nossa
paisagem que não poderemos ousar construir por mil anos. Chega-se
assim a que mesmo às mais violentas construções que o nosso tempo
produz falta aquele carácter monumental que é um símbolo da
eternidade. Tal deixa-se comprovar em todos os pormenores, até à
escolha dos materiais de construção ⎯ para comprovação, é suficiente
olhar para um qualquer edifício.
A razão deste fenómeno não se deve procurar em a técnica de
construção estar em contradição com a arte de construção. A relação
está antes em a arte de construção, tal como qualquer tipo de mestria,
precisar de uma técnica que em si esteja concluída, e isto tanto em
210

relação aos seus meios próprios como em relação ao estado de conjunto


em geral.
É então impossível construir uma estação à qual já não esteja
ligado um qualquer carácter de oficina enquanto o próprio caminho de
ferro pertencer aos meios questionáveis. Seria, por isso, um pensamento
absurdo, dar fundações a um cais do caminho de ferro que
correspondam às da Via Ápia. Numa correspondência contrária, é um
absurdo construir hoje igrejas como símbolos do eterno. A um tempo que
se satisfaz em copiar os grandes modelos do passado num estilo de
caixa de construção, segue-se um outro cuja completa ausência de
instinto se trai na tentativa de construir igrejas cristãs com os meios da
técnica moderna, ou seja, com meios tipicamente anti-cristãos. Tais são
esforços que, por assim dizer, se abatem até aos últimos tijolos. A mais
abrangente tentativa deste tipo, a construção da Sagrada Família em
Barcelona, produz um monstro romântico, e aquilo que hoje na Alemanha
se pode observar em esforços semelhantes é artesanato, isto é, aquela
forma particular de impotência que esconde a sua incapacidade atrás da
máscara da objectividade. Estes edifícios despertam a impressão de
terem sido edificados, desde o início, para fins de secularização. Em
particular, o famoso betão armado é um típico material de oficina no qual
como que se cumpriu a completa dissolução da pedra de construção em
argamassa ⎯ um material que é adequado sobretudo para a construção
de trincheiras, mas não de igrejas.
Neste contexto, refira-se também a esperança de que a
Alemanha experimentará uma geração que possui piedade e veneração
dos heróis suficiente para demolir os monumentos de guerra que foram
edificados no nosso tempo. Aliás, não vivemos ainda num tempo ao qual
está reservado uma generosa revisão de todos os monumentos. Tal trai-
se já pela medida em que a consciência da elevada dignidade e da
imensa responsabilidade do culto dos mortos se perdeu. De todos os
aspectos que o burguês oferece, o mais horrível consiste no modo como
211

se deixa sepultar, e um único passeio num destes cemitérios torna


perceptível o provérbio sobre as terras em que não se deseja ser
sepultado. Entretanto, a guerra assinala também aqui um ponto de
viragem: viu-se novamente, de vez em quando, sepulturas.
A incapacidade de construir realmente está então, do mesmo
modo que a incapacidade da economia genuína, em harmonia com a
mutabilidade dos meios. No entanto, tem de se tornar claro que esta
mutabilidade não existe em si, mas que não apresenta senão um sinal de
que a técnica ainda não está numa relação indubitável de serviço ⎯ ou,
expresso por outras palavras, que o domínio ainda não se realizou. Mas
caracterizámos esta realização como a última tarefa que está na base do
processo técnico.
Se esta tarefa estiver resolvida, também a mutabilidade será
rendida pela constância de meios, isto é, os meios revolucionários
tornam-se legítimos. A técnica é a mobilização do mundo pela figura do
trabalhador; a primeira parte desta mobilização é necessariamente de
natureza destrutiva. Depois da conclusão deste processo, a figura do
trabalhador surge, em relação à actividade construtiva, como patrão
supremo. Será então novamente possível construir num estilo
monumental ⎯ e isso tanto mais que a capacidade de desempenho
puramente quantitativo dos meios que estão à disposição é superior a
qualquer escala histórica.
O que falta às nossas obras é precisamente figura, é metafísica, é
aquela verdadeira grandeza que não se deixa forçar por nenhum esforço,
nem pela vontade de poder nem pela vontade de fé. Vivemos num dos
estranhos espaços de tempo em que já não há e ainda não há domínio.
No entanto, pode-se dizer que o ponto zero já foi ultrapassado. Tal
mostra-se em nós termos entrado na segunda parte do processo técnico,
no qual a técnica se põe à disposição de planos maiores e mais ousados.
É certo que estes planos também ainda são tão mutáveis em si como
estão incluídos numa concorrência mais extensa ⎯ ainda estamos
212

afastados da entrada na última e decisiva fase. O importante é, no


entanto, que o plano não se apresente na consciência humana como a
forma decisiva, mas como um meio para o fim. Nele expressa-se um
processo que é proporcionado ao carácter de oficina do nosso tempo.
Correlativamente, a linguagem arrogante do progresso é rendida por uma
nova modéstia ⎯ pela modéstia de uma geração que renunciou à
miragem de estar na posse de valores inatacáveis.

54.

A perfeição, e consequentemente a constância, dos meios não é


criadora de domínio, mas realizadora de domínio. Ainda mais claramente
que na área da economia e da construção, pode-se reconhecer isto onde
a técnica aparece como a fonte de puros meios de poder ⎯ mais
claramente não apenas porque a união entre técnica e domínio se
manifesta aqui o mais claramente possível, mas também porque
qualquer meio técnico possui uma dignidade guerreira secreta ou aberta.
O modo em que estes factos surgem no nosso tempo, e as
possibilidades que se começam a mostrar para além deles, encheram os
homens de preocupações que são bem justificadas.
Mas o que é cuidado sem responsabilidade, sem a vontade de
dominação do elemento perigoso que nos rodeia? O aumento assustador
dos meios despertou uma confiança ingénua, que se esforça por desviar
os olhos dos factos como das imagens de um sonho terrível. A raiz desta
confiança assenta naquela fé que tem a técnica como um instrumento do
progresso, ou seja, de uma ordem do mundo racional-ética. Ligada a isto
está a opinião de que há meios que são tão destrutivos que o espírito
humano os encerra como que em frascos de veneno.
No entanto, como vimos, a técnica não é de modo nenhum um
instrumento do progresso, mas um meio da mobilização do mundo pela
213

figura do trabalhador, e enquanto decorrer este processo pode-se dizer


com determinação que não se renunciará a nenhuma das suas
propriedades devastadoras. Para além disso, também o supremo
aumento do esforço técnico não consegue ter um objectivo senão a
morte, a qual é igualmente amarga para todos os tempos. A visão de que
a técnica como arma provoca uma inimizade mais profunda entre os
homens é, por isso, tão errada como a visão correlativa de que ela, onde
aparece como comércio, tem por consequência uma consolidação da
paz. A sua tarefa é uma tarefa completamente diferente, a de se tornar
apropriada para o serviço de um poder que determina na mais elevada
instância sobre a guerra e a paz, e assim sobre a eticidade ou a justiça
destes estados.
Quem reconheceu isto, chega logo ao ponto decisivo do grande
confronto sobre a guerra e a paz que se desencadeou no nosso tempo. É
secundário como e se o emprego de meios técnicos no combate, como e
se o próprio facto da guerra se deixa ou não justificar através da razão ou
da moral, e pode-se dizer que todos os burgueses que se ocuparam com
estas questões, pelo menos em relação à praxis, escreveram em vão.
Seja se se quiser a guerra, seja se se quiser a paz: a questão de que
unicamente aqui se trata é a de saber se há um ponto em que o poder e
o direito são idênticos ⎯ onde o acento tem de estar completamente em
ambas as palavras. Pois só então é possível que sobre a guerra e a paz
já não se fale, mas se decida com autoridade. É porque, no estado que
alcançámos, qualquer confronto realmente sério ganha um carácter de
guerra mundial que este ponto possui um significado planetário.
Chegámos igualmente ao contexto que liga esta questão com a perfeição
dos meios técnicos, ou seja, neste caso, dos meios de combate ⎯ note-
se apenas brevemente que em cada um dos dois grandes suportes do
Estado do século XIX, tanto na nação como na sociedade, habita a
orientação para um tal fórum supremo.
214

Em relação à nação, tal manifesta-se no desejo de levar o Estado


para além das fronteiras nacionais e de dar-lhe uma dignidade imperial;
em relação à sociedade, na preparação de contratos sociais com uma
validade planetária. Em ambos os caminhos, dá-se que uma tal
regulamentação não está reservada para os princípios do século XIX.
Os esforços gigantescos dos Estados-Nação avançam, como
resultado, para a anexação questionável de províncias; e onde se podem
observar princípios imperiais, trata-se de um imperialismo colonial que
precisa da ficção de que há povos que, como a Alemanha, ainda estão
precisados de educação. A nação encontra os seus limites em si mesma,
e qualquer passo que a conduz para além deles é completamente
duvidoso. A aquisição de uma estreita faixa fronteiriça com base no
princípio da nacionalidade é muito menos legítima que a de um reino
inteiro através do matrimónio, num sistema de forças dinástico. Nas
guerras de sucessão trata-se, por isso, apenas de duas interpretações de
um direito reconhecido pelos dois parceiros; nas guerras nacionais, de
dois tipos de direito em geral. É assim também que as guerras nacionais
reconduzem para o estado natural.
A razão de todos estes fenómenos está em a representação do
século XIX ter formado as nações segundo modelos individuais; elas são
indivíduos grandes, remetidos para a “lei moral em si”, e, por isso,
sucede que lhes está fechada a possibilidade da formação de reais
impérios. Não há nenhum fórum supremo, nem do direito nem do poder,
que tanto limite como vincule as suas reivindicações ⎯ esta tarefa está
antes atribuída a uma força natural mecânica, a do equilíbrio. Os
esforços das nações, orientados para a sua validade para além das suas
fronteiras, estão condenados ao fracasso porque através deles é aberto
o caminho do puro desdobramento do poder. Que aqui, a cada passo, o
chão se torne mais duro e mais difícil, explica-se por o poder ultrapassar
a esfera do direito que lhe está atribuído e, com isso, aparecer como
violência, e assim, no íntimo, ser sentido como inválido.
215

Os esforços da sociedade, orientados do mesmo modo,


perseguem o caminho contrário; procuram estender uma esfera do direito
à qual não está atribuída nenhuma esfera de poder. Chega-se assim a
grémios como o da Sociedade das Nações ⎯ a grémios cuja vigilância
fictícia sobre espaços de direito imensos está numa estranha
desproporção em relação ao alcance do seu poder executivo.
Esta desproporção produziu no nosso tempo uma série de
fenómenos de um novo tipo, que se podem conceber como
características de daltonismo humanitário. Desenvolveu-se um
procedimento tal como a construção teórica de tais espaços de direito
tinha de extrair necessariamente de si, ou seja, o procedimento da
sanção adicional por actos de violência através da jurisprudência.
Assim, tornou-se possível que hoje sejam conduzidas guerras das
quais não se toma nenhum conhecimento, porque o mais forte gosta de
as assinalar como reposição da paz ou como acção de policiamento
contra bandos de ladrões ⎯ guerras que estão certamente presentes na
realidade, mas não na teoria. Existe também a mesma cegueira diante
do desarmamento da Alemanha, que é tão compreensível como acto de
poder político como infame na fundamentação que é dada a este acto.
Esta infâmia só podia ser ultrapassada pela infâmia da burguesia alemã
de tomar parte na Sociedade das Nações. Mas basta ⎯ trata-se aqui
apenas da prova de que a entrada na identidade do poder e do direito
não pode ser alcançada através de um alargamento dos princípios do
século XIX. Veremos mais tarde se talvez já se podem observar
possibilidades diferentes.

55.

Em relação aos meios, e é deles que aqui falamos, surgem


esforços de tipo imperial como tentativas de uma administração
216

monopolista do aparelho técnico do poder. Deste modo, medidas de


desarmamento do tipo indicado são completamente coerentes; coerente
é em particular que elas não se refiram apenas ao arsenal concreto, mas
que procurem paralisar a energia potencial que o arsenal produz. São
ataques que já não são dirigidos ao carácter especial do trabalho, mas
ao carácter total do trabalho.
Com base nas nossas considerações até agora, não nos custará
descobrir a fonte de erros que está incluída nestes esforços. Esta fonte
de erros é, em primeiro lugar, de natureza fundamental e, em segundo
lugar, de natureza prática.
Em primeiro lugar, deve-se notar que a monopolização de meios,
e isso mesmo onde surge como puro processo negociado, contradiz a
essência do Estado-Nação liberal. O Estado-Nação está remetido para a
concorrência, e daí explica-se que não se tenha desarmado
completamente a Alemanha, mas se lhe tenha deixado soldados, barcos
e canhões na precisa medida em que, pelo menos, se consiga manter de
pé a ficção de uma concorrência. O ideal no espaço liberal não é a
supremacia patente, mas a supremacia velada e, correlativamente, a
escravidão velada; é o concorrente mais fraco ⎯ é o economicamente
subordinado que garante o estado universal através da posse de um
pequeno jardim, o politicamente mais fraco que o garante através da
entrega de um boletim de voto. Isso elucida o interesse completamente
desproporcionado que o mundo também assume na construção do mais
pequeno couraçado alemão ⎯ são estimulantes de que se precisa. Isso
elucida aliás o importante erro no sistema que está em ter-se despojado
esta terra de todas as colónias; uma pequena concessão nos mares do
Sul, na China ou em África teria garantido muito melhor o estado de
coisas, e será muito provavelmente recuperada como um presente dos
Dánaos98.

98
N. do T.: Por “presente dos Dánaos” Jünger refere-se ao Cavalo de Tróia, presente no
interior do qual os gregos conseguiram veladamente entrar para dentro das muralhas da
cidade.
217

A isto liga-se também uma das possibilidades paradoxais que o


nosso tempo produziu ⎯ a possibilidade de se poder pôr em perigo a
posse monopolista dos meios de poder através do desarmamento. Este
processo parece-se com os ataques ao padrão-ouro e ao sistema
parlamentar através da não participação; já não se acredita nesta forma
especial de poder e no seu significado essencial ⎯ abandona-se a
partida. Tal é de facto um procedimento que está aberto apenas para
potências revolucionárias, e também para estas apenas em instantes
muito determinados. Pertence à característica de tais potências que o
tempo esteja à sua disposição e que o tempo lhes seja propício. Um
canhoneio de Valmy, uma paz de Brest-Litowsk99 significam tanto
consolidações do poder histórico constituído, como desviam da energia
potencial revolucionária, que só começa a desdobrar os seus autênticos
meios atrás do véu de tratados e derrotas. A revolução tem tão pouco
uma assinatura válida como possui um passado legítimo.
Tocamos aqui um dos pontos nucleares da monopolização da
técnica, na medida em que aparece como patente meio de poder. Ele
está em que o Estado-Nação liberal não é de todo capaz de uma tal
monopolização. A posse do arsenal técnico, nesta esfera, é enganadora,
e isso surge porque a técnica, segundo a sua essência, não é um meio
atribuído e adequado a nenhuma nação. A técnica é antes o modo em
que a figura do trabalhador mobiliza e revoluciona o mundo. Sucede
assim que, por um lado, a mobilização da nação põe em movimento mais
forças, e forças de outro tipo, do que é sua intenção, enquanto, por outro,
a nação desarmada é arrastada necessariamente para aqueles espaços
perigosos e incalculáveis em que o equipamento revolucionário se
esconde numa armazenagem caótica. Mas hoje há apenas um real
espaço revolucionário: ele é determinado pela figura do trabalhador.

99
N. do T.: A Batalha de Valmy, ocorrida a 20 de Setembro de 1792, constitui a primeira
grande vitória do exército revolucionário francês frente ao exército prussiano. Em Brest-
Litowsk, a 3 de Março de 1918, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas negociou,
sozinha, um Tratado de Paz com o Império Alemão.
218

Consequentemente, dá-se na Alemanha, cuja situação vale aqui


só como exemplo, o seguinte estado: o monopólio dos meios de poder,
instalado pelas potências vencedoras da guerra mundial, é reconhecido
pelos defensores do Estado-Nação liberal, e reconhecido numa medida
que deixa aparecer as concessões de poder que lhe foram atribuídas, ou
seja, o exército e a polícia, como orgãos executivos no encargo deste
monopólio estrangeiro. Tal seria logo visível no caso de uma recusa do
tributo ou do armamento de determinadas partes do povo ou da terra, e
parece já não ser espantoso depois de vivenciarmos o espectáculo de os
chamados criminosos de guerra alemães serem trazidos acorrentados
pela polícia alemã ao Supremo Tribunal desta terra. Esta é a melhor
imagem para a medida em que o Estado-Nação liberal se tornou para
nós estrangeiro, e mesmo já sempre o foi. Prova-se que os meios deste
Estado se tornaram completamente insuficientes, e que não se pode
esperar nada nem dele nem daquela pequena burguesia chauvinista e
nacional-liberal, tal como também apareceu na Alemanha depois da
guerra.
Há agora coisas que são mais explosivas que dinamite. Do
mesmo modo que o reconhecemos como tarefa do singular, pertence
hoje às tarefas da nação que ela já não se conceba segundo um modelo
individual, mas como representante da figura do trabalhador. Fica para
outro lugar, considerar como é que esta passagem se realiza em
pormenor. Ela significa o aniquilamento da cobertura de superfície liberal
que, no fundo, não é mais que uma aceleração do seu
autoaniquilamento. Significa, além disso, a mudança do âmbito nacional
para um espaço elementar, no qual só é possível uma nova consciência
de poder e liberdade, e no qual é falada uma outra linguagem que não a
do século XIX ⎯ uma linguagem que já hoje é compreendida em muitos
pontos da terra e que, quando ressoar neste espaço, será concebida
como um sinal de rebelião.
219

Só diante de um tal espaço é que se evidenciará em que medida


o monopólio vigente de meios de poder possui ou não legitimidade.
Evidenciar-se-á que o arsenal técnico garante ao Estado liberal apenas
uma segurança incompleta, como também a saída da guerra mundial já
mostrou. Não há nenhumas armas em si, a forma de qualquer arma é
determinada tanto por aquele que a dirige, como também pelo objecto,
pelo opositor, que tem de encontrar. Uma espada pode trespassar uma
armadura, mas fende o ar sem deixar atrás de si qualquer vestígio. A
ordem de Frederico foi um meio insuperável contra a resistência linear;
no entanto, encontrou nos sansculottes um opositor que renunciava às
regras da arte. Tal surge por vezes na história, e é um sinal de que
começou uma nova partida em que se joga com outras cartas.

56.

Pode-se dizer, fundamentalmente, que a posse dos meios


técnicos de poder mostra um pano de fundo traiçoeiro por todo o lado
onde é usada por um domínio que não lhe é adequado. O domínio, neste
sentido, em que a reivindicação monopolista se transformaria numa
regalia, não existe hoje em nenhum ponto do mundo.
Onde alguém se armar ⎯ arma-se para um outro objectivo que
não está submetido aos esforços do entendimento planificador, mas que
subordina a si estes esforços.
Na prática, em relação à peculiaridade temporal dos meios, o
monopólio das armas é ameaçado pela mutabilidade da técnica, que
aparece aqui como mutabilidade dos meios de poder.
É esta mutabilidade que coloca os seus limites ao
armazenamento de energias formadas. O espírito ainda não dispõe dos
meios em que se expressa incontestavelmente o carácter total de
combate, e na perspectiva do qual se dará uma relação entre técnica e
220

tabu. Quanto mais alto se elevar a especialização do arsenal, tanto mais


diminuirá o tempo de uso em que poderá ser levado a um emprego
eficaz. O carácter de oficina da paisagem técnica apresenta-se na
paisagem de guerra como uma mudança acelerada dos métodos
tácticos. Nesta parte, na destruição dos meios de destruição habita um
ritmo mais acelerado do que na própria construção dos meios de
destruição. Este facto dá à ampliação do armamento uma nota
especulativa que eleva a responsabilidade, e que aumenta na mesma
medida em que a experiência prática repousa.
Encontramo-nos hoje na segunda fase do emprego de meios de
poder de tipo técnico, depois de na primeira se ter cumprido o
aniquilamento dos últimos vestígios da classe guerreira100 como estado.
Esta segunda fase assinala-se através da concepção e da execução de
grandes planos. Estes planos, bem entendido, não se podem comparar à
construção das pirâmides ou das catedrais, mas prende-se-lhes ainda
um carácter de oficina. Correlativamente, observámos as reais potências
históricas num processo de armamento febril que procura submeter a si a
soma de todos os fenómenos da vida, e que procura dar-lhes uma
dignidade guerreira. Apesar de todas as diferenças sociais e nacionais
das unidades da vida, é a austera uniformidade do processo que
espanta, atemoriza e suscita a esperança.
Está fundado no carácter de oficina desta segunda fase que ela
não corporize nenhum estado definitivo — se tais estados forem em geral
possíveis sobre a terra — mas sirva para a preparação de tais estados.
Na saudade de paz a que a prontidão dos imensos acampamentos

100
N. do T.: O termo traduzido aqui por classe guerreira é Kriegertum, que se encontra usada
no sentido da designação do estado ou grupo social que se ocupa da guerra. No mundo em
que se espalha planetariamente o carácter total do trabalho, em que a figura do trabalhador
configura o mundo, os estados diferenciados desaparecem: desaparece o trabalho
(Arbeitertum) como “classe” oposta à burguesia (Bürgertum), e desaparece a classe guerreira
(Kriegertum) como camada social específica que se ocupa da guerra. Mas é bom lembrar que
trabalho e classe guerreira desaparecem como estados na medida em que se tornam totais ou,
o que aqui é o mesmo, universais: cada homem é aqui, enquanto homem, já determinado
como trabalhador, e o trabalhador é já, na medida em que mobiliza o mundo, determinado
como guerreiro.
221

militares serve de contraponto, esconde-se a reivindicação de uma


felicidade que não é realizável. Um estado que deve ser visto como
símbolo da Paz Perpétua nunca é garantido através de um contrato
social entre Estados, mas apenas através de um Estado de uma
dignidade incontestável e imperial, no qual se unam “Imperium et
libertas”101.
Uma conclusão dos grandes armamentos que cada vez mais
pressionam os Estados-Nação de velho estilo para a dignidade de
grandezas de trabalho e lhe atribuem tarefas que, no fundo, são
adequadas a um espaço maior que o da nação ⎯ uma tal conclusão só é
possível se também os meios nos quais o armamento se apoia estiverem
em si concluídos. A perfeição dos meios técnicos de poder consiste num
estado de temor e de possibilidade de aniquilamento total que seja
inexcedível.
Com um cuidado justificado, o espírito acompanha o surgir de
meios através dos quais estas possibilidades se começam já a mostrar.
Já na última guerra houve zonas de aniquilamento cuja visão só se pode
descrever através da comparação com catástrofes naturais. No curto
intervalo de tempo que nos separa daqueles espaços, o ímpeto das
energias que estão à disposição intensificou-se várias vezes. Com isso,
aumenta a responsabilidade que está puramente contida na posse e
administração de tais energias. É um pensamento romântico, o
pensamento de que o seu desencadeamento, o seu emprego no
combate de vida ou de morte se pode impedir através de contratos
sociais. A premissa deste pensamento é a de que o homem é bom ⎯
contudo, o homem não é bom, mas é bom e mau ao mesmo tempo. Em
qualquer cálculo que deve ficar preso à realidade pode-se incluir que não
há nada de que o homem não seja capaz. A realidade não é determinada
através de prescrições morais; é determinada através de leis. Daí que a
questão decisiva que se deve colocar seja: há um ponto a partir do qual

101
N. do T.: Jünger opõe-se aqui explicitamente ao projecto kantiano da Paz Perpétua.
222

se pode decidir, com autoridade, se os meios devem ser empregues ou


não? Um sinal de que não há um tal ponto é que a guerra mundial não
criou nenhuma ordem mundial, e este facto está impresso de um modo
suficientemente claro na consciência dos povos.
Uma última amplificação dos meios de poder, e a constância
destes meios a ela ligada, é naturalmente em si insignificante. A técnica
só mantém em geral o seu significado através de ser o modo no qual a
figura do trabalhador mobiliza o mundo. Este facto dá-lhe, com efeito, a
sua dignidade simbólica, e a constância dos seus meios é um sinal de
que a fase revolucionária da mobilização está concluída. O armamento e
contra-armamento dos povos é uma medida revolucionária que se
cumpre numa substância abrangente, e que pode ser reconhecida, a
partir daí, como unitária, apesar de ter de dispersar a forma dos seus
portadores. A unidade e, deste modo, a ordem do mundo é a solução
que já está contida no questionamento dos conflitos, e esta unidade é
demasiado profunda para poder ser alcançada com meios baratos, com
convénios e contratos.
No entanto, há já hoje um tipo de visão de conjunto que torna
possível saudar qualquer grande desdobramento de forças, seja em que
ponto for do globo terrestre. Expressa-se aqui o desejo de conceder à
nova figura, que já desde há muito se anunciou no sofrimento, uma
representação activa. Não se trata de vivermos, mas de em geral tornar
possível novamente no mundo a condução de uma vida em grande estilo
e em grande escala. Contribui-se para isso quando se intensifica as
reivindicações próprias.
O domínio, isto é, a superação dos espaços anárquicos através
de uma nova ordem, só é hoje possível como representação da figura do
trabalhador, a qual reivindica uma validade planetária. Mostram-se
muitos caminhos em que pode ser alcançada esta representação. Todos
estes caminhos assinalam-se através do carácter revolucionário.
223

Revolucionária é a nova humanidade que aparece como tipo;


revolucionário é o crescimento constante dos meios que não pode
assumir em si, sem contradição, nenhuma das ordens sociais e nacionais
tradicionais. Estes meios transformam-se completamente e manifestam o
seu sentido velado no instante em que um domínio real, um domínio
incontestável, os submete a si. Neste instante, os meios revolucionários
tornam-se legítimos.

57.

Em resumo, pode-se dizer que o erro fundamental que torna


infrutífera qualquer consideração consiste em ver a técnica como um
sistema causal fechado em si. Este erro conduz para aquelas fantasias
da infinitude em que se trai a limitação do entendimento puro. A
ocupação com a técnica só valerá a pena onde se a reconhecer como o
símbolo de um poder superior.
Já houve vários tipos de técnica, e por todo o lado onde se pode
falar de domínio real observámos uma completa execução e um uso
natural dos meios que estão à disposição. A ponte de lianas que uma
tribo de negros estende sobre uma corrente numa floresta virgem é, no
seu espaço, de uma perfeição inexcedível. A tenaz do caranguejo, a
tromba do elefante, a concha do mexilhão — nenhum instrumento, seja
de que tipo for, os substitui. Também os nossos meios são-nos
adequados, não apenas num futuro mais próximo ou mais longínquo,
mas em cada instante. Serão instrumentos fiéis de destruição enquanto o
espírito tramar a destruição, e construirão quando o espírito estiver
decidido para grandes construções. Mas tem de se reconhecer que isto
não é nem uma questão de espírito nem uma questão de meios.
Estamos numa luta que não pode ser negada de uma forma qualquer,
mas que possui os seus objectivos solidamente circunscritos.
224

Se nos presentificamos um estado de segurança e de constância


da vida, tal como seria teoricamente possível em qualquer instante e tal
como qualquer esforço superficial poderia já hoje ter como objectivo, mas
tal como ainda não nos está certamente destinado, isso não acontece
para multiplicar o número das utopias de que não há falta. Acontece
antes porque precisamos de linhas de orientação rigorosas. Os
sacrifícios que nos serão exigidos são grandes, quer queiramos quer
não; é preciso ainda que afirmemos estes sacrifícios. Entre nós, tornou-
se viva uma inclinação para desprezar a “razão e a ciência”: isto é um
falso regresso à natureza. Não se trata do desprezo, mas da
subordinação do entendimento. A técnica e a natureza não são nenhuns
opostos ⎯ se forem sentidas deste modo, tal é um sinal de que a vida
não está em ordem. O homem que tenta desculpar a sua incapacidade
própria através da ausência de alma dos seus meios é semelhante ao
mil-pés da fábula, que está condenado à imobilidade porque conta os
seus membros.
A Terra ainda possui os seus vales longínquos e os seus recifes
de várias cores, onde não ressoa nenhum apito de fábricas e nenhuma
sirene de navios a vapor; as suas travessas ainda estão abertas aos
mandriões românticos. Ainda há ilhas do espírito e do gosto, delimitadas
por valorizações experimentadas, ainda há aqueles montes e quebra-
mares da fé, atrás dos quais o homem “pode encalhar em paz”.
Conhecemos a terna fruição e a aventura do coração, e conhecemos o
soar dos sinos que promete a felicidade. Tais são espaços cujo valor, e
mesmo cuja possibilidade é confirmada pela experiência. Mas estamos
no meio do experimento; fazemos coisas que não estão fundadas por
nenhuma experiência. Filhos, netos e bisnetos do que é sem Deus, aos
quais mesmo a dúvida se tornou suspeita, marchamos através de
paisagens que ameaçam a vida com temperaturas mais elevadas e mais
baixas. Quanto mais os singulares e as massas se cansam, tanto maior
se torna a responsabilidade que é apenas dada a poucos. Não há
225

nenhuma saída, nenhum andar para o lado e para trás; trata-se antes de
aumentar o ímpeto e a velocidade dos processos nos quais estamos
compreendidos. Pois é bom suspeitar que atrás dos excessos dinâmicos
do tempo está escondido um centro imóvel.
226

A ARTE COMO CONFIGURAÇÃO DO MUNDO DO TRABALHO

58.

