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DOI: 10.1590/1413-81232018236.

06482018 1891

Desenvolvimento, Inovação e Saúde: a perspectiva teórica

ARTIGO ARTICLE
e política do Complexo Econômico-Industrial da Saúde

Development, Innovation and Health: the theoretical and political


perspective of the Health Economic-Industrial Complex

Carlos Augusto Grabois Gadelha 1


José Gomes Temporão 2

Abstract The concept and approach of the Resumo O conceito e a abordagem do Complexo
Health Economic-Industrial Complex (HEIC) Econômico-Industrial da Saúde estiveram presen-
were present in the advancement of the Unified tes no avanço do SUS nas últimas décadas, con-
Health System (SUS) in the last decades, contrib- tribuindo para incorporar uma agenda relacio-
uting to the incorporation of an agenda related to nada ao padrão nacional de desenvolvimento. O
the national pattern of development. The paper artigo reconstitui essa abordagem para captar sua
reconstructs this approach to capture its dynam- dinâmica e demarcar a visão desenvolvida nesse
ics and demarcate the vision developed in this paradigma. Evidencia as matrizes de pensamen-
paradigm. It reveals the thinking matrices of the to do campo da economia política que fornecem
field of political economy that provide the ana- o substrato analítico para o seu desenvolvimento,
lytical substrate for its development, allowing us permitindo fazer frente ao uso reducionista do
to confront the reductionist use of the concept. It conceito. Destaca, desse modo, os fundamentos
highlights, therefore, the logical foundations that analíticos que nortearam as políticas públicas de-
guided the public policies resulting from this ap- correntes dessa abordagem, com ênfase na aborda-
proach, with emphasis on the systemic approach gem sistêmica e na utilização do poder de compra
and the use of state purchasing power, through do Estado, mediante as Parcerias para o Desen-
the Productive Development Partnerships (PDP), volvimento Produtivo (PDP), marcando o esforço
marking the effort to articulate the social and eco- para articular a dimensão social e a econômica
nomic realms of development. At present, this an- do desenvolvimento. No presente, essa perspectiva
alytical perspective is even more crucial, showing analítica é ainda mais crucial, evidenciando que
that well-being not only fits into GDP but can also o bem-estar não apenas cabe no PIB, mas pode
1
Grupo de Pesquisa be a lever for a pattern of development committed se constituir em uma alavanca de um padrão de
sobre Desenvolvimento, to the National Health Universal System (SUS), desenvolvimento comprometido com o SUS, a so-
Complexo Econômico- society and economic and technological sovereign- ciedade e a soberania econômica e tecnológica em
Industrial e Inovação em
Saúde, Escola Nacional de ty in health. saúde.
Saúde Pública, Fiocruz. Av. Key words Health economic-industrial complex Palavras-chave Complexo econômico-industrial
Brasil 3800, Manguinhos. (HEIC), Development, Innovation, Health polit- da saúde (CEIS), Desenvolvimento, Inovação,
21040-361 Rio de Janeiro
RJ Brasil. ical economy, National science, technology and Economia política da saúde, Política nacional de
carlos.gadelha@fiocruz.br innovation policy ciência, tecnologia e inovação
2
Ex-Ministro da Saúde do
Brasil. Rio de Janeiro RJ
Brasil.
1892
Gadelha CAG, Temporão JG

