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O TRABALHADOR.
Domínio e Figura.
por
Ernst Jünger
Título Original:
Der Arbeiter. Herrschaft und Gestalt
Tradução feita a partir de:
[Ernst JÜNGER. Werke. Vol.8, Essays II. Estugarda, Ernst Klett Verlag,
1981.]
2
INTRODUÇÃO À EDIÇÃO
PORTUGUESA DE DER ARBEITER.
UMA CONFRONTAÇÃO COM ERNST JÜNGER
1
Ernst JÜNGER. “Der Arbeiter. Herrschaft und Gestalt” in Sämtliche Werke. Essays II.
Estugarda, Klett-Cotta, 1981; p.17.
2
Idem, p.128.
3
Idem, p.28.
4
Idem, p.31.
4
5
Oswald SPENGLER. Der Untergang des Abendlandes I. Munique, Beck’sche
Verlagsbuchhandlung, 1923; p.42.
6
Idem, p.43.
5
século XX que se iniciava podia então ser visto por Spengler como a
completude da desvitalização ocidental iniciada no século XIX, sobretudo
através de dois fenómenos fundamentais. Por um lado, o homem
tornava-se massa, reunido em aglomerações urbanas, em metrópoles
cuja organização as constitui como aparelhos que o reduzem a uma
mera função: «A metrópole significa o cosmopolitismo no lugar da
“pátria”, o frio sentido dos factos no lugar da veneração pelo tradicional e
pelo idoso, a irreligião científica como fossilização da precedente religião
do coração, a “sociedade” no lugar do Estado, os direitos naturais em vez
dos direitos adquiridos. [...] À metrópole não pertence um povo, mas uma
massa»7. Por outro, o mundo tornava-se numa grandeza, já não
puramente representável como o objecto do conhecimento moderno, já
não como uma barreira resistente a ultrapassar, mas como um
património tecnicamente mobilizável. Ele é agora um armazém de
recursos e instrumentos, acessível à sua utilização e mesmo violação
pela pura vontade do homem: «O sonhador antigo “contemplava” como a
divindade de Aristóteles, o sonhador árabe procura como alquimista o
meio mágico, a pedra dos sábios, com a qual trazia à sua posse os
tesouros da natureza, o sonhador ocidental quer dirigir o mundo segundo
a sua vontade»8.
As análises de Spengler marcaram decisivamente a
autointerpretação do século XX ocidental. E marcaram-na numa dupla
perspectiva: por um lado, influenciaram o modo como o século XX, no
seu começo, se interpretou a si mesmo; por outro, influenciaram a
própria realidade interpretada, realidade essa que foi constituída por um
incontornável sentimento de declínio. Um tal sentimento alimentava-se
sobretudo de um ambiente de esgotamento, de “fim da história”: diante
de um mundo definitivamente conquistado pela técnica, a vida tornara-se
confortável, tranquila, pacificada e, neste sentido, despojada da
7
Idem, p.45.
8
Oswald SPENGLER. Der Untergang des Abendlandes II. Munique, Beck’sche
Verlagsbuchhandlung, 1922; p.627.
6
9
Charles BAUDELAIRE. As flores do mal. Trad. Fernando Pinto do Amaral. Lisboa, Assírio &
Alvim, 1992; pp.46-47.
10
José ORTEGA Y GASSET. La Rebelión de las Masas. Madrid, Revista de Occidente, 1958;
p.52.
11
Idem, p.54.
12
Traduzimos aqui Dasein por existência, sem entrar na problemática heideggeriana da sua
tradução.
7
13
Martin HEIDEGGER. Sein und Zeit. Tübingen, Max Nimeyer, 1986; p.126.
14
Idem, pp.126-127.
15
Karl JASPERS. Die geistige Situation der Zeit. Berlim, Walter de Gruyter, 1979; p.55.
8
16
Idem, p.36.
17
Idem, p.57.
18
Ernst JÜNGER. Op. Cit., p.52.
19
Idem, p.54.
20
Idem, p.53.
9
21
José ORTEGA Y GASSET. Op. Cit., pp.154-155.
22
Carl SCHMITT. “Das Zeitalter der Neutralisierungen und Entpolitisierungen” in Der Begiff des
Politischen. Berlim, Duncker & Humblot, 1996; p.90.
10
23
Idem, p.91.
24
Idem, p.90.
25
Ernst JÜNGER. Op. Cit., p.166.
26
Idem, p.167.
27
José ORTEGA Y GASSET. Op. Cit., p.132.
11
28
Idem, p.141.
12
29
Ernst JÜNGER. “Die totale Mobilmachung” in Essays I. vol. V. Estugarda, Ernst Klett Verlag,
s.d.; p.145.
30
Ernst JÜNGER. Der Arbeiter, p.67.
14
31
Idem, p.72.
32
Idem, p.71.
33
Idem, p.31.
15
34
Idem, p.59.
35
Idem, p.56.
36
Idem, pp.56-57.
16
37
Idem, p.170.
38
Idem, p.165.
39
Ernst JÜNGER. “Über den Schmerz” in Essays I. vol. V. Estugarda, Ernst Klett Verlag, s.d.;
p.164.
17
40
Ernst JÜNGER. Der Arbeiter, p.64.
18
41
Idem, p.42.
42
Idem, p.78.
43
Idem, p.23.
44
Idem, p.213.
45
Idem, p.203.
46
Cf. Idem, p.304.
19
47
Ernst JÜNGER. “Über die Linie” in Essays I. vol. V. Estugarda, Ernst Klett Verlag, s.d.; p.265.
20
48
Ernst JÜNGER. “Der Arbeiter”, p.311.
49
Ernst JÜNGER. “Über den Schmerz” in Essays I. vol. V. Estugarda, Ernst Klett Verlag, s.d.;
p.178.
50
Cf. Ernst JÜNGER. Der Arbeiter, p.140.
51
Idem, p.41.
22
52
Ernst JÜNGER. “Der Waldgang” in Essays I. vol. V. Estugarda, Ernst Klett Verlag, s.d.;
pp.319-320 (citamos a trad. portuguesa de Maria Filomena Molder: O Passo da Floresta.
Lisboa, Cotovia, 1995; pp.34-35).
53
Idem, p.366 (trad. port., p.79).
54
Ernst JÜNGER. “Über die Linie”, p.281.
55
Idem, p.271.
56
Ernst JÜNGER. Der Waldgang, p.375 (trad. port: p.88).
23
«é preciso ser livre, para chegar a ser livre»57, que «é preciso que o
homem que está no barco tome por medida aquele que está na
floresta»58. É no passo da floresta, onde se «mantém uma relação com a
liberdade», que «vive a vontade originária da resistência»59. E é para
esta resistência da liberdade, para esta afirmação do homem na sua
dignidade essencial de resistente, que a consciência do “carácter total do
trabalho”, a descrição por Jünger da figura do trabalhador na era do
niilismo, conduz. É como corolário das análises de O Trabalhador que
poderiam aparecer as palavras de Jünger em Sobre a Linha: «Um
homem basta como testemunha de que a liberdade ainda não
desapareceu»60.
Alexandre Franco de Sá
Junho de 2000
57
Idem, p.375 (trad. port: p.88).
58
Idem, p.357 (trad. port.: p.70).
59
Idem, p.366 (trad. port.: p.79).
60
Ernst JÜNGER. “Über die Linie”, p.283.
24
61
N. do T.: O termo burguês traduz o termo alemão Bürger. Convém, no entanto, notar que a
palavra alemã Bürger tem um significado abrangente, do qual Jünger maximamente se
apropria. O “burguês” de Jünger não é, como se poderia à partida pensar, o representante de
uma classe ou uma categoria económica, mas o representante de uma era histórica, marcada
pela concepção do homem como cidadão (palavra que é também uma tradução possível para
o termo Bürger), como indivíduo determinado por uma racionalidade abstracta e igualitária.
