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“Hades sombrio”:

A simbologia e as características do deus ctônico e do submundo nos


poemas homéricos

Carina Sucro Moraes Galvão Carvalho *

Este trabalho pretende investigar o papel de Hades e o mundo inferior e dos mortos nos
poemas homéricos. Partiremos da hipótese de que os poemas, apesar das suas incoerências,
retratam uma sociedade real, em particular, o período arcaico grego.
Os poemas homéricos apresentam um quadro de ideias e valores morais de uma cultura
guerreira, cujos temas fundamentais são a coragem e a honra. Todas as ações, juízos e a própria
vida têm por função atingir a timé (honra). Apesar de Aquiles e Heitor se lamentarem de seu
destino - uma vida breve - se conformam por terem tido uma morte honrosa. Era no campo de
batalha que as virtudes heroicas se revelavam. Uma morte em combate poderia levar à gloria,
(kleos) que tornaria o herói imortal. Dessa forma,

os valores fundamentais da sociedade estavam antecipadamente dados,


predeterminados, assim como estavam fixados, para cada homem, o seu lugar
na sociedade, os privilégios e os deveres que decorriam do seu estatuto
(FINLEY, 1982, p. 110).

O mundo dos poemas era essencialmente rural e pastoril. Os grandes heróis eram os
senhores de grandes propriedades fundiárias chamadas oikos - a grande casa ou palácio, que
integrava um largo setor da população, produzindo e consumindo tudo que precisavam,
complementado pelos produtos do saque e da reciprocidade entre os reis. Do oikos, provinham
não somente a satisfação das necessidades materiais, mas também as normas e os valores éticos,
as ocupações, as obrigações e as responsabilidades, os vínculos sociais e as relações com os
deuses (FINLEY, 1982, p. 55).
A sociedade homérica era fortemente marcada por uma separação social entre os nobres
hereditários (aristoi), que possuíam a maior parte das riquezas, e o restante da população,
formada por homens livres – demioergoi – e os escravos. Portanto, percebe-se uma rígida
hierarquia social, assegurada pelo estado econômico. Os trabalhadores sem vínculos com o
oikos (thetas) eram os que estavam na posição mais inferior da pirâmide social, pois nada
possuíam, trabalhavam por contrato e mendigavam o que não podiam furtar. Além disso,
Homero mostra, por meio de um exemplo dos deuses, que os homens livres também poderiam
ser empregados nos mesmos trabalhos desenvolvidos por servos, quando o deus Poseidon, no
canto XXI, da Ilíada, nos versos 441-445, trabalhou junto com Apolo na casa do nobre
Laomedonte por um ano, por um salário previamente combinado, como jornaleiros e construtor
de muralhas e cuidou do gado, espelhando a realidade social no mundo dos homens, estendida
aos deuses.
O poder real fundamentava-se na posse de terras e no gado, além dos presentes
(dádivas) recebidos do povo, dos aristocratas estrangeiros e o espólio de guerra. Além disso,
são chefes militares, comandantes supremos em tempo de guerra, sendo a força (iphi) um
atributo fundamental do rei. Um rei fraco, sem força e muito velho, não podia governar, a
exemplo de Laertes, pai de Odisseu. A sucessão, em geral, se dava pela hereditariedade e a
situação de Penélope foge a essa regra geral. Alguns aspectos evocam a emergência do poder
político da cidade-estado, nascente nos poemas homéricos. Um deles é o sentido da justiça
(diké), uma distinção da aristocracia, como por exemplo, no canto XVI da Ilíada, em que o
poeta menciona que os reis devem fazer triunfar a justiça, atribuída a eles por Zeus, e aqueles,
que pronunciam sentenças retorcidas, são os maus reis (HOMERO, 2013, canto XVI, vv. 385).
Não obstante, no canto XVIII, versos 497-508, da Ilíada, Hefesto apresenta uma imagem de
um julgamento no escudo de Aquiles, no qual os habitantes do demos tomam parte do
julgamento, mas o poder de decisão é dos basileis (nobres).
Outro aspecto na emergência política são as assembleias e a presença de um conselho.
Apesar dos aristocratas governarem como grupo, apoiados nas alianças concretizadas pelo
casamento e relações de hospitalidade entre aristocratas de diferentes comunidades (FINLEY,
1982, p. 99), eles não abriam mão de outros dispositivos para reforçar seu poder, a exemplo do
