Você está na página 1de 14

Documentação pedagógica e o desafio de cruzar fronteiras

Bruna Ribeiro1

“E como vamos juntar as histórias? Se está


tudo espalhada na cabeça do povo...”
(fala do filme Narradores de Javé)

Resumo

O presente artigo busca fornecer subsídios para a reflexão sobre a documentação pedagógica
no contexto das mudanças introduzidas pela LDB (Lei nº 12.796, de 2013) que postula que as
instituições educacionais devem expedir documentação que ateste os processos de
desenvolvimento e aprendizagem das crianças. Reflete sobre o significado desta
documentação para as crianças, professores e para a avaliação na educação infantil.

Introdução

As reflexões sobre avaliação NA educação infantil apresentadas neste artigo partem da


premissa que as discussões sobre avaliação na ou da educação infantil devem estar atreladas
às finalidades, pressupostos, objetivos e fins dessa etapa, já estabelecidos em documentos
oficiais nacionais e legislação vigente, conforme discutido em texto2 anterior que focou nos
fundamentos da avaliação DA3 educação infantil.
Interessa-nos, nesse artigo, focalizar nossa discussão na avaliação realizada NA
educação infantil, ou seja, naquela realizada dentro da unidade educacional pelos profissionais
que atuam cotidianamente com a criança e pelas próprias crianças e seus familiares, tendo o
desafio de construir uma documentação pedagógica que, embora “focada nas crianças
enquanto sujeitos e coautoras de seu desenvolvimento” (DIDONET, 2011) também busca
situá-las em uma dinâmica mais amplas das relações.
Encontrar as formas mais adequadas para se realizar esse tipo de avaliação pressupõe
um desafio que, como nos lembra SILVA (2014), para ser aceito, implica primeiramente tomar

1
Mestre em Educação pela PUC-SP. Assessora do DOT-EI da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo.
Coordenadora de Avaliações Educacionais na MOVE. bruna.ribeiro@movesocial.com.br
2
Avaliação da Educação Infantil no Brasil: Subsídios para o debate. Ribeiro. B. In: Avaliação "da" e "na" Educação
Infantil: Reflexões e práticas para a construção de sentidos", 2015 (no prelo).
3
Para saber sobre as definições “na” e “da” ver Didonet (2011).

1
consciência da importância da avaliação, situando-a como um importante dispositivo e parte
integrante da profissionalidade docente.
Desde 1996 a avaliação na educação infantil por meio do acompanhamento e registro
do desenvolvimento das crianças, sem o objetivo de promoção (inclusive para o acesso ao
ensino fundamental), já é uma orientação legal, via LDB. Por que, então, atualmente a
questão da documentação pedagógica voltou a ser alvo de polêmicas e discussões entre os
profissionais da área?

Situando a questão

A discussão sobre a avaliação na educação infantil ganhou especial atenção no cenário


atual brasileiro, frente às recentes mudanças introduzidas pela LDB (Lei nº 12.796, de 2013)
que em artigo 30, item V, postula que as instituições educacionais devem expedir
“documentação que possibilite atestar os processos de desenvolvimento e aprendizagem da
criança”. Isso significa que a documentação pedagógica de uma criança deverá ser
encaminhada à instituição educacional que a receberá no ano seguinte, seja de educação
infantil ou de ensino fundamental.
Essa orientação vem gerando movimentação ao menos em duas direções importantes:
no âmbito das políticas públicas e no âmbito das unidades.
A primeira porque delega às redes, sejam municipais e/ou estaduais e seus respectivos
órgãos normativos, a responsabilidade de discutir, explicitar e normatizar o que é essa
documentação (Ribeiro, 2015), respeitando assim a autonomia dos municípios/estados e
deixando espaços para as singularidades e especificidades de cada local. No entanto, vale
lembrar que as políticas públicas destinadas a esta etapa devem ser coerentes ao já
preconizado pela legislação educacional brasileira e aos documentos normativos da área,
como as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (2010), que apontam cinco
itens que devem ser garantidos nesse processo de acompanhamento e registro (RIBEIRO,
2015). Elas também devem respeitar princípios já garantidos por leis anteriores que postulam
que a avaliação deve ser realizada sem “objetivo de seleção, promoção ou classificação” (2010,
p.29) e deve sempre ser “da criança em relação a si mesma e não comparativamente com as
outras crianças” (BRASIL, 2012a, p.14).
Esse tipo de reflexão e normatização no âmbito das políticas públicas torna-se de
fundamental importância, como nos alerta a pedagoga italiana Carla Rinaldi, em tempos de

