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ao mundo circundante e, por conseguinte, com relação à natureza. A cisão com a cosmovisão
cristã da Idade Média ocidental, que, diante da valorização da imaterialidade eterna,
enxergava o mundo terreno como um mero interlúdio, essencialmente pecaminoso,
estabelecendo, pois, uma distância a priori com a natureza, foi essencial para que as novas
relações homem/natureza se instaurassem durante o século XV e os demais períodos
posteriores. Nesse sentido, a perspectiva antropocêntrica situou o homem renascentista
enquanto sujeito observador, que compreende e produz conhecimento sobre o mundo
circundante, bem como um sujeito transformador, capaz de submeter a natureza a
intervenções se assim o desejar. É apenas a partir dessa herança moderna, ainda que não
exclusivamente, que podemos compreender o modo como o homem dos séculos XVII e
XVIII relacionou-se com a natureza.
Atenhamo-nos, de início, ao contexto político e social do século XVII. Marcado por
profundas mudanças já enunciadas durante os séculos XV e XVI, o período abrangeu a
consolidação do despotismo monárquico como principal forma de governo, a Contrarreforma
católica e a instauração do capitalismo mercantilista. A centralização do poder nas mãos do
déspota acarretou na formação de Estados nacionais unificados marcados por uma
sistematização burocrática – objetivando a manutenção do controle monárquico – que agora
expandiam seus domínios territoriais e econômicos internacionalmente. Esta soberania
política encontrava-se intimamente ligada ao acúmulo de capital e à força militar (é também
um momento de avanços armamentistas). Simultaneamente, a Igreja católica buscava recobrar
seu prestígio e autoridade através da Contrarreforma, esforçando-se rumo a uma difusão
popular. A relação, portanto, entre este déspota detentor do poder e a Igreja, é marcada por
uma tensão ainda que os mesmos estabelecessem, paradoxalmente, uma associação
mutualística de legitimação.
O período, que corresponde ao apogeu do movimento artístico barroco, foi marcado,
portanto, por uma ordenação rigorosa, um racionalismo, bem como pela tomada de uma
postura ostensiva, muito evidente, por exemplo, na monumentalidade e exuberância
ornamental de suas edificações. Como apontado por Lewis Mumford: “Produzir e exibir
riqueza, tomar e aumentar poder, tornaram-se imperativos universais. ” (MUMFORD, 1998,
p. 377) Paradoxalmente, entretanto, ocorre uma retomada da espiritualidade. Tal ambiguidade
de valores mostra-se de forma muito explícita na arte religiosa do período: ambicionando a
persuasão do público, ainda que pregasse a espiritualidade, a Igreja lançava mão de quaisquer
meios materiais para a sensibilização sensorial do mesmo.
Como colocado por Mumford:
O conceito de barroco, tal como tomou forma no século XVII, é
particularmente útil, porque contém em si os dois elementos
contraditórios da época. Primeiro, o aspecto matemático e
abstrato, expresso com perfeição no seu rigoroso plano de ruas,
nos seus traçados urbanos formais e nos seus desenhos
geometricamente ordenados de jardins e paisagens. E ao mesmo
tempo, na pintura e na escultura do período, abrange o lado
sensual, o rebelde, o extravagante, o anticlássico, o
antimecânico, expresso nas suas roupas e na sua vida sexual,
bem como no seu fanatismo religioso e no seu desvairado
estadismo. (MUMFORD, 1998, p. 382)
Essa ânsia, compulsiva quase, – perceptível tanto na sistematização burocrática, quanto,
como explicitado anteriormente, nos planejamentos urbanos e paisagísticos da época – que
intenta organizar e reelaborar o mundo a partir do racionalismo aparece como reflexo da
crença de que este tornar-se-ia melhor uma vez submetido à ordem física, inteligível e
imutável do universo. Crença esta que, influenciada pelos estudos filosóficos e científicos de
Descartes, recorria à matemática e à lógica como recurso primeiro. A razão torna-se, nesse
contexto, o elemento mediador entre o homem e o mundo circundante.
Assim, ainda fazendo referência ao texto de Mumford, citado anteriormente, ao
debruçar-se sobre as capitais barrocas, apontando-as como produto das estruturas de poder
vigentes, o autor enuncia características formais passíveis de serem observadas também, nos
jardins reais do período. Marcadamente laicos, a natureza destes jardins encontrava-se
submetida inteiramente ao poder do monarca absoluto, tal qual as capitais, que a sujeitava aos
ideais barrocos de ordem e amplidão formais, predominando grandes espaços claros e
geometricamente organizados a partir de eixos centrais (nas capitais: as avenidas; nos jardins:
as aleias). Há, portanto, uma exasperação da busca por harmonia e simetria – já observada
nos jardins do período renascentista – atrelada a uma aplicação das leis ópticas recém-
descobertas. Nesse sentido, são consideradas as diferentes perspectivas possíveis a partir do
eixo cartesiano que “corta” os jardins e cuja interseção geralmente corresponde a um grande
pátio.
