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ATALHOS URBANOS – O EXEMPLO DO CHIADO

CINCO ESTUDOS DE CASO

Rui Miguel Pires Figueiredo

Dissertação para obtenção do Grau de Mestre em

Arquitectura

Júri:
Presidente: Prof. Pedro Filipe Pinheiro de Serpa Brandão
Orientador: Prof. Carlos Moniz de Almada Azenha Pereira da Cruz
Vogal: Prof. Antonio Salvador de Matos Ricardo da Costa

Setembro 2008
Aos meus pais e aos meus avós.
À Márcia.
Ao Daniel.
A todos os que no último ano me cumprimentaram
sempre com um caloroso “então e a tese?”
mas que hoje fazem toda a diferença porque
foram quem realmente se preocupou.
Ao Prof. Carlos Cruz pela paciência, persistência e dedicação.

2
Resumo

Desde cedo, as primeiras cidades apresentaram, alternativamente ao traçado


urbano principal, acessos mais curtos ou directos entre espaços. Se por um lado
estas articulações alternativas se definem pela espontaneidade dos utilizadores que
as usam para responder a necessidades, por outro lado o arquitecto tentou muitas
vezes interpretar essas necessidades de modo a dar-lhes resposta na concepção do
projecto urbano.
As duas situações constituem, segundo o nosso ponto de vista, Atalhos
Urbanos.
O Chiado é o território, por excelência, para encontrar, analisar e comparar
casos de estudo e aqui podemos encontrar variadas manifestações do mesmo
fenómeno. Desde o Quarteirão Império, com um esquema de circulações e
atravessamentos apoiados em pré-existências à intervenção pombalina, até à
Estação de Metro Baixa-Chiado que acaba por funcionar como articulador de dois
espaços com cotas distintas apesar de a sua função principal ser outra, vamos
abordar casos concretos e fundar a nossa procura.
De certa forma temos um tema pouco explorado que ganha muita
importância quando aplicado ao território o Chiado e à cidade de Lisboa, tão
marcada pela topografia e onde o Atalho Urbano adquire um significado mais rico.

Atalho Atravessamento Quarteirão Chiado Interior

3
Abstract

First cities, soon presented shorter links between spaes alternatively to the
main urban plan. If one way these alternative articulations define them selves by their
user’s spontaneity, on the other hand the architect often tryed to understand those
needs in a way to answer them in the urban project conception.
Those circumstances are, on our point of view Urban Short-Cuts.
Chiado is par excellence the place to find, examin and compare case-study
and where we can find several demonstrations of this same phenomenon. There’s
the example of Quarteirão Império with a pre-pombal circulations sistem and Baixa-
Chiado Subway station witch works as a link between two diferent spots in two
diferent altitudes, even this isn’t the main function it was made for.
In a certain way we have a less explored theme that achieves great
importance applyed to Chiado’s territory and to the city of Lisbon, so topograficaly
marked and where the Urban Short-Cut acquires such an important significance.

Shortcut crossing block Chiado interior

4
Índice

1 CAPÍTULO UM 8
1.1 Objectivos 9
1.2 Metodologia 9
1.3 Síntese de capítulos 10
1.4 Introdução 11
1.5 Inserção Histórica 15
1.6 O Atalho no contexto do urbanismo 16
1.6.1 Staatsgalerie 20
1.6.2 Carpenter Arts Center – Harvard 23
1.6.3 Galerias de Paris – Walter Benjamin – “Passages” 25
__________________________________________________________________________
2 CAPÍTULO DOIS 28
2.1 Lisboa Pombalina 29
2.2 A terceira Dissertação de Manuel da Maia 32
2.3 Siza no Chiado 39
2.4 Porquê o Chiado 41
__________________________________________________________________________
3 CAPÍTULO TRÊS 43
3.1 Quarteirão Seguros Império 44
3.2 Bloco A – Chiado 50
3.3 Bloco B – Chiado 60
3.4 Armazéns Grandella 66
3.5 Grandes Armazéns do Chiado 72
3.6 Estação Metropolitano Baixa-Chiado 77
3.6.1 Perugia – Rocca Paolina 79
3.7 Conclusões sobre os casos de estudo 86
__________________________________________________________________________
4 CAPÍTULO QUATRO 88
4.1 Considerações finais e Importância do estudo 89
4.2 Possibilidades e panorama de alargamento 90
__________________________________________________________________________
Bibliografia 93

5
Lista de quadros e imagens

1.1 Mileto cerca de 3500 a.C 15


1.2 Pormenor da Retícula da Cidade Hipodâmica 15
1.3 Maquete da Acrópole de Atenas no sec. II d.C 17
1.4 Propileus – vista do lado ocidental 17
1.5 Plano da Acrópole de Atenas em 400 a.C segundo A.W.Lawrence 17
1.6 Vista aérea da Av. Willy-Brand e da Urban Platz – Stutgaart 20
1.7 Foto Aérea da Staatsgalerie – Fonte: GoogleEarth 20
1.8 Vista da Rampa que atravessa a praça circular da Staatsgalerie 21
1.9 Carpenter Arts Center 21
1.10 Carpenter Arts Center 23
1.11 Foto Aérea – Carpenter Arts Center – Fonte: GoogleEarth 23
1.12 Quartier de L’Eurpe – Paris – Esquema de Galerias no Interior 25
1.13 Galerias do Palais Royale – Paris – Imagem do sec. XVII 26
1.14 Fotografia de uma arcada demonstrativa da tipologia 26

_____________________________________________________________________

2.1 Planta da cidade de Lisboa – João Nunes Tinoco – 1650 31


2.2 Marquês de Pombal e a Reconstrução de Lisboa - 1766 31
2.3 Nova Lisboa – Planta nº5 – Eugénio dos Santos e Carlos Mardel 1758 34
2.4 Planta nº4 – Gualter da Fonseca – 1758 35
2.5 Planta nº3 – Eugénio dos Santos e Carlos Andrea – 1758 35
2.6 Planta nº2 – Sebastião e Domingos Poppe – 1758 36
2.7 Planta nº1 – Gualter da Fonseca e Pinheiro da Cunha – 1758 36
2.8 Fachadas da Rua do Carmo e da Ru Nova do Arsenal 38
2.9 Rua Garret e ao fundo o Largo do Chiado – anos 30 42
2.10 Incêndio do Chiado – 25 de Agosto de 1988 42
2.11 Foto Aérea da Zona sinistrada do Chiado após o incêndio 44
__________________________________________________________________________________

3.1 Esquema de acessos do Quarteirão Império 45


3.2 Pormenor do Quarteirão – Planta de Lisboa – 1904/1911 47
3.3 Maquete da Intervenção do Arq. Gonçalo Byrne 47
3.4 Maquete da Intervenção do Arq. Gonçalo Byrne 47
3.5 Pormenor da Carta Topográfica, nº43 - 1858 – Filipe Folque 48
3.6 Quarteirão Império – 2008 49
3.7 Quarteirão Império – 2008 49
3.8 Quarteirão Império – 2008 49
3.9 Esquema de Acessos do Bloco A – Chiado 50
3.10 Bloco A – Chiado 2008 54
3.11 Bloco A – Chiado 2008 54
3.12 Bloco A – Chiado 2008 54
3.13 Desenho da Rampa – Álvaro Siza – 1989 57

6
3.14 Pátio do Bloco B – Planta das rampas e escadas 57
3.15 Pátio do Bloco B – alçado das rampas e escadas 60
3.16 Panorâmica de Lisboa – Gravura da primeira metade do sec. XVI 61
3.17 Pormenor – destaque das “Escadinhas da Piedade” 61
3.18 Desenho do interior do quarteirão – Álvaro Siza 64
3.19 Fotografia do acesso à Rua do Carmo 64
3.20 Interior do quarteirão 65
3.21 Interior do quarteirão 65
3.22 Alçado da Rua do Carmo – Armazém Grandella 67
3.23 Desenho – Armazém Grandella – Álvaro Siza 68
3.24 Planta dos Pisos 5 e 7 68
3.25 Limites e configuração da cidade medieval registados em 1761 71
3.26 Pormenor da planta de Lisboa antes de 1755 – José Valentim Freitas 71
3.27 Esquema da configuração do quarteirão no sec. XIX 71
3.28 Grandes Armazéns do Chiado – Rua do Carmo por volta de 1960 73
3.29 Ruinas dos Armazéns do Chiado após o incêndio de Agosto de 1988 76
3.30 Alçado da Rua do Carmo e Rua Nova do Almada 76
3.31 Corte Longitudinal do túnel de acesso ao Metro 76
3.32 Secção transversal do túnel de acesso ao Metro 77
3.33 Plano Geral da situação da estrutura da estação de Metro 78
3.34 Nave da estação 78
3.35 Perúgia em 1851 - reconstituição da estrutura de SanGallo 81
3.36 Oleo sobre tela – Fortaleza Paolina – Giuseppe Rossi, sec. XIX 82
3.37 Oleo sobre tela – Lado ocidental – Giuseppe Rossi, sec. XIX 82
3.38 Corte do percurso pedonal mecanizado 85
3.39 Fotografia do interior do percurso 85
3.40 Fotografia do interior do percurso 85
__________________________________________________________________________________

4.1 Igreja do Sagrado Coração de Jesus – Nuno Teotónio Pereira 91


4.2 Instituto Superior de Economia e Gestão – Gonçalo Byrne 91
4.3 Fotografia do Interior do Quarteirão Funf Hofe 91
4.4 Fotografia da intervenção no alçado Norte 92
4.5 Foto Aérea – Fonte: GoogleEarth 92

7
CAPÍTULO UM
Considerações preliminares [enquadramento histórico]
Âmbito do trabalho [validação da tese]
Síntese de capítulos

8
1.1 Objectivos

Esta dissertação tem por objectivo a abordagem de um fenómeno pouco


aprofundado nos estudos sobre a malha urbana e que cremos ser muito importante
no panorama de qualquer cidade. Ainda mais em cidades em que a topografia tem
um papel fundamental na leitura do território, como é o caso de Lisboa. Daremos
especial atenção neste documento ao Atalho Urbano dentro do tecido edificado da
cidade.
Delimitamos uma área restrita da cidade para enquadrar o nosso estudo – o
Chiado – com uma componente histórica muito acentuada e com exemplos muito
concretos de atalhos e acessos entre diferentes espaços urbanos.

1.2 Metodologia

Numa primeira fase considerámos essencial definir o conceito de Atalho


Urbano como o entendemos e situá-lo na história mostrando como este fenómeno
se vem repetindo ao longo dos séculos. Será importante explicar previamente que a
natureza desta perspectiva histórica não se prende com aspectos cronológicos nem
pretende abordar de forma exaustiva o desenvolvimento do conceito mas sim
apontar casos que consideramos interessantes e que acabamos por organizar em
função da tipologia ou forma. Começamos por enquadrar o quarteirão, onde a
maioria das situações de atalho começaram por aparecer, no contexto da evolução
do urbanismo fazendo sempre a devida alusão às diversas soluções adoptadas.
De certa forma demonstramos como o conceito de “Atalho Urbano” como o
compreendemos é bastante simples. No fundo o atalho é por definição uma
articulação entre dois espaços. Mas a nossa abordagem pretende salientar a
importância que este fenómeno atinge em determinadas situações e, mais ainda,
quando a diferença de cotas, a distância, a diferente hierarquia de espaços ou a
multiplicidade de percursos se tornam factores que valorizam o papel desses
atalhos.

Numa fase posterior, já justificada a nossa escolha do Chiado para território


de selecção de casos de estudo, considerámos essencial um enquadramento do
bairro nos acontecimentos históricos que marcaram Lisboa, com especial atenção
para o episódio do terramoto de 1755, da consequente reforma urbana levada a
cabo pelo Marquês de Pombal que modificou de forma decisiva a cidade e a sua

9
modernidade e o incêndio de Agosto de 1988, mais à escala do Chiado, com
atenção à operação de requalificação que se seguiu.

Privilegiámos na nossa recolha de casos de estudo as situações em que a


articulação destes espaços permitisse vencer cotas ou facilitasse de alguma forma
essa ligação. Assim foram abordados cinco quarteirões ou edifícios do Plano de
Reabilitação da Zona Sinistrada do Chiado levada a cabo nos anos noventa e um
quarteirão alvo de requalificação mais recentemente. Foi importante na nossa
selecção que fossem abordados diferentes tipos de construção ou mecanismo que
faz o acesso entre zonas e assim consideramos que foi cumprido o objectivo de
analisar o maior número possível de soluções diferentes.
Depois de escolhidos os casos de estudo a considerar para fundamentar
esta dissertação achámos importante definir uma metodologia de abordagem e
análise comum a todos e definida sob alguns critérios tais como: a história do local e
a sua importância para a solução adoptada, o programa pretendido e o programa
conseguido, o sucesso que cada solução veio a alcançar tendo em conta a forma
como a envolvente e os utilizadores se adaptaram às novas funções e o modo como
cada caso de estudo se articulou com os outros atalhos urbanos presentes no
Chiado, que juntos compreendem um conjunto importante de acessos.

10
1.3 Síntese de Capítulos

Esta dissertação está dividida em quatro capítulos.

C1 no primeiro capítulo faremos a primeira abordagem ao conceito que


propomos analisar de forma a enquadra-lo na história do urbanismo e assim
definir a nossa ideia de Atalho Urbano. Referimos brevemente as razões que
nos levaram a optar por este tema e de que forma este documento poderá
ser importante.

C2 no segundo capítulo vamos debruçar-nos sobre o território de Lisboa com


especial incidência na Baixa/Chiado e fazer uma aproximação à história da
transformação da cidade após o terramoto de 1755 e mais à frente sobre o
território do Chiado tentando compreender como era, como mudou com a
intervenção após o incêndio de 1988 e como já tinha mudado entretanto.

C3 no terceiro capítulo vamos analisar diversos casos de estudo de forma a


entender as diferentes manifestações deste fenómeno com a comparação
entre eles. Posteriormente faremos uma síntese, tirando algumas
conclusões.

C4 no quarto e último capítulo vamos fazer algumas considerações finais que


achamos oportunas para mostrar o que este estudo nos leva a concluir e
quais as pistas que lançam sobre esta problemática.

11
1.4 Introdução

No seu livro Urbanismo de 1925, Le Corbusier escreveu que o burro é um


animal que percorre os caminhos mais estranhos. Reconhece no burro uma
tendência para seguir os trilhos tortuosos que sobem a serra, ignorando os
caminhos mais directos. Porém, Corbu demonstra desta forma depreciativa a
tendência racional da generalidade dos humanos para procurar o caminho mais
rápido e mais fácil para determinado percurso. É estranho sentirmo-nos comparados
a um burro mas, de facto, o nosso comportamento como utilizadores da cidade e da
malha edificada distingue-se da abordagem irracional do burro precisamente na
procura do percurso mais conveniente. Atalhamos as nossas próprias direcções
escolhendo a forma mais confortável ou rápida de chegar do ponto A ao ponto B,
ainda que, por vezes, desrespeitando os desígnios e convicções iniciais de quem
concebeu o espaço ou o traçado.

Quantas vezes foi necessário, atravessar um relvado “proibido pisar” ou


percorrer o interior de um edifício ou de um quarteirão para chegar mais rápido ou
com menos esforço ao nosso destino?

