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Introdução de Friedrich Engels à edição de 1891
Porém, sob Louis-Philippe não era a burguesia francesa quem dominava. Quem
dominava era apenas uma fracção dela: banqueiros, reis da Bolsa, reis do caminho-
de-ferro, proprietários de minas de carvão e de ferro e de florestas e uma parte da
propriedade fundiária aliada a estes — a chamada aristocracia financeira. Era ela
quem ocupava o trono, quem ditava leis nas Câmaras, quem distribuía os cargos
públicos desde o ministério até à adminstração dos tabacos.
A monarquia de Julho era apenas uma sociedade por acções para explorar a
riqueza nacional da França e cujos dividendos eram distribuídos por ministros,
Câmaras, 240 000 eleitores e o seu séquito. Louis-Philippe era o director desta
sociedade, um Robert Macaire no trono. Num tal sistema, o comércio, a indústria, a
agricultura, a navegação, os interesses da burguesia industrial não podiam deixar de
estar constantemente ameaçados e de sofrer prejuízos. Gouvernement à bon marche,
governo barato, fora o que ela durante as jornadas de Julho inscrevera na sua
bandeira.
Por seu lado, o Governo provisório, uma vez forçado a proclamar a república,
tudo fez para a tornar aceitável pela burguesia e pelas províncias. Os terrores
sangrentos da primeira república francesa [N116] foram obviados por meio da abolição
da pena de morte por crimes políticos; a imprensa foi aberta a todas as opiniões; o
exército, os tribunais e a administração permaneceram, com poucas excepções, nas
mãos dos seus antigos dignitários; nenhum dos grandes culpados da monarquia de
Julho foi chamado a prestar contas. Os republicanos burgueses do National divertiam-
se a trocar nomes e trajos monárquicos por velhos nomes e trajos republicanos. Para
eles a república não passava de um novo trajo de baile para a velha sociedade
burguesa. A jovem república procurava o seu principal mérito em não assustar
ninguém, antes assustando-se constantemente, cedendo, não resistindo, a fim de,
com a sua falta de resistência assegurar existência à sua existência e desarmar a
resistência. Foi dito bem alto, no interior, às classes privilegiadas, e às potências
despóticas, no exterior, que a república era de natureza pacífica. O seu lema era,
diziam, viver e deixar viver. A isto acrescentou-se que, pouco tempo depois da
revolução de Fevereiro, os alemães, os polacos, os austríacos, os húngaros e os
italianos se revoltaram, cada povo de acordo com a sua situação imediata. A Rússia,
ela própria agitada, e a Inglaterra, esta última intimidada, não estavam preparadas.
Por conseguinte, a república não encontrou perante si nenhum inimigo nacional. Não
havia, pois, nenhumas complicações externas de grande monta que pudessem
inflamar energias, acelerar o processo revolucionário, impelir para a frente o Governo
provisório ou atirá-lo pela borda fora. O proletariado de Paris, que via na república a
sua própria obra, aclamava, naturalmente, todos os actos do Governo provisório que
faziam com que este se afirmasse com mais facilidade na sociedade burguesa. Deixou
de bom grado que Caussidière o empregasse nos serviços da polícia a fim de proteger
a propriedade em Paris tal como deixou Louis Blanc apaziguar os conflitos salariais
entre operários e mestres. Fazia point d'honneur(16*) em manter intocada aos olhos da
Europa a honra burguesa da república.
Nem do exterior nem do interior a república encontrou resistência. Foi isto que a
desarmou. A sua tarefa já não consistia em transformar revolucionariamente o
mundo, consistia apenas em se adaptar às condições da sociedade burguesa. As
medidas financeiras do Governo provisório são o mais eloquente exemplo do
fanatismo com que este se encarregou dessa tarefa.
Para afastar até a suspeita de que não queria ou não podia honrar as obrigações
contraídas pela monarquia, para dar crédito à moral burguesa e à solvência da
república, o Governo provisório recorreu a uma fanfarronice tão indigna quanto
pueril: antes do prazo de pagamento fixado por lei o Governo provisório pagou aos
credores do Estado os juros de 5%, 4 1/2% e 4%. A proa burguesa, a jactância dos
capitalistas despertaram subitamente ao verem a pressa escrupulosa com que se
procurava comprar-lhes a confiança.
O Governo provisório apenas por um meio podia remover todos estes estorvos e
arrancar o Estado do seu antigo caminho: pela declaração da bancarrota do Estado.
Recorde-se como, depois, Ledru-Rollin na Assembleia Nacional, recitou a virtuosa
indignação com que rejeitou a pretensão do judeu da Bolsa Fould, actualmente
ministro das Finanças em França. Fould tinha-lhe estendido a maçã da árvore da
ciência.