conselho de anciãos e da assembleia.
O mundo de Ulisses era pequeno em população, com uma clara distinção entre o urbano
e o rural, além do público e do privado. O espaço urbano, em geral fortificado, comporta: as
casas de habitação, de que o palácio do rei apenas se distingue pela sua magnificência, um
santuário, a ágora, a grande praça, onde as assembleias do demos se realizam, e os portos. No
entorno deste espaço urbano, estavam as terras de cultura, divididas em lotes.
Toda a narrativa mística presente nos poemas trata de guerras, aventuras, querelas
familiares, nascimentos, casamentos e mortes e, como a imaginação mística implica um ato de
crença, podemos inferir que esses temas são produtos das relações sociais do período em que
Homero viveu. Assim, nossa segunda hipótese é de que a construção mental do mundo divino
é uma projeção dos valores dessa sociedade, retratando inclusive as novidades do período
arcaico em relação aos períodos anteriores em relação à percepção da morte. O mundo divino
apresentado por Homero espelha uma série de homologias no tocante à estrutura espacial e
social do mundo dos homens.
O conjunto da sociedade heroica encontrava-se no mundo divino, um exemplo maior,
Olimpo. O pensamento religioso grego distingue no cosmos tipos diferentes de potências,
formas múltiplas de poder, cuja ação não se limita aos domínios da natureza, da sociedade, do
humano e do sobrenatural, mas a todos os planos do real. Daí o panteão divino ordenar e
conceituar o universo, distinguindo tipos múltiplos de poder e de potência. Dessa forma, o
universo aparece para o homem grego como uma trama real, com diversas potências sagradas
e o cosmo divino dilacerado por tensões, contradições e conflitos que, no entanto, formava uma
unidade mantida sobre a mesma lei. Como no universo físico, a unidade do cosmo divino é feita
de uma harmonia entre potências contrárias, que podem se confrontar, igualmente aos acordos
de paz entre grupos concorrentes na cidade. Assim, é importante ressaltar que os deuses fazem
parte do mesmo universo que os homens, porém ocupam espaços diferentes, com uma
organização hierárquica que espelha a sociedade humana tal como aparece em Homero
(VERNANT, 1999, p. 91-99).
Neste sentido, apesar de toda ação e ideia humana aparecerem como consequência direta
da intervenção divina, as condutas morais dos homens não se encontram no âmbito do poder
divino, pois, na maior parte dos casos, os deuses se contentam em proteger seus heróis,
deixando os homens comuns à própria sorte, que os temem (FINLEY, 1982, p. 124-132;
MOSSÉ, 1989, p. 54). Por mais que as suas aparências físicas e comportamentais sejam
idênticas aos dos humanos, daí seu caráter antropomorfo, os deuses têm a consciência de que a
sua força, sua vitalidade inesgotável, seu aión, não cessará de se estender através dos tempos
em uma permanente juventude e imortalidade que os separa dos homens, contudo não são
eternos, nem todo-poderosos e nem oniscientes.
No canto XV da Ilíada, Poseidon, ao se mostrar irado com Zeus, por este ordenar que
aquele deixe de intervir na batalha entre aqueus e troianos, revela a partilha de funções e poderes
do mundo divino entre Zeus - que reina sobre o éter, Poseidon - que reina sobre os mares, e
Hades - monarca do submundo. Ele ressalta que tal divisão se deu por meio do sorteio e que
nenhum deles tem mais poder que os outros, além de lembrar que há um domínio comum de
poder entre eles, a terra e o Olimpo. Portanto, Poseidon não aceita ser inferiorizado e tratado
como um pária (HOMERO, 2013, canto XV, vv. 184-193). De acordo com Vidal-Naquet, as
ideias de sorteio, domínios comuns e exclusão nesta divisão remetem à pólis grega, pois o
sorteio das funções entre os três pode ser comparado com a forma de escolha do presidente das
assembleias. Os domínios comuns do mundo divino também podem ser comparados com
espaços comuns da pólis, como a ágora, já presente em Homero, e a exclusão nos recorda que
certas pessoas, como, por exemplo, os metecos (estrangeiros domiciliados) que não têm direito
ao voto e à propriedade (VIDAL-NAQUET, 2002, p. 66-68).
A “partilha” do mundo, apresentada na Ilíada, canto XV, no início do verso 184, jamais