25
62
N. do T.: O volume 8 das Obras Completas de Ernst Jünger contém, para além de Der
Arbeiter, o ensaio Maxima – Minima, publicado pela primeira vez em 1964, composto de
anotações à obra Der Arbeiter e de excertos de correspondência sobre ela.
27
I PARTE
29
1.
63
N. do T.: O termo que traduzimos por perfil é Figur, reservando o termo figura para a
tradução de Gestalt. Se a Gestalt é a figura, no sentido da forma que se imprime como cunho
num fenómeno, a Figur é apenas o aspecto mais superficial, o perfil, de um determinado
fenómeno.
30
64
N. do T.: O termo alemão traduzido por guia é Führer. Tendo em conta a sua determinação
como aquele que conduz ou que guia, assim como a impossibilidade da sua redução a um
simples chefe, pareceu-nos a tradução mais adequada.
33
2.
65
A palavra “trabalhador” é aqui, como outras palavras, empregue como conceito orgânico, isto
é, ela sofre modificações no decorrer da consideração que devem ser vistas
retrospectivamente.
66
N. do T.: A palavra que aqui se traduz e traduzirá por substância é Bestand. Tal palavra, que
significa aquilo que permanece, aquilo em que algo consiste (besteht), é usada frequentemente
por Jünger para a significação do fundo, do núcleo imutável que pode manifestar-se
fenomenicamente em formas variadas. Pensamos que substância é, neste sentido, o termo
mais adequado para a sua tradução.
34
3.
67
N. do T.: O termo trabalho é, ao longo desta tradução, usado geralmente para traduzir a
palavra Arbeit. Contudo, ele traduz aqui o termo Arbeitertum, o qual poderia ser traduzido,
noutro contexto, como a classe operária ou classe dos trabalhadores, oposta à burguesia
(Bürgertum). Contudo, Jünger procura explicitamente libertar os termos Arbeit, Arbeiter e
Arbeitertum do seu cunho marxista, pelo que preferimos traduzir Arbeitertum pelo termo mais
abrangente de “o trabalho”: lembremo-nos de que entre trabalho (Arbeitertum) e burguesia
(Bürgertum) existe, como diz Jünger, não uma oposição dialéctica, mas «uma diferença de
plano» (§3); ou que, como adiante esclarece, o trabalho está, em relação à burguesia, «não
numa relação de oposição, mas de alteridade» (§4).
36
4.
68
N. do T.: O termo alemão traduzido aqui por trabalho é Arbeiterschaft, que alude ao carácter
próprio do trabalho.
43
69
N. do T.: As palavras aqui traduzidas por ascensão e declínio são respectivamente Aufgang
e Untergang, palavras que se mantêm relacionadas como movimentos de sentido contrário, e
que, por exemplo, Martin Heidegger utiliza para traduzir os conceitos gregos de geração e
corrupção.
45
5.
mundo económico. Tal não significa como que a renúncia a este mundo,
mas a sua subordinação a uma reivindicação de domínio de um tipo mais
abrangente. Significa que não é a liberdade económica e que não é o
poder económico que são o eixo da rebelião, mas o poder em geral.
Na medida em que o burguês projectou os seus próprios
objectivos nos do trabalhador, ele limitou, ao mesmo tempo, o objectivo
do ataque a um objectivo de ataque burguês. Mas hoje suspeitamos a
possibilidade de um mundo mais rico, mais profundo e mais frutífero.
Para realizá-lo não basta um combate de libertação, cuja consciência se
alimenta do facto da exploração. Tudo depende antes de o trabalhador
reconhecer a sua supremacia e de se criar, a partir dela, os padrões
próprios do seu domínio futuro. Tal robustecerá o ímpeto dos seus meios
⎯ da tentativa de debilitar o opositor através da rescisão surge a sua
submissão através da conquista.
Tais já não são os meios do empregado, cuja felicidade suprema
consiste em poder ditar o seu contrato de emprego, e que, no entanto,
nunca se consegue elevar acima da mais íntima lógica deste contrato; já
não são os meios do enganado e do deserdado, que vê em cada nível
que alcança uma nova perspectiva de engano. Não são esses os meios
do rebaixado e ultrajado, mas antes os meios do autêntico senhor deste
mundo, os meios do guerreiro que dispõe das riquezas de províncias e
de grandes cidades, e que dispõe tanto mais seguramente delas quanto
mais as souber desprezar.
6.
7.
8.
70
Uma informação mais aproximada sobre a palavra total, a qual desempenhará ainda um
papel no que se seguirá, é conferida pelo escrito A mobilização total (Berlim, 1930).
71
N. do T.: O Walhalla é, na mitologia escandinava e germânica, o palácio situado em Asgard,
o reino dos deuses, com quinhentas e quarenta portas e um tecto constituído por escudos. Era
para lá que as valquírias encaminhavam os guerreiros mortos em combate, onde permaneciam
a combater durante o dia e a banquetear-se durante a noite com Odin ou Wotan, o Rei dos
deuses.
72
N. do T.: Jünger faz aqui entrar a distinção alemã entre um corpo enquanto mera unidade
material (Körper) e um corpo enquanto “corpo vivo”, corpo animado por uma vida, pela Leben
55
(Leib). Para manter essa diferença, optou-se por traduzir aqui Körper por corpo e Leib por
56
9.
corpo vivo.
57
73
N. do T.: A palavra que aqui traduzimos por comando é Führung, a “condução”, que aqui tem
o sentido de uma referência à “classe dirigente”.
59
10.
11.
74
N. do T.: Por tipo traduzimos aqui o termo Typus, central em Jünger. O tipo expressa, em
Jünger, o modo pelo qual a unidade singular aparece determinada numa era configurada pela
figura do trabalhador. Este singular é, já não um indivíduo, tal como uma era burguesa o
entendeu, mas a expressão de um tipo, de uma figura típica que ultrapassa a sua
individualidade.
62
75
E isso através do medium do indivíduo burguês.
64
12.
76
N. do T.: Ligado a Baal, adorado pela tribo dos amonitas e moabitas, Moloch é um deus de
carácter malévolo, que exigia sacrifícios humanos.
67
13.
14.
77
N. do T.: Na tradução de dämonisches Wesen, preferimos traduzir por ser daimoníano em
vez de ser demoníaco, na medida em que Jünger se refere à concepção grega do homem
como um daimon, como um ente hierarquicamente situado num ponto intermédio entre os
mortais e os imortais.
72
15.
78
N. do T.: Inaugurado em 1872, o Yellowstone National Park é a maior e mais antiga reserva
natural dos Estados Unidos da América.
75
guerra mundial não foi disputada apenas entre dois grupos de nações,
mas também entre duas eras, e, neste sentido, há na nossa terra tanto
vencedores como vencidos.
Ao passo do protesto romântico para a acção, cuja característica
já não é a fuga mas o ataque, corresponde a transformação do espaço
romântico no espaço elementar. Este processo cumpre-se na medida em
que o que é perigoso, que estava banido nas fronteiras mais afastadas,
parece refluir em grande velocidade para os centros. Assim, é mais do
que um acaso que o motivo para a guerra mundial se dê em torno da
Europa, numa atmosfera de penumbra política.
Em todas as tensões deste tempo, ficam fora as zonas
tempestuosas que criam os primeiros relâmpagos. Mas doravante
inflamam-se as áreas seguras da própria ordem, como pólvora para
disparar que ficou muito tempo seca, e o desconhecido, o extraordinário,
o que é perigoso não apenas se torna o habitual — torna-se também o
permanente. Depois do armistício que só aparentemente terminou o
conflito, mas na verdade cerca e mina todas as fronteiras da Europa com
inteiros sistemas de novos conflitos, fica um estado em que a catástrofe
aparece como o a priori de um pensar modificado.