Deste modo tornou-se recorrente da natureza humana tomar decisões no


sentido de procurar uma solução conveniente para as deslocações que fazemos. E
cedo o homem se apercebeu disso aplicando aos primeiros conjuntos edificados
soluções de atalho.
Por exemplo em Roma podemos recordar o Mercado no Fórum do Imperador
Trajano que articula, num sistema muito semelhante ao dos centros comerciais
como os conhecemos hoje, duas cotas muito distintas com um desfasamento de
cerca de dezasseis metros. Durante muito tempo esta construção funcionou como
mercado com as suas arcadas e galerias a desenvolverem-se paralelamente ao
declive estabelecendo um acesso entre o espaço do fórum e o plano superior. Mega
Ferreira refere este exemplo no seu livro de viagens1 especulando que este edifício,
com cerca de 2000 anos, terá sido a origem do conceito de centro comercial com as
diversas lojas em contacto no mesmo espaço.

Podemos classificar o atalho como uma utilização quase marginal da cidade


ou do edificado [na medida em que se insere numa percepção inteiramente diferente

1
Ferreira, António Mega – Roma

12
do traçado principal] por remeter o utilizador abordagem distinta do tecido urbano,
esconder num interior de quarteirão ou passar despercebido no meio do conjunto.
Uma pequena entrada, um edifício que descola para dar passagem, pequenas
escadas escondidas ou uma rampa que acede á rua de cima...
Porém, nenhuma intervenção na cidade pode ser tão genuína porque o
atalho é símbolo de alguma vontade própria do utilizador de facilitar o percurso. No
nosso entender a palavra “espontaneidade” adequa-se ao conceito que estudamos
visto que o atalho surge de uma necessidade que aparece pontualmente no
percurso do transeunte. Porem na maior parte dos exemplos (temos aqui uma
questão que pretendemos com este estudo ver clarificada) assistimos a um
espontaneidade projectada uma vez que esses atalhos são na generalidade o
resultado de uma vontade do arquitecto. O que tentamos compreender com esta
dissertação é se é possível interpretar o comportamento do utente da malha urbana
e assim desenhar uma parte da cidade e, mais concretamente, desenha um atalho
decorrente de uma dificuldade ou necessidade.

É curioso falar acerca de um fenómeno tão marginal inserido no plano


original da baixa pombalina que desde a sua concepção e projecto até á sua
execução e impacto na sociedade portuguesa e internacional sempre foi
considerado um exemplo de sobriedade que reflectiriam a vontade de projectar
Lisboa na Europa como centro financeiro e cultural moderno.
De facto, escreve Helena Murteira “[...] as entidades responsáveis pela
gestão da cidade, a Coroa e o Senado da Câmara, assim como os técnicos da
construção, arquitectos e engenheiros militares, souberam utilizar a experiência
acumulada e adaptar os instrumentos práticos disponíveis (administrativos, jurídicos
e financeiros) de forma a dar corpo a uma estratégia de ordenamento urbano que
aproximasse Lisboa da realidade das capitais europeias com maior expressão da
época”2.
E a Baixa de Lisboa adquire um desenho ortogonal e regrado que reflecte
essa tal vontade de transmitir uma imagem de rigor e sobriedade e ao mesmo tempo
transparecer para o exterior que Portugal se modernizava. Curioso é que desta
forma foi possível conceber um método construtivo assente na pré-fabricação e na
standardização de soluções, que além de tudo mais, trouxe mais valias ao nível do
2
Monumentos 21 – Revista Semestral de Edifícios e Monumentos – Setembro 2004
“Lisboa antes de Pombal: crescimento e ordenamento urbanos no contexto da Europa
Moderna (1640-1755)” p. 50

13
tempo e dos custos de construção. As praças abrem espaços monumentais dignos
de uma grande capital europeia desenvolvida em torno de dois objectivos bem
definidos: a funcionalidade e a beleza traduzida pela monumentalidade.

Com isto pretendemos dizer que ao contrário da tendência de tentar


perceber os fenómenos subjacentes a um desenho urbano a uma escala mais
alargada, que transpareceu as ambições de projecção internacional do reino
(monumentos 21), tentamos com esta reflexão compreender o que está por trás do
gesto primário. Incidimos numa escala muito mais aproximada do interior do
quarteirão e do edificado, para desvendar passagens, atalhos e desvios no traçado
original e principal, aquele que constitui a grande manifestação urbanística moderna
de setecentos e perceber como estas intervenções pontuais vieram criar uma
camada nova na cidade, tantas vezes definida pelos próprios utilizadores.
Um pouco ao contrário do que é habitual, vamos perceber o que ficou do
período pré-pombalino nesta regeneração do tecido urbano que aparentemente
rompe com a maior parte das ligações à estrutura urbana precedente. Regeneração
essa que, como verificaremos, não conseguiu nunca divorciar-se completamente do
traçado anterior a Novembro de 1755.
Vamos explorar a cidade do ponto de vista do utente que anda a pé.

14
1.5 Inserção histórica

Ao abordar o tema da dissertação decidimos incidir num ponto que não


representasse uma escolha óbvia ou um tema recorrente e já muito abordado.
Achámos que se nos debruçássemos mais sobre a cidade encontraríamos, com
certeza, pequenos detalhes muito específicos que acabariam sempre por remeter
para o gesto global do desenho urbano.
Quisemos, mais que tudo, encontrar um tema que nos desafiasse tanto pelo
seu interesse no estudo da cidade antiga [porque esta é uma dissertação cujo ponto
de partida esteve no exercício de projecto final que, por sua vez, focou a àrea da
Praça da Figueira e, inevitavelmente, a Baixa Pombalina e sua envolvente] como
pelo interesse que poderia vir a ser criado por ser um assunto pouco presente na
bibliografia proposta para a escolha do tema.

Um dos problemas que nos surgia recorrentemente ao intervir na zona da


Baixa, sobretudo nas colinas, era a dificuldade de estabelecer acessos entre
diferentes espaços e, mais ainda, entre diferentes cotas numa cidade tão marcada
pela sua topografia acentuada.
Então surge esta possibilidade de abordar com este estudo uma vertente do
projecto que desce à escala do pequeno acesso e que por nós acaba por ser
classificado como atalho – Atalho Urbano.

Segundo defendemos e mais adiante se poderá constatar, o conceito de


atalho urbano começa por constituir uma vertente quase clandestina do projecto da
cidade na medida em que não faz parte, directamente, do gesto do urbanista que
rasga a malha urbana ou que projecta novos espaços. Mas o atalho passa a ser um
constituinte fundamental do urbanismo a partir do momento em que a cidade é
olhada e vivida pelo transeunte, o utente que a pisa e utiliza regularmente.
Acabaremos por perceber mais à frente que o pequeno detalhe da escadinha
bem dimensionada ou da rampa que facilita o pequeno circuito vai ser um dos
principais responsáveis pelo bom funcionamento de um projecto urbano que à
partida visa recuperar uma determinada área.
Veremos como uma intervenção que “apenas” pretendia devolver, das
cinzas, um bairro à cidade vai tornar-se um caso excepcionalmente valorizado por
um conjunto de pormenores baseados, sobretudo, na recuperação de pequenos
acessos.

15
1.6 O Atalho no contexto do Urbanismo

O urbanismo como o conhecemos hoje é vulgarmente interpretado, de um


modo muito genérico, como a forma que a as primeiras civilizações asiáticas e sul-
americanas e mais tarde a Antiguidade utilizaram para organizar os primeiros
aglomerados, que posteriormente evolui para as pequenas vilas e cidades.
Estima-se que as primeiras cidades com traçados reticulados, pressupostos
que hoje reconhecemos nalgumas das nossas cidades, remontam a 3500 anos a.C.3
Grande parte dos historiadores atribui ao grego Hipodamus as primeiras concepções
organizacionais da cidade4, tendo concebido uma série de teorias sobre a utilização
ideal do território na localização de arruamentos e do edificado na expressão formal
da cidade.
Atribui-se, por exemplo, a concepção de desenho urbano de Pireu e Mileto,
cidades do Império Grego a sul da Jónia. As virtudes demonstradas no planeamento
das primeiras cidades reflectiram-se na organização das suas valências concedendo
ao plano ordem e regularidade através da divisão de espaços e pela demarcação de
fronteiras e articulação entre esses mesmos constituintes. Estas características das
cidades hipodâmicas contrastam claramente com o sentido mais orgânico das áreas
e funções da generalidade das cidades do mesmo período. Assim, Hipodamus

1.1 | Mileto cerca de 3500ª.C. – Malha reticulada


1.2 | Pormenor da Retícula da cidade Hipodâmica

3
poderíamos referir os primeiros aparecimentos de aglomerados organizados na Ásia ou na América
do sul mas preferimos enquadrar o urbanismo desta forma de modo a tornar mais simples a
compreensão.
4
Não da urbe, visto que o termo “urbanismo” apenas é utilizado pela primeira vez por Ildefonso
Cerdá, engenheiro catalão responsável pelo projecto urbano de ampliação da cidade de Barcelona, por
volta de 1850, denominando urbe um termo que de um modo geral designa os diferentes tipos de
assentamento urbano.

16
dividiu a cidade de modo a poder ser habitada por dez mil homens e por crianças e
respectivas mulheres, perfazendo cerca de cinquenta mil. Ligou toda a cidade ao
sistema de administração central e dividiu-a em zonas sagradas, zonas públicas e
zonas privadas.

Hipodamus acompanhou as colonizações de novos territórios do império


grego como arquitecto, embora interviesse, sobretudo, ao nível do planeamento do
território, o que fez dele, se nos for permitido afirmar, o primeiro urbanista. As
primeiras organizações a recorrer ao sistema de quarteirões foram-lhe atribuídas.
Este sistema prevaleceu desde as origens até ao desenho das cidades que ainda
hoje aplicamos.

O Atalho Urbano apareceu, no nosso entender, logo no inicio da formação


das primeiras cidades, ainda antes desta organização cuidada e planeada ter sido
motivo de preocupação para alguem. Consideramos mesmo que o Atalho Urbano
apareceu assim que se constituiu a primeira dificuldade de circulação e a primeira
necessidade, se assim a quisermos chamar, de facilitar um determinado acesso.
Porem, como defenderemos mais adiante, o atalho urbano apenas poderá ser
encarado como tal a partir do momento em que se insere numa malha ou numa
estrutura mais consolidada. Se assim não for, o conceito de atalho deixa de ter o
caracter complementar ou alternativo ao plano global e assim um papel menos
pragmático.

Isto acontece, por exemplo, com o Propileus, uma construção empreendida


com o interesse de formalizar uma entrada para um determinado espaço. No caso
da Acrópole de Atenas, o Propileus assume um papel protagonista de entrada
monumental, quase sem alternativa, não tendo resultado da tal necessidade
marginal de facilitar o acesso. Aqui a construção é erigida com o claro intuito de se
afirmar e fazer a ligação entre o território centro de poder divino e o resto da cidade.
No entanto a função está implícita. Esta construção é claramente um edifício. Um
edifício com o propósito de ligar dois espaços.

Proveniente dos planos urbanos de planta reticulada, em que pórticos


municipais (stoa) delimitavam as praças do mercado centro de vida cívica e
comercial das cidades gregas, o Propileus apareceu em várias ocasiões,
nomeadamente na Acrópole de Atenas, fazendo ligação entre o topo da subida da
colina e a cota mais elevada do espaço do templo. Como podemos verificar nas

17
1.3 | Maquete da Acrópole de Atenas no sec. II d.C
1.4 | Propileus – vista do lado ocidental
1.5 | Plano da Acrópole de Atenas em 400 a.C segundo A. W. Lawrence

18
imagens o Propileu acompanha a última escadaria, abrigando-a e funcionando
assim como elo de ligação entre os dois espaços, claramente evidenciado em planta
com a passagem interior.
No caso do Propileus a intenção de criar uma construção ou um edifício para
formalizar o acesso ou articulação entre dois espaços está evidente e é aqui que, no
nosso, se afirma uma das primeiras tentativas de atalho urbano, embora não nos
moldes que definimos anteriormente.
De facto não se trata de um atalho mas de uma entrada, porêm, como refere
Edmund Bacon em Design of cities a própria acrópole funciona como o destino de
um percurso – Caminho Panatinaico - esse sim, que se desdobra através da cidade
de Atenas. Este percurso assume o papel de elemento que atravessa o tecido
urbano e aproxima-se do conceito que tentemos definir.

Este tipo de atravessamento é hoje muito comum e traduz uma tipologia de


atalho que consideramos muito pertinente referir, na medida em que de afasta da
escala do pequeno arruamento ou da escadinha, com vínhamos mostrando, para
representar uma ligação com um protagonismo muito mais global e respondendo da
mesma forma a necessidades concretas dos utentes. Podemos confirmar esta ideia
lembrando casos com a diagonal de Barcelona, a Broadway5, as avenidas que
rasgam a cidade de Berlim ou casos mais pontuais mas igualmente interessantes
como a Rua Guerra Junqueiro que estabelece uma ligação extremamente
conveniente entre a Praça de Londres e a Alameda.

5
Como refere Sola Moralles no texto “The Cutting of the City” a respeito da forma como esses
mesmos cortes na cidade, as grandes avenidas, atravessam o tecido urbano.

19
1.6.1 Staatsgalerie

Na Staatsgalerie em Stutgaardt James Stirling liga duas ruas paralelas


através de uma rampa no interior do edifício projectado para albergar uma galeria de
arte.
Janson defende6 mesmo a suposta ligação desta linha de raciocínio
arquitectónico com a linha dos complexos templos egípcios e romanos apoiado,
talvez, no facto do arquitecto inglês ter satirizado o Modernismo com referências ao
Neo-Clacissismo e ao Renascimento tendo ainda incluido á entrada, como refere,
uma escadaria monumental.
À parte do significado que este edifício tem no panorama do Pós-
Modernismo, com as afirmações “trocistas” de Stirling, a obra tem um outro valor
importante associado que se torna ainda mais evidente no contexto do atalho
urbano – Stirling decide utilizar o centro do terreno onde implanta a galeria para
projectar uma praça, semi-pública, atravessada por uma rampa que ao mesmo
tempo possibilita breves contactos com o interior do espaço de exposição, sem
interferir no circuito de visita, transportando o utilizador para a Willy-Brandt, a
avenida principal de Stutgardt.
No fundo, esta praça funciona muito bem apesar do seu caracter semi-
público (ou semi-privado) visto que articula as duas cotas de forma eficaz e ao
mesmo tempo a praça interior sucede à Urban Platz, no plano superior,
desempenhando o papel de espaço de permanência, sevindo a galeria. Ao mesmo
tempo funciona como um espaço complementar ao traçado urbano da cidade, como
se de uma layer interna se tratasse.

Este caso de estudo faz sentido, todo o sentido, quando comparado com o
Bloco B da intervenção do arquitecto Siza no Chiado e quando feito o devido
paralelismo entre a solução proposta para o interior daquele quarteirão. Tambem no
caso do Bloco B o caracter semi-público (ou semi-privado) é proposto na malha
urbana da cidade articulando dois espaços diferentes e este é um ponto essencial
na compreensão deste fenómeno, na medida em que explica muitas vezes a
existência destes acessos dentro dos espaços interiores.

Janson acrescenta que uma das razões de êxito da Staatsgalerie é


precisamente aquela que Alvaro Siza tentou implementar no Chiado: defende que os

6
JANSON, H.W. – História da Arte, 3ª Edição, New York, 1986, P.P. 767

20
volumes que se erguem em volta do pátio circular permitem a Stirling resolver uma
série de problemas práticos de articulação de espaços e oferece ao visitante uma
sucessão de panoramas.

