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Raphael Draccon

DRAGÕES DE ÉTER
CAÇADORES DE BRUXAS
Adaptação de
Livros d’Hoje
PARTE I

CAÇADORES DE LOBOS
·1·
E um lobo devorou-lhe a avó.
Certo, esta não é a melhor notícia que alguém gostaria de receber, mas
foi exatamente o que aconteceu àquela menina. E pior: ela assistiu a tudo,
presenciou de camarote a sangrenta carnificina.
Viu a carcaça da avó a ser devorada, viu o assassino avançar sobre si
própria para a dilacerar da mesma forma que à pobre senhora, e viu tam-
bém o seu salvador aparecer com uma espingarda engatilhada para dar
cabo da vida do carnívoro.
Primeiro, vamos falar da avó. Admito que parece imprudente pensar
que uma idosa poderia não ver nenhum perigo em viver sozinha e isolada
no meio de uma floresta, longe pelo menos dois quilómetros de qualquer
alma viva, a não ser dos pássaros ou outros animais menos ameaçadores
do que um grande lobo faminto. Mas, se perceber como funcionavam as
coisas naquelas regiões, também perceberá que não existia assim tanta
imprudência.
A senhora Narin era uma dessas senhoras simpáticas que adoravam
contar histórias da infância saudosa às crianças. Por vezes, queixava-se
com dores e outras reclamações típicas das senhoras mais idosas, mas
muito poucas vezes alguém ouvia os seus lamentos. E isto não acontecia
por uma possível mania hipocondríaca da pobre senhora, pelo contrário,
simplesmente não existiam pessoas para ouvirem tais lamentos no raio
de um quilómetro.
E porquê esta vida tão solitária? Ora, conhece melhor forma de procurar
a paz do que o isolamento? Pense comigo: falamos de uma senhora que
casou cedo, como quase todas as senhoras de antigamente – e, digo mais,
como também quase todas as raparigas de hoje –, dedicou-se ao marido,
criou uma filha e viu nascer uma neta. O marido partiu, quando chegou
a sua hora, e ela passou a acreditar, desde esse dia, que também estava
próximo o momento de se unir a ele. Claro, imaginou que isso acontece-
ria de forma natural e não pela violência de um lobo faminto, mas o que
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é que se pode fazer? O importante a sublinhar, neste momento, é que a


senhora Narin considerava a sua missão cumprida e só queria viver em
paz durante o tempo que imaginava restar-lhe.
Eu já me teria dado por satisfeito, mas posso aceitar, se ainda não
entendeu, porque é que, mesmo com os argumentos apresentados,
o facto de uma velhinha morar sozinha no meio de uma floresta continua
a ser considerado por si uma total imprudência. Bom, vamos tentar outra
vez. Acontece que, na cidade de Andreanne, as coisas sempre foram tran-
quilas. Bem, pode não parecer, nas atuais circunstâncias, mas assim foi na
maior parte do tempo. E, tudo bem, não foi a primeira vez que essa harmo-
nia foi quebrada, é verdade, mas isso é uma coisa que lhe vou contar daqui
a pouco; por enquanto, acreditemos estar em tempos de paz neste lugar.
Ou, pelo menos, estávamos, antes de um lobo devorar uma pobre senhora
que simplesmente esperava a neta para um delicioso e adorável jantar
jamais realizado. Por falar em neta, está na altura de falar da menina.
Ariane Narin. Os especialistas, que neste lugar não são mais do que um
ou dois, afirmam que esse nome significa «a santa», «a castíssima», «a
muito pura». Bom, não importa a opinião desses especialistas, que me
parecem de assunto nenhum. Se for mesmo esse o significado de Ariane
ali, naquele dia, isso mudou. E digo isto porque uma menina de nove anos
viu a própria avó ser devorada por um lobo gigantesco mesmo diante dos
seus olhos, o que lhe permitiu conhecer a chamada Lei do Mais Forte;
a Maldade e a Bondade em disputa pelo próprio ponto de vista. E não há
ninguém, por mais inocente que seja, que não se choque com a descoberta
de que o mundo não é tão bom e puro como, no princípio, parecia.