Introdução analíticos centrais do CEIS e as grandes linhas


das políticas públicas decorrentes.
O conceito do Complexo Econômico-Industrial
da Saúde (CEIS) foi desenvolvido em trabalhos
de pesquisa realizados no início dos anos 20001,2. O enfoque metodológico do CEIS
Inicialmente designado como “Complexo da
Saúde”, adquiriu diferentes denominações em A concepção do CEIS delineou um programa de
função das ênfases buscadas em sua aplicação pesquisa, no sentido epistemológico do termo10,
teórica e política: Complexo Industrial da Saú- inserindo uma lógica sistêmica e estruturalmen-
de, Complexo Produtivo da Saúde e Complexo te hierarquizada para o tratamento do sistema
Industrial e de Serviços em Saúde. Destaca-se produtivo e de inovação em saúde em sua rela-
também, em sua concepção, a contribuição pio- ção com o SUS. Nesse sentido, foi efetuado um
neira para a análise da área de vacinas – particu- esforço de reconstituição de um objeto e de um
larmente do Programa Nacional de Imunizações programa de pesquisa que procurasse avançar na
(PNI) e do Programa de Autossuficiência Nacio- perspectiva de investigação da relação entre saú-
nal em Imunobiológicos (PASNI) –, como um de e sociedade e sobre a saúde no contexto capi-
dos segmentos produtivos do CEIS que melhor talista, que já estavam presentes no País em diver-
permitia apreender a mútua determinação social sos momentos do século passado (a exemplo dos
e econômica do desenvolvimento3,4. trabalhos de sanitaristas como Mario Magalhães
Esse esforço, favorecido pelo encontro e in- da Silveira, Sérgio Arouca, Hésio Cordeiro, Cecí-
teração acadêmica e política dos autores, aliou lia Donnangelo, Carlos Gentille de Mello, entre
a visão de saúde coletiva com a de economia outros que constituíram o campo da saúde cole-
política. Foram efetuadas pesquisas e propostas tiva e da medicina social em nosso País11).
de intervenção, que subsidiaram o pensamento Procurou-se incorporar avanços analíticos e
estratégico e prospectivo em saúde na Fiocruz, metodológicos dessas concepções em um progra-
tendo como marco a criação, em 2002, do Pro- ma específico para associar as vertentes econômi-
jeto Inovação, sob a coordenação executiva dos cas e sociais do desenvolvimento de modo endó-
autores. Envolveu também uma frente de forma- geno e não como duas dimensões analiticamente
ção em saúde, com a organização, no mesmo ano, cindidas. A incorporação metodológica da base
da disciplina “Complexo Industrial da Saúde” na conceitual de economia política e de corte estru-
pós-graduação da ENSP/Fiocruz. turalista no campo social se apresentava como o
Como tem ocorrido em diversos campos da grande desafio desse programa de pesquisa. O
saúde coletiva, assistiu-se a uma profícua inte- que era gasto, passava a ser compreendido como
ração entre o mundo das ideias e o das políticas investimento; no lugar da estática alocativa, enfa-
públicas, caracterizando uma práxis de impacto tizava-se a dinâmica e a inovação; em vez de se-
relevante nas políticas de saúde e de desenvol- tor, a dimensão sistêmica predominava; a estru-
vimento. O tema ganhou densidade a partir de tura econômica e social foram interligadas; e o
2008, com o início de uma ação política abran- mundo do conhecimento e da tecnologia se con-
gente voltada para o desenvolvimento do CEIS frontava com as necessidades sociais e humanas.
no País, sob a liderança do Ministério da Saúde Mais especificamente, o programa de pesqui-
(MS). sa envolvia o levantamento sistemático, primário
Este artigo retoma as ideias-força da perspec- e secundário, nacional e internacional, histórico
tiva do CEIS, de modo a demarcar a visão incor- e prospectivo, das dimensões social (incluindo a
porada nesse paradigma, permitindo fazer frente demográfica e a territorial); econômica e da base
ao uso reducionista e não dialético do conceito. produtiva industrial e de serviços; da ciência, tec-
Entende-se que esse esforço é decisivo para a nologia e inovação em saúde; e do papel do Esta-
consolidação do SUS e de um projeto nacional do e das políticas públicas.
de desenvolvimento assentado, simultaneamen- Entre a base de dados e informações utili-
te, na constituição de sistemas universais e em zadas, em abrangência nacional e internacional,
bases produtivas e de inovação fortes, soberanas histórica e prospectiva, cabe destacar as seguin-
e socialmente orientadas. tes áreas temáticas essenciais para a abordagem
Nessa direção, mais do que recontar a histó- que nortearam o levantamento de informações12:
ria de uma política inovadora – já abordada em condições e tendências de saúde; base produtiva
outros trabalhos5-9 – o artigo realiza uma recons- do CEIS, incorporando a produção industrial e
trução conceitual, explicitando os fundamentos de serviços em saúde; atividades de ciência, tec-
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nologia e inovação em Saúde (CT&IS); e Políti- Inovação como um processo de
cas públicas relacionadas, direta ou indiretamen- transformação política, econômica e social
te ao CEIS.
Além do levantamento sistemático da litera- A percepção rigorosa do conceito de inovação
tura, de informações oficiais – com grande des- é adotada na abordagem do CEIS, incorporando
taque para o Instituto Brasileiro de Geografia e a transformação social, política, econômica e ins-
Estatística/IBGE e para os sistemas de informa- titucional associada à mudança da base produti-
ção do SUS – e da utilização de informações pri- va e tecnológica. A dinâmica captada por Marx
márias, com levantamento de dados e entrevistas e Schumpeter para caracterizar o capitalismo
junto a atores-chave das áreas pública e privada, como um sistema em permanente transformação
foram produzidas e (re)analisadas informações, é apreendida no âmbito da saúde.
com base no enfoque diferenciado adotado. O desenvolvimento é caracterizado, assim,
Cabe destacar dois conjuntos de busca e sis- como um processo não linear que está associa-
tematização de informações que fundamentaram do a mudanças estruturais que não decorrem da
e conferiram legitimação acadêmica e política a expansão da base produtiva e social preexisten-
esse programa de pesquisa, considerando a de- te. Se, de um lado, a história possui um papel-
sarticulação cognitiva e política entre as áreas chave, uma vez que não existem modelos gerais
da saúde e de desenvolvimento produtivo e da de organização da sociedade e do mercado que
inovação. Em primeiro lugar, o foco no sistema levem à expansão e à convergência; de outro, a
produtivo da saúde, e não apenas em setores es- intencionalidade dos agentes e ação da socieda-
pecíficos, teve, como desdobramento, a geração de e do Estado possuem um peso decisivo para
de evidências do peso e da sua importância so- transformar as condições prévias, sem o que o
cial e econômica. Estimativas preliminares foram sistema produtivo e social pode ficar trancado no
efetuadas com base nas informações disponíveis, passado (lock in effect).
e validadas, em sua essência, nas pesquisas das
contas-satélite da saúde pelo IBGE que passaram Articulação endógena entre a lógica
a ser realizadas a partir de 200913, confirmando a econômica e a social
posição do CEIS na economia brasileira.
Em segundo lugar, foi conferido destaque Como decorrência e desdobramento analíti-
às informações da balança comercial como in- co da utilização da visão marxista, procurou-se
dicador de vulnerabilidade e dependência, com apreender a dialética do desenvolvimento na saú-
um tratamento metodológico que refletisse a de. Essa incorpora tanto a esfera da circulação
base teórica do CEIS, a partir da base de dados do capital, captada com profundidade no livro
do Ministério da Indústria, Comércio Exterior e clássico de Hésio Cordeiro21, que objetivava, nas
Serviços (MDIC)14. A limitação dos paradigmas palavras do autor, contribuir com uma primeira
setoriais usuais não induzia ao levantamento aproximação à crítica dos modelos teóricos vigentes
agregado de uma informação estratégica, de fácil sobre o consumo de ações de saúde (apresentação,
acesso e de forte conteúdo analítico e político: a pg. XIII) – indicando a influência do “complexo
balança comercial em saúde. médico-industrial” sobre a demanda – quanto a
compreensão do campo da saúde como um es-
paço estratégico do desenvolvimento das forças
Matrizes teóricas, resultados e discussão produtivas, de criação de valor e de geração de
investimento, renda, emprego, conhecimento e
Estão presentes, como fundamentos teóricos no inovação.
conceito do CEIS, quatro matrizes provenientes O grande desafio é captar, no campo da saú-
de pensadores e escolas essenciais para compre- de, a relação dialética entre o desenvolvimento
ender a natureza do desenvolvimento no capi- das forças produtivas e sua contradição com as
talismo: a marxista15,16, a schumpeteriana17, a relações sociais de produção. Há um processo, si-
keynesiana18 e a estruturalista, essa última com multâneo, de expansão do investimento, da renda
ênfase na visão de Celso Furtado19,20. e do emprego e de exclusão, desigualdade e insta-
Pode-se indicar os aspectos centrais teóricos bilidade. É na busca dessa compreensão dialética
e políticos incorporados na abordagem do CEIS, que o CEIS emerge como uma abordagem crítica
que se basearam em elementos, em grande me- de economia política: supera, de um lado, a vi-
dida convergentes e complementares, descritos a são reducionista, economicista e técnica centrada
seguir: nas cadeias produtivas e setores de atividade e, de
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Gadelha CAG, Temporão JG