1.6 | Vista aérea da Av. Willy-Brand e da Urban Platz- Stutgaart


1.7 | Foto aérea da Staatsgalerie – Fonte: GoogleEarth

21
1.8 | Vista da Rampa que atravessa a praça circular da Staatsgalerie

22
1.6.2 Carpenter Arts Center - Harvard

Ainda antes de 1984 e das citações históricas de certa maneira


“provocatórias” do Pós-Modernismo no projecto de Stirling, em 1961 a figura
primeira do movimento moderno projectou um edifício que já não veria construído –
o Carpenter Arts Center em Harvard.
Este edifício não aliava uma rampa a uma praça semi-pública mas o conceito
de atravessamento estava lá. Le Corbusier justifica esta articulação entre as Quincy
e Prescott Street com um alegado caminho de pé posto que fazia ligação entre estes
dois arruamentos ainda antes de o terreno se encontrar edificado.

É interessante regressar a Urbanismo, o livro publicado por Le Corbusier


cerca de 35 anos antes, em 1925, para interpretar este edifício. O arquitecto confia
na intuição dos utilizadores “cortam caminhos” naquele espaço e que ao ritmo de
anos de passagem naquele espaço para atalhar o seu percurso constituíram então
um trilho que viria a fazer Le Corbusier perceber a verdade, se quisermos, daquele
lugar. Como afirma ou propõe, “a intuição é a soma de conhecimentos adquiridos,
eis-nos de pés no chão e num meio onde podemos conduzir e dirigir os nossos
actos”.7
É importante atentar a esta ideia, na medida em que foi precisamente a
confiança na intuição daqueles que utilizam o espaço que faz o arquitecto tomar a
decisão de manter o atalho pelo interior do Centro de Artes.
Embora esta publicação fosse mais uma forma de exposição de ideologias e
teorias em relação á cidade e à constituição de um urbanismo no Movimento
Moderno, podemos interpretar muitos conceitos de aplicação prática que Le
Corbusier acabaria por impor anos mais tarde.

7
Le Corbusier, Urbanismo – Martins Fontes, São Paulo, 2000 (versão traduzida) PP.33

23
1.9 | Carpenter Arts Center
1.10 | Carpenter Arts Center
1.11 | Foto aérea - Carpenter Arts Center – Fonte: GoogleEarth 24
1.6.3 Galerias de Paris – Walter Benjamin – “Passages”

Um outro exemplo que não poderíamos deixar de observar nesta resenha


são as Galerias de Paris. O fenómeno apaixonou Walter Benjamin e é também para
nós um caso fundamental na compreensão do atalho urbano, como o entendemos.
Se considerarmos como Atalho o traçado que marginalmente emerge do
gesto primário e global do urbanista (ou dos sucessivos urbanistas) na cidade,
temos de focar o caso da transformação de arruamentos estreitos de comércio em
autênticos centros comerciais que de forma quase espontânea aparecem em Paris
no século XIX.
Com a construção das arcadas do Palais Royal a albergarem as primeiras
lojas de Paris, Napoleão incentivava uma nova forma de fazer compras e pouco
depois começaria a surgir aquilo a que o parisience e o próprio Walter Benjamin
chamaram de “passage” e que nós chamamos de galeria.
As “passages” eram pequenas ruas interiores que atravessavam o quarteirão
de lado a lado com lojinhas em ambas as faces. Normalmente era um único
proprietário que adquiria todos os pequenos edifícios de forma a poder utilizar todas
as lojas no seu negócio e contituir a galeria. Foi assim que se processou o comércio
em Paris até Napoleão III iniciar a reforma urbana com o Barão Hausseman em
1850, empreendimento que duraria até 1860. Com esta intervenção foram abertos
os grandes Boulevards com as ruas principais a ganharem outras condições para
oferecer um espaço muito mais decente à actividade comercial, pelo que as
“passages” iniciam aqui um processo de decadência, sobretudo mais tarde na
segunda metade do século com o aparecimento dos “Grands Magasins”.

Este novo conceito foi inspiração, aliás, do Edifício Grandella mais tarde em
Lisboa. O edifício Grandela, que mais á frente será devidamente descrito, tinha a
particularidade de, ao contrário dos seus prececutores parisienses Magasins
Printemps, serem implantados numa topografia muito acentuada e virem a
desempenhar, a par da vocação comercial com muitos utilizadores e curiosos na
época, a função de articulador entre a Rua do Ouro e a Rua do Carmo no Chiado.

Porém as “passages” desempenharam um papel interessante no urbanismo


do século XIX no sentido em que funcionaram sempre como “elemento surpresa”
dentro do quarteirão que atalhavam muitas vezes ligando ou articulando
arruamentos mais importantes na hierarquia viária. De forma confortável, uma vez
que a maioria destas galerias era coberta, estas passagens eram o elo de ligação

25
quase “clandestino” entre as grandes avenidas e onde proliferavam mundos muito
diferentes a escalas muito aproximadas como recorda Walter Benjamin. No caso da
Galeria Vero Dodat, assim como em muitas outras, temos uma “passage” que utiliza
o nome pomposo de galeria. foi um dos primeiros, “construida” em 18208, ligando a
Rua Jean Jacques Rouseau e a Rua Croix des Petits Champs. Mais à frente temos
o grande pátio interior do Palais Royal com galeria que já fogem ao conceito de
“passage” por se tratar apenas de arcadas enquanto as galerias que descrevemos
se encontram totalmente fechadas. São inúmeras estas passagens em Paris como
noutras capitais europeias9; desde a Perrot entre o Palais Royal e a Rua Beaujolais,
a Passage des Deux Pavillions, a Passage Vivienne, a Colbert...
Sempre que encontramos referências de um autor a este fenómeno
percebemos muito claramente como estes espaços, que não são arruamentos,
funcionam como uma forma de atalhar ou articular; normalmente são descritos como
“passages” e, como “passages”, levam quem as descreve da Rua St. Agoustine á
Place de la Bource, da Rue des Petits Champs para a Rue Molin ou de uma
qualquer rua a outra, numa série de passagens que assim constituem uma layer, se
quisermos, completamente paralela ao traçado original e geral da cidade. Esta é
provavelmente uma das manifestações mais interessantes e mais genuinas do
conceito de Atalho Urbano.

1.12 | Quartier de L’Europe - Paris – Esquema de Galerias no interior

8
Não se trata de uma construção, objectivamente, mas antes de uma adaptação/reconversão
do uso de um atravessamento de um quarteirão
9
No caso da cidade de Praga, por exemplo, existem muitas construções comerciais que
funcionam no intrior dos volumes edificados levando o transeunde a circular, internamente, de rua em
rua, nomeadamente no trajecto entre a Praça Venceslau e o Museu Nacional.

26
1.13 | Galerias do Palais Royale - Paris – imagem do sec. XVII
1.14 | Fotografia de uma arcada demonstrativa da tipologia

27
CAPÍTULO DOIS
Lisboa de Pombal e o Chiado
Explicação da situação do Chiado no século XX

28
2.1 Lisboa Pombalina
Aproximação ao Chiado

Achamos que seria muito importante, senão mesmo imprescindível,


enquadrar esta panorâmica sobre o Chiado com uma alusão à reconstrução
Pombalina da cidade de Lisboa.

José Augusto França refere num texto, escrito para o número 21 da Revista
Monumentos, intitulado “Uma Experiência Pombalina” que a História da Arte
Portuguesa tende a esquecer-se deste episódio que se revelaria fundamental na
constituição da modernidade em Portugal, uma vez que, como afirma, Lisboa de
Pombal e, não esqueçamos, da Casa do Risco, terá sido a primeira cidade moderna
do Ocidente. Esta ideia é seriamente sustentada, apesar de parecer estranho que
Portugal se coloque à frente em questão de Modernidade num tempo já decadente.
No fundo a sua modernidade deve-se ao rigor e à racionalidade da sua
reconstrução. Estas características fizeram da Baixa de Lisboa um projecto urbano
singular no contexto europeu e precursor de outras intervenções de grande
dimensão, desde a cidade de Barcelona por Ildefonso Cerdá em 1855 até à
reconstrução de Belgrado em 1920.

José Augusto França descreve em 1989 o processo de reconstrução da


Baixa de Lisboa como um assunto encarado com absoluta prioridade pelo gabinete
que Sebastião Carvalho e Melo constituiu e que terá dado lugar a um complexo e
abrangente debate urbanístico e arquitectónico, amplamente documentado e
descrito.
De facto, um mes depois da catástrofe o programa da intervenção estava
definido quase na sua totalidade.
As soluções propostas pela Escola Portuguesa de Engenharia Militar que
sustentava a sua experiência com a extensa obra arquitectónica e urbanística nas
colónias. O Mestre-de-Campo-General à data era Manuel da Maia e no primeiro de
três relatórios a que chamou “dissertação” e que entregou ao Duque de Lafões a 4
de Dezembro expõe de forma muito rigorosa cinco hipóteses possíveis para a
Reconstrução de Lisboa:

1. A reconstrução da cidade como ela existia à data da calamidade.


2. Reconstruir a zona da Baixa com algumas rectificações no perfil dos
arruamentos

29
3. Reconstruir a zona da Baixa com algumas rectificações no perfil dos
arruamentos como dizia o ponto 2 mas com tolerância para edifício
de apenas dois pisos.
4. Elaborar um traçado urbano totalmente novo usando o entulho na
regularização do terreno
5. Conceber uma nova cidade, de raiz, na zona de Belém
Sobre esta última recaiu sempre a preferência de Manuel da Maia

Porém, todas as soluções acusavam sempre algumas fragilidades, do ponto


de vista da permuta de terrenos, da segurança, da proximidade do Palácio Real
entre outros.
França defende a ideia10 de que o Rei e, sobretudo, o Marquês de Pombal,
escolheram logo nesta altura o antigo terreno para a reconstrução de Lisboa mas
tendo em conta as indicações da quarta proposta. Assim arrasaram-se as ruínas e
preparou-se o terreno elevando-o com o entulho e iniciando um processo de
redesenho do cadastro que consistia num ajuste dos valores das propriedades.

A segunda Dissertação de Manuel da Maia evoca o incêndio de Londres em


1666 e a expansão de Turim para sustentar a ideia de voltar ao território da Baixa
para a reconstruir por completo. É nesta altura que se começa a desenhar a
hipótese mais tarde adoptada com sugestões de metodologias do sistema de
construção que apontavam já para uma simplicidade muito pragmática através da
utilização de elementos pre-fabricados e padronizados e para uma preocupação
com a segurança que se materializava na famosa estrutura em gaiola. Estes eram
factores que conferiam uma modernidade sem precedentes à capital do Reino.

10
FRANÇA, José Augusto – Lisboa: Urbanismo e Arquitectura, Lisboa, 1980, P.P. 43

30
2.1 | Planta da cidade de Lisboa – João Nunes Tinoco - 1650
2.2 | Marquês de Pombal e a reconstrução de Lisboa – oleo sobre tela de L. M. van Loo e J. Vernet - 1766

31
2.2 A terceira Dissertação de Manuel da Maia

Na sua terceira Dissertação Manuel da Maia apresenta cinco propostas para


o desenho urbano da Baixa sobrepostas ao levantamento realizado anteriormente e
onde constava a proposta escolhida de uma das equipas de engenheiros da Casa
do Risco e das Obras Públicas. Nesta equipa destaca-se Eugénio dos Santos e
Carlos Mardel [a quem competia o aperfeiçoamento da parte arquitectónica da
reconstrução].
José Augusto França considera mesmo que o projecto de Eugénio dos
Santos é a peça básica do processo da Baixa Pombalina e a pedra angular do
espírito reformista e iluminado que presidiu à reconstrução da cidade. Esta opinião é
também partilhada por Gonçalo Byrne, assim como outros autores, no seu texto
Rebuilding the city publicado em 198711.

Eugénio dos Santos terá demonstrado ser um urbanista moderno ao


estabelecer um traçado ortogonal articulando as duas praças principais – o Rossio e
a Praça do Comércio – hierarquizando os espaços e destribuindo os prédios de
rendimento que atribuíram à Baixa uma mudança no panorama social, agora com
uma clara tendência burguesa.
No fundo a planta de Eugénio dos Santos é a mais ortogonal das cinco
apresentadas. Os volumes organizam-se sobre uma malha de arruamentos
ordenada paralela e perpendicularmente ao Rio Tejo. Esta proposta é uma
aproximação à planta de Gualter da Fonseca que já definia este modelo de
ocupação do espaço destruído.
O facto de os arruamentos se modelarem desta forma foi fundamental para a
concretização do objectivo proposto na segunda dissertação – a padronização – no
sentido em que permitia que o módulo do quarteirão se repetisse o maior número de
vezes possível. Este conceito é levado ao estremo na planta escolhida visto que são
muito poucos os quarteirões que fogem ao modelo predefinido, como veremos.

O modo como Eugénio dos Santos encara o cosimento da malha nova com a
malha antiga, orgânica, que sobreviveu ao terramoto é um dos factores mais
interessantes da intervenção e um dos que mais destacavam esta das outras
propostas. Eugénio dos Santos propõe que a configuração medieval dos
arruamentos na colina do castelo se mantivesse. Desta forma a nova organização

11
Revista Lotus Internacional nº 51 P.P. 11

32
dos edifícios da parte baixa deveria adaptar-se ao que restara e funcionar
independentemente, do ponto de vista do desenho. Isto significa que a malha
orgânica e irregular que negoceia a topografia na colina era mantida até á rua que
hoje chamamos Rua da Madalena, a partir da qual se começaria a erguer a nova
Baixa.
Esta forma de resolver o cosimento das duas malhas de características tao
distintas era muito pragmática e permitia uma certa liberdade na planificação da
retículo e permita, mais ainda, garantir a uniformidade do molde dos quarteirões.
As outras propostas apostavam numa solução mais harmoniosa no sentido
em que a fronteira entre o desenho austero e padronizado dos quarteirões se vai
“desfazendo”, diluindo gradualmente à medida que se aproxima da colina e da
configuração orgânica dos seus arruamentos. Muitas propunham mesmo que os
novos edifícios se misturassem e que a transição fosse quase imperceptível de
forma a tornar-se o menos abrupta possível. Este método consiste sobretudo em
preencher os espaços vazios, deixados pelos edifícios que ruíram, com os
quarteirões da malha global nova. Neste caso essa metodologia é possível na
medida em que nas três primeiras propostas o alinhamento dos arruamentos é mais
livre permitindo a variação das dimensões, da orientação e da forma dos
quarteirões. No caso da proposta de Gualter da Fonseca [quarta proposta] e da
solução final de Eugénio dos Santos a regra na distribuição dos volumes e a
uniformização dos mesmos dificulta a adaptação aos variados espaços vazios, o
que leva à solução mais pragmática na separação das duas malhas urbanas, como
referimos anteriormente.
Aliás, atentando à primeira proposta da terceira Dissertação, de Gualter da
Fonseca e de Pinheiro da Cunha ou á proposta de Sebastião e Domingos Poppe,
encontramos precisamente essa preocupação de juntar e diluir as duas malhas de
forma que se torna mesmo difícil de identificar imediatamente onde termina a
intervenção pombalina e onde “começa” a malha sobrevivente ao terramoto. Nestes
casos até é possível perceber no projecto que os arruamentos adoptam os
alinhamentos das ruas que permaneceram depois da catástrofe.