2
“proliferação de instrumentos de avaliação anônimos, descontextualizados e só
aparentemente, objetivos e democráticos”4 (2011, p.299).
A segunda, porque essa orientação vem gerando uma série de importantes
questionamentos entre as profissionais de educação infantil imbuídas da realização da
documentação. Questões que interrogam a natureza da documentação, como: O que deve
conter? Qual o foco? Que recursos utilizar? Como deve ser essa documentação? Para o que
será utilizada? Além de questões também fundamentais relacionadas ao processo de
elaboração da documentação e sobre quais seriam os sujeitos a serem envolvidos, como: em
que momento devo realizar essa documentação? Faço junto com as crianças ou devo ter uma
horário reservado em minha carga horária para isso? Quem participa?
O fato da documentação, que já era uma prática pedagógica recomendada para esta
etapa educacional, ser provocada a ser socializada para um número maior de envolvidos, vem
gerando reflexão e debate acerca de questões centrais que dizem respeito não somente à
avaliação em si, mas ao próprio cerne da educação infantil, pois a documentação pedagógica é
reveladora de concepções, práticas, planejamento e currículo.
Nesse sentido, refletir sobre documentação pedagógica é refletir sobre as
especificidades da primeira etapa da Educação Básica, buscando melhor definir seus contornos
e escolhas que traduzem os objetivos e fins esperados para as crianças que frequentam a
educação infantil. No entanto, para que a documentação pedagógica possa realmente ser um
instrumento para reflexão e planejamento não somente do professor, mas também do campo
da educação infantil, tendo como foco o desenvolvimento da criança, é preciso ir além e
compreendermos, como defende Oliveira-Formosinho (2014,p.181), a “natureza
desenvolvimental” da documentação pedagógica.

A documentação pedagógica: cruzando fronteiras


A natureza desenvolvimental da avaliação consiste, segundo a autora, no fato de
reconhecermos que ela visa à transformação e não mera constatação. Essa premissa pode nos
auxiliar na compreensão das recentes mudanças introduzidas na legislação brasileira, uma vez
que uma documentação que vise à transformação demanda um caráter itinerante e
socializador, ou seja, essa perspectiva provoca uma documentação pedagógica que percorra
diferentes espaços e contextos onde a criança transite, acompanhando-a também em seu
percurso de aprendizagem e desenvolvimento para que possa cruzar fronteiras, inclusive entre
educação infantil e ensino fundamental.