Correlativamente a este processo, o conceito de ordem torna-se
doravante, no próprio velho sentido, um conceito romântico. O burguês
vive de qualquer modo num bom velho tempo antes da guerra, e aparece
como o homem que procura retirar-se de uma realidade completamente
perigosa através da fuga para a segurança tornada utópica79. Prossegue
os seus velhos esforços — como, numa inflação, ainda se usa durante
um período de tempo a moeda habitual —, mas as suas valorizações
perderam o seu curso; e, atrás de slogans como “tranquilidade e ordem”,
“comunidade do povo”, “pacifismo”, “paz económica”, “entendimento”, em
79
Não é por acaso que hoje a segurança é exigida precisamente pelos chamados Estados
vencedores, particularmente pela França enquanto poder burguês par excellence. A
característica do real vencedor consiste, pelo contrário, em poder dispensar a segurança, isto
é, em poder guardar protecção porque se a possui em abundância.
77
suma, atrás do último apelo à razão do século XIX não se pode deixar de
reconhecer uma atitude mais fraca — pertencem ao vocabulário da
restauração burguesa, cujas constituições se assemelham aos tratados
de paz ao serem estendidos como um véu fino e provisório sobre o
prosseguimento intensificado dos armamentos.
O que é perigoso, que apareceu sob o sinal do passado e da
distância, domina agora o presente. Parece ter irrompido nele vindo de
tempos primordiais e da amplidão dos espaços, como que sob o aspecto
de um astro ameaçador cujo regresso dos abismos cósmicos se
realizasse nos caminhos de uma legalidade desconhecida. Nem o
espírito do progresso nem os esforços febris de uma camada dirigente,
tremendo no seu íntimo diante da decisão, conseguiram evitar a entrada
do combate, o qual, onde foi realmente travado, continua e continuará a
aparecer, sem se reparar no aumento e aperfeiçoamento dos meios,
como um combate do homem contra o homem. São estas as formas de
um tempo originário que se julga ainda vivo apenas na recordação ou
nas grandes florestas da América do Sul. Da terra despedaçada pelo
fogo e embebida em sangue surgem espíritos que não se deixam
encantar com o silêncio dos canhões; em vez disso, influenciam de um
modo estranho todas as valorizações existentes e dão-lhes um sentido
modificado.
Tivessem uns reconhecido isto como uma recaída numa barbárie
moderna, tivessem-no outros saudado como um banho de aço — o mais
importante é ver que um afluente novo e ainda indomado de forças
elementares se apoderou do nosso mundo. Sob a segurança
enganadora da ordem envelhecida, que é apenas possível enquanto
ainda existir o cansaço, estas forças estão demasiado próximas, são
demasiado destruidoras, de tal modo que o simples olhar as poderia
abarcar. A sua forma é a da anarquia, que, nos anos de uma assim
chamada paz, surge nos bandos ardentes como um vulcão à superfície.
78
16.
80
N. do T.: É impossível manter a relação entre as duas palavras alemãs traduzidas por
declínio e passagem: respectivamente Untergang e Übergang. O sentido é o de que há um
declínio, um “caminho descendente” (Unter-gang), que se constitui como um “caminho de
passagem” (Über-gang), dirigido para algo novo.
80
conjunta. E cada golpe, por mais às cegas que seja dado, assemelha-se
realmente a um golpe de cinzel que grava mais intensamente, a partir do
indeterminado, um qualquer dos traços deste tempo anteriormente
formados.
A medida de carência e de perigo, a destruição dos antigos
vínculos, a abstracção, a especialização e o ritmo de cada actividade
desligam cada vez mais intensamente umas das outras as posições
singulares e alimentam no homem o sentimento de estar perdido numa
densa floresta impenetrável de opiniões, acontecimentos e interesses.
Aquilo que aqui aparece como sistemas, profecias e exigências de fé
assemelha-se ao relampejar de projectores, em que se dividem
fugazmente luz e sombras e que, logo depois, deixa atrás de si uma
insegurança maior, trevas mais profundas. Tudo isto são novos tipos de
divisões a que a consciência submete o ser e através das quais, no
fundo, pouco é mudado. Às vivências espantosas pertence a
familiaridade com os assim chamados espíritos condutores do tempo, e
com a elevada medida em direcção e legalidade que o tempo, apesar
destes espíritos, possui.
Pois, apesar de tudo, na base desta confusão está um
denominador comum cuja essência é certamente muito diferente daquilo
que uma simples vontade de entendimento sonha. A fé no sentido deste
nosso mundo não é apenas uma necessidade que na sua linha não
precisa de enfraquecer a posição de combate, seja ela qual for, mas,
pelo contrário, é a necessidade que reivindica para si as reais forças do
tempo — é também a característica de qualquer atitude que ainda
possua um futuro. Que certamente a segurança, no meio de um aparente
estado puramente dinâmico, no qual não se pode reconhecer nenhum
eixo, é mais difícil de alcançar do que antes, tal é verdade e é, numa era
humana de presunção enganadora e de poses de força, digno de louvor.
A liberdade não pode ser sentida nos pontos de padecimento,
mas nos da actividade, da mudança activa do mundo. Mesmo que os
82
17.
18.
19.
aparece como mau e que traduz a fuga bíblica na relação material entre
exploradores e explorados, mostram-se como incapazes de ver a
liberdade de outro modo que não como um negativo, como a redenção
de quaisquer males que sejam.
Mas nada é mais elucidativo do que, dentro de um mundo no qual
o nome do trabalhador possui o significado de uma marca de dignidade e
o trabalho é concebido como a sua mais íntima necessidade, a liberdade
se apresentar como expressão precisamente desta necessidade, ou, por
outras palavras, do que qualquer reivindicação de liberdade aparecer
como uma reivindicação de trabalho.
Só quando vem à luz a reivindicação de liberdade nesta acepção
se pode falar de um domínio, de uma era do trabalhador. Pois não se
trata de uma nova camada política ou social tomar o poder, mas de uma
nova humanidade, igual a todas as grandes figuras históricas, encher
com pleno sentido o espaço do poder. Daí que tenhamos recusado ver
no trabalhador o representante de um novo estado, de uma nova
sociedade, de uma nova economia, pois ele ou é nada ou é mais, ou
seja, ele é o representante de uma figura peculiar, que age segundo leis
próprias, que segue uma vocação própria e que participa de uma
liberdade particular. Do mesmo modo que a vida cavaleiresca se
manifestava em qualquer pormenor da atitude de vida se basear no
sentido cavaleiresco, assim a vida do trabalhador é ou autónoma,
expressão de si mesma e, assim, domínio, ou não é nada senão um
desejo de participação em direitos poeirentos, na fruição, tornada
insípida, de um tempo que passou.
Para poder conceber isso, tem de se ser capaz de uma outra
concepção do trabalho diferente da até agora. Tem de se saber que,
numa era do trabalhador, se esta usa com justiça o seu nome e não
como todos os partidos hodiernos se caracterizam como partidos de
trabalhadores, nada pode haver que não seja concebido como trabalho.
O trabalho é o ritmo do punho, dos pensamentos, do coração, a vida de
88
20.
81
N. do T.: O termo traduzido aqui por trabalho é Arbeitertum. O trabalho (Arbeitertum), oposto
à burguesia (Bürgertum), é então herdeiro do prussianismo (Preußertum).
90
21.
22.
23.
24.
25.
26.
27.
que elas são cunhadas possui ou não um valor absoluto. Os valores são
postos em relação à figura não qualitativa, mas criadora. Daí que sejam
relativos, certamente no sentido de uma unilateralidade guerreira a partir
da qual é contestada qualquer objecção de outro tipo. Assim, não apenas
é possível, mas também provável, que o nosso estado seja já visto e
avaliado nas anteriores visões dos monges cristãos — como a chegada
do Anticristo. Um tal juízo tanto pode ser válido como pode ser visto, a
partir de uma perspectiva modificada, como não vinculativo ou como
matéria de valorização própria. O mistério que se esconde atrás desta
contradição não pertence ao tema: não pertence às questões da mais
elevada arte da guerra, mas às da teologia.