33
2.3 | Nova Lisboa. Planta nº 5 – Eugénio dos Santos e Carlos Mardel – Junho de 1758

34
2.4 | Planta nº 4 – Gualter da Fonseca – 1758
2.5 | Planta nº 3 – Eugénio dos Santos e Carlos Andrea - 1758

35
2.6 | Planta nº 2 – Sebastião e Domingos Poppe – 1758
2.7 | Planta nº 1 – Gualter da Fonseca e Pinheiro da Cunha - 1758

36
Do outro lado, no Chiado, também identificamos diferenças importantes entre
as diversas propostas. Em quase todas se prestou uma atenção especial à herança
deixada adaptando a malha nova, como no “antípoda” do plano, à malha velha.
No plano de Eugénio dos Santos notamos uma ambição diferente. Se por um
lado na colina do castelo preferiu estabelecer um corte claro e definir a nova cidade
sem entrar na retícula pré-existente, do lado do Chiado o plano austero e ortogonal
invade a colina. Porém, se olharmos para a planta de 1756 encontramos quase um
prolongamento da métrica do quarteirão para a freguesia dos Mártires até às Portas
de Sta. Catarina com a malha a penetrar na totalidade este território apenas
respeitando a colocação dos conventos do Carmo e de São Francisco, bem como
de outros edifícios notáveis sobreviventes. Mas o que sucederia seria uma maior
tolerância à configuração inicial do Chiado e assim uma menor fragmentação dos
quarteirões como verificamos no excerto da planta da cidade de Lisboa de 1780.
De facto, a par da zona central da Baixa afectada pela catástrofe, o Chiado
foi uma das zonas mais alteradas, no sentido em que pouco resta da organização do
território anterior a 1 de Novembro de 1755. Se olharmos para o esquiço que
sobrepõe o plano proposto por Eugénio dos Santos à planta de Tinoco anterior ao
terramoto, apenas conseguimos fazer coincidir a antiga Rua do Chiado, artéria
daquele bairro, a que hoje chamamos Rua Garrett, o limite das Portas de Sta.
Catarina e, como é evidente, os conventos e igrejas e outros palacetes como o caso
dos Armazéns do Chiado, Palácio Barcelinhos à época. A própria configuração dos
arruamentos que se fazia principalmente no sentido montante-jusante passa a ser
atravessado por arruamentos que facilitam a circulação naquele tipo de topografia
estabelecendo "patamares" nascente-poente paralelamente à Rua do Chiado.

Deste ponto de vista do pré-existente e recorrendo novamente às plantas


anteriores ao terramoto, damo-nos conta de espaços intersticiais do plano que
acabam por desaparecer quando o novo traçado junta os fragmentos de quarteirão e
os engloba numa unidade singular. Esta operação foi muito comum e levou a que se
perdesse, de certa forma, a "permeabilidade" de que gozou a malha medieval. Este
facto remete-nos para o assunto do Atalho Urbano que mais tarde será essencial na
vivência destes espaços e "descoberto" pelos arquitectos que se seguiram. Senão
repare-se no caso do Quarteirão Império cuja reabilitação foi projectada pelo Arq.
Gonçalo Byrne, em que há uma clara intenção de manter os dois eixos pré
pombalinos [que eram pequenos arruamentos ou incursões ao seu interior, e que
fragmentavam aquele volume] e repor esta característica na reconstrução daquele
espaço, como veremos mais aprofundadamente no capítuloIII.

37
2.8 | Fachadas da Rua do Carmo e da Rua Nova do Arsenal

38
2.3 Siza no Chiado
ljlkjljlkjO Incêndio de 1988 e a Reconstrução

Um pouco á semelhança do que Bernard Cllenbrander defende nos seus


textos12, Álvaro Siza não se deixou intimidar pelo sentido de “camisa-de-forças” que
o Chiado impunha no processo de elaboração do seu próprio projecto de
reconstrução, ou seja, não se deixa afectar pela dificuldade de contornar a herança
pombalina na cidade e incluir alguma inovação. Se por um lado a imagem histórica
intocável do Chiado impõe limites rígidos a uma classe de arquitectos mais
conservadores e defensores das zonas históricas (como elementos essenciais na
preservação da memória), por outro lado a oportunidade de intervir num espaço da
cidade com características mediáticas e franca projecção internacional [devido à
infeliz dimensão do sinistro de Agosto de 88], era a piéce de resistence para encetar
uma autêntica manifestação arquitectónica.
Porém, Siza acaba por se comportar, neste como noutros projectos, com o
pragmatismo que o caracteriza. Analisa cuidadosamente as pré-existências de
forma a minimizar a possibilidade de erro e para fundamentar as suas opções no
projecto urbano.
A principal acusação de que foi alvo, após apresentar as suas sugestões já
na década de 90 para a intervenção na zona sinistrada, foi de que existia uma
alegada “ausência” de arquitectura no plano em geral, na medida em que não
introduzia qualquer alteração do traçado dos edifícios e que apenas pequenos
detalhes revelavam que teria havido mão criadora daquele que era considerado por
muitos como o melhor arquitecto português. Vemos o caso de inúmeros artigos
publicados à data com títulos como “O Plano do Chiado e a Ausência de
Arquitectura” ou mesmo intervenções de opinião em textos mais alargados. De
facto, até em artigos mais elaborados que enaltecem o projecto do Siza se
consegue perceber, de certa forma, numa chamada de atenção para esta estratégia
de minimização dos efeitos de intervenção do projecto. Foi até acusado de nem
sequer intervir ao nível da fachada do edificado, sobre as quais se fizeram,
inclusivamente, estudos no Laboratório Nacional de Engenharia Civil ao reboco das
paredes de forma a apurar as cores reais utilizadas no século XVIII na reconstrução
pombalina após o sinistro de 1755 e tentar reproduzir ao detalhe essa herança
considerada por Siza a verdade do lugar e a origem da cidade moderna de Lisboa.

12
Bernard Colenbrander terá publicado um ensaio intitulado “Álvaro Siza e a estratégia da memória”
no catálogo do Dutch Architectural Institute por ocasião de uma exposição desta instituição dedicada
aos trabalhos de recuperação do Chiado.

39
Contudo, a alma desta intervenção residia nos detalhes que não se
anunciavam aos menos atentos. Como refere em Março de 1990 à revista Domus “a
questão das fachadas não é verdadeiramente importante, poderão ser conservadas
ou não. Sinto instintivamente que o coração da remodelação do Chiado se encontra
por detrás das fachadas, no interior dos blocos.”13
Siza evoca no início dos anos noventa uma ideia curiosa quando confrontado
com a interpretação daquele núcleo da cidade e do projecto que estava nas suas
mãos – o arquitecto compreende o sistema Baixa-Chiado como um grande edifício
com uma coerência global, amputado pelo sinistro, cuja intervenção a ser feita
deveria procurar devolve-lo ao território, cicatrizando as “feridas”. É interessante
perceber nas suas palavras e posteriormente na análise do projecto que a
cicatrização proposta não se debruçou apenas sobre as reminiscências do incêndio
de 1988 mas também sobre as perdas, alterações e apropriações indevidas que
decorreram desde a reconstrução pombalina.

Esta era, de certa forma, a peça fundamental e caracterizadora do território


do Chiado. Mostrou-se fundamental preservar essa reminiscência pré-pombalina e
com esta face do projecto, mais interior, intervir a fundo no desenho urbano desta
área, com rampas e escadinhas e pátios que fundamentam e completam todo o
sistema de acessos.
No fundo foi a isso que acabamos por assistir. Siza compreendeu a
importância que um projecto rigoroso do ponto de vista do acerto dos pequenos
detalhes, que ao limite se prendia com acertos de cotas de soleira, faria neste
território. Apesar de parecer que este projecto é apenas uma limpeza da imagem do
Chiado, o facto do arquitecto compreender a formação das fachadas, a relação que
o exterior tem com o interior dos quarteirões, e ter dado protagonismo ao tal rigor
construtivo que respeita cada cota de pavimento, veio conferir à zona circundante
daqueles dezoito edifícios uma qualidade urbana e arquitectónica a que o centro
histórico já não estava habituado.

13
Revista Domus, Março 1990 (número desconhecido)

40
2.4 Porquê o Chiado?

A decisão de focalizar o nosso estudo no território do Chiado foi tomada


quando nos apercebemos do potencial que esta zona tem para oferecer e que
estava à disposição, no âmbito do estudo que queríamos desenvolver. Sendo esta
dissertação apoiada num tema muito concreto – o atalho no contexto do desenho
urbano – o Chiado acabaria por, mesmo que sem nos apercebermos, se revelar
uma fonte de exemplos e casos de estudo aos quais não poderíamos ficar
indiferentes. De facto quisemos explorar o lado mais dinâmico que os quarteirões
estáticos, constituintes da malha urbana de Manuel da Maia, demonstram quando
interpretados com atenção aos possíveis caminhos escondidos ou disfarçados e ao
poder de articulação entre as diferentes cotas e arruamentos. E o Chiado possui
estas características complementares a uma malha “moderna”, regular, militarizada
e por isso mesmo, pensamos, tão ortogonal e padronizada.

A topografia assim o obriga e, ao mesmo tempo, assim o propõe – é aqui que


reside o valor deste território e das intervenções nele realizadas.14

Mas não foi só uma necessidade de balizar o leque de objectos de estudo


que nos levou a focalizar num território restrito. Foi também essencial:

• A disponibilidade de inúmeros casos que nos interessavam abordar15.

• A oportunidade de realizar um estudo que analisasse e recolhesse


informação sobre esta zona específica, tão carismática, da cidade de Lisboa.

• Uma vontade “mais ou menos irresistível” de nos debruçar sobre as obras de


restauro, reabilitação ou reconstrução levadas a cabo num espaço que sofre
duas intervenções profundas em pouco mais de duzentos anos e sobre os
arquitectos que as conduziram.

14
Ou seja: por um lado a topografia obriga à utilização de meios mecanicamente assistidos e
não só para vencer os desníveis e impede outros meios mais naturais; por outro lado a topografia
acaba por apelar ao engenho e à criatividade para criar soluções que, como vamos concluir mais à
frente, acrescentam muito à funcionalidade do traçado previamente estabelecido.
15
Que posteriormente revelaram ser muito distintos e ditaram um certo afastamento na medida
em que cada caso é um caso e um conceito diferente de Atalho Urbano e levaram a um alargamento
do espectro do tema inicial da dissertação.

41
2.9 | Rua Garret e ao fundo o Largo do Chiado – anos 30
2.10 | Incêndio do Chiado – 25 de Agosto de 1988
2.11 | Foto aérea da zona sinistrada do Chiado após o incêndio

42
CAPÍTULO TRÊS
Casos de estudo

Quarteirão Império
Bloco A
Bloco B
Grandella
Armazéns do Chiado
Estação Metropolitano Baixa-Chiado

43
3.1 Quarteirão Seguros Império

Porventura este é o exemplo mais completo do conceito de atravessamento


de quarteirão que queremos explorar. Temos um quarteirão de dimensões
consideráveis, quando comparado com a métrica pré-pombalina, com
atravessamentos efectivos e premeditados que ligam arruamentos afastados entre si
e até em cotas diferentes [rua Garret e Tv. do Carmo] com um percurso assistido
mecanicamente a fazer a articulação.

Esta intervenção da autoria do arquitecto Gonçalo Byrne acontece após o


incêndio que vitimou em Agosto de 1988 uma das áreas mais emblemáticas da
Lisboa Pombalina – o Chiado.
Quando a Seguradora Império se depara com a necessidade de reconstruir a
sua sede percebe a oportunidade de adquirir algum do edificado envolvente, incluido
no quarteirão, de forma a ampliar e assim valorizar o conjunto das suas instalações
que já se estendiam por dois dos edifícios do bloco original. Assim procede á
negociação com moradores e proprietários tendo chegado a acordo para a compra
dos lotes de canto com frentes para a Rua Garret e Serpa Pinto e para parte da
frente da Rua Garret a juntar aos lotes que já possuíam desde o início do processo
na frente da Travessa do Carmo não tendo tido sucesso na aquisição da esquina da
Serpa Pinto com a Travessa do Carmo bem como do espaço que durante muitos
anos e gerações pertenceu ao histórico clube de cavalheiros Thurf e que
aparentemente iria continuar a pertencer.

Apesar de alguma consolidação das fachadas do edificado, as traseiras


apresentavam á época da intervenção patologias muito pronunciadas,
nomeadamente uma degradação muito acentuada que se estendia ao jardim e
logradouro, fruto de vários anos de ocupação desordenada e construção de anexos
e estruturas provisórias que retiravam as características únicas de um dos maiores
interiores de quarteirão na zona do Chiado, consequentemente subaproveitado.
Através da análise das cartas de Lisboa de João Nunes Tinoco de 1965 e
das propostas de reconstrução de 1758 depreendemos que após o terramoto de
1755 a operação previa uma malha de menores dimensões, com quarteirões mais
apertados e confinados ao antigo traçado orgânico pré-pombalino. Desta forma
pretendia-se manter a permeabilidade do traçado anterior – aspecto que queremos
aprofundar e recordar – mas essa solução viria a não vingar porque a abertura da
Rua Garret e as características particulares da topografia das ruas envolventes

44
acabariam por ditar a adaptação á nova malha, de maiores dimensões.
Este volume confina um espaço vazio que convivia com várias cotas dos
lotes já consolidados desde o século XIX, os quais se tornou complicado de juntar
num projecto global que abrangesse a totalidade do quarteirão e que, como foi
amplamente discutido, comprometeu um maior sucesso do projecto16.
O projecto foi sempre conduzido sob a alçada do proprietário - Seguradora
Império – não contando com a participação de qualquer iniciativa comunitária ou
programa de reabilitação.

3.1 | Esquema de acessos do quarteirão

O logradouro, confinado ao espaço entre os edifícios, que convive com o


jardim intimista do Thurf Club a uma cota superior, vai ser a base do percurso que
rasga o quarteirão em dois eixos perpendiculares – o que liga a Rua Garret á
Travessa do Carmo e um outro mais escondido que conduz o utente da Rua Serpa
Pinto ao interior do conjunto.
Este espaço é composto por duas áreas bem distintas, uma ao nível da
entrada sul e, feita a ligação mecânica, um patamar de maiores dimensões á cota da
entrada norte. Os pisos que contactam com estas áreas estão entregues á
actividade comercial em intima relação interior-exterior com todo o núcleo de
comércio de rua do Chiado.
Num outro nível temos uma valência que valorizou este conjunto de uma
forma ainda mais importante, dada a condição do local - o estacionamento. Este é
provavelmente o ponto fundamental da intervenção de Byrne à vista do utilizador do
Chiado porque representou um importante incremento nas condições de circulação

16
Esta perspectiva de que o projecto teria muito a ganhar com a inclusão de todo o quarteirão na mesma
intervenção é de certa forma contraposta por quem defende que é precisamente o desafio da implantação e das
articulações dos diferentes espaços e interstícios que valoriza esta obra.

45
automóvel, fornecendo cerca de 10% do estacionamento disponível naquela zona.
Do ponto de vista do sucesso reconhecido, o estacionamento do Quarteirão Império
situa-se nos primeiros patamares da intervenção pós-incêndio. Não se pense que se
trata de uma intervenção desvalorizável porque, formalmente, até o estacionamento
herda as orientações dos eixos pré-pombalinos na medida em que a circulação de
entrada-saída se reje pela fragmentação do quarteirão antes de 1755 (da rua Serpa
Pinto à Calçada do Sacramento) que referimos anteriormente.
Em resumo as intervenções nos oito edifícios e no logradouro que os articula
no conjunto permitem constituir uma unidade num quarteirão e pretende abranger as
seguintes premissas:

• Restituição das funções habitacionais naquela área potencialmente


residencial e em crescente desocupação á data da intervenção, bem como
de escritórios e comércio. Isto revela uma diversidade de usos amplamente
discutida e geralmente louvada.
• Introdução de uma área significativa de estacionamento, factor cada vez
mais importante na valorização de uma zona histórica com estas
características.
• Recuperação do interior do quarteirão redesenhando a organização do
logradouro tendo em conta a importância de elementos como o jardim do
Thurf Club e a torre sineira da Igreja do Sacramento datada de 1772.
• Reflexão sobre o significado e importância dos percursos pre-pombalinos
com a introdução de atravessamentos no quarteirão através do seu interior,
que exploraremos mais á frente.