4
Tradução da autora.

3
Aliás, ser um objeto de fronteira é, segundo Moss; Girard; Greeno, 2008 (apud CARR;
LEE,2012,p.9), um dos objetivos da avaliação documentada que ao habitar “múltiplos e
heterogêneos mundos sociais (...) permite a comunicação e a cooperação entre esses
mundos”, ou seja, a documentação pedagógica deve ser a ponte que auxilia na comunicação
sobre a aprendizagem da criança entre escola e família, professores-professores, professor-
criança, educação infantil-ensino fundamental.
E para que a documentação pedagógica possa cumprir o papel de “ponte” que liga, às
vezes, contextos e lugares distintos, sua elaboração deve levar em consideração também,
segundo defende Parente (2014, p.294), “múltiplas vozes e perspectivas”. O que significa
trazer à tona juntamente com o olhar do educador, múltiplas perspectivas como a dos demais
membros da equipe educativa, a dos familiares e das próprias crianças e seus pares.
Pouco se fala ainda da possibilidade da inserção dos familiares no processo de
documentação pedagógica, mas muitos autores (PARENTE,2014;RINALDI,2011;
VALVERDE,2015) defendem a importância de se trazer o olhar e perspectiva desses atores,
uma vez que o desenvolvimento da criança se dá em múltiplos e variados contextos que a
unidade educacional precisa dialogar.
Spink (2001, p.12 apud RIBEIRO, 2013, p.66) justifica, ainda, a necessidade desta ação
baseando-se no fato de que vivemos em um mundo social constituído “pela presença
simultânea de saberes múltiplos que emergem e são transmitidos de diversos cotidianos”.
Assim, para que a documentação pedagógica possa realmente exercer seu papel de
cruzar fronteiras, sua elaboração deve se dar através de práticas compartilhadas e dialogadas
entre profissionais, familiares e crianças, objetivando tornar “o trabalho pedagógico visível e
acessível para o debate democrático” (BARBOSA; HORM, 2008, p.95).
Nessa perspectiva mais ampliada de documentação, a avaliação do desenvolvimento
da criança não se restringe a mera verificação de capacidades previamente estabelecidas,
onde se verifica as habilidades das crianças em um determinado momento, comparando-as
com padrões supostamente esperados para aquela faixa etária. Essa prática, no entender de
especialistas como Parente (2014b,p.10), significaria “reduzir um processo holístico e dinâmico
a um número ou medida” sendo que “tal opção não faz justiça às capacidades e competências
das crianças e em nada contribui para melhorar a qualidade das aprendizagens”.
A documentação pedagógica é aqui entendida como inerente a um processo dinâmico
e complexo e que, por isso mesmo, as ações de observar e registrar não devem se restringir
apenas à observação da criança; embora esta deva ser um sujeito privilegiado no processo,
deve-se aliar também a observação e o registro do contexto, das condições propiciadas e a
própria ação do educador (SILVA, 2014, p.155).

4
É importante termos clareza também que observar uma criança não significa captar a
criança real que temos a nossa frente, isso porque nossa olhar é marcado por nossa
subjetividade, o que impossibilita uma olhar neutro na documentação. A impossibilidade da
neutralidade no processo de documentação pedagógica é um alerta insistentemente feito por
Dahlberg; Moss e Pence (2003), que nos convidam a não ver isso como algo negativo e a ser
evitado, mas sim como algo a ser refletido para buscarmos melhor compreender como nossa
subjetividade, crenças, valores, vivências, entram no processo de observação, seleção,
interpretação e registro pedagógico.
Talvez uma das primeiras considerações para que os profissionais deem início ao
processo de documentação pedagógica seja a conscientização da impossibilidade da
neutralidade dessa documentação.

Construindo e compartilhando sentidos

Então, se documentar não é um ato neutro do educador, que possui um sentido de


antemão, verdadeiro e universal, e sim algo que deve ser construído e compartilhado pelos
diferentes atores envolvidos no processo, podemos afirmar que o primeiro passo da
documentação pedagógica é a busca da construção de sentidos!

A busca de sentidos é bem diferente da mera observação e registro, pois enquanto a


primeira procura construir uma narrativa viva, complexa e, por isso mesmo, às vezes
contraditória, a segunda entende que o significado está apenas no ver ou observar, como se
ele estivesse “repousando na natureza, esperando ser captado pelos sentidos” (Steedman,
1991, apud Dahlberg; Moss e Pence, 2003, p.193). Ao compreendermos o significado como
algo a ser construído, somos levados a um constante movimento de observação,
ressignificação, que nos torna cada vez mais conscientes das nossas escolhas e critérios.

Documentar é saber que não estamos narrando uma única e verdadeira história, mas
que estamos fazendo escolhas a partir de muitas incertezas e perspectivas possíveis (RINALDI,
2011) sendo que a história por nós narrada vai nos dando pistas sobre como construímos
nossa visão da criança, assim como de nós mesmos como pedagogos (DAHLBERG; MOSS e
PENCE, 2003), por isso é uma narrativa de autoreflexividade e nos ajuda a dar sentido a nossa
prática docente.