Para esse fim o Governo provisório formou 24 batalhões de Guardas Móveis, cada
um deles com mil homens, cujas idades iam dos 15 aos 20 anos. Na sua maioria
pertenciam ao lumpenproletariado, que em todas as grandes cidades constitui uma
massa rigorosamente distinta do proletariado industrial, um centro de recrutamento
de ladrões e criminosos de toda a espécie que vivem da escória da sociedade, gente
sem ocupação definida, vagabundos, gens sans feu et sans aveu (19*), variando
segundo o grau de cultura da nação a que pertencem, não negando nunca o seu
carácter de lazzaroni[N118]; capazes, na idade juvenil em que o Governo provisório os
recrutava, uma idade totalmente influenciável, dos maiores heroísmos e dos
sacrifícios mais exaltados como do banditismo mais repugnante e da corrupção mais
abjecta. O Governo provisório pagava-lhes 1 franco e 50 cêntimos por dia, isto é,
comprava-os. Dava-lhes um uniforme próprio, isto é, distinguia-os exteriormente dos
homens de blusa de operário. Para seus chefes eram-lhe impostos, em parte, oficiais
do exército permanente, em parte, eram eles próprios que elegiam jovens filhos da
burguesia que os cativavam com as suas fanfarronadas sobre a morte pela Pátria e a
dedicação à República.
A par da Guarda Móvel o governo decidiu ainda rodear-se dum exército industrial
de operários. O ministro Marie recrutou para as chamadas oficinas nacionais cem mil
operários que a crise e a revolução haviam atirado para a rua. Debaixo daquela
pomposa designação não se escondia senão a utilização dos operários para
aborrecidas, monótonas e improdutivas obras de aterro a um salário diário de 23
sous. Workhouses[N119] inglesas ao ar livre — estas oficinas nacionais não eram mais
do que isto. O Governo provisório pensava que com elas tinha criado um segundo
exército proletário contra os próprios operários. Desta vez, a burguesia enganou-se
com as oficinas nacionais como os operários se tinham enganado com a Guarda
Móvel. O governo tinha criado um exército para o motim.
Oficinas nacionais — este era o nome das oficinas do povo que Louis Blanc
pregava no Luxemburgo. As oficinas de Marie, projectadas em oposição directa ao
Luxemburgo, ofereciam a oportunidade, graças ao mesmo rótulo, para uma intriga de
enganos, digna da comédia espanhola de criados. O próprio Governo provisório fez
espalhar à socapa o boato que estas oficinas nacionais eram invenção de Louis Blanc,
o que parecia tanto mais crível quanto é certo que Louis Blanc, o profeta das oficinas
nacionais, era membro do Governo provisório. E na confusão, meio ingénua, meio
intencional, da burguesia de Paris, na opinião, artificialmente mantida, da França, da
Europa, estas workhouses eram a primeira realização do socialismo, que com elas era
exposto no pelourinho.
Não pelo seu conteúdo, mas pelo seu nome, as oficinas nacionais, eram a
encarnação do protesto do proletariado contra a indústria burguesa, o crédito burguês
e a república burguesa. Sobre elas recaía portanto todo o ódio da burguesia. A
burguesia encontrara ao mesmo tempo nelas o ponto para onde poderia dirigir o
ataque logo que estivesse suficientemente robustecida para romper abertamente com
as ilusões de Fevereiro. Ao mesmo tempo todo o mal-estar, todo o descontentamento
dos pequenos burgueses dirigia-se contra estas oficinas nacionais, o alvo comum.
Com verdadeira raiva calculavam as somas que os madraços dos proletários
devoravam, enquanto a sua própria situação se tornava, dia a dia, mais
insustentável. Uma pensão do Estado para um trabalho fingido, eis o socialismo! —
resmungavam. As oficinas nacionais, os discursos do Luxemburgo, os desfiles dos
operários através de Paris — era nisso que eles procuravam as razões da sua miséria.
E ninguém era mais fanático contra as pretensas maquinações dos comunistas do que
o pequeno-burguês que, sem salvação, oscilava à beira do abismo da bancarrota.
Vimos como, na verdade, a república de Fevereiro não era senão, e não podia
deixar de o ser, uma república burguesa; como, porém, o Governo provisório, sob a
pressão imediata do proletariado, fora obrigado a anunciá-la como uma república
com instituições sociais; como o proletariado parisiense era ainda incapaz de ir além
da república burguesa a não ser na representação e na fantasia; como ele agiu ao seu
serviço em toda a parte em que verdadeiramente passou à acção; como as
promessas que lhe haviam sido feitas se tornaram num perigo insuportável para a
nova república; como todo o processo de vida do Governo provisório se resumiu a
uma luta contínua contra as reivindicações do proletariado.
Tudo isto, porém, não chegava. A república de Fevereiro fora conquistada pela
luta dos operários com a ajuda passiva da burguesia. Os proletários consideravam-se,
pois, com razão, os vencedores de Fevereiro e apresentaram as altivas exigências do
vencedor. Era preciso que os proletários fossem derrotados na rua, era preciso
mostrar-lhes que sucumbiriam logo que combatessem não com a burguesia mas
contra a burguesia. Assim como a república de Fevereiro com as suas concessões
socialistas tivera necessidade de uma batalha do proletariado unido à burguesia
contra a realeza, assim agora se tornava necessária uma nova batalha para separar a
república das concessões socialistas, para se conseguir que a república burguesa
fosse oficialmente o regime dominante. A burguesia tinha, pois, de, com as armas na
mão, se opor às reivindicações do proletariado. E o verdadeiro berço da república
burguesa não é a vitória de Fevereiro mas sim a derrota de Junho.
Por fim, com as vitórias da Santa Aliança, a Europa adquiriu uma forma que faz
imediatamente coincidir cada nova sublevação proletária em França com uma guerra
mundial. A nova revolução francesa é obrigada a deixar imediatamente o solo
nacional e a conquistar o terreno europeu, o único em que a revolução social do
século XIX pode ser levada a cabo.