Nas últimas duas gerações, dedicou-se grande atenção à relação


que possuímos com os valores. Se se pode confiar no variado e
minucioso inventário dos nossos bens que este tempo produziu, a nossa
dignidade histórica poderia ser apreciada como muito baixa. A crítica do
tempo ganhou em intensidade e maldade, e não se pode afirmar que
estejamos educados para a sobrevalorização dos nossos desempenhos.
Somos aliás inclinados a conceder à crítica uma dignidade que
aparece como merecedora de ser pensada. Também ela possui os seus
limites, e não há crítica que consiga destacar-se da imagem de conjunto
do seu tempo, e que consiga pronunciar juízos numa instância superior.
Onde, apesar disso, tal acontece, deve-se verificar com base em que
seguranças, em que escalas se realiza a formação de juízos.
Está próximo que se procure conquistar estas escalas através da
comparação. De facto, o procedimento é de tal modo empregue que a
crítica do tempo procura criar uma base de desempenhos históricos, e
abordar a partir daí o presente. Este procedimento parece esclarecedor;
no entanto, está ligado ao pressuposto de que há uma sucessiva unidade
dos tempos, ou seja, daquele passado determinado com este presente
determinado, pois senão também é impensável uma unidade da escala.
No entanto, tem de se saber que as valorizações impiedosas a
que este tempo é sujeito, e que encontramos confirmadas através de
tantos pormenores, são ao mesmo tempo adequadas e inadequadas.
Isso assenta em que a repartição unitária do tempo em passado,
227

presente e futuro pode bem ser aplicável para o tempo astronómico, mas
não para o tempo da vida e do destino. Há um tempo astronómico, mas,
ao mesmo tempo, uma multiplicidade de tempos de vida, cujos ritmos
balançam junto uns dos outros, como o pêndulo de relógios incontáveis.
Assim, também não é um tempo, o tempo, que reivindica o
homem, mas uma variedade de tempos. Pode-se explicar deste modo
que uma geração seja ao mesmo tempo mais velha e mais nova que a
dos pais, ou seja, que pertença a dois tempos diferentes. Depende muito
do olhar que se é capaz de lançar sobre o tempo. Está-se nele como
num tapete e vê-se que os velhos modelos são estendidos até às bordas.
Ou vê-se que o tecido se alia a perfis completamente novos e diferentes.
Ambas as coisas são adequadas, e pode assim acontecer que um e o
mesmo fenómeno apareça tanto como símbolo do fim como do início. Na
esfera da morte, tudo se torna símbolo de morte, e, por seu lado, a morte
é o alimento de que a vida se nutre.
Se a crítica do tempo verifica o declínio completo e o cobre com
símbolos, concedamos-lhe sem contestar esta verificação. No entanto,
este juízo só pode reivindicar validade para o tempo a que a própria
crítica pertence. A sua tarefa é a descrição do imenso processo de morte
de que somos testemunhas. Este morrer refere-se ao mundo burguês e
aos valores que ele administrou. Ele passa para além do mundo burguês
na medida em que o próprio burguês é apenas herdeiro, e não é senão
herdeiro, e que com o seu declínio aparece como consumida uma parte
da herança muito antiga. O corte profundo que ameaça a vida no nosso
tempo não apenas separa duas gerações, não apenas separa dois
séculos, mas anuncia o fim de uniões milenares.
Que o presente não seja capaz de ser produtivo no sentido dos
velhos símbolos, tal não oferece qualquer questão. Mas é uma questão a
de saber se isto é em geral desejável. Os velhos símbolos são a cópia de
uma força cuja imagem originária, cuja figura se desvaneceu. Não são
senão padrões da dignidade que a vida em geral conseguiu alcançar. No
228

entanto, em todos os âmbitos da vida deparamos ainda com um tipo de


esforço que se orienta para as cópias não segundo a dignidade, mas
segundo a qualidade, sem ter parte na imagem originária. Esta actividade
de museu é característica do nosso tempo; as grandes e misteriosas
transformações são escondidas por ela como por um véu formal. Através
dela, o desempenho é dificultado como por um peso de chumbo, e a
máscara de uma liberdade assumida pode cada vez menos iludir que
aqui falta o pressuposto de qualquer liberdade, ou seja, falta um vínculo
genuíno e originário e, assim, responsabilidade. A crítica, que
experimenta aqui a sua completa intensidade, tem apenas um jogo
demasiado leve, mas pergunta-se se se pode deter neste jogo.
Mais importante que a comparação com as imagens de tempos e
espaços que se desvanecem é para nós a questão de saber se não
estamos numa relação originária nova e peculiar, cuja realidade ainda
não encontrou nenhuma expressão no fenómeno. É a questão de saber
se não estamos na posse de uma liberdade cujo uso está ainda para ser
aprendido e que, no entanto, já como que está na rua. Termina aqui a
crítica, pois são visões de outro tipo aquelas a que nos temos de
entregar.

59.

Vivemos num mundo que se assemelha, por um lado,


completamente a uma oficina, por outro lado, completamente a um
museu. A diferença entre as reivindicações que estas duas paisagens
colocam é a de que ninguém é obrigado a ver numa oficina mais do que
precisamente uma oficina, enquanto na paisagem do museu domina uma
atmosfera de edificação que assumiu formas grotescas. Alcançámos
uma espécie de fetichismo histórico que está numa relação directa com a
falta de força de produção. Daí que seja consolador o pensamento de
229

que uma qualquer correspondência secreta acompanha o seguimento da


construção de grandiosos meios de destruição com o armazenamento e
a conservação dos assim chamados bens culturais.
A penetração destes bens, uma penetração que lhes é sensível e
que os reproduz, isto é, a empresa da arte, da cultura e da formação,
atingiu um alcance que deixa aparecer como necessário um
aligeiramento das bagagens, aligeiramento esse que não se pode
representar de um modo suficientemente fundo e abrangente. O pior não
é que em torno a cada casca abandonada que alguma vez tenha sido
transportada pelo corpo do caracol se reuna um círculo de
conhecedores, coleccionadores, curiosos e conservadores. No fundo, tal
foi desde sempre o caso, mas numa escala muito mais modesta.
Muito mais que pensar dá que a partir desta ocupação se dê um
conjunto de valorizações padronizadas, atrás do qual se esconda o
falecimento completo. Joga-se aqui com as sombras das coisas e faz-se
publicidade ao conceito de uma cultura que é estranha a qualquer força
originária. Tal acontece num tempo em que o elementar volta a penetrar
poderosamente no espaço vital, e volta a colocar aos homens as suas
inequívocas exigências. Há o esforço por extrair novas estirpes de
administradores e funcionários culturais e por cultivar um bizarro
sentimento pela “verdadeira grandeza” do povo, enquanto o Estado tem
de resolver tarefas mais originais e mais penetrantes que antes. Por
muito que também se possa andar para trás, dificilmente se deparará
com uma mistura tão penosa de banalidade e de ensoberbamento como
se tornou habitual nas alocuções oficiais do Estado, com a sua inevitável
alusão à cultura alemã. Comparado com isto, aquilo que os nossos pais
tinham a dizer sobre o progresso é realmente ouro.
Levanta-se a questão de saber como, num tempo em que
acontecem e ainda estão diante de nós coisas de importância tão
resplandecente, é em geral possível um tal lustro do mais fino idealismo
e do mais aberto romantismo. A resposta de que não se sabe fazer nada
230

melhor poderia ser ingénua, mas seria adequada. A empresa de museu


não apresenta senão um dos últimos oásis da segurança burguesa.
Transmite a evasiva aparentemente mais plausível com que se se pode
furtar à decisão política. Tal é uma actividade na qual o mundo vê de
bom grado os alemães. Quando se observou que em 1919 os
“representantes dos trabalhadores”, em Weimar, tinham o seu Fausto
nas mochilas, podia-se predizer que o mundo burguês estava salvo por
um longo espaço de tempo. O modo insipiente em que, na Alemanha,
durante a guerra, foi exercida a propaganda cultural desenvolveu-se,
depois da guerra, num sistema formal, e quase não há um selo, quase
não há uma nota, em que não se depare com as mesmas coisas. Todas
estas coisas suscitaram em nós, de um modo infelizmente muito injusto,
a recriminação de serem insinceras. Contudo, não se trata aqui de
insinceridade, mas da ausência de instinto burguesa em relação ao valor.
Não se trata aqui de uma espécie de ópio pelo qual se dissimule
o perigo e se evoque a consciência enganosa de uma ordem. Contudo,
tal é um luxo insuportável, num estado em que se trata não de falar de
tradição, mas de criar tradição. Vivemos numa parte da história em que
tudo depende de uma mobilização imensa e de uma concentração das
forças que estão à disposição. Os nossos pais talvez tivessem ainda
tempo para se ocupar com os ideais de uma ciência objectiva e de uma
arte que subsistisse por causa de si mesma. Nós, pelo contrário,
encontramo-nos de um modo completamente inequívoco numa situação
em que não é isto ou aquilo que está em questão, mas a totalidade da
nossa vida.
Tal exige o acto de uma Mobilização Total que tenha de colocar
em qualquer fenómeno pessoal e material a pergunta brutal pela
necessidade. O Estado, pelo contrário, nestes anos depois da guerra,
ocupou-se com coisas que são não apenas supérfluas para uma vida
ameaçada, mas nocivas, e desleixou outras que são decisivas para a
permanência. A imagem que se tem hoje de fazer do Estado assemelha-
231

se não a um navio de passageiros ou a um navio social, mas antes a um


navio de guerra, no qual dominam a mais elevada simplicidade e a maior
poupança, e no qual cada movimento se realiza com uma segurança
instintiva.
Aquilo que tem de suscitar atenção ao estrangeiro que visita a
Alemanha não são as fachadas conservadas dos tempos passados, não
são os discursos durante as festas dos centenários de clássicos e não
são aqueles cuidados que formam o tema dos romances e peças de
teatro ⎯ são antes as virtudes da pobreza, do trabalho e da bravura que
hoje apresentam o sinal visível de uma formação muito mais profunda do
que se permitia sonhar o ideal de formação burguês.
Não se sabe então que toda a nossa assim chamada cultura não
consegue evitar sequer o mais pequeno Estado fronteiriço numa violação
territorial ⎯ que, pelo contrário, é imensamente importante que o mundo
saiba que na defesa da terra se encontram até crianças, mulheres e
idosos; e que, do mesmo modo que o singular renuncia à fruição da sua
existência privada, também o governo não hesitaria nenhum instante em
vender todos os tesouros artísticos dos museus àqueles que oferecem
mais, se esta defesa o exigisse?
Tais manifestações da suprema e mais viva forma de tradição
pressupõem também o mais elevado sentimento de responsabilidade,
um sentimento para o qual é claro que se trata agora não de ser
imediatamente responsável pelas imagens, mas pela força originária que
cria estas imagens. Tal exige de facto uma verdadeira grandeza de outro
tipo. Mas convençamo-nos de uma coisa: se existe entre nós hoje ainda
verdadeira grandeza, se em qualquer parte está escondido um poeta, um
artista, um crente, ele será reconhecido ao sentir-se aqui responsável e
esforçar-se por servir.
Não é preciso nenhum dom profético para predizer que não
estamos no começo de uma Era Dourada, mas diante de grandes e
difíceis transformações. Nenhum optimismo pode iludir que os grandes
232

conflitos são em maior número e mais graves do que antes. Trata-se de


estar à altura destes conflitos através da criação de ordens que sejam
inabaláveis.
No entanto, o estado em que nos encontramos é a de uma
anarquia escondida atrás da ilusão de valores que se tornaram inválidos.
Este estado é necessário, na medida em que garante a decomposição
das velhas ordens cuja força de combate se mostrou insuficiente. A mais
íntima força do povo, pelo contrário, o solo materno gerador do Estado,
conservou-se de um modo inesperado.
Já hoje podemos dizer que o esgotamento é superado no
essencial ⎯ que possuímos uma juventude que conhece a sua
responsabilidade e cujo núcleo era inatacável pela anarquia. É
impensável que a Alemanha alguma vez tenha falta de bons homens.
Quão agradecida está esta juventude por cada sacrifício que lhe é
pedido. Contudo, trata-se de dar a esta matéria da natureza tão
voluntariosa e tão preparada uma forma que corresponda à sua
essência. Tal é uma tarefa que coloca na força produtiva as mais
elevadas e significativas exigências.
Mas que espíritos são estes que ainda não sabem que nenhum
espírito pode ser mais profundo e sapiente do que um qualquer dos
soldados que caíram em qualquer parte em Somme ou na Flandres?
Esse é o padrão de que precisamos.

60.

Quando se reconheceu aquilo que hoje é necessário,


nomeadamente a afirmação e o triunfo ou, se tiver de ser, também a
preparação para o decisivo declínio no meio de um mundo
completamente perigoso, então sabe-se a que tarefas qualquer tipo de
produção, da mais elevada à mais simples, se tem de submeter. De
233

resto, quanto mais a vida puder ser conduzida de um modo cínico,


espartano, prussiano ou bolchevista, tanto melhor será. O padrão que é
dado encontra-se na condução da vida do trabalhador. Não se trata de
melhorar esta condução da vida, mas de lhe dar um sentido supremo e
decisivo.
Do mesmo modo que é uma bela imagem ver os filhos livres do
deserto, que trazem farrapos sobre o corpo e cuja única riqueza consiste
nos seus cavalos e armas valiosas, assim também seria uma bela
imagem ver como o poderoso e caro arsenal da civilização é usado e
dirigido por um pessoal que vive na pobreza monacal ou militar. Tal é um
espectáculo que dá satisfação aos homens, e que sempre se repete
quando há que realizar altos esforços e orientar-se para grandes
objectivos. Fenómenos como a ordem dos cavaleiros teutónicos, o
exército prussiano, a societas Jesu são modelos, e deve-se reparar que
aos soldados, aos sacerdotes, aos sábios e aos artistas é dada uma
relação natural à pobreza. Esta relação não apenas é possível, mas até
está próxima no meio de uma paisagem de oficinas, em que a figura do
trabalhador mobiliza o mundo. Conhece-se muito bem entre nós a
felicidade que assenta em estar dentro de organizações cuja técnica está
viva na carne e no sangue de cada singular.
Estamos diante de uma nova ordem da grande estrutura da vida,
na qual está incluída mais do que a cultura, nomeadamente também o
pressuposto da cultura. Esta nova ordem exige a integração de todos os
âmbitos singulares que um espírito abstracto cada vez mais autonomizou
e furtou ao conjunto. Vivemos em estados que apontam para a
especialização, mas também não se trata de eliminar esta
especialização. Trata-se antes de cada esforço especial ser visto como
parte de um esforço total, e de ser concebido o carácter de traição de
cada tendência que se procure furtar a este processo. Este esforço total
não é outra coisa senão trabalho no mais elevado sentido, isto é,
representação da figura do trabalhador. Só quando esta concepção se
234

tornou válida, só quando o trabalho se ergueu a uma dignidade


metafísica abrangente, e se exprimiu esta relação na realidade estatal, é
que se pode falar de uma era do trabalhador. Só sob este pressuposto é
que também se pode determinar a dignidade que pode ser concedida à
empresa de museu, ou seja, àquela actividade que o burguês no
presente classifica como arte.
A representação da figura do trabalhador segue necessariamente
soluções de uma amplitude planetária e imperial. Não se pode tratar
aqui, como em qualquer domínio genuíno, apenas da administração do
espaço, mas da administração do tempo. No mesmo instante em que
chegamos à consciência da nossa força produtiva peculiar, alimentada
por fontes de outro tipo, será também possível uma completa alteração
da consideração da história e da dignificação e administração dos
desempenhos históricos.
Pertence aqui um sentimento de supremacia e a consciência de
uma originariedade, tal como falta no burguês, que não possui
segurança, mas procura-a, e por isso também não dispõe da segurança
do juízo. Esta é a razão pela qual se submete ao demonismo de qualquer
fenómeno histórico, sem amparo e sem uma atitude própria, e pela qual
tende a dar poder sobre si a qualquer grandeza histórica que observe.
Dá-se assim que também possa ser batido com uma citação qualquer.
No entanto, tem de se saber que é o vencedor a escrever a história e a
determinar a sua árvore genealógica. Na medida em que o trabalhador,
como vimos, possui enquanto tipo uma qualidade adequada à raça,
pode-se esperar dele aquela inequivocidade da observação que pertence
às características da raça e que é o pressuposto de qualquer valorização
segura ⎯ em oposição a um hedonismo que se compraz na visão
caleidoscópica das culturas.
Temos de reconhecer que onde somos mais fortes estamos muito
menos precisados de uma crítica do tempo que de uma crítica dos
tempos, de uma ordem rigorosa e distanciada do pano de fundo histórico.
235

Esta ordem é para todos os tempos o direito natural do que é vivo. A sua
realização apresenta-se no nosso tempo como uma das tarefas do
carácter especial de trabalho, que tem não de projectar as perspectivas
decisivas, mas de executá-las.

61.

Um incisão que seja suficientemente profunda para nos livrar dos


velhos cordões umbilicais só pode ser feita com a intensidade necessária
por uma autoconsciência forte que esteja incorporada numa chefia jovem
e sem inibições. Quanto menos educação, no sentido habitual, possuir
esta camada, melhor será. Infelizmente, a era da educação universal
despojou-nos de uma reserva apreciável de analfabetos ⎯ tal como se
pode hoje ouvir com facilidade mil pessoas sensatas raciocinar sobre a
Igreja enquanto se procura em vão os velhos rochedos e florestas
sagrados.
A nossa esperança está na nova relação ao elementar que é
dada ao trabalhador. O tempo cuidará que ele reconheça numa medida
cada vez maior esta relação e veja nela a fonte autêntica da sua força.
Do mesmo modo que ele se tem de guardar de, através da sua
participação, trazer um novo alimento aos sistemas políticos do
liberalismo, é do seu interesse não tomar parte naquilo que hoje é
compreendido por arte. Com efeito, o perigo não parece demasiado
grande se se considerar os esforços que se orientam na sua direcção.
Eles desembocam, no essencial, nos esforços de uma camada artística
particular para transportar as velhas receitas para uma espécie de arte
mundividencial, cuja característica consiste na substituição da substância
pela disposição. Tal é o escape habitual para a ausência de talento,
escape esse que se apoia no muito espalhado preconceito de que uma
236

mudança significativa na arte, sobretudo na literatura, tem de


experimentar uma anunciação.
No entanto, uma tal anunciação, diante de alterações de primeiro
plano ⎯ e é diante de uma destas que nos encontramos ⎯, tem tão
pouco sentido como diante de uma migração de povos. Pressuporia uma
continuidade do meio artístico e, assim, um plano da compreensão que
tem de ser negado. Uma tal continuidade está certamente presente
apenas onde aparece um novo estado e onde se se movimenta dentro
de questionamentos sociais, mas não onde a força elementar se começa
a tornar eruptiva. Surgem aqui outros modos de destruição e outras
possibilidades de crescimento. Aqui a arte não é meio, mas objecto da
mudança. Do mesmo modo que o vencedor escreve a história, isto é, cria
o seu mito, ele determina aquilo que deve valer como arte. Mas isto são
cuidados que estão reservados para uma parte posterior. Em todo o
caso, pode-se prever que não apenas categorias inteiras da produção
artística perderão o seu significado, mas que, por outro lado, também
esta produção submeterá a si âmbitos dos quais hoje nem sequer se
ousa sonhar.
Já não se trata aqui de uma troca de estilo, mas do tornar-se
visível de uma outra figura. O pessimismo cultural tem razão quanto às
possibilidades de um determinado espaço vital estarem esgotadas até
aos últimos limites. Este reconhecimento é necessário na medida em que
se deve como que objectivar aquilo que passou ⎯ na medida em que se
deve separá-lo através de um traço de separação, para lá do qual se
pode considerar com frieza. Tal é, como se disse, a tarefa de uma
administração, de uma administração que está sob vigilância. Mas aquilo
que hoje é fugaz está destinado a outras formas.
Para adquirirmos uma representação da possibilidade de tais
formas, é preciso lançar um olhar à situação no seu conjunto.
De um modo correspondente à rendição sucessiva dos estados
universais, através do Estado absoluto e da democracia burguesa, que
237

se representa na história através da entrada da pessoa e, depois, do


indivíduo, pode-se seguir como a arte se absolutiza e universaliza ⎯
universaliza-se na medida em que existe uma união imediata entre o
individual e o universal enquanto medium que lhe é adequado.
A produção ganha então em liberdade, sendo pressuposto que se
quer reconhecer a liberdade e a autonomia como idênticas. No modo de
expressão cristão, isso seriam graus de uma secularização progressiva
⎯ este modo de expressão não é para nós relevante, na medida em que
reconhecemos precisamente como a nossa tarefa afastarmo-nos deste
estado no seu conjunto, independentemente de onde este estado
aparecer como secularizado ou não secularizado. Na medida em que o
trabalhador não tem uma fé mais fraca, mas uma outra fé, esta diferença
tem apenas aqui um valor de museu. Ela mostra relações de grandeza,
mas nenhum grau de parentesco. O burguês está certamente ainda
dentro do processo que é concluído por ele; o declínio do indivíduo
anuncia, ao mesmo tempo, o último lampejo da alma cristã. É isto que dá
a esta conclusão o seu autêntico significado. Contudo, temos de
conceber que entre a figura do trabalhador e a alma cristã não pode
subsistir uma relação, tão pouco como ela era possível entre esta alma e
as imagens dos deuses antigos.
A crescente rendição da arte tinha necessariamente de produzir a
intuição de que a manifestação artística pertence aos testemunhos
essencialmente individuais. Esta concepção alcançou no culto do génio
do século XIX o seu auge. A história da arte aparece aqui sobretudo
como história da personalidade; a própria obra como documento
autobiográfico.
Correlativamente, no primeiro plano da consideração surgem
géneros artísticos em que o desempenho individual aparece como
particularmente elucidativo, e todos estes géneros, independentemente
do sentido a que possam falar, são, numa medida correspondente,
emergidos num elemento especificamente literário, num modo de
238

movimentação espiritual que é mais aparentada ao temperamento que


ao carácter. Explica-se daí porque a escultura, que oferece a mais dura
resistência ao trabalho do espírito em movimento, tem de passar para
segundo plano. Aqui, o evidente, a lógica do material é tão forte que uma
fraqueza da substância não se deixa iludir por nenhum meio espiritual,
como que de um modo perspectivista, mas se torna logo visível até ao
olhar ingénuo com uma clareza incorruptível. Do mesmo modo se passa
com a arquitectura, que já quase não cuida de ser contada entre os
géneros artísticos, embora em tempos, como nos da construção das
catedrais, aparecesse como a rainha e a mãe de todas as restantes
artes, e lhes atribuísse a sua posição. A escultura e a arte da construção,
no meio de uma sociedade formada a partir de indivíduos, não estão
certamente no seu lugar; estão antes, entre as artes plásticas, numa
relação tão exacta e íntima ao Estado como o está o drama entre as
artes verbais.
Na mesma medida em que o indivíduo artístico ganha em
soberania, ou seja, em que se torna portador da realidade, diminui com
uma segurança matemática o espaço a partir do qual a produtividade se
pode desdobrar e experimenta uma comprovação objectiva. Na mesma
medida em que o domínio sobre o espaço se desvanece, é necessário
que o movimento seja aumentado.
Que aceleração na mudança mágica da consciência que se
levanta, através dos anéis do inferno e do paraíso até à “rapidez
vagarosa” que do céu, através do mundo, conduz ao inferno! Contudo,
vivenciámos o embalo do Navio Ébrio que corre para a “luz de uma
cadeia de sóis” como para um muro102. Fizemos a experiência de que só
a liberdade não basta, e de que o medo é o mistério que a velocidade
esconde. Vivenciámos os movimentos de uma arte que se assemelham
aos de um urso constrangido a dançar em placas aquecidas ⎯ numa
palavra, vivenciámos o declínio do indivíduo e dos seus valores

102
N. do T.: Jünger refere-se à poesia de Rimbaud intitulada Le bateau ivre.
239

herdados, não apenas nos campos de batalha, não apenas na política,


mas também na arte. A infinitude que parecia estar à disposição do
indivíduo é de uma natureza caleidoscópia. Sabemos que a parte da
herança está consumida e que se tornou sem sentido não apenas
qualquer ligação, mas também qualquer andar para trás.
Mas um tal saber é inútil se não se retirar dele as consequências.
Em vez de reunir os velhos perfis dos modos mais variados, e
necessariamente cada vez mais fracos, numa actividade atomística,
trata-se de ver se um outro espaço não esconde forças e recursos de um
novo tipo. Nada nos está mais próximo que isto, pois em nenhuma parte
⎯ nem no mundo mecânico nem no orgânico, nem na natureza nem na
história ⎯ observamos uma força que se dissipe sem ser rendida.
Um tal espaço está de facto presente; é determinado através da
figura do trabalhador. Esta figura é de uma dignidade igual a todos os
grandes fenómenos ⎯ aquilo que remete o homem para ela é o facto de
apenas estar a ponto de entrar na história. Independentemente de dela
se poderem esperar testemunhos iguais aos de todos os grandes
desempenhos históricos, não há nenhum outro espaço senão o seu ao
qual se pode ligar uma esperança. Isso vale, como para todos os
desempenhos, também para a arte. A arte é um dos modos em que a
figura é concebida como o grande princípio criador. Que isto não seja
possível com os meios da obra artística individualista contemporânea, tal
não é uma razão para o desespero, mas, pelo contrário, para a atenção.

62.

É claro que uma arte que tem de representar a figura do


trabalhador deve ser procurada numa unidade estreita com o trabalho. A
ocupação e o ócio, a vida mais séria e a vida divertida, o quotidiano e o
festivo não podem então aqui ser opostos, ou são pelo menos opostos
240

de segundo plano que englobam um sentimento da vida unitário. Tal


pressupõe certamente que a palavra “trabalho” seja transportada para
uma esfera suprema, na qual não contradiga nem as valorizações do
herói nem as do crente. Foi para mostrar que isto é possível, e que o
significado do trabalhador ultrapassa assim de longe o de uma grandeza
económica ou social, que a nossa investigação foi empreendida.
Levanta-se agora a questão de saber como se tem de representar
a passagem para desempenhos criadores válidos que estejam à altura
de qualquer padrão tradicional. Aqui deve-se responder que o ponto do
tempo decisivo ainda não chegou, apesar de já se poderem ver linhas de
orientação também prescindindo de profecias. À partida, pode-se
verificar que os pressupostos destruidores ⎯ por um lado, através da
dissolução do indivíduo e das suas valorizações; por outro, através da
irrupção da técnica, tanto no espaço tradicional como no romântico ⎯
estão dados numa medida elevada, e completam ainda diariamente um
nivelamento que só pode aparecer como horrível para uma consciência
que vê nele o fim.
Para além disso, entrámos numa paisagem de oficinas que exige
da geração que nela se consome sacrifício e modéstia. Tem então de se
reconhecer que nas formas que aqui emergem não habita, nem pode
habitar, uma medida sólida e estável, porque ainda se trabalha na
criação dos meios e dos instrumentos, não das formas. Estamos em
combate e temos de nos ocupar com medidas que se orientam para o
domínio, isto é, para a criação de uma hierarquia cujas leis ainda estão
por desenvolver. Este estado pressupõe uma acção simples e limitada,
durante a qual o valor dos meios corresponde à medida em que estão
adaptados ao combate, no mais vasto alcance da palavra.
O curso deste processo exige, numa perfeição crescente dos
meios, uma fusão cada vez mais estreita das forças orgânicas e
mecânicas ⎯ uma fusão que assinalámos como construção orgânica.
Esta fusão dá novos contornos à condução da vida do singular, tal como
241

determina o tipo de alteração em que os Estados estão compreendidos.