5
Segundo Rinaldi (2011) não podemos viver sem sentido, pois isso significaria excluir
toda identidade dos seres humanos e, nessa perspectiva, a documentação também deve fazer
sentido para todos, isso inclui os adultos e crianças envolvidos no processo. Esta autora
defende que a pergunta central que deve acompanhar todo o processo de documentação
pedagógica seria: como os profissionais de educação infantil podem ajudar as crianças a
encontrarem sentido no que fazem, encontram e experimentam? E como fazer isso conosco,
os educadores?

Essa busca pela construção de sentidos na e sobre a prática cotidiana para adultos e
crianças seria, nessa perspectiva, a espinha dorsal na qual a documentação pedagógica vai se
embasando e buscando construir uma narrativa que dê sentido ao caminho engendrado. No
entanto, essa não será uma narrativa final, acabada e única, e sim uma que vai se fazendo e
refazendo no caminhar, sendo continuamente reelaborada pelos diferentes sujeitos
envolvidos no processo.

E dos encontros e desencontros desses sujeitos que produzem também vozes


dissonantes e discordantes, vai nascendo uma documentação que parte do reconhecimento e
da explicitação das diferenças provocadas pelo diálogo (Rinaldi, 2011). Dessa forma, a
documentação poderá alcançar uma voz e uma identidade visível e passível de ser refletida,
confrontada e expressar a narrativa da vida das crianças, pedagogos e familiares.

Tornando as narrativas visíveis

Se um dos propósitos da documentação é garantir a escuta e a produção de rastros-


documentais capazes de dar testemunho e tornar visível a modalidade de aprendizagem
individual e grupal da criança, como os professores devem proceder em relação ao processo
de documentação: que conteúdos levar em consideração? O que priorizar? Quando selecionar
e analisar esses materiais, durante as vivencias cotidianas ou após? (RINALDI, 2011)

Segundo Dahlberg; Moss e Pence (2003), falar de documentação pedagógica é falar de


dois temas relacionados: conteúdo e processo. Por conteúdo, os autores entendem o
“material que registra o que as crianças estão dizendo e fazendo, é o trabalho das crianças e a
maneira com que o pedagogo se relaciona com elas e com seu trabalho”. É esse conteúdo que
vai tornar o trabalho pedagógico concreto e possibilitar o processo de documentação
pedagógica.

6
O processo de documentação envolve o uso desse “conteúdo” para que ele se torne
um meio (e não o produto final) para a reflexão do trabalho pedagógico, que ajuda a contar a
história de nossa própria prática docente, nos possibilitando “mais facilmente ver e questionar
a nossa imagem de criança, os discursos que incorporamos e produzimos e que voz, direitos e
posição a criança adquiriu em nossas instituições” (DAHLBERG; MOSS e PENCE; 2003, p.200).

O processo de documentação, ao focar no processo de desenvolvimento e


aprendizagem da criança, sem dissociá-lo do contexto objetivo e das interações a que estas
aprendizagens estão sujeitas passa a ser um importante registro vivo que, que permite
revisitar e rever experiências e eventos anteriores e possibilita não só a criação de memórias,
mas também novas interpretações e reconstruções do que aconteceu no passado, auxiliando
no presente e no planejamento de novas situações de aprendizagem.

Nessa perspectiva, a seleção do conteúdo e a análise do material não se dão de forma


estanque e isolada, em um processo gradual e linear. A documentação pedagógica é entendida
como integrante do procedimento que busca favorecer a aprendizagem e também modificar
as relações de ensino-aprendizagem no próprio momento em que elas ocorrem, isso demanda
que situemos o momento da seleção e da interpretação como indissociáveis.

Contudo, vale ressaltar que embora o ato da intepretação seja inerente ao momento
da seleção e registro, esse fato não invalida a necessidade de que os profissionais tenham um
espaço e tempo posteriormente reservado para trabalharem eles mesmos nas observações
realizadas e documentadas para tomar decisões e rever as propostas pedagógicas propiciadas
às crianças no geral e a cada uma em particular (PARENTE, 2014, p.176).