II — O 13 de Junho de 1849
De Junho de 1848 a 13 de Junho de 1849
Ninguém nas jornadas de Junho tinha lutado com mais fanatismo pela salvação
da propriedade e pelo restabelecimento do crédito do que os pequenos burgueses de
Paris: donos de cafés, de restaurantes, marchands de vins(4*), pequenos
comerciantes, merceeiros, artesãos, etc. A boutique(5*) unira-se e marchara contra a
barricada para restabelecer a circulação que vem da rua para a boutique. Atrás da
barricada, porém, estavam os clientes e os devedores, à frente dela encontravam-se
os credores da boutique. E quando as barricadas foram derrubadas e os operários
esmagados e os donos das lojas, ébrios com a vitória, se precipitaram para as suas
lojas, encontraram a entrada barricada por um salvador da propriedade, um agente
oficial do crédito, brandindo-lhes as cartas cominatórias: Letra vencida! Renda
vencida! Título de dívida vencido! Boutique vencida! Boutiquier vencido!
Salvação da propriedade! Mas a casa em que viviam não era propriedade sua; a
loja que tinham não era propriedade sua; as mercadorias em que negociavam não
eram propriedade sua. Nem o negócio, nem o prato em que comiam, nem a cama em
que dormiam lhes pertencia ainda. Tratava-se, pois, precisamente, de salvar esta
propriedade para o dono da casa que a alugara, para o banqueiro que descontara as
letras, para o capitalista que adiantara o dinheiro, para o fabricante que confiara as
mercadorias a esses merceeiros para as vender, para o grande comerciante que
fornecera a crédito as matérias-primas a estes artesãos. Restabelecimento do
crédito! Mas o crédito de novo robustecido revelou-se precisamente como um deus
vivo e fervoroso expulsando das suas quatro paredes, com mulher e filhos, o devedor
insolvente, entregando os seus haveres ilusórios ao capital e atirando-o para a prisão
por dívidas que, de novo, se erguera ameaçadora sobre os cadáveres dos insurrectos
de Junho.
Se, por um lado, os pequenos burgueses tinham colhido como fruto da vitória de
Junho a bancarrota e a liquidação judicial, por outro, os janízaros [N123] de Cavaignac,
os guardas móveis, encontraram o seu pagamento nos braços macios das loretas e
receberam, eles, "os jovens salvadores da sociedade", homenagens de toda a espécie
nos salões de Marrast, o gentilhomme(8*) da tricolor, que fazia ao mesmo tempo de
anfitrião e de trovador da república honesta. Entretanto, esta preferência social e o
soldo incomparavelmente mais elevado da Guarda Móvel irritava o exército, enquanto
desapareciam todas as ilusões nacionais com que o republicanismo burguês por
intermédio do seu jornal, o National, tinha sabido, no tempo de Louis-Philippe,
prender a si uma parte do exército e da classe dos camponeses. O papel de
medianeiro que Cavaignac e a Assembleia Nacional desempenharam na Itália do
Norte para, juntamente com a Inglaterra, o atraiçoar em favor da Áustria — este
único dia de poder anulou dezoito anos de oposição do National. Nenhum governo
menos nacional que o do National; nenhum mais dependente da Inglaterra, e sob
Louis-Philippe vivia ele da paráfrase diária do catoniano Carthaginem esse
delendam(9*); nenhum mais servil para com a Santa Aliança, e por um Guizot tinha ele
pedido o rompimento dos tratados de Viena. A ironia da história fez Bastide, ex-
redactor da secção do estrangeiro do National, ministro dos Negócios Estrangeiros da
França, a fim de refutar com cada despacho seu cada um dos seus artigos.
Deste modo, como escrevia a Neue Rheinische Zeitung, o homem mais simples
da França adquiria o mais complexo dos significados [N127]. Precisamente porque não
era nada, podia significar tudo, menos ele mesmo. Todavia, por muito diferente que
fosse o sentido do nome Napoleão na boca das diferentes classes, cada uma delas
escrevia com este nome no seu boletim de voto: abaixo o partido do National, abaixo
Cavaignac, abaixo a Constituinte, abaixo a república burguesa. O ministro Dufaure
declarou abertamente na Assembleia Constituinte: o 10 de Dezembro é um segundo
24 de Fevereiro.
Odilon Barrot era o chefe do único velho partido da oposição que, lutando sempre
em vão por uma pasta ministerial, ainda não se tinha desgastado. Numa rápida
sucessão, a revolução atirava todos os velhos partidos da oposição para os cumes do
Estado a fim de que, não só nos actos, mas também na sua própria frase, tivessem
de negar e revogar as suas velhas frases e de que, finalmente, reunidos numa
repugnante mistura, fossem todos juntos atirados pelo povo para o monturo da
história. E nenhuma apostasia foi poupada a este Barrot, essa encarnação do
liberalismo burguês que, durante dezoito anos, ocultara a infame vacuidade do seu
espírito debaixo do comportamento grave do seu corpo. Se, em momentos isolados, o
contraste demasiado gritante entre os cardos do presente e os louros do passado a
ele próprio o assustava, um simples olhar para o espelho restituía-lhe a compostura
ministerial e a humana admiração por si próprio. A imagem que o espelho lhe
devolvia era Guizot, que ele sempre invejou, que sempre o dominara, Guizot em
pessoa, mas Guizot com a fronte olímpica de Odilon. O que ele não via eram as
orelhas de Midas.