Ela está ainda coberta, no estado actual, por resistências que tem de
aniquilar, e que são apoiadas por o singular ainda se compreender como
indivíduo, e o Estado como Estado-Nação, formado segundo o modelo
individual. Contudo, na medida em que o singular é trabalhador e se
movimenta dentro de grandezas de trabalho, não se pode falar de uma
oposição entre ele e os seus meios. Aqui, os meios revolucionários
tornam-se legítimos, e é uma característica da nova ordem que o seu
emprego inequívoco seja bem sucedido. Isso pressupõe certamente
alterações tanto do homem como dos meios, alterações que já
considerámos pormenorizadamente e que ainda se realizam
ininterruptamente. A sua fonte comum é a figura do trabalhador.
Um dos sinais para a entrada na construção orgânica é o facto de
que, ao mesmo tempo com o desmoronamento da velha ordem, se
começa a abrir tanto a necessidade como a possibilidade de planos
englobantes. A sua concepção e execução é a marca da fase em que
estamos a ponto de entrar. Estes planos ainda estão limitados ao quadro
dos velhos Estados-Nação, os quais, no entanto, já se podem considerar
como grandezas de trabalho, dentro das quais se trata de criar as
sementes para contextos mais alargados. Estes planos ainda se
relacionam com o comércio, com a economia, com os meios de
produção, com a guerra, ou seja, com coisas que estão articuladas com
o armamento. No entanto, dá-se aqui já um passo muito significativo;
torna-se manifesta a configuração de uma vontade que procura captar a
vida na sua totalidade e trazê-la à forma. As unidades da vida preparam-
se sob o véu das mais diversas ideologias para um ataque ousado, tão
centralizado como abrangente, em cujos quadros pode ser novamente
experimentado como fazendo sentido que se tragam e exijam sacrifícios.
No curso destas medidas atrás das quais se esconde a figura do
trabalhador, medidas essas que, se bem que ainda não de um modo
claro, se referem a esta figura, salientar-se-á que o espaço que lhe
242

corresponde possui um alcance planetário. Depois de a questão do


domínio estar decidida ⎯ e esta decisão prepara-se em múltiplas
dimensões e em muitos lugares do mundo ⎯, trata-se do modo em que
este espaço se deve configurar. Não sabemos em que caminho empírico
se realizará a solução, pois estamos em concorrência ⎯ mas
independentemente de como e de através de quem possa ocorrer, ela
será uma realização da figura do trabalhador.
Neste contexto, aponta-se já a tarefa natural que tem de dominar
uma arte que representa a figura do trabalhador. Ela assenta na
configuração de um espaço bem delimitado, ou seja, da Terra, no sentido
do mesmo poder vital que está vocacionado para a sua dominação. Os
planos que no curso deste processo emergirão diferem essencialmente
daqueles através dos quais somos reivindicados. Na paisagem de
oficinas em que nos encontramos acontece a planificação no quadro de
uma Mobilização Total que está orientada para o domínio, enquanto a
configuração se refere já a este domínio e é por ele possibilitada. A tarefa
da Mobilização Total é a mudança da vida em energia, tal como se
manifesta na economia, na técnica e no tráfego, no zumbidos das rodas
ou, no campo de batalha, como fogo e movimento. Ela refere-se assim à
potência da vida, enquanto a configuração traz o ser à expressão, e se
tem de servir então não de uma linguagem de movimento, mas de uma
linguagem das formas.
É claro que a uma vontade que concebe o globo terrestre como o
seu material elementar não podem faltar tarefas. São tarefas em que se
tem de mostrar a estreita união que, onde a vida estiver em ordem, existe
entre arte e arte estatal. Pois o mesmo poder que a arte estatal
representa através do domínio é manifesto pela arte através da
configuração. A arte tem de mostrar que a vida, sob aspectos elevados, é
concebida como totalidade. Daí que ela não seja nada destacado, nada
que possua em si e a partir de si validade, mas que não haja nenhum
243

âmbito da vida que não possa ser considerado como material também da
arte.
Tal torna-se claro quando se conceber a configuração da
paisagem como a tarefa mais abrangente que se apresenta à vontade
artística. A configuração da paisagem, e mesmo a configuração
planificada da paisagem, pertence aos testemunhos de todos os tempos
a que foi dado um domínio indubitável e incontestável. Os mais
significativos exemplos são oferecidos pelos grandes cultos sacrais dos
deuses e dos mortos, em paisagens consagradas que estão situadas em
torno a rios ou montes sagrados. As lendas da Atlântida que nos
transmitiram, o Nilo e o Ganges, as muralhas fortificadas tibetanas e as
ilhas bem aventuradas do arquipélago trazem-nos à lembrança as
medidas da força de configuração de que a vida é capaz. A Cidade do
México, antes da sua destruição, assemelhava-se a uma pérola num lago
com cujas margens ela estava em ligação através de diques em forma de
estrela, que eram interrompidos pelas aldeias. Destas margens surgia,
de um modo semelhante a um anfiteatro, uma paisagem maravilhosa de
jardim até às fronteiras de gelo. Também maravilhosas eram as
paisagens de parque em que os imperadores chineses transformaram
províncias inteiras. O último, e quase ainda presente, esforço deste tipo é
a referência da paisagem à pessoa absoluta, tal como é mantida nas
residências e jardins de recreio dos príncipes.
Quando estudamos os relatos de viajantes que puderam
contemplar Bagdad, os jardins mouros de Granada, o Tadj-Mahal, os
castelos e lagos da Palermo dos Hohenstaufen ou a paisagem de
parque de Yuen, com os seus cinquenta palácios em completo
resplendor de vida, deparamos sempre de novo com aquele sentimento
tal como se expressa no vedere Napoli...103 , e tal como preenche nos
homens, diante da completude, um prazer quase doloroso. São
testemunhos de uma vontade que deseja criar paraísos terrestres. Do

103
N. do T.: Jünger refere-se ao provérbio napolitano que diz: “ver Nápoles e morrer!”.
244

mesmo modo que uma tal vontade está a obrar a partir de uma unidade
profunda de todas as forças técnicas, sociais e metafísicas, todos eles
são sentidos que ela reivindica de tal modo que mesmo o ar parece
conter a sua radiação. Não há aqui nada isolado, nada que se possa
considerar em e para si, e nada que fosse demasiado grande ou
demasiado pequeno para não estar ao serviço.
A quem possuir uma suspeita desta unidade, desta identidade da
arte com uma suprema força de vida, que preenche completamente o
espaço, não pode escapar o absurdo da nossa empresa de museu,
enquanto olhar abstracto de imagens e monumentos.

63.

Os grandes testemunhos, as maravilhas do mundo, os sinais de


que a Terra é a habitação de seres elevados, são apenas comparáveis
segundo a sua dignidade, mas incomparáveis na sua peculiaridade. Tal
vale, como para cada era de grande dignidade, também para a do
trabalhador. Se se quiser fazer uma representação das mudanças
específicas que se devem esperar, deve-se reconhecer à partida que
estas mudanças já estão completamente a caminho, embora precisem
de uma completa troca de indícios.
De facto, a paisagem de oficinas que caracteriza o nosso tempo,
e que se cuida comummente de assinalar como paisagem industrial,
cobre já muito uniformemente o globo terrestre, com as suas construções
e instalações, com as suas cidades e bairros. Já não há nenhuma região
que não esteja atada por estradas e carris, por cabos e fios, por linhas
aéreas e marítimas. É cada vez mais difícil decidir em que terra; melhor:
em que parte da terra surgiram as imagens que as lentes fotográficas
fixaram. Não pode haver dúvida de que esta alteração, na sua primeira
fase e na sua fase conclusiva, também possui um carácter destrutivo, na
245

perspectiva de que ela rebenta a peculiaridade das paisagens naturais e


culturais e as mistura com corpos estranhos; e são-nos transmitidas
manifestações suficientes das quais resulta que a consciência
responsável concebeu isto com cuidado, mesmo no começo do
processo. Voltamos a encontrar aqui, na imagem da paisagem, o mesmo
desenlace que se pode observar, em relação à comunidade humana, nos
estados e, mais tarde, nas formas da sociedade burguesa, mas sabemos
que destruições deste tipo são demasiado fundas e fundamentadas para
que se lhes pudesse ordenar a sua paragem, e que não se pode avançar
para novas harmonias sem ter passado por esta destruição.
Multiplicam-se assim os sinais de que se começa a amortecer
este primeiro irromper revolucionário. Estes anos mostram-se
precisamente através de uma estranha coexistência tanto do
desmoronamento como da nova ordem da paisagem técnica. As razões
deste acontecimento são de tipo variado. A mais importante é sem
dúvida a de que o processo da industrialização e da tecnificação,
enquanto o seu primeiro orgão de realização, encontrou o indivíduo
burguês, e a de que a sua anterior organização se realizou no meio do
conceito de liberdade burguês.
Isto tinha também de enterrar na imagem da paisagem aqueles
vestígios de anarquia que por todo o lado estão ligados com este
conceito de liberdade. O combate indescriminado da concorrência pelas
zonas de riqueza natural, e a acumulação de indivíduos nas grandes
cidades, numa sociedade atomizada, provocaram, num espaço de tempo
inacreditavelmente curto, uma alteração cujo irromper conduz até à
poluição da atmosfera e ao envenenamento dos rios. Este acontecimento
tinha inevitavelmente de atrair sobre si a visão de que a existência
económica isolada, o pensar abstracto em valores e teorias económicos,
não consegue, ao limite, manter de pé as hierarquias económicas. Esta
visão é ilustrada por um monte de ruínas de instalações em todas as
246

terras do mundo, que não torna visível as consequências de uma crise


precedente, mas o fim de uma fase histórico-espiritual.
Que, no entanto, os grandes processos continuem a correr, é
uma prova de que aqui se trata de um acontecimento que ultrapassa o
mundo burguês e as suas valorizações. O número das grandes e
pequenas catástrofes manifesta claramente que a esfera privada já não
está à altura das tarefas que reivindicou para si. Isto tem
necessariamente de conduzir a medidas que não se podem pôr de
acordo com o velho conceito de liberdade, e em que não se pode entrar
pormenorizadamente. Deste modo, a garantia de subvenções tem de
suscitar ingerências na independência da economia e na condução do
combate da concorrência, e assim pertencem às consequências naturais
dos apoios aos desempregados duras limitações dos direitos
fundamentais individuais, tais como a livre circulação e o livre uso da
rescisão.
De facto, aparentemente por um encadeamento puramente
obrigatório, vivenciamos um sequestro, que constantemente se
intensifica, do indivíduo e das suas formas sociais pelo Estado. Mesmo
que este sequestro também se realize ainda, à partida, pelo Estado-
Nação, formado segundo o modelo individual, habitamos próximos de um
combate de poder decisivo, cujas consequências não podem ser
descuradas. Este progresso da colocação ao serviço de grandes áreas
autónomas é aliás tão mais admirável quanto se realiza a partir de uma
pura lógica das coisas ⎯ tal como se torna particularmente claro em
Estados onde ainda está ao leme uma camada de chefes liberal, intacta
quanto às suas relações. Uma semelhante lógica das coisas traz consigo
que possam explodir guerras num estado em que todo o mundo é
pacifista. Tais são exemplos de uma revolução sans phrase, cuja
intervenção substancial, também através de uma rede de cautelas
individuais, não perde a garantia do objectivo.
247

Aquilo que para nós, neste contexto e neste lugar, é importante, é


o papel de patrão supremo que começa a recair cada vez mais
claramente no Estado. Ele pertence aos pressupostos de uma
configuração da paisagem num sentido abrangente, que é impensável
sem domínio. Observamos já hoje como se esbatem a diferença entre a
actividade de construção privada e pública, em muitos lugares e em
múltiplas ocasiões. Assim, a construção de habitações, e a questão do
estabelecimento, tornaram-se tarefas que dizem respeito ao programa
dos Estados. Assim como a colocação da indústria ao serviço da
Mobilização Total pressupõe uma repartição autoritária, uma escolha e
uma ordenação das instalações e ligações, assim também a protecção e
a administração de museu de paisagens naturais e culturais pertencem a
medidas que apenas se podem encontrar num quadro mais alargado.
As mais variadas necessidades reclamam soluções cada vez
mais penetrantes de uma natureza total, das quais apenas o Estado, e,
como iremos ver, um Estado de um tipo muito particular, é capaz. Em
todo o caso, é de esperar que a imagem de anarquia individual e social,
tal como a paisagem de oficinas, na sua primeira fase, oferece — aquela
imagem em que a concorrência, o lucro a qualquer preço e o
povoamento sem regras das massas cobrem a Terra com a sua lepra —,
muito em breve pertencerá à história.
Tem de se tornar claro que a fase da concepção e da execução
de grandes planos, que a ela sucederá, possui ainda carácter de oficina,
e que consegue certamente preparar formas definitivas, mas não as
consegue produzir. Contudo, aquilo que se pode esperar dela é uma
dominação ousada e segura do elemento construtivo. De facto, pode-se
já hoje observar que se realizam aqui importantes mudanças. É-se bem
capaz de decidir, na observação de imagens aéreas, onde uma nova
vontade, uma vontade diferente, começa a traçar as suas linhas na
paisagem. Não pode aqui passar despercebida uma medida mais
elevada em frieza, em matemática, em determinação. A este processo
248

corresponde a crescente perfeição dos meios ⎯ é assim claro que a


electricidade esteja numa relação mais estreita a ele, ou seja, também ao
Estado, do que a força do vapor.
Os quadros do Estado-Nação e o emprego de meios
essencialmente dinâmicos encerram em si limitações dentro das quais as
formas devem ser concebidas como esboços, como andaimes ou
esqueletos. Esta limitação é necessária na medida em que as formas
estão orientadas para o domínio, ou seja, levam um carácter de
armamento, mas não são já expressão do domínio. No entanto, anuncia-
se também já nesta fase que, sob a influência da figura, se realiza não
uma mudança parcial, mas total.
Tal torna-se manifesto, para referir um exemplo, na observação
da construção das cidades, uma das áreas significativas da configuração
da paisagem. A dissolução que está a começar das grandes massas do
século XIX permite prever que também não está assinalado às suas
habitações, às grandes cidades, um crescimento ilimitado na direcção
seguida até agora. Anuncia-se antes já um tipo novo de povoamento, em
que se expressa um sentimento do espaço em relação ao qual a
diferenciação entre cidade e campo perdeu importância, do mesmo modo
que para a estratégia moderna e para os seus meios a diferença de
terreno se torna menos significativa.
Se um historiador futuro devesse investigar este processo,
deparar-se-ia com uma plenitude de móbeis. Considerando-se
tecnicamente, dar-se-ia aqui talvez uma maior riqueza dos meios de
transporte e de informação; considerando-se segundo a higiene, uma
crescente carência de Sol e de ar; segundo a estratégia, a intenção de
retirar as instalações centrais e as populações compactadas ao efeito
concentrado das armas de longo alcance. Contudo, visto no seu todo,
todos estes pormenores são apenas os entrelaçamentos causais de um
processo vital abrangente ou, dito na nossa linguagem, são os caracteres
especiais de trabalho, cuja articulação “concorda” na medida em que
249

atrás deles se esconde um carácter total de trabalho. Quanto mais a


vontade de configuração se refere a este todo, ou seja, quanto mais o
tipo aparece como responsável pela sua mais elevada possibilidade,
como imediatamente responsável pelo carácter total do trabalho, tanto
mais se está a ponto de cunhos mais unitários.
Em estreita unidade com isto está a passagem da pura
construção para a construção orgânica, da planificação espiritual-
dinâmica para a forma estável, na qual a figura se manifesta de um modo
mais poderoso que em qualquer movimento. A construção orgânica só é
possível quando o homem aparecer numa elevada unidade com os seus
meios, e quando for corrigida a importuna discrepância que o deixa sentir
hoje, por razões que já investigámos, estes meios como meios
revolucionários. Só então se resolve a tensão entre natureza e
civilização, entre mundo orgânico e mecânico, e só então se pode falar
de uma configuração definitiva, tanto de uma configuração peculiar como
de uma configuração igual a qualquer padrão histórico.
O espaço natural a que se referem o domínio e a figura do
trabalhador possui uma dimensão planetária. É o globo terrestre que é
concebido como unidade por um sentimento da Terra novo e nascente ⎯
um sentimento da Terra que é suficientemente ousado para grandes
construções e suficientemente profundo para abranger as suas tensões
orgânicas. O ataque já começou e, apesar de as suas fases
revolucionárias ainda estarem em curso, a sua instalação planetária não
pode ser aqui descurada. Mundialmente revolucionária é a técnica,
enquanto meio pelo qual a figura do trabalhador mobiliza o mundo;
mundialmente revolucionário é o tipo, no qual a mesma figura se cria
uma raça dominadora. A instalação secreta dos meios, das armas, das
ciências tem como objectivo uma dominação espacial de pólo a pólo, e
as confrontações entre as grandes unidade vitais aspiram a um carácter
de guerra mundial.
250

Não há nenhum espaço, nenhuma vida, que se possa furtar a


este processo, que desde há muito traz a marca de uma migração de
povos bárbaros, com as múltiplas formas de colonização, povoamento de
partes da Terra, desbravamento de desertos e florestas virgens,
extermínio de populações indígenas, aniquilamento das leis da vida e
dos cultos, destruição secreta e aberta de camadas sociais e nacionais,
acção revolucionária e guerreira. Neste espaço, são terríveis os
sacrifícios e é grande a responsabilidade. Mas independentemente de
quem possa triunfar e de quem possa sucumbir: o declínio e o triunfo
anunciam o domínio do trabalhador. Os conflitos são plurívocos,
enquanto o questionamento é inequívoco. A violência caótica da revolta
contém já a rigorosa medida de uma legitimidade futura.
A face do mundo transporta as marcas da revolução; ela está
devastada por incêndios e pela luta dos interesses. Desde há muito que
já não se conhece a unidade de um domínio que esteja obrigado ao que
é mais elevado ⎯ a espada do poder e da justiça que exclusivamente
garante a paz das aldeias, o brilho dos palácios e a unidade dos povos.
E, no entanto, esta saudade está viva, de algum modo, por todo o lado,
tanto nos sonhos dos cosmopolitas como na doutrina do super-homem,
tanto na fé na força mágica da economia como na morte para a qual se
lança o soldado no campo de batalha.
Só a partir de uma tal unidade é que são possíveis configurações
e imagens simbólicas em que o sacrifício se preenche e legitima,
alegorias do eterno na lei harmónica dos espaços e em monumentos que
estejam à altura dos ataques do tempo.

64.

A configuração unitária do espaço pertence às características de


qualquer império, de qualquer domínio incontestável e indubitável que
251

abranja as fronteiras do mundo conhecido. Tal é uma verificação de


natureza dimensional, mas importante na medida em que o olhar tem de
ser orientado para o todo.
A arte não é nada particular, nada que possa ser apresentado em
partes, e que possa ser reproduzido em áreas singulares. Enquanto
expressão de um sentimento vital poderoso, assemelha-se à linguagem
que se fala sem se estar consciente da sua profundidade. Encontra-se o
que é admirável ou em toda a parte ou em parte alguma. É, por outras
palavras, uma propriedade da figura.
Para o observador que já vê incluídas no nosso tempo as
condições de um grande domínio e, assim, a possibilidade da
configuração real, levanta-se a pergunta pelos portadores, meios e leis,
numa palavra, pela peculiaridade, pela caligrafia em que se reconhece o
espírito de uma época.
Para um sentir formado no desempenho individual e no seu
carácter único, é difícil representar-se o tipo numa zona em que a
consciência seja domada pela força criadora. A sua estreita relação ao
número, a estreita inequivocidade da sua atitude de vida e das suas
instituições, parecem separar o seu mundo para longe daquele mundo
musical em que o homem participa da “nobreza mais elevada da
natureza”. A formação metálica da sua fisionomia, a sua preferência
pelas estruturas matemáticas, a sua falta de diferenciação anímica e,
finalmente, a sua saúde correspondem muito pouco às representações
que se formaram dos portadores da força criadora. O típico vale como a
forma do civilizador, a qual é tão diferente das formas naturais como das
da cultura, e isso através da característica da ausência de valor.
Tais são valorizações correntes da crítica do tempo dentro de
uma relação polar entre massa e individualidade. Vimos, no entanto, que
a massa e a individualidade são os dois lados de uma e da mesma
medalha, e nenhuma crítica calculará mais desta relação do que aquilo
que nela está contido. Em particular, o tipo não é de nenhum modo
252

tocado por estas valorizações, pois onde aparece como comunidade a


sua forma não é a da massa, e onde surge como singular a sua forma
não é a do indivíduo.
A renúncia à individualidade apresenta-se como um processo de
empobrecimento apenas ao indivíduo que nele reconhece a morte. Para
o tipo, ela significa a chave para um outro mundo que não se submete à
crítica através dos padrões tradicionais. Para além disso, é um erro que o
típico esteja abaixo do individual em dignidade. Quem quiser comparar,
encontra comprovações do contrário, independentemente de aprofundar
as paisagens naturais ou as culturais.
Sem nos perdermos em pormenores que não têm aqui lugar,
podemos verificar que a natureza, onde é configurada, põe um zelo
inigualavelmente mais elevado na apresentação e manutenção das
formas típicas que na diferenciação dos representantes singulares destas
formas. Tudo aquilo que a criatura singular, na sua vida, opera e frui, não
lhe surge com base num equipamento individual único, mas na formação
típica que lhe é transmitida.
Na imensa multiplicidade das formas que animam o mundo, há
uma lei rigorosa que procura conservar o duro cunho e a constância
inquebrável de cada uma destas formas, e cuja sólida regra é muito mais
espantosa que aquelas excepções para as quais ⎯ e, como iremos ver,
não sem razão ⎯ a atenção se dirigiu.
Não há nada mais regular que as coordenadas dos cristais ou
que as relações arquitectónicas daquelas pequenas obras de arte de
calcário, de corno ou de seixo das quais o chão do mar é povoado, e não
é sem razão que se tenta tornar o diâmetro dos alvéolos das abelhas na
medida de referência da unidade de comprimento. Mesmo onde
consideramos o homem como fenómeno natural, onde o consideramos
como raça, surpreende-nos uma medida elevada em uniformidade, em
inevitabilidade, que se trai tanto no seu aspecto exterior como nos seus
pensamentos e acções.
253

Este tipo de consideração está certamente em contradição com


aquela concepção sempre ainda viva que anseia por procurar aquela
força configuradora da natureza não nas suas imagens fixas, mas
precisamente nas suas oscilações, variações e extravios.
É escusado entrar aqui numa discussão, pois esta concepção
através da qual se realiza uma submissão das formas a princípios
dinâmicos pertence à história do indivíduo: nela manifesta-se o modo no
qual o indivíduo se vê confirmado a si e ao seu conceito de liberdade na
natureza. Ela corresponde à doutrina da concorrência na economia, do
progresso na história e da soberania do indivíduo criador. Na doutrina da
selecção natural, a ciência da natureza segue os vestígios da descoberta
da relação amorosa individual, através do romance burguês.
Tais perspectivas possuem, dentro da hierarquia individualista, a
sua irrefutável validade ⎯ no entanto, tornam-se sem significado quando
se abandona o seu ponto de vista. Deparamos, nesta submissão das
criaturas naturais a um conceito mecânico de desenvolvimento, com a
mesma imensa degradação que, no espaço histórico, o homem
experimenta através do empréstimo de um conceito de liberdade
abstracto. A vida aparece por todo o lado neste sistema como fim e
intenção; em parte alguma, como a expressão estável de si mesma. E,
no entanto, é suficiente, com aquele amor que o anatomista não
conhece, dedicar um único instante a uma qualquer pedra, a um animal
ou a uma planta, para conceber que habita em qualquer destas criaturas
uma completude que é insuperável.
Suspeita-se aqui o fundamento dos poderosos esforços da
natureza para conservar as formas nas suas medidas e leis, e na sua
aversão a misturas e ausência de regras de qualquer espécie. Quem
alguma vez tiver a sorte de deparar com uma das grandes migrações de
animais, vivencia uma violenta demostração de vontade de comprovar
uma determinada imagem numa miríade de “exemplares”, nos
portadores das características. Encontramos por todo o lado, na
254

natureza, uma relação entre selo e cunho, que está sobreposta à relação
entre causa e efeito do mesmo modo que o carácter “astrológico” de um
homem é imcomparavelmente mais significativo do que a sua qualidade
puramente moral.
Esta hierarquia manifesta-se na medida em que causa e efeito só
se podem conceber na forma cunhada, enquanto estas formas existem
em e para si, independentemente de que explicação se lhes der, de que
perspectivas da sua consideração de possa procurar. Sem dúvida que
aquela intuição muito acima da qual a vaidade das ciências da natureza
acreditava elevar-se, a intuição de que qualquer forma deve a sua origem
a um acto particular de criação104 , é muito mais adequada à realidade
natural que a teoria mecânica do desenvolvimento, a qual rejeitou
durante um século o saber do “desenvolvimento vivo”, saber esse que
compreendeu por desenvolvimento a projecção de arquétipos no espaço
acessível à percepção.

65.

É tão pouco elucidativa a relação à paisagem cultural quanto se


pode opor o tipo e as suas leis de formação à paisagem natural.
Tem certamente de se ver quanto o conceito de cultura foi
influenciado pelas representações do indivíduo; está impregnado do suor
do esforço individual, do sentimento da vivência única, do significado da
autoria. O desempenho criador acontece na fronteira entre “ideia” e
“matéria”; em combates titânicos, arranca ao material as formas e
engendra imagens únicas e irreproduzíveis. Realiza-se num espaço
particular extraordinário, seja nas regiões mais elevadas do idealismo,

104
Atrás da doutrina das mutações esconde-se, aliás, uma das redescobertas do milagre pela
ciência moderna.
255

seja na distância romântica do quotidiano ou nas zonas exclusivas de


uma actividade artística abstracta105.
Correlativamente, o portador deste desempenho aparece na
posse de faculdades únicas, extraordinárias, anormais, frequentemente
em sentido clínico, que lhe atribuem uma dignidade imediata. Esta
dignidade é aumentada na mesma medida em que a massa ganha
significado. A isto liga-se que ambos os pólos do mundo individual, o pólo
da massa e o do indivíduo, se correspondam; nada pode acontecer num
que também não possua significado para o outro. Quanto mais cresce a
massa, tanto mais significativa se torna a fome de um grande singular
através de cuja existência a partícula da massa se veja, também na sua
existência, confirmada.
Esta necessidade conduziu finalmente a um fenómeno estranho
de que somos testemunhas: à invenção do génio artístico, ao qual cabe a
tarefa, apoiada por meio da publicidade, de desempenhar o papel do
singular significativo, tal como acontece na Alemanha segundo os
modelos de Postdam ou Weimar. Também a estes mesmos modelos é
dedicado um culto particular, cujo sentido se pode assinalar como a
colocação da pessoa na perspectiva individual. Explica-se a partir daqui
o espantoso sucesso que a literatura biográfica contemporânea
encontrou, a qual, no fundo, se ocupa com a prova de que não há
quaisquer heróis, mas sempre só homens, isto é, indivíduos. Manifesta-
se aqui a mesma penosa mistura do exagero e da verosimilhança
desmedidos, a mesma falta de distância que é peculiar em geral à
empresa de museu.
Diante disto, deve-se verificar que na real paisagem cultural a
vida e a configuração estão demasiado intimamente ligadas para que a
posse da força criadora, neste sentido, pudesse ser sentida como única,
extraordinária ou admirável. O admirável está aqui em toda a parte, e o

105
Que também pode empreender como que “arte popular”.
256

extraordinário pertence à ordem. Daí que não haja nenhum sentimento


cultural no sentido que entre nós se tornou habitual.
Do mesmo modo que o sentimento moderno da natureza é uma
característica da discrepância que há entre os homens e a natureza,
mostra-se no sentimento da cultura o afastamento do homem em relação
ao desempenho criador ⎯ um afastamento tal como o que se expressa
na distância do visitante do museu em relação aos objectos expostos.
Tornou-se-nos muito estranho o pensamento de que há medidas cuja
produção acontece sem esforço, porque cada movimento é já expressão
e representação da medida ⎯ e, correlativamente, uma formação que
extrai as formas do solo como plantas, ou que as deixa unirem-se
segundo leis cristalinas.
No entanto, nada há mais evidente, mais regular e ⎯ do ponto de
vista individual ⎯ mais uniforme que paisagens de túmulos e de templos,
nas quais, numa monotonia cerimonial, se repetem proporções simples e
constantes, monumentos, ordens arquitectónicas, ornamentos e
símbolos, e através das quais a vida se muda com imagens
determinadas e inequívocas. Estados deste tipo são de uma unidade e
de uma densidade fechadas, das quais talvez seja o poema sagrado que
a nós hoje consiga dar a melhor representação.
A falta de peculiaridade no sentido individual, que distingue a
configuração da paisagem, repete-se no singular. Os rostos das estátuas
gregas furtam-se à fisionomia, de modo semelhante a como o drama
antigo à motivação psicológica; uma comparação com a escultura gótica
esclarece a diferença entre alma e figura. É um outro mundo em que os
actores aparecem com máscaras, os deuses com cabeças de animais, e
em que pertence às características da força de formação aumentar
símbolos numa repetição infinita que lembra os processos naturais, tal
como acontece com a folha de acanto, com o falo, com o lingam106, com
o escaravelho, com a cobra, com o disco solar, com o buda em repouso.
257

Num tal mundo, o estrangeiro não sente admiração, mas medo, e ainda
hoje não se pode estar sem medo diante da visão nocturna da grande
pirâmide, ou da visão do solitário templo de Segesta no brilho do Sol
siciliano.
De um tal mundo, com a densidade fechada de um anel mágico,
aproxima-se visivelmente também aquele tipo que a figura do trabalhador
representa, e aproxima-se dele tanto mais quanto mais claramente o
singular aparece como tipo. Seguramente que as formações de que o
tipo surge como portador nada têm de comum com o conceito de cultura
que é transmitido; mas habita nelas a unidade incomparável que trai que
está aqui mais que a consciência do trabalho. Este fechamento traz
consigo que os movimentos se realizem de um modo cada vez mais
automático, sob a influência de uma lógica cruel. Além disso, caracteriza-
os que as mais difíceis de captar sejam precisamente as mudanças
essenciais, justamente porque ocorrem de um modo evidente. E, no
entanto, o grande combate é travado em torno de e em cada indivíduo;
espelha-se em qualquer questionamento que o movimente.
O tipo pode então muito bem ser o portador de um desempenho
criador. A dignidade pura e simplesmente diferente deste desempenho
consiste em não ter nada a ver com valorizações individuais. Na renúncia
à individualidade está a chave para espaços cujo conhecimento se
perdeu desde há muito.
Aborde-se mais uma vez, neste ponto, a possibilidade de um erro
que, segundo o exposto até agora, ainda quase não se pode pressupor:
não se trata aqui de uma contraposição no domínio dos valores entre o
singular e a comunidade, tal como hoje aparece como comunidade do
povo, comunidade do obrar ou comunidade de cultura, na dialéctica
conservadora, ou como colectivo, na dialéctica social. A contraposição
essencial não é o singular ou a comunidade, mas é o tipo ou o indivíduo.