foi modificada pelo imaginário helênico. Esta partilha também realça os domínios de poder de
cada deus. Zeus ocupa uma posição sem paralelo, ele se situa entre os deuses e em todo o
universo, no cume da hierarquia, detém o comando supremo e dispõe de uma força superior,
permitindo-lhe um total domínio sobre os outros. A potência de Zeus não está implicada apenas
nas realidades naturais. Ela se exerce também nas atividades humanas e nas relações sociais.
Zeus está presente na pessoa do rei, Zeùs Basileús, no cetro do rei, cujas decisões executórias
determina, em todas as circunstâncias, onde o soberano humano exerce um poder que lhe vem
dos deuses e que só é eficaz por meio das potencias divinas. Zeus exerce seu poder em
condições análogas às do rei, cujo estatuto é superior ao de seus pares, mas cujo reino é solidário
a todo um conjunto de prerrogativas e honras (VERNANT, 1999, p. 100).
Em relação ao papel de Hades nos poemas, iremos acompanhar as reflexões de Leandro
Barbosa (2014) e Arthur Fairbanks (1900), que nos guiaram para o cotejamento de informações
nos poemas, para comprovação ou refutação de algumas hipóteses de trabalho sobre o ctonismo
nos épicos.
Para esses autores, Hades se insere no grupo de deuses chamados ctônicos, isto é,
divindades relacionadas com a terra. A literatura grega difere estas divindades das chamadas
olímpicas, associadas ao celeste e as perspectivas de luz. Os heróis, em sua maioria, identificam
se com a essência olímpica. O termo ctonismo, além de se referir aos deuses telúricos, que se
ligam à terra, também designa deuses relacionados com o mundo dos mortos, o mundo inferior,
abaixo da terra, associados às pessoas do ambiente da chóra, locais para além das muralhas, do
cotidiano rural, afastadas da ásty, perímetro urbano da pólis. Esta proximidade dos deuses
ctônicos com a população da chóra fez com que estes deuses permanecessem misteriosos e
herméticos. As deidades tratadas como ctônicas, em geral na literatura grega, fazem parte de
um mundo de destruição, de castigos e sofrimentos, ou ainda divindades provedoras, que
auxiliam os camponeses na continuidade da vida, ou seja, no florescimento de alimentos, que
vêm debaixo da terra.
Nos poemas homéricos, as deidades do inframundo, do ambiente dos mortos, como
Hades, Perséfone, Erínias, Tânato, Hermes psicopompo são temidas, mas também são
respeitadas por todo o seu poder e pelas suas funções, vitais para a continuidade da espécie
(BARBOSA, 2014, p. 32). Os deuses ctônicos governam as almas, mas não são deuses dos
mortos, porque só os vivos podem adorar os deuses. Um traço da religiosidade grega é a
distinção entre os deuses dos mortos, e que são imortais, e os mortos, outrora homens mortais.
Os homens invocam os deuses ctônicos quando as almas dos mortos são veneradas, para ajudar
se vingar de ofensas contra os mortos, ou quando as almas são evocadas por ritos mágicos
(FAIRBANK, 1900, p. 246).
A menção a Hades nos poemas é majoritariamente espacial, entretanto alguns poucos
momentos retratam sua personalidade relacionada com o espaço do reino divino a ele atribuído,
o governo do submundo, daí sua relação com o termo invisível e severo. Esta questão do
invisível, do não visto, faz alusão também à própria ideia do submundo não ser visto pelos
homens, ao contrário dos outros mundos como terra, mar e Olimpo. Edoneu – ou Aidoneus é
um dos vários homônimos do deus, também significa “invisível (HOMERO, 2013, canto XX,
v. 61). Hades é um deus implacável, que não perdoava os que fossem condenados a uma vida
de sofrimento, salvo raríssimas exceções, jamais deixaria alguém sair do mundo dos mortos.
Provavelmente por ser temido e implacável, além da sua relação com a morte, Hades não é
merecedor nos poemas de rituais e edifícios sagrados em sua honra, sendo a exceção o ritual
feito por Ulisses para adentrar no mundo dos mortos, com objetivo de obter informações da
alma do adivinho Tirésias sobre como poderia chegar em Ítaca (BARBOSA, 2014, p. 72-76).
A morte é abstrata, não se pode pegá-la. Já o deus dos mortos é concreto, pois aparece
no momento que Poseidon faz o campo de batalha tremer e Hades se preocupa com o seu reino