outro, uma visão insulada da área da saúde e do décadas de sistematização da balança comercial
campo da proteção social e bem-estar. Ressaltou- do CEIS da saúde demonstrando a dependência
se a articulação endógena entre as dimensões so- desta no contexto das assimetrias globais. Em
ciais e as econômicas do desenvolvimento. A de- um período de 20 anos, em plena construção do
cisão econômica e dos investimentos embute um SUS, o déficit apresenta um aumento exponen-
modelo de sociedade, ao mesmo tempo em que cial – evidenciando a fragilidade tecnológica glo-
um modelo de sociedade, inclusivo e equânime, bal - saindo do patamar de US$ 3,0 bilhões para
exige uma determinada estrutura produtiva e de US$ 12 bilhões (em seguida arrefece um pouco
CT&I. influenciado pela depressão da economia brasi-
leira).
Assimetria, soberania nacional Do ponto de vista analítico, o déficit demons-
e a sustentabilidade do SUS trava que, justamente num período de expansão
do SUS e de ampliação do acesso, o bloqueio es-
A desigualdade nos padrões nacionais de trutural ao desenvolvimento se apresentava como
desenvolvimento e a tendência à polarização, vulnerabilidade em saúde. O risco da reprimari-
marca essencial da abordagem estruturalista, zação econômica, da dependência e da perda de
foram incorporadas no contexto da geopolítica liberdade para a concepção e implementação de
global. As assimetrias de poder, que conformam políticas universais mostrava sua face perversa.
e reproduzem um sistema centro-periferia, estão
assentadas na direção e na difusão desigual do Visão sistêmica
progresso técnico. A dinâmica da inovação é as-
simétrica e gera polaridades entre classes sociais, O CEIS, analiticamente, constitui um espaço
regiões e países, caracterizando um processo de institucional delimitado, político, econômico e
modernização com marginalização, que também social, no qual se realiza a produção e a inovação
se manifesta, com força, em sua dimensão inter- em saúde, captando sua dinâmica interdepen-
nacional19,22. dente. Além da interação econômica e tecnoló-
A saúde reproduz a lógica do sistema cen- gica há também uma institucionalidade comum
tro-periferia, como se evidencia pela análise das (órgãos de regulação sanitária, de incorporação
relações comerciais. O Gráfico 1 marca duas tecnológica, de ética em pesquisa, entre outros),