106
N. do T.: O lingam é um símbolo fálico na cultura indu.
258

O tipo representa uma humanidade diferente, em cuja área se


altera também a necessária tensão que existe, em todos os tempos,
entre o singular e a comunidade. No entanto, a alteração tanto do
homem como da sua comunidade é apenas uma expressão do facto
subordinado de um mundo em que governam os conceitos universais ser
rendido por um mundo da figura. É a partir daqui, e não através da
comunidade, que é garantida a unidade da configuração como cujo
portador aparece o tipo.

66.

O nosso tempo gerou, entre outros pensamentos estranhos, a


opinião de que um desempenho original é possível, contanto que os
meios específicos deste tempo não a evitassem. Tal é uma espécie
particular do regresso à natureza, e é notável que não tenha sido
realizada mais frequentemente, pois está aberta ao singular em qualquer
segundo, pressupondo-se que renuncie a discuti-la à luz eléctrica ou a
anunciá-la mediante a imprensa com máquinas rotativas.
Só que quanto mais os santos do deserto convencem através da
sua mera existência, tanto menos isto alcançará uma supremacia
dolorosa sobre o tempo, que se assemelha à daqueles generais que
teriam ganho cada uma das suas batalhas, pressupondo o emprego das
espingardas de rastilho.
Os meios do tempo não são obstáculos, mas pedras-de-toque da
força, e o alcance do domínio é caracterizado pela medida em que é bem
sucedido o emprego unitário dos meios. Um tal emprego não se pode
esperar de onde ainda existe o sentimento de uma oposição decisiva
entre o mundo mecânico e orgânico, na qual se pode ver uma
superficialização da velha oposição entre corpo e alma. Este sentimento
não é senão uma expressão de fraqueza, de perplexidade diante do mais
259

consequente ataque de uma legalidade diferente, mas de modo nenhum


puramente mecânica, que tem necessariamente de ser sentida como
sem sentido tanto pelo indivíduo como também pela massa. Nem o
indivíduo nem a massa em geral estão capacitados para uma adequada
dominação dos meios; este domínio adequa-se antes a uma vida que se
representa no tipo e nas suas comunidades. Ele é uma das
características de que o homem está à altura das reivindicações do seu
espaço e do seu tempo, e realiza-se na construção orgânica, no
entrelaçamento estreito e sem contradição da vida com os meios que
estão às suas ordens.
É incontestável que os meios, por todo o lado onde se trate de
desempenhos que trazem um carácter individual e que se tenham de
medir com valorizações de museu, negam completamente a sua ajuda.
Contudo, dá que pensar que tais desempenhos não se realizem apesar
de tudo, pois o homem, depois como antes, dispõe do instrumento de
todos os instrumentos, ou seja, da mão. A razão disto está em que os
desempenhos deste tipo não são adequados aos estados em que
entrámos, e que a mão, como em geral qualquer instrumento, nega o
serviço onde estiver colocada numa linha de condução que se tornou
sem significado. É esbanjado no nosso tempo um imenso esforço a gerar
coisas que não se podem gerar só pelo esforço. Correlativamente,
deparamos com a exigência inadmissível de ver já um desempenho no
puro esforço, atrás do qual, ao limite, se esconde a vontade de
peculiaridade a qualquer preço.
Temos de reconhecer, pelo contrário, que hoje há por todo o lado
mais peculiaridade que no mundo individual. Além disso, deve-se dizer
que tem de ser vigiada de perto uma classe artística que não participa
em nenhum dos velhos valores, mas vive à custa deles — pois é destes
que aqui se trata. Atrás de um aparentemente inofensivo quixotismo
contra os meios esconde-se a vontade de desviar o espírito daquele
260

espaço mais duro e mais puro em que as grandes decisões têm de ser
suportadas.
Daí que na Alemanha se encontrará esta classe artística, com
uma segurança mortal, numa estreita ligação com todas aquelas
potências em cujo rosto está escrito um carácter traiçoeiro mais ou
menos escondido. Felizmente, depara-se, entre a nossa juventude, com
um faro crescente para uniões desta espécie; e começa-se a suspeitar
de que, neste espaço, já o emprego do espírito abstracto possui o
estatuto de uma actividade de traição à pátria. Um novo modo de zelo
dominicano tem o descaramento de se lamentar pelo fim das
perseguições aos hereges — mas é preciso apenas ter paciência; tais
perseguições estão já em preparação, e nada se lhes oporá ao caminho
logo que se tiver reconhecido que connosco o facto da heresia se
cumpre na fé no dualismo do mundo e dos seus sistemas. Tal é a
heresia geral que ainda se descobrirá nos mais materiais e mais
espirituais sistemas inimigos, e em que se reconhece sem excepção
todas aquelas forças, muito diferenciadas entre si, cujo mais secreto
ideal, animado poderosamente pela saída da guerra mundial, está no
declínio do império. A esta suprema discrepância correspondem todas
aquelas oposições venenosas de poder e direito, sangue e espírito, ideia
e matéria, amor e sexo, homem e natureza, corpo e alma, espada
secular e espiritual — oposições que pertencem a uma linguagem que
tem de ser reconhecida como língua estrangeira. De tais oposições
alimenta-se hoje, depois de terem perdido a sua primeira força de
alimento, o infinito diálogo dialéctico que acaba no niilismo, na medida
em que tudo se torna pretexto.
Estas oposições tornam-se sem significado diante da figura;
reconhece-se o pensar educado em ele saber ver os universalia na re.
Com efeito, tem de se saber que a entrada no mundo da figura altera
completamente a vida, e não apenas as suas partes; e que, na unidade
de poder e direito, não se trata de sínteses dialécticas, mas de processos
261

da natureza total. O mesmo vale para a relação que existe entre o


homem e os seus meios — já no facto de esta relação ser concebida
como oposição, como inimizade, trai-se a falta de totalidade. Esta
diferenciação valorativa de um mundo mecânico e orgânico é uma das
características da existência enfraquecida, que é submetida aos ataques
de uma vida que se sente à altura dos seus meios, com aquela
segurança ingénua com que o animal se serve dos seus orgãos.
Tal é o caso no tipo, isto é, naquela humanidade que representa a
figura do trabalhador. Para ele, também são naturais os meios com os
quais esta figura revoluciona o mundo; e uma das suas marcas é não
estar em oposição a eles. Daí que ele, no seu desempenho, também não
seja obstaculizado pela sua presença, independentemente de como
sejam obtidos.
Este desempenho realiza-se num espaço fechado, que esconde
em si a sua legalidade própria, em que a configuração,
independentemente de sob que forma ela possa emergir, não se pode
medir com padrões individuais. E se se salientasse como o objectivo
desta configuração repartir a superfície da Terra como um favo de
abelhas em hexágonos, ou cobri-la com montes de térmitas — um juízo a
partir de um outro círculo de vida poderia ter tão pouca influência neste
processo, como um animal qualquer é influenciado por aparecer ao olhar
humano como belo ou feio. Quanto mais intensamente o tipo se
reconhecer na sua propriedade como raça, tanto mais inconfundível será
nas suas formações, tanto mais também os meios alteram o seu sentido
— ou antes, tanto mais claramente o sentido da sua instalação surge da
confusão da paisagem de oficinas.
Pode-se verificar, provisoriamente, que os meios, tanto
mobilizadores como destruidores, irromperam em todos os âmbitos da
vida, também nas ocupações ancestrais como a lavoura, as viagens na
água e na terra, e a guerra. No mesmo papel, ainda discrepante,
emergem na alteração da imagem da paisagem, da arquitectura e da
262

preparação de raros e grandiosos jogos cósmicos, cujo verdadeiro


sentido só surgirá quando estiver concluído o papel do indivíduo que é
incapaz de expressá-lo. Estes meios obrigam a contar com eles pelo
mero facto da sua existência, isto é, são de uma suprema dignidade
revolucionária, de cujo ataque as formas peculiares tanto da massa como
do indivíduo não estão à altura, nem nos campos de batalhas, nem na
economia, nem em relação à configuração. Contudo, não se trata apenas
de estar à altura deles, mas de se servir deles como os naturais e dados
instrumentos da dominação e da configuração do mundo. Esta faculdade
é a prova de que a vida está em relação com o único poder que hoje
consegue assegurar o domínio, ou seja, com a figura do trabalhador.
Talvez se tenha de indicar, mais uma vez, que a dignidade
revolucionária dos meios está no seu carácter representativo, mas não
no alcance da sua energia dinâmica. Não há nenhuns meios em si, e
uma mecânica sem relações pertence aos preconceitos que o pensar
abstracto inventou. A simultaneidade de meios determinados com uma
determinada humanidade não depende do acaso, mas está incluída nos
quadros de uma necessidade sobreposta. A unidade do homem com os
seus meios é, por isso, a expressão de uma unidade de uma espécie
sobreposta.
Para ilustrar esta relação, refira-se, mais uma vez, o papel há
pouco mencionado da mão enquanto instrumento dos instrumentos:
deve-se prever que onde o homem aparecer como senhor, e numa
ligação sem contradições com os seus meios, também a mão reassumirá
o serviço que hoje nega.
Ela será certamente, neste estado, não o orgão de formações
individuais, mas típicas.

67.
263

Não é nosso propósito orientar a nossa posição contra as


objecções dos defensores da substância crescente, pelos quais
compreendemos aquela espécie de indivíduo que se ocupa em atirar as
lembranças do Estado absoluto contra as formas da democracia liberal.
Tal é um campo de actividade no qual prosperam senhorialmente os
paradoxos, dos quais os melhores já foram feitos há cento e cinquenta
anos. O liberalismo mantém há muito uma espécie peculiar de bobos
cuja tarefa consiste em dizer-lhe verdades que se tornaram inócuas.
Desenvolveu-se um cerimonial particular com o qual o indivíduo
moderno, vestido como quase-aristocrata ou como quase-abade, sob um
aplauso tornado universal, exibe os golpes mortais sofridos segundo
todas as regras da arte. Isto é um jogo no qual as grandezas existenciais
se tornaram conceitos ambíguos. E é mais importante o movimento da
mão com o qual o revisor do eléctrico se serve da sua campainha.
Por isso, se se quiser reconhecer a nossa exposição como a
descrição de um estado em que a arte é feita pelas máquinas, e em que
o mundo aparece como o palco de uma nova espécie de insecto — então
aceitemos este equívoco e utilizemo-lo, depois de termos descrito uma
humanidade diferente como o portador, e um emprego diferente dos
meios, um emprego orgânico-construtivo, como o ponto mediador das
formações típicas, para passar à descrição da legalidade a que estas
formações estão submetidas.
Deve-se ver, à partida, que a emergência de formações típicas
nada tem de comum com aquele estado em que a diferença fictícia entre
massa e indivíduo se desgastou em extremo, e em que qualquer
produção que o indivíduo consiga levar a cabo, independentemente de
em que campo ela possa ocorrer, está numa referência imediata à
massa, isto é, aparece como produto fabricado.
O produto fabricado nada tem em comum com as formações
típicas senão a propriedade da uniformidade, e também este ponto
comum é apenas aparente. Há uma grande diferença entre uma
264

uniformidade, tal como a que possui o cascalho das bordas do mar, e a


inequivocidade de formações de tipo cristalino. É a mesma diferença que
há entre o átomo do século XIX e o do século XX — a diferença entre
uma grandeza mecânica e uma construção orgânica. O produto
fabricado, tal como pode aparecer na esfera económica como
mercadoria, na esfera artística como sinal ou linguagem, não é de uma
natureza típica, mas de uma natureza universal.
A diferença entre os estados tardios do mundo burguês-individual
e os do mundo do trabalho está em a formação ser acessível naquele
sob a influência de conceitos universais e, correlativamente, de uma
mecânica abstracta, e neste como expressão de um contexto total. Daí
que a formação típica não conheça o que é em si legal, o que é em si
belo ou o que é em si claro. As formações típicas são incompreensíveis,
impensáveis e irrealizáveis sem o contexto exacto da figura, em relação
com a qual estão numa relação de selo e cunho — enquanto uma atitude
humanitária-abstracta se embala na fé de que a sua linguagem seja
compreensível para todos os tempos e em todos os espaços.
A formação típica pode ser completamente uniforme e numerosa,
tal como uniformes e numerosas são as conchas na costa, os
escaravelhos nas câmaras mortuárias, as colunas nas cidades com
templos. O facto de eles possuírem um carácter representativo, de eles
incorporarem a figura, diferencia-os claramente daquela ausência de
sentido que é peculiar à massa abstracta. Ocupámo-nos já com a
diferença que há entre o número abstracto e a cifra supremamente
precisa, supremamente inequívoca, que se pode observar em conjunto
com a emergência da construção orgânica. A formação típica pode aliás
ser de validade planetária — contudo, tal não assenta de modo nenhum
em ela ser transportada por uma sociedade cosmopolita, criada pelos
sonhos da razão, mas em ela representar uma figura muito determinada,
muito inequívoca, em ela estar ao dispor do ímpeto planetário.
265

Esta validade — como vimos, de facto, sob sinais negativos — já


emerge na paisagem de oficinas, a qual se pode considerar como uma
paisagem de passagem. Cada força sem excepção vê-se aqui envolvida
num processo que a submete às exigências do combate de concorrência
e do aumento de velocidade. Correlativamente, as grandes teorias são
de tipo dinâmico, e possui-se poder na medida em que se dispõe de
energia motora — ao limite, a vontade de poder é já uma legitimação
suficiente. Do mesmo modo, os símbolos com os quais se se depara,
repetidos de milhões de modos, são expressão de uma linguagem do
movimento, como a asa, a onda, a hélice, a roda. Este processo
desemboca no puro movimento das partes tornadas autónomas, ou seja,
na anarquia, ou então é preso e articulado por potências de tipo estático.
Na paisagem planificada, que rende a pura paisagem de oficinas,
como cujo portador já não surgem indivíduos ou grandezas que se
submetam ao esquema do conceito de liberdade individual, a formação
típica irrompe já mais claramente. A um aparecimento mais abrangente
do Estado, que tem de dominar tarefas diferentes, corresponde uma
humanidade que se começa a cunhar sob características de raça, e que
pode ser colocada ao serviço de um modo menos contraditório, mais
inequívoco e mais decisivo. A este processo corresponde um estilo
diferente, que dá às formações aquele sentido mais simples e mais puro
que consegue partilhar a mera existência de um poder sobreposto. Com
efeito, tem de se notar que nem aqui, de modo nenhum, se expressa na
configuração o domínio completo. O Estado de trabalho é limitado nas
suas reivindicações pela presença de estruturas do mesmo tipo. A
ameaça da sua existência, e os esforços que tem de contrapor a esta
ameaça, são mais significativos que no sistema do Estado-Nação. Tal
liga-se a que a figura do trabalhador, que se começa a mostrar no Estado
de trabalho, possua um significado planetário, e a que realize a viragem
imperial simultaneamente em muitos lugares do mundo. Este estado
assinala-se em o domínio da figura ainda não estar realizado, enquanto
266

já é visível como objectivo. A concorrência é aqui presa, por um lado, por


ordens planificadas, enquanto, por outro lado, passou para unidades de
vida mais abrangentes e as coloca sob o seu ritmo. A estrutura
económica das instalações, e a estrutura das instalações conforme a um
fim técnico, é, através de um carácter de armamento sobreposto, ao
mesmo tempo intensificada e submetida a um sentido mais significativo.
Este processo gera imagens de uma maior unidade, as quais, no
entanto, se furtam necessariamente à plenitude e se podem reconhecer
numa linha de conduta rigorosa e ascética.
A entrada num mundo de formas seguro e fechado pode então
esperar-se apenas quando tiverem caído as grandes decisões em
qualquer sentido, e quando os caracteres de armamento, postos no
mesmo plano, forem rendidos por um carácter de uma superioridade
sobreposta. Temos de nos reabituar ao pensamento de que, dentro de
um tal mundo, a forma não é o objectivo do esforço, mas o cunho
evidente que é, à partida, peculiar a qualquer esforço.
A forma real não é o que é extraordinário, tal como vive nas
representações do pensar de museu, que, correlativamente, torna a
viragem para a forma, seja na arte, seja na política, dependente da
emergência repentina do indivíduo extraordinário. Ela é antes o que é
quotidiano, e não pode aparecer isolada nem quando não é peculiar ao
apetrecho diário, tal como serve à simples vida para a alimentação e
para a economia. Contudo, o meio imutável de perfeição evidente pode
ser esperado para aquele nível mais abrangente do tipo, nível esse que
experimenta o seu cunho passivo através da figura. Estreitamente
relacionado com isto estão a constância das instituições, dos costumes e
dos usos, a segurança da economia, a compreensão da linguagem de
comando e da ordem de comando, numa palavra, uma vida segundo a
lei.
Para o segundo e activo nível do tipo, no qual se representa o
carácter especial do trabalho, a entrada no mundo fechado das formas
267

apresenta-se como a passagem da paisagem planificada para uma


paisagem em que se expressa uma segurança mais profunda do que a
que o puro armamento consegue dar. É a mesma passagem que conduz
do experimento à experiência, isto é, a uma metódica de tipo instintivo.
Do mesmo modo que a raça é o resultado de um cunho fechado, o
instinto é a propriedade de uma vida que é impelida para o conhecimento
inequívoco das suas possibilidades. Neste espaço, é de esperar uma
suprema cunhagem da instituição singular, da ciência singular e da
actividade singular. Este cunho, esta colocação ao serviço e delimitação
daquilo que é um fim em si, só é possível quando se vê no carácter total
do trabalho o selo que o realiza. As formações típicas aparecem aqui
como um sistema de caracteres afiados, precisos e conformes a fins,
através dos quais a figura é espelhada no que está em movimento e no
que é múltiplo. Não há nenhum conjunto de partes, nenhum tipo de
actividade de inteligência ou de manufactura, que não seja, ao mesmo
tempo, limitado e acrescido por estar ao serviço.
O tipo é chamado à forma suprema da formação dentro do mundo
do trabalho, em cujo actuar o carácter total do trabalho consegue
expressar-se imediatamente. À linguagem dos símbolos estáveis, nos
quais a pura existência fala à intuição, está reservado dar testemunho de
que a figura do trabalhador esconde mais que movimento: de que ela
possui um significado cultual. Tais testemunhos crescem em estreita
união com a arte do Estado, com a dominação incontestável e indubitável
do tempo e do espaço.
Só aqui é que o revestimento da Terra ganha aquela última
plenitude e aquela riqueza em que a unidade do domínio e da figura se
manifesta, e que nenhum propósito consegue criar.
268

A PASSAGEM DA DEMOCRACIA LIBERAL PARA O ESTADO


DE TRABALHO

68.

Muitas marcas deixam reconhecer que estamos diante dos


portões de uma era na qual se pode voltar a falar de domínio real, de
ordem e submissão, de comando e obediência. Nenhuma destas marcas
fala mais claramente do que a disciplina voluntária à qual a juventude se
começa a submeter, o seu desdém pelos prazeres, o seu sentido
guerreiro, o despertar do seu sentimento por valorizações viris e
incondicionais.
Seja em que situações forem que esta juventude se possa
procurar — por todo o lado se sentirá a impressão de uma conjura, que
se suscitará pelo simples facto da presença e da reunião de uma
determinada espécie humana. Por todo o lado se tornam também
manifestos a rejeição da tradição burguesa e o apelo ao trabalhador, seja
nos programas, seja na condução da vida. Esta conjura dirige-se
necessariamente contra o Estado, e isto não de um modo que procure
demarcar a liberdade contra o Estado, mas de tal modo que um conceito
de liberdade diferente, para o qual o domínio e o serviço têm o mesmo
significado, deve ser fundido no Estado como o meio mais importante e
mais abrangente da mudança.
Não faltam tentativas pelas quais este novo sentido — que é um
sinal de que o homem, no fundo, não pode ser estragado por nenhuma
educação — deve ser amarrado e submetido aos velhos sistemas da
sociedade burguesa. A mais importante destas tentativas consiste em
269

conceber cada nova força emergente como parceiro negocial, e em


incluí-la num aparelho que trabalhe através de negócios. A medida de
resistência que pode ser contraposta a este desejo é uma indicação
sobre a capacidade para ordens diferentes. Há potências das quais se
pode presumir tão pouca legalidade como de um presente de um
vigarista, sem que nos tornemos cúmplices. Tal vale também para a
sociedade burguesa que se elevou a beneficiária do Estado. O rosto da
democracia tardia, onde a traição e a impotência enterraram os seus
sinais, é sobejamente conhecido. Neste estado, florescem
sumptuosamente todas as potências de corrupção, todos os elementos
mortos, estranhos e inimigos; a sua eternização a qualquer preço é o seu
objectivo secreto.
Daí que seja muito importante de que modo se realiza a rendição
do domínio aparente burguês pelo domínio do trabalhador e, assim, a
troca de duas imagens do Estado completamente diferentes. Quanto
mais elementar for o caminho em que acontece esta troca, tanto mais ele
tem lugar no campo da autêntica força do trabalhador. Quanto mais o
trabalhador renunciar, no seu combate, à utilização dos conceitos,
ordens, regras do jogo e constituições inventados pelo burguês, tanto
mais estará apto para realizar a sua lei peculiar, e tanto menos se poderá
esperar dele tolerância. O primeiro pressuposto de uma construção
orgânica do Estado é que sejam queimados todos aqueles esconderijos
a partir dos quais, nas horas de maior desgaste, a traição liberta as suas
tropas auxiliares, como da barriga do Cavalo de Tróia.
Seria erróneo assumir que o combate pelo domínio já tenha
entrado nos seus últimos estádios. Pode-se antes predizer com
segurança que, depois de se poder observar o burguês como o
beneficiário de uma assim chamada revolução, voltar-se-á a encontrá-lo
como o escudeiro de uma restauração atrás da qual se esconde o
mesmo desejo de segurança.
270

Atrás daquelas marionetes que laminam o lugar comum liberal até


à última finura de papel, nas tribunas públicas que já se encontram em
demolição, os espíritos mais finos e mais experimentados preparam uma
troca de bastidores. Encontrar-se-á, sob novas, surpreendentes e
“revolucionárias” formulações, a monarquia legítima e a articulação
“orgânica” como os objectivos da política interna, do mesmo modo que
se encontrará um entendimento com todas aquelas potências através de
cuja existência a permanência da cristandade ou da Europa e, com isso,
também do mundo burguês é assegurada. O burguês alcançou um
estado de desespero no qual está pronto para aguentar tudo aquilo que
até agora tinha sido o objecto inesgotável da sua ironia, contanto que
apenas a segurança permaneça garantida.
O sucesso de tentativas de restauração deste género só
poderiam acelerar o curso da mudança. Criaria um opositor estável e
caracterizaria os portadores da responsabilidade de um modo que é
muito diferente dos estados anónimos da democracia tardia, nos quais o
poder do Estado é atribuído a um obscuro conceito de povo. Contudo,
em segundo lugar, seria consciencializada a sua unidade de um modo
muito palpável, em todas as situações em que está viva uma nova
imagem do Estado, tal como se procura expressar hoje no programa, por
um lado, de um nacionalismo revolucionário e, por outro, de um
socialismo revolucionário.
Certamente que tem aqui de desaparecer tudo aquilo que não
esteja à altura de influências românticas ou tradicionalistas, e tem de
surgir uma atitude que não se possa convencer com simples palavras.
Em pouco tempo, já não haverá mais nenhuma grandeza política que
não procure actuar através do apelo ao socialismo e ao nacionalismo107,
e tem de ser visto que esta fraseologia está aberta a qualquer um que
domine o uso das vinte e duas letras do alfabeto. Este facto dá que
pensar; indica que aqui não se trata de princípios que estão para
271

“realizar”, mas que se esconde, atrás destes esforços, aquele carácter


dinâmico-nivelador que é característico da paisagem de passagem.
A liberdade que ambos os princípios do nacionalismo e do
socialismo conseguem criar não é de natureza substancial; é um
pressuposto, uma grandeza mobilizadora, mas não um objectivo. Esta
relação permite suspeitar que aqui o conceito burguês de liberdade está,
de algum modo, em jogo, e que se trata de esforços em que tanto o
indivíduo como a massa ainda têm uma intervenção decisiva.
Como a praxis mostra, tal é efectivamente o caso. A atomização
social no interior, e a delimitação nacional do corpo do Estado para o
exterior, pertencem à substância evidente de qualquer mundividência
liberal; não há nenhum contrato social, ou contrato do Estado, do século
XIX, até à Constituição de Weimar ou à Paz de Versailles, em que não
estejam num lugar decisivo. Estas coisas pertencem tanto ao nível a
partir do qual se trabalha como o facto de que cada um possa ler e
escrever; e não há ordem, seja a de uma restauração ou de uma
revolução qualquer, que a deixará de utilizar. Contudo, tem de se ver que
não se trata aqui de objectivos do Estado, mas de pressupostos da
construção do Estado.
Dentro do mundo do trabalho, estes princípios são grandezas de
trabalho e grandezas de mobilização, cujo efeito é tão mais aniquilador
quanto mais a democracia liberal se vir aqui atacada com a sua metódica
mais própria. Que neste processo se realiza algo mais e mais importante
do que um processo de autoaniquilamento da democracia, mostrou-se
através de, nestas palavras, se entrevir um significado novo e diferente,
em que se trai o esforço de uma espécie humana vocacionada para o
domínio. Estamos num processo através do qual se dá uma direcção aos
princípios universais, e no qual a “liberdade de” se transforma numa
“liberdade para”.

107
O burguês, que, depois da guerra, não queria de todo ser nacionalista, adoptou entretanto
esta palavra, com grande habilidade, no sentido do conceito burguês de liberdade.
272

Neste contexto, o socialismo aparece como o pressuposto de


uma articulação autoritária o mais intensa possível, e o nacionalismo
como o pressuposto de tarefas de dignidade imperial.

69.