No nosso entender este é o caso de estudo que melhor reflecte o conceito


que procuramos compreender. De facto, a ligação entre a Rua Garret e a Travessa
do Carmo existe. Não é uma analogia forçada de modo a vermos ali um
atravessamento de quarteirão. Observa-se claramente que houve intenção do
arquitecto em prever um percurso no interior daquele bloco edificado. Mais
interessante ainda é verificar que com isto se pretende criar uma sub-divisão
daquele volume, mantendo a malha actual de maiores dimensões mas remetendo
ao mesmo tempo para a funcionalidade da malha pre-pombalina, mais reticulada ou
fragmentada e que se constituía, exactamente, por pequenos rasgos entre o
edificado que funcionavam como “atalho” criando assim uma teia de arruamentos
um pouco á margem do traçado principal das ruas.

46
3.2 | Pormenor do Quarteirão – Planta de Lisboa –
3.3 | Maquete da Intervenção do Arq. Gonçalo Byrne
3.4 | Maquete da Intervenção do Arq. Gonçalo Byrne
47
A entrada da Rua Garret anuncia-se sem aparato mantendo a métrica da fachada,
junto à pastelaria Marques. Não revela imediatamente a ligação assistida
mecanicamente, o que por um lado garante ao conjunto do Chiado algum
afastamento da intervenção moderna. Este detalhe é frisado por Ana Vaz Milheiro
num artigo de 200117 em que refere a intenção de Byrne de devolver a Lisboa “uma
das mais belas fachadas anónimas da cidade”. A expressão “anónima” remete,
precisamente, para a discussão da ausência da manifestação de uma vontade
criadora por parte do arquitecto, amplamente falada já na década de 90, aquando da
apresentação do plano de Siza Vieira.

O conceito anteriormente abordado de circuitos pré-pombalinos tem um dos


principais expoentes neste caso de estudo. O recurso à história e génese do local
pelo arquitecto levou a que fossem adoptados no projecto os percursos de
atravessamento que recriam os eixos que, à data, fraccionavam o quarteirão.
Podemos constatar estes atravessamentos na planta de Filipe Folque de 1858 que
demonstra precisamente como este quarteirão era ocupado com jardins que
permitiam uma permeabilidade perdida com a massificação destes lotes virados
para o Largo do Carmo. É interessante reparar que estes jardins configuravam um
acesso entre a cota superior com a Rua Garret e funcionavam já, nesta altura, como
articulação de dois patamares com cerca de seis metros de diferença.
É muito interessante recuar a 1650 e descobrir que na planta de João Nunes
Tinoco já conseguimos distinguir claramente as incursões neste quarteirão que
davam origem a estes eixos e que nos levam a concluir que com mais ou menos
manifestação arquitectónica, a herança pré-pombalina persiste até aos nossos dias.

3.5 | Pormenor da Carta Topográfica, nº 43, levantada em 1858 – Filipe Folque

17
Milheiro, Ana Vaz – “Para entrar no Quarteirão” – Jornal O Público 9/6/2001

48
3.6 | Quarteirão Império – 2008
3.7 | Quarteirão Império – 2008
3.8 | Quarteirão Império - 2008

49
3.2 Bloco A – Chiado
Siza Vieira

Do outro lado da Rua Garret, como que tentando apagar um episódio do


incêndio da história da capital, surge um reabilitado quarteirão do Chiado, em tudo
idêntico ao original.

Dominique Machabert conta no livro Chiado – Crónicas Urbanas a sua


experiência naquele bairro: “no outro dia, enquanto eu subia os degraus da Escada
de São Francisco, aventurei-me por uma porta entreaberta que dava para um local,
vazio ainda, uma futura loja provavelmente, que comunica com o espaço liberto do
bloco A, já acabado, uma praceta. [...] Abrigada dos ruídos da rua e do vento, a
esplanada do café tinha dificuldade em encontrar os seus marcos.”18
Este quarteirão, tal como outros afectados pelo incêndio de 88, era um
espaço inseguro e abandonado. O seu interior era ocupado na totalidade por
construção desordenada e o plano de Siza pretendeu devolvê-lo à cidade e aos
utentes. Desta forma melhorou as condições do espaço e introduziu um acesso
entre as cotas da Rua Nova do Almada e da Rua Ivens, separadas por cerca de seis
metros.

3.9 | Esquema de Acessos do Bloco A - Chiado

18
SIZA Alvaro - A Reconstrução do Chiado – Lisboa 2000, Livraria Figueirinhas – “Chiado –
Crónicas Urbanas”, Dominique Machabert. p.165

50
No seu interior o espaço manifesta a possibilidade de dar vida ao logradouro
que se sente nos quarteirões maiores do Chiado e no edificado pombalino junto do
Terreiro do Paço19 e propõe um interregno no percurso do transeunte e um
momento de descanço na esplanada. A partir deste espaço acede-se ao interior dos
edifícios, dispostos lote a lote mas mantendo a unidade do conjunto.

Álvaro Siza recorda as primeiras impressões da malha da Baixa de Lisboa e


transporta para o gesto largo da intervenção no Chiado ardido as características
que, segundo ele, melhor evidenciam aquela parte da cidade.

[...] passear em Lisboa: movimento ritmado por um pulsar contínuo [...] muros
de reboco fissurado, riscado pelo encosto, de cores não intensas, transparentes,
misturadas semicerrando os ossos, cores em deslocamento, conduzindo a outra
cota e a outra dimensão.”20
Um pouco como um saguão mais avultado, o interior deste quarteirão
aparece no meio da malha apertada do Chiado quase de surpresa. Do ponto de
vista do transeunte, um interior de quarteirão significa quase sempre um espaço
diferenciado dos arruamentos por se encontrar confinado pelo edificado de forma a
configurar uma área recatada onde se pode repousar e fugir ao fluxo imposto pelas
ruas e travessas.
E, de facto, os interiores dos blocos A e B do Chiado, quase simétricos em
relação á Rua Garret, aparecem no meio do traçado sugerindo uma rota alternativa.
No caso do bloco B.

19
Neste caso temos claustros interiores e um sistema de outros logradouros que permitem a entrada de luz
e a ventilação do volume edificado de forma a combater uma certa massificação do quarteirão. A escala destes
espaços interiores, sobretudo dos claustros, afasta-se um pouco da configuração dos pátios do Chiado e são
excepções às características dos quarteirões pombalinos que não transportam para a restante malha urbana.
20
SIZA Alvaro – A Reconstrução do Chiado – Lisboa 2000, Livraria Figueirinhas – “Ignorância de
Lisboa” p.106

51
O Projecto

O bloco A é parte integrante do Plano Pormenor elaborado para fazer face ao


sinistro, ocorrido a 28 de Agosto de 1988 no Chiado, que consumiu até às
fundações um total de dezoito edifícios.
Confinado entre a Rua Nova do Almada, Rua Garret, Rua Ivens e Calçada do
Sacramento, este bloco mostrava-se um espaço único e privilegiado e requeria,
desde o início, uma atenção especial. Por outro lado o seu interior, com cerca de
200 m2, era detentor de uma escala e de uma proporção muito favoráveis à sua
integração no tecido urbano.21 Desta forma a intenção de Siza, desde o início, foi
devolver o seu espaço à cidade. À data este logradouro encontrava-se ocupado com
instalações e anexos desordenados, propriedade dos estabelecimentos comerciais
que se instalavam e apropriavam dos pisos à cota inferior do arruamento.
O Programa previa habitação nos pisos superiores e comércio e
equipamentos de lazer nos pisos que contactavam directamente com os utentes da
via. Esta perspectiva abria ainda mais as portas à utilização do seu interior e
mostrava que era possível estabelecer ali um patamar intermédio entre a cota da
Rua Nova do Almada e a Rua Ivens. É proposta uma nova abordagem aquele
quarteirão e sobretudo a um espaço que durante anos fechou ao público e não
passou de um logradouro.
Em relação ao caso anterior [Quarteirão Império] conseguimos destinguir
pelo menos três diferenças fundamentais:
• Em primeiro lugar a introdução do estacionamento no primeiro caso de
estudo foi um incremento importantíssimo para a zona. No bloco A essa
valência não pôde ser incluída por várias razões, sobretudo pela
incompatibilidade evidente com a presença da estação de metro Baixa-
Chiado, em projecto à data, situada cerca de oito metros abaixo.
• Em segundo lugar podemos perceber a diferença que existe entre a unidade
formal, do ponto de vista da continuidade do edificado, apresentada em cada
um dos projectos. Se por um lado o projecto de Byrne permitiu criar um
conjunto com a mesma linguagem, mais uniforme, que “emparcelava” aquilo
que anteriormente eram vários lotes, o mesmo não acontece no bloco A em
que as circunstâncias ditaram a prevalência da singularidade de cada
fracção e de cada proprietário. Porém a unidade do conjunto e do quarteirão
21
Essa integração no espaço urbano tornou-se quase natural porque a proporção entre a área
de pavimento e a altura e orientação das fachadas aproxima-se com alguma evidência da escala dos
arruamentos na zona envolvente. Esta relação cria um prolongamento mais ou menos contínuo entre
interior e exterior privilegiando a espacialidade do conjunto.

52
está bem patente nos dois. Essa unidade é fundamentalmente assegurada
pelo interior de cada quarteirão e pelo espaço comum a cada lote. Temos
aqui um elemento que funciona como peça essencial na ligação entre as
várias entradas dos edifícios que lhes confere uma relação muito aproximada
e distribui cada um para o exterior a partir da mesma plataforma. O páteo
funciona como articulação interior-exterior dos vários componentes.
• Em terceiro lugar temos a questão da herança histórica que fundamenta
cada projecto e nomeadamente o traçado dos eixos que fragmentam cada
volume. Já foi descrita a proveniência dos dois atravessamentos do
Quarteirão Império como uma reminiscência pré-pombalina mas deve ter-se
em consideração que apesar de o bloco A, do ponto de vista da planta de
Tinoco anterior ao terramoto, ser uma parte integrante do conjunto
consolidado e fechado do convento de S. Francisco, a planta de Eugénio dos
Santos propõe exactamente a sua fragmentação e, pensamos, é com base
nesta pista que Siza propõe estes dois traçados articuladores que constituem
parte do sub-traçado do Plano Pormenor para a Recuperação da Zona
Sinistrada do Chiado.

53
3.10 | Bloco A – Chiado 2008
3.11 | Bloco A – Chiado 2008
3.12 | Bloco A – Chiado 2008

54
De certa forma podemos comparar este caso ao tipo de quarteirão/edifício
que encontramos junto da Rua da Madalena, precisamente no “antípoda” do plano
pombalino. Nestes casos assistimos também a um tipo de edificado que se encosta
numa situação semelhante em contacto com diferentes arruamentos a diferentes
cotas e onde o seu acesso se faz através do sistema de becos e escadinhas
amplamente estudado.
De resto, a transformação da calçada de S. Francisco em “escadaria”, que
liga a Rua Ivens à Nova do Almada na empena deste volume, é um reflexo das
soluções adoptadas ao longo dos anos no outro lado do vale da baixa. Mais uma
vez chamamos à atenção para o carácter pontual e quase “marginal” que estes
apontamentos urbanísticos (autênticos atalhos urbanos) demonstram em
contraponto com o gesto do traçado pombalino.

55
3.3 Bloco B - Chiado
Álvaro Siza Vieira

Do outro lado da rua Garret, ladeado pela rua do Carmo, está o quarteirão
designado no plano de reconstrução do arquitecto Siza por Bloco B [nome que
adoptaremos no decorrer desta dissertação].
Do ponto de vista da localização, este será possivelmente o quarteirão com
maior potencial dinamizador da área do Chiado visto situar-se precisamente entre o
centro por excelência, confinado pelas ruas do Carmo, nova do Almada e Garret, e a
cota mais alta do largo do Carmo e das ruínas do convento.
O bloco B adquire com a intervenção de Siza dois espaços de logradouro
designados por pátios B e C. O primeiro decorre da cedência de espaço por parte
dos edifícios da rua do Carmo [edifícios 13 a 16 no plano] sendo de destacar que os
tardoz dos edifícios 12 e 18, virados para a Calçada do Sacramento, se mantêm
inalterados e lhes é restituída a configuração original, como comprovamos através
da análise de plantas do fim do século XIX e, claro está, da planta de Eugénio dos
Santos. O pátio C, mais recuado22, aparece já junto ao talude da escola Veiga
Beirão.

Com a concretização deste acesso o quarteirão passaria a funcionar como


charneira de dois espaços distintos no mesmo bairro. Por um lado fecharia um
circuito muito dinâmico, na medida em que articularia o largo do Carmo com os
arruamentos da cota inferior do Chiado e tornaria possível utilizar o elevador de
Santa Justa de forma mais justificada. E por outro lado poderia restituir á cidade um
percurso perdido no século XVIII que ligava o Chiado ao Carmo.
Esta especulação levanta imediatamente questões acerca da ligação do
Bairro Alto à Baixa e, sobretudo, faz prever o benefício que este elemento
articulador traria aos dois territórios. Por um lado podemos prever um incremento
importante a ajudar o acesso entre as duas colinas e o vale da Baixa. Por outro lado
iria permitir que uma zona, hoje em dia reservada aos serviços e ao trânsito
automóvel, se ligasse mais directamente a um espaço que sempre se caracterizou
por uma vivência urbana reconhecida por todos.

22
Oficialmente, o plano considera o espaço de logradouro deste quarteirão como dois páteos
distintos, separados por um pórtico. Todavia iremos identificá-lo como o “interior do bloco B”.

56
3.13 | Desenho da Rampa de acesso ao Conveno do Carmo – Álvaro Siza Vieira 1989
3.14 | Pátio do Bloco B – planta das rampas e escadas

57
A década de noventa trouxe ao panorama da arquitectura nacional uma
discussão acerca do papel e da postura do arquitecto em relação aos desafios de
projecto com fortes críticas de arquitectos, como Tomás Taveira e Francisco Silva
Dias, à aparente indiferença de Siza para com uma eventual afirmação modernista
(pós-moderna) na cidade.
Em contraponto temos a visão de Rudy Kousbroek, um presumível porta voz
dos que possuem a sensibilidade de desconfiar de qualquer novidade que afectasse
os espaços antigos e mais simbólicos. O holandês Kousbroek declarara em 1983,
sete anos antes do início das obras de reconstrução da área sinistrada do Chiado,
que

“os responsáveis pelas reformas desenfreadas nas cidades antigas deviam ser
obrigados pelos chicotes de reluzentes núbios a destruir com as suas próprias mãos
toda essa porcaria, para depois devolver à sua traça original os edifícios
desaparecidos”23

Numa análise a estas declarações, Bernard Colenbrander escreve que o


arquitecto que vai intervir na cidade antiga, referindo-se neste caso a Alvaro Siza,
deve ser convenientemente advertido das sensibilidades que nela ocorrem. Acaba
mesmo por se referir a Siza de forma mais objectiva: “esta apreciação que à
primeira vista parece válida para um holandês, é-o igualmente para um inglês e não
se pode pensar em desculpas para que o não seja, também, para um português.