Alguns dias mais tarde, o ministério do Interior foi entregue a Léon Faucher, o
malthusiano. O Direito, a Religião, a Economia Política! O ministério Barrot continha
tudo isto e também uma união de legitimistas e orleanistas. Só faltava o
Bonapartista. Bonaparte ocultava ainda o apetite de significar o Napoleão, pois
Soulouque ainda não representava o Toussaint-Louverture.
O partido do National foi imediatamente afastado de todos os altos cargos em que
se tinha anichado. Prefeitura da polícia, direcção dos correios, procuradoria-geral,
mairie(15*) de Paris, tudo isto foi ocupado por velhas criaturas da monarquia.
Changarnier, o letigimista, recebeu o alto comando unificado da Guarda Nacional do
departamento do Sena, da Guarda Móvel e das tropas de linha da primeira divisão
militar; Bugeaud, o orleanista, foi nomeado comandante em chefe do exército dos
Alpes. Esta mudança de funcionários prosseguiu sem interrupção no governo Barrot.
O primeiro acto do seu ministério foi a restauração da velha administração realista
[royalistischen]. Num abrir e fechar de olhos a cena oficial transformou-se: cenários,
guarda-roupa, linguagem, actores, figurantes, comparsas, pontos, posição dos
partidos, motivos do drama, conteúdo da colisão, a situação na sua totalidade. Só a
antediluviana Assembleia Constituinte se encontrava ainda no seu posto. Mas a partir
da hora em que a Assembleia Nacional tinha instalado o Bonaparte, Bonaparte o
Barrot, Barrot o Changarnier, a França saiu do período da constituição republicana
para entrar no período da república constituída. E que é que uma Assembleia
Constituinte tinha a fazer numa república constituída? Depois do mundo ter sido
criado, ao seu criador restava apenas refugiar-se no céu. A Assembleia Constituinte
estava resolvida a não seguir o seu exemplo. A Assembleia Nacional era o último asilo
do partido dos republicanos burgueses. Se lhe tinham arrancado todas as alavancas
do poder executivo, não lhe restava a omnipotência constituinte? O seu primeiro
pensamento foi afirmar a todo o custo o posto soberano que detinha e, a partir daqui,
reconquistar o terreno perdido. Afastado o ministério Barrot por um ministério
doNational, o pessoal realista tinha de abandonar imediatamente os palácios da
administração e o pessoal tricolor reentrou em triunfo. A Assembleia Nacional decidiu
a queda do ministério, e o próprio ministério forneceu uma oportunidade de ataque
tal que nem a Constituinte seria capaz de inventar outra melhor.
Com um motim reprimido com felicidade o ministério ter-se-ia visto livre de todas
as suas dificuldades. "A legalidade mata-nos", exclamava Odilon Barrot. Sob o
pretexto da salut public(19*), um motim teria permitido dissolver a Constituinte, violar
a Constituição no interesse da própria Constituição. O procedimento brutal de Odilon
Barrot na Assembleia Nacional, a proposta de dissolução dos clubes, a demissão
ruidosa de 50 prefeitos tricolores e a sua substituição por realistas, a dissolução da
Guarda Móvel, os maus tratos infligidos aos seus chefes por Changarnier, a
reintegração de Lerminier, um professor impossível já no tempo de Guizot, a
tolerância perante as fanfarronadas legitimistas, eram outras tantas provocações ao
motim. Mas o motim manteve-se mudo. Era da Constituinte que esperava o sinal e
não do ministério.
Esta mísera Assembleia retirou-se do palco depois de, dois dias antes da festa do
seu aniversário, a 4 de Maio, ter dado a si mesma a satisfação de rejeitar a proposta
de amnistia para os insurrectos de Junho. Desfeito o seu poder; odiada mortalmente
pelo povo; repudiada, mal-tratada, desprezivelmente posta de parte pela burguesia
de que era instrumento; obrigada, na segunda metade da sua vida, a negar a
primeira; despojada das suas ilusões republicanas; sem grandes criações no passado;
sem esperança no futuro; o seu corpo vivo morrendo aos poucos — só era capaz de
galvanizar o seu próprio cadáver evocando sem cessar e revivendo a vitória de Julho,
afirmando-se através da sempre repetida maldição dos malditos. Vampiro que vivia
do sangue dos insurrectos de Junho!
Com a dissolução da artilharia de Paris e, bem assim, da 8.ª, 9.ª e 12.ª legiões
da Guarda Nacional, a pequena burguesia democrática viu-se ao mesmo tempo
despojada do seu poder parlamentar e armado. Pelo contrário, a legião da alta
finança que no dia 13 de Junho tinha assaltado as tipografias de Boulé e Roux,
destruído os prelos, saqueado as redacções dos jornais republicanos, prendido
arbitrariamente redactores, tipógrafos, impressores, expedidores e moços de recados,
recebeu do alto da tribuna da Assembleia Nacional palavras encorajadoras. Em todo o
território da França se repetiu a dissolução das Guardas Nacionais suspeitas de
republicanismo.