$20

$15

$10
10

$5

$0
1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 20032004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 20112012 2013 2014 2015 2016
-$5

-$10

-$15

Importação Exportação Déficit

Gráfico 1. Evolução do Déficit da Balança Comercial da Saúde (Valores em US$ bilhões, atualizados pelo IPC/
EUA).

Fonte: Elaborado pelos autores em colaboração com Cesário BB, a partir da base de informações da Coordenação das Ações de
Prospecção da Presidência/Grupo de Estudos sobre Desenvolvimento, Complexo Econômico-Industrial e Inovação em Saúde da
Fiocruz, a partir de dados de BRASIL. Alice Web [Internet]. [acesso em janeiro/2017]. Disponível em: http://aliceweb.mdic.gov.br/
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envolvendo diversas políticas, programas e ações Constitui a arena central na qual a tensão entre
cujas decisões, implícita ou explicitamente, arbi- os interesses do capital e os sociais se concretiza
tram práticas, serviços e produtos que se tornam na saúde e onde o conhecimento se torna rique-
dominantes e outros que reduzem sua importân- za, gerando, ao mesmo tempo, iniquidade social,
cia relativa ou mesmo são eliminados. regional e territorial. Contribui, portanto, para a
Por um lado, a perspectiva sistêmica deveria compreensão da dinâmica da reprodução do ca-
ser uma decorrência natural da visão de saúde pital e sua interação com a sociedade, contribuin-
coletiva. Se o SUS é pensado como sistema, sua do para uma perspectiva política de desmercanti-
base produtiva, material e de conhecimento tam- lização do acesso à saúde26 com a estruturação de
bém teria que ser analisada de modo sistêmico sistemas nacionais mais autônomos e soberanos.
para captar as interdependências e interação A Figura 1 apresenta uma morfologia descri-
com o sistema de saúde. Restringir o tema da tiva e simplificada do CEIS, permitindo apresen-
base produtiva aos “insumos em saúde” significa, tar a conformação do sistema produtivo e de ino-
inadvertidamente, assumir uma inaceitável rela- vação e dos subsistemas e segmentos produtivos
ção de que o “bem” industrial é o “insumo” e a desse espaço econômico, social e institucional.
saúde – ou mesmo os serviços – o seu resultado
natural (o produto final). Papel do Estado
Por outro lado, o tratamento da inovação
também requer um enfoque sistêmico, conforme Perpassa toda abordagem do CEIS a pers-
a escola neoschumpeteriana passou a enfatizar pectiva de que o mercado não possui o atributo
no conceito dos “Sistemas Nacionais de Inova- natural de gerar eficiência e bem-estar. Sobressai
ção”, incorporando a política, a sociedade, as nesse tema a perspectiva da matriz keynesiana
instituições, o papel dos Estados Nacionais e suas que forneceu elementos teóricos essenciais para
formas de organização, envolvendo uma práxis as concepções que permitiram tanto a sustenta-
entre o pensar, o saber e o fazer23-25. ção dos investimentos quanto a conformação de
A lógica do CEIS se insere nessas tradições, Estados de Bem-Estar na Europa do pós-guerra.
captando a interface entre os sistemas nacionais O paradigma de Keynes, ao se contrapor à es-
de saúde e os sistemas nacionais de inovação. cola liberal e neoclássica, assumia claramente a

E
S
T Setores industriais
A
D Indústrias de Base Química Indústrias de Base Mecânica,
O e Biotecnológica Eletrônica e de Materiais
-
P
R . Fármacos e medicamentos . Equipamentos mecânicos
O . Vacinas . Equipamentos eletroeletrônicos
M . Hemoderivados . Próteses e órteses
O . Reagentes para diagnóstico . Materiais de consumo
Ç
Ã
O
-
R
E
G
Setores prestadores de serviços
U
L
A Hospitais Ambulatórios Serviços de Diagnóstico
Ç e Tratamento
Ã
O

Figura 1. Complexo Econômico-Industrial da Saúde: Morfologia.