Estas delimitações permitem conceber que uma figura não possa
ser descrita no sentido habitual. O nosso olhar está aquém do prisma
que quebra o raio colorido em luzes variadas. Vemos a limalha, mas não
vemos o campo magnético cuja realidade determina a sua ordem.
Surgem assim novos homens e, com eles, muda-se a cena, tal como se
movimenta uma encantadora encenação. A eterna luta começa e outras
questões começam a circular, e outras coisas aparecem como
desejáveis. Tudo já lá estava desde sempre e, de um modo decisivo,
tudo é novo. O que é admirável é suspeitar quão mais profundo é o
homem do que o seu fenómeno, que ele nos oferece — quão mais subtil
do que as intenções que ele presume seguir, quão mais significativo do
que os mais ousados sistemas, através dos quais consegue dar
testemunho de si.
Se conseguimos, na descrição de algumas alterações que temos
como significativas na substância humana, onde se fala da figura, deixar
aberto um lugar vazio, uma janela que só pode ser enquadrada através
da linguagem e que tem de ser preenchida pelo leitor através de uma
outra actividade que não a de ler, damos por cumprida esta parte
preparatória da nossa tarefa.
108
II PARTE
109
28.
29.
30.
82
N. do T.: Aasvero é a imagem do judeu errante.
119
haver dúvida. Tal torna-se claro em todo o seu alcance se se olhar para o
papel do próprio homem neste espectáculo — independentemente de se
o reconhecer como o seu actor ou como o seu autor.
31.
83
Como se torna particularmente claro na observação das mais pequenas e das maiores
122
86
N. T.: A palavra traduzida aqui por corporações é Gilden, a qual se refere às corporações ou
aos grémios medievais alemães.
87
Daí que fracassem aquelas medidas através das quais a consciência de trabalho individual,
dentro da fábrica, deve ser fortalecida. A necessidade de um trabalho manual estereotipado
não pode ser justificado em nenhum plano em que o prazer ou o não prazer do indivíduo
desempenhe um papel.
125
vale também para áreas com as quais o esforço individual parece estar
numa relação particular e às quais se refere com predilecção — para a
actividade construtiva.
Assim, não apenas a verdadeira origem das mais importantes
invenções científicas e técnicas está frequentemente no escuro, mas
também se multiplica a duplicidade da autoria de um modo que ameaça
o sentido do direito de patente. Este estado é semelhante a um
entrelaçado em que qualquer nova malha é fiada através de um grande
número de fios. É certo que são mencionados muitos nomes, mas esta
menção possui algo acidental. Assemelha-se ao acender-se
momentâneo de um elo de ligação cujos pressupostos estão no escuro.
Há um prognóstico das descobertas que dão à intervenção individual feliz
um carácter secundário: materiais de química orgânica, nunca ainda
vistos e, no entanto, conhecidos até às suas propriedades, estrelas que
estão calculadas mas ainda não estão descobertas por nenhum
telescópio.
Seria, diga-se de passagem, uma tentativa superficial, transferir o
crédito que aqui o singular parece ter perdido para forças colectivas, tais
como institutos científicos, laboratórios técnicos ou companhias
industrias; mais facilmente se poderia tê-lo como uma dívida que é
reembolsada aos inventores do rebanho, da vela ou da espada. No
entanto, mais importante é ver que o carácter total do trabalho rompe
tanto as fronteiras colectivas como as individuais e que é a esta fonte
que se relaciona qualquer conteúdo produtivo do nosso tempo.
Melhor ainda se deixa adivinhar até que grau do processo de
dissolução do indivíduo já se avançou a partir do modo em que a relação
entre os sexos se começa a alterar. Levanta-se aqui a questão de saber
se uma tal mudança é então em geral possível. Certamente não no
sentido em que esta relação pertence às relações elementares, às
relações originárias, tal como o combate. No entanto, pode-se aqui
observar a mesma troca que dá à guerra, na era do trabalhador, um rosto
126
88
N. T.: Jünger refere-se ao livro de Rousseau Joulie ou la nouvelle Hélouise, de 1761.
89
N. do T.: O Grand e Petit Trianon são villas, situadas nos jardins do Palácio Real de
Versailles.
90
N. do T.: O termo sansculottism refere-se aos movimentos das camadas mais miseráveis na
França revolucionária.
91
N. do T.: Jünger refere-se às poesias de Walt Whitman, no livro intitulado Leaves of Grass,
publicado em 1855.
127
32.
92
N. do T.: Langemarck é uma vila belga onde decorreu um dos mais sangrentos episódios da
Primeira Guerra Mundial.
130
não acabado através dele, e é uma bela visão quando não se desvia
dele, mas deseja procurá-lo no ataque.
33.
93
N. do T.: Nesta expressão, os verbos traduzidos por cair e por ficar fora de uso,
respectivamente fallen e ausfallen, têm uma relação possibilitada pela identidade do radical
cuja conservação é impossível em português.
132
34.
94
N. do T.: Em Agosto de 1914, em Tannenberg, o exército alemão esmagou as tropas do
exército russo, as quais eram muito superiores em número.
95
N. do T. A expressão esquadrilhas de protecção traduz aqui as Schutzstaffeln, mais
conhecidas pela sigla SS.
137
35.
36.
96
N. do T.: A palavra traduzida como equipagem é Besatzung: expressa o conjunto das tropas
que ocupam (besitzen) território inimigo, mas também a guarnição que se une na defesa de
algo ou a equipagem de homens que em conjunto fazem funcionar determinados meios
técnicos. A tradução por equipagem pareceu-nos, no contexto, devida à sua abrangência, a
mais conveniente.
148
37.
38.
97
N. do T.: Título da peça de Beaumarchais, a qual encerra a trilogia composta pelo Barbeiro
157
39.
A DIFERENÇA ENTRE
AS HIERARQUIAS DO TIPO E DO INDIVÍDUO
40.
41.
42.
43.
44.
45.
46.
partir da qual uma catedral gótica pode ser considerada, por um artilheiro
da guerra mundial, como um puro ponto de orientação na zona de
combate.
Onde emergem os símbolos técnicos, o espaço é esvaziado de
todas as forças de outro tipo, do grande e pequeno mundo dos espíritos
que nele se estabeleceu. As variadas tentativas da Igreja de falar a
linguagem da técnica apresentam apenas um meio para a aceleração do
seu declínio, para a possibilitação de um processo abrangente de
secularização. As verdadeiras relações de poder, na Alemanha, ainda
não vieram à superfície porque o domínio aparente da burguesia as
encobre. Aquilo que foi dito da relação do burguês à casta guerreira, vale
também para a sua relação às Igrejas — é estranho a estas potências,
mas, no entanto, está-lhes remetido, o que é indicado por ele estar numa
relação de subvenção a elas. Falta-lhe tanto substância guerreira como
cultual, se se quiser abstrair do culto aparente do progresso.
O trabalhador, o tipo, pelo contrário, surge da zona da antítese
liberal — não se distingue por não ter nenhuma fé, mas por ter uma outra
fé. Está-lhe reservada a redescoberta do grande facto de que a vida e o
culto são idênticos — de um facto que, abstraindo de alguns estreitos
arredores e vales de montanhas, foi perdido pelos homens do nosso
espaço.
Neste sentido, pode-se ousar afirmar que já hoje, no meio dos
círculos de espectadores de um filme ou de uma corrida de automóveis,
se pode observar uma piedade mais profunda do que a que ainda se
consegue perceber sob os púlpitos e diante dos altares. Se tal acontece
já no plano mais básico e mais sombrio, em que o homem é reivindicado
pela nova figura de um modo puramente passivo, pode-se bem suspeitar
que estão iminentes outros jogos, outros sacrifícios, outras emoções. O
papel que a técnica desempenha neste processo pode ser comparado à
posse formal do ensino romano-imperial, o qual estava à disposição dos
primeiros mensageiros cristãos diante dos duques germânicos. Aponta-
184
47.
uma cada vez maior aceleração, com uma evidência cada vez mais
grosseira.