O socialismo e o nacionalismo, enquanto princípios universais,


são, como se disse, ao mesmo tempo, de uma natureza reparadora e
preparatória. Aí, onde o espírito humano a tem por realizada, mostra-se a
conclusão de uma era, mas é ao mesmo tempo manifesto que esta
conclusão contém em si novas tarefas, novos perigos, novas
possibilidades de marcha. Em todos os grandes acontecimentos do
nosso tempo, escondem-se tanto os pontos finais de desenvolvimentos
como os pontos iniciais de novas ordens. Tal vale também para a guerra
mundial, enquanto o mais abrangente e o mais incisivo destes
acontecimentos.
A guerra mundial, na medida em que pôs um ponto final no
século XIX, foi uma confirmação violenta dos princípios actuantes neste
século. Ela não deixou atrás de si, no globo terrestre, nenhuma outra
forma de Estado senão a da democracia nacional, escondida ou não
escondida.
Este resultado não podia ter ocorrido de outro modo, já porque a
medida em que podiam ser mobilizados os meios da democracia
nacional, como os parlamentos, a imprensa liberal, a opinião pública, o
ideal da humanidade, era decisiva para o sucesso na guerra. Assim, seja
com que mudanças fosse, a Rússia não podia ganhar a guerra, embora,
vista segundo a política externa, estivesse do lado das potências
vencedoras. Esta terra estava tão pouco na forma e na constituição
peculiares que uma tal confrontação exigia, como o estavam a Áustria-
Hungria ou a Turquia. Havia aqui tensões diferentes, que prejudicavam
273

uma viragem unida para fora. A França, pelo contrário, encontrava-se


num estado saudável de consciência democrática, que talvez se torne
maximamente visível no facto de ela mesma, no momento das suas
maiores fraquezas exteriores, ter estado à altura de um motim militar
muito perigoso.
Sob estes pressupostos, parece apenas consequente que,
imediatamente em ligação com a confrontação guerreira, uma série de
povos, e particularmente de povos submetidos, procurasse tomar posse
daquela liberdade de movimentos que é peculiar à democracia nacional.
Estas tentativas tornaram, à partida, ainda mais inequívoco o
resultado da guerra; a sua forma era a da revolução, beneficiada pela
extraordinária fraqueza em que os esforços do combate tinham deixado
as velhas ordens. Pode-se tanto considerar estas revoluções como uma
prossecução da guerra, como interpretar a guerra como o começo visível
de uma grande revolução. É um e o mesmo processo que se realiza na
colisão entre os povos, e dentro dos povos, e é um e o mesmo resultado
que deixa atrás de si. A guerra gera revoluções, e as relações de força
alteradas pelas revoluções arrastam, por seu lado, acções guerreiras.
Se o resultado da confrontação dos Estados-Nação possui
também um carácter universalmente válido, faltam-lhe, contudo, as
características da duração. Que se trata aqui da recuperação de uma
ordem, da realização de um ideal que já se tornou autenticamente
caduco, resulta já de que falta a esta ordem a segurança estática, e
mesmo a segurança passageira do equilíbrio.
O estado da democracia nacional é alcançado por todo o lado —
no entanto, no caso singular, ele salienta-se logo como um estado de
passagem, o qual, como na Rússia, pode acabar em poucas semanas.
Mas também onde parece instalado de um modo mais duradouro, evoca
mudanças cujo sentido ameaçador se manifesta cada vez mais
claramente. Manifesta-se aqui que dentro da democracia nacional está
um puro carácter de movimento, ao qual falta a figura e, portanto, uma
274

ordem genuína, e surge também à luz do dia, no comportamento dos


Estados entre si, aquele elemento anarquista-individualista que é peculiar
a todas as formações do liberalismo. Há aqui uma completa falta de
grandezas sobrepostas, e a ficção de uma sociedade de Estados não é
suficiente para o refreamento dos Estados individuais que cada vez mais
intensamente se isolam, pois é disso que aqui se trata. No fundo, esta
sociedade de Estados é também apenas um orgão daquelas potências
que estão satisfeitas pelas formas da democracia nacional, que já estão
por elas saciadas.
Levaria demasiado longe descrever a massa nos materiais de
conflito que surgiram pela calada através da universalização da forma da
democracia nacional. Talvez nada elucide melhor a situação do que o
facto de mesmo as potências vencedoras procurarem reprimir as
consequências lógicas deste estado com princípios muito diferentes
daqueles aos quais se deve agradecer a sua vitória — ou seja, de elas
serem forçadas a abandonar o campo autêntico da sua força histórica.
Assim, não apenas se deu a possibilidade à Alemanha, através
da universalização do princípio nacional, de uma influência crescente
naquelas numerosas minorias germânicas que são ainda hoje mantidas
pelos ganchos de estruturas estatais envelhecidas, mas também a
inclusão da Alemanha-Áustria no Estado Alemão, completamente legal
no sentido do direito de autodeterminação dos povos. Em particular para
a França, sobressai que a repartição da velha Monarquia Austríaca,
consequente no sentido dos princípios fundamentais da Paz de
Versailles, foi um erro fatal, e que deu aso à mobilização de forças muito
pouco desejadas. Correlativamente, observámos um esforço de
reprodução de um Estado artificial no Danúbio, apoiado por potências
que correm contra as tendências do tempo e por todas as potências
reaccionárias, isto é, um esforço de separar uma parte da energia alemã.
Tal é uma passagem marcante do emprego de princípios universais para
a operação táctica, condicionada pelo caso singular.
275

Este erro fatal não está só — os sinais de que a saída do mundo


da guerra mundial não conseguia dar nenhum domínio real são de tipo
variado. O facto existencial da duração da resistência alemã forçou o
mundo a uma série de medidas ambíguas. Assim, a mais extrema
universalização dos princípios da democracia nacional, a concessão
prática dos direitos humanos universais a quem quer que participasse na
grande cruzada da humanidade contra a barbárie, tinha de conduzir
necessariamente a que fossem incluídas forças na fruição destes
princípios nas quais, à partida, quase não se tinha pensado. Os
movimentos, uma vez postos em marcha, não se limitavam ao objectivo
em que estavam colocados, mas desdobravam uma autonomia
crescente.
Pode-se aqui evocar novamente a Rússia, que, através da
transformação numa democracia nacional, devia ser mobilizada de um
modo mais abrangente, e ser recrutada para um trabalho de guerra mais
intenso, mas que se desembaraçou logo dos seus advogados para se
ocupar com outras tarefas menos desejadas. Aliás, terá de ser sempre
considerada como um dos desempenhos magistrais da diplomacia
burguesa ter conseguido incluir com sucesso no jogo dos seus
interesses, totalmente diferentes, este império à disposição do qual, para
um desdobramento frutuoso e sem obstáculos, estava, no Extremo
Oriente, um verdadeiro continente.
Do mesmo modo, a universalização dos princípios da democracia
nacional tornou familiarizados os povos de cor com meios de
emancipação novos e eficazes. Os empréstimos de guerra, em sangue e
força de trabalho, que se contraiu nestes povos, são hoje apresentados,
e isso sob a reivindicação dos mesmos princípios aos quais então se
remeteu.
É uma grande diferença se se depara com príncipes, castas
guerreiras, povos da montanha e bandos de ladrões em rebelião, ou com
advogados, membros do parlamento, jornalistas, premiados com o
276

Prémio Nobel, educados nas escolas superiores europeias, e com


populações nas quais foi desperto um sentido para o lugar comum
humanitário e para a justiça abstracta. Também dá muito menos que
pensar trocar projécteis nos vales das montanhas da Indochina ou nos
desertos egípcios, do que os modos de falar amáveis naqueles
congressos, à disposição dos quais está um eco mundial, através de
todos os meios da técnica moderna de informação.
Aquilo que hoje acontece com os povos de cor dá motivo aos
cuidados de que se libertou a Alemanha; e também isto é um serviço
com que, sem querer, se carregou o vencedor. O movimento dos povos
de cor assumiu formas muito mais desagradáveis do que as que uma
cadeia de rebeliões armadas conseguiu provocar. Os métodos da
“penetração pacífica” voltam-se, numa direcção contrária, como no-
violence. As reivindicações dos que são dominados apoiam-se em
princípios reconhecidos e concedidos; não são reivindicações de
canibais ou de homens que queimam as viúvas, mas exigências, tais
como as que são completamente compreensíveis e correntes para o
homem da rua de qualquer grande cidade europeia. A reivindicação do
domínio vê-se, por isso, muito menos remetida para os barcos de guerra
e para os canhões do que para o caminho negocial. Mas isto significa a
perda do domínio num tempo previsível.
Neste contexto, pode-se também tocar aquelas novas formações
que só surgiram autenticamente através do princípio abstracto do direito
de autodeterminação dos povos, e às quais é peculiar uma correlativa
autoconsciência que lembra frequentemente um certo carácter de
menoridade. De modo semelhante a como seria pensável que, se se
redescobrisse o princípio da legitimidade, cada imediato imperial
mantivesse atribuído o seu território, também aqui se transformariam em
portadores do Estado populações das quais até agora, no máximo, se
possui conhecimento através de livros escolares de etnografia, mas não
através da história dos Estados. A consequência natural é o avanço de
277

correntes puramente elementares no espaço histórico. Esta balcanização


de mais áreas, com base nos chamados tratados de paz, não apenas
multiplicou significativamente o número dos pontos tempestuosos
relativamente ao estado de 1914, mas trouxe-os também a uma
proximidade ameaçadora. Ela produziu os métodos de um estilo rebelde,
nos quais se mostra que aqui, de modo semelhante à América do Sul, se
tornaram livres menos grandezas históricas do que grandezas de história
natural.
Esta imagem é completada pelo avanço de uma espécie humana
pequeno-burguesa, também naquelas posições do Estado em que era
determinante, ainda há pouco tempo, uma substância conservadora e,
assim, uma certa supremacia sobre as correntes do tempo. Nesta
espécie, espelha-se a rápida e frequentemente explosiva mutabilidade do
sentimento das massas no temperamento individual. Estão nela muito
claramente cunhadas as marcas do seu percurso, da sua educação, que
está menos nos sinais das instituições estatais do que das instituições
sociais, e assim do partido, da imprensa liberal, do parlamento. Desta
proveniência resulta, sobretudo, uma fatal transposição dos métodos da
política interna para a política externa, para aquela tendência para se
orientar segundo as mundividências e disposições, em vez de segundo
fundamentos da razão de Estado. Falta aqui imoralismo, uma
diferenciação clara do fim e dos meios — assim, nada se põe contra a
operar-se, na Alemanha, uma política para o Ocidente ou para o Oriente,
mas põe-se contra o fazê-lo sem a mistura com umas simpatias ou
antipatias quaisquer. Os pontos cardeais pertencem às grandezas
funcionais, mas não às grandezas principiais da política; e é uma
característica da liberdade que se possa considerar a bússola com
descontracção.
A falta de distância que é peculiar a esta espécie humana
provocará ainda algumas surpresas. Atrás da rotina das suas ordens de
negócios, esconde-se tanto uma confiança desagradável como a
278

possibilidade de decisões raivosas. Ela foi conhecida quando as massas


estavam cansadas e muito precisadas de repouso, e serão espantosas
as alterações que se passarão com ela quando as mesmas massas
estiverem famintas e sedentas de ataque. A medida em que hoje se
remete para o entendimento brota de uma consciência obscura da
confusão de linguagem, da anarquia que termina uma era individualista.
A necessidade de fazer repetir as assinaturas em cada ocasião, e depois
de cada oscilação da política interna, é um sinal de que a política
burguesa está no fim. É um sinal de que não se fez tratados de paz, mas
tratados de armistício, e de que a saída da guerra mundial não deixa
atrás de si uma ordem mundial digna de fé e incontestável. Manifesta-se
aqui que a decisão não teve um carácter estratégico, mas um carácter
táctico, e táctico foi também o modo em que se avaliou a decisão.
É neste estado que nos encontramos, e a ele corresponde a
linguagem que, no comércio entre as democracias nacionais, se tornou
habitual — uma linguagem cujas regras de jogo se tem de conhecer, se
bem que, no fundo, já ninguém acredita nelas. Ela deve ser estudada
naquela mistura de rotina, cepticismo e cinismo que determina o tom das
conferências sobre reparações e desarmamento.
Esta é a atmosfera do pântano que só pode ser limpa através de
explosões.

70.

A viragem perigosa e incalculável para fora que pertence às


características do nacionalismo democrático é aumentada no seu efeito
pelo trabalho de nivelamento na sociedade, tal como é realizado pelo
outro grande princípio em que o liberalismo desemboca, ou seja, pelo
socialismo.
279

O socialismo gostava de referir-se, pelo menos até há pouco, ao


seu carácter internacional; no entanto, este carácter fica pela teoria, tal
como mostrou o comportamento muito unitário e completamente não
dogmático das massas no irromper da guerra mundial. O curso posterior
dos acontecimentos ensina que este comportamento não pode ser visto
como um caso de excepção; pelo contrário, repetir-se-á sempre que a
opinião pública seja exposta a um estado correspondente. É também
esclarecedor, sem mais, que haja potências que podem reivindicar muito
mais um carácter internacional de que aquelas massas a quem o
socialismo foi indicado, tais como as dinastias, a alta nobreza, o clero ou
também o capital.
Os nossos avós fizeram muito em proveito próprio através de as
guerras de gabinete se terem tornado impossíveis. Eles não possuíam
ainda nenhum olhar para o outro lado que é peculiar a tais progressos.
Sem dúvida que as guerras de gabinete se assinalavam relativamente às
guerras populares através de uma esfera de maior responsabilidade e de
menor ódio. A uniformidade na estrutura das massas faz a uniformidade
dos interesses, a qual não diminui, mas multiplica as possibilidades de
conflito. A guerra encontra um alimento maior quando a decisão popular
pertence aos seus pressupostos. Neste sentido, o socialismo executa um
trabalho de mobilização que nenhuma ditadura poderia sequer ousar
sonhar, e que é particularmente actuante por se realizar com base no
acordo universal, com base no accionamento ininterrupto do conceito
burguês de liberdade. A medida em que as massas se entregam e se
preparam para serem manobradas tem de permanecer incompreensível
para quem quer que não adivinhe atrás do automatismo nivelador dos
princípios universais uma legalidade de outro tipo.
Considerada sob o ponto de vista da pura manejabilidade, seria
pensável a seguinte utopia social:
O singular é um átomo que recebe a sua orientação através de
influências imediatas. Já não há mais nenhumas articulações
280

substanciais que o reivindiquem. O que resta destes vínculos está


limitado a um carácter de associação, de disposição ou de contrato. A
diferença dos partidos é imaginária. Tanto o material humano como os
meios de todos os partidos são, segundo a sua essência, homogéneos; e
é num e no mesmo resultado que tem de vir a dar qualquer confrontação
entre partidos. A sua aparente diferença serve para possibilitar ao
singular uma troca das perspectivas e o sentimento de um acordo. O
acordo é bem sucedido pela pura participação, ou seja, ao tomar parte
nas votações, independentemente de qual o partido que o resultado
favorecer. As alternativas não são aqui nenhumas decisões; elas
pertencem antes ao modo de trabalho do sistema.
A propriedade e a força de trabalho ficam sob protecção; daí que
estejam limitadas nos seus movimentos. Às moratórias, subsídios,
prorrogações, medidas de apoio e de assistência social, de um lado,
correspondem, do outro, a inspecção da posse mobiliária e imobiliária, a
limitação da livre circulação de homens e bens, a fiscalização do
emprego e da rescisão.
A empresa da formação está esquematizada. As escolas e as
escolas superiores deixam uma substância formada de um modo muito
unitário. A imprensa, os grandes meios de lazer e de informação, o
desporto e a técnica continuam esta formação. Há meios através dos
quais é transmitido a milhões de olhos, a milhões de ouvidos, numa e
mesma hora, um e o mesmo acontecimento. Também aqui se pode
ousar criticar a educação, na medida em que consegue gerar uma
diferença de opiniões, mas não das substâncias. Tudo aquilo que é
opinião é inofensivo; e num tempo em que qualquer um gosta de se
assinalar como revolucionário, a liberdade está mais limitada do que
nunca para as mudanças reais. Cada movimento revolucionário torna
mais inequívoco o rosto do tempo, e, no fundo, é bastante insignificante
qual dos parceiros está precisamente a operar. Neste estado, é
completamente irrepresentável uma medida de independência tal como a
281

que se expressa nas grandes queimas de livros dos déspotas asiáticos.


Nenhum dos nossos revolucionários modernos suprime a técnica ou a
ciência, nem sequer o cinema ou a mais pequena hélice — e isso tem a
sua boa razão.
Todas as ordens decisivas de mobilização não têm sucesso de
cima para baixo, mas aparecem, de um modo muito mais eficaz, como
um objectivo revolucionário. As mulheres combatem pela sua
participação no processo de produção. A juventude exige o serviço de
trabalho e a disciplina militar. A formação das armas e a organização
militar pertencem às características de um novo estilo de conjurado de
que mesmo os pacifistas participam. O desporto, o caminhar, o exercitar,
a formação no estilo das escolas superiores populares são ramos da
disciplina revolucionária. A posse de uma máquina, de uma motorizada,
de uma câmara fotográfica, de um planador preenche os sonhos de uma
geração que está a crescer. O tempo livre e o tempo do trabalho são
duas modificações nas quais se é reivindicado por uma e a mesma
empresa técnica. O estranho resultado das revoluções modernas
consiste em o números das fábricas se multiplicar, e em remeter-se para
trabalhar-se mais, melhor e mais barato. Dos teóricos e literatos
socialistas desenvolveu-se uma espécie particular, e aliás não menos
aborrecida, de funcionários, estatísticos e engenheiros do Estado, e um
socialista de 1900 notaria, para seu espanto, que a argumentação
decisiva já não opera com as cifras dos salários, mas com as cifras da
produção. Há terras em que se pode ser morto por sabotagem da obra,
como um soldado que abandona o seu posto, e em que se raciona os
meios de subsistência desde há quinze anos, como numa cidade sitiada
— e são terras em que o socialismo já foi realizado o mais
inequivocamente possível.
Diante de tais verificações, cujo número se poderia aumentar à
vontade, pode-se só observar que se trata aqui de coisas que teriam tido
282

um carácter utópico ainda em 1914, mas que são hoje correntes para
qualquer contemporâneo.
Para qualquer olhar que tenha penetrado a confusão que surgiu
pelo desmoronamento das velhas ordens, tem de ser claro que nesta
situação todos os pressupostos do domínio estão dados. Os princípios
niveladores do século XIX lavraram o campo que espera a sua semente.

71.

Só no estado de uma democracia realizada é que irrompe, na sua


completa intensidade, a tendência dissolutora dos princípios motores. Só
aqui se torna claro quanto o mundo burguês vivia de sentimentos
reflexos e quanto estava remetido para a gesta da defesa. Os princípios
deste mundo mudam o seu sentido quando lhes é tirado o opositor. A
dissolução alcançou os seus limites quando já não vê diante de si os
restos da autoridade, mas por todo o lado a sua própria imagem
espelhada.
O princípio no qual o nacionalismo pôde experimentar a sua
completa supremacia foi o princípio da legitimidade. Tal é uma
supremacia como a que se expressa pela primeira vez no poder das
massas populares diante dos suíços que defendiam a Bastilha ou
Tuileries108, e que se repete em todos os campos de batalha da Europa.
Ainda na guerra mundial, estavam condenadas a um grau de mobilização
insuficiente todas as potências em que se pode provar uma relação,
mesmo afastada, ao legitimismo.
Este tipo de supremacia tem necessariamente de se superar no
mesmo instante em que a democracia nacional aparece como a única
forma, e a forma universal de organização dos povos. Este facto torna-se
mais claro na mesma medida em que os esforços se tornam mais

108
N. do T.: O Palácio de Tuileries é o palácio parisiense habitado por Luís XVI e Maria
Antonieta, depois de forçados a deixarem Versailles. O palácio foi tomado pela populaça de
Paris, em 1792.
283

frutíferos e em que a força dos povos se esgota. Dão-se até agora


represálias desconhecidas às quais o vencido é submetido. Os efeitos
destruidores com que o nacionalismo, na hora do seu nascimento, se
dirigiu contra as velhas ordens, dirigem-se doravante contra a nação, e
mesmo contra o total alcance da sua existência, de um modo que faz
qualquer singular responsável pela sua pertença nacional.
De um modo muito semelhante, o princípio do socialismo, que
brilha em matizes muito variados, dirige-se contra uma sociedade
articulada de um modo determinado, seja esta articulação de uma
natureza de estados ou de classes. O chamado Estado de classes está
para a articulação de estados numa relação semelhante a como a
monarquia constitucional está para a monarquia absoluta. Por todo o
lado onde o socialismo ainda possui este opositor, cabe-lhe a vantagem
revolucionária de que se serve no emprego dos meios de defesa já
experimentados. Ele está tão mais vivo quanto menos o opositor tende a
fazer concessões. Assim, é de assinalar que os poucos dons de homens
de Estado que a social democracia alemã produziu surgiram
precisamente na Prússia, a terra do direito eleitoral por classes. Também
onde a confrontação assumiu uma coloração puramente económica é
que poderia ser claro o princípio de que o socialismo prospera sobretudo
na proximidade de um capitalismo poderoso. Trata-se aqui de dois ramos
de um e do mesmo lenho.
A imagem altera-se também aqui significativamente quando o
opositor desapareceu da sua superfície. Numa sociedade completamente
atomizada, que ainda apenas se submete ao princípio de que a massa é
igual à soma dos indivíduos que a compõem, o socialismo entra
necessariamente também nas posições desocupadas pelo opositor, e
assim cabe-lhe, em vez do papel de defensor dos que sofrem, o papel
ingrato de seu protector.
Entretanto, vivenciou-se o estranho espectáculo de os
representantes do socialismo, reconduzidos a lugares no Estado, terem
284

procurado continuar a repisar o lugar comum social para ligar as


vantagens de funcionário do Estado com as de funcionário do partido. No
entanto, tal significa tentar o impossível — é uma vantagem estar no
poder, e é uma outra vantagem estar submetido. Há uma posição onde
se pode dizer aquilo que devia ser, e há uma outra em que até se pode
ordenar isso. Foi preciso o estado de uma democracia realizada para
reconhecer que esta segunda posição é a menos agradável.
De modo semelhante a como o nacionalismo vencedor se vê logo
cercado de um círculo de democratas nacionais, que o encontram com a
sua metódica própria, o socialismo vencedor encontra-se dentro de uma
sociedade em que cada reivindicação é feita sob formulações sociais.
Deste modo, gasta-se em pouco tempo o efeito e a vantagem
revolucionária dos argumentos sociais.
As massas tornam-se apáticas, desconfiadas ou entram num tipo
desagradável de movimento que se furta às constituições democráticas.
Tem lugar um apressado intercâmbio de homens entre os partidos,
particularmente entre os partidos abrangentes. Em terras como na
Alemanha, em que permaneciam vínculos muito ramificados, e em parte
ainda enraizados, e em que se possui um instinto mais seguro para o
comando e para a obediência, em que, além disso, estava presente um
bem-estar generalizado no que toca às relações, são mobilizadas forças,
através da atomização da sociedade, cuja entrada no espaço político não
se podia prever.
Entram em movimento camadas que são muito difíceis de
determinar, tanto segundo a sua proveniência como segundo a sua
composição. Esta é uma mistura humana inteligente, exasperada,
explosiva, que se serve, de um modo que lhe é próprio, de uma liberdade
de reunião, de expressão e de imprensa sem obstáculos. As diferenças
entre reacção e revolução fundem-se aqui de um modo estranho;
emergem teorias em que se identifica os conceitos “conservador” e
“revolucionário” de um modo desesperado. As penitenciárias enchem-se
285

com uma nova espécie humana, com os oficiais de então, com os


proprietários fundiários espoliados, com académicos sem emprego.
Também aqui reina a metódica do argumento social que ainda se sabe
intensificar mais através de um condimento cínico que o rancor fornece.
Chega-se a uma linguagem que opera com palavras como “vontade
popular”, “liberdade”, “constituição”, “legalidade” como com punhais
envenenados.
O esbater-se das fronteiras que foram traçadas entre ordem e
anarquia expressa-se, além disso, em também as uniões das
organizações existentes, ou formadas de novo, lucrarem com a
dissolução dos vínculos reais, na medida em que se vêem na posse de
uma autonomia crescente. As organizações não pertencem aos vínculos
de tipo substancial; pelo contrário, como experimentámos, no contexto do
desmoronamento dos vínculos, as organizações nascem como
cogumelos depois da chuva. O dom da organização é uma característica
da movimentação espiritual que divide a realidade por opiniões,
disposições, mundividências, fins e interesses. Mas onde, tal como no
Estado genuíno, as potências reais e mais que espirituais aparecem
cunhadas e instituídas, encontramos a ordem num plano diferente da
construção orgânica.
Pelo contrário, as organizações que se tornaram autónomas
indicam o esforço de ver o Estado como ordenado do mesmo modo, isto
é, como uma associação organizada para um fim. Correlativamente,
emergem não apenas associações económicas, sindicatos, partidos e
outras grandezas como parceiros negociais iguais, mas dá-se também a
possibilidade de relações imediatas ao estrangeiro que sejam
incontroláveis pelo Estado.
Tal não é menos um sinal da autoridade repartida e atomizada do
que o facto de que também aos próprios orgãos do Estado, como os
supremos tribunais, a polícia, o exército, é peculiar uma crescente
legalidade própria. Surgem estados em que, por um lado, se torna
286

objecto de debates subtis sobre direito público o juramento solene


originário da credibilidade humana, como o juramento de bandeira,
enquanto, por outro lado, decorre aquela que é talvez a mais profunda
tragédia do nosso tempo, que consiste em o resto da velha hierarquia de
soldados e funcionários procurar manter de pé o conceito de dever
tradicional, no quadro de um Estado tornado imaginário e cheio de
compromissos.
Finalmente, também os direitos de soberania mais explícitos são
privatizados. Junto da polícia, emergem milícias de moradores e
organizações de autoprotecção. Enquanto, do lado do espírito
cosmopolita, se procura canonizar a traição à pátria, o lado sangrento da
vida gera uma justiça secreta, que trabalha com boicotes, atentados e
tribunais clandestinos. As insígnias da soberania do Estado são
substituídas por insígnias de partidos; os dias das eleições, das votações
e das aberturas do parlamento assemelham-se ao ensaio de
mobilizações para a guerra civil. Os partidos separam exércitos imóveis,
entre os quais domina o estado de uma guerra latente nos postos
avançados; e, correlativamente, a polícia assume um tipo de armamento
e de táctica que se pode conceber como característica de um
permanente estado de sítio. Nos cabeçalhos dos jornais entra uma
propaganda sangrenta sem obstáculos, da qual não há exemplo na
história alemã em geral. No entanto, neste contexto, o que é mais
significativo é o facto de que, contrapondo-se também à intervenção na
política externa, a defesa privada aparece na mesma medida em que o
Estado se mostra incapaz de resistência — uma defesa que aparece tão
mais desesperada quanto o próprio Estado não apenas a não legaliza,
mas também a declara como fora da lei. Tal como, durante a Fronda109,
se combatia pelo rei contra o rei, também aqui se sacrificavam, apesar
do Estado, pelo Estado os corpos de fronteira, as associações de
voluntários e os sabotadores solitários. Mostra-se precisamente aqui que
287

a Alemanha ainda dispõe de uma espécie humana com a qual se pode


contar e que está à altura da anarquia. A admirável ressurreição dos
velhos mercenários naqueles bandos que, depois de quatro anos, ainda
levavam a guerra voluntariamente para Oriente; a defesa da Silésia, o
massacre medieval dos separatistas com mocas e machados, o protesto
contra as sanções através de explosivos, sangue e outros actos em que
se manifesta a infalibilidade e a precisão do mais secreto instinto, são
sinais que são deixados como pedras de toque a uma historiografia
futura.
Finalmente, a repartição da autoridade tem também de conduzir a
que as forças elementares, e completamente irresponsáveis num sentido
histórico, se sirvam dos meios de organização que sejam peculiares ao
século. Neste contexto, vivenciou-se coisas que já não se tinha como
possíveis na velha Europa iluminada — incêndios de igrejas e claustros,
pogromes110 e combates raciais, assassínio de reféns, bandos de ladrões
nas áreas industriais povoadas, guerras de partisans, lutas de
contrabandistas na terra e no mar. Só se valoriza correctamente estes
fenómenos quando se vê a estreita relação que há entre eles e a
realização do conceito burguês de liberdade. Estes acontecimentos
apresentam o modo em que a utopia da segurança burguesa se conduz
ad absurdum.
Um exemplo visível deste contexto oferecem os espantosos
resultados que se podem observar sobretudo na América, na sequência
das medidas de proibição111 . A tentativa de banir da vida a embriaguês
apresenta uma medida de segurança à partida completamente clara, tal
como já antes é exigida na literatura sobre a sociedade utópica. Contudo,
logo se evidencia que mesmo uma separação do reino elementar inferior

109
N. do T.: A Fronda consistiu numa série de revoltas ocorridas em França durante a
menoridade do Rei Luís XIV.
110
N. do T.: Os pogromes tiveram a sua origem na Rússia czarista e designam a organização
de massacres em massa, particularmente dirigidos contra os judeus.
111
N. do T.: Jünger refere-se às medidas de proibição do consumo de álcool, em vigor nos
Estados Unidos da América entre 1920 e 1933.
288

contradiz as tarefas do Estado. São forças que têm de ser domadas, mas
cuja existência não pode ser negada. Se isso mesmo assim acontece, o
resultado é uma segurança ilusória, um espaço de direito teórico para
cujas malhas o atoleiro empurra as suas formações de organização.
Qualquer tentativa de limitar a esfera do Estado a uma esfera moral tem
de fracassar, pois o Estado não pertence às grandezas morais. As
posições que dentro do mundo elementar o Estado desocupa são
ocupadas imediatamente por forças diferentes. É assim que foram
conhecidos casos de canibalismo na Alemanha, precisamente no espaço
de tempo em que o ataque moral contra a pena de morte estava no seu
ponto mais alto. O executivo é constante no seu alcance; o que varia são
apenas as potências que o reivindicam.
Dentro dos estados do socialismo tardio, também não se trata de
estados autenticamente estatais; trata-se antes da desagregação do
Estado pela sociedade burguesa, que se determina pelas categorias do
racional e do moral. Como não se trata aqui de leis originárias, mas de
leis do espírito abstracto, cada domínio que se procure apoiar nestas
categorias mostra-se como um domínio aparente, em cujo âmbito se
manifesta logo o carácter utópico da segurança burguesa.
Isto ninguém experimenta melhor que aquelas camadas que
requerem protecção. Assim, a participação na desagregação das velhas
ordens pertenceu aos erros fatais do judaísmo liberal.