ficar visível ao mundo dos vivos. Em outro momento, Dione o cita na história de Héracles pois
este foi atingido pelo o herói (HOMERO, 2013, canto V, vv. 395-402; canto XX, vv. 60-66).
Percebe-se que, em todas as referências ao deus, ele sempre é associado aos mortos e nunca à
morte. Isto porque a morte possuía uma personificação própria: Tânato.
Todos os que morrem, independentes dos seus atos, vão para o mundo dos mortos.
Apenas os deuses estão excluídos deste destino (BARBOSA, 2014, p. 68). Entretanto, no
mundo de Hades, localizado abaixo do Oceano, e sem relação com a terra firme (HOMERO,
2011, canto XI, vv. 20-23), há lugares mais terríveis e menos terríveis, além de um lugar
maravilhoso, reservado aos heróis, os Asfódelos.
Na caracterização deste reino, vemos a presença de rios, palácio, atividade de caça e um
clima muito quente. Essas imagens remetem à realidade geográfica do mundo grego, apesar do
“reino de Hades” ser caracterizado como um mundo de infortúnios. A menção ao palácio onde
Hades habita reflete a ideia de um mundo hierarquizado, no qual a realeza constituía o poder
máximo da pólis, em conformidade com mundo de Homero, caracterizado pelo palácio e
algumas edificações em torno dele, cercado pela muralha e por uma zona rural, onde habitava
a maioria da população.
Apesar de nunca ter sido visto, dominado e apreciado, o submundo era fruto de diversas
conjecturas imagéticas por parte do homem, o reino que ninguém na condição de mortal
conhecia em sua essência. Entretanto, algumas características do submundo, realçadas nos
poemas, estão em conformidade com a geografia da Grécia antiga, a exemplo da presença de
rios, destacados pelo poeta, como Aqueronte e seu afluente Flegetonte, além do Estigía e seu
afluente Cócito (HOMERO, 2011, canto X, vv. 512-515). Outra característica do submundo
são as altas temperaturas, contudo, dependendo do lugar, observa-se um clima frio e mesmo
ameno, como nos Campos Elísios. A mansão de Hades é adjetivada de bolorenta, uma menção
ao clima úmido.
Uma importante atividade econômica no mundo grego, a caça, é retratada no mundo de
Hades por Odisseu que afirma ter visto o gigante Órion no prado de Asfódelo com animais que
ele mesmo matara (HOMERO, 2011, canto XI, vv. 572-575).
Na Odisseia, no canto XI, é retratada uma cena de julgamento em que os atos dos mortos
em vida são julgados e o veredito implica na ida das almas para espaços diferentes no Hades.
Neste julgamento, Minos aparece como um dos juízes dos mortos no palácio de Hades, local
onde se julgava os mortos. A ideia de um julgamento dos mortos advém do mundo cretense,
pela relação de Minos com Creta, e provavelmente pela influência da religião egípcia. Assim
como Hades, Minos carrega um cetro como símbolo da soberania e, como no mundo dos heróis,
é papel dos soberanos o poder da justiça, aqui o poder de julgar os atos dos mortos em vida
(BARBOSA, 2014, p. 183; HOMERO, 2011, canto XI, vv. 570-575).
O mundo dos mortos não é um espaço uniforme, os heróis, por exemplo, habitam as
pradarias de Asfódelos, um espaço de menos sofrimento, a exemplo de Ájax, Aquiles e
Agamemnon, (HOMERO, 2011, canto XXIV, vv. 11-18). Os Campos Elísios também
aparecem na Odisseia como um lugar suave e agradável, contudo Odisseu relata, em sua
passagem pelo mundo dos mortos, o sofrimento de Títio, Tântalo e Sísifo que estão sendo
punidos. De acordo com Leandro Barbosa (2014), há uma relação entre o julgamento e o local
para onde vão os mortos, já que desde o período arcaico, cria-se a ideia de que os cidadãos que
vivessem de acordo com as regras morais, religiosas e políticas, estabelecidas pela cidade-
Estado, provavelmente iriam para um lugar mais agradável no mundo de Hades. Homero
também fala de outro espaço no mundo de Hades, o Tártaro, um espaço que está nas
profundezas do mundo de Hades, no qual habitam os deuses titãs, como Crono, derrotados por
Zeus na luta pela soberania do mundo divino e enviados e aprisionados para este local
(HOMERO, 2013, canto VIII, vv. 4-14; 477-481; canto XIV, vv. 277-279).
Todas as almas vão para o mundo de Hades, contudo em duas passagens dos poemas,
Pátroclo, na Ilíada, e Elpenor, na Odisseia, destacam a necessidade de rituais fúnebres para