Fonte: Gadelha1.
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Gadelha CAG, Temporão JG

não identidade entre o interesse individual e o vimento Produtivo em 12/05/2008, que situou o
coletivo, base de sua defesa do Estado, inclusive CEIS nas prioridades da nova política industrial
na orientação dos investimentos. A seguinte pas- brasileira. Antecedeu, e foi decisivo para esse
sagem de seu artigo de 1926 (anterior à crise de processo, a inserção do Complexo como um eixo
1929) ressalta a tensão entre o interesse individu- estratégico do Planejamento do MS para o pe-
al e o coletivo e a própria inexistência de agentes ríodo 2008/2011, no âmbito do Programa Mais
racionais, que sequer são capazes de defender Saúde27 A incorporação dessa visão nas políticas
seus próprios interesses quanto mais os interes- governamentais transformava em ação concreta
ses públicos fruto da atuação da “mão invisível” a perspectiva do Complexo, por meio da qual
do mercado. Nas palavras do autor: passaram a convergir uma série de instrumentos
O mundo não é governado do alto de forma e ações de política pública.
que o interesse particular e o social sempre coin- No mesmo ato de lançamento da Política
cidam. Não é administrado aqui embaixo para de Desenvolvimento Produtivo, foi instituído o
que na prática eles coincidam. Não constitui uma Grupo Executivo para o Complexo Industrial da
dedução correta dos princípios de Economia que o Saúde (GECIS)28, como instância política de co-
autointeresse esclarecido sempre atua a favor do in- ordenação, constituindo um marco histórico de
teresse público. Nem é verdade que o autointeresse intervenção sistêmica. Coordenado pelo MS, o
seja geralmente esclarecido; mais frequentemente, GECIS reunia a representação formal de quator-
os indivíduos que agem separadamente na promo- ze órgãos ou entidades da Administração Pública,
ção de seus próprios objetivos são excessivamente envolvendo o núcleo decisório da política nacio-
ignorantes ou fracos até para atingi-los (Keynes, o nal de desenvolvimento (Casa Civil, Ministério
Fim do Laissez Faire18). da Fazenda e do Planejamento, de Relações Ex-
É com base nessa matriz que o papel do Es- teriores, MDIC e de Ciência, Tecnologia e Inova-
tado na orientação dos investimentos mostra-se ção), agências nacionais de fomento e regulação e
central para a abordagem do CEIS, como tam- instituições de CT&I. A direção nacional do SUS
bém indicado na Figura 1. Ao mesmo tempo se passava, ineditamente, a coordenar uma política
introduz na agenda a necessidade de se pensar prioritária de desenvolvimento industrial, tecno-
formas de intervenção que associem a dinâmi- lógico e de inovação, colocando-se como instân-
ca econômica e da inovação à dinâmica social, cia de articulação da área econômica, industrial e
como parte de um programa de pesquisa com- tecnológica para atender aos imperativos do SUS.
prometido com a ação política. Em segundo lugar, o marco teórico do CEIS
destaca, entre todos os instrumentos de indu-
ção e de regulação, o uso do poder de compra do
A concepção do CEIS em ação Estado como fator estruturante para superar as
condições de dependência e de atraso na produ-
A perspectiva política do CEIS vincula-se a ma- ção e na inovação em saúde. De um lado, o po-
triz keynesiana, ao mesmo tempo em que incor- der de compra e as políticas estatais orientadas
pora o processo de transformação de longo prazo por missão constituem a principal força por trás
e estrutural da base produtiva, econômica e so- de processos mais substantivos e arriscados de
cial, que marcam as matrizes marxista, schum- transformação produtiva29. De outro lado, o pa-
peteriana e estruturalista. Emergiram deste para- pel estratégico desse instrumento de intervenção
digma duas perspectivas estratégicas para a ação pública se relaciona ao próprio vínculo defendi-
do Estado que, a partir de 2008, passaram a pau- do entre as dimensões econômicas e as sociais do
tar as políticas para o CEIS. desenvolvimento. O elo crítico dessa relação, e
Em primeiro lugar, a natureza da abordagem que subordina a política industrial e de inovação
CEIS requer um padrão sistêmico de intervenção às necessidades do sistema de saúde, está justa-
do Estado. Diversas interfaces de política pública mente no atendimento às demandas do SUS que
se mostram críticas para um padrão de interven- envolvem a transformação produtiva no sentido
ção que incida sobre os investimentos, a transfor- de seu adensamento tecnológico.
mação produtiva e a inovação e que seja orienta- O instrumento concebido em 2008, cuja ope-
do para as necessidades do SUS. Destaca-se, em racionalização se inicia no período 2009/2010,
particular, a articulação da política de saúde com foi o das Parcerias para o Desenvolvimento Produ-
a política industrial e de CT&I. tivo (PDP) como uma ação específica coordena-