Ainda hoje vemos não apenas grandes partes do povo, mas
mesmo povos inteiros num combate contra estas consequências, sobre
cujo infeliz desfecho não é possível qualquer dúvida. Quem quereria
então negar a sua participação na resistência do campesinato, o qual, no
nosso tempo, conduz a esforços desesperados?
Mas lute-se aqui, tanto quanto se queira, por leis, por medidas,
por direitos de importação, por preços ⎯ a inutilidade deste combate
está em que uma liberdade tal como aqui é reivindicada já não é hoje de
todo possível. O campo que é explorado com máquinas e que é adubado
com o azoto artificial das fábricas, já não é o mesmo campo. Daí que
também não seja verdade que a existência do camponês seja intemporal
e que as grandes mudanças passem, como o vento e as nuvens, sobre a
sua terra. A profundidade da revolução em que estamos englobados
mostra-se precisamente por ela mesma despedaçar os estados
originários.
A famosa diferença entre a cidade e a terra persiste hoje apenas
ainda no espaço romântico; é tão inválida como a diferença entre um
mundo orgânico e mecânico. A liberdade do camponês não é nenhuma
outra que a de qualquer um de nós ⎯ ela está no reconhecimento de
que qualquer outro modo de condução de vida que não o do trabalhador
está para ele fechado. Tal pode-se comprovar em todos os pormenores,
e não apenas nos económicos, e é em torno disto que decorre o combate
que, no essencial, já há muito que está decidido.
Participamos aqui de um dos últimos ataques contra as relações
de estados, que actua ainda mais dolorosamente que a dizimação dos
estratos culturais dos estados pela inflação, e que talvez se deva
sobretudo comparar ao aniquilamento definitivo da velha casta guerreira
pela batalha mecânica. Entretanto, também aqui não há qualquer
regresso, e, em vez de criar parques de protecção da natureza, tem de
189
se procurar realizar uma ajuda planificada que será tanto mais eficaz
quanto mais corresponder ao sentido dos acontecimentos. Trata-se, por
isso, de realizar formas de cultivo, de exploração e de povoamento da
terra nas quais o carácter total do trabalho se expresse.
Tem lugar então, para aquele que se serve dos meios técnicos
peculiares, uma perda de liberdade, um enfraquecimento da sua lei da
vida, que atinge o que é grande e o que é pequeno. O homem que se
deixa fazer uma ligação eléctrica talvez disponha de uma maior
comodidade, mas seguramente dispõe de uma menor independência do
que aquele que queima a sua candeia. Um Estado de camponeses ou
um povo de cor que encomenda máquinas, engenheiros e trabalhadores
especializados, entra numa relação de tributo visível ou invisível que
rebenta como dinamite os seus vínculos habituais.
A “marcha triunfal da técnica” deixa para trás um extenso rasto de
símbolos destruídos. O seu resultado inevitável é a anarquia ⎯ uma
anarquia que despedaça as unidades de vida nos seus átomos. O lado
destruidor deste acontecimento é conhecido. O seu lado positivo está em
a própria técnica ser de origem cultual, em ela dispor de símbolos
peculiares e em atrás dos seus processos se esconder um combate
entre figuras. A sua essência parece de natureza niilista porque o seu
ataque se estende à soma das relações e porque nenhum valor lhe
consegue fazer resistência. Mas é precisamente este facto que tem de
causar perplexidade e que trai que ela, apesar de ela mesma ser sem
valor e aparentemente neutra, está ao serviço.
A aparente contradição existente entre a prontidão sem escolha
para tudo e todos e o seu carácter destruidor dissolve-se quando se a
reconhece no seu significado como linguagem. Esta linguagem surge
atrás da máscara de um racionalismo rigoroso, o qual consegue decidir
inequivocamente, logo à partida, as questões diante das quais está. Ela é
aliás primitiva; os seus sinais e símbolos são claros pela sua mera
190
existência. Nada parece mais eficaz, mais adequado a fins, mais cómodo
do que se servir destes sinais tão compreensíveis, tão lógicos.
Certamente muito mais difícil é reconhecer que aqui não se se
serve de nenhuma lógica em si, mas de uma lógica muito específica, a
qual, na mesma medida em que concede as suas vantagens, apresenta
as suas reivindicações peculiares e sabe dissolver todas as resistências
que não lhe são adequadas. Este ou aquele poder serve-se da técnica;
quer dizer: adequa-se ao carácter de poder que se esconde atrás dos
símbolos técnicos. Fala uma nova linguagem; quer dizer: renuncia a
todos os outros resultados que não àqueles que já estão contidos no
emprego desta linguagem, tal como o resultado na operação aritmética.
Esta linguagem é compreensível para qualquer um; quer dizer: que hoje
só há um modo de poder que em geral pode ser querido. Mas que se
procure submeter as fórmulas técnicas, enquanto puros meios para o fim,
a leis da vida que não lhe são adequadas, isso conduz necessariamente
a extensos estados de anarquia.
Correlativamente, pode-se observar que a anarquia cresce na
mesma medida em que a superfície do mundo ganha em inequivocidade
e em que se dissolve a diferencialidade das forças. Esta anarquia não é
outra coisa que o primeiro nível necessário que conduz a novas
hierarquias. Quanto maior for a esfera que a nova linguagem, enquanto
meio de entendimento aparentemente neutral, se cria, tanto maior será
também o círculo que ela encontrará na sua propriedade autêntica
enquanto linguagem de comando. Quanto mais profundamente estiverem
minados os velhos vínculos, quanto mais intensamente forem nivelados,
quanto mais os átomos estiverem soltos das suas articulações, tanto
menos resistência haverá contra uma construção orgânica do mundo.
Contudo, em relação à possibilidade de um tal domínio, deu-se no nosso
tempo uma situação à qual a história não tem nenhum exemplo para
contrapor.
191
48.
49.
50.
51.
52.
muito claro que a técnica é tão pouco uma questão económica como o
trabalhador pode ser captado por um modo de consideração económico.
Talvez, na visão das paisagens vulcânicas da batalha técnica,
tenha emergido em alguns dos participantes o pensamento de que
tarefas deste tipo são demasiado enormes para se poderem pagar, e
também a má situação das potências vencedoras, o estado universal das
dívidas de guerra, dá disso uma comprovação. O mesmo pensamento
impõe-se na consideração do estado técnico em geral. Por muito e seja
como for que também se melhore e multiplique o arsenal técnico: a
carestia do pão tem de ser a consequência.
Entrámos num processo de mobilização que possui propriedades
devoradoras, que queima os homens e os meios — e isso não mudará
enquanto o processo estiver em curso. Só depois de se alcançar uma
conclusão se pode falar, do mesmo modo que de uma ordem em geral,
também de uma economia ordenada, isto é, de uma relação calculável
entre tarefas e receitas. Só a constância incondicional dos meios,
independentemente de como sejam estes meios, é capaz de reconduzir
a concorrência desmesurada e incalculável a uma concorrência natural,
tal como se pode observar dentro dos reinos naturais ou dentro dos
estados sociais tornados históricos.
Também aqui, novamente, se manifesta a unidade do mundo
orgânico e mecânico; a técnica torna-se orgão e retrocede como poder
autónomo na mesma medida em que ganha em perfeição e, deste modo,
em evidência.
Só a constância dos meios possibilita também a regulamentação
legal da concorrência, tal como acontecia através das ordens das
corporações e do comércio, e tal como já hoje é intencionada por uniões
e monopólios estatais — certamente sem sucesso, pois precisamente os
meios são mutáveis e submetidos a ataques incalculáveis. Numa
constância de meios, aquelas despesas tornar-se-ão notadas como
poupanças que hoje a necessidade da crescente aceleração engole.
208
53
54.
55.