Dentro da discussão da ausência de arquitectura no plano de intervenção de


Siza Vieira no Chiado é invocada, em alguns casos, a sua sensibilidade para com a
obra anteriormente erigida por Pombal e pela Casa do Risco. Surge paralelamente a
convicção, geralmente comum à maioria das interpretações, de que num certo
aspecto o arquitecto estabelece uma marca criativa forte quando intervém
efectivamente no percurso e estabelece trajectos através do interior dos quarteirões.
Neste caso do Bloco B, entre as ruínas do antigo convento do Carmo e o eixo
marcado e muito importante da Rua Garret, aparece um dos principais
atravessamentos.

23
Retirado de um excerto traduzido do livro de Rudy Kousbroek originalmente escrito em alemão com
a seguinte referência:
KOUSBROEK Rudy, De nooit gebowde toren, NRC Handelsblad, 6 de Maio de 1983

58
Um pouco ao contrário da reflexão sobre a pré-existência do Chiado na
cidade e a estratégia de apenas intervir com operações de limpeza, com a mesma
sensibilidade de António SanGallo na Piazza della Anunciata24, Siza propôs uma
volumetria inteiramente nova no interior deste quarteirão com uma ligação a um topo
de colina que se pretende atingir quase que instintivamente, como um impulso.

No fundo, o plano de Siza propõe para o interior deste quarteirão a abertura


de um novo percurso, completamente pedonal, porem, sem ajuda mecânica,
relembrando de certa forma a recuperação de um acesso primitivo, desaparecido
desde a modernização da capital decorrente da catástrofe da meada do século
XVIII. Este episódio quase repete a abordagem de Siza no projecto do Bairro da
Malagueira, em Évora em 1977, com um traçado assente, sobretudo, em pré-
existências, autênticos “caminhos de pé posto” que já revelavam os circuitos
habituais dos utilizadores do local.

Este percurso faria a articulação entre a zona da Baixa e a zona de transição


do Chiado com o Bairro Alto. Esta memória das “Escadinhas da Piedade” lembra um
acesso perdido com o tempo, possível de confirmar nas raras plantas da cidade
anteriores ao terramoto, com relevância para os percursos pré-pombalinos pelo
interior dos quarteirões, tema que nos despertou desde o início da investigação,
uma atenção especial. Estes pequenos percursos revelavam a essência do
comportamento do utilizador da malha urbana da cidade, que a adapta á medida das
suas necessidades. Assim, e quase espontaneamente, aparecem os pequenos
atalhos, as rampas de ligação e as escadinhas que ligam as diferentes cotas dos
arruamentos, num território muito marcado pela topografia. É o caso das escadinhas
da Piedade que acediam ao Oratório da Nossa Senhora da Piedade, do qual
subsiste ainda um nicho na lateral do Portal Sul do Convento do Carmo. Este
percurso iria, pelo que podemos concluir da análise das poucas gravuras de época,
culminar em frente ao mesmo portal.

A referida rampa do plano de Álvaro Siza estaria localizada no interior do

24
Raul Cerjeiro escreve em 1990 um artigo no Diário de Lisboa em que compara a intervenção
de Siza no Chiado com a abordagem de António da SanGallo à construção do terceiro lado da Piazza
Della Anunciata em 1516. Neste episódio relata-se que San Gallo fecha esse terceiro lado com o
mesmo desenho que Fillipo Bruneleschi utilizara cem anos antes. Esta repetição revela um respeito
muito curioso pela herança do lugar e constitui um acto de sabedoria comparável ao de Siza que
abdica, no Chiado, de manifestar-se como “o grande arquitecto”, como o defendiam outras correntes.
Esta visão é também abordada no livro Designing Cities de Edmund Bacon referindo precisamente a
opção de San Gallo como um gesto inteligente em prol da unidade do desenho da praça.

59
quarteirão em terrenos que pertencem actualmente á escola Veiga Beirão, cujas
fachadas passariam a acompanhar o percurso ascendente. Siza terá referido a
importância desta ligação no fechamento de um circuito muito importante para esta
parte da cidade que ligaria o nó da Calçada do Sacramento com o Largo do Carmo
a outro nó da Rua Garret com o eixo Rua do Carmo - Nova do Almada, e
posteriormente, de uma forma menos evidente, mas igualmente válida, ao Elevador
de Santa Justa aquando do fim das obras do tão polémico Edifício Leonel,
acrescentando um novo significado e uma nova função à obra de Raoul Mesnier
Ponsard.
Este percurso sobrepõe-se a várias pré-existências e alinhamentos: o palácio
Vila Real do qual se mantém a fachada ainda anterior ao terramoto e o actual
edifício da escola, outrora palácio Valadares.
Os vários níveis do acesso permitem o usufruto de vista do Convento do Carmo, do
Elevador de Santa Justa e das colinas da Graça e do Castelo.
Siza classificou a obra de intervenção no interior deste quarteirão como “uma obra
muito importante, porque permite reabrir o ascensor de Santa Justa e criar um
percurso muito bonito” e permite “desenterrar” o portal sul das ruínas do Convento
do Carmo, como tínhamos adiantado anteriormente. Estas declarações foram
proferidas em Novembro de 2000 ao jornal A Capital, curiosamente, no mesmo
artigo, o director do G.R.C. [Gabinete de Recuperação do Chiado] Pessanha Viegas
garantia que “antes do fim do ano de 2002 a intervenção nesta zona cidade estará
pronta” e acrescentaria ainda:

“[...]o caso mais complicado foi o do Edifício Leonel onde assentam as


escadinhas que recuperam um caminho seiscentista e ligam as ruas do Carmo e
Garrett ao largo do Carmo, através de um pátio interior já construído”

3.15 | Pátio do Bloco B – alçado das rampas e escadas


60
3.16 | Panorâmica de Lisboa – Gravura da primeira metade do sec. XVI
3.17 | Pormenor – destaque das escadinhas da piedade que descem do
Convento do Carmo

61
Pena foi que não se tenha cumprido os desígnios do projecto de intervenção de
Siza, porque o incremento arquitectónico no conjunto seria muito importante, face à
situação em que ficariam as coisas, situação essa que ainda hoje persiste. Na
mesma entrevista Pessanha Viegas chega a deixar claro que estas obras iriam
finalmente avançar, visto que o relatório do Laboratório Nacional de Engenharia Civil
permitia a consolidação da colina do Carmo que revelava até então avultada
instabilidade devido às obras efectuadas para a instalação em 1995 da estação
Baixa-Chiado que ampliava as linhas verde e azul do metropolitano de Lisboa.
Apesar de Siza ter feito variadas declarações públicas lamentado a
burocracia de todo este processo que envolvia estado, proprietários e residentes, as
escadinhas continuaram a não constar no conjunto. Pensamos que seria uma
enorme mais-valia a concretização deste ponto do projecto de recuperação da zona
sinistrada, sobretudo quando constatamos que no programa existe o seguinte ponto:

Ponto 5 – Aspectos Fundamentais do Plano de Pormenor para a


Recuperação da Zona Sinistrada do Chiado

Que curiosamente tem doze alíneas que têm como objectivo traçar a
estratégia de recuperação do conjunto e cujo primeiro ponto é:

5.1 abertura de um percurso pedonal entre o tardoz dos edifícios com


frente para a Rua Garrett e do Carmo e o muro de suporte da Escola
Veiga Beirão, estabelecendo um acesso, através de rampas, à porta
lateral sul da Igreja do Carmo.25

No mesmo Regulamento, num capítulo dedicado aos espaços públicos e


Infra-estruturas é ainda explicitado que os espaços comuns ao público incluem os
arruamentos pre-existentes bem como os recuperados e ainda [alínea b] o pátio no
tardoz das construções com frente para a Rua do Carmo, as galerias de acesso
através das mesmas construções e o percurso em rampa de acesso ao portal sul do
Convento do Carmo.

É muito curioso identificar numa muito publicada gravura anónima da


primeira metade do século XVI o convento do Carmo, numa posição que a princípio
não confere com aquela que temos na vista aérea da Baixa Lisboeta, um pouco

25
Publicado no Regulamento do Plano Pormenor da Zona Sinistrada do Chiado - 1988

62
deslocado em relação ao Rossio mas ainda assim elevada na colina do Bairro Alto.
O número vinte e seis refere na legenda inferior o seguinte: Monasteri di Santa
Maria do Carmo. E o mais interessante é reparar naquilo que o artista anónimo inclui
na gravura para que na posteridade, quinhentos anos depois, com uma catástrofe
ocorrida pelo meio e uma reconstrução que esqueceu este pequeno grande
apontamento de urbanismo, um arquitecto pudesse retomar, com a ajuda da velha
gravura, um ponto essencial na malha de acessos entre duas zonas fundamentais
desta parte da cidade – o Chiado e o Bairro Alto. Siza retoma as escadinhas da
Piedade, mas a burocracia acaba por esquece-las outra vez como há duzentos
anos, e perdendo a oportunidade de concretizar um circuito que daria novo sentido a
um conjunto de ruas, pateos, escadinhas e até um elevador herdado do século XIX.

A importância desta rampa é fulcral neste conjunto tendo tendo em conta


uma das características principais desta parte da cidade – a topografia.
As rampas e escadinhas articulam diferentes espaços e diferentes cotas onde, como
é natural, se passam episódios diferentes e onde a distância entre mundos é mais
notória. José Salgado, arquitecto e Professor na Faculdade de Arquitectura da
Universidade do Porto, declara o seguinte a propósito da intervenção de Siza nesta
parte da cidade:

“na Baixa estabeleciam-se as instituições mais poderosas, bancos,


empresas, escritórios, enquanto no Chiado, zona de transição entre esta parte
terciarizada e circunspecta e o Bairro Alto, residencial, popular e artesão,
transformava-se, ajustando-se à topografia do terreno, em zona, por excelência do
encontro fugaz, das tertúlias e da sociabilidade.” 26

José Salgado salienta ainda a importância do caracter dinâmico da


topografia que necessita de rampas para vencer os desníveis existentes,
acentuadas, com descansos intermédios como o remate da Rua Garrett com o eixo
Rua Nova do Almada – Rua do Carmo mesmo em frente aos Grandes Armazéns do
Chiado, espaço que constitui um dos pontos de encontro por excelência da zona
histórica da cidade.

26
Refere José Salgado em “A Baixa de Lisboa e o incêndio do Chiado em 1988”, um texto
incluido numa selecção do Colégio de Arquitectos de Granada sobre as obras de reconstrução deste
território da capital portuguesa.

63
3.18 | Desenho do interior de quarteirão – Arq. Siza Vieira
3.19 | Foto do acesso à Rua do Carmo

64
3.20 | Interior do quarteirão
3.21 | Interior do quarteirão

65
3.4 Armazéns Grandella
Álvaro Siza Vieira

Um dos aspectos mais marcantes do antigo Grandella e aquele que nos


interessa mais referir é uma escadaria rolante, tecnologicamente muito avançada
para a época, que representava uma afirmação de modernidade daqueles que eram
os armazens por excelência na capital. Esta escadaria fazia ligação entre o piso 1 á
cota da Rua do Ouro e o piso 4 à cota da Rua do Carmo.

Em março de 96, aquando da inauguração da obra recuperada das cinzas,


João Soares, presidente da Câmara de Lisboa à época, declarou ao Diário de
Notícias que as escadarias do Grandella original o deixavam “deslumbrado” e que
esperava “manter este deslumbramento ao longo das novas gerações”.
Com esta declaração, João Soares manifestava a opinião de milhares de
pessoas de todo o país que visitaram os Armazéns Grandella durante os oitenta
anos de existência.

A história dos Armazéns Grandella conta-se com altos e baixos, num


percurso quase inteiramente sob o domínio do comerciante visionário Francisco
Grandella. O edifício, projectado por Geoges Demay foi montado na capital inspirado
no conceito de Grandes Armazéns que o próprio Grandella importou de Paris. Para
garantir o sucesso da implantação do novo conceito em Portugal, o comerciante trás
o arquitecto dos Grands Magasins Printemps para conceber o seu próprio edifício
em plena Baixa de Lisboa. Com uma estratégia comercial nunca vista e com a ajuda
do empreendedorismo de Francisco Grandella, estes armazéns foram, nos seus
tempos áureos, o maior e mais prestigiado ponto de comércio do país.

De facto pensamos que para além do avanço tecnológico que constituía um


corpo de escadas rolantes em plena meada do século XX, o que “deslumbrava”
efectivamente a massa de utilizadores deste edifício era a facilidade com que se
vencia uma cota de quase quinze metros.
Aquilo que evidenciava este prédio num conjunto de centenas era a
tremenda mais valia que a ligação assistida conferia ao tráfego pedonal na transição
da malha ortogonal da baixa para os arruamentos do velho Chiado.
Esta ligação Rua do Ouro – Rua do Carmo não introduz uma extraordinária
novidade do ponto de vista dos arruamentos e das acessibilidades porque já existe a
Rua de Santa Justa. O que este percurso assistido pelo interior de um imóvel

66
acrescenta sem dúvida é a possibilidade de aceder a um ponto sobrelevado através
do cheio construído. Desta forma recriou-se como que uma galeria comercial, um
arruamento interior, protegido, que faz a articulação entre duas partes distintas do
centro histórico da cidade, mais do que dois arruamentos ou duas cotas distintas.
Pensamos que é esta particularidade que torna o Edifício Grandella um caso
singular na malha urbana. É este o “pequeno detalhe”, quase insignificante aos
olhos de quem observa a cidade na globalidade, que faz a diferença para quem
entra no piso 1 do lado da Rua Áurea e depara com a majestosa escadaria
iluminada pela clarabóia e anuncia (discretamente) um percurso que o transporta
para um espaço novo, numa cota mais elevada e que apresenta, ao mesmo tempo,
uma realidade diferente no plano do Chiado. Esta aproximação do bairro com a
Baixa é extremamente importante e o facto de ser um papel desempenhado por um
edifício e não por um arruamento ou acesso urbano dá-lhe ainda mais
protagonismo.

3.22 | Alçado da Rua do Carmo – Armazém Grandella

67
3.23 | Desenho – Armazém Grandella
3.24 | Plantas do piso 5 e piso 7

68
Podemos verificar que o talude que separa a Baixa do Chiado apresentava um certo
hermetismo no que diz respeito à acessibilidade. Por um lado a fragmentação no
sentido transversal de que a malha pombalina beneficia não foi transportada para
esta linha de construção, à excepção de raros exemplos em que as pequenas e,
muitas vezes privadas ou escondidas, escadinhas faziam a diferença e evitavam
maiores deslocações ao início das ruas Nova do Almada e Carmo para aceder ao
núcleo duro do Chiado. Por outro lado esta linha edificada reproduz a mesma
situação que acontece do outro lado da Baixa em que a Rua da Madalena se refugia
junto do sopé da colina do Castelo fazendo lembrar o eixo Almada – Carmo e em
que aparecem, nova e pontualmente, pequenos acessos e intervalos na linha
edificada e que permitem articular com a cota a cerca de doze metros de diferença
para a Rua dos Fanqueiros. Curiosamente, tal como o edifício Grandella, o Edifício
Pollux faz a ligação entre as duas cotas tornando possível utilizar um edifício com
um carácter semi-privado como se se tratasse de um circuito público, articulando as
duas ruas.
Analisar este paralelismo é muito importante do ponto de vista da
compreensão do sucesso alcançado por cada um dos casos, mesmo que não tenha
sido intenção de ambos os autores estabelecer a ligação entre os patamares
opostos. Se por um lado a articulação do edifício Pollux se encontra “escondida” e o
percurso não é intuitivo, embora útil, por outro lado compreendemos facilmente
como um acesso desenhado propositadamente para o efeito (ligar duas cotas
distintas através do interior de um edifício), se destaca como uma alternativa muito
apelativa. No caso dos armazéns Grandella essa alternativa encontra-se ainda
acompanhada pelos vazios na massa do volume que fornecem luz em todo o
percurso.