Nova lei de imprensa, nova lei de associação, nova lei de estado de sítio, as
prisões de Paris a transbordar, os refugiados políticos expulsos, todos os jornais que
ultrapassavam os limites do National suspensos, Lyon e os cinco departamentos
circunvizinhos entregues às chicanas brutais do despotismo militar, os tribunais
presentes em toda a parte, o exército dos funcionários públicos, tanta vez saneado,
mais uma vez saneado: foram estes os lugares-comuns que inevitavelmente se
repetem sempre que a reacção alcança uma vitória e mencionámo-los aqui, depois
dos massacres e das deportações de Junho, unicamente porque desta vez não se
dirigiram só contra Paris, mas contra os departamentos; não tiveram em mira apenas
o proletariado, mas sobretudo as classes médias.
Todavia esta época é caracterizada não pela exploração da vitória no campo dos
factos, mas no dos princípios; não pelas decisões da Assembleia Nacional, mas pela
motivação dessas decisões; não pelos factos, mas pela frase; não pela frase, mas
pelo acento e pelos gestos que animam a frase. A expressão descarada e brutal das
convicções realistas [royalistischen], o insulto desdenhosamente distinto contra a
república; a indiscrição coquete e frívola acerca dos objectivos de restauração, numa
palavra, a violação fanfarrona do decoro republicano dão a este período um tom e um
colorido peculiares. Viva a Constituição! era o grito de guerra dos vencidos do 13 de
Junho. Os vencedores estavam, pois, dispensados da hipocrisia da linguagem
constitucional, isto é, da linguagem republicana. A contra-revolução subjugou a
Hungria, a Itália e a Alemanha, e eles acreditavam que a restauração estava já às
portas da França. Desencadeou-se então uma verdadeira competição entre os chefes
de fila das fracções da ordem, documentando cada um deles o seu monarquismo
através do Moniteur e confessando os seus eventuais pecados liberais cometidos
durante a monarquia, mostrando o seu arrependimento e pedindo perdão a Deus e
aos homens. Não se passou um único dia sem que na tribuna da Assembleia Nacional
não se declarasse que a revolução de Fevereiro tinha sido uma desgraça nacional,
sem que qualquer fidalgote legitimista da província não proclamasse solenemente
nunca ter reconhecido a república, sem que qualquer dos cobardes desertores e
traidores da monarquia de Julho não viesse contar agora feitos heróicos que apenas
não pudera realizar porque a filantropia de Louis-Philippe ou outra incompreensão
qualquer o tinha impedido. O que nas jornadas de Fevereiro era de admirar não era a
generosidade do povo vitorioso, mas a abnegação e a moderação dos realistas que
lhe haviam permitido a vitória. Um deputado sugeriu que se atribuísse aos guardas
municipais uma parte dos fundos destinados aos feridos de Fevereiro, pois naqueles
dias só eles se haviam tornado merecedores da gratidão da pátria. Um outro queria
que se decretasse a construção de uma estátua equestre ao duque de Orléans na
praça do Carrossel. Thiers chamou à Constituição um bocado de papel sujo. Uns após
outros, vinham à tribuna orleanistas mostrarem o seu arrependimento por terem
conspirado contra a monarquia legítima; legitimistas que se censuravam por terem
acelerado a queda da monarquia em geral ao rebelarem-se contra a monarquia
ilegítima; Thiers, arrependido por ter conspirado contra Mole; Mole, arrependido por
ter conspirado contra Guizot; Barrot, arrependido por ter intrigado contra todos os
três. O grito "Viva a república social-democrata!" foi declarado inconstitucional; o
grito "Viva a república!" perseguido como social-democrata. No aniversário da batalha
de Waterloo[N103] um deputado declarou: "Receio menos a invasão dos prussianos do
que a entrada em França dos refugiados revolucionários." Respondendo às queixas
segundo as quais o terrorismo estava organizado em Lyon e nos departamentos
circunvizinhos, Baraguay d'Hilliers afirmou: "Prefiro o terror branco ao terror
vermelho." (J'aime mieux la terreur blanche que la terreur rouge.) E a Assembleia
aplaudia freneticamente todas as vezes que qualquer orador lançava um epigrama
contra a república, contra a revolução, contra a Constituição e a favor da monarquia
ou da Santa Aliança. Toda e qualquer violação das mais pequenas formalidades
republicanas, por exemplo, tratar os deputados por "citoyens", entusiasmava os
cavaleiros da ordem.
Assim como Kant faz da república, como única forma racional do Estado, um
postulado da razão prática, cuja realização nunca é alcançada, mas terá sempre de
ser perseguida e tida em mente como objectivo, assim fazem estes realistas da
monarquia [Königtum].
Deste modo, a república constitucional, que saiu das mãos dos republicanos
burgueses como fórmula ideológica vazia, tornou-se nas mãos dos realistas coligados
uma forma viva e cheia de conteúdo. E Thiers falava mais verdade do que suspeitava
quando dizia: "Nós, os realistas, somos os verdadeiros pilares da república
constitucional."
Toda a nossa exposição tem mostrado como, desde o primeiro dia da sua
existência, a república não derrubou mas consolidou a aristocracia financeira. Mas as
concessões que lhe foram feitas eram uma fatalidade a que houve que submeter-se
sem a querer provocar. Com Fould, a iniciativa governamental caía de novo nas mãos
da aristocracia financeira.
A resposta é simples.