E, assim, como pode ser difícil para si entender o facto de uma senhora
viver isolada no meio da floresta, também é extremamente chocante ima-
ginar uma mãe a ter a coragem de mandar uma menina de nove anos
sozinha pela floresta, por uma distância de não menos de dois quilóme-
tros, com uma cesta de comida no braço e um chapéu branco na cabeça.
Mas não vamos julgar nada apressadamente; qualquer ser humano tem
direito à defesa antes de ser julgado por quem ou pelo que quer que seja,
e a senhorita Narin não era doida nem irresponsável, nem um animal
sem esse direito. Entretanto, os motivos que a levaram a deixar a pequena
Ariane ir sozinha à casa da avó, naquele dia trágico, também não serão
explicados agora. Há ainda dois personagens importantes nesta cena que
não foram apresentados.
Primeiro, o assassino. Bom, se está a acompanhar e a perceber a
história, considero que o está a fazer sob o ponto de vista humano da
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narrativa e, por esse prisma, o lobo gigantesco nada mais é do que


um assassino sanguinário de senhoras solitárias e indefesas. Mas já
não pensaria assim se considerasse os factos da perspetiva do animal.
Pois estamos a falar de um lobo faminto e carnívoro e de uma pessoa
que resolveu, por vontade própria, morar sozinha no meio da floresta!
Falando assim até parece que estou do seu lado na questão da impru-
dência de alguém morar só no meio de uma floresta; mas é um erro da
sua parte pensar assim. Apenas vejo a situação do ponto de vista de um
lobo faminto. E também não me venha dizer que defendo lobos que
comem velhinhas e suas netinhas. O que acontece é que tenho a mente
aberta para perceber que a bondade e a maldade disputam entre si os
seus próprios pontos de vista! E da perspetiva animal, cada vez que um
ser humano faminto mata um boi ou uma vaca para se alimentar,
é tão assassino como um lobo faminto que mata um ser humano com
o mesmo propósito.
E o salvador? Sim, o caçador herói – do ponto de vista humano – que
meteu duas balas no peito da criatura. Este personagem será importante
para esta história, mas não será agora que tratarei de maiores detalhes da
sua vida. C’os diabos! – o leitor deve estar a protestar por todas as boas
informações desta narrativa parecerem estar a ser relegadas para o futuro.
Ei! Estamos prestes a conhecer uma longa história, e qual seria a graça se
tudo fosse revelado de maneira tão fria e deselegante?
O que realmente deve ser salientado neste momento é apenas o facto de
que o caçador abrira o peito do animal segundos antes de o lupino gigan-
tesco ter qualquer hipótese de devorar uma menina inocente em choque.
E foi então que as balas de chumbo lhe acertaram no corpo, abrindo dois
rombos do tamanho de um joelho, no peito do bicho. O corpo espirrou
sangue, rubro como o de um homem, empestando ainda mais o ambiente
com aquele cheiro ferruginoso insuportável. E foi nessa altura que o san-
gue do lobo banhou ainda mais o chapéu pálido da criança.
E o branco ficou vermelho.
O incidente foi suficiente para mudar a vida de Ariane Narin, tornando-a
conhecida na sua região, embora ela preferisse viver para sempre no ano-
nimato a ser conhecida como a menina que viu a avó ser devorada por um
enorme lobo faminto. Mas Ariane não teve nem jamais terá essa sorte,
pois, como já foi dito, naquele dia ela perdeu a pureza com a qual a mãe
sempre cercou a sua infância. E as pessoas podiam nem sequer saber o
seu nome ou o da avó ou o da mãe ou o do caçador herói, mas conheciam a
sua história. E, se o seu nome não fosse reconhecido, reconhecê-la-iam por
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outro. O nome que ela mais detestava no mundo e que parecia persegui-la
como uma lagartixa decidida atrás de uma borboleta sem sorte.