Esse movimento de reflexão deve se dar continuamente em todo o processo, durante


e depois, sendo de fundamental importância a garantia de espaços onde se possa realizar o
debate dos registros realizados com outros profissionais e atores, bem como espaços onde se
possa retornar esses registros às crianças, propiciando maneiras para que elas possam se ver,
se reconhecer, ser provocadas, discordar e também acrescentar fatos e percepções a respeito
das histórias que vivenciam; buscando, assim, que a documentação pedagógica assuma o
status de memória viva escrita por múltiplos autores.

Uma história de uma professora que realizava o registro de uma criança, contada por
Kramer (2014), ilustra a sensibilidade e capacidade que as crianças possuem de produzir
narrativas sobre si e sobre o que vivenciam em seu cotidiano:

7
“Certa vez (...) uma amiga contou que estava fazendo um registro e uma
criança perguntou: o que você está escrevendo? A professora respondeu que
estava fazendo uma anotação sobre ela e que depois mostraria para seus pais.
Em seguida a criança perguntou o que ela havia escrito e a professora leu. A
criança após ouvir respondeu à professora: então escreve isso também... e
disse coisas sobre ela na escola, que gostaria que estivessem escritas”
(KRAMER, 2014, p.21).

Quanto mais rico e diversificado for o processo de documentação, mais potencial ele
terá para gerar reflexão entre os sujeitos envolvidos; por isso, é importante que a
documentação pedagógica não se restrinja a uma única forma de registrar e documentar as
vivências das crianças.

Organizar e tornar o conteúdo dessas narrativas em algo visível, audível e


compartilhado é papel do educador, que necessita utilizar diferentes recursos e materiais,
buscando a coerência em um processo que se expressa através das múltiplas linguagens
infantis.

Muitas são as formas já apontadas em documentos e experiências nacionais e


internacionais. Vejamos algumas:

As DCNEI (2010) apontam a importância de os profissionais realizarem observações


críticas e criativas das atividades, brincadeiras e interações das crianças no cotidiano,
revelando, assim, um currículo que se expressa a todo instante e não somente nos momentos
de “atividades dirigidas”. Nesse sentido, as observações devem buscar captar as nuances desse
currículo vivenciado por meio das brincadeiras, interações e múltiplas experiências e que são
reveladoras das aprendizagens infantis.

O Parecer do Conselho Nacional de Educação/CNE/CEB 20/09 também ratifica


elementos já apontados na legislação educacional e documentos da área, enfatizando a
importância dos registros serem realizados de forma “sistemática, crítica e criativa” de modo a
olhar para cada criança em si e também para o grupo do qual ela faz parte e utilizando-se de
uma ampla gama de registros que devem ser realizados tanto por adultos como pelas crianças.

Dahlberg; Moss e Pence (2003) citam algumas formas utilizadas para documentação
pedagógica pelos profissionais de educação infantil de um Projeto que ficou conhecido como
Estocolmo. São elas: Observações manuscritas do professor em relação ao que é dito e feito
pelas crianças; Registro das falas das crianças durante a realização das atividades cotidianas;
Registros em áudio e vídeo; Fotografias; Gráficos de computador e os trabalhos das crianças.

8
Em pesquisa realizada pelas educadoras brasileiras Barbosa e Horm (2008, p.104-111),
elas destacam e discorrem sobre alguns instrumentos utilizados por profissionais de EI para
apoiar seu processo de documentação pedagógica e reflexão de sua práxis. São eles: Diário de
campo; anedotários; diário de aula; livro da vida ou da memória do grupo; planilhas (material
quantitativo); entrevistas com professores, crianças, pais; debates ou conversas; relatórios
narrativos; autoavaliação; trabalhos de integração e consolidação dos conhecimentos; coleta
de amostras de trabalho; fotografias e gravações; depoimentos de pais, comentários de
colegas e estudos de teóricos.

Visando a normatização da Lei Federal 12.796/2013, os municípios brasileiros estão


produzindo orientações acerca do conteúdo da documentação a ser expedida pelas
instituições, como é o caso da Orientação Normativa (São Paulo, nº01/13), elaborada pela
Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, que tem por objetivo orientar às instituições
de educação infantil a respeito do conteúdo mínimo que a ser contemplado na documentação
pedagógica.