98
N. do T.: Por “presente dos Dánaos” Jünger refere-se ao Cavalo de Tróia, presente no
interior do qual os gregos conseguiram veladamente entrar para dentro das muralhas da
cidade.
217
99
N. do T.: A Batalha de Valmy, ocorrida a 20 de Setembro de 1792, constitui a primeira
grande vitória do exército revolucionário francês frente ao exército prussiano. Em Brest-
Litowsk, a 3 de Março de 1918, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas negociou,
sozinha, um Tratado de Paz com o Império Alemão.
218
56.
100
N. do T.: O termo traduzido aqui por classe guerreira é Kriegertum, que se encontra usada
no sentido da designação do estado ou grupo social que se ocupa da guerra. No mundo em
que se espalha planetariamente o carácter total do trabalho, em que a figura do trabalhador
configura o mundo, os estados diferenciados desaparecem: desaparece o trabalho
(Arbeitertum) como “classe” oposta à burguesia (Bürgertum), e desaparece a classe guerreira
(Kriegertum) como camada social específica que se ocupa da guerra. Mas é bom lembrar que
trabalho e classe guerreira desaparecem como estados na medida em que se tornam totais ou,
o que aqui é o mesmo, universais: cada homem é aqui, enquanto homem, já determinado
como trabalhador, e o trabalhador é já, na medida em que mobiliza o mundo, determinado
como guerreiro.
221
101
N. do T.: Jünger opõe-se aqui explicitamente ao projecto kantiano da Paz Perpétua.
222
57.
nenhuma saída, nenhum andar para o lado e para trás; trata-se antes de
aumentar o ímpeto e a velocidade dos processos nos quais estamos
compreendidos. Pois é bom suspeitar que atrás dos excessos dinâmicos
do tempo está escondido um centro imóvel.
226
58.
presente e futuro pode bem ser aplicável para o tempo astronómico, mas
não para o tempo da vida e do destino. Há um tempo astronómico, mas,
ao mesmo tempo, uma multiplicidade de tempos de vida, cujos ritmos
balançam junto uns dos outros, como o pêndulo de relógios incontáveis.
Assim, também não é um tempo, o tempo, que reivindica o
homem, mas uma variedade de tempos. Pode-se explicar deste modo
que uma geração seja ao mesmo tempo mais velha e mais nova que a
dos pais, ou seja, que pertença a dois tempos diferentes. Depende muito
do olhar que se é capaz de lançar sobre o tempo. Está-se nele como
num tapete e vê-se que os velhos modelos são estendidos até às bordas.
Ou vê-se que o tecido se alia a perfis completamente novos e diferentes.
Ambas as coisas são adequadas, e pode assim acontecer que um e o
mesmo fenómeno apareça tanto como símbolo do fim como do início. Na
esfera da morte, tudo se torna símbolo de morte, e, por seu lado, a morte
é o alimento de que a vida se nutre.
Se a crítica do tempo verifica o declínio completo e o cobre com
símbolos, concedamos-lhe sem contestar esta verificação. No entanto,
este juízo só pode reivindicar validade para o tempo a que a própria
crítica pertence. A sua tarefa é a descrição do imenso processo de morte
de que somos testemunhas. Este morrer refere-se ao mundo burguês e
aos valores que ele administrou. Ele passa para além do mundo burguês
na medida em que o próprio burguês é apenas herdeiro, e não é senão
herdeiro, e que com o seu declínio aparece como consumida uma parte
da herança muito antiga. O corte profundo que ameaça a vida no nosso
tempo não apenas separa duas gerações, não apenas separa dois
séculos, mas anuncia o fim de uniões milenares.
Que o presente não seja capaz de ser produtivo no sentido dos
velhos símbolos, tal não oferece qualquer questão. Mas é uma questão a
de saber se isto é em geral desejável. Os velhos símbolos são a cópia de
uma força cuja imagem originária, cuja figura se desvaneceu. Não são
senão padrões da dignidade que a vida em geral conseguiu alcançar. No
228
59.
60.
Esta ordem é para todos os tempos o direito natural do que é vivo. A sua
realização apresenta-se no nosso tempo como uma das tarefas do
carácter especial de trabalho, que tem não de projectar as perspectivas
decisivas, mas de executá-las.
61.
102
N. do T.: Jünger refere-se à poesia de Rimbaud intitulada Le bateau ivre.
239
62.
âmbito da vida que não possa ser considerado como material também da
arte.
Tal torna-se claro quando se conceber a configuração da
paisagem como a tarefa mais abrangente que se apresenta à vontade
artística. A configuração da paisagem, e mesmo a configuração
planificada da paisagem, pertence aos testemunhos de todos os tempos
a que foi dado um domínio indubitável e incontestável. Os mais
significativos exemplos são oferecidos pelos grandes cultos sacrais dos
deuses e dos mortos, em paisagens consagradas que estão situadas em
torno a rios ou montes sagrados. As lendas da Atlântida que nos
transmitiram, o Nilo e o Ganges, as muralhas fortificadas tibetanas e as
ilhas bem aventuradas do arquipélago trazem-nos à lembrança as
medidas da força de configuração de que a vida é capaz. A Cidade do
México, antes da sua destruição, assemelhava-se a uma pérola num lago
com cujas margens ela estava em ligação através de diques em forma de
estrela, que eram interrompidos pelas aldeias. Destas margens surgia,
de um modo semelhante a um anfiteatro, uma paisagem maravilhosa de
jardim até às fronteiras de gelo. Também maravilhosas eram as
paisagens de parque em que os imperadores chineses transformaram
províncias inteiras. O último, e quase ainda presente, esforço deste tipo é
a referência da paisagem à pessoa absoluta, tal como é mantida nas
residências e jardins de recreio dos príncipes.
Quando estudamos os relatos de viajantes que puderam
contemplar Bagdad, os jardins mouros de Granada, o Tadj-Mahal, os
castelos e lagos da Palermo dos Hohenstaufen ou a paisagem de
parque de Yuen, com os seus cinquenta palácios em completo
resplendor de vida, deparamos sempre de novo com aquele sentimento
tal como se expressa no vedere Napoli...103 , e tal como preenche nos
homens, diante da completude, um prazer quase doloroso. São
testemunhos de uma vontade que deseja criar paraísos terrestres. Do
103
N. do T.: Jünger refere-se ao provérbio napolitano que diz: “ver Nápoles e morrer!”.
244
mesmo modo que uma tal vontade está a obrar a partir de uma unidade
profunda de todas as forças técnicas, sociais e metafísicas, todos eles
são sentidos que ela reivindica de tal modo que mesmo o ar parece
conter a sua radiação. Não há aqui nada isolado, nada que se possa
considerar em e para si, e nada que fosse demasiado grande ou
demasiado pequeno para não estar ao serviço.
A quem possuir uma suspeita desta unidade, desta identidade da
arte com uma suprema força de vida, que preenche completamente o
espaço, não pode escapar o absurdo da nossa empresa de museu,
enquanto olhar abstracto de imagens e monumentos.
63.
64.
natureza, uma relação entre selo e cunho, que está sobreposta à relação
entre causa e efeito do mesmo modo que o carácter “astrológico” de um
homem é imcomparavelmente mais significativo do que a sua qualidade
puramente moral.
Esta hierarquia manifesta-se na medida em que causa e efeito só
se podem conceber na forma cunhada, enquanto estas formas existem
em e para si, independentemente de que explicação se lhes der, de que
perspectivas da sua consideração de possa procurar. Sem dúvida que
aquela intuição muito acima da qual a vaidade das ciências da natureza
acreditava elevar-se, a intuição de que qualquer forma deve a sua origem
a um acto particular de criação104 , é muito mais adequada à realidade
natural que a teoria mecânica do desenvolvimento, a qual rejeitou
durante um século o saber do “desenvolvimento vivo”, saber esse que
compreendeu por desenvolvimento a projecção de arquétipos no espaço
acessível à percepção.
65.