Refiro-me a um nome, uma alcunha. Um fardo; uma alucinação
denominada pela forma de um antigo e sinistro chapéu alvacento infan-
til, friamente manchado pela cor do sangue de uma senhora simpática
dilacerada e de um enorme lupino abatido.
Um legítimo e maldito chapéu vermelho.
·2·
A cidade de Andreanne talvez seja a mais importante de todo o con-
tinente do Ocaso. Basicamente, o motivo é por ser a capital do Reino de
Arzallum, este sim, com certeza, o mais importante de todos os Reinos.
Também básico é o motivo de ser esse o mais importante dos Reinos
ocasienses: fora ele o primeiro Reino da história do continente e o local
onde o Ocidente começou a compreender-se como civilização. É sabido
– ou pelo menos assim se pensa naquelas terras – que a vida se iniciou
do outro lado do mar, no continente Nascente, mais pequeno do que o
continente do Ocaso. Também se sabe que nesse mundo existem apenas
dois continentes: o Nascente, a leste, e o Ocaso, a oeste, denominações
óbvias para quem levar em consideração o nascer do Sol como referência.
E deve ser um consenso que, para alguém sair de um continente conhe-
cido e enfrentar uma destemida viagem de navio até outro, inteiramente
desconhecido, só o pode fazer por insatisfação ou desejo alucinado de
aventuras. Esses dois desejos eram os principais motivadores de todos os
que desembarcaram em Andreanne.
Mas, porquê essa denominação? O facto é que o continente foi desco-
berto por uma pirata com o mesmo nome, na época em que a pirataria
era romântica e os piratas mereciam batizar cidades. Andreanne – e falo
agora da mulher – em nada ficava atrás de qualquer pirata da sua época
e, digo mais, o mesmo aconteceria hoje ou amanhã. Na verdade, até hoje,
nenhum pirata teve o seu estilo, a sua inteligência e a sua capacidade de
raciocínio frente a um grupo de homens mais próximos das bestas do que
dos civilizados. Por acaso, imagina o que era liderar e ser respeitada por
um grupo de mercenários a cheirarem a rum e sangue, sendo mulher e
sem precisar de cortar gargantas com as próprias mãos? Bom, talvez uma
ou duas, mas não muito mais do que isso. E os semideuses sabem como
era bela! Oh, sim, eles sabem.
Falando assim, até parece que conheci pessoalmente Andreanne, mas
teria de ser o mais velho do mundo para ter tido tal prazer. E sê-lo-ia, se
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pudesse escolher, acrescento. A realidade é que o que estou a dizer está


escrito num qualquer livro histórico da Biblioteca Real dessa cidade; basta
apenas procurar nas prateleiras certas, algo raro, já que hoje em dia é tão
difícil ver os jovens procurarem, mesmo nas prateleiras erradas. Aliás,
uma das melhores decisões alguma vez tomadas por um Rei talvez tenha
sido a construção da Biblioteca Real de Andreanne. Toda a história daquele
Reino, e muita da história daquele continente, está registada naquele
lugar por escribas pacientes. É tudo obra de Primo Branford, o Rei que
qualquer Reino gostaria de ter. Um Rei à altura de uma cidade-capital
como Andreanne.
E é sobre ele que vou falar agora.
Primo Branford era o maior de todos os Reis que alguma vez ocupa-
ram o trono do Reino de Arzallum ou de qualquer outro. Nascido na
pobreza, posto à prova pelo sacrifício e destinado ao sucesso, Primo era
o mais velho de três irmãos, que receberam os nomes Segundo e Tércio,
de acordo com a sua chegada ao mundo. Quando digo que foi destinado
ao sucesso, não me limito só a ele, mas a toda a família. A história dos
Branford é conhecida por todo o povo de Arzallum e também pelos povos
de todos os Reinos. Afinal, até hoje nunca ouvi história mais fascinante do
que a dos três irmãos pobres, filhos de um moleiro de nome Hams, que
se separaram na infância miserável para se reencontrarem, anos depois,
como Reis. E, sim, refiro-me aos três e a cada um com a sua própria histó-
ria e o seu próprio caminho árduo, da pobreza máxima até à consagração
suprema, um fenómeno predestinado e difícil de ser repetido na história
da humanidade.