A documentação pedagógica, de acordo com a Orientação Normativa de São Paulo,


tem por objetivo refletir a “trajetória percorrida pelas crianças” e “fornecer aos
educadores(as) elementos necessários para a continuidade do trabalho pedagógico”
(2013,p.33) e deve conter:

a. O percurso realizado pelo grupo decorrentes dos registros semestrais;


b. O percurso realizado pela criança individualmente nesse processo;
c. Anotações contendo falas ou outras formas de expressão da criança que reflitam sua autoanálise;
d. Parecer do(a) educador(a) fundamentado nas observações registradas no decorrer do processo;
e. Parecer da família quanto às suas expectativas e os processos vividos.
f. Observações sobre frequência da criança na Unidade, como indicador de sua interferência no processo de
desenvolvimento e aprendizagem da criança.
g. Outras informações julgadas pertinentes.

Como podemos constatar apenas por essa breve incursão, são muitos e diversificados
os recursos que podem ser utilizados para a documentação pedagógica, sendo “a criatividade
a única limitação imposta” (SHORES e GRACE, 2001, apud PARENTE, 2014, p.45).

O importante, no entanto, é que essa documentação pedagógica seja inserida em um


processo de avaliação da aprendizagem, tanto da criança, como do próprio educador e da
educação infantil como um todo, uma vez que pode fornecer elementos que propiciem “que
cada um se veja e se reconheça no processo, refazendo trajetórias e identificando por
intermédio da documentação os “discursos e os regimes dominantes que exercem poder sobre

9
nós e por meio de nós, pelos quais temos construído a criança e nós mesmos como
pedagogos” (DAHLBERG; MOSS e PENCE,2003, p.99).

Essa nova forma de compreender a documentação pedagógica, não a restringindo a


uma tarefa mecânica e burocrática desprovida de um sentido maior, produz mudanças não
somente na nossa forma de avaliar, mas principalmente, na forma como concebermos a
relação de ensino-aprendizagem nos aproximando de práticas pedagógicas e,
consequentemente, avaliativas mais alinhadas aos fins e pressupostos da educação infantil.

E nesse sentido, a documentação pedagógica mencionada na LDB a ser expedida pelas


instituições não é “algo novo” ou na contramão do que já vinha sendo orientado legalmente
na área. A “novidade”, se é que assim podemos chamar, fica por conta do lugar que a
documentação pedagógica passa a ocupar devendo ser assumida como espinha dorsal do
currículo da educação infantil e forma privilegiada de acompanhar o desenvolvimento da
criança que por ser único e singular, não cabe dentro de fórmulas engessadas e estanques,
com conceitos como “satisfatório, não satisfatório”, entre muitos outros.

Se compreendermos o processo de aprendizagem e desenvolvimento da criança como


único e singular, não reduzido a práticas classificatórias e comparativas entre as crianças,
compreenderemos também que a avaliação dessa aprendizagem só pode ser fiel a esse
complexo e rico processo, se ela também for única e pensada artesanalmente caso a caso. O
que significa que, ao invés de documentos padrões sobre desenvolvimento, teremos uma
também rica, complexa e diversificada gama de documentações pedagógicas, que ganharão
contornos específicos de acordo com a realidade de cada instituição, turma e criança.

Mesmo que exista um roteiro em comum que o professor utilize, como por exemplo,
observar a questão da brincadeira, interações, ainda assim a documentação de cada criança
divergirá no que diz respeito ao como ela se relaciona com essas questões, sendo que o
parâmetro será sempre o da criança em relação a ela mesma e seu nível de desenvolvimento
inicial e não um critério externo a ela, ou seja, as avaliações serão especificas e singulares,
assim como o são os processos de aprendizagem e desenvolvimento de cada criança.

Desse modo, a documentação pedagógica se apresenta como um ato de celebração


das aprendizagens, dos desafios do caminho, da conquista da singularidade e também da
aprendizagem com os pares, das reflexões dos adultos envolvidos, enfim, se apresenta como
um ato de celebração da vida, com todas suas nuances e contraditoriedades.