72.

O estado de grande perigo que está incluído numa movimentação


ilimitada, e que se torna mais ameaçador na mesma medida em que a
segurança burguesa se mostra como utópica, exige imperiosamente
outras medidas do que as que se podem retirar da substância da
democracia liberal.
289

É claro que aqui se torna visível, à partida, a saída da


restauração, e assim não faltam esforços para a reposição do Estado
constituído por estados ou da monarquia constitucional. No entanto, tem
de se saber que há vínculos que são demasiado vulneráveis para que,
uma vez dilacerados, possam ser repostos. O estado de atomização é
incontestável — isto é um mau solo para realizar lembranças dele numa
estrutura histórica madura. São exigidas acções de uma brutalidade tal
que só se podem executar “em nome do povo”, mas nunca em nome do
rei. A dominação das relações só pode acontecer através de forças que
penetraram na zona de destruição, e às quais coube nela uma
legitimação diferente.
Forças deste tipo mostram-se em aplicarem os princípios que
encontram num novo e inesperado sentido — em saberem utiliza-los
como grandezas de trabalho. Na sua emergência inesperada torna-se
perceptível o erro de cálculo que está escondido na construção da
sociedade burguesa — um erro de cálculo que equivale a o povo se
poder decidir também uma vez contra a democracia.
Uma tal decisão — favorecida pelo não funcionamento dos
instrumentos do domínio aparente burguês — significa a formulação
democrática de um acto antidemocrático, significa a autodissolução das
representações aproximadas sobre a legalidade. Quer se reconheça este
acto, quer não, na medida em que se procura governar contra a maioria
no sentido da tradição democrática: chega-se a um e ao mesmo
resultado, no que toca ao que está em causa. Este resultado manifesta-
se como a rendição da democracia liberal ou democracia da sociedade
pela democracia do trabalho ou democracia do Estado.
No facto desta passagem dissolve-se aquela discrepância que,
como vimos, consiste em, por um lado, o tempo impelir para o domínio
em todos os seus pormenores, enquanto, por outro lado, se possa falar
menos do que antes de um domínio real. Esta rendição, que se realiza
aqui com grande brutalidade, ali numa série de passos quase
290

imperceptíveis, é já mais significativa do que uma restauração, porque


hoje qualquer restauração pensa ligar-se a uma tradição da sociedade,
enquanto aqui é retomada a genuína tradição do Estado.
Sob este ponto de vista, a democracia de trabalho é mais
estreitamente aparentada ao Estado absoluto que à democracia liberal
da qual parece brotar. Contudo, é diferente do Estado absoluto na
medida em que as suas forças, que estão à disposição, só são
mobilizadas e abertas através do efeito de princípios universais.
O Estado absoluto cresceu no meio de um mundo de formas
muito desenvolvido, e a substância deste mundo continuava a viver nele
na forma dos privilégios. A democracia de trabalho depara-se com as
ordens destroçadas da massa e do indivíduo, e não encontra nenhuns
vínculos genuínos, mas uma plenitude de organizações. Há uma grande
diferença entre as forças variadas que confluem no dia da coroação para
realizar o juramento de fidelidade, e os trabalhadores colaboradores que
um Chefe de Estado moderno vê diante de si na manhã após o plebiscito
decisivo ou o golpe de Estado. Trata-se ali de um mundo estável dentro
dos seus limites e ordens; aqui, de um mundo dinâmico, em que a
autoridade se tem de confirmar com meios elementares. Mas também
aqui se trata de uma legalidade histórica, e não de uma rendição fugaz
de poderes dentro de um espaço elementar puro, tal como se realiza nas
repúblicas sul-americanas.
A sempre maior liberdade de poder dispor das coisas, o crescente
entrecruzamento do legislativo e executivo, não deixa nenhum espaço
aberto dentro do qual sejam possíveis fórmulas como car tel est notre
plaisir. Ela é antes limitada por uma tarefa muito determinada: a da
construção orgânica do Estado. Esta construção não é uma construção
qualquer; ela não consegue nem realizar uma utopia, nem uma pessoa,
ou um círculo de pessoas, consegue equipá-la com conteúdos que não
lhe sejam adequados. É determinada pela metafísica do mundo do
trabalho, e é decisivo em que medida a figura do trabalhador se expressa
291

nas forças responsáveis, isto é, em que medida estão em relação ao


carácter total do trabalho. Assim, vivencia-se o espectáculo de ditaduras
que os povos se impõem a si mesmos, para que o necessário possa ser
ordenado — de ditaduras em cujo aparecimento é coado um estilo de
trabalho mais rigoroso e mais sóbrio. Nestes fenómenos incorpora-se o
ataque do tipo contra as valorizações da massa e do indivíduo — um
ataque que se mostra logo dirigido contra os orgãos entrados em declínio
do conceito de liberdade burguês, contra os partidos, os parlamentos, a
imprensa liberal e a economia livre.
Na passagem da democracia liberal para a democracia de
trabalho realiza-se a ruptura do trabalho como modo de vida para estilo
de vida. Por mais variado que seja o modo em que possam ser coloridos
os matizes em que esta passagem se joga — é um e o mesmo sentido, o
começo do domínio do trabalhador, que se esconde atrás deles.
Objectivamente, não há qualquer diferença em o tipo manifestar-
se de repente no aparecimento de um guia partidário112, de um ministro,
de um general, ou em um partido, uma associação de combatentes, uma
comunidade nacional ou social, um exército, um corpo de funcionários
começar a constituir-se sob a legalidade diferente da construção
orgânica. Também não há nenhuma diferença se a “conquista do poder”
se realizar nas barricadas ou na forma de uma austera assunção da
ordem dos negócios. Finalmente, é indiferente se a aclamação da massa
acontece neste processo sob a representação de uma vitória de
mundividências colectivistas, ou se a aclamação do indivíduo vê nela o
triunfo da personalidade, do “homem forte”.
É antes um sintoma da necessidade deste processo que ele se
realize debaixo do próprio acordo daqueles que sofrem.

73.

112
N. do T.: A expressão aqui traduzida por guia partidário é Parteiführer.
292

Poder-se-ia estar inclinado a ter a democracia de trabalho como


um estado de excepção — como uma daquelas decisivas medidas
ordenadoras para as quais estava prevista, na Roma republicana, a
instituição particular e delimitada da ditadura.
Trata-se aqui, de facto, de um estado de excepção; no entanto,
de modo nenhum de um estado de excepção tal que, de qualquer modo,
possa novamente desembocar no liberalismo. A rendição da democracia
liberal é definitiva; cada passo que se dê para lá das formas nas quais
acontece esta rendição só se pode procurar numa intensificação do
carácter de trabalho. São tão incisivas as mudanças que, no campo de
forças da democracia de trabalho, se processam nos homens e nas
coisas, que tem de aparecer como impossível uma reconquista da linha
de saída.
O processo de destruição aludido merece em si muito menos
atenção do que o centro a partir do qual a destruição acontece. Vimos
que tanto os sistemas dinâmicos do pensar, como também os venerados
efeitos da técnica, devem ser concebidos como armas, das quais a figura
do trabalhador se serve para o nivelamento, sem que ela mesma esteja
submetida a este nivelamento. Esta relação espelha-se também na
composição da humanidade que se encontra na zona de destruição.
Salienta-se que estados como os da guerra, do desemprego, do
automatismo inicial, através dos quais é estampada na existência do
indivíduo que surge isoladamente ou en masse o selo da ausência de
sentido, se oferecem ao mesmo tempo ao tipo como fontes de força de
uma acção crescente.
É de notar aqui que o estado de desemprego não está dado de
todo em relação ao tipo, na medida em que o trabalho para ele não
pertence ao carácter empírico, mas ao carácter inteligível. No instante
em que o tipo se retira do processo de produção surge o carácter total do
trabalho, no seu aparecimento numa forma especial modificada, como na
293

do armamento. Daí que um grupo de desempregados onde o tipo se


representa, e tal como se pode observar num acampamento no bosque,
no desporto ou num agrupamento político, se diferencie completamente
da imagem tal como se expressa nas massas em greve de estilo antigo.
Surge aqui um carácter militante; e o estado de desemprego, visto
correctamente, deve ser valorizado como a formação de um exército de
reserva. Esconde-se aqui uma outra forma de riqueza, de cuja abertura o
pensar burguês é, no entanto, incapaz. Milhões de homens sem
ocupação — este puro facto é poder, é um capital elementar, e também
se reconhece o trabalhador em só ele possuir a chave para este capital.
Não é a irremediável queda das ordens da massa que em si é
aqui digna de atenção. Também não é este facto que cria novas ordens;
no máximo, dá ocasião para a entrada destas ordens.
O passo decisivo na viragem para a democracia de trabalho está
antes em já aqui o tipo activo realizar a viragem para o Estado.
Deparamos aqui com a entrada de partidos, movimentos e instituições na
construção orgânica — numa nova forma de unidade que assinalámos
também como ordem e cuja característica consiste em possuir uma
relação de culto à figura do trabalhador.
Um movimento de participantes na guerra, um partido social-
revolucionário, um exército transforma-se, deste modo, numa nova
aristocracia que se coloca na posse dos meios decisivos espirituais e
técnicos. A diferença que existe entre tais grandezas e um partido de
velho estilo é evidente. Aqui, trata-se de cultivo e de selecção, enquanto
o esforço do partido está orientado para a formação das massas.
De assinalar para a diferença da construção orgânica é o facto,
que por todo o lado retorna, de num instante determinado “se fecharem
as listas” e de se repetirem medidas de limpeza, das quais um partido,
segundo puramente a sua essência, não é de todo capaz. Tal conduz a
uma genuinidade e homogeneidade da substância, da qual, na situação
294

histórica em que nos encontramos, só o tipo é capaz, e isso porque só


ele dispõe de vínculos que são adequados a esta situação.

74.

A pura presença de tais vínculos, através dos quais é garantido o


funcionamento da democracia de trabalho, apresenta um facto que
também não pode permanecer sem uma influência formadora na
substância humana no seu conjunto, e isto tanto mais quanto o efeito
decisivo já não se realizar através da formação da opinião ou da maioria,
mas através da acção.
Também aqui se pode observar que a era do liberalismo criou os
pressupostos para tais acções. O tipo assinala-se através de conseguir
avaliar estes pressupostos no sentido de uma pura tecnicidade. No
entanto, temos aqui de nos recordar novamente da verificação que
encontrámos na consideração da técnica: da verificação de que só o tipo
está chamado a uma tal valorização, porque só ele possui uma
referência metafísica à técnica, uma referência de acordo com a figura.
Isso explica o facto, que hoje se pode observar frequentemente, de que
uma e a mesma medida fracassa para a inteligência burguesa, enquanto
não apresenta para o tipo a mais pequena dificuldade.
É então absolutamente necessário libertar-se de preconceitos
maquiavélicos, quando se encontra a verificação de que o tipo reconhece
a opinião pública como uma questão técnica. O procedimento que se
retira deste reconhecimento, no nosso espaço, não compete a uma
grandeza qualquer, compete apenas ao tipo, para o qual cada
instrumento tem de aparecer como instrumento de trabalho, isto é, como
utensílio de um sentimento de vida muito determinado. Daí que não seja
apenas uma mudança de modo, mas também de plano, quando através
dele a opinião pública é transformada de orgão do conceito burguês de
295

liberdade em pura grandeza de trabalho. É um aparecimento especial do


facto superior, a técnica ser o modo em que a figura do trabalhador
mobiliza o mundo. Também aqui se pode reconhecer a mudança do
procedimento destrutivo para o procedimento positivo, no instante em
que o domínio se torna visível.
Pode-se aqui mencionar a transformação dos parlamentos de
orgãos do conceito burguês de liberdade e de institutos de formação de
opinião em grandezas de trabalho, que, segundo o seu sentido, têm um
significado idêntico à transformação dos orgãos sociais em orgãos do
Estado. Pode-se mencionar a dominação da técnica do plebiscito, que se
realiza num espaço em que foi atribuído um carácter muito inequívoco
não apenas ao conceito de povo, mas também às alternativas que estão
em questão. Pode-se, além disso, mencionar a substituição da discussão
social pela argumentação técnica, que corresponde à substituição de
empregados sociais por funcionários do Estado.
A este contexto pertence também a drenagem daquele pântano
da livre opinião em que a imprensa liberal se transformou. Também aqui
se pode reconhecer que a tecnicidade é muito mais digna de atenção do
que o indivíduo que, dentro desta tecnicidade, produz a sua opinião.
Quanto mais nítida é a máquina que caça esta opinião através do seu
curso de trabalho, e quanto mais significativa é a precisão e a velocidade
com que um qualquer pasquim partidário chega aos seus leitores, do que
todas as diferenças partidárias em que se possa pensar! Isto é um poder,
um poder do qual o indivíduo burguês não sabe fazer nenhum uso e do
qual, por falta de legitimação, se serve como um perpetuum mobile da
livre opinião.
Começa-se finalmente a ver que aqui está a trabalhar uma
humanidade muito homogénea, e que o processo do combate de opinião
tem de ser reconhecido como um espectáculo em que o indivíduo
burguês representa papéis secundários. Todas esta gente é radical, isto
é, entediante, e o seu modo de alimentação comum consiste, sem
296

diferenciação, na cunhagem de factos às opiniões. O seu estilo comum


pode-se definir como um inocente júbilo sobre um qualquer ponto de
vista, uma qualquer perspectiva que só a ela seja peculiar — ou seja,
como o sentimento da vivência única na sua forma mais barata.
Aquilo que foi dito do teatro vale também para os jornais; torna-se
cada vez mais difícil manter separados os seus elementos, seja o texto e
os anúncios, seja a crítica e as notícias, seja a parte política e o folhetim.
Tudo é aqui, ao mesmo tempo, na mais elevada medida, individual, e
está destinado, na mais elevada medida, ao uso da massa.
A independência para a qual a imprensa apela é de uma e da
mesma natureza, onde quer que se possa deparar com este apelo.
Consiste na independência do indivíduo burguês diante do Estado. Falar
da imprensa enquanto novo grande poder pertence ao modo de falar do
século XIX; e, correlativamente, emergem aqueles grandes assuntos em
que o jornalista sabe empurrar com sucesso o Estado para diante dos
limites da razão e da virtude, ou seja, neste caso, da verdade e da
justiça. Também aqui encontramos o ataque enviado pela defesa, e o
Estado aparente liberal submete-se a este ataque tão seguramente
quanto este se realiza diante do fórum dos seus princípios fundamentais.
A imagem não estaria completa se, ao mesmo tempo, não se visse a
relação que existe entre a livre opinião e o interesse. São conhecidas as
relações entre este tipo de independência e o suborno que, nas suas
consequências últimas, conduzem à subvenção espiritual e material pelo
estrangeiro.
O ataque contra a independência da imprensa é uma forma
especial do ataque contra o indivíduo burguês. Daí que não possa ser
conduzido por partidos, mas apenas por uma humanidade para a qual se
perdeu o gozo deste tipo de independência. Tem de ser claro, no
entanto, que a censura pertence aos meios insuficientes, que ela até
consegue provocar um refinamento e uma maldade crescente do estilo
individualista. No entanto, o tipo dispõe de meios mais abrangentes do
297

que aqueles com os quais o Estado absoluto procurou pôr-se em guarda,


quando o seu tempo chegou. Muito mais do que o facto de ele se
conseguir colocar em posse dos grandes meios de informação, reverte
em favor dele que o estilo da expressão individual da opinião começa a
tornar-se entediante e insípido. Se se abrir uma qualquer colecção dos
jornais de 1830, é espantosa a medida incomparavelmente mais elevada
de substância que está dentro da expressão diária; vive nestes artigos
ainda algo do artesanato antigo.
Elucidativa, neste contexto, é, por um lado, a decadência do
artigo de fundo e da crítica, e, por outro lado, o interesse crescente por
todas as colunas em que, como na parte do desporto, a diferença das
opiniões individuais desempenha um papel muito mais pequeno — do
mesmo modo, pela reportagem fotográfica. Este interesse vem já ao
encontro do emprego de meios tais como os que são particularmente
peculiares ao tipo.
Deve-se esperar o emprego de uma linguagem precisa,
inequívoca, de um estilo fáctico e matemático, tal como é adequado ao
século XX. O jornalista aparece neste espaço como um portador de um
carácter especial do trabalho, cujas tarefas o carácter total do trabalho, e,
assim, o Estado enquanto seu representante, determina e delimita. Os
símbolos dentro deste espaço inequívoco são de uma natureza objectiva,
e a opinião pública nele já não é a opinião de uma massa que se compõe
de indivíduos, mas o sentimento vital de um mundo muito fechado, muito
uniforme. Aquilo que aqui cativa é muito menos o ponto de vista do
observador do que o da própria coisa ou do próprio acontecimento, e
correlativamente exige-se do relatório que através dele seja mediado o
sentimento da presença temporal e espacial imediata.
A consciência moral jornalística relaciona-se aqui com um
máximo de exactidão descritiva; através de uma precisão do estilo em
que se expressa, mostrou-se que atrás da reivindicação de realizar um
trabalho espiritual se esconde mais do que um modo de falar. O
298

processo decisivo, como se disse, está também em o indivíduo burguês


ser rendido pelo tipo. Do mesmo modo que era completamente
indiferente se o indivíduo, no seu exemplar singular, se comportava de
um modo conservador ou revolucionário, está na pura emergência do
tipo uma confirmação do mundo do trabalho, independentemente de em
que âmbito se realize esta emergência.
Esta emergência coincide com um estado particular dos meios
técnicos que só a ele é adequado. Só para o tipo é que servir-se destes
meios possui o sentido de um acto de domínio. Tal como o jornalista se
transforma de indivíduo burguês em tipo, assim se transforma a imprensa
de orgão da livre opinião em orgão de um mundo de trabalho inequívoco
e rigoroso.
Tal mostra-se já no modo alterado em que hoje se lê jornais. O
jornal já não tem nenhum círculo de leitores no sentido antigo, e para a
mudança do seu público vale o mesmo que foi dito sobre o público do
teatro e do cinema. Também o ler já não pode ser colocado em uníssono
com o conceito de ócio; ele emerge antes com as características do
carácter especial do trabalho. Tal torna-se muito claro onde se tem
oportunidade de observar o leitor, ou seja, sobretudo nos meios de
transporte em cuja pura utilização já se realiza um acto de trabalho.
Verificar-se-á nesta observação uma atmosfera ao mesmo tempo
desperta e instintiva, à qual é adequada um serviço de informação da
mais elevada precisão e velocidade. Quer-se aqui sentir a impressão de
que o mundo se transforma, enquanto se lê, mas, ao mesmo tempo, esta
transformação é constante no sentido da monótona troca dos variados
sinais pelos quais se passa fugazmente. São notícias dentro de um
espaço em que o acontecer se assinala através de uma presença da
qual cada átomo é encontrado com a velocidade de uma corrente
eléctrica. É elucidativo que aqui todo o individual tenha de ser
experimentado, numa medida crescente, como sem sentido. Do mesmo
modo, deve-se assumir que se funde a multiplicidade dos orgãos, pelo
299

menos na medida em que assenta na diferença entre partidos ou entre


cidade e campo.
Também se deve, pelo menos, indicar ainda aqui que a
capacidade de absorção intelectual da espécie passiva que coloca a
autêntica camada dos leitores aproxima-se com grande velocidade de
uma constituição que nega sem esperança qualquer efeito da inteligência
liberal. Todos os questionamentos culturais, psicológicos e sociais
entediam esta espécie extraordinariamente, do mesmo modo que esta já
não percebe de todo o refinamento dos meios artísticos em geral. Quanto
mais penetrante e fidedignamente o entendimento desta espécie captar
mesmo os mais finos pormenores técnicos, entendimento que começa a
despontar muito unitariamente a partir de todas as camadas da velha
sociedade e que se nos depara cada dia mais frequentemente, tanto
mais indiferente ele é relativamente a qualquer modo de conversação
que torne a vida valiosa para o indivíduo. É uma modificação do
entendimento que corresponde à paisagem modificada, dentro da qual o
ideal de formação burguês ainda apenas consegue reclamar um
interminável aumento do sofrimento. Daí que, por vezes, poder-se-ia
sentir quase compaixão por aquelas inteligências para as quais a
produção da vivência única se torna cada vez mais nítida, se se pensar
que um tal desempenho, neste espaço, é percebido na melhor das
hipóteses como uma espécie de solo de saxofone sentimental.
Todas estas relações surgem já muito mais claramente em
relação aos meios de informação típicos que podem ser referidos
completamente como meios do século XX, ou seja, em relação à rádio e
ao filme. Nada há de mais divertido que as tentativas de certos fantoches
para submeter os meios destinados a tarefas tão inequívocas, concretas
e pura e simplesmente diferentes, aos padrões de um conceito liberal de
cultura — estes fenómenos que se têm por críticos de cultura não são
senão cosméticos da civilização. Já numa observação superficial é claro
que não se trata aqui de orgãos da livre opinião, no velho sentido. Tudo
300

aquilo que é aqui simples opinião mostra-se, pelo contrário, como


inessencial na mais elevada medida. Daí que estes meios sejam tão
inadequados para desempenhar um papel enquanto instrumentos
partidários, como são incapazes de atribuir ao indivíduo uma
ressonância. O medium em que o indivíduo consegue actuar é já
destruído pelo facto da voz artificial e da fixação através do raio de luz.
Aqui só consegue actuar o tipo, pois só ele possui uma relação à
metafísica destes meio. Se aqui é bem sucedida, numa medida
crescente, uma valorização da tecnicidade pura, menciona-se com isso,
no fundo, a medida em que já se alcançou a dominação de uma
linguagem diferente. O juízo sobre se um filme é “bom” ou “mau” não
sucede com base em pressupostos nem morais nem relativos à
mundividência ou à disposição. Em vez disso, só é aqui valorizado,
independentemente de se tratar de uma aventura de amor, de um caso
criminal ou de propaganda bolchevista, em que medida se alcançou a
mestria dos meios típicos. Contudo, esta mestria é legitimação
revolucionária — isto é, representação da figura do trabalhador através
daqueles meios com que esta figura mobiliza o mundo.
Trata-se aqui de orgãos que uma vontade diferente começa a
criar. Neste espaço, os átomos não estão armazenados naquela
anarquia latente que é o pressuposto da livre opinião e que, finalmente,
conduziu para estados em que o efeito desta opinião se supera a si
mesmo, porque a desconfiança geral se tornou maior que a capacidade
de absorção. Habituou-se-se a tomar cada notícia já sob o pressuposto
do desmentido que se lhe seguirá. Alcançámos uma inflação de livre
opinião, em que a opinião se desvaloriza mais rapidamente do que pode
ser impressa. A armazenagem dos átomos assume antes aquela
inequivocidade que governa no campo de forças electro-magnético. O
espaço é de uma unidade fechada, e há um instinto mais aguçado para
as coisas que se quer saber e para aquelas que não se quer saber.
301

Além disso, seria erróneo assumir que aqui se trata apenas de


uma intensificação da centralização, no sentido em que a pessoa
absoluta se soube tornar-se ponto intermédio. No espaço total não há um
ponto intermédio, uma residência, seja agora a do príncipe ou a da
opinião pública, neste sentido: tão pouco quanto nele é ainda de
importância a diferença entre cidade e campo. Em vez disso, cada ponto
possui aqui, ao mesmo tempo, o significado potencial de um ponto
intermédio. Tem qualquer coisa de angustiante e recorda a muda
incandescência dos sinais de luzes, quando, de repente, uma qualquer
parte deste espaço, seja uma província ameaçada, um grande processo,
um acontecimento desportivo, uma catástrofe natural ou a cabina de um
avião transoceânico, se torna no centro da percepção e, assim, também
do efeito, e quando se fecha em torno dele um denso anel de olhos e
ouvidos artificiais. O processo possui aqui algo muito objectivo, muito
necessário, e os seus movimentos assemelham-se aos que o
investigador constata através do telescópio ou através do microscópio.
Daí que não seja sem razão que passou um terror pelo mundo, quando
no ano de 1932 se experimentou que através do emissor manchuriano
estava instalado um serviço imediato no campo de batalha. Também na
observação do documentário semanal político, tal como pertence às
tarefas da reportagem cinematográfica, se torna claro como aqui se
começa a desenvolver um outro tipo de entendimento, um outro tipo de
leituras. Um lançamento de um barco, um acidente de minas, uma
corrida de veículos motorizados, uma conferência diplomática, uma festa
de crianças, o subir e descer dos impactos das granadas numa parte
deserta da Terra, a mudança de vozes de júbilo, de alegria, de ira, de
desespero — tudo isto é agarrado e espelhado por meio de uma precisão
inexorável, e apresenta um perfil que torna visível a totalidade das
relações humanas num plano modificado.
É inquestionável que aqui a opinião pública tem de aparecer
como uma grandeza inteiramente modificada. São precisamente as
302

áreas decisivas que são sancionadas pela opinião pública numa medida
que já não as torna visíveis para a livre opinião enquanto objectos. As
mudanças que ocorrem na paisagem criam a ilusão de que à disposição
da vista está apenas uma janela, apenas uma única parte.
Também aqui não se pode descurar que, por um lado, ainda hoje
o indivíduo se procura servir dos meios num sentido que não é adequado
à sua essência, e que, por outro lado, a sua crescente perfeição
manifesta esta essência de um modo cada vez mais claro. Não se trata
aqui de meios de fruição — e mesmo onde existe esta aparência, deve-
se reparar que a fruição, a organização dos grandes jogos, se começa a
evidenciar cada vez mais intensamente como uma tarefa pública, ou
seja, como uma função do carácter total do trabalho.
O sentido do processo decisivo deve ser reconhecido como a
mudança dos instrumentos da sociedade em instrumentos de Estado, a
qual serve a espécie activa como portadora do Estado. Num espaço
muito fechado, muito calculável, em que cresce a simultaneidade, a
inequivocidade e a objectividade da vivência, aparece tanto a opinião
pública enquanto grandeza modificada como a humanidade decisiva que
já não possui nenhuma relação à livre opinião porque é assinalada
através de marcas rácicas. A sua actividade, como foi dito, tem também
de se delinear na substância humana no seu conjunto.
Deve-se já hoje suspeitar que aqui se realiza um tipo de
cunhagem que a livre opinião nunca foi capaz de provocar, uma
cunhagem que se estende até à expressão do rosto e ao tom da voz.
303

A RENDIÇÃO DOS CONTRATOS SOCIAIS


PELO PLANO DE TRABALHO

75.