Talvez, de todos os três, a história mais interessante e famosa da esca-
lada e chegada ao poder seja a de Tércio, que se tornou marquês com a
ajuda de um bichano humanoide, linguarudo e convencido, que vestia
roupas e botas de couro e as vestimentas oficiais dos soldados do Reino
de Mosquete. Um feito impressionante, com certeza, mas não é essa a
história que iremos acompanhar hoje; talvez numa outra oportunidade,
mas não hoje. Entretanto, Primo será sempre lembrado como o Maior de
Todos os Reis, ainda que a sua história não seja a mais cativante de todas
as três, e essa é a maior façanha da sua vida.
E quando falamos dele estamos a falar de um Rei que se portava
como todos os Reis se deveriam portar. Um Rei que usava aquela barba
comprida, que dá propositadamente a qualquer Rei um aspeto sábio de
tempo e aventuras vividas, e armaduras ou vestimentas com o brasão real
à mostra, para incentivar um culto do nacionalismo através do exemplo.
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Arrastava capas presas aos ombros com postura; montava cavalos para
combates de justas; sabia com que talher espetar um javali antes e depois
do meio do dia; conhecia de cor estratégias e citações militares.
O Rei Primo baixou os impostos por compreender que não deveriam
manter-se altos apenas para aumentar os privilégios – obviamente retira-
dos – dos nobres de Arzallum. Ao princípio, claro, isso irritou e fragilizou
a aliança que tinha com eles, mas Primo contornou sempre as situações.
Se, por um lado, retirava aos nobres os privilégios que mexiam no bolso
do povo, dava-lhes, por outro, privilégios que não afetavam muito o povo.
Os nobres podiam por direito, por exemplo, servir-se em qualquer taberna
da cidade sem pagar um tostão por isso! Injusto? Não seria essa a resposta
de um dono de taberna, que preferiria servir um nobre glutão durante sete
ou oito ou nove noites por mês, se com isso tivesse os seus impostos reais
reduzidos em quase setenta ou oitenta por cento.
Para além isso, Primo também acabou com a servidão de qualquer
espécie. Construiu farmácias, hospitais e escolas. Obviamente, a Biblioteca
Real fora ideia sua, como tudo o que Andreanne possuía de bom. Mas uma
construção, porém, e por ironia do destino a mais popular de todas, não
foi obra de Primo, e não sei se tal coisa lhe causara, ou não, um pouco
de frustração. Mas, se não foi dele a ordem de construção, dele partiu a
ordem – e já passaram seis anos, mas lembro-me como se tivesse sido
ontem, ou anteontem, no máximo – para que os melhores arquitetos reais
se reunissem para planearem as reformas, a ampliação e a reformulação
da maior casa de espetáculos de todo o Ocaso. Pois o Rei ordenou que o
que antes era apenas um teatro nobre de médio porte se tornasse a maior
casa de espetáculos da história desse mundo, e mais, com lugares para o
povo a preços acessíveis.
O Majestade.
Um local muito importante para Andreanne e todo o Reino de Arzallum
e também muito importante para esta história. Através dele conhecia-se
muito bem o estilo de vida dos cidadãos deste mundo. E, para melhor
se adaptar ao que virá, é necessário conhecer bem o estilo e a forma de
pensar deste povo.
E isso o Majestade pode dar-lhe.
Ah, sim, isso com certeza que pode.
·3·
– Uau! Olha só o tamanho disto! – exclamou Ariane, sentada na pri-
meira fileira do imponente Majestade. – Caramba, mas o que é este palco?
