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Michel Villey Esboço Histórico Sobre o Termo Reponsável
Michel Villey Esboço Histórico Sobre o Termo Reponsável
Michel Villey
RESUMO ABSTRACT
O TEXTO BUSCA IDENTIFICAR O SENTIDO PROPRIAMENTE A FTER A HISTORICAL ANALYSIS OF THE CHANGING FUNCTIONS
JURÍDICO DO TERMO RESPONSÁVEL PARTINDO DO D IREITO OF THE TERM RESPONSIBLE , THE TEXT IDENTIFIES ITS LEGAL
R OMANO . O AUTOR RECONSTRÓI AS MUDANÇAS PELAS QUAIS O USE , ARGUING THAT IT CONTAINS A MORAL CONNOTATION
TERMO PASSOU AO LONGO DA HISTÓRIA COM A FINALIDADE DE T HE AUTHOR CLAIMS THAT THIS MORAL SENSE TENDS TO BE
RESSALTAR O CARÁTER MORAL DA RESPONSABILIDADE MUITAS UNDERESTIMATED BY LAWYERS
VEZES SUBESTIMADO PELOS JURISTAS .
KEYWORDS
PALAVRAS-CHAVE TORTS / HISTORY / THEORY / P RIVATE L AW / MORALS
RESPONSABILIDADE / HISTÓRIA / TEORIA / D IREITO C IVIL / MORAL
1.1 ETIMOLOGIAS
Em nosso caminho (como foi o caso no ano anterior em relação ao termo
“Estado”)3 surge um obstáculo: o termo “responsabilidade”, tão bem-sucedido na
doutrina jurídica contemporânea, não existe em direito romano. Ele não aparece
nas línguas européias antes do fim do século XVIII4 e seu uso efetivo não começa
senão no século seguinte.
Mas cultuo demais a Roma para sucumbir ao obstáculo. Basta que esse neologis-
mo tenha, no direito romano, suas raízes. “Responsável” encontra-se presente, pelo
menos após o século XIII, no direito erudito,5 e se torna corrente sob o Antigo
Regime por intermédio de responsum, derivado de respondere. Começemos por uma
pesquisa etimológica.
“Poucas mulheres podem responder por sua virtude, mesmo quando são
naturalmente fiéis”.
A demanda não é admissível, não será, portanto, respondida. Mas, afinal de con-
tas, como a linguagem possui suas fantasias, o novo adjetivo se prende ao sujeito ao
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qual incumbe ativamente dar uma resposta. O dicionário, novamente, não me ofe-
rece senão exemplos literários:
Pascal:
Voltaire:
1.1.3 OBSERVAÇÕES
De todos os textos anteriormente citados, concluirei que em origem responder ou ser
responsável não implicava de maneira alguma a culpa, ou mesmo o fato do sujeito sub-
metido. Não era por culpa sua que Chrysale cria poder “responder” por casar sua
filha com Clitandre. Da mesma forma, nenhum ato culposo é pressuposto para que
o devedor romano deva “responder aos credores”, ou o possuidor de boa-fé em razão
de certos frutos produzidos pela coisa. Último exemplo, contemporâneo: o senhor
decano Carbonnier é o “responsável” pelo doutorado em sociologia jurídica, o que o
obriga a trabalhar de graça. Não sei por culpa do que demos a ele esse título.
Existe, então, um primeiro grupo de acepções do termo responsável, provenien-
tes da linguagem romana, aparentemente muito distantes da proposta deste seminá-
rio. Se, portanto, chamei a atenção para esse primeiro sentido foi porque ele é apro-
priado às necessidades do direito.
2 SIGNIFICADO MORAL
“De todos esses atos que a verdade me reprova, eu não responderei por um
único sequer”.
uma dívida, um ônus, por um serviço a realizar, mas pela conduta por nós observa-
da ao longo de nossa peregrinação terrena.
Como a matéria da lei moral é “o agir” humano, Deus julga os atos. Seus carac-
teres mais ou menos culpáveis. Deus sonda os rins e o coração. Ele avalia a intenção
subjetiva. É ela que nos faz responsáveis em seu tribunal. O ato culposo se torna a
causa dessa forma de responsabilidade.