104
Atrás da doutrina das mutações esconde-se, aliás, uma das redescobertas do milagre pela
ciência moderna.
255
105
Que também pode empreender como que “arte popular”.
256
Num tal mundo, o estrangeiro não sente admiração, mas medo, e ainda
hoje não se pode estar sem medo diante da visão nocturna da grande
pirâmide, ou da visão do solitário templo de Segesta no brilho do Sol
siciliano.
De um tal mundo, com a densidade fechada de um anel mágico,
aproxima-se visivelmente também aquele tipo que a figura do trabalhador
representa, e aproxima-se dele tanto mais quanto mais claramente o
singular aparece como tipo. Seguramente que as formações de que o
tipo surge como portador nada têm de comum com o conceito de cultura
que é transmitido; mas habita nelas a unidade incomparável que trai que
está aqui mais que a consciência do trabalho. Este fechamento traz
consigo que os movimentos se realizem de um modo cada vez mais
automático, sob a influência de uma lógica cruel. Além disso, caracteriza-
os que as mais difíceis de captar sejam precisamente as mudanças
essenciais, justamente porque ocorrem de um modo evidente. E, no
entanto, o grande combate é travado em torno de e em cada indivíduo;
espelha-se em qualquer questionamento que o movimente.
O tipo pode então muito bem ser o portador de um desempenho
criador. A dignidade pura e simplesmente diferente deste desempenho
consiste em não ter nada a ver com valorizações individuais. Na renúncia
à individualidade está a chave para espaços cujo conhecimento se
perdeu desde há muito.
Aborde-se mais uma vez, neste ponto, a possibilidade de um erro
que, segundo o exposto até agora, ainda quase não se pode pressupor:
não se trata aqui de uma contraposição no domínio dos valores entre o
singular e a comunidade, tal como hoje aparece como comunidade do
povo, comunidade do obrar ou comunidade de cultura, na dialéctica
conservadora, ou como colectivo, na dialéctica social. A contraposição
essencial não é o singular ou a comunidade, mas é o tipo ou o indivíduo.
106
N. do T.: O lingam é um símbolo fálico na cultura indu.
258
66.
espaço mais duro e mais puro em que as grandes decisões têm de ser
suportadas.
Daí que na Alemanha se encontrará esta classe artística, com
uma segurança mortal, numa estreita ligação com todas aquelas
potências em cujo rosto está escrito um carácter traiçoeiro mais ou
menos escondido. Felizmente, depara-se, entre a nossa juventude, com
um faro crescente para uniões desta espécie; e começa-se a suspeitar
de que, neste espaço, já o emprego do espírito abstracto possui o
estatuto de uma actividade de traição à pátria. Um novo modo de zelo
dominicano tem o descaramento de se lamentar pelo fim das
perseguições aos hereges — mas é preciso apenas ter paciência; tais
perseguições estão já em preparação, e nada se lhes oporá ao caminho
logo que se tiver reconhecido que connosco o facto da heresia se
cumpre na fé no dualismo do mundo e dos seus sistemas. Tal é a
heresia geral que ainda se descobrirá nos mais materiais e mais
espirituais sistemas inimigos, e em que se reconhece sem excepção
todas aquelas forças, muito diferenciadas entre si, cujo mais secreto
ideal, animado poderosamente pela saída da guerra mundial, está no
declínio do império. A esta suprema discrepância correspondem todas
aquelas oposições venenosas de poder e direito, sangue e espírito, ideia
e matéria, amor e sexo, homem e natureza, corpo e alma, espada
secular e espiritual — oposições que pertencem a uma linguagem que
tem de ser reconhecida como língua estrangeira. De tais oposições
alimenta-se hoje, depois de terem perdido a sua primeira força de
alimento, o infinito diálogo dialéctico que acaba no niilismo, na medida
em que tudo se torna pretexto.
Estas oposições tornam-se sem significado diante da figura;
reconhece-se o pensar educado em ele saber ver os universalia na re.
Com efeito, tem de se saber que a entrada no mundo da figura altera
completamente a vida, e não apenas as suas partes; e que, na unidade
de poder e direito, não se trata de sínteses dialécticas, mas de processos
261
67.
263
68.
107
O burguês, que, depois da guerra, não queria de todo ser nacionalista, adoptou entretanto
esta palavra, com grande habilidade, no sentido do conceito burguês de liberdade.
272
69.
70.
um carácter utópico ainda em 1914, mas que são hoje correntes para
qualquer contemporâneo.
Para qualquer olhar que tenha penetrado a confusão que surgiu
pelo desmoronamento das velhas ordens, tem de ser claro que nesta
situação todos os pressupostos do domínio estão dados. Os princípios
niveladores do século XIX lavraram o campo que espera a sua semente.
71.
108
N. do T.: O Palácio de Tuileries é o palácio parisiense habitado por Luís XVI e Maria
Antonieta, depois de forçados a deixarem Versailles. O palácio foi tomado pela populaça de
Paris, em 1792.
283
109
N. do T.: A Fronda consistiu numa série de revoltas ocorridas em França durante a
menoridade do Rei Luís XIV.
110
N. do T.: Os pogromes tiveram a sua origem na Rússia czarista e designam a organização
de massacres em massa, particularmente dirigidos contra os judeus.
111
N. do T.: Jünger refere-se às medidas de proibição do consumo de álcool, em vigor nos
Estados Unidos da América entre 1920 e 1933.
288
contradiz as tarefas do Estado. São forças que têm de ser domadas, mas
cuja existência não pode ser negada. Se isso mesmo assim acontece, o
resultado é uma segurança ilusória, um espaço de direito teórico para
cujas malhas o atoleiro empurra as suas formações de organização.
Qualquer tentativa de limitar a esfera do Estado a uma esfera moral tem
de fracassar, pois o Estado não pertence às grandezas morais. As
posições que dentro do mundo elementar o Estado desocupa são
ocupadas imediatamente por forças diferentes. É assim que foram
conhecidos casos de canibalismo na Alemanha, precisamente no espaço
de tempo em que o ataque moral contra a pena de morte estava no seu
ponto mais alto. O executivo é constante no seu alcance; o que varia são
apenas as potências que o reivindicam.
Dentro dos estados do socialismo tardio, também não se trata de
estados autenticamente estatais; trata-se antes da desagregação do
Estado pela sociedade burguesa, que se determina pelas categorias do
racional e do moral. Como não se trata aqui de leis originárias, mas de
leis do espírito abstracto, cada domínio que se procure apoiar nestas
categorias mostra-se como um domínio aparente, em cujo âmbito se
manifesta logo o carácter utópico da segurança burguesa.
Isto ninguém experimenta melhor que aquelas camadas que
requerem protecção. Assim, a participação na desagregação das velhas
ordens pertenceu aos erros fatais do judaísmo liberal.
72.
73.
112
N. do T.: A expressão aqui traduzida por guia partidário é Parteiführer.
292
74.
áreas decisivas que são sancionadas pela opinião pública numa medida
que já não as torna visíveis para a livre opinião enquanto objectos. As
mudanças que ocorrem na paisagem criam a ilusão de que à disposição
da vista está apenas uma janela, apenas uma única parte.
Também aqui não se pode descurar que, por um lado, ainda hoje
o indivíduo se procura servir dos meios num sentido que não é adequado
à sua essência, e que, por outro lado, a sua crescente perfeição
manifesta esta essência de um modo cada vez mais claro. Não se trata
aqui de meios de fruição — e mesmo onde existe esta aparência, deve-
se reparar que a fruição, a organização dos grandes jogos, se começa a
evidenciar cada vez mais intensamente como uma tarefa pública, ou
seja, como uma função do carácter total do trabalho.