O Majestade era grandioso, e os lugares populares, se bem que não
fossem os mais confortáveis, eram suficientes. Diversas poltronas tinham
sido colocadas paralelamente e de maneira idêntica, capazes de abriga-
rem um número próximo de mil plebeus e com uma visão do palco que,
se não era a melhor, era perfeitamente aceitável para quem precisava de
espetáculos para lavar a alma e sorrir como um nobre, ainda que por um
instante inesquecível na mente e motivador no coração. Havia camarotes
acima das poltronas que podiam ser reservados, contudo, o camarote
central era um caso único e impossível de conseguir mesmo comprando
bilhete. Isto porque se tratava do Camarote da Majestade, destinado à
família real. Sentar-se num daqueles cobiçados lugares só era possível com
o convite de um Rei, de uma rainha, de um príncipe ou de uma princesa.
E convenhamos que quem conseguisse tal feito seria alvo de conversas de
nobres e plebeus por tempo indeterminado.
– E estes desenhos! Isto deve ter dado muuuuuuito trabalho! – Os olhos
infantis perseguiam tudo o que, para ela, era novo. O brasão de Arzallum
aparecia em todo o lado, na forma de um dragão alado no cimo de uma
espada e de um escudo. Como já foi dito, o Rei Primo fazia questão de
considerar aquele lugar um orgulho para o seu povo e incentivar um
culto à bandeira de Arzallum, fosse de que maneira fosse. Por isso, se lá
entrasse, veria o brasão em toda a parte. Sempre. E ele representava todos
os sentimentos de quem quer que morasse em Andreanne. O naciona-
lismo, o culto ao brasão, o amor à bandeira. Mas não estamos a falar desses
nacionalistas cegos que fazem guerras em nome de uma nação, e sim de
pessoas que saíram de um continente para reconstruírem as suas vidas
noutro e fazerem deste a sua nova casa, a sua nova morada e o seu único
lar. O Majestade lembrava-as disso e dava-lhes a impressão de terem feito
a escolha certa.
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Os espetáculos eram anunciados na praça pública e os nomes eram


colocados em cartazes pintados à mão por habilidosos pintores letrados
de excelente caligrafia. A propaganda boca a boca também era inevitável
e existia nisso uma certa magia silenciosa e selada. Se o espetáculo fosse
bom e agradasse na estreia, teria público garantido durante muitos dias.
Agora, se não fosse agradável, poderia juntar logo os seus responsáveis e
migrar para outra cidade saboreando o fracasso, o que era uma pena, pois
era muito difícil chegar ao Majestade! E essa dificuldade tinha uma razão:
Primo queria que o Majestade fosse o cume da carreira de um artista,
a sua consagração final.
E conseguiu-o.

Aquele dia, para variar, foi um daqueles em que a casa esgotou por
causa de uma estreia. Era um espetáculo teatral com ar circense, do tipo
que as crianças adoram por causa dos bufões que satirizavam propositada-
mente os nobres, e, exatamente por esse motivo, não havia melhor ocasião
para as professoras da Escola Real do Saber levarem os seus jovens alunos
a conhecerem o mítico local. E o melhor: tudo pago pelo Rei. O amado e
saudado Rei Branford.
As crianças foram as primeiras a entrar e ocuparam os primeiros
lugares. Os pais, em filas muito mais afastadas, puderam vê-las a sorrir,
felizes, tão próximas do palco, e só quem é pai e teve uma vida difícil sabe
o que é alegrar o coração de um filho em momentos impossíveis de serem
descritos pela razão, os quais só a emoção controla.
– Professora, será que podemos cumprimentar os atores depois da
representação?
– Claro, Ariane. Os atores adoram essa parte! – a professora sorriu;
a menina, também.