O que é que condiciona a entrega dos bens do Estado à alta finança? O crescente
endividamento do Estado. E o endividamento do Estado? O constante excesso das
despesas em relação às receitas, uma desproporção que é ao mesmo tempo a causa
e o efeito do sistema dos empréstimos públicos.
Voltemos a Fould.
O advogado desta restauração não foi um financeiro. Foi, sim, o chefe dos
jesuítas Montalembert. A sua dedução era de uma simplicidade impressionante: o
imposto é o seio materno que amamenta o governo. O governo — são os
instrumentos da repressão, são os órgãos da autoridade, é o exército, é a polícia, são
os funcionários, os juizes, os ministros, são os padres. O ataque ao imposto é o
ataque dos anarquistas às sentinelas da ordem, que protegem a produção material e
espiritual da sociedade burguesa das incursões dos vândalos proletários. O imposto é
o quinto deus ao lado da propriedade, da família, da ordem e da religião. E o imposto
sobre o vinho é indiscutivelmente um imposto: e mais, não é um imposto qualquer
mas um imposto de velha tradição, um imposto respeitável, de espírito monárquico.
Vive l'impôt des boissons!(18*) Three cheers and one cheer more!(19*)
O ódio popular contra o imposto sobre o vinho explica-se pelo facto de reunir em
si todo o odioso do sistema de impostos francês. O modo de cobrança é odioso; o
modo da sua repartição é aristocrático, pois as percentagens do imposto são as
mesmas para os vinhos mais vulgares e para os mais preciosos. Aumenta, pois, em
progressão geométrica, na medida em que as posses do consumidor diminuem, é um
verdadeiro imposto progressivo ao contrário. Provoca por isso directamente o
envenenamento das classes trabalhadoras como prémio para vinhos falsificados e
imitados. Reduz o consumo ao erguer octrois(22*) às portas de todas as cidades com
mais de 4 000 habitantes e ao transformar cada cidade num território estrangeiro
com direitos proteccionistas contra os vinhos franceses. Os grandes comerciantes de
vinho e ainda mais os pequenos, os marcharias de viris, os taberneiros, cujos
proventos dependem directamente do consumo de vinho, são outros tantos
declarados adversários do imposto sobre o vinho. E, finalmente, ao fazer diminuir o
consumo, o imposto sobre o vinho corta o mercado à produção. Enquanto torna os
operários das cidades incapazes de pagar o vinho torna os viticultores incapazes de o
vender. E a França tem uma população viticultora de cerca de 12 milhões.
Compreende-se por isso o ódio do povo em geral, compreende-se nomeadamente o
fanatismo dos camponeses contra o imposto sobre o vinho. Além disso, não viam de
modo nenhum na sua restauração um acontecimento isolado, mais ou menos
ocasional. Os camponeses têm uma espécie de tradição histórica, herdada de pais
para filhos, e nesta escola histórica corre que todos os governos, quando querem
enganar os camponeses, prometem a abolição do imposto do vinho mas, depois de os
terem enganado, mantêm ou reintroduzem o imposto sobre o vinho. É no imposto
sobre o vinho que o camponês prova o bouquet do governo, a sua tendência. A
restauração do imposto sobre o vinho em 20 de Dezembro queria dizer: Louis
Bonaparte é como os outros; mas não era como os outros, era uma invenção dos
camponeses, e nas petições contra o imposto sobre o vinho, que contavam milhões
de assinaturas, eles retiravam os votos que um ano antes tinham dado ao "sobrinho
do seu tio".
E deste modo, sob a forma de juros pelas hipotecas sobre a terra, sob a forma de
juros pelos adiantamentos não hipotecados do usurário, o camponês de França cede
aos capitalistas não só uma renda da terra, não só o lucro industrial, numa palavra,
não só todo o ganho líquido, mas também uma parte do salário; isto é, desceu ao
nível do rendeiro irlandês — e tudo isto com o pretexto de ser proprietário privado.
Este processo foi em França acelerado pela carga fiscal sempre crescente e pelos
custos judiciais, em parte directamente provocados pelos mesmos formalismos com
que a legislação francesa rodeia a propriedade fundiária, em parte devido aos
inúmeros conflitos entre as parcelas que por toda a parte confinam ou se
entrecruzam, e em parte pela fúria litigiosa dos camponeses cujo usufruto da
propriedade se limita ao fazer valer fanaticamente a propriedade imaginária, o direito
de propriedade.
Não provam, por outro lado, estas propostas de Bonaparte e a sua aceitação por
parte da Assembleia Nacional a unanimidade de ambos os poderes da república
constitucional no que toca à repressão da anarquia, isto é, de todas as classes que se
insurgem contra a ditadura burguesa? Não tinha Soulouque, logo a seguir à sua
brusca mensagem[N145], assegurado à Legislativa o seu dévoue-ment(26*) à ordem por
meio da mensagem que imediatamente seguiu de Carlier[N146], essa caricatura
ordinária e suja de Fouché, tal como o próprio Louis Bonaparte era a caricatura vulgar
de Napoleão?
Todavia, por mais variado que fosse o socialismo dos diversos grandes membros
do partido da anarquia — o que estava dependente das condições económicas e das
necessidades globais revolucionárias da sua classe ou fracção de classe delas
decorrentes — num ponto ele estava de acordo: proclamar-se como meio de
emancipação do proletariado e proclamar a emancipação deste como seu fim. Engano
intencional de uns, auto-engano de outros, que apresentam o mundo transformado
segundo as suas necessidades como o melhor dos mundos para todos, como a
realização de todas as reivindicações revolucionárias e a superação de todas as
colisões revolucionárias.