O sentido do processo decisivo deve ser reconhecido como a
mudança dos instrumentos da sociedade em instrumentos de Estado, a
qual serve a espécie activa como portadora do Estado. Num espaço
muito fechado, muito calculável, em que cresce a simultaneidade, a
inequivocidade e a objectividade da vivência, aparece tanto a opinião
pública enquanto grandeza modificada como a humanidade decisiva que
já não possui nenhuma relação à livre opinião porque é assinalada
através de marcas rácicas. A sua actividade, como foi dito, tem também
de se delinear na substância humana no seu conjunto.
Deve-se já hoje suspeitar que aqui se realiza um tipo de
cunhagem que a livre opinião nunca foi capaz de provocar, uma
cunhagem que se estende até à expressão do rosto e ao tom da voz.
303
75.
76.
113
N. do T.: A Pour le mérite era a mais alta distinção por bravura militar do Estado prussiano.
Ernst Jünger foi o último alemão vivo a possuí-la, devido à sua conduta na Primeira Guerra
Mundial.
114
Cujo bilhete de avião o Estado subvenciona.
309
115
Do mesmo modo, também do literato, político e professor burgueses, nos seus exemplares
mais distantes.
116
N. do T.: No ano da publicação de Der Arbeiter, em 1932, o Zuidersee, o Lago de Issel, na
Holanda, foi separado do mar, transformando-se em cinco anos num lago de água doce que
permitiu a irrigação agrícola das regiões vizinhas.
312
77.
catástrofe. Nesta direcção vai a mutabilidade dos meios que torna incerto
qualquer cálculo a longo prazo, seja na medida em que transforma muito
rapidamente as relações dentro das terras, ou na medida em que
confunde entre si as relações económicas e políticas das terras. Diante
destes fenómenos, nada há mais desamparado e mais impotente que a
massa de velho estilo, que é encontrada por eles como por um projéctil
invisível e, agitação após agitação, cai na armadilha.
A crença de que tais estados caem sobre a paisagem, como uma
zona de baixa pressão, é ilusória. A velha ordem carece de força de
resistência, e não se encontra nela o homem de outro modo senão como
sofredor. As massas e as constituições que se concederam são
demasiado inábeis para poderem desencadear movimentos de uma
velocidade e de uma segurança como os que são exigíveis numa
situação perigosa. A massa já não é a grandeza que faz o bom e o mau
tempo, mas ela própria está, sobretudo, exposta à intempérie. Daí que a
linguagem da agitação, com as suas tempestades artificiais, seja sem
significado; tem de ceder a uma linguagem de comando, tal como se
pode ouvir dos comandos da proa dos navios. Tal pressupõe que a
massa seja trazida a um estado no interior do qual habita a flexibilidade
funcional para a execução de tais movimentos — ou seja, que seja
transformada numa construção orgânica. Para as medidas que são aqui
exigíveis, os meios magníficos fornecem, por um lado, o peso que está à
disposição da autoridade real, isto é, da representação legítima da figura
do trabalhador; por outro lado, e isto é de longe mais importante, eles
são, através da nova representação do homem, apoiados pela felicidade,
que já não é vista no desdobramento da existência individual.
Esta diminuição da resistência interna, ou seja, no fundo, da
liberdade burguesa, através da cristalização da situação atomística,
desencadeará forças das quais não se tem ainda hoje nenhuma correcta
representação.
314
117
N. do T.: Na Ilíada de Homero, Aquiles decide-se a reentrar no combate contra os troianos
depois de Heitor ter morto Pátroclo, e de ter arrebatado ao cadáver deste as armas de Aquiles,
que Pátroclo envergara durante o ataque. Para tal, Hefesto necessitara de forjar à pressa
novas armas para o herói grego.
315
pode haver tão pouco falta dele como pode haver falta de água no
Oceano. Daí que também o homem não seja supérfluo, mas o mais
elevado e mais valioso capital.
Tal assinalar-se-á, como se poderia introduzir neste lugar,
também em relação à cifra dos nascimentos. Que esta cifra não pode ser
identificada sem mais com estados de “civilização”, é mostrado, por um
lado, pelo facto de tribos sul-americanas a porem em relação com a
grandeza dos desbastes das florestas, enquanto, por outro lado, numa
paisagem tão cunhada como a chinesa118, não se pode observar
qualquer redução das populações gigantescas. A fonte de riqueza natural
é o homem, e nenhum plano de Estado que não consiga captar esta
fonte pode estar completo. À substituição da constituição pelo plano de
trabalho corresponde um tipo de humanidade que já não se limita em
conceder ao homem direitos constitucionais, mas sabe mudar a sua vida
de um modo autoritário.
Deve-se aqui mencionar particularmente a substituição positiva
de medidas de proibição puramente jurídicas pelo cuidado ao qual o
Estado está obrigado, sobretudo relativamente às crianças nascidas fora
do casamento. Em oposição àquelas fantasias da selecção e da melhoria
da raça, que já desempenham um papel nas mais antigas utopias do
Estado, é aqui possível uma espécie de cultivo que corresponda ao
princípio de que a raça não é senão a última e inequívoca cunhagem da
figura. Nenhuma grandeza está mais vocacionada para ela que o Estado
— enquanto a mais abrangente representação da figura.
A educação de uma espécie humana determinada, cheia de amor
e pensada até ao pormenor, em povoamentos particulares, dentro de
118
Na China, vivencia-se já muitas experiências que ainda estão à nossa frente — a
configuração harmónica das cidades de milhões e de paisagens inteiras, a suprema utilização
da construção agrícola e do jardim, a manufactura típica e de elevado valor, a intensidade e a
ausência de buracos da pequena economia. Existem aqui analogias com as formações
cunhadas e fechadas dentro das quais habita a possibilidade de uma longa duração. Explica-se
assim a relação do rococó com o que é chinês, e é provável e de esperar que também entre
nós seja indicada, a uma sinologia empreendida sob aspectos particulares, um espaço maior
do que até agora.
316
78.
119
Aliás, tem hoje luxo aquele que não está remetido à posse de um automóvel, de um rádio,
de um telefone. Este é o tipo de luxo que dentro de uma democracia de trabalho se tornará
cada vez menos consentido.
320
120
N. do T.: Jünger refere-se à conferência sobre o desarmamento que decorreu em Genebra
no mesmo ano da publicação de Der Arbeiter, em 1932, sob os auspícios da Sociedade das
Nações.
321
121
N. do T.: É de notar que aqui Jünger assinala explicitamente os regimes concretos que se
ligam privilegiadamente ao “carácter total do trabalho”: o regime fascista italiano e o regime
soviético russo.
322
79.
CONCLUSÃO
80.
SINOPSE
Primeira Parte
122
Possui-se uma relação concreta ao homem quando se sente a morte do seu amigo ou do
seu inimigo fulano mais profundamente que a notícia de que, numa inundação do Hoang-Ho,
se afogaram 10.000 homens. A história da humanidade abstracta, pelo contrário, começa com
considerações do tipo: se é menos ético matar um inimigo concreto em Paris ou um mandarim
desconhecido na China, ao premir um botão.
330
123
O grau em que foi bem sucedida a captação de conceitos orgânicos como “figura”, “tipo”,
“construção orgânica”, “total”, pode-se testar na medida em que, com estes conceitos, se pode
proceder segundo a lei do selo e do cunho. O modo de emprego não é então plano, mas
“vertical”. Assim, qualquer grandeza dentro da hierarquia “tem” figura e é, ao mesmo tempo,
expressão da figura. Neste contexto, dá-se também uma elucidação particular da identidade de
poder e representação. Reconhece-se aliás o conceito orgânico em conseguir desdobrar uma
vida própria, ou seja, em conseguir “crescer”.
Todos estes conceitos existem notabene para conceber. Não é deles que se trata. Eles
podem sem mais ser esquecidos ou postos de lado, depois de, enquanto grandezas de
trabalho, terem sido utilizados para a captação de uma determinada realidade que existe
apesar e para além de qualquer conceito. Esta realidade é também completamente para
distinguir da sua descrição; o leitor tem de ver através da descrição como através de um
sistema óptico.
331
Segunda Parte