No imóvel dos Armazéns Grandella a sociedade Montepio, detentora da


propriedade em causa, insistiu em manter as características que mais o
identificavam. Tratava-se, sem dúvida, de um espaço comercial com a mais valia de
possibilitar uma ligação mecanicamente assistida de um arruamento a outro, em
cotas distantes. Assim avançou em 1991 o projecto, reconhecendo no arquitecto
Siza a competência para restituir ao edifício aquela característica.
Desta forma podemos reflectir como dentro de uma malha urbana um edifício
pode tornar-se um dos pontos mais importantes, desempenhando um papel
fundamental na articulação de acessos e arruamentos, papel habitualmente
atribuido a pracetas, cruzamentos, escadas ao ar livre, rampas e outros. E se na
generalidade dos casos vemos o edificado como preenchimento dos vazios

69
deixados pela malha das ruas, neste caso concreto, como noutros que esta
dissertação pretende apontar, vemos um edifício tornar-se numa peça fulcral na
relação entre arruamentos e acessos.

Este edifício em particular beneficia de uma situação muito privilegiada na


medida em que para alem da fachada [considerada por muitos autores e pelo
próprio arquitecto] principal virada para um eixo fundamental na ligação Rossio –
Chiado, virando os cinco pisos para a Rua do Ouro e para a Rua do Crucifixo.
Esta última face acabou por adquirir novo protagonismo pela importância que
a Rua do Crucifixo veio a ter devido à abertura da saída da estação de metropolitano
Baixa-Chiado. De certa forma, por razões apenas atribuídas ás avultadas
quantidades de pessoas que se tornavam potenciais utentes deste edifício ao
encararem a fachada da Rua da Assunção. As portas que anteriormente apenas
funcionavam como acesso para mercadorias passaram a desempenhar o papel de
uma das principais entradas no Armazem Grandella, convivendo com a menos
nobre entrada para o estacionamento.

Curioso é referir que o circuito assistido de atravessamento do edifício se


desenvolve, mesmo assim, no sentido Rua do Ouro – Carmo, dando a entender que
até aos olhos do arquitecto escapou a possibilidade de que a Rua do Crucifixo
gerasse tal dinâmica com a circulação dos utilizadores do metro.

É fundamental a análise da gravura que apresenta os limites e configuração


da cidade medieval em 1761, seis anos após o terramoto, e verificar que o espaço
onde Francisco Grandella constrói em 1907 o Armazém Grandella era anteriormente
ocupado por um edifício de grandes dimensões e que se situava no talude que
separava a Baixa do Chiado. Mas torna-se ainda mais interessante quando
observamos que esta é uma das poucas gravuras de época que nos revela que foi
utilizada, já nesta altura um acesso pelo interior do bloco que tentava, na nossa
suspeita forma de análise, contornar o excesso de hermetismo de que este espaço
sofria. E esse hermetismo foi também compreendido por Eugénio dos Santos que
propõe no seu plano, uma quebra no volume para chegar do Chiado à Baixa.

70
3.25 | Limites e configuração da cidade medieval registados em 1761
3.26 | Porm. Planta de Lisboa antes de 1755 – José Valentim Freitas sec. XIX
3.27 | Esquema da configuração do quarteirão no século XVIII

71
3.5 Grandes Armazéns do Chiado
Álvaro Siza Vieira

Em 1912 os Grandes Armazéns do Chiado publicavam um postal ilustrado


que convidava quem quer que ainda não tivesse vindo a Lisboa visitar o “grandioso
palácio” onde se tinham instalado dezoito anos antes, a faze-lo com brevidade.

Ainda antes de ser o palácio Barcelinhos o edifício pertencia à Ordem


Oratoriana de São Filipe Nery onde funcionava o convento do espírito Santo da
Pedreira [antes do terramoto de 1755]. Sempre se destacou dentro do território da
capital como um edifício de excepção e um dos melhores imóveis da cidade.
A transição para Palácio Barcelinhos deu-se depois de 1835 com a extinção
das ordens religiosas e passou a sustentar na fachada o brasão de uma das famílias
mais prestigiadas da vida social daqueles tempos. Foi por esta altura que Manuel
dos Contos negociou a sua compra, como relata o olissipógrafo Gonzaga Pereira no
seu livro Monumentos Sacros de Lisboa em 1833.
Este homem de negócios acabaria por aproveitar as características de
convento que o espaço possuía, adaptando-as a um uso mais conveniente à sua
condição social e tornando-o uma casa senhorial.

Em 1880 os mais crentes evocavam uma suposta vingança dos defuntos


frades do antigo convento Espírito Santo da Pedreira para justificar o terrível
incêndio que por muito pouco não destruiu a totalidade do Palácio Barcelinhos. O
Diário de Notícias de 30 de Setembro desse ano, o dia do sinistro, dava conta da
tragédia noticiando que o fogo quase destruía “o edifício mais antigo e notável do
Chiado que serve de fundo a esta importante rua da cidade”. Gervásio Lobato
haveria mesmo de declarar que “há muito tempo que não havia um incêndio assim
em Lisboa” na sua crónica ocidental.

A partir de 1894 a fachada passou a ostentar o lema da casa de comércio


gerida por Louis Boneville e Emile Philipot: Bien Faire et Laisser Dire. Era o início
dos Grandes Armazéns do Chiado que primavam pela iluminação eléctrica no
interior a auxiliar na decoração e, de facto, obtiveram o esperado retorno nos
primeiros anos. Porém em 1899 o imóvel volta a ser Palácio Barcelinhos, como
mostram as raras fotografias do fim do século XIX.
Mais tarde uma nova gerência voltaria sob o comando da companhia Nunes
dos Santos e Co.

72
3.28 | Grandes Armazéns do Chiado – Prespectiva da Rua do Carmo por volta de 1960

73
Até aos anos 80 funcionou como um dos maiores armazéns da cidade passando
ainda por um curioso episódio nos anos 70 em que os herdeiros da família Nunes
dos Santos pedem autorização ao Instituto Português do Património autorização
para demolir o imóvel numa tentativa de construir um novo edifício, mais moderno.
Felizmente o processo não avançou, graças ao bom senso do IPP, e assemelha-se
um pouco ao paradoxo criado vinte anos depois em volta das obras de reconstrução
do Chiado.
Por um lado o edifício dos Grandes Armazéns do Chiado pode ser posto no
mesmo plano do edifício Grandella, do ponto de vista da posição física em relação
aos dois territórios que separa, e de certa forma encerra – a Baixa e o Chiado.
Podemos comparar o papel de cada um destes edifícios na função de articulador de
duas cotas separadas por cerca de oito metros visto que ambos permitem, pelo seu
interior, fazer o acesso ao plano do Chiado.
Esta reflexão remete-nos imediatamente para o modelo dos Grands
Magazins em Paris. Este conceito que já havia sido implementado, como vimos, por
Grandella permitia que um edifício pudesse funcionar com percursos no seu interior
e que, através dos diversos acessos aos arruamentos adjacentes, distribuísse os
utentes. Este modelo implantado na topografia difícil do Chiado torna-se ainda mais
útil com a função adicional de articular essas cotas diferentes.

Porem existe um pequeno detalhe que os diferencia, precisamente, no


cumprimento desta função articuladora: o edifício dos Grandes Armazéns do
Chiado, desde que fora um convento, virou-se sempre para o seu lado poente, para
a Rua Garrett, quase negligenciando o acesso pelo lado da Rua do Crucifixo. Isto
está patente na observação das gravuras e fotografias que reportam ao século XVIII,
altura em que o imóvel ainda pertence à ordem religiosa São Filipe Nery, que
sempre mostram a sua fachada, com o corpo central em evidência, centrado com o
eixo do Chiado e esquecendo completamente a face que se volta para o Castelo e
para a malha da Baixa, que só aparece definitivamente no panorama da cidade um
século depois do terramoto em meados do século XIX.
É curioso verificar que quase existiu a intenção, ao construir desta forma este
grande volume, de encerrar aqui uma zona, de tal forma nobre, que se pretendia
separada do resto do território.
A ausência de uma entrada ou uma fachada demarcada e protagonista do
lado nascente evidencia a nossa teoria de que não era bem vinda a ideia de utilizar
o seu interior para fazer a transição entre as duas cotas e, visto assim, entre as duas
zonas. Podemos compreender facilmente que isto sucedesse anteriormente, numa

74
altura em que o imóvel funcionava como Convento Espírito Santo com função de
retiro e em que o seu carácter se queria privado. Porem, somos mais relutantes a
compreender como é que, volvidos cem anos, atravessando uma fase em que este
era um edifício comercial, um dos mais notáveis e concorridos da capital, a ligação
pelo interior entre a Baixa e o Chiado – entre a Rua do Ouro e do Carmo – nunca se
consumou.
Acabaria por ser, no final do século XX, Siza Vieira a desvendar a
importância deste volume no panorama das plataformas de acesso entre as duas
zonas, Baixa e Bairro Alto, e o enorme incremento que viria a representar este
percurso através dos Grandes Armazéns do Chiado.

No início da década de noventa, a 8 de Agosto de 1991, o Diário Popular


dava conta, através do testemunho da arqueóloga Maria Magalhães Ramalho, de
uma descoberta fundamental para o projecto de Siza. Ao fazer as escavações nos
escombros do sinistro de 1988 [três anos antes] o IPPC, Instituto Português do
Património Cultural, descobre vestígios daquela que seria a igreja do Convento
Oratoriano anteriormente referido, datada do século XVII, alem de arcadas e
sepulturas de padres defuntos. A localização deste volume, no corpo central do
edifício veio fundamentar a decisão, mais tarde tomada pelo arquitecto, de
incorporar neste espaço o sistema de acessos que viria a ligar os pisos inferiores do
Centro Comercial com a cota da Rua Garrett.

A descoberta de vestígios de umas arcadas, na mesma intervenção do IPPC,


que provavelmente pertenciam a um antigo claustro pre-pombalino a um nível
inferior junto à actual Rua do Crucifixo leva-nos a pensar que deveríamos
equacionar o espaço virado para a colina do Castelo e para o vale da Baixa ainda
antes dos primeiros registos deste imóvel o designarem como Convento.
Como revela a arqueóloga: “pensamos que estas arcadas pertenciam a um
convento pré-pombalino ou a uma casa senhorial que existia no local e que foi
integrada no próprio convento”
Siza manifestou imediatamente a intenção de expor as arcadas e de as
integrar no projecto de reabilitação.

75
3.29 | Ruinas dos Armazéns do Chiado após o incêndio de Agosto de 1988
3.30 | Alçado da Rua do Carmo e Rua Nova do Almada
3.31 | Corte longitudinal do túnel de acesso ao metropolitano – 5 de Maio de 1989

76
3.6 Estação Metropolitano Baixa-Chiado
Álvaro Siza Vieira

Um caso de estudo que não podíamos deixar de abordar é a ligação que a


estação do metropolitano Baixa-Chiado estabelece entre estas duas partes da
cidade. A partir de certa altura, o centro do Chiado passou a ser o Largo Camões e
a sua envolvente, do ponto de vista da possibilidade que oferecia a peões e
automóveis de aceder ao Bairro-Alto e pela articulação que propõe entre ambos os
circuitos e posteriormente a descida ao Cais de Sodré. Entre este ponto e a cota da
Rua do Crucifixo existe uma diferença de cota na ordem dos 18 metros. A inovação
proposta por Siza foi a possibilidade de utilizar uma infra-estrutura que faz parte de
um conjunto, muito extenso e articulador de quase toda a cidade, para facilitar uma
ligação entre dois pontos distantes através de meios mecânicos. Deste modo, com
um sistema de escadas rolantes, o arquitecto liga o Chiado e o Bairro alto com a
malha da Baixa de forma assistida. Esta estratégia permitiu criar duas vantagens
fundamentais: por um lado resguardar o espaço público da invasão de meios
mecânicos e agressivos para a configuração dos arruamentos numa área
claramente consolidada há vários séculos. Neste caso, esta solução seria quase
fundamental e incontornável uma vez que as diferenças de cota e a distância a
percorrer revelam uma clara necessidade de meios assistidos de subida sobretudo
para utentes de mobilidade mais reduzida. Por outro lado permite, mesmo assim,
estabelecer a articulação entre duas zonas importantes do centro histórico da
cidade, de forma fácil, directa e confortável.

3.32 | Secção transversal do túnel de acesso ao metropolitano

77
3.33 | Plano geral da situação da estrutura da estação do metropolitano
3.34 | Fotografia de uma das naves da estação

78
3.6.1 Perúgia - Rocca Paolina
Um paralelismo

Quando olhamos para o corte na Colina percebemos a dimensão da diferença


topográfica que existe entre o plano da Baixa e o plano do Chiado e entendemos
como esta distância representa um problema de acessibilidade. Esta percepção é
evidente sobretudo quando levamos em conta que estamos a tratar de um centro
histórico e, mais ainda, de um centro histórico acidentado pelo declive e pelo traçado
estreito dos arruamentos.

Bernardo Secchi escreve em 1982 um texto intitulado Uno Spectro piu Amplo
para a revista Casabella nº onde refere em linhas gerais, a propósito das cidades
italianas e da tentativa de as tornar mais acessíveis, que o território é geralmente
mais rico do que a cidade contemporânea tende a fazê-lo e que quanta mais
pequena a cidade parece para o utente, mais bem articulado se apresenta o
território.

De facto, do ponto de vista da facilidade que o percurso assistido da Estação


Baixa Chiado confere aquela diferença de cotas, os dois espaços tendem a tornar-
se mais próximos e, consequentemente, o território parece tornar-se mais pequeno.
Porém este circuito não tem como função principal esta articulação, embora
ela passe a constituir um incremento extremamente importante para aquela zona.
Numa pequena sondagem que realizamos no dia 12 de Novembro de 2007 na
estação tentando contabilizar a quantidade de pessoas que utilizam aquele
percurso, dentro da estação, sem entrar no metro, chegamos à conclusão de que
cerca de uma em cada cinco pessoas usa aquela infra-estrutura para circular entre a
rua do Crucifixo e o largo do Chiado. Ou seja, para um quinto dos utilizadores,
senão mais, aquela estação de metro funciona como percurso assistido entre a
baixa e o Chiado, sendo uma ajuda importante a transpor os cerca de doze metros
de diferença de cotas que os separa.
Mas, a propósito do mesmo artigo na revista italiana, existem situações em
que é muito clara a intenção de construir um acesso mecânico que diminuísse a
necessidade de utilizar o veículo automóvel para aceder ao centro histórico de uma
boa parte das cidades italianas mais importantes. É o caso da Rocca Paolina em
Perugia.