Para Ariane Narin, momentos como aquele eram uma dádiva, pois
neles podia esquecer o mundo e, principalmente, o mundo podia esquecer-
-se dela. Esquecer essa menina que viu a avó ser devorada por um lobo
assassino e se tornou uma lenda na cidade, andando na boca de toda a
gente e até mesmo de pessoas que nunca a tinham visto, com uma alcunha
que detestava. Esta parte da história passa-se quatro anos depois daquele
incidente marcante e, portanto, estamos a falar de uma menina recém-
-saída da infância dos seus nove anos para se tornar numa pré-adolescente
de doze, a poucos dias de completar treze anos.
– Senhoras e senhores! Meninos e meninas! Estou aqui para, em nome
de todo o elenco, dar as boas-vindas a todos os presentes e espero, do
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fundo do meu coração romântico, que gostem do espetáculo que hoje vos
será apresentado! – quem fazia a abertura do espetáculo era um homem
vestido com uma réplica circense de armadura, e a maioria sabia que se
tratava de Gerald Thomas II, diretor daquela famosa peça teatral. – Por
favor, aguardem os três toques do sino, sentem-se confortavelmente nes-
sas maravilhosas cadeiras e tenham um bom espetáculo!
As pessoas aplaudiram. Ariane estava de olhos arregalados. Se depen-
desse apenas dela, tinha-se sentado sozinha, longe das outras crianças.
Não que o incidente macabro a tivesse tornado antissocial ou mesmo
depressiva; com o tempo, vai conhecê-la melhor e poderá notar que conhe-
cer o Mal e a fragilidade da vida a fez supervalorizar a dádiva de viver.
Entretanto, ela ainda era um ser humano e, como tal, propícia a mudanças
de temperamento drásticas, sem maiores explicações. E não era assim tão
incompreensível o facto de se querer sentar sozinha naquele dia. Como
explicado, apenas detestava ser o centro das atenções em grandes eventos,
o motivo de comentários benignos ou maldosos (a maioria, maldosos) e
o resultado de olhares curiosos, assustados ou intrigantes, o que no caso
a irritavam com a mesma intensidade.
– O ator desta peça é muito giro, não é, João?
Bem, eu disse que ela teria gostado de se sentar sozinha, não disse?
Perdoe-me, é que são tantas histórias e informações que, às vezes, nos
esquecemos de um ou outro pormenor. Não, Ariane não teria gostado de
se sentar sozinha naquele dia. Gostaria sim de ter, como teve, a companhia
de um único e jovem rapaz, de idade muito próxima à sua. Refiro-me ao
único menino que ela considerava um amigo e com quem tinha uma rela-
ção em que se sentia à vontade, sem se achar um espetáculo de horrores.
– Humpf! A sério, Ariane! Um rapaz não repara nessas coisas, hein! –
disse o jovem, um pouco ofendido e um tanto provocador, apoiando uma
bochecha sobre um punho fechado.
Apresento-lhe o jovem João Hanson, um filho de lenhador que enten-
dia muito bem os sentimentos daquela menina e nela via uma boa amiga.
Entretanto, para se perceber porque é que era ele o único que compreendia
Ariane Narin, a ponto de ela só confiar nele, é preciso voltar ao passado
desta história.
Mais precisamente, seis anos atrás.
Há seis malditos anos.
·4·
Foi assim que começou a macabra história da família Hanson:
– Hígor, acho que estou grávida! – Foi com temor que a senhora Han-
son anunciou ao seu marido a gravidez. Um temor justificado pelo risco
numa época de difícil sustento.
Os Hanson eram uma família humilde liderada por um lenhador,
como muitas outras em Andreanne, e com trabalho para mais três futuras
gerações. A madeira é um produto que não costuma faltar onde existem
tantas florestas com um sistema eficiente de replantação, de modo a
impedir que as terras fiquem estéreis nos anos futuros. Eram dois os res-
ponsáveis pela família Hanson: o bonito casal formado por Hígor e Érika
Hanson, do qual nascera um interessante e curiosíssimo par de filhos.
