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A UNIVERSIDADE EM “TEMPOS FRATURADOS”: ACCOUNTABILITY -


UM CAMINHO PARA A SERVIDÃO

Cristiane Maria Oliveira Mendonça


c264786@dac.unicamp.br

INTRODUÇÃO

Este ensaio versa sobre a Universidade em tempos fraturados, apropriando-nos


da expressão de um livro de Hobsbawm (2013, p. 9-10), “uma época da história que
perdeu o rumo e que [...] aguarda, desgovernada e desorientada, um futuro
irreconhecível”. Em tempos desassossegados, projeta-se sobre a Universidade o
paradoxal crepúsculo da educação e do conhecimento, cujo destino epocal, em parte,
subjaz nas políticas de accountability (responsabilização e prestação de contas).
A Universidade hodierna, atingida pelos dardos do Estado neoliberal, está sendo
forçada a vergar-se ao trágico utilitarismo demencial – interesses do mercado – e ideário
ultraconservador das elites hegemônicas. Mas, coagida a ‘reformar-se’, a negar seus
pilares matriciais – seu papel humanizador e social – e verberar a descarada panóplia de
mistificações do capital cabe a Universidade resistir a dominação (servidão)1.

A UNIVERSIDADE EM “TEMPOS FRATURADOS”

Se esta história de cultura vai-nos atrapalhar a endireitar o Brasil, vamos


acabar com a cultura durante trinta anos (Palavras do coronel Darcy Lázaro
ao comandar a invasão da Universidade de Brasília em 1964, in GERMANO,
2011, p. 105).

Durante três décadas (1964-1985) de desassossego e perplexidades, o Brasil


esteve submerso em um pântano de perdas de referências valorativas – da democracia,
do Estado de Direito e da própria vida. Nesses tempos fraturados, a atuação do Estado
na área de educação foi orquestral, construindo pontes para um futuro irreconhecível –
negação da razão, anti-intelectualismo e intervencionismo – e concebendo a arte e a
cultura como empecilhos à ordem e ao progresso.

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Em O Caminho para a Servidão, Hayek (1990) argumentou que a planificação econômica produz a
servidão e o caminho para a liberdade repousa no liberalismo econômico. Polanyi, diversamente,
demonstra que a servidão não advém da planificação da economia, mas da submissão dos indivíduos a
sistemas desumanos.
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Em uma verdadeira caça às bruxas, revolucionários adesistas multiplicavam-se


e em um clima pesado e sombrio mostravam com diligência sua lealdade ao Regime.
Reitores pro-tempore e seus asseclas perseguiam os portadores de ideias consideradas
subversivas, com repressão a estudantes, demissão de professores etc. (GERMANO,
2011; FERNANDES, 1975a).
Transcorridas cerca de quatro décadas do fim da Ditadura Civil-Militar ainda se
assiste no Brasil, resgatando outra metáfora hobsbawniana, assimetrias da era dos
extremos (HOBSBAWM, 2011). A política educacional brasileira, resultante de um
desenvolvimento histórico da formação social despótica, senhorial e excludente
nacional, continua refletindo a subsunção da educação aos interesses da classe
hegemônica.
Como evidencia-se em Fernandes (1975b), a própria revolução burguesa no
Brasil preservou as assimetrias nacionais. A transformação capitalista restringiu-se, em
grande medida, a mudanças no mundo da produção, mas não à esperada revolução
nacional e democrática. Não houve uma ruptura enfática com o passado autocrático. A
burguesia promoveu uma democracia restrita acomodando o arcaico e o moderno,
gerando uma sociedade híbrida e uma formação social, o capitalismo dependente.
Esta burguesia autocrática, sempre considerou o acesso ao conhecimento como
instrumento formal de preservação do status quo. Disto resulta, em parte, o projeto
burguês de subsunção da educação ao ideário ultraconservador, pois “cabia-lhe [a
Universidade] ser uma escola de transmissão dogmática de conhecimento nas áreas do
saber técnico-profissional, valorizadas social, econômica e culturalmente pelos extratos
dominantes de uma sociedade de castas e estamental”. (FERNANDES, 1975a, p. 51-52)
A Universidade, no primeiro quinto do século XXI, ainda se encontra acossada
pelo obscurantismo das elites recalcitrantes e suas práticas de cerceamento da inclusão
social e livre pensamento. Por meio de velhas práticas, nomeação de reitores não eleitos
pela comunidade acadêmica (interventores)2, e novas formas de dominação, capitalismo