No campo da moral pura, a pertinência dessa regra é por demais duvidosa: primei-
ramente, porque ela parece excluir que nós tenhamos de nos preocupar com a infeli-
cidade do próximo desde que não seja por nós produzida; como a fome no Terceiro
Mundo. Depois, pelo que nela há de excessivo: é admissível que “todo fato qualquer
que cause um dano a outrem” obriga-nos à reparação? Passaríamos a vida inteira pagan-
do indenizações. É correto afirmar que César Birotteau,11 para compensar o mal feito
a seus credores, fosse moralmente obrigado a sacrificar sua mulher, sua filha e seu
genro? Não poderia responder: afinal, a moral cristã é uma moral de sacrifício.
O absurdo é tratá-la como uma regra de direito. Assim foi feito. No início de seu
Tratado do Direito da Guerra e da Paz, Grócio, fundador da Escola Moderna do
Direito Natural, em nome dos três axiomas aos quais “se reduziria” o “direito pro-
priamente dito”, prescreve que cada um deve “reparar os danos cometidos por culpa
sua” (Prolegômenos, § 8). Dali a fórmula passa para o Código napoleônico: art. 1.382.
Mas a partida ainda não havia chegado ao seu final. Os redatores do Código Civil
francês tiveram o cuidado de evitar, nesse texto que reproduzia um princípio de
moralidade, o termo responsável. Ele não aparecerá senão na série de textos seguin-
tes, que têm sua origem no Digesto, e visavam, ao contrário, os casos de responsa-
bilidade sem culpa (ou, como diz o art. 1.383, sem culpa voluntária). A fortuna da
expressão de responsabilidade civil se deu somente pelo aporte da doutrina. A dou-
trina do século XIX, que elaborou a teoria da responsabilidade civil, fundou-a sobre
o princípio do art. 1.382. Chave mestra que abriria todas as portas, sobre a qual
ordenar-se-iam todas as soluções. Essa parte do curso de direito privado que ensi-
namos a nossos estudantes, sob o nome de “teoria geral da responsabilidade civil”,
posta inteiramente sob a égide da responsabilidade moral, é um produto acadêmico,
produto de um transbordamento do espírito do sistema, elaborado sobre o modelo
das “construções” da Escola histórica alemã, com influências da filosofia kantiana.
2.2.4 RESULTADOS
Podemos, por fim, notar que essa construção teórica, confrontada com as necessidades
dos juízes, revela-se falsa. Sem dúvida, sedutora por um lado, assemelhada aos atrati-
vos do liberalismo. Seria o paraíso da liberdade individual se, como haviam sonhado
esses autores, ninguém pudesse ser responsável a não ser por sua culpa ou fato seu.
Isso foi um fracasso. Repugna-nos reconhecer: a maioria dos juristas, conserva-
dores por profissão e ciosos por respeitar o senso comum do seu grupo, mantém o
princípio. Mas o princípio, como todos sabem, não corresponde às aplicações.
A causa não está unicamente, como querem os sociólogos, no progresso da indús-
tria. Jamais essa famosa máxima do art. 1.382 chegou a dar conta das soluções efeti-
vas da jurisprudência. E, hoje, estamos diante de uma enxurrada de casos de responsa-
bilidade sem culpa. Eis os patrões responsáveis não por culpa sua nem mesmo por fato
seu, mas pelos danos provocados ou sofridos por seus empregados, como o pai de
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família o era em Roma, por seus filhos e servos. O proprietário de um automóvel, res-
ponsável pelo fato de quem o furtou, como o era o romano por seus burros de carga.
E responsáveis, acima de tudo, são as entidades coletivas, empresárias, previdenciárias,
ou de seguro obrigatório. O Estado francês é responsável pelos danos causados por
guerras, greves, inundações, secas. Ele os reparte entre os contribuintes, as infelicida-
des dos particulares devem ser suportadas solidariamente pelo grupo, e redistribuídas.
