Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Bruna Ribeiro1
Resumo
O presente artigo busca fornecer subsídios para a reflexão sobre a documentação pedagógica
no contexto das mudanças introduzidas pela LDB (Lei nº 12.796, de 2013) que postula que as
instituições educacionais devem expedir documentação que ateste os processos de
desenvolvimento e aprendizagem das crianças. Reflete sobre o significado desta
documentação para as crianças, professores e para a avaliação na educação infantil.
Introdução
1
Mestre em Educação pela PUC-SP. Assessora do DOT-EI da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo.
Coordenadora de Avaliações Educacionais na MOVE. bruna.ribeiro@movesocial.com.br
2
Avaliação da Educação Infantil no Brasil: Subsídios para o debate. Ribeiro. B. In: Avaliação "da" e "na" Educação
Infantil: Reflexões e práticas para a construção de sentidos", 2015 (no prelo).
3
Para saber sobre as definições “na” e “da” ver Didonet (2011).
1
consciência da importância da avaliação, situando-a como um importante dispositivo e parte
integrante da profissionalidade docente.
Desde 1996 a avaliação na educação infantil por meio do acompanhamento e registro
do desenvolvimento das crianças, sem o objetivo de promoção (inclusive para o acesso ao
ensino fundamental), já é uma orientação legal, via LDB. Por que, então, atualmente a
questão da documentação pedagógica voltou a ser alvo de polêmicas e discussões entre os
profissionais da área?
Situando a questão
2
“proliferação de instrumentos de avaliação anônimos, descontextualizados e só
aparentemente, objetivos e democráticos”4 (2011, p.299).
A segunda, porque essa orientação vem gerando uma série de importantes
questionamentos entre as profissionais de educação infantil imbuídas da realização da
documentação. Questões que interrogam a natureza da documentação, como: O que deve
conter? Qual o foco? Que recursos utilizar? Como deve ser essa documentação? Para o que
será utilizada? Além de questões também fundamentais relacionadas ao processo de
elaboração da documentação e sobre quais seriam os sujeitos a serem envolvidos, como: em
que momento devo realizar essa documentação? Faço junto com as crianças ou devo ter uma
horário reservado em minha carga horária para isso? Quem participa?
O fato da documentação, que já era uma prática pedagógica recomendada para esta
etapa educacional, ser provocada a ser socializada para um número maior de envolvidos, vem
gerando reflexão e debate acerca de questões centrais que dizem respeito não somente à
avaliação em si, mas ao próprio cerne da educação infantil, pois a documentação pedagógica é
reveladora de concepções, práticas, planejamento e currículo.
Nesse sentido, refletir sobre documentação pedagógica é refletir sobre as
especificidades da primeira etapa da Educação Básica, buscando melhor definir seus contornos
e escolhas que traduzem os objetivos e fins esperados para as crianças que frequentam a
educação infantil. No entanto, para que a documentação pedagógica possa realmente ser um
instrumento para reflexão e planejamento não somente do professor, mas também do campo
da educação infantil, tendo como foco o desenvolvimento da criança, é preciso ir além e
compreendermos, como defende Oliveira-Formosinho (2014,p.181), a “natureza
desenvolvimental” da documentação pedagógica.
4
Tradução da autora.
3
Aliás, ser um objeto de fronteira é, segundo Moss; Girard; Greeno, 2008 (apud CARR;
LEE,2012,p.9), um dos objetivos da avaliação documentada que ao habitar “múltiplos e
heterogêneos mundos sociais (...) permite a comunicação e a cooperação entre esses
mundos”, ou seja, a documentação pedagógica deve ser a ponte que auxilia na comunicação
sobre a aprendizagem da criança entre escola e família, professores-professores, professor-
criança, educação infantil-ensino fundamental.
E para que a documentação pedagógica possa cumprir o papel de “ponte” que liga, às
vezes, contextos e lugares distintos, sua elaboração deve levar em consideração também,
segundo defende Parente (2014, p.294), “múltiplas vozes e perspectivas”. O que significa
trazer à tona juntamente com o olhar do educador, múltiplas perspectivas como a dos demais
membros da equipe educativa, a dos familiares e das próprias crianças e seus pares.