2
No biênio 2019/2020 o presidente da República Jair Bolsonaro nomeou 16 (dezesseis) reitores sem
terem sido escolhidos pela comunidade acadêmica. O Governo chegou a editar uma medida provisória
que modificava pontos de escolha dos gestores universitários, incluindo a possibilidade de mandatos
temporários. Mas a MP 914 acabou não sendo apreciada pelo Congresso e perdeu a validade.
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acadêmico3 e universidade empreendedora4, busca-se dilacerar a identidade ou razão de


ser da Universidade – a formação humana.
Assim, assiste-se o exacerbamento dos tempos fraturados. No prelúdio do velho
novo século a sociedade nacional permanece presa a mentalidade autocrática da
burguesia e ao ideário de progresso da Revolução Industrial com seu Moinho Satânico
(POLANYI, 2000) – transformações catastróficas e desarticuladoras da vida humana
que trituram pessoas desesperadas e transformadas em uma massa servil de um sistema
frio e impessoal.
Essa massa humana, conforme Hobsbawm (2013, p. 13), encontra-se “na cena
política como consumidores e eleitores”, em uma tensão entre igualdade e liberdade, ou
como afirma Bobbio e Bovero (1986), na tensão incompatível entre obediência e
liberdade diante dos deveres do Estado e afirmação da cidadania.
Os governantes, por seu turno, visando obter a legitimação de suas políticas
administrativas buscam demonstrar a seus eleitores sua capacidade de governança e
governabilidade, sob a aurora das políticas de accountability – a mistificar e criar
formas mais sofisticadas de controle estatal –, em uma época que alguém já designou
como a sociedade da transparência (HAN, 2019).
De acordo com Bobbio (1990), o segredo transforma o que deveria ser
transparente (“poder visível”) em opaco (“poder invisível”), impedindo o controle do
Estado pela sociedade. Mas, “a vitória do poder visível sobre o poder invisível jamais se
completa: o poder invisível resiste aos avanços do poder visível, inventando sempre
novos modos de se esconder, de ver sem ser visto” (BOBBIO, 1990, p. 97).
Como se observa, ergue-se em torno da transparência um espaço de disputa
política e ideológica, marcado pela ocultação e/ou disponibilidade de informações, uma
vez que o detentor do domínio sobre os estoques institucionais de informação tem o
controle sobre o conhecimento e seu potencial de desenvolvimento. (ALMINO, 1986).
A informação divulgada, por exemplo, nos relatórios das políticas de
accountability em educação, com seus mecanismos de avaliação, imposição, sanção ou
coerção e medição de eficiência, possuem uma seletividade em sua transparência.
(AFONSO, 2009). Logo, os relatórios que avaliam as Universidades não são neutros,
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Para Slaughter e Leslie (1997) a teoria do “capitalismo acadêmico” significa a utilização de recursos
públicos por parte de atores acadêmicos para o benefício ou segundo a lógica do setor privado da
economia.
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Nesse modelo, segundo Clark (1998), a universidade captaria recursos em diferentes fontes, tanto na
esfera pública como privada, e passaria a ser gerida conforme à maneira das empresas, buscando a
eficácia e a utilidade profissional segundo os interesses do setor produtivo.
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como depreende-se de Ham e Hill (1993) quando estes autores ponderam que a ciência
não é neutra e que as políticas públicas são formuladas por atores ativos.
Nesse cenário, a educação é conformada ao ideal burocrático-racional do Estado
neoliberal e convertida em vitrine governamental, mediante o “espetáculo” da
accountability com o estabelecimento de rankings avaliativos, concorrência e diretrizes
de eficiência, eficácia e produtividade – mantras de uma cultura estatística, verdadeira
quantofrenia5 em detrimento da formação humana e caminho para novas formas de
dominação (servidão).
A política de accountability em educação, afirma-se como uma depuradora da
política educacional, “purificando” a educação de agentes indesejáveis, leia-se, o que
não atende às necessidades do mercado. Em suma, é imposto o preceito de
competitividade e os requisitos de eficiência e eficácia a Universidade, conforme o
modelo empresarial de qualidade, sacrificando-a no altar do utilitarismo demencial.
Nessa lógica, reafirma-se no século XXI, a inversão descrita por Polanyi (2000)
ao tratar da Revolução Industrial: ao invés da economia estar embutida nas relações
sociais, são estas que se subordinam a economia; assim, o mercado como uma espécie
de entidade autorregulada exige que o tecido social opere segundo suas leis.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em uma sociedade marcada pela fratura social, erguem-se do esgoto labiríntico