Certamente, pode ser legítimo distribuir menos aos culpados, e ninguém pensa em
eliminar da ciência jurídica toda consideração acerca da culpa. Estimo impossível que-
brar toda ligação entre o direito penal e a moral do Decálogo, e creio ser correto que
os viticultores do Midi, que hoje saqueiam os caminhões e entrepostos italianos,
suportem os danos. Mas a culpa não é senão um dos fatores dentre os quais se compõe
o problema do direito. Entram em consideração (e tampouco a título exclusivo) os
direitos ou os interesses da vítima: por exemplo, não é suficiente indenizar as famílias
dos mortos na estrada com a “responsabilidade” de um motorista imprudente em fuga
ou de um insolvente. Nossa legislação teve que realizar um gesto em favor das vítimas.
Um regime adequado teria os olhos postos na quantidade e qualidade do dano.
Se Brigitte Bardot sofresse um acidente, não se obrigaria o ciclista a pagar a soma
fabulosa que representaria a reparação integral; se fosse possível, in tanta lite.
Nós juristas não podemos nos obnubilar por apenas um dos lados da questão, o
fato de um dos atores do drama. Mesmo em direito penal a obsessão da culpabilida-
de moral, como mostraram muitos dos sociólogos, extenuaria a repressão. O papel
do juiz é o de pôr na balança também o interesse das vítimas, dos terceiros e do
povo... O direito procura uma divisão justa: aquela que, indo de encontro à moral
moderna, leve em consideração os diversos fatores da causa.
moderna (na nossa cultura a moral possui maior destaque do que o direito romano).
Foi dito, neste seminário, que um organismo coletivo não pode ser responsável.
Somente os animais racionais, tendo atingido a idade da razão, gozando de todas as
suas faculdades, poderão ser tidos por “responsáveis”. No entanto, se um aluno bate
a cabeça jogando bola no pátio do colégio aqui do lado, o Ministério será declarado
“responsável”, mesmo que esteja desprovido de intenção... Isso é incoerente.
Se estima-se oportuno falar uma língua coerente, o sentido antigo parece-nos
mais conveniente às necessidades específicas do direito do que o uso dado pelos
moralistas. A moral não diz tudo. Ela retém em seus conceitos apenas um aspecto
unilateral dos fatos da vida cotidiana. Ela não observa senão a conduta do indivíduo,
concentrando-se nas intenções subjetivas. Já ao jurista convém olhar o fenômeno de
forma mais ampla, visando captar as relações entre uma pluralidade de sujeitos: o
autor de um delito, a vítima, e o ambiente social. Os termos do direito têm por fun-
ção expressar essa visão de conjunto.
Compreende-se, assim, que uma pesquisa puramente semântica não é, definiti-
vamente, inútil. Uma linguagem imprópria atrapalha-nos. O sentido do termo res-
ponsável que os modernos foram buscar no discurso da teologia ou da filosofia moral,
ocupa, na ciência do direito, um espaço perturbador e dissimulador do qual fazemos
muito uso. Ele orientou os juristas para soluções insustentáveis, obrigando, em segui-
da, para salvar as boas soluções jurídicas, à multiplicação de ficções (denominar de
culpa aquilo que não é culpa), levando a um labirinto de discussões intermináveis
acerca de um vocábulo equívoco.
Se tivessem os juristas mantido o sentido antigo, propriamente jurídico, do
termo, teriam economizado uma boa parte daquelas ficções e controvérsias.Teriam,
ao menos, ganhado tempo. Eis a contribuição da história da filosofia do direito. Em
verdade, pouco, pois as chances de que alguém consiga alterar a linguagem de sua
época não são lá muito grandes.
NOTAS
1 Tradução de Esquisse historique sur le mot “responsable”, M. Villey, in Archives de Philosophie du Droit, Paris,
t. 22, 1977.
3 Nota do tradutor: Michel Villey se refere ao artigo Genèse et déclin de l’Etat publicado na revista Archives de
Philosophie du Droit, Paris: Dalloz-Sirey, n. 21, 1976.
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4 Cf. Note sur la date et le sens de l’apparition du mot “responsabilité” [Nota sobre a data e o sentido do surgi-
mento do termo “responsabilidade”], Archives de Philosophie du Droit, n. 22, p. 60, 1977.