10
Uma documentação que leve em conta todos os elementos discutidos até aqui,
certamente não produzirá uma receita infalível de sucesso, mas talvez um caminho... E um
caminho que, embora repleto de contradições, idiossincrasias, avanços, estagnações e
momentos de dúvida, talvez seja o mais potente, pois revelador de uma criança real.

Para finalizar esta reflexão, trazemos aqui uma história por nós vivenciada e que,
talvez por sua forte simbologia, possa auxiliar na síntese do que a documentação pedagógica
atenta e sensível é capaz de engendrar com adultos e crianças, seja da educação infantil ou
ensino fundamental...

Compartilhando histórias para construirmos sentidos...

“Celebrar as aprendizagens em vez de pretender conhecer e identificar os déficits da


criança” (PARENTE, 2014, p.293) poderia ser a frase síntese que traduz a simples, mas potente,
experiência que tivemos a oportunidade de acompanhar em uma escola em Reggio Emilia que,
ao realizar uma atividade de encerramento do ciclo da educação infantil, juntamente com os
familiares das crianças, que seguiriam agora para outras instituições. O ritual de passagem ou
transição era feito de forma extremamente singela, mas significativa para todos os envolvidos,
e consistia na professora chamar uma a uma as crianças de sua turma e ir apresentando as
potencialidades que se destacaram em relação àquela criança no contexto daquele grupo.

Potencialidades reconhecidas não só pelas professoras, mas também legitimadas pelo


grupo de crianças, que ficavam claramente entusiasmadas, ao se reconhecerem e
reconhecerem seus amigos na narrativa da professora que trazia frases extremamente
simples, como: Vitor especialista em dinossauros, ao que Vitor ia à frente todo orgulhoso e
recebia tapas nas costas e gritos de alegria de seus amigos, que realmente o viam como o
especialista de dinossauros do grupo. E assim, uma a uma, as crianças eram introduzidas a um
ritual de passagem que as encorajava e as deixava tranquilas e seguras em relação a sua
singularidade e capacidade, bem como de sua pertença e contribuição a um grupo. Assim
como Vitor, muitos outros especialistas foram apresentados, havia de tudo, especialista em
photoshop, futebol, em tubarões e até em gentileza!!! Os pais, animados e emocionados,
também reconheciam aqueles atributos em seus filhos e, assim, uma narrativa ia sendo
costurada e legitimada por muitos atores.

É claro que a singeleza e simplicidade daquele momento escondiam uma complexa e


intensa documentação pedagógica, no sentido de que só posso saber do outro se me disponho

11
a escutá-lo, a estar com ele; só sei que Gabriela é especialista em gentileza, se permito que ela
tenha espaço para expressar isso no cotidiano da instituição e que eu também, como
profissional, possa reconhecer nessa habilidade um talento especial que demanda ser
instigado, assim como o da busca por conhecimentos em photoshop, entre outros. Ao
reconhecer a singularidade de cada criança, permitindo que ela viva uma pluralidade de
experiências no cotidiano da educação infantil, ela vai se tornando também coautora não só
do processo de documentação, mas de seu processo de aprendizagem.

A documentação pedagógica deve conter espaço para o novo que cada criança traz
consigo. Segundo Lydia Hortélio (2009), os educadores trabalham com o que há de mais novo
na humanidade, em suas palavras, a última novidade do mundo está “com a última criança
que nasceu” e por isso mesmo a pista sobre a melhor forma de escutar e documentar as
diferentes linguagens das crianças, talvez esteja escondida nos próprios portadores dessas
vozes, esperando por nos mostrar outras infinitas possibilidades de escuta e documentação,
talvez ainda inacessíveis para nós. Nesse sentido, o apelo singelo e forte de Hortélio (2009) nos
lembra algo de extrema simplicidade, mas de profundo potencial pedagógico:

“A gente tem que olhar os meninos...”

