Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Elaborado em 03/2008.
1.Introdução
A limitação do poder [01], de seu exercício, tem sido um dos desafios do pensamento e da
práxis política já há longa data. Os mais célebres exemplos dos primeiros limites impostos ao
exercício do poder datam já do Século XIII.
Tal limitação deu-se tanto pela engenharia orgânica ou institucional dos Estados, com criações
como, por exemplo, a tripartição dos poderes ou o constitucionalismo, como com a imposição
de limites específicos à atuação estatal, através da instituição de direitos – inicialmente
individuais –, imunidades e inviolabilidades ao poder impositivo, ao jus puniendi estatal e
assim por diante.
Vislumbra-se, desde logo, que a questão da limitação do poder se coloca, desde seus
primórdios, como limitação do poder do soberano, ulteriormente, portanto, como limitação do
poder público estatal, razão da carga significativa das idéias correlatas à imposição de limites
ao poder no âmbito do Direito Público – para os sistemas que conhecem tal distinção. [02]
Textos relacionados
No magistério de Abili Lázaro Castro de Lima, tal tipo ideal se caracteriza por "uma crescente
interconexão em vários níveis da vida cotidiana a diversos lugares longínquos do mundo". [03]
John Gray a definiu como "a expansão mundial da produção industrial e de novas tecnologias
promovida pela mobilidade irrestrita do capital e a total liberdade do comércio". [07]
Tal globalização somente é possível, de um lado, pelas novas tecnologias às quais já se fez
referência – especialmente em sede de comunicações e transportes – e, de outro, por uma
severa redefinição do panorama mundial em termos de fronteiras e soberania dos Estados.
Para que a globalização econômica se fizesse possível fez-se imperativa uma readequação das
relações inter-estatais em escala global, de modo a, eliminando barreiras jurídicas, tributárias,
alfandegárias e o mais, permitir-se o amplo intercâmbio de mercadorias e serviços que a
caracteriza.
Preconiza, para tanto, um Estado de formatação mínima, que somente exerça funções bem
definidas como estatais para tais correntes – tais quais segurança pública e administração da
justiça –, bem como a formação de um mercado mundial, com supressão das barreiras à
circulação de bens e serviços ao redor do globo, de modo a permitir que o mercado mundial
assim instaurado, por seus mecanismos próprios, como a concorrência global assim
instaurada, regule a si mesmo. [10]
Tais teorias são o vetor político-teórico da globalização econômica, tendo atuado tanto dentro
das academias quanto junto aos governos e, através da mídia, junto à massa da população,
possibilitando a formação de um ambiente cultural e ideologicamente propício ao advento da
globalização econômica e, conseqüentemente, a instauração de uma concorrência global.
3.Migrações do poder (Kraft, kratos): do poder público estatal ao poder privado ultra-estatal.
É assim que surge, por exemplo, a regulação estatal do trabalho, consubstanciada na legislação
trabalhista, a qual, por período significativo da história recente da humanidade limitou – e
continua, em certa medida, a fazê-lo – consideravelmente o exercício do poder por entes
privados.
É exatamente contra este tipo de intervenção que logra, com êxito, insurgir-se o pensamento
neoliberal.
A maximização da repercussão pública de decisões privadas [15] deflagrada pela nova situação
mundial, em que uma grande corporação pode, facilmente, fechar sua unidade ou suas
unidades em um determinado país, transferindo-as para outros onde encontre situações mais
favoráveis – salários mais baixos ou tributos menos gravosos – acaba por gerar significativos e
crescentes constrangimentos ao poder decisório e interventivo estatal na economia. [16]
Não raro muitos Estados são obrigados a ajustar seus ordenamentos jurídicos à nova realidade
mundial, em face de uma competição ou concorrência global, concorrência direta do novel
caráter transnacional das corporações, o que significa, ao fim e ao cabo, na minoração de
direitos sociais, como os trabalhistas e previdenciários, v.g., na concessão de isenções e
imunidades tributárias e outros benefícios vários.
Mas não apenas as transnacionais acabam por conseguir impor suas preferências aos Estados,
em detrimento da soberania estatal nacional no processo de tomada de decisões. Outros
organismos extra (ou ultra) estatais, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário
Internacional, passam a ter um poder cada vez mais significativo e, ao fim e ao cabo, dão o
coup de grâce em qualquer possibilidade de autonomia estatal.
Com efeito, a renegociação das dívidas externas dos diversos países em desenvolvimento, bem
como a concessão de novos créditos, fica subordinada ao denominado princípio da
condicionalidade, através do qual os organismos internacionais em questão conseguem impor
reestruturações e ajustes econômicos àqueles países tão significativos a ponto de restar muito
pouco espaço para qualquer decisão autômoma por parte dos emergentes. [18]
Deste modo, o que hora se vê é uma espécie de refluxo à situação anterior à configuração do
Estado moderno, qual seja, uma situação em que o poder (ou a soberania) é compartilhado
entre a esfera pública e várias esferas privadas. A diferença reside na amplitude da questão:
passou-se dos feudos da Idade Média aos grandes impérios mundiais das megacorporações.
As formas de limitação do exercício do poder pelo soberano ou pelo Estado são várias,
podendo-se destacar dois tipos, a saber, de um lado, a engenharia institucional do próprio
Estado – seu projeto orgânico – e, de outro, a imposição direta de limites a seu atuar.