79
Origem

Em 1540 o Papa Paulo III vitorioso na Guerra do Sal, contrata o arquitecto


militar António da Sangallo il Giovane para projectar um complexo defensivo para a
cidade de Perugia, centro do poder papal, agora ameaçada devido à presença do
Stato Pontifício.
O projecto inicial, com a colaboração do irmão do arquitecto, Aristide da
Sangallo, previa a construção do muro di Santa Giuliana e de um palácio fortificado
de modo a garantir a segurança da cidade no caso de eventuais ataques.
Em 1543 ergue-se o palácio do Governador e a Fortaleza. Existiam duas
fortificações. A primeira e maior situava-se no Rochedo (Rocca) e a menor,
Tanaglia, no plano mais abaixo junto de Santa Giuliana, unidas por um corredor
constituído por três passagens fortificadas com trezentos metros de comprimento.
Mais tarde, Pierluigi Farmese, sucessor de Paulo III, chega a Perugia quando
se assegurou que, com o fim dos trabalhos na Rocca, o poder e a soberania papal já
estavam garantidos. Este pormenor deixa implícito que a fortificação serviria, além
de proteger a cidade de eventuais ataques, para proteger o poder papal de tudo o
resto, inclusivamente da própria população de Perugia.
A fortaleza paolina era para os peruginos um símbolo de sacrifício e injustiça
visto que aprisionava no seu interior um exército inactivo. E a revolta do povo de
Perugia acontece quando se instala a República Italiana em 1798.

Em 1830 a Rocca Paolina estava completamente abandonada e começava a


ser utilizada pela população. Começa a demolição em 1848 e o restauro do governo
pontifício. A 14 de Setembro de 1860 é ocupada e proclamada a Unidade Italiana e
dois meses mais tarde é autorizada a demolição definitiva da construção, embora
se tenha chegado a um acordo sobre a demolição parcial e permitindo-se assim que
alguns elementos prevalecessem. Mais tarde é construído, na cota mais elevada, o
Palácio de Belvedere, a Piaza Italia e a Prefeitura (Duomo). Hoje não resta um
quinto da Rocca original.

80
3.35 | Planta de Perugia em 1851 com a reconstituição do estrutura de António da SanGallo

81
3.36 | Oleo sobre tela da Fortaleza Paolina – Giuseppe Rossi sec. XIX
3.37 | Oleo sobre tela da face ocidental da Fortaleza Paolina – Giuseppe Rossi sec. XIX

82
A nova intervenção

A obra de requalificação traduz-se em acessos mecânicos que ascendem pelo


interior das ruínas da Rocca [esta entrada na Rocca é feita através da segunda
porta monumental etrusca que Sangallo il Giovane incorporou no século XVI e que
estava alinhada pela estrada em direcção a Roma] saindo no topo, já no plano da
Piaza de Italia. Esta ruína foi extremamente valorizada através deste acesso muito
importante e engenhoso de trânsito pedonal e mecanizado. Incorporado num novo
plano de organização de transportes, esta articulação vem desempenhar um papel
fundamental na ligação da cidade, ampliada e ordenada funcionalmente, com o
centro histórico, desempenhando um caso de sucesso no panorama italiano e
internacional.
Neste momento o centro histórico de Perugia é acessível através de meios
mecânicos em autênticos caminhos, acessos e articulações pontuais, pela estrutura
da Rocca Paolina e das ruínas do Quarteirão Medieval, residencial, da família
Baglioni. A relação entre estas duas ruínas é tudo o que resta.

O Projecto

Remetemos directamente para o corte na colina que imediatamente lembra o


caso do Chiado e da estação de metro Baixa-Chiado, com a mesma dificuldade de
articulação dos dois territórios.

No caso da cidade de Perugia a dificuldade de acesso prendia-se, sobretudo, com a


presença do automóvel nas ruas que acedem ao topo da colina onde se situam a
maior parte dos edifícios administrativos e um sistema de praças e espaços públicos
muito utilizados pelos utentes. Numa tentativa de evitar que o uso do automóvel seja
a hipótese mais cómoda e atractiva, nesta como noutras cidades italianas, foi
implementado pontualmente o "piano della mobilita", um plano de mobilidade em
centros históricos iniciado em 1979 em conformidade com o já instaurado, e
amplamente descrito, "Piano per il Centro Histórico".
Em Perugia este plano veio conferir à cidade uma redefinição muito importante
do sistema de transportes, sobretudo na intervenção que liga o plano da zona
residencial à cota do plano mais elevado do Duomo na Piazza d’Itália e da Fontana
Magiore na Piazza 4 Novembre. Sustentada e progressivamente um dos principais
objectivos deste plano foi sempre a pedonalização total do centro histórico através
da localização de duas zonas de estacionamento no plano mais abaixo e um

83
sistema assistido de escadas rolantes para fazer a subida. Este acesso desde a
Piaza dei Partigiani, onde foi localizado um terminal de transporte público e o
estacionamento, até à Piaza de Italia permite o acesso diário de vinte mil pessoas
ao centro histórico.
O percurso, tal como na estação Baixa-Chiado é muito cuidado, do ponto de
vista da dissimulação do seu traçado dentro das infra-estruturas existentes. Desta
forma a estrutura dos arruamentos e a própria configuração da colina mantêm-se
intactos. Este é o ponto fundamental da obra porque se solucionou um problema
através de uma intervenção profunda (embora pontual) no sistema de transportes
sem perturbar o centro histórico. As escadas rolantes articulam pontualmente
diferentes cotas e mais à frente desembocam numa galeria pedonal.

Apesar de não se tratar de um desnível de cerca de quarenta metros como em


Perugia, o sistema mecânico da estação Baixa-Chiado constitui também uma ajuda
muito importante na ligação entre estes dois bairros. Um pouco inesperadamente,
este trajecto que inicialmente desempenhava a sua função de estação de
metropolitano passa a ser um pequeno atalho, tão válido e tão útil como qualquer
um dos outros que estudámos nos outros case studies.

84
3.38 | Corte do percurso pedonal mecanizado
3.39 | Fotografia do interior do percurso
3.40 | Fotografia do interior do percurso

85
3.7 Conclusões sobre os casos de estudo

É importante reflectir um pouco sobre a informação recolhida nas análises


feitas aos vários casos de estudo.
Em primeiro lugar devemos ter em conta o sucesso de cada uma das obras e
consequentemente do efeito que a sua presença tem no espaço que ocupa.
Qualquer um dos edifícios e dos mecanismos que propusemos abordar se encontra
no Chiado, território que, como referimos, se transformou e foi adquirindo novas
necessidades como o estacionamento, habitação de qualidade, acesso pedonal que
propicie a circulação regular de peões e condições privilegiadas para a instalação de
valências e pólos de atracção de utilizadores.
Podemos ter em consideração, por exemplo, o sucesso alcançado pela parte
habitacional do Quarteirão Império e o Bloco A em que a introdução de espaço para
estacionamento no primeiro caso veio determinar muito objectivamente o sucesso
de vendas. Deste modo conseguimos perceber como foi importante o investimento
do promotor na satisfação de uma condicionante do local e dotar o espaço dessa
mais valia. Porém se considerarmos o sucesso alcançado pelo interior de ambos os
quarteirões e das mais valias trazidas pelos eixos articuladores introduzidos em
cada um dos exemplos verificamos que o indicador de ocupação é muito
semelhante, reduzido aos poucos utilizadores que usam, de facto, esta facilidade
para ligar arruamentos e que pouco ou nada permanecem nos espaços interiores
dos quarteirões para onde os estabelecimentos comerciais se viram, desocupados,
fruto duma operação imobiliária inadequada um pouco, também, por culpa da
tipologia comercial adoptada27.

Contudo é fundamental fazer a distinção entre casos tendo em conta vários


factores. Um deles é o tipo de investimento, público ou privado e os objectivos desse
tipo de financiamento. Aqui temos claramente diferenças entre as obras de
requalificação levadas a cabo pelo Gabinete de Estudos do Chiado com o objectivo
claro de devolver os edifícios afectados à cidade depois de um sinistro e o
investimento feito pela Seguradora Império que viu na sua propriedade uma
oportunidade de valorização com um projecto de reconstrução ambicioso.
Por outro lado devemos dar atenção ao programa pretendido ou proposto em
27
Esta situação acabaria por falhar devido a um círculo vicioso que resulta sempre em prejuízo para
comerciantes e proprietários. Se por um lado se pressupunha que um percurso interior tornaria
interessante a passagem pelo páteo do quarteirão e esse pressuposto potenciaria o comércio naquele
espaço, por outro, a realidade seria diferente porque as poucas pessoas que utilizam aquele acesso
não dinamizam os espaços comercias (que as rendas elevadas obrigam a fechar) e desaparecendo
este elemento dinamizador todo o esquema deixa de funcionar como seria previsto.

86
cada uma das ligações. Existe uma clara distância entre a ligação dos Armazéns do
Chiado, de financiamento privado com um objectivo claro de estabelecer um acesso
através de galerias comerciais e, noutro caso, o projecto da rampa no interior do
Bloco B a recriar a ligação histórica das escadinhas da Piedade. Essa distância
prende-se sobretudo com uma questão económica e de retorno financeiro que
fazem toda a diferença na definição das prioridades de cada uma das obras. Se
tivermos em conta que ambas são (ou seriam) um incremento muito importante na
circulação entre o vale da Baixa e o Bairro Alto podemos considerar que os casos
são em tudo semelhantes mas, como vimos, o factor investimento/retorno e o
programa de cada um dos atalhos ditou desfechos diferentes em cada proposta.
É óbvio que ambas as intervenções são muito positivas para a reintegração
deste território na cidade mas temos claramente que distinguir e compreender em
cada uma os objectivos, o programa e a condução de cada uma das operações.

Seria ainda interessante comparar os exemplos em que verificamos que a


função primária para que foram concebidos foi, de facto, o atravessamento e a
criação de condição para ligar cotas diferentes com os exemplos onde claramente
esta função é secundária ou menos consciente do ponto de vista do projecto. Isto
acontece evidentemente com o percurso da estação Baixa-Chiado embora seja
admissível que o arquitecto compreendesse a utilidade eminente que este acesso
poderia conferir. Da mesma forma nos Armazéns do Chiado e Grandella acabam por
ser utilizados percursos alternativos ao traçado urbano.
Paradoxalmente estas situações são as que apresentam maior número de
utilizadores e contrariam um pouco a ideia de que o gesto do arquitecto é
fundamental na concepção do atalho urbano. Esta evidência remete-nos para a
convicção que demonstramos de que é, de facto, a necessidade concreta dos
utilizadores e a espontaneidade dos circuitos que escolhem que definem (ou
insinuam) o traçado dos arruamentos e acessos.

87
CAPÍTULO QUATRO
Conclusão

Considerações finais
Importância deste estudo
Possibilidades e panorama de alargamento

88
4.1 Considerações finais e Importância do estudo

Consideramos que este estudo poderá ser importante para a compreensão


de um fenómeno que, à partida, não é muito abordado e que revela desde logo
alguma dificuldade em reunir exemplos e casos de estudo. Dizemos isto porque a
bibliografia atende ao conceito de atalho dentro da malha urbana não é muito
extenso o que representa até uma mais valia para o estudo que realizámos. Seria
importante que esta dissertação lançasse, com as análises feitas, algumas pistas a
futuras intervenções e, sobretudo, apontasse problemas inerentes a este tipo de
manifestação e as vantagens que advêm da introdução na malha urbana de
percursos alternativos, que facilitem, tornem mais confortável ou acelerem o acesso
entre dois ou mais espaços. Queríamos deixar assim dois pontos comuns aos casos
de estudo, que nos pareceram importantes no decorrer desta comparação:

• em primeiro lugar alertar para a importância da análise histórica do local.


Desta forma o arquitecto fundamenta inequivocamente, a sua solução e
constitui sempre com base nesta herança um sólido ponto de partida. Vimos
como a pesquisa dos percursos pré-pombalinos foi decisiva na maioria dos
casos, com especial importância no projecto da rampa do Bloco B e no
Quarteirão Império.

• Em segundo lugar devemos apontar o papel que cada um dos atalhos, todos
no mesmo local, teve na tentativa de alcançar uma solução final – articular a
Baixa com o Bairro Alto. Se considerarmos que cada um dos projectos é
parte de um conjunto de ligações consecutivas conseguimos perceber como
ficou valorizado todo aquele percurso. É importante reflectir na necessidade
de estabelecer este tipo de acesso entre diferentes cotas e como é
fundamental ter especial sensibilidade quando o cenário constitui um centro
histórico.

• Seria ainda interessante compreender melhor a diferença entre as diferentes


apropriações de espaço que conhecemos e a forma como o espaço privado
assume um carácter mais público e como isso se pode tornar importante na
vivência da cidade.

89
4.2 Possibilidades e panorama de alargamento

Pensamos que um complemento essencial a esta problemática seria uma


análise mais aprofundada do papel que um Atalho Urbano pode ter hoje e o papel
que teria há cinquenta, cem ou duzentos anos em condições distintas. Sugerimos
isto no sentido em que chegamos à conclusão que a conjectura de cada época
histórica como a oferta de transporte, os hábitos de locomoção, ou as rotinas da
sociedade se transformaram. Damos o exemplo dos Armazéns Grandella e da
projecção que tiveram no final do século XIX e princípios do século XX e do efeito
que têm hoje na população de Lisboa. Leva-nos a pensar de que forma é que a mais
valia que o seu percurso interior representava se modificou através dos anos.
Se tivermos em conta que hoje se criou um hábito ou dependência do
automóvel, que os horários deixam pouco tempo livre para passeios no Chiado, que
o metro e o autocarro dispensam a passagem por este espaço a quem quer ir dos
Restauradores ao Cais do Sodré ou que os Armazéns do Chiado e outras valências
comerciais e de lazer já não são a única opção na cidade, devemos questionar que
papel terá o Atalho Urbano quando a circulação pedonal já não se faz com a mesma
intensidade de antes. Leva-nos a ponderar a vantagem da introdução de políticas de
exclusividade de trânsito pedonal nos centros históricos de forma a tornar estes
espaços mais apetecíveis, mais seguros e mais funcionais.
Por outro lado, deveríamos apontar exemplos de casos não abordados mas
que nos parecem casos de sucesso dentro do tipo de intervenção que estudamos.
Em primeiro lugar dois exemplos portugueses – o ISEG (Instituto Superior de
Economia e Gestão) e a Igreja do Sagrado Coração de Jesus – com resultados
muito satisfatórios tanto na articulação e ligação de níveis, espaços e arruamentos
como nas relações proporcionadas aos utilizadores com a envolvente e com as
valências do edificado. Em segundo lugar um projecto muito mediático, inserido num
panorama social, urbano e programático distinto – a Funfe Hofe em Munique – um
quarteirão completamente atravessado por galerias cobertas, corredores e pátios
articulando três avenidas importantes, agrupando habitação e comércio ao estilo das
Passages relatadas por Walter Benjamin.

90
4.1 | Igreja do Sagrado Coração de Jesus – Nuno Teotónio Pereira
4.2 | Instituto Superior de Economia e Gestão – Gonçalo Byrne

91
4.3 | Fotografia do Interior do quarteirão
4.4 | Fotografia da intervenção no alçado norte
4.5 | Foto aérea – Fonte: GoogleEarth

92
BIBLIOGRAFIA

AAVV – Atlas de lisboa, a cidade no espaço e no tempo, GEO em colaboração com


CNIG, Contexto ed., Lisboa, 1993

AAVV – Conservação e Reabilitação Urbana. Uma nova cultura de cidade, CML,


Lisboa 2002

AAVV – Lisboa, morfologias urbanas 1850 – 1950, CML – direcção de projecto de


planeamento estratégico

AAVV – Lisboa Subterrânea, Electa – Museu Nacional de Arqueologia, Lisboa


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