5 Nota do tradutor: A expressão “direito erudito” é utilizada na língua portuguesa para indicar o conjunto de
textos – comentários ao Corpus iuris civilis, pareceres jurídicos – produzido pelo mos italicus iuris docendi (o método ita-
liano de ensino jurídico) desenvolvido pelos denominados “Comentadores”, ou “Pós-Glosadores”, cujo ápice ocorre
entre os séculos XIV e XV (nesse sentido, ver a versão portuguesa da obra de R. C. van Caenegem, Introduction histori-
que au droit privé [Uma introdução histórica ao direito privado, tradução de Carlos Eduardo Lima Machado, São Paulo:
Martins Fontes, 2000, p. 47, 66, 75 e 76]. O autor, porém, parece utilizar essa expressão para indicar a obra dos juris-
tas franceses, da segunda metade do século XIII, precursores dos comentadores italianos, ou seja, a denominada “Escola
de Orléans”, cujos maiores representantes são Jacques de Ravigny (Jacobus de Ravanis) e Pierre de Belleperche (Petrus
de Bellapertica) [Sobre o assunto ver: R. C. van Caenegem, op. cit., p. 77, e Franz Wieacker, História do direito privado
moderno, 2. ed., Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p. 60-61].
6 Nota do tradutor: Em português: As eruditas, Molière, tradução de Millôr Fernandes, Porto Alegre: LP&M,
2003; e As sabichonas, Molière, São Paulo: Ediouro, [s.d.].
7 Nota do tradutor: Na língua portuguesa utiliza-se palavra diversa de “responsável” para denotar demanda pas-
sível de resposta: “respondível” (Dicionário Houaiss da língua portuguesa, Rio de Janeiro: Objetiva, 2004, p. 2440).
8 Nota do tradutor: Villey se refere ao artigo de Jacques Henriot, intitulado Note sur la date et le sens de
l’apparition du mot “responsabilité” [Nota sobre a data e o sentido do surgimento do termo “responsabilidade”], publi-
cado na mesma revista (Archives de Philosophie du Droit, n. 22, 1977).
9 Nota do tradutor: Em português: Escola de mulheres, Molière, tradução de Millôr Fernandes, Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1996.
10 Em realidade o trecho referido por Villey não se encontra na obra referida, mas sim em O Tartufo ou o impostor,
Dorine, ato II, cena II (edição em português: O Tartufo ou o impostor, Martin Claret, 2003).
11 Nota do tradutor: César Birotteau é o personagem principal do romance Grandeur et décadence de César
Birotteau, escrito em 1837 por Honoré de Balzac e presente na La comédie humaine: études de moeurs – Scènes de la vie
parisienne (edição em português: A comédia humana,Rio de Janeiro: Globo, , 1995. v. 8 – Cenas da vida parisiense,). A
trama se passa no período da Restauração, mais especificamente entre 1819 e 1823, e narra os esforços de um perfu-
mista parisiense para saldar suas dívidas com credores.
12 Nota do tradutor: Refere-se Villey à proposta, apresentada por André Tunc, em 1966, de reforma do direito
francês de responsabilidade civil, em matéria de acidentes de veículos automotores. Tal projeto, cuja finalidade era
melhorar a situação das vítimas, defendia o abandono da noção de culpa como pressuposto da configuração do direito
à indenização, assim como a eliminação do caso fortuito e da culpa da vítima como excludentes da responsabilidade
daquele que conduz e/ou guarda um veículo. A partir desse e de outros projetos (como o apresentado também por
André Tunc, em 1981), e sob o influxo da decisão do caso Desmares (julgado em 21.07.1982 pela 2.ª Câmara Civil da
Corte de Cassação Francesa), determinando que a culpa da vítima não era um fator de redução do valor da indenização
devida pelo réu, somente produzindo efeitos quando se caracterizasse como causa exclusiva do dano, o legislador fran-
cês editou a “Lei Badinter” (Lei 85.678, de 05.07.1985) com o objetivo de “melhorar a situação das vítimas de aciden-
tes de circulação e acelerar os processos de indenização”. Essa lei impõe ao condutor e/ou ao guardião do veículo
“implicado” no acidente o dever de indenizar as vítimas, servindo a culpa apenas como excludente, nos caso de ato
voluntário e exclusivo da vítima (arts. 1.º a 3.º).
Michel Villey