Ao repudiar o sufrágio universal com o qual até essa altura se havia coberto e do
qual havia retirado toda a sua omnipotência, a burguesia confessa sem rebuço: "A
nossa ditadura tem até agora existido pela vontade do povo; agora tem de ser
consolidada contra a vontade do povo." E consequentemente já não procura os seus
apoios na França, mas sim no exterior, no estrangeiro, na invasão.
Ela, uma segunda Coblença[N152] que abrira sua sede na própria França, com a
invasão despertara contra si todas as paixões nacionais. Com o ataque ao sufrágio
universal dá à nova revolução um pretexto geral, e a revolução precisava de
semelhante pretexto, cada pretexto especial separaria as fracções da ligue
revolucionária e poria em evidência as suas diferenças. O pretexto geral atordoa as
classes meio revolucionárias e permite-lhes iludirem-se sobre o carácter definido da
revolução futura, sobre as consequências da sua própria acção. Cada revolução
precisa de uma questão de banquete. O sufrágio universal é a questão de banquete
da nova revolução.
Tal como o período de crise surgiu mais tarde no Continente do que na Inglaterra,
assim também o da prosperidade. Em Inglaterra ocorre sempre o processo original;
ela é o demiurgo do cosmos burguês. No Continente, as diferentes fases do ciclo que
a sociedade burguesa sempre percorre de novo surgem numa forma secundária e
terciária. Em primeiro lugar, o Continente exporta para Inglaterra incomparavelmente
mais do que para qualquer outro país. Todavia, estas exportações para Inglaterra
dependem por sua vez da situação da Inglaterra, em especial no respeitante ao
mercado ultramarino. De facto, a Inglaterra exporta incomparavelmente mais para os
países ultramarinos do que todo o continente europeu. Deste modo, a quantidade das
exportações continentais para esses países está sempre dependente das exportações
ultramarinas da Inglaterra a cada momento. Por conseguinte, embora as crises dêem
primeiro origem a revoluções no Continente, as razões das mesmas encontram-se
sempre na Inglaterra. As manifestações violentas têm naturalmente de surgir mais
cedo nas extremidades do corpo burguês do que no coração uma vez que aqui a
possibilidade do equilíbrio é maior do que ali. Por outro lado, o grau em que as
revoluções continentais se repercutem sobre a Inglaterra é ao mesmo tempo o
termómetro em que se lê até que ponto essas revoluções põem realmente em causa
as relações da vida burguesa, ou até que ponto só atingem as suas formações
políticas.
Em 22 de Maio por 462 votos contra 227 a questão preliminar ficou resolvida. Os
mesmos homens que tinham demonstrado com uma profundidade tão solene que a
Assembleia Nacional e cada um dos deputados renunciariam ao seu mandato se
renunciassem ao povo, que lhes conferiu o poder, persistiam teimosamente nos seus
lugares, procurando agora repentinamente fazer o país agir em vez deles, por meio
de petições, e ainda continuavam impavidamente sentados quando a 31 de Maio a lei
brilhantemente passou. Procuraram vingar-se por meio de um protesto no qual deram
para a acta a sua inocência na violação da Constituição, protesto esse que nem
sequer apresentaram abertamente mas sim enfiaram à socapa no bolso do
presidente.
Vejamos agora o partido da ordem. A N. Rh. Z. dizia no seu número 3, pág. 16:
"Frente aos apetites de restauração dos orleanistas e legitimistas coligados,
Bonaparte defende o título do seu poder efectivo, a república; frente aos apetites de
restauração de Bonaparte, o partido da ordem defende o título da sua dominação
comum, a república; frente aos orleanistas, os legitimistas defendem, como frente
aos legitimistas os orleanistas, o statu quo, a república. Todas estas fracções do
partido da ordem, cada uma delas com o seu próprio rei e a sua própria restauração
in petto, fazem valer alternadamente, frente aos apetites de usurpação e sublevação
dos seus rivais, a dominação comum da burguesia, a forma na qual ficam
neutralizadas e reservadas as pretensões particulares — a república... E Thiers falava
mais verdade do que suspeitava quando dizia: "Nós, os realistas, somos os
verdadeiros pilares da república constitucional."(7*)
O partido da ordem encarava a lei eleitoral como se fosse ao mesmo tempo uma
vitória sobre Bonaparte. Não tinha o governo abdicado ao entregar à comissão dos
dezassete a redacção e a responsabilidade da sua própria proposta? Não residia a
maior força de Bonaparte perante a Assembleia no facto de ser o eleito de seis
milhões? Por seu lado Bonaparte tratava a lei eleitoral como uma concessão à
Assembleia com a qual comprara a harmonia do poder legislativo com o executivo.
Em pagamento, esse vulgar aventureiro exigia um aumento de três milhões da sua
lista civil. Podia a Assembleia Nacional entrar em conflito com o executivo num
momento em que ela excomungava a grande maioria dos franceses? Encolerizou-se,
pareceu querer levar as coisas ao extremo; a sua comissão rejeitou a proposta, a
imprensa bonapartista ameaçou, apontou o povo deserdado e despojado do seu
direito de voto; realizaram-se inúmeras e ruidosas tentativas de entendimento e. por
fim, a Assembleia cedeu na matéria, mas ao mesmo tempo, vingou-se no princípio.