Nesse aspecto, o marco da experiência brasi- da pelo MS (não devendo ser confundido com a
leira foi o lançamento da Política de Desenvol- política de desenvolvimento produtivo mencio-
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nada anteriormente). Sem pretender entrar aqui 1980, para o atendimento das necessidades do
em todas as etapas de sua implementação e em PNI (criado em 1973), envolvendo processos de
um maior detalhamento, realizados em trabalhos transferência de tecnologia para os produtores
recentes5-9, o importante a enfatizar é que essa foi locais, associados ao uso do poder de compra do
a forma concreta e inovadora de efetivar o uso do Estado3,4,30.
poder de compra para a transformação no siste- O outro antecedente que representou o uso
ma produtivo da saúde. Permitia, a um só tem- pioneiro do modelo das PDP foi associado ao
po, aumentar a autonomia nas áreas de maior licenciamento compulsório das patentes do Efa-
dependência tecnológica e orientar os projetos virenz, em 4 de maio de 200731, para garantir a
de investimento de acordo com as demandas de sustentabilidade do Programa Nacional de Aids
saúde, conforme definido pelo Ministério nas su- frente aos elevados preços praticados. De fato,
cessivas publicações das listas de produtos estra- essa foi, de modo não intencional, uma experi-
tégicos para os projetos de PDP. ência piloto da política desenvolvida, tendo à
O modelo básico das PDP envolve a utiliza- frente o estabelecimento de uma articulação da
ção das compras, realizadas centralizadamente Fiocruz com produtores nacionais de fármacos
pelo MS, de produtos (normalmente de alto cus- no País, capazes de reproduzir e transferir a tec-
to e maior complexidade tecnológica), que eram nologia do produto. Fornecia também uma base
adquiridos no mercado (com grande participa- factual muito concreta para a vulnerabilidade do
ção de importações), para estimular a produção SUS e para a necessidade de desenvolver o CEIS
local, envolvendo a transferência de tecnologia. no Brasil, mediante indução via o uso do poder
A produção local ocorre pelo estabelecimento de compra e a regulação do Estado (propriedade
de uma parceria entre a empresa detentora da intelectual e sanitária) para articular a lógica so-
tecnologia e uma instituição pública qualificada cial com a lógica econômica e da inovação como
para atender ao SUS durante o período de absor- dimensões interdependentes.
ção tecnológica (sendo a Fiocruz e o Butantan as As bases teóricas e políticas da concepção
mais importantes). Esse processo assume a forma do CEIS e a sua inserção na política nacional de
de encomenda tecnológica, considerando que os desenvolvimento e na política de saúde, em con-
produtores públicos podem ofertar diretamente junto com os antecedentes mencionados, forne-
ao SUS sem processos rotineiros de licitação, mas ceram a base para iniciar o processo de imple-
tendo que obedecer aos princípios de economici- mentação das PDP a partir de 2009/2010, tendo
dade e vantajosidade. 19 projetos aprovados e 1 aquisição efetiva. Essa
O programa segue o dispositivo constitucio- política ganha escala e se institucionaliza com
nal de que o mercado interno integra o patri- os marcos regulatórios formalizados no período
mônio nacional, entre outros do marco legal e 2011/2014, perfazendo 106 projetos aprovados
constitucional vigentes. No lugar de um simples até 2014, com 75 aquisições. No momento atual,
processo administrativo, as compras públicas se esse instrumento se mantém (Quadro 1), apesar
tornam um instrumento de capacitação tecno- de enfrentar novos e complexos desafios deriva-
lógica e desenvolvimento da base produtiva do dos da instabilidade do novo contexto político e
CEIS, visando reduzir a vulnerabilidade do SUS institucional32.
e a geração de investimentos, emprego e renda. A avaliação dos resultados dessa política ino-
O processo altera estruturalmente o mercado da vadora e sistêmica ainda requer maior tempo de
saúde, pois reduz as práticas monopolistas, me- consolidação, considerando o desafio de trans-
diante uma progressiva presença de instituições formação da estrutura produtiva nacional em
públicas (MS e produtores públicos) em seu di- saúde, mas já é possível captar o seu movimento.
recionamento. Nesse sentido, apesar da confusão Como ponto de partida mais estratégico,
entre as siglas, o processo não consiste em uma passou a haver uma convergência entre as distin-
Parceria Público-Privada clássica (PPP), uma vez tas áreas de governo e eixos de intervenção, ra-
que envolve a participação do Estado e das ins- ramente observada em uma política pública de
tituições públicas produtoras em mercados que desenvolvimento coordenada por um ministério
antes eram apenas privados. da área social. É importante sinalizar que, para os
Dois antecedentes do uso desse instrumento produtos aprovados de modo colegiado no âmbi-