– E achas que poderá ser um menino? – perguntou ele, sorrindo, para
alívio da mulher, que desatou a chorar.
Primeiro nasceu uma menina, a quem chamaram Maria. Maria Han-
son nasceu numa época conturbada. Os pais procuravam uma forma
de melhorar o rendimento familiar, e a sua vinda só veio dificultar essa
busca. Mas, como está visto, nenhum dos dois se importou tanto quanto
seria de esperar e sempre que olhavam para a Maria, tinham a certeza
de terem tomado a decisão correta. Maria nasceu morena como a mãe e
o pai, e inteligente como nenhum dos dois jamais conseguiria ser. Era
dotada de uma responsabilidade inigualável, provavelmente desencadeada
pelo desejo de não ser um peso para os pais, mas sim uma solução. Se o
pai não a impedisse, diversas vezes teria erguido um machado e tentado
cortar árvores. Como isso, porém, não era trabalho para uma menina de
traços finos, e ainda mais da graciosidade de Maria, a jovem, por ideia e
atitude próprias, passou então a vender doces, feitos pela mãe, nas feiras
de Andreanne. Mais tarde, voltaremos a falar de Maria Hanson, pois muito
notável é essa jovem para ser citada apenas de passagem como agora.


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– Hígor, acho que estou grávida! – a cena repetiu-se, e novamente o


temor rondou a reação na resposta.
– Hum… agora deve ser um menino… – sorriu ele uma vez mais,
enquanto a mulher chorava abraçada ao seu pescoço.
E então, dois anos após o nascimento de Maria, veio ao mundo o
pequeno João, o que aumentou a felicidade da família e diminuiu ainda
mais o já apertado orçamento. João Hanson também era moreno como
a mãe e o pai, o que – penso eu – ninguém estranhou. A sua personali-
dade, entretanto, não era apenas diferente da da irmã; funcionava mais
como um legítimo complemento. Pois, se a inteligência de Maria era
grande, o raciocínio de João era brilhante. E veloz. Logo, bastava a irmã
ter uma ideia, por mais simples que fosse, que o raciocínio do garoto tra-
tava de encontrar uma forma de pôr aquela ideia em prática. Isso gerou
uma curiosa harmonia entre os irmãos, raramente vista neste mundo.
Pouco depois, a dupla já andava a vender doces nas feiras da cidade. João
inventava sempre qualquer coisa extra para que os doces dos Hanson se
destacassem dos das outras barracas próximas. E a sua arma mais efi-
ciente, por incrível que pareça, era…
– E foi então que a menina Coraline viu aquele ser todo distorcido e
tonto, a olhar pra ela com a maior lata!
… contar histórias! Diversas crianças paravam ao lado das mães, em
redor daquela barraca, enquanto o pequeno prodígio contador de histórias
narrava aventuras que pareciam lhe ser sopradas na cabeça. Ou vividas, em
sonhos demasiado intensos para serem esquecidos ao acordar.
– E então? E então? – perguntava uma menina de seis anos, com um
vestido de rapariguinha crescida e rabo de cavalo.
– O que é que ele fez à garota? – quis saber outro menino de sete, ávido
por histórias de terror.
– Ah, um doce ou uma travessura… – respondia João com aquele sor-
riso aberto.
As crianças lamentavam em coro e corriam para as mães. João Hanson
era um grande contador de histórias de terror, mas também um grande
empreendedor. Por isso, quem quisesse saber o final das suas histórias
tinha de ir ter com a sua irmã e comprar-lhe doces feitos pela mãe. E, fos-
sem imitações de nobres, histórias de terror ou mesmo músicas engra-
çadas inventadas, tudo parecia válido – e funcionava − para aumentar o
número de moedas no fim do mês.
Estamos a falar de uma época em que a Maria tinha nove e o João ape-
nas sete anos. Há seis anos atrás. Com certeza, se fossem nobres, seriam

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