Aquilo que foi dito sobre a censura como um meio insuficiente,


vale para o procedimento do tipo em geral. O tipo não se sobrepõe à
ordem da democracia liberal, da qual surge, porque “conquista o poder”,
mas porque dispõe de um novo estilo, ou seja, porque representa poder.
A partir deste fundamento, a democracia de trabalho também não
se pode confundir com uma ditadura onde se renunciou ao emprego de
meios plebiscitários. Qualquer poder é pensável como portador de uma
potência puramente ditatorial, enquanto a democracia de trabalho só
pode ser realizada através do tipo. O tipo também não pode chegar a
umas medidas quaisquer — ele pode tão pouco restaurar uma
monarquia, como instituir uma pura economia agrária ou apoiar-se num
domínio militar ligado a uma classe. A grande força impulsiva que está à
disposição dele é delimitada pelos meios e pelas tarefas do mundo do
trabalho.
Se se traçar uma comparação entre a entrada do burguês e a do
trabalhador no espaço histórico, em ambos os casos depara-se com a
legitimação dos meios de destruição cujo efeito preparou e possibilitou
esta entrada. Para o burguês, estes meios consistem nos jogos do
espírito abstracto que opera com os conceitos de razão e de virtude.
Embora esta linguagem fosse falada nas cortes dos príncipes e nos
salões da aristocracia não menos que nos cafés, é só o burguês que,
sem se destruir, a sabe ter à mão, e que a eleva a linguagem da lei, na
medida em que a torna fundamento dos seus contratos sociais.
304

Seria erróneo assumir que os meios de destruição


correspondentes, para o trabalhador, são para procurar nas grandes
teorias sociais e económicas. Em vez disso, já expusemos que nelas só
se pode ver uma continuação do trabalho da razão burguesa. Estas
teorias devem-se comparar muito menos à nova descoberta do homem
no século XVIII do que ao racionalismo aristocrático, através do qual a
camada contra a qual esta descoberta se orienta se decompõe, ao
mesmo tempo, a partir de si mesma.
Esta autodecomposição da velha sociedade resulta tanto em
proveito do burguês como, mais tarde, a decomposição da sociedade
burguesa em proveito do trabalhador. Se se quiser ver aqui também uma
arma, tal é admissível segundo o princípio de que tudo aquilo que
consegue danificar o opositor é vantajoso. O procedimento aplicado não
passa certamente da zona de destruição para a do domínio. Os
princípios que estão na sua base, como o da igualdade ou da repartição,
são apenas de um tipo nivelador; eles referem-se à substância da
sociedade que está dada.
Os meios revolucionários que o trabalhador legitima são mais
significativos que os meios abstractos-espirituais; são de tipo objectivo. A
tarefa do trabalhador consiste na legitimação dos meios técnicos através
dos quais o mundo foi mobilizado, isto é, foi deslocado para o estado de
um movimento ilimitado. A pura presença destes meios está numa
oposição crescente ao conceito burguês de liberdade e às formas de vida
que lhe são adequadas; ela exige a domesticação através de uma força
à altura da sua linguagem. Estamos aqui a lidar com uma daquelas
grandes revoluções de materiais que coincidem com a emergência de
raças à disposição das quais está a magia de novos meios, como o
bronze, o ferro, o cavalo, a vela. Do mesmo modo que o cavalo só ganha
o seu significado através do cavaleiro, o ferro através do ferreiro, o barco
através daquele “peito protegido três vezes de metal”, assim também o
305

sentido, a metafísica do instrumentário técnico, só surge quando a raça


do trabalhador aparece como a grandeza que lhe está atribuída.
À diferença dos meios aplicados corresponde a diferença na
instalação e na tomada de posse do mundo conquistado. Para o
burguês, este processo realiza-se na construção espiritual de
constituições em que a mesma razão que destruiu a velha sociedade
aparece como fundamento e medida fundamental de uma nova
sociedade. Para o trabalhador, a tarefa correspondente aparece como a
construção orgânica de massas e energias que entraram num movimento
ilimitado, construção orgânica essa que o processo de decomposição da
sociedade burguesa deixou atrás de si. O quadro em que a liberdade de
agir está incluída já não é aqui a constituição burguesa, mas o plano de
trabalho. Do mesmo modo que o burguês, à partida, encontra o Estado
absoluto como campo de actividade, assim os primeiros movimentos do
trabalhador realizam-se dentro das fronteiras da democracia nacional,
cujos meios devem ser arrancados a ambos os portadores da sociedade
burguesa, ou seja, ao indivíduo e à massa.
Naquilo que diz respeito às relações com que se depara uma
humanidade decidida à execução de grandes planos, elas estão
favoráveis, na medida em que a dissolução, pelo conceito burguês de
liberdade, de todos os vínculos criados produziu um estado de
terraplanagem que permite traçar transversalmente os novos esboços
através das velhas ordens. A dissolução dos antigos valores gerou uma
situação em que a intervenção ousada encontra um mínimo de
resistência. Por todo o lado onde o mundo sofre, ele atingiu uma
constituição em que a faca do médico é sentida como o único meio
possível.
O plano, tal como emerge dentro da democracia de trabalho, ou
seja, dentro de um estado de passagem, mostra-se através das
características do acabamento, da flexibilidade e do armamento. Estas
características comprovam, do mesmo modo que a palavra “plano” em si,
306

que aqui não se pode tratar de medidas definitivas. A paisagem


planificada diferencia-se, no entanto, da pura paisagem de oficinas por
possuir objectivos solidamente demarcados. Falta-lhe o aspecto de um
desenvolvimento sem limites, e falta-lhe também aquele carácter do
perpetuum mobile político que constantemente se ergue de novo através
do contrapeso da oposição.
Uma oposição deste tipo possui aqui tão pouco sentido como
pode fomentar os movimentos de um navio de guerra. Nos movimentos
políticos do século XIX repete-se continuamente, legitimada pela
constituição, a revolução da razão. Dentro da paisagem planificada, este
tipo de movimento para diante através do rotativismo apresenta-se como
desperdício. A marcha ocorre aqui numa série de etapas que devem ser
alcançadas em tempos calculados pelo Estado Maior. Do mesmo modo
que os meios que o trabalhador legitima trazem não o carácter de uma
disposição, mas um carácter objectivo, assim as tarefas que se dão
dentro do plano devem-se reconhecer em elas se deverem precisar de
acordo com cifras. Estas tarefas surgem já não da discussão de opiniões,
mas do projecto que foi projectado. A unidade de um trabalho que não
pertence nem à massa nem ao indivíduo é, através do plano, trazida à
intuição de um modo tal que o seu resultado pode ser lido como as
horas.
É assim tão controlável se algo projectado foi alcançado, como é
incontrolável se um advogado também honra verdadeiramente os lugares
comuns liberais com que conquistou a opinião pública.

76.

O plano está concluído na medida em que o trabalhador,


enquanto o campo de actividade que é dado, encontra as estruturas
estatais do século XIX, ou seja, a democracia nacional e o império
colonial.
307

Dentro da sociedade de Estados, formada segundo conceitos


liberais, o fenómeno novo da democracia de trabalho desempenha um
papel semelhante à construção orgânica do tipo dentro da democracia
liberal. Do mesmo modo que o tipo está, à partida, inclinado a formar um
Estado no Estado, a democracia de trabalho procura furtar-se às regras
do jogo válidas no espaço da política liberal, como as do comércio livre,
das decisões de maioria das conferências, das determinações cambiais
internacionais que se baseiam em padrões de valor envelhecidos, da
argumentação humanitária e, naturalmente, também da herança, deixada
pela democracia liberal, em contratos e obrigações.
A partir destes esforços dá-se um estado de isolamento que não
apenas parece contradizer o princípio de que a figura do trabalhador
possui uma validade planetária, mas que também pode ser concebida
como um retrocesso diante das formas de comércio habituais entre as
democracia liberais.
De facto, na passagem de uma fronteira qualquer, Aasvero teria
recordado mais as medidas do Estado absoluto que as da democracia
liberal. Assim, a vigilância rigorosa dos homens, dos bens, das notícias e
dos meios de pagamento recorda a praxis do sistema mercantil ou o
procedimento com os passaportes, tais como antes da guerra mundial se
podia encontrar apenas na Rússia czarista.
É claro que todos estes bloqueios à importação e à imigração,
assim como o desejo de se tornar independente dos meios de
pagamento internacionais, não se podem associar às leis do pensar
liberal. Muito mais digno de nota é, no entanto, o facto de que esta
tendência crescente para a autarcia está também em contradição com a
instalação dos meios de que o trabalhador dispõe.
Esta contradição dissolve-se quando se reconhece que o
aparente retrocesso que aqui se realiza tem de ser julgado como aquele
modo de retroceder que precede um arranque. Explicam-se assim
medidas que não são em si adequadas ao carácter de trabalho, tais
308

como o incremento artificial de certos ramos do comércio, da indústria e


da agricultura, a construção não económica de frotas aéreas e de navios
de grande tonelagem, a produção de bens cuja produção é mais custosa
que a compra, e a exportação de outros nas formas envelhecidas da
concorrência, contraditórias com a essência do plano.
Estas tentativas de realizar uma atitude de vida total em âmbitos
delimitados conduzem a uma espécie de economia de fortaleza, cuja
visão não é menos admirável que a dos numerosos exércitos que estão
fixos, em territórios pequenos e que estejam muito perto uns dos outros,
tal como se ofereceu ao viajante do século XVIII. Do mesmo modo que
então se podia encontrar por todo o lado uma residência, uma paisagem
de parque e uma guarnição forte, encontrar-se-á hoje que nenhum
Estado quer renunciar a nenhuma das marcas especiais do carácter total
do trabalho. E do mesmo modo que então se ultrapassava a medida das
próprias forças, para imitar os grandes modelos, também hoje é este o
caso. Aviões, aeronaves, navios com turbinas a vapor, barragens,
cidades mecânicas, exércitos motorizados, arenas gigantescas formam a
representação do domínio do trabalhador, e o convite para a visita destas
instalações corresponde ao convite para a ópera italiana, que o
estrangeiro recebia como a distinção de um príncipe absoluto.
Deve-se intrometer aqui a nota de que o trabalhador se mostra
superior ao conforto que oferece ao seu visitante de um modo que ainda
há pouco tempo não era representável, isto é, no espaço do pensar
burguês. É uma supremacia mais ou menos como a que o aviador com a
Pour le mérite113 possui relativamente ao passageiro da cabina de
luxo114 . Há talvez aqui também oportunidade para uma palavra sobre a
questão da propriedade privada, que dentro de uma investigação sobre o
trabalhador é muito menos digna de tratamento do que, de acordo com o

113
N. do T.: A Pour le mérite era a mais alta distinção por bravura militar do Estado prussiano.
Ernst Jünger foi o último alemão vivo a possuí-la, devido à sua conduta na Primeira Guerra
Mundial.
114
Cujo bilhete de avião o Estado subvenciona.
309

estádio hodierno da ideologia, possa parecer. Pertence às características


do estilo de pensar liberal que tanto os ataques à propriedade como as
suas justificações se realizem com base num fundamento ético. No
mundo do trabalho, no entanto, não se trata de saber se o facto da
propriedade é ético ou não ético, mas apenas de se ele pode ser
acolhido no plano de trabalho. A propriedade não é aqui nenhuma
questão moral, mas uma questão de trabalho, e pode ser possível que
seja encaixada numa paisagem planificada, como um bosque ou o curso
de um rio numa paisagem de parque. Muito mais importante que a
aproximação a qualquer preço a uma dogmática da teoria social é o
modo em que o Estado coloca e abarca a propriedade como um facto
subordinado. É uma das características da revolução sans phrase que,
particularmente em relação à posse doméstica e fundiária, o sentimento
de propriedade permaneça mantido, embora o estado em que a
propriedade está inserida, no seu conjunto, se tenha modificado
fundamentalmente. A medida em que o domínio do trabalhador foi
alcançado não se pode reconhecer em “já não haver mais nenhuma
propriedade”, mas em também a propriedade se manifestar como um dos
caracteres especiais do trabalho. Este é o supremo modo de retirá-la à
iniciativa liberal. A valorização da propriedade acontece aqui de acordo
com a medida em que esta consegue contribuir para a realização da
Mobilização Total. Que é particularmente importante que o singular
esteja em situação de obter os meios de transporte e de informação, é
evidente. É um dos modos com base nos quais ele se liga
“voluntariamente” à rede de trabalho. Além disso, nove décimos de todas
as coisas de que o homem moderno dispõe tornam-se logo sem valor,
quando se as abstrai da presença do Estado. Isto vale sobretudo para o
crescente número de coisas que estão remetidas para uma ligação.
Manifesta-se aqui particularmente uma estreita relação ao Estado, e a
uma nova economia de Estado, que é peculiar à electricidade. Um velho
310

mercenário que tenha participado no saque de Roma admirar-se-ia do


pouco que há nas nossas grandes cidades para pilhar.
O acabamento da paisagem planificada gera uma série de
modelos de Estado que, apesar de serem diferenciados segundo a sua
proveniência histórica e a sua situação espacial particular, podem ser
reconhecidos como aparentados nas suas marcas essenciais.
O número destas unidades não é um qualquer; é limitado por
factores determinados. Não menos importante que a vantagem das
fronteiras geográficas, como a insularidade, é o dispor de fontes de
riqueza natural, como o minério, o carvão, o petróleo e os recursos
hidráulicos. Mas o que decide é sobretudo a prova de saber se a raça
activa, na qual se representa a figura do trabalhador, está cunhada de
um modo suficientemente forte.
Esta prova desemboca no mundo dos factos; é assim
reconhecida na capacidade de grandes viagens por mar ou pelo ar, de
produção de meios de produção, do mais elevado armamento. Pertence
também aqui a capacidade do mais intenso equipamento óptico, de
tornar visível o muito distante e o muito escondido, da diferenciação dos
sons e das cores, da ponderação e medição de pesos atómicos e das
velocidades da luz — são âmbitos em que se começa a tornar mais claro
um carácter de tabu peculiar da técnica. Não são precisos os dedos de
uma mão para contar os Estados que estão preparados para a grande
construção de navios, a qual pertence aos símbolos mais convincentes
da capacidade de formar um Estado, ou os Estados à disposição dos
quais estão, a qualquer hora, aqueles cem mil homens que são os
senhores e os mestres dos meios técnicos e em que se corporiza a força
de combate mais elevada que a Terra já viu até agora.
Observar-se-á cada vez mais claramente que a mera presença da
democracia de trabalho, e a pressão para se adequar às formas da
Mobilização Total, traz consigo, para os Estados, encargos
desproporcionados de segunda e terceira ordens. De facto, vemos
311

desaparecer sem esperança as ilhas não apenas de uma satisfação


determinada, mas também de uma liberdade e cultura115 que, de algum
modo, ainda estão em ligação com o mundo da pessoa, e há hoje muitos
locais na Europa através dos quais se recorda a visão dos palácios
venezianos. Aqui, a capacidade de uma completude real da paisagem
planificada é tão dificultada como, durante a guerra mundial, o era a
manutenção da neutralidade. Não obstante, também aqui há trabalhos
planificados de nível em que, ao mesmo tempo, se poderá reconhecer
um certo carácter de neutralidade — refira-se, como um dos mais
significativos exemplos do nosso tempo, a drenagem do Zuidersee116.
A mesma limitação vale para paisagens em que se reconheceu a
necessidade da “apropriação da técnica mecânica”, sem que nelas o tipo
activo já estivesse presente com uma força suficiente. O sentido do
processo revolucionário que aqui decorre é o de uma submissão
voluntária à figura do trabalhador. Que aqui não é ultrapassado o nível
passivo, mostra-se concretamente pela pressão de não apenas importar
os grandes meios, mas o tipo activo que vigia a sua utilização.
O exame decisivo da medida de autarcia real que um poder
consegue alcançar está reservado à guerra; aqui torna-se muito
rapidamente visível a diferença que existe entre a Mobilização Total e
uma mera tecnificação. No entanto, como já foi assinalado, a
possibilidade de surpresas não está aqui excluída. Em geral, é preciso
proteger-se contra ver este processo no espelho de valorizações que
respeitam puramente ao Estado-Nação. É porque o espaço que está
atribuído à figura do trabalhador possui um alcance planetário que é
digno de louvor que mais áreas deste espaço se tornem condutoras,
onde quer que tal possa acontecer.

115
Do mesmo modo, também do literato, político e professor burgueses, nos seus exemplares
mais distantes.
116
N. do T.: No ano da publicação de Der Arbeiter, em 1932, o Zuidersee, o Lago de Issel, na
Holanda, foi separado do mar, transformando-se em cinco anos num lago de água doce que
permitiu a irrigação agrícola das regiões vizinhas.
312

O ataque que, dentro das nações, é dirigido contra as classes e


os estados, contra as massas e indivíduos, é dirigido também contra as
próprias nações, na medida em que estão formadas segundo modelos
individuais, “burgueses”, “franceses”. O encerramento do tipo fortaleza
que o plano concede ao espaço com que se depara, e mesmo o aumento
do próprio nacionalismo, deve-se conceber como uma medida de
concentração cuja energia incrementa as carências da nação.
Daí que também a representação de uma société des nations,
enquanto organização mundial sobreposta, pertença à imagem da
sociedade do século XIX. Um ordenamento e subordinação das
paisagens planificadas está antes reservada para um plano do Estado de
dignidade imperial.

77.

A exigência de flexibilidade que, além disso, é feita ao plano é


acrescentada na sua necessidade pela decadência da ordem liberal.
Esta decadência, que, vista a partir do ponto de vista burguês, se
apresenta como perda da segurança e como impossibilidade de manter o
velho conceito de liberdade, gerou estados que são muito mais
ameaçadores que os de uma crise a ultrapassar.
A guerra mundial que pôs o ponto final nesta ordem deixou outras
relações, sobretudo na Alemanha, como a Guerra dos Trinta Anos,
depois da qual os esforços se orientaram para o cultivo de novas forças
de trabalho e para o novo povoamento de regiões mais afastadas. A era
da livre circulação e da utilização sem reservas da prosperidade
amontoou, numa repartição muito inorgânica, massas humanas que, em
cada mudança da situação, são submetidas pela sua propriedade de
massa a ameaças particulares. Qualquer movimento propaga-se aqui
sem resistência, e a crise assume demasiado facilmente o rosto de uma
313

catástrofe. Nesta direcção vai a mutabilidade dos meios que torna incerto
qualquer cálculo a longo prazo, seja na medida em que transforma muito
rapidamente as relações dentro das terras, ou na medida em que
confunde entre si as relações económicas e políticas das terras. Diante
destes fenómenos, nada há mais desamparado e mais impotente que a
massa de velho estilo, que é encontrada por eles como por um projéctil
invisível e, agitação após agitação, cai na armadilha.
A crença de que tais estados caem sobre a paisagem, como uma
zona de baixa pressão, é ilusória. A velha ordem carece de força de
resistência, e não se encontra nela o homem de outro modo senão como
sofredor. As massas e as constituições que se concederam são
demasiado inábeis para poderem desencadear movimentos de uma
velocidade e de uma segurança como os que são exigíveis numa
situação perigosa. A massa já não é a grandeza que faz o bom e o mau
tempo, mas ela própria está, sobretudo, exposta à intempérie. Daí que a
linguagem da agitação, com as suas tempestades artificiais, seja sem
significado; tem de ceder a uma linguagem de comando, tal como se
pode ouvir dos comandos da proa dos navios. Tal pressupõe que a
massa seja trazida a um estado no interior do qual habita a flexibilidade
funcional para a execução de tais movimentos — ou seja, que seja
transformada numa construção orgânica. Para as medidas que são aqui
exigíveis, os meios magníficos fornecem, por um lado, o peso que está à
disposição da autoridade real, isto é, da representação legítima da figura
do trabalhador; por outro lado, e isto é de longe mais importante, eles
são, através da nova representação do homem, apoiados pela felicidade,
que já não é vista no desdobramento da existência individual.
Esta diminuição da resistência interna, ou seja, no fundo, da
liberdade burguesa, através da cristalização da situação atomística,
desencadeará forças das quais não se tem ainda hoje nenhuma correcta
representação.
314

Do mesmo modo que aqui é ganha energia pela eliminação de


resistências, é uma pedra de toque decisiva saber se a mutabilidade dos
meios pode ser transformada de uma ameaça em nova fonte de força.
Tal pode-se reconhecer em esta mutabilidade não conseguir obstaculizar
o plano que é superior, mas em ele, pelo contrário, ser capaz de a guiar
e de a incluir organicamente em si. Vimos como, dentro da pura
paisagem de oficinas, o homem estava submetido a esta mutabilidade
dos meios até um grau que possibilitava teorias que o faziam aparecer a
ele mesmo como uma espécie de produto industrial. Pelo contrário, já a
paisagem de guerra oferece uma imagem de maior acabamento e de
uma capacidade de desempenho que é acelerada pela carência. Aqui, na
observação do cultivo febril de máquinas de combate ou da substituição
artificial de materiais indispensáveis, que acontece com a mesma pressa
com que nas fábricas vulcânicas foi forjado para Aquiles um novo
armamento117 , torna-se visível em que medida a vontade técnica pode
aparecer como a expressão especial da vontade de uma raça superior.
Ao estado que a guerra deixou é peculiar uma estranha oposição
entre a situação do homem e os meios de que dispõe. Habituou-se-se a
ver, em fenómenos como o desemprego, a carência de habitação, a
quebra da indústria e da economia, uma espécie de acontecimento
natural. Estes fenómenos, no entanto, não são senão sintomas da
decadência da ordem liberal. Provavelmente, sentir-se-á logo como um
preconceito espantoso que mesmo em continentes ainda muito
parcamente povoados, como na Austrália, se possa falar em geral de
desemprego; isso lembra os descobridores espanhóis da América, que,
no meio da abundância, passavam fome quando os navios de
abastecimento vindos da metrópole se atrasavam. Para o plano de
trabalho, o trabalho é o elemento que lhe está naturalmente atribuído;

117
N. do T.: Na Ilíada de Homero, Aquiles decide-se a reentrar no combate contra os troianos
depois de Heitor ter morto Pátroclo, e de ter arrebatado ao cadáver deste as armas de Aquiles,
que Pátroclo envergara durante o ataque. Para tal, Hefesto necessitara de forjar à pressa
novas armas para o herói grego.
315

pode haver tão pouco falta dele como pode haver falta de água no
Oceano. Daí que também o homem não seja supérfluo, mas o mais
elevado e mais valioso capital.
Tal assinalar-se-á, como se poderia introduzir neste lugar,
também em relação à cifra dos nascimentos. Que esta cifra não pode ser
identificada sem mais com estados de “civilização”, é mostrado, por um
lado, pelo facto de tribos sul-americanas a porem em relação com a
grandeza dos desbastes das florestas, enquanto, por outro lado, numa
paisagem tão cunhada como a chinesa118, não se pode observar
qualquer redução das populações gigantescas. A fonte de riqueza natural
é o homem, e nenhum plano de Estado que não consiga captar esta
fonte pode estar completo. À substituição da constituição pelo plano de
trabalho corresponde um tipo de humanidade que já não se limita em
conceder ao homem direitos constitucionais, mas sabe mudar a sua vida
de um modo autoritário.
Deve-se aqui mencionar particularmente a substituição positiva
de medidas de proibição puramente jurídicas pelo cuidado ao qual o
Estado está obrigado, sobretudo relativamente às crianças nascidas fora
do casamento. Em oposição àquelas fantasias da selecção e da melhoria
da raça, que já desempenham um papel nas mais antigas utopias do
Estado, é aqui possível uma espécie de cultivo que corresponda ao
princípio de que a raça não é senão a última e inequívoca cunhagem da
figura. Nenhuma grandeza está mais vocacionada para ela que o Estado
— enquanto a mais abrangente representação da figura.
A educação de uma espécie humana determinada, cheia de amor
e pensada até ao pormenor, em povoamentos particulares, dentro de

118
Na China, vivencia-se já muitas experiências que ainda estão à nossa frente — a
configuração harmónica das cidades de milhões e de paisagens inteiras, a suprema utilização
da construção agrícola e do jardim, a manufactura típica e de elevado valor, a intensidade e a
ausência de buracos da pequena economia. Existem aqui analogias com as formações
cunhadas e fechadas dentro das quais habita a possibilidade de uma longa duração. Explica-se
assim a relação do rococó com o que é chinês, e é provável e de esperar que também entre
nós seja indicada, a uma sinologia empreendida sob aspectos particulares, um espaço maior
do que até agora.
316

paisagens de mar e de montanha, ou de amplas faixas de floresta,


apresenta para a sua vontade de formação uma tarefa suprema. Está
aqui a possibilidade de criar, a partir do fundo, uma tribo de funcionários,
oficiais, capitães e outros detentores de funções que tenha todas as
características de uma ordem, de tal modo que não possa ser pensada
de um modo mais unitário e formado. É também este, e não a
transplantação de grandes cidades, o caminho mais seguro em que se
pode cultivar uma reserva fidedigna de colonos e das suas
companheiras, por princípio dentro ou fora da terra.
Recorde-se aqui o papel particular dos cadetes nos velhos
exércitos, dos quais o filho do emigrante francês não possuía nenhuma
formação diferente da do fidalgo brandenburguês; do mesmo modo, os
sinais pelos quais a influência das escolas confessionais já se pode ler
nos traços do rosto; além disso, aquelas guardas orientais dentro das
quais ninguém possuía conhecimento do pai e da mãe. O princípio de
que a família é o fundamento do Estado pertence àqueles princípios que,
por causa da sua idade, nunca mais se pôs à prova — no entanto, é
suficiente viver algum tempo numa paisagem siciliana, para ver que o
vínculo do clã consegue absorver completamente o vínculo estatal.
As marchas e as operações, através das quais se realiza a
entrada em acção dos homens e dos meios, trazem o selo do trabalho
como estilo de vida. Diferenciam-se completamente das afluências
desregradas aos distritos do ouro da Califórnia ou das correntes de
massa dentro da antiga paisagem industrial ou colonial.
Assim, ao processo de povoamento e de transplante, tal como se
pode observar na ocupação sionista da Palestina, na abertura dos
modernos distritos siberianos ou na criação de grandes áreas de recreio
e de desporto, prende-se, desde o início, o carácter do cálculo
construtivo. Em oposição à duração da preparação dos dispositivos, as
próprias estruturas crescem como por golpes mágicos.
317

É tanto o crescente alcance das instalações como o nivelamento


dos velhos vínculos que impelem, por si mesmos, a uma concentração e
mobilidade da iniciativa cada vez mais fortes. Há cada vez menos
medidas — seja a construção de uma única casa — que possam ser
pensadas isoladamente. Áreas em que o ponto de vista da rentabilidade
tem de retroceder, como a aviação, estão diante de outras que, como a
rádio e a electrificação, incidem imediatamente no político — de tal modo
que são cada vez menos apropriadas como empreendimentos para
sociedades de acções, tais como as que desempenharam um grande
papel na construção do caminho de ferro.
Preparam-se aqui ataques substanciais ao conceito liberal de
propriedade que são muito superiores aos dialécticos. A construção de
habitações e de cidades, a questão da energia e do trânsito, a
alimentação e os jogos, todos eles incluídos na grande ordem da
configuração da paisagem, colocam, por um lado, exigências tão
urgentes e tão em mudança, e estão, por outro lado, tão variadamente
entrelaçados uns nos outros, que a necessidade de uma regulamentação
unitária e planificada se dá por si mesma. No entanto, só sob a influência
do Estado é que a dependência funcional destas áreas especiais em
relação ao carácter total do trabalho surge claramente. Esta influência
não se pode limitar a uma legislação, através da qual a liberdade dos
agentes seja delimitada uma contra a outra. Em vez disso, torna precisas
acções cujo ímpeto pode alcançar a veemência de ofensivas.
Relativamente à relação entre a iniciativa estatal e a iniciativa
privada, dominam dentro das paisagens planificadas singulares
concepções de tipo muito variado. Enquanto nas primeiras medidas em
que se pode falar de um plano de trabalho neste sentido particular, como
no programa alemão de fornecimento de armas e munições de 1916, a
iniciativa privada ainda desempenha um grande papel, no primeiro plano
quinquenal russo, quase já não há sequer um trabalhador que possa
determinar a escolha ou a rescisão do seu local de trabalho por medida
318

própria. A execução incompleta e a dissolução da lei do dever de serviço


de trabalho constituíram aliás um dos fundamentos da derrota alemã;
esta lei afundou-se por o conceito burguês de liberdade ainda estar
demasiado vivo.
No entanto, onde um radicalismo abstracto e a submissão
incondicional da vida à teoria são desconhecidos, pode-se predizer que a
quebra completa da iniciativa privada teria exigido uma despesa que
nenhum sucesso pode compensar. Em vez disso, vale aqui o mesmo que
foi indicado em relação à propriedade privada.
A iniciativa privada torna-se inofensiva no mesmo instante em que
lhe é assinalada a dignidade de um carácter especial de trabalho — isto
é, em que está sob vigilância dentro de um processo mais abrangente.
Este procedimento assemelha-se ao de uma silvicultura que dentro da
sua cerca também conhece espécies em que o crescimento permanece
entregue a si mesmo. Também estas espécies pertencem naturalmente à
ordem — sendo pressuposto que por ordem se consegue conceber mais
do que um novo tipo de pedantismo de empregados e funcionários ou
que uma burocracia instruída que trate com ficheiros. A possibilidade da
mobilização dá-se a partir do facto de o Estado representar o carácter
total do trabalho — um facto através do qual é dado a qualquer tipo de
iniciativa e de propriedade a característica mais ou menos clara de um
feudo.
De facto, comporta-se-se já hoje, em muitos casos, de tal modo
que o proprietário, como o proprietário doméstico, deve ser reconhecido
como aquele que é economicamente mais fraco. Do mesmo modo, para
se fazer uma imagem desta dependência, tem de se reparar na diferença
ainda pouco investigada que existe entre os meios de produção de um
nível supremo e de um nível mais baixo — não é decisivo quem dispõe
319

da máquina eléctrica ou do automóvel119, mas quem dispõe dos sistemas


de barragens e de auto-estradas.
Finalmente, é ainda de referir que a movimentação exigível dentro
da paisagem planificada pode alcançar um grau que se refere, de algum
modo, à anarquia. Estão aqui em vantagem dons dos quais tanto a
ousadia dos velhos pioneiros coloniais como também a capacidade de
trabalhar com meios provisórios passou para a experiência instintiva.
Esta capacidade encontra-se raramente no alemão anterior à
guerra, que está demasiado habituado ao solo cultivado e ao bastão dos
capatazes instruídos e dos oficiais subalternos, ou seja, de inteligências
realizadoras. Está aqui o segredo da velocidade brutal e inesperada com
que a América, depois da declaração de guerra, triturou, a partir de solo,
exércitos e meios de combate, e está também aqui a explicação de o
engenheiro americano se ter mostrado logo como particularmente apto
dentro da economia planificada russa, enquanto transformação
gigantesca de um solo natural virgem.