devem ser destacados. O primeiro e mais antigo to de instituições participantes do GECIS, obser-
foi observado no caso das vacinas com a cria- vou-se a convergências dos instrumentos de defi-
ção do PASNI, em 1985, frente a uma crise de nição de prioridades e do uso do poder de com-
abastecimento ocorrida na primeira metade de pra (MS), de financiamento (BNDES e FINEP) e
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de regulação (INPI, INMETRO e ANVISA), e de políticas nacionais mais abrangentes como a in-
CT&I (MCTI e Fiocruz), além do vínculo com dustrial (MDIC), de Relações Exteriores (MRE),
da área econômica e de decisões que envolviam a
coordenação no âmbito da Casa Civil. No âmbito
dessas, pode-se destacar a mudança da legisla-
Quadro 1. Parcerias para o Desenvolvimento ção de compras ocorrida em 2012, fortalecendo
Produtivo*. Posição em 31/12/2017. o marco legal das PDP (alteração do artigo 24
PDP em execução da Lei 8666 com inclusão do inciso XXXII e do
Medicamentos 67 parágrafo 2º, consolidando, respectivamente, o
Equipamentos e materiais e produtos para 12 mecanismo de transferência de tecnologia e a
diagnósticos atuação das Instituições Públicas).
Vacinas 5 O Quadro 1 apresenta um retrato da situa-
Total Geral 84 ção atual, evidenciando a força da política para
PDP de pesquisa e desenvolvimento** o CEIS, fruto dessa construção histórica. No pre-
Medicamentos 4 sente, 114 parcerias estão aprovadas e vigentes,
Equipamentos e materiais e produtos para 1 sendo que 84 em execução, 25 em fase de forma-
diagnósticos lização dos termos de compromisso e 5 de pes-
Vacinas 0 quisa e desenvolvimento tecnológico. Dentre as
Total Geral 5 parcerias que estão sendo implementadas com
Novas PDP Aprovadas (em fase de formalização) processos em andamento de transferência de tec-
Medicamentos 25 nologias, 67 produtos estão sendo desenvolvidos,
Equipamentos e materiais e produtos para 0 sendo 50 medicamentos com seus respectivos
diagnósticos princípios ativos, 12 equipamentos e materiais e
Vacinas 0 5 vacinas do PNI. Por fim, o Quadro mostra que
Total Geral 25 as parcerias mobilizam um conjunto expressivo
Consolidado das PDP Aprovadas e em Execução de 60 produtores, envolvendo 42 privados e 18
Medicamentos 96 públicos, que implementam as parcerias para os
Equipamentos e materiais e produtos para 13 produtos estratégicos do MS.
diagnósticos O Gráfico 2 mostra que, em termos de entre-
Vacinas 5 ga de produtos, houve uma evolução no período
Total Geral 114 2011/2014, elevando-se 134% em um período de
Produtos em Transferência e Desenvolvimento de 4 anos, representando 35% das compras centra-
Tecnologia nas PDP** lizadas de medicamentos do MS. Os projetos de
Medicamentos 50 PDP, por sua vez, segundo levantamento de cam-
Equipamentos e materiais objetos de PDP 12 po efetuado no período 2012/2013, envolveram
Vacinas 5 a previsão de investimentos de R$ 13 bilhões,
Total Geral 67 somando-se os recursos orçamentários com os
Produtores com Projetos de Parceria Tecnológica créditos fornecidos pelas agências públicas de
nas PDP fomento, com geração de efeito imediato na ati-
Instituições públicas 18 vidade econômica.
Empresas privadas 42 Além desse impacto econômico, é importan-
Total Geral 60 te enfatizar que o objetivo de obtenção de maior
* Parcerias ativas no momento do levantamento e parcerias segurança sanitária e produtiva para o abasteci-
aprovadas em fase de formalização. Parcerias extintas não mento do SUS é intrínseco ao instrumento de
são consideradas. ** O número de PDP e de produtos não PDP, uma vez que reduz as situações estruturais
coincide, pois um mesmo produto pode ser objeto de mais de
uma PDP. Não foram considerados os produtos das novas PDP de oligopólio pela entrada de novos produtores
aprovadas que ainda não se iniciaram. com a participação de instituições públicas. Em
Fonte: Elaborado pelos autores em colaboração com uma perspectiva de longo prazo, as PDP também
Nascimento MAC. Coordenação das Ações de Prospecção
geram maior estabilidade nos preços de aquisi-
da Presidência/Grupo de Estudos sobre Desenvolvimento,
Complexo Econômico-Industrial e Inovação em Saúde da ção frente às oscilações do mercado mundial.
Fiocruz, a partir das informações da Secretaria de Ciência, Em todos marcos normativos desse instrumento,
Tecnologia e Insumos Estratégicos/Ministério da Saúde -
implícitos ou explícitos, há uma previsão de que
SCTIE/MS, 2017. Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo
(PDP) - Ministério da Saúde - Portal da Saúde [Internet]. o preço dos produtos objetos de PDP, quando
Disponível em: http://portalms.saude.gov.br/ciencia-e- entregues ao MS, apresentem uma redução pro-
tecnologia-e-complexo-industrial/complexo-industrial/
gressiva frente ao preço de aquisição do ano que
parceria-para-o-desenvolvimento-produtivo-pdp.
1899