garantir as suas respectivas entradas na mansão de Hades, junto com as almas que já obtiveram
os seus devidos rituais. Aqueles que não receberam tais rituais se encontram em um espaço do
Hades, separado pelo Rio Aqueronte, em grande sofrimento. Pátroclo, no canto XXIII, da
Ilíada, por meio de um sonho de Aquiles, relata o seu sofrimento por não conseguir entrar no
Palácio e se queixa junto a Aquiles por este não ter realizado o ritual fúnebre necessário e não
quer continuar lhe atormentando, da mesma forma Elpenor implora a Ulisses que após seu
retorno do Hades ao mundo dos vivos, também ele realize os rituais fúnebres, para que ele não
se torne uma maldição dos deuses contra Ulisses (HOMERO, 2011, canto XI, vv. 55-78). Os
dois moribundos pedem que os heróis os libertem por meios de rituais fúnebres com cremação
em uma pira, sendo suas cinzas recolhidas e depositadas em uma urna funerária para posterior
enterramento, um costume do período arcaico destinado aos adultos (BARBOSA, 2014, p. 91).
O fogo é percebido como um elemento de purificação, necessário para cauterizar os
costumes terrenos (BARBOSA, 2014, p. 91-97). A cremação rompe com uma crença pré-
homérica de ligação dos vivos com os mortos e retrata uma nova mentalidade em que os vivos
eliminam os mortos de seu mundo. Na Ilíada, Homero afirma que só depois da cremação, o
espírito do morto pode ter acolhido no reino de Hades e se desligar deste mundo, deixando os
vivos em paz (HOMERO, 2013, canto XXIII, vv. 71). A cremação separa de forma imediata o
espírito do morto do espaço da vida, pois aniquila seu corpo, uma prática feita em honra do
morto, pois é seu desejo ir embora desse mundo, romper a ligação imediata com mundo dos
vivos e situar-se em outro domínio existencial. Portanto, o morto deve ficar permanentemente
no outro mundo e nunca mais voltar, pois seus elos foram cortados para sempre (OTTO, 2005,
p. 125-126).
No diálogo de Odisseu com sua mãe, Anticleia, no mundo dos mortos, ela deixa claro
que o fogo da cremação lhe privou de todo vigor dos mortais. As almas que vagueiam no mundo
dos mortos, além de terem perdido sua ligação com o mundo dos vivos, uma novidade na
cosmovisão homérica, também têm uma forma abstrata, pois Odisseu não consegue abraçar sua
mãe e ela se lamenta de não possuir mais tendões para demonstrar afeto (BARBOSA, 2014, p.
96; HOMERO, 2011, canto XI, vv. 204-222). Aquiles, no canto XI, na Odisseia, também se
lamenta junto a Ulisses pela perda de vigor e força, valores fundamentais no mundo dos heróis.
Além disso, reclama de sua condição, pior que a de um teta, trabalhador agrícola sem nenhum
vínculo com oikos, e excluído da chóra (HOMERO, 2011, canto XI, vv. 473-491).
A sombra dos mortos pode despertar por alguns instantes para a vida, como no caso da
mãe de Odisseu. Entretanto isso se dá por um momento muito rápido, pois em poucos minutos,
ela voltará à sua antiga condição de impotência, sem consciência e sem rumo. A forma que o
morto se encontra no Hades corresponde ao “ter sido”, já que toda vitalidade e consciência ficou
no mundo dos vivos, apesar dele continuar a existir de forma eterna. A grande novidade da
cosmovisão homérica, a perda dos vínculos do morto com o mundo dos vivos, é complementada
com o confronto do “ser”, sinônimo de vida, substância e presente, e “ter sido” relacionado com
a morte, abstração e o passado, daí as lamúrias, lamentações e melancolia da mãe de Odisseu e
do próprio Aquiles, que acorrentados pelo poder do mundo subterrâneo, privados de
consciência, perdem a noção do tempo, que não existe mais no mundo do Hades (OTTO, 2005,
p. 129-132).
Concluímos que o deus Hades não mereceu tanto destaque nos poemas como os outros
deuses, presentes nas batalhas ou no retorno de Odisseu a Ítaca. No reino de Hades, o
submundo, os protagonistas, assim como no mundo dos vivos, são os heróis, apesar de suas
lamúrias pela perda de vigor. Os poemas nos ajudam a entender a nova cosmovisão grega acerca
do mundo dos mortos, que parecem fundamentais na mentalidade do século VIII a.e.c., a saber:
ausência de interferência dos mortos no mundo dos vivos, conjugada com a ideia de que os
mortos representam o passado em contraposição ao presente, representado pelos vivos.
REFERÊNCIAS