O objetivo de impor ordem à natureza mostra-se explícito no avanço da manipulação
dos terrenos, bem como no estudo e aplicação da hidrostática e da arte topiaria – evidenciando
uma potencialização do posicionamento do homem renascentista enquanto agente controlador
e transformador da natureza. Utilizando-se de técnicas de planificação, a partir do aterramento
de terrenos acidentados, desenvolvidas pelos holandeses, o jardim francês do século XVII não
mais encontra-se sujeito à topografia natural do terreno, tal como se dava em períodos
anteriores. Pelo contrário: o homem submete-o plenamente ao projeto idealizado. O
aperfeiçoamento das técnicas topiarias e hidrostáticas, por sua vez, exasperou o uso
manipulativo da vegetação e da água (respectivamente) que passaram a apresentar-se como
elementos dotados cada vez mais de evidente artificialidade. Desse modo, torna-se comum
nestes jardins, por exemplo, “esculturas” vegetais zoomorfas e espelhos d’água (cujo uso
dependia também da aplicação das leis de reflexão e refração da física óptica).
Ademais, é válido ressaltar também o uso de diversas espécies vegetais – geralmente
dispostas de modo a formar padrões nos grandes canteiros geometrizados – provenientes de
empreitadas colonialistas e de grupos escultóricos de larga escala que representavam
personagens e episódios da mitologia Antiga. Ambos serviam também para ratificar o poder e
importância do monarca: as espécies vegetais demonstravam o alcance, agora internacional,
de seu poder, enquanto as esculturas explicitavam o capital intelectual e cultural do qual este
era detentor, além de suscitar temor em seus espectadores, operando como um lembrete de
não o desafiar. Na imagem abaixo é possível observar a formação de padrões vegetativos nos
canteiros de L’Orangerie – parte dos jardins de Versalhes – bem como o eixo cartesiano a
partir do qual estes são organizados.
O projetista de jardins franceses talvez mais importante foi André Lê Notre. Este reuniu
e aplicou copiosamente em seus projetos as leis de composição de jardins tais como a
distribuição geométrica dos canteiros, as aplicações das propriedades ópticas para correção de
perspectiva e das propriedades hidrostáticas, abordadas anteriormente. Outras características
dos jardins como o uso da perspectiva para que, do palácio real, o jardim pareça infinito ou,
ainda, a forma como realizar a transição entre os limites do jardim e seus arredores, transição
esta que deve ocorrer de maneira suave, também se encontram incorporadas em suas obras.
Sendo a mais prestigiada delas o jardim de Versalhes, cuja planta está reproduzida a seguir.
Também é nesse período que a pintura da paisagem tal como a concebemos atualmente,
isto é: em que esta aparece como principal tema, não assumindo o papel de mero cenário para
acontecimentos que se desvelam no primeiro plano, começa a tomar forma. Durante o século
XV, quando teve início o movimento de reaproximação do homem com a natureza, esta
encontrava-se representada naturalisticamente, em oposição às representações medievais que
não faziam uso “adequado” da luz e dos efeitos de espacialidade, em segundo ou terceiro
plano na tela – sendo os holandeses reconhecidos como os primeiros a fazê-lo. No barroco, a
partir de artistas holandeses como Ruisdael, Goyen e Vermeer, a paisagem adquire certa
autonomia iconográfica. Em suas pinturas, é perceptível um estudo do espaço e da luz e uma
atenção destinada aos detalhes. Ocorre ainda, entretanto, um distanciamento da natureza,
havendo um predomínio de paisagens urbanas, configurando uma espécie de fotografia
documental de cidades, e um enfoque nos céus, sendo a linha do horizonte muito marcada
nessas representações.
Por outro lado, ainda no século XVII, artistas franceses como Claude Lorrain e Nicolas
Poussin, realizam esta aproximação com a natureza. A paisagem, pois, não se encontra
distante, ocupando o fundo da tela, como nas representações urbanas holandesas, ela situa-se
nos primeiros planos de tal modo que o espectador se sente inserido nela. Opondo-se
novamente às representações holandesas, os motivos de suas paisagens são naturais, ainda que
elementos arquiteturais, muitas vezes representados como ruínas que usualmente remetem à
Antiguidade Clássica, componham a tela. Nas obras de ambos os artistas, é evidente o
virtuosismo, traduzido em um notável naturalismo, com que os elementos naturais são
retratados. Ademais, tal como nos jardins barrocos, a composição de seus retratos de
paisagem, obedecem a regras matemáticas de proporção que objetivam alcançar um equilíbrio
harmonioso das formas, bem como o uso de regras de perspectiva. Os aspectos enunciados
podem ser observados na obra Landscape with Diogenes, de Poussin, reproduzidas abaixo.
Nicolas Poussin, Landscape with Diogenes, 1647, tinta a óleo, 160cmx221cm, Museu do Louvre,
Paris. Fonte: https://goo.gl/Rcnybd
Antoine Watteau, Peregrinação à Ilha de Cítera, 1717, óleo sobre tela, 129cmx194cm, Museu do
Louvre, Paris. Fonte: https://goo.gl/mZbbkM