Ciência & Saúde Coletiva, 23(6):1891-1902, 2018


10

8 8,68 8,64
7,13
6
6,35

2 3,06
1,79 2,2
1,31
0
2011 2012 2013 2014

Aquisições de PDP Aquisições do MS

Gráfico 2. Aquisições efetivas de PDP nas compras do MS (R$ Bilhões)

Fonte: Elaborado pelos autores em colaboração com Nascimento MAC. Coordenação das Ações de Prospecção da Presidência/
Grupo de Estudos sobre Desenvolvimento, Complexo Econômico-Industrial e Inovação em Saúde da Fiocruz, a partir doas
informações da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos/Ministério da Saúde - SCTIE/MS, 2017. Grupo Executivo
do Complexo Industrial da Saúde (GECIS) - Ministério da Saúde - Portal da Saúde [Internet]. Disponível em: http://portalms.
saude.gov.br/ciencia-e-tecnologia-e-complexo-industrial/complexo-industrial/grupo-executivo-do-complexo-industrial-da-
saude-gecis

a antecede. Estimativa realizada pela SCTIE/MS coloca uma restrição objetiva: os produtos, cuja
indica que, no período de 2011 a maio de 2017, aquisição seja descentralizada ou cujo horizonte
quando as PDP ganharam escala, a economia tecnológico não seja contemplado pelas capaci-
acumulada do MS foi de R$ 4,68 bilhões, quan- tações das instituições públicas, não podem ser
do se compara os preços do ano anterior às PDP objeto de PDP. Em decorrência, os produtos para
com os praticados após o início de sua imple- atenção básica, muitos equipamentos e materiais,
mentação33. entre outros de execução descentralizada, não
Note-se que os preços dos produtos das PDP, podem ser incluídos no instrumento das PDP,
que inicialmente representam o piso das aquisi- carecendo de outras iniciativas, como é o caso
ções, em função do mecanismo descrito, passam dos medicamentos negligenciados (os tradicio-
imediatamente a representar o teto de referência nais e os “novos negligenciados”, como os para
após sua efetivação. As empresas, cuja posição de tratamento oncológico infantil).
mercado foi afetada, para acesso ao mercado pú- Em síntese, a atuação do Estado para o CEIS
blico, passam a efetuar um ataque de preço para caracterizou uma significativa inovação institu-
deslegitimar e destruir a PDP. Esse mecanismo cional de intervenção sistêmica e de articulação
complexo significa que visões estáticas de com- entre as políticas econômicas e sociais, envol-
paração de preços, que não considerem esse efei- vendo particularmente a política industrial e de
to dinâmico de longo prazo, acabam se tornando inovação e a política de saúde, sob o comando
meios, mesmo que não intencionais, para legiti- desta última. Essa iniciativa ocorreu sobretudo
mar e reforçar a situação anterior de domínio dos pelo estabelecimento de PDP, representando um
oligopólios característicos da saúde. primeiro caminho possível, no contexto da ins-
Observe-se que todos os produtos das PDP titucionalidade do sistema produtivo brasileiro.
fazem parte da demanda do SUS, cujas aquisi- Os dados apresentados permitem afirmar que a
ções são efetuadas (ou são passíveis de serem evolução foi expressiva, mas novos desafios es-
efetuadas) pelo MS. São predominantemente de truturantes ainda se colocam dada a dimensão da
alto custo e maior complexidade tecnológica, ou tarefa de mudar e subordinar o sistema produti-
fazem parte de programas cuja implementação vo da saúde aos requerimentos do SUS.
ocorre no âmbito do Governo Federal. Esse fato
1900
Gadelha CAG, Temporão JG

Comentário final vez ainda mais crucial e passível de generalização,


para evidenciar que o bem-estar não apenas cabe
Esse artigo evidenciou o longo percurso teórico e no PIB, mas pode se constituir numa alavanca de
político que marcou a abordagem do CEIS, con- um padrão de desenvolvimento comprometido
figurando claramente uma práxis. Em termos de com a sociedade e os desafios nacionais38.
sua concepção geral foi fortalecida a agenda em Em que pese a continuidade dos programas
torno da interação entre desenvolvimento, saúde que foram criados, há grandes riscos para a pers-
e inovação, havendo, inclusive, uma série de ini- pectiva que foi construída. Essa partiu da exis-
ciativas acadêmicas que privilegiaram o tema do tência de três pilares estruturantes de sustentação
CEIS e a relação entre desenvolvimento e saúde. e que, no presente, estão sob ataque pelo para-
Foi mobilizado um amplo conjunto de autores digma neoliberal, a saber: a consolidação do SUS
que compartilharam esse tema ou ao menos essa como um sistema universal e com financiamento
preocupação analítica, ainda que preservando, público predominante