Pouco se fala ainda da possibilidade da inserção dos familiares no processo de
documentação pedagógica, mas muitos autores (PARENTE,2014;RINALDI,2011;
VALVERDE,2015) defendem a importância de se trazer o olhar e perspectiva desses atores,
uma vez que o desenvolvimento da criança se dá em múltiplos e variados contextos que a
unidade educacional precisa dialogar.
Spink (2001, p.12 apud RIBEIRO, 2013, p.66) justifica, ainda, a necessidade desta ação
baseando-se no fato de que vivemos em um mundo social constituído “pela presença
simultânea de saberes múltiplos que emergem e são transmitidos de diversos cotidianos”.
Assim, para que a documentação pedagógica possa realmente exercer seu papel de
cruzar fronteiras, sua elaboração deve se dar através de práticas compartilhadas e dialogadas
entre profissionais, familiares e crianças, objetivando tornar “o trabalho pedagógico visível e
acessível para o debate democrático” (BARBOSA; HORM, 2008, p.95).
Nessa perspectiva mais ampliada de documentação, a avaliação do desenvolvimento
da criança não se restringe a mera verificação de capacidades previamente estabelecidas,
onde se verifica as habilidades das crianças em um determinado momento, comparando-as
com padrões supostamente esperados para aquela faixa etária. Essa prática, no entender de
especialistas como Parente (2014b,p.10), significaria “reduzir um processo holístico e dinâmico
a um número ou medida” sendo que “tal opção não faz justiça às capacidades e competências
das crianças e em nada contribui para melhorar a qualidade das aprendizagens”.
A documentação pedagógica é aqui entendida como inerente a um processo dinâmico
e complexo e que, por isso mesmo, as ações de observar e registrar não devem se restringir
apenas à observação da criança; embora esta deva ser um sujeito privilegiado no processo,
deve-se aliar também a observação e o registro do contexto, das condições propiciadas e a
própria ação do educador (SILVA, 2014, p.155).
4
É importante termos clareza também que observar uma criança não significa captar a
criança real que temos a nossa frente, isso porque nossa olhar é marcado por nossa
subjetividade, o que impossibilita uma olhar neutro na documentação. A impossibilidade da
neutralidade no processo de documentação pedagógica é um alerta insistentemente feito por
Dahlberg; Moss e Pence (2003), que nos convidam a não ver isso como algo negativo e a ser
evitado, mas sim como algo a ser refletido para buscarmos melhor compreender como nossa
subjetividade, crenças, valores, vivências, entram no processo de observação, seleção,
interpretação e registro pedagógico.
Talvez uma das primeiras considerações para que os profissionais deem início ao
processo de documentação pedagógica seja a conscientização da impossibilidade da
neutralidade dessa documentação.
Documentar é saber que não estamos narrando uma única e verdadeira história, mas
que estamos fazendo escolhas a partir de muitas incertezas e perspectivas possíveis (RINALDI,
2011) sendo que a história por nós narrada vai nos dando pistas sobre como construímos
nossa visão da criança, assim como de nós mesmos como pedagogos (DAHLBERG; MOSS e
PENCE, 2003), por isso é uma narrativa de autoreflexividade e nos ajuda a dar sentido a nossa
prática docente.
5
Segundo Rinaldi (2011) não podemos viver sem sentido, pois isso significaria excluir
toda identidade dos seres humanos e, nessa perspectiva, a documentação também deve fazer
sentido para todos, isso inclui os adultos e crianças envolvidos no processo. Esta autora
defende que a pergunta central que deve acompanhar todo o processo de documentação
pedagógica seria: como os profissionais de educação infantil podem ajudar as crianças a
encontrarem sentido no que fazem, encontram e experimentam? E como fazer isso conosco,
os educadores?