BARBOSA, L. M. Representações do Ctonismo na cultura grega (séculos VIII-V A.C.).


2014. 556 f. Tese (Doutorado em História) - Universidade de Lisboa, Lisboa, 2014. Cap. 2.

FAIRBANKS, A. The Chthonic Gods of Greek Religion. American Journal of Philology, v.


21, n. 3, p. 241-259, 1900.

FINLEY, M. I. O Mundo de Ulisses. Tradução de Armando Cerqueira. Lisboa: Presença,


1982.

MOSSÉ, C. A Grécia Arcaica de Homero a Ésquilo. Lisboa: Ed. 70, 1989.

HOMERO. Odisseia. Tradução de Frederico Lourenço. São Paulo: Companhia das Letra,
2011.

_____. Ilíada. Tradução de Frederico Lourenço. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

VERNANT, J. P. Mito e Sociedade na Grécia Antiga. Tradução de Myriam Campello. 2.


ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1999.

VIDAL-NAQUET, P. O mundo de Homero. Tradução de Jônatas Batista Neto. São Paulo:


Companhia de Letras, 2002.

OTTO, W. F. Os deuses da Grécia: a imagem do divino na visão do espírito grego. Tradução


de Ordep Serra. São Paulo: Odysseus, 2005. p. 113-150.

*
Graduanda em História pela UESB. Bolsista do programa de Iniciação científica da UESB, sob orientação do
Professor Doutor Alexandre Galvão Carvalho. Membro do Grupo de Pesquisa Historiografia do Mundo
Antigo, cadastrado no CNPq, coordenado pelo Professor Doutor Alexandre Galvão Carvalho.

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