78.

Que o plano se apresente como uma medida de armamento, tal


surge já da verificação de que o poder tem de ser reconhecido no nosso
espaço como representação da figura do trabalhador.
Quanto mais inequivocamente esta representação for bem
sucedida, tanto mais abrangentemente serão também de pôr em jogo as
mais ocultas reservas da vida. O ímpeto deste pôr em jogo aumenta
através das características, peculiares à paisagem planificada, da
flexibilidade e do acabamento. Entre todas as mudanças que devem ser
realizadas no espaço de trabalho, a mudança para o armamento é a

119
Aliás, tem hoje luxo aquele que não está remetido à posse de um automóvel, de um rádio,
de um telefone. Este é o tipo de luxo que dentro de uma democracia de trabalho se tornará
cada vez menos consentido.
320

mais significativa. Tal explica-se a partir de o mais secreto sentido do tipo


e dos seus meios estar dirigido para o domínio. Não há aqui nenhum
meio, por especial que seja, que não seja, ao mesmo tempo, meio de
poder, isto é, expressão do carácter total do trabalho.
Esta relação ressalta no esforço de guerra de se apoderar de
todas as áreas, também daquelas que aparentemente lhe estão mais
distantes. De modo semelhante à diferença entre cidade e campo, torna-
se aqui menos importante a diferença entre a frente e a pátria, entre o
exército e a população, entre a indústria e a indústria de armamento. A
guerra, enquanto elemento originário, descobre aqui um novo espaço —
descobre a dimensão particular da totalidade que é atribuída aos
movimentos do trabalhador.
Os perigos que este processo esconde em si são conhecidos. É
escusado gastar palavras sobre a tentativa de se preservar através de
meios liberais, ou seja, através do apelo aos homens racionais-virtuosos.
Para os enfrentar com eficácia, são exigíveis novas ordens.
O grau em que já está penetrada pela consciência a possibilidade
de tais ordens, deixa-se observar no esquema que determina a condução
da negociação da conferência de desarmamento120 . O entendimento
realiza-se aqui em três planos de dificuldade crescente.
Reina a unanimidade relativamente à afirmação da paz, para a
qual estão reservados os discursos de inauguração e de encerramento.
Num segundo plano, ocorre a discussão sobre o modo e o alcance dos
meios de poder pessoais e maquinais abertamente destinados à guerra.
Deve-se aqui diferenciar entre as possibilidades do desarmamento total e
do desarmamento parcial, mais ou menos abrangente, que se pode
referir tanto à qualidade como à quantidade dos meios. A tarefa da
condução da negociação consiste aqui, para o parceiro singular, na
obtenção de uma relação o mais favorável possível relativamente ao

120
N. do T.: Jünger refere-se à conferência sobre o desarmamento que decorreu em Genebra
no mesmo ano da publicação de Der Arbeiter, em 1932, sob os auspícios da Sociedade das
Nações.
321

abastecimento da energia formada. A escolha do ponto de vista e da


dialéctica aplicada depende de se esta relação favorável deve ser
alcançada o mais seguramente possível através do aumento ou da
diminuição, ou seja, através do rearmamento ou do desarmamento.
Deve-se ter agora em atenção que se trata aqui da discussão
sobre os meios de poder aos quais são peculiares as características do
carácter especial do trabalho. Daí que seja erróneo acreditar que o
chamado desarmamento total consiga de algum modo restringir o perigo
de guerra. É antes inteiramente possível que aumente este perigo, na
medida em que as energias que são cortadas do balanço do carácter
especial do trabalho não desaparecem sem vestígio, mas afluem ao
carácter total do trabalho como uma potência suprema e criadora.
Encontramos aqui a explicação do facto de a exigência de
desarmamento total ter sido levantada precisamente pelas potências no
interior das quais já há uma relação avançada com a Mobilização Total,
ou seja, com a mobilização do trabalho. Daí que, no ano de 1932, o
ponto de vista da Rússia ou da Itália121 tenha tido necessariamente de se
diferenciar do da França, enquanto potência na qual o conceito burguês
de liberdade ainda está sobretudo vivo. O debate atinge pontos de uma
inexcedível maldade, quando uma potência de trabalho precisa as suas
exigência de desarmamento em formulações humanitárias a um Estado
liberal, no qual a opinião pública ainda é uma grandeza.
Aqui, o confronto toca a última e a mais concreta camada do
poder que possui uma referência imediata à grandeza a legitimar, à
metafísica, ou seja, à figura do trabalhador — e é isto que eleva este
confronto a um espectáculo maximamente tenso, maximamente peculiar,
quando o olhar penetra os seus invólucros retóricos e aritméticos.
Confirma-se aqui, no espaço de um novo mundo, o facto imutável de as
intenções e as forças fundamentais da vida se terem furtado a qualquer

121
N. do T.: É de notar que aqui Jünger assinala explicitamente os regimes concretos que se
ligam privilegiadamente ao “carácter total do trabalho”: o regime fascista italiano e o regime
soviético russo.
322

zona dentro da qual apenas possa ser vista a possibilidade de um


entendimento. Na prática, tal expressa-se na dificuldade de encontrar
padrões pelos quais possa ser tocado o carácter total do trabalho. Pode-
se assim “entender-se” tanto em relação à proscrição da guerra de gás
como também em relação ao armazenamento de gases venenosos, mas
não em relação ao estado da química ou à investigação de laboratório
que é realizada em espécies de pinheiros ou em ratinhos brancos. Pode-
se desmantelar o exército, mas não o facto de a vontade de formação de
ordens de tipo militar atingir populações inteiras — e talvez tão mais
seguramente quanto mais fortemente for cortado o armamento especial
de guerra.
Estes fenómenos, que se deixam ilustrar de um modo qualquer,
podem ser concebidos como a consequência da relação modificada ao
poder. No século XIX, como vimos, possuía-se poder na medida em que
se possuía uma referência à individualidade e, assim, à dimensão do
universal que é atribuída à individualidade. Daí que a realização do
conceito burguês de liberdade, ou seja, a libertação do indivíduo face aos
vínculos do Estado absoluto, tenha precedido qualquer medida eficaz de
armamento, qualquer organização do exército — um acto sem o qual são
impensáveis os exércitos de massas do dever militar universal. No século
XX, pelo contrário, possui-se poder na medida em que se representa a
figura do trabalhador e, assim, se ganha acesso à dimensão do total que
está atribuída a esta figura. A esta diferença corresponde uma diferença
de armamentos; e, de facto, pode-se observar aqui uma afluência de
energias que trai a presença de um espaço de tipo novo.
Este espaço era desconhecido para o século XIX, pois não é o
indivíduo que possui a chave para ele, mas apenas o tipo ou o
trabalhador. Daí que se tivesse o sistema do dever militar universal como
um aumento inexcedível do carácter militar. Os movimentos que este
sistema possibilita, no entanto, relacionam-se com os da Mobilização
Total, tal como os movimentos que estão num plano se relacionam com
323

os que são possíveis no espaço. Este tipo de mobilização capta não


apenas a plenitude das reservas humanas e materiais num conjunto
unitário, mas mostra-se também através da mutabilidade, através da
flexibilidade do pôr em jogo dos homens e dos meios. Neste espaço, o
exército de guerra e o arsenal de guerra surgem como as cunhagens
especiais de um carácter de poder sobreposto; do mesmo modo, o
serviço militar aparece como o caso especial de uma relação de serviço
de um tipo mais abrangente. Do mesmo modo que o ataque já não
procura alcançar as frentes no sentido antigo, mas, com meios variados
e não apenas especificamente guerreiros, as profundezas do espaço
com as suas instalações e populações, as contramedidas já não se
apoiam apenas no exército, mas na articulação planificada da energia no
seu conjunto. Daí que sejam possíveis casos em que o exército é
sacrificado para que seja ganho tempo para a Mobilização Total.
A mobilização pelo dever militar universal é então rendida pela
Mobilização Total ou Mobilização de Trabalho. Mostra-se assim, como
sucessor do dever militar universal, um dever de serviço de trabalho
abrangente, que se estende já não apenas aos homens capazes de
pegar em armas, mas à população no seu conjunto e aos seus meios, e
em cuja realização vemos operar as grandes potências históricas. O
significado deste tipo de dever de serviço corresponde ao significado das
diferentes reorganizações do exército através das quais o século XIX é
conduzido. A sua realização só pode ser bem sucedida na medida em
que existe referência à figura do trabalhador; é o dote do trabalhador
para o Estado.
As medidas práticas alcançaram em muitos lugares o estádio do
experimento, que aqui é atacado por forças voluntárias, ali já pelo próprio
Estado, enquanto em outros lugares a carência aparece como uma
mestra intransigente. As dificuldades que se devem superar estão menos
na coisa que na penetração das ordens em que o conceito liberal de
liberdade se abateu. Assim, não pode suscitar admiração que a
324

resistência que é encontrada se sirva tanto de formulações individualistas


como também de formulações sociais — ou seja, de um e do mesmo
esquema fundamental que se tornou insignificante. Em todo o caso, a
introdução do dever de serviço de trabalho já não pertence ao reino das
utopias.
Isto salienta-se, como em muitos factos, também na mudança
que se começa a mostrar em relação à manobra. A grande manobra já
não aparece, neste espaço, apenas como um exercício militar de guerra,
mas como uma combinação dos caracteres especiais de trabalho no
quadro de um plano em que estão envolvidas, em igual medida, reservas
“civis” e militares. Deve-se aqui mencionar a colocação da indústria, da
economia, da alimentação, do comércio, da administração, da ciência, da
opinião pública como uma questão técnica — numa palavra: de qualquer
meio especial da vida moderna num espaço fechado e elástico, dentro do
qual se manifesta o carácter de poder comum a estas áreas.
Observamos, enquanto manobra parcial, aqueles alarmes aéreos
e de gás aos quais, em diferentes terras, já se submete o pessoal de
fábricas industriais ou também inteiros bairros e povoações. À ameaça
de extensas zonas pelos meios de aniquilação total corresponde a
advertência pelos meios de informação total, tal como acontece através
da rádio e de grandes instalações de altifalantes. Parece aqui possível,
num espaço modificado, o regresso da imagem medieval de uma
população “sair das casas”, tal como a vida em geral se começa a afastar
muito depressa dos espaços abstractos, e começa a gerar situações
muito concretas, muito imediatas.
O serviço de trabalho — quer se estenda periodicamente por
todas as idades da vida, quer compreenda, numa secção temporal, como
num ano de serviço de trabalho, os dois níveis da formação para o
trabalho: o inqualificado (passivo) e o especializado (activo) — possui
uma dignidade tanto prática como simbólica.
325

Corresponde à legalidade válida no espaço total que possa surgir


como desempenho económico, na medida em que também a economia
pertence aos meios especiais de poder. Nas suas tarefas mais
significativas, para cuja solução põe em acção inteiros exércitos de
trabalho, torna visível a unidade de um trabalho que não pertence nem à
massa nem ao indivíduo. É assim a mais clara expressão da nova
relação do tipo e das suas formações ao Estado.
Redescobrir-se-á aqui, numa medida crescente, o papel que
estava atribuído ao dever de serviço militar universal relativamente à
educação, à penetração e disciplina unitária, numa palavra, à cunhagem
da população de acordo com a sua raça. É uma escola em que se deve
tornar visível para o homem o trabalho como estilo de vida, o trabalho
como poder. Diante disso, as questões económicas surgem apenas em
segundo plano.
Por último, também se deve esperar que tenha sido expulsa uma
arrogância tola que levou a ver no trabalho manual um estado digno de
compaixão. Esta arrogância é a consequência natural de um conceito
abstracto do trabalho, puramente económico; a ela corresponde a infeliz
figura daquele que é “formado”, que nunca teve a sorte de ter estado ao
serviço numa qualquer área desde o início. Qualquer tarefa manual,
mesmo limpar os estábulos dos cavalos, possui dignidade na medida em
que não é sentida como trabalho abstracto, mas é desempenhada dentro
de uma ordem grande e com sentido.

79.

É então de contar por largo tempo com um estado em que os


Estados-Nação e os Impérios nacionais de velho estilo estejam ocupados
em chegar àquela nova constituição que se expressa na construção
orgânica da paisagem planificada.
326

Já a palavra plano indica que se trata aqui de uma paisagem


modificada — a este facto corresponde a mutabilidade dos meios e a
cunhagem de uma nova raça que observámos nos seus pormenores. Do
mesmo modo, não se prende às três características do plano — o
acabamento, a flexibilidade e o armamento — nenhum carácter definitivo,
mas um carácter de concentração e de marcha.
Por causa do perigo que está dentro deste estado suportámos já
algumas provas — provas ainda vivas entre nós, em que o sentido
suicida e traidor das tentativa de executar uma política liberal de avestruz
se tornou visível de um modo suficientemente claro.
Uma das perspectivas mais desagradáveis consiste sem dúvida
na possibilidade da violentação de povos pequenos e fracos, enraizados
no seu velho solo natural, por potências de segunda ordem, que se
servem de meios superiores sem conhecer a responsabilidade que está
incluída no seu emprego. Tanto mais é de esperar que se salientem
potências às quais esteja dada a capacidade de formações imperiais
genuínas, dentro das quais possa ser assegurada protecção e se possa
falar de um tribunal mundial, cuja triste farsa a Sociedade das Nações
hoje representa.
Por outro lado, não se pode descurar que este estado, que obriga
a estar pronto, contém em si também certas garantias. É assim que o
acabamento das paisagens planificadas gera um desejo particular de
evitar o conflito internacional: não é com gosto que se é perturbado na
marcha.
O enredo guerreiro apresenta-se, neste medium, como a pressão
para uma entrega indesejada de energia já formada, que é retirada ao
processo de um desdobramento mais abrangente do poder. Além disso,
parece completamente possível que a difusão dos grandes campos de
força consiga formar uma espécie particular de “guerras sem pólvora” —
certamente que não no sentido de representações de algum modo
327

sublimadas, mas no sentido de a gravitação do carácter total do trabalho


tornar supérfluo o emprego de meios de combate especiais.
Explicam-se neste contexto as modernas descobertas de
comunidades de interesses, de espaços geopolíticos e de possibilidades
federativas, em que se pode ver um ataque à articulação do Estado-
Nação e uma tentativa de preparação construtiva de espaços imperiais.
Atrás destas possibilidades esconde-se um facto de uma espécie
muito mais poderosa e abrangente: o facto de, partindo do nível
supremo, ou seja, da figura do trabalhador, as paisagens planificadas
singulares aparecerem como áreas especiais em que se realiza um e o
mesmo processo fundamental, independentemente do seu acabamento.
O objectivo em que se encontram os esforços consiste no
domínio planetário enquanto símbolo supremo da nova figura. Só aqui é
que repousa o padrão de uma segurança sobreposta que abrange todas
as etapas de trabalho, guerreiras e pacíficas.
328

CONCLUSÃO

80.

A entrada no espaço imperial é precedida de uma provação e de


um endurecimento das paisagens planificadas, que ainda hoje não se
podem representar. Desencadeamos aqui coisas espantosas. Para além
da democracia de trabalho, em que o conteúdo do mundo nosso
conhecido é transvazado e reelaborado, mostram-se os esboços de
ordens do Estado que estão fora das possibilidades de comparação.
Pode-se, no entanto, prever que aqui já não se falará nem de trabalho
nem de democracia no sentido que nos é habitual. A descoberta do
trabalho enquanto elemento de plenitude e liberdade está ainda iminente;
do mesmo modo, muda-se o sentido da palavra democracia, quando o
solo mãe do povo aparecer como portador de uma nova raça.
Vemos que os povos estão a trabalhar, e saudamos este trabalho
onde quer que seja desempenhado. O combate autêntico vale como a
descoberta de um novo mundo desconhecido — como uma descoberta
mais aniquiladora e, consequentemente, mais rica que a descoberta da
América. Não é senão com emoção que se pode observar o homem, tal
como está ocupado, no meio de zonas caóticas, a forjar armas e
corações, e tal como sabe renunciar à saída da felicidade.
Tomar parte aqui e servir: tal é a tarefa que é esperada de nós.
329

SINOPSE

Primeira Parte

1. A era do terceiro estado foi uma época do domínio aparente. 2.


O esforço de perpetuar esta era expressa-se na transferência do modelo
burguês para os movimentos do trabalhador. 3. Correlativamente, o
trabalhador é visto como o portador de uma classe particular ou de um
estado particular, 4. como o portador de uma “nova” sociedade 5. e como
o portador de um mundo em que economia e destino significam o
mesmo.
6. A tentativa de procurar o trabalhador num plano mais elevado e
abrangente do que aquele que o burguês em geral consegue representar
7. só pode ser ousada quando se adivinha, atrás do seu aparecimento,
uma grande figura, autónoma e independente, que se submete a uma
legalidade própria e diferente. 8. Como figura assinalamos uma realidade
suprema, dadora de sentido. Os fenómenos são significativos como
símbolos, representantes e cunhos desta realidade. A figura é uma
totalidade que abrange mais que a soma das suas partes. A este mais
chamamos totalidade. 9. Ao pensar burguês não está dada uma relação
à totalidade. Consequentemente, também só foi capaz de ver o
trabalhador como fenómeno ou como conceito — como uma
abstracção122 do homem. O acto autenticamente “revolucionário” do
trabalhador, pelo contrário, consiste em reivindicar a totalidade, na
medida em que se concebe como o representante de uma figura

122
Possui-se uma relação concreta ao homem quando se sente a morte do seu amigo ou do
seu inimigo fulano mais profundamente que a notícia de que, numa inundação do Hoang-Ho,
se afogaram 10.000 homens. A história da humanidade abstracta, pelo contrário, começa com
considerações do tipo: se é menos ético matar um inimigo concreto em Paris ou um mandarim
desconhecido na China, ao premir um botão.
330

sobreposta. 10. O “ver” de figuras123 possibilita a revisão de um mundo


do espírito que se tornou senhor de si mesmo através de um ser unitário.
11. Tanto a dignidade do singular como também das comunidades
depende da medida em que neles se representa a figura. Uma
contraposição da massa e do singular, ou da iniciativa “colectiva” e
“pessoal”, relativamente ao valor, é insignificante. 12. Do mesmo modo,
enquanto ser em repouso, a figura é mais significativa do que qualquer
movimento através do qual dê testemunho de si. A observação do
movimento enquanto valor, enquanto “progresso”, pertence à era
burguesa.
13. O trabalhador mostra-se através de uma nova relação ao
elementar. Daí que disponha de reservas mais poderosas do que o
burguês, que conhece a segurança como um valor supremo e se serve
da sua razão abstracta como meio que deve assegurar esta segurança.
14. O protesto romântico não é outra coisa senão uma vã tentativa de
fuga do espaço burguês. 15. O trabalhador substitui o protesto romântico
pela acção no espaço elementar, no qual doravante se manifesta muito
claramente a insuficiência da segurança burguesa. 16. O trabalhador
mostra-se, além disso, através de uma nova relação à liberdade. A
liberdade só pode ser sentida quando se possui parte numa vida unitária
e com sentido, 17. como se nos torna claro, temporalmente, na
recordação de grandes potências históricas 18. ou, espacialmente, para
além do jogo e contra-jogo dos meros interesses. 19. O espaço de

123
O grau em que foi bem sucedida a captação de conceitos orgânicos como “figura”, “tipo”,
“construção orgânica”, “total”, pode-se testar na medida em que, com estes conceitos, se pode
proceder segundo a lei do selo e do cunho. O modo de emprego não é então plano, mas
“vertical”. Assim, qualquer grandeza dentro da hierarquia “tem” figura e é, ao mesmo tempo,
expressão da figura. Neste contexto, dá-se também uma elucidação particular da identidade de
poder e representação. Reconhece-se aliás o conceito orgânico em conseguir desdobrar uma
vida própria, ou seja, em conseguir “crescer”.
Todos estes conceitos existem notabene para conceber. Não é deles que se trata. Eles
podem sem mais ser esquecidos ou postos de lado, depois de, enquanto grandezas de
trabalho, terem sido utilizados para a captação de uma determinada realidade que existe
apesar e para além de qualquer conceito. Esta realidade é também completamente para
distinguir da sua descrição; o leitor tem de ver através da descrição como através de um
sistema óptico.
331

trabalho é igual a todos os grandes espaços históricos; nele surge a


reivindicação de liberdade enquanto reivindicação de trabalho. A
liberdade é aqui uma grandeza existencial; isto é, dispõe-se da liberdade
na mesma medida em que se é responsável pela figura do trabalhador.
20. O sentimento crescente por este tipo de responsabilidade anuncia
realizações extraordinárias. 21. O trabalhador mostra-se finalmente
através de uma nova relação ao poder. O poder não aparece aqui como
uma grandeza “flutuante”, 22. mas aparece legitimado através da figura
do trabalhador, ou seja, é representação desta figura. A legitimação
mostra-se ao conseguir colocar ao serviço uma nova humanidade 23. e
novos meios. 24. O pôr em acção destes meios, que só estão à
disposição do trabalhador, é facilitado através de extensos estados de
anarquia que uma “validade universal” deixou atrás de si.
25. Deve-se reparar particularmente que a figura está sobreposta
aos questionamentos dialécticos, 26. relativos ao desenvolvimento 27. e
ao valor, e não pode ser captada por eles.

Segunda Parte

28. O princípio que está atribuído ao trabalhador, ou a linguagem


do trabalhador, não é de uma natureza universal-espiritual, mas de uma
natureza objectiva. É o trabalho como modo de vida que começa a
formar um estilo particular. 29. A observação deste modo de viver
particular é importante na medida em que se realiza num medium que
muda muito. 30. Já numa observação fugaz do espaço de trabalho
impõe-se entretanto a imagem de uma legalidade diferente. 31. Esta
legalidade inclui em si um ataque à existência do indivíduo, 32. ataque
que já se tornou muito claro nos campos de batalha modernos. 33.
Tornou-se aqui também visível, pela primeira vez, uma nova espécie
humana que deve ser assinalada como tipo. 34. O ataque contra o
indivíduo estende-se também à massa, enquanto forma social em que o
332

indivíduo se concebe. 35. Do mesmo modo que o tipo ou o trabalhador


surge no lugar do indivíduo burguês, a massa é substituída pela
construção orgânica. 36. O tipo cunha-se, nas suas características
exteriores, como a fisionomia, o vestuário, 37. a atitude 38. e o gesto, 39.
numa inequivocidade crescente, que deve ser à partida vista, mas não
avaliada. 40. O burguês possui dignidade na mesma medida em que
possui individualidade. 41. O tipo, que já não reivindica esta
diferenciação, 42. e que não é caracterizado pela vivência única, mas
pela vivência inequívoca, 43. possui dignidade na medida em que é
corporizada através dele a figura do trabalhador.
44. Chamamos técnica ao modo em que a figura do trabalhador
mobiliza o mundo. 45. Ela inclui em si o ataque contra os sistemas
históricos 46. e contra as potências de culto 47. como um meio
aparentemente neutro que, no entanto, sem contradição, está à
disposição apenas do trabalhador. 48. A técnica não é o instrumento de
um progresso ilimitado, 49. mas conduz para um estado completamente
determinado e inequívoco 50. que se mostra através de uma crescente
constância e perfeição dos meios, que corre em paralelo com a formação
de uma nova raça, 51. mas que não pode ser alcançado arbitrariamente.
52. Vivemos antes ainda num mundo em grande mudança, 53. que, no
entanto, se começa a destacar do carácter explosivo-dinâmico da
paisagem de oficinas anterior, através de uma elevada planificação e
calculabilidade dos processos. 54. Também onde a técnica transmite os
manifestos meios de poder, 55. só é possível uma conclusão do
armamento 56. quando o trabalhador o retirar à pura concorrência e
iniciativa dos Estados-Nação, e quando estabilizar e legitimar os meios
revolucionários e em movimento. 57. Isto só é possível quando se servir
dos meios que só a ele estão atribuídos não num sentido liberal, mas no
sentido de uma raça superior.
58. A actividade de museu 59. é a característica de uma força
vital enfraquecida 60. e uma das evasivas diante de uma realidade
333

completamente perigosa. 61. O trabalhador já não possui mais nenhuma


referência a uma empresa cultural que tem o seu ponto culminante no
culto do génio. 62. A configuração do mundo do trabalho, como cujo
supremo objectivo se salientará a grande configuração do espaço, exige
padrões diferentes. 63. São padrões não individuais, mas típicos, aos
quais o domínio do trabalhador proporcionará validade, 64. e em relação
aos quais se deverá descobrir variadas analogias tanto na paisagem
natural 65. como também nas grandes paisagens culturais. 66. O mundo
técnico não está em oposição a esta configuração, mas é colocado ao
serviço, sem contradição, por ela, 67. como se mostrará, de um modo
cada vez mais claro, no contexto da perfeição dos meios e da cunhagem
de uma nova raça.
68. O nacionalismo e o socialismo devem ser reconhecidos como
princípios que são peculiares ao século XIX. 69. As ordens da
democracia nacional arrastam estados de anarquia mundial, na mesma
medida em que ganham em validade universal. 70. Do mesmo modo, o
socialismo é incapaz de realizar ordens válidas. 71. Ambos os princípios
estremecem em si mesmos, na medida em que qualquer poder que seja
se serve das suas regras de jogo. 72. A entrada do domínio do
trabalhador mostra-se na rendição da democracia liberal ou social pela
democracia de trabalho ou democracia do Estado. 73. Esta rendição
acontece através do tipo activo que se serve das formas da construção
orgânica, em particular da ordem. 74. O tipo dispõe da opinião pública
porque a domina no sentido de uma tecnicidade superior. 75. No lugar
das constituições burguesas, surge o plano de trabalho, no qual se
podem colocar as exigências do 76. acabamento, 77. flexibilidade 78. e
armamento. 79. Estas características são características de passagem,
com a ajuda das quais é preparado o domínio planetário da figura do
trabalhador dentro da multiplicidade dos espaços históricos. 80. Nos
esforços dos povos que estão ocupados com a transformação das
334

democracias nacionais em Estados de trabalho mostra-se já a


participação futura neste domínio.

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