Essa busca pela construção de sentidos na e sobre a prática cotidiana para adultos e
crianças seria, nessa perspectiva, a espinha dorsal na qual a documentação pedagógica vai se
embasando e buscando construir uma narrativa que dê sentido ao caminho engendrado. No
entanto, essa não será uma narrativa final, acabada e única, e sim uma que vai se fazendo e
refazendo no caminhar, sendo continuamente reelaborada pelos diferentes sujeitos
envolvidos no processo.
6
O processo de documentação envolve o uso desse “conteúdo” para que ele se torne
um meio (e não o produto final) para a reflexão do trabalho pedagógico, que ajuda a contar a
história de nossa própria prática docente, nos possibilitando “mais facilmente ver e questionar
a nossa imagem de criança, os discursos que incorporamos e produzimos e que voz, direitos e
posição a criança adquiriu em nossas instituições” (DAHLBERG; MOSS e PENCE; 2003, p.200).
Contudo, vale ressaltar que embora o ato da intepretação seja inerente ao momento
da seleção e registro, esse fato não invalida a necessidade de que os profissionais tenham um
espaço e tempo posteriormente reservado para trabalharem eles mesmos nas observações
realizadas e documentadas para tomar decisões e rever as propostas pedagógicas propiciadas
às crianças no geral e a cada uma em particular (PARENTE, 2014, p.176).
Uma história de uma professora que realizava o registro de uma criança, contada por
Kramer (2014), ilustra a sensibilidade e capacidade que as crianças possuem de produzir
narrativas sobre si e sobre o que vivenciam em seu cotidiano:
7
“Certa vez (...) uma amiga contou que estava fazendo um registro e uma
criança perguntou: o que você está escrevendo? A professora respondeu que
estava fazendo uma anotação sobre ela e que depois mostraria para seus pais.
Em seguida a criança perguntou o que ela havia escrito e a professora leu. A
criança após ouvir respondeu à professora: então escreve isso também... e
disse coisas sobre ela na escola, que gostaria que estivessem escritas”
(KRAMER, 2014, p.21).
Quanto mais rico e diversificado for o processo de documentação, mais potencial ele
terá para gerar reflexão entre os sujeitos envolvidos; por isso, é importante que a
documentação pedagógica não se restrinja a uma única forma de registrar e documentar as
vivências das crianças.
Dahlberg; Moss e Pence (2003) citam algumas formas utilizadas para documentação
pedagógica pelos profissionais de educação infantil de um Projeto que ficou conhecido como
Estocolmo. São elas: Observações manuscritas do professor em relação ao que é dito e feito
pelas crianças; Registro das falas das crianças durante a realização das atividades cotidianas;
Registros em áudio e vídeo; Fotografias; Gráficos de computador e os trabalhos das crianças.
8
Em pesquisa realizada pelas educadoras brasileiras Barbosa e Horm (2008, p.104-111),
elas destacam e discorrem sobre alguns instrumentos utilizados por profissionais de EI para
apoiar seu processo de documentação pedagógica e reflexão de sua práxis. São eles: Diário de
campo; anedotários; diário de aula; livro da vida ou da memória do grupo; planilhas (material
quantitativo); entrevistas com professores, crianças, pais; debates ou conversas; relatórios
narrativos; autoavaliação; trabalhos de integração e consolidação dos conhecimentos; coleta
de amostras de trabalho; fotografias e gravações; depoimentos de pais, comentários de
colegas e estudos de teóricos.
Como podemos constatar apenas por essa breve incursão, são muitos e diversificados
os recursos que podem ser utilizados para a documentação pedagógica, sendo “a criatividade
a única limitação imposta” (SHORES e GRACE, 2001, apud PARENTE, 2014, p.45).
9
nós e por meio de nós, pelos quais temos construído a criança e nós mesmos como
pedagogos” (DAHLBERG; MOSS e PENCE,2003, p.99).