Assim, as idéias de separação dos poderes pelas suas funções, seu exercício como um sistema
de freios e contrapesos – checks and balances -, os sistemas parlamentaristas, a idéia do
controle de constitucionalidade e dos tribunais constitucionais, por exemplo, constituem
arranjos institucionais engendrados no espírito de impedir a apropriação monocrática do
poder. A democracia assenta-se sobre as mesmas premissas de distribuição do poder. [20]
A par dos arranjos institucionais com a finalidade de limitação do poder, outra forma distinta
de se buscar atingir tal finalidade é aquela da imposição de limites ao soberano ou ao Estado.
Assim a idéia de direitos e liberdades individuais, de direitos fundamentais e de direitos
humanos oponíveis ao Estado constitui exatamente o exemplo por excelência de tal vertente
da limitação do poder.
Aqui surgem as vedações e os limites ao exercício do jus puniendi estatal, assim como as
isenções e imunidades tributárias, e toda uma gama de direitos, liberdades e garantias que
representam, inicialmente, exatamente a dimensão dita negativa, ou seja, a imposição de um
não-agir ao Estado, a imposição de limites ao atuar estatal, ao exercício do poder estatal.
Tendo migrado o poder do Estado para entes privados ou ultra-nacionais, pelos fenômenos
complexos sucintamente resumidos linhas atrás, resta observar que todas as técnicas e teorias
acerca da limitação do poder acabam por ficar em descompasso para com a nova realidade
posta. [21]
Com efeito, inúmeros dos arranjos institucionais como a democracia, bem como relativos às
simples limitações ao agir estatal, como os direitos e garantias individuais, acabam por ficar
desatualizados e inermes em face de novas formas de exercício de poder privado em
proporções dantes desconhecidas.
Se, de um lado, a política se esvazia de conteúdo por força das restrições às escolhas possíveis
pela imposição de parâmetros heterônomos pelo Banco Mundial e pelo FMI [22], dentre
outros elementos, por um lado, e se, por outro lado, os direitos trabalhistas e sociais
naufragam em face da incapacidade dos Estados nacionais em oporem-se, eficazmente, às
multinacionais, é preciso constatar a mudança de panorama na geopolítica do poder mundial e
contextualizar as teorias e práticas da limitação do poder à nova realidade, como condição de
possibilidade da própria limitação.
Se, de um lado, não se deve abrir mão das conquistas obtidas quanto à limitação do poder
público, não se deve, por outro lado, permanecer inerme em relação ao exercício do poder
privado, fazendo-se necessária a busca, inicialmente em nível teórico e, ato contínuo, na luta
para a implantação, de mecanismos de limitação e controle do exercício do poder pelos
agentes privados em nível internacional.
Após abordar, em recente estudo, a crise dos modelos que denomina forte e débil de Estado
de Direito (Estado legislativo de Direito e Estado Constitucional de Direito, respectivamente), o
jurista italiano Luigi Ferrajoli definiu a globalização como um vazio de Direito [Internacional]
Público:
Identifica, assim, Ferrajoli a falta de regulação e limitação dos poderes, tanto estatais e
públicos quanto extra-estatais e privados, na nova conjuntura sócio-econômica e política
global. Prossegue:
O mesmo sentir se manifesta em Boaventura de Sousa Santos, citado por Abili Lázaro Castro
de Lima, segundo quem
[a] perda da centralidade institucional e de eficácia reguladora dos Estados nacionais, por
todos reconhecida, é hoje um dos obstáculos mais resistentes à busca de soluções globais. É
que a erosão do poder dos Estados nacionais não foi compensada pelo aumento de poder de
qualquer instância transnacional com capacidade, vocação e cultura institucional voltadas para
a resolução solidária dos problemas globais. De fato, o caráter dilemático da atuação reside
precisamente no fato da perda de eficácia dos Estados nacionais se manifestar antes na
incapacidade destes para construírem instituições internacionais que colmatem e compensem
esta perda de eficácia. [25]
Com efeito, é de ser creditado ao Direito Internacional Público, assim como ao Direito
Constitucional, o mérito dos avanços até hoje verificados em matéria de limitação do poder e
de seu exercício em face dos Estados nacionais.
Ocorre que todo o arcabouço teórico-prático, seja de Direito Constitucional, seja de Direito
Internacional Público, encontra-se centrado na figura do Estado nacional, ora como agente
executor do poder público a ser limitado, ora como agente limitador dos poderes privados.
Vista a atual incapacidade dos Estados nacionais em fazer frente eficazmente aos novos
poderes privados, em face dos constrangimentos que estes lhes impõem, resta como desafio,
especialmente ao Direito Internacional Público, a limitação, em níveis global, do exercício do
poder privado e extra-estatal no novo contexto mundial.
Por outro lado, um dos construtos teóricos que parecer constituir uma das bases de uma
possível resposta ao problema que ora se coloca – qual seja, o da limitação de um poder fora
de um ambiente de subordinação territorialmente delimitado – advém exatamente da teoria
da constituição, mais especificamente da teoria dos direitos fundamentais, embora não seja,
em absoluto, desconhecido no Direito Internacional dos Direitos Humanos. É a tal construto
que se dedicará o próximo tópico.