neoliberal a fragmentação no mundo do trabalho, o concorrencialismo, o individualismo
e os princípios que norteiam a accountability, agudizando a pressão sobre a
Universidade, sendo-lhe imposta a lógica produtivista. A formação humana – razão de
sua existência – é posta em segundo plano ou relegada.
No jogo da legitimação das políticas educacionais, os dados estatísticos servem
para tornar ininteligível as maneiras em que os políticos sustentam seus programas e
ocultam/disfarçam as desigualdades sociais, preservando sua imagem governamental
mediante uma linguagem que mistifica a realidade. Mas, diante desses tempos
fraturados, cabe a Universidade resistir e abjurar da servidão desfazendo-se da matriz
identitária neoliberal e de suas leis inumanas.

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Termo cunhado pelo sociólogo russo Pitirim Sorokin (1889-1968) e conforme Fernandes (2013, p. 4,
5), a quantofrenia relaciona-se ao “[...] uso dos números com vistas à testomania, fazendo com que, pelas
mãos dos testocratas, ‘quase todos os indivíduos sejam testados, desde o berço até a cova, antes e depois
de acontecimentos importantes na sua vida’ (SOROKIN, 1965, p. 51).”.
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REFERÊNCIAS

AFONSO, Almerindo Janela. Políticas avaliativas e accountability em educação:


subsídios para um debate ibero-americano. Sísifo, Lisboa, n. 9, p. 57-69, maio/ago.
2009.

ALMINO, João. O segredo e a informação: ética e política no espaço público. SP:


Brasiliense, 1986.

BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade: para uma teoria geral do político.
RJ: Paz e Terra, 1990.

__________; BOVERO, Michelangelo. Sociedade e Estado na filosofia política


moderna. SP: Brasiliense, 1986.

CLARK, Burton. Creating entrepreneurial universities. Organizational Pathways of


Transformation. Oxford: IAU Press by Pergamon, 1998.

FERNANDES, Florestam. Universidade Brasileira: Reforma ou Revolução?. SP:


Editora Alfa-Omega, 1975a.

__________. A revolução burguesa no Brasil. RJ: Zahar, 1975b.

FERNANDES, Ivanildo. Da Aritmética Política à Quantofrenia. Documento de


Trabalho nº 116. Observatório Universitário. RJ: Data Brasil – Ensino e Pesquisa
UCAM. Outubro de 2013.

GERMANO, José Willington. Estado militar e educação no Brasil (1964-1985). São


Paulo: Cortez, 2011.

HAM, Christopher; HILL, Michael. O processo de elaboração de políticas no estado


capitalismo moderno. Londres: Harvester Wheatsheaf, 1993.

HAN, Byung-Chul. Sociedade da transparência. Petrôpolis: Vozes, 2019.

HAYEK, Friedrich. O caminho da servidão. RJ: Instituto Liberal, 1990.

HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: O breve século XX (1914-1991). São Paulo:
Companhia das Letras, 2011.

__________. Tempos fraturados. Cultura e sociedade no Século XX. São Paulo: Cia
das Letras, 2013.

POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. Rio de Janeiro:


Campus, 2000.

SLAUGHTER, Sheila; LESLIE, Larry. Academic capitalism: politics, policies and the
entrepreneurial university. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1997.
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