Mesmo que exista um roteiro em comum que o professor utilize, como por exemplo,
observar a questão da brincadeira, interações, ainda assim a documentação de cada criança
divergirá no que diz respeito ao como ela se relaciona com essas questões, sendo que o
parâmetro será sempre o da criança em relação a ela mesma e seu nível de desenvolvimento
inicial e não um critério externo a ela, ou seja, as avaliações serão especificas e singulares,
assim como o são os processos de aprendizagem e desenvolvimento de cada criança.
10
Uma documentação que leve em conta todos os elementos discutidos até aqui,
certamente não produzirá uma receita infalível de sucesso, mas talvez um caminho... E um
caminho que, embora repleto de contradições, idiossincrasias, avanços, estagnações e
momentos de dúvida, talvez seja o mais potente, pois revelador de uma criança real.
Para finalizar esta reflexão, trazemos aqui uma história por nós vivenciada e que,
talvez por sua forte simbologia, possa auxiliar na síntese do que a documentação pedagógica
atenta e sensível é capaz de engendrar com adultos e crianças, seja da educação infantil ou
ensino fundamental...
11
a escutá-lo, a estar com ele; só sei que Gabriela é especialista em gentileza, se permito que ela
tenha espaço para expressar isso no cotidiano da instituição e que eu também, como
profissional, possa reconhecer nessa habilidade um talento especial que demanda ser
instigado, assim como o da busca por conhecimentos em photoshop, entre outros. Ao
reconhecer a singularidade de cada criança, permitindo que ela viva uma pluralidade de
experiências no cotidiano da educação infantil, ela vai se tornando também coautora não só
do processo de documentação, mas de seu processo de aprendizagem.
A documentação pedagógica deve conter espaço para o novo que cada criança traz
consigo. Segundo Lydia Hortélio (2009), os educadores trabalham com o que há de mais novo
na humanidade, em suas palavras, a última novidade do mundo está “com a última criança
que nasceu” e por isso mesmo a pista sobre a melhor forma de escutar e documentar as
diferentes linguagens das crianças, talvez esteja escondida nos próprios portadores dessas
vozes, esperando por nos mostrar outras infinitas possibilidades de escuta e documentação,
talvez ainda inacessíveis para nós. Nesse sentido, o apelo singelo e forte de Hortélio (2009) nos
lembra algo de extrema simplicidade, mas de profundo potencial pedagógico:
12
Referências Bibliográficas
CARR, M; LEE, W. Learning stories: constructing leaner identities in early educaction. London:
Sage, 2012.
DAHLBERG, G; MOSS, P.; PENCE, A. Documentação Pedagógica: Uma prática para a reflexão e
para a Democracia in Qualidade na Educação da Primeira Infância: perspectivas pós-
modernas. Porto Alegre: Artemed, 2003.
KRAMER, Sonia. Avaliação na educação infantil: no avesso da costura, pontos a contar, refletir
e agir. Revista Interacções. Número especial: A avaliação nas Primeiras Idades. V10, n. 32,
2014. Disponível em: http://revistas.rcaap.pt/interaccoes/article/view/6345/4922 Acesso em
15 fev 2015.
PARENTE, Cristina. Portfólio: uma estratégia de avaliação na educação infantil. In: GUIMARÃES,
C. M.; CARDONA, M. J.; OLIVERIA, D. R. (orgs.). Fundamentos e práticas da avaliação na
educação infantil. Porto Alegre: Editora Mediação, 2014.
RIBEIRO, Bruna. Avaliação da educação infantil no Brasil: Subsídios para o debate. In Avaliação
"da" e "na" Educação Infantil: Reflexões e práticas para a construção de sentidos", 2015 (no
prelo).
13
RINALDI, Carla. Em diálogo com Reggio Emilia: escuchar, investigar, aprender. Peru: Grupo
editorial norma, 2011.
SILVA, Isabel Lopes da. Perspectivas e práticas da avaliação em educação infantil. In:
GUIMARÃES, C. M.; CARDONA, M. J.; OLIVERIA, D. R. (orgs.). Fundamentos e práticas da
avaliação na educação infantil. Porto Alegre: Editora Mediação, 2014.
14