Em vez do aumento anual por princípio da lista civil de 3 milhões concedeu-lhe uma
ajuda de 2 160 000 francos. Não contente com isso, só fez esta concessão depois de
a ter apoiado Changarnier, o general do partido da ordem, protector imposto a
Bonaparte. Por conseguinte não foi a Bonaparte que ela realmente concedeu os 2
milhões, mas sim a Changarnier.
Este presente lançado assim de mauvaise grâce(9*), foi acolhido por Bonaparte
inteiramente no sentido de quem lho deu. A imprensa bonapartista voltou a fazer
barulho contra a Assembleia Nacional. Assim, quando no debate da lei de imprensa se
fez a emenda sobre a indicação dos nomes, emenda essa que era dirigida muito
especialmente contra os jornais subalternos, defensores dos interesses privados de
Bonaparte, o principal jornal bonapartista, o Pouvoir[N158], desferiu um ataque aberto e
violento contra a Assembleia Nacional. Os ministros tiveram de desmentir o jornal
perante a Assembleia; o gérant(10*) do Pouvoir compareceu na Assembleia Nacional e
apanhou a multa máxima, 5 000 francos. No dia seguinte, o Pouvoir publicava um
artigo ainda mais insolente contra a Assembleia e, como vingança do governo, o
ministério público processou imediatamente diversos jornais legitimistas por violação
da Constituição.
Esta suja figura igualmente se iludia sobre as causas que cada vez mais a
revestiam do carácter de homem necessário. Enquanto o seu partido teve
discernimento bastante para atribuir às circunstâncias a crescente importância de
Bonaparte, este supunha que essa importância era unicamente devida à magia do seu
nome e à sua incessante caricatura de Napoleão. De dia para dia ele tornava-se cada
vez mais empreendedor. Às peregrinações a St. Leonards e a Wiesbaden opôs ele as
suas digressões através da França. Os bonapartistas tinham tão pouca confiança no
efeito mágico da sua personalidade que enviaram por toda a parte como claque,
despachada em massa por comboios e diligências, gente da Sociedade do 10 de
Dezembro(12*), essa organização do lumpenproletariado de Paris. Puseram discursos
na boca da sua marionette, os quais proclamavam, segundo a recepção nas
diferentes cidades, ora a resignação republicana ora a tenacidade perseverante como
lema eleitoral da política presidencial. Apesar de todas as manobras, estas viagens
tinham muito pouco de cortejos triunfais.
Depois de, segundo cria, ter assim entusiasmado o povo, Bonaparte pôs-se em
movimento para ganhar o exército. Na planície de Satory perto de Versalhes mandou
realizar grandes revistas no decurso das quais tentou comprar os soldados com
salsichão, champanhe e charutos. Se o verdadeiro Napoleão sabia animar os seus
soldados esgotados nas fadigas das suas campanhas de conquista por meio de uma
momentânea intimidade patriarcal, o pseudo-Napoleão julgava que as tropas lhe
agradeciam ao gritar: Vive Napoléon, vive le saucisson!(13*), isto é: Viva a salsicha,
viva o arlequim!
Estas revistas fizeram eclodir a dissensão longo tempo contida entre Bonaparte e
o seu ministro da Guerra, d'Hautpoul, por um lado, e Changarnier, por outro. Em
Changarnier tinha o partido da ordem encontrado o seu verdadeiro homem neutral, a
respeito do qual não podia falar-se em quaisquer pretensões dinásticas pessoais.
Assim, tinha-o destinado para sucessor de Bonaparte. Além disso, com a sua
actuação em 29 de Janeiro e em 13 de Junho de 1849, Changarnier tornara-se o
grande general do partido da ordem, o Alexandre moderno, cuja intervenção brutal
tinha, aos olhos do burguês tímido, cortado o nó górdio da revolução. No fundo, tão
ridículo como Bonaparte, ele tinha-se tornado de um modo extremamente barato um
poder e contraposto pela Assembleia Nacional ao presidente para o vigiar. Ele próprio
coqueteava, por exemplo, no caso da questão da dotação, com a protecção que
oferecia a Bonaparte e apresentava-se sempre mais arrogante contra ele e os
ministros. Quando, por ocasião da lei eleitoral, se esperava uma insurreição, proibiu
os seus oficiais de receberem quaisquer ordens, quer do ministro da Guerra quer do
presidente. A imprensa contribuía também para engrandecer a figura de Changarnier.
Na completa falta de grandes personalidades, o partido da ordem via-se naturalmente
obrigado a concentrar num só indivíduo toda a força que faltava à sua classe e a dar-
lhe dimensões gigantescas. Foi assim que nasceu o mito de Changarnier, o "baluarte
da sociedade". A petulante charlatanaria, a secreta presunção com que Changarnier
condescendeu em carregar o mundo aos ombros, constitui o mais ridículo dos
contrastes com os acontecimentos durante e depois da revista de Satory, os quais
demonstraram irrefutavelmente que apenas era necessário um rabisco da pena de
Bonaparte, o infinitamente pequeno, para reduzir esse fantástico produto do medo
burguês, o colosso Changarnier, às dimensões da mediocridade e para o transformar
de herói salvador da sociedade num general reformado.