12
Referências Bibliográficas

BARBOSA, Maria Carmem Silveira; HORN, Maria da Graça Souza. Da avaliação ao


acompanhamento (p.103-114). Projetos Pedagógicos na educação infantil. Porto alegre:
Artmed, 2008.

BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei federal n.9.394/96, de 26 de


dezembro de 1996. Brasília.

________. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil. Ministério da Educação.


Secretaria de Educação Básica. Brasília: MEC, SEB, 2010.

CARR, M; LEE, W. Learning stories: constructing leaner identities in early educaction. London:
Sage, 2012.

DAHLBERG, G; MOSS, P.; PENCE, A. Documentação Pedagógica: Uma prática para a reflexão e
para a Democracia in Qualidade na Educação da Primeira Infância: perspectivas pós-
modernas. Porto Alegre: Artemed, 2003.

DIDONET, V. A Avaliação na e da Educação Infantil. 2011. Disponível em:


http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/Educacao/Doutrina/Avalia%C3%A7%C3%A3o%20
na%20Educa%C3%A7%C3%A3o%20Infantil%20-%20Vital%20Didonet.doc Acesso em 4 jan
2015.

KRAMER, Sonia. Avaliação na educação infantil: no avesso da costura, pontos a contar, refletir
e agir. Revista Interacções. Número especial: A avaliação nas Primeiras Idades. V10, n. 32,
2014. Disponível em: http://revistas.rcaap.pt/interaccoes/article/view/6345/4922 Acesso em
15 fev 2015.

OLIVEIRA-FORMOSINHO, Júlia. O projeto EEL-DQP: avaliação e desenvolvimento da pedagogia


sustentada na documentação pedagógica. In Fundamentos e práticas da avaliação na
educação infantil. GUIMARÃES, C. M.; CARDONA, M. J.; OLIVERIA, D. R. (orgs.). Porto Alegre:
Editora Mediação, 2014.

PARENTE, Cristina. Portfólio: uma estratégia de avaliação na educação infantil. In: GUIMARÃES,
C. M.; CARDONA, M. J.; OLIVERIA, D. R. (orgs.). Fundamentos e práticas da avaliação na
educação infantil. Porto Alegre: Editora Mediação, 2014.

______________. Avaliação na educação de infância: itinerários de uma viagem de educadores


de infância na formação inicial. Revista Interacções. Número especial: A avaliação nas
Primeiras Idades. V10, n. 32, 2014b. Disponível em:
http://revistas.rcaap.pt/interaccoes/article/view/6358/4931 Acesso 10 fev 2015.

RIBEIRO, Bruna. Avaliação da educação infantil no Brasil: Subsídios para o debate. In Avaliação
"da" e "na" Educação Infantil: Reflexões e práticas para a construção de sentidos", 2015 (no
prelo).

____________. Indicadores da qualidade na educação infantil: potenciais e limites. Rev.


educ. PUC-Camp., Campinas, 18(1):65-74, jan./abr., 2013.

13
RINALDI, Carla. Em diálogo com Reggio Emilia: escuchar, investigar, aprender. Peru: Grupo
editorial norma, 2011.

SÃO PAULO (SP). Secretaria Municipal de Educação. Diretoria de Orientação Técnica.


Orientação Normativa nº 01: avaliação na educação infantil: aprimorando os olhares-
Secretaria Municipal de Educação- São Paulo: SME/DOT, 2014.

SILVA, Isabel Lopes da. Perspectivas e práticas da avaliação em educação infantil. In:
GUIMARÃES, C. M.; CARDONA, M. J.; OLIVERIA, D. R. (orgs.). Fundamentos e práticas da
avaliação na educação infantil. Porto Alegre: Editora Mediação, 2014.

VALVERDE, Sonia Larrubia. A Documentação Pedagógica: um recurso a favor da aprendizagem


dos bebês e das crianças. Revista Magistério. Secretaria Municipal de Educação. N. 4 São
Paulo: SME/DOT, 2015. Disponível em:
http://portal.sme.prefeitura.sp.gov.br/Portals/1/Files/10589.pdf Acesso 03 março 2015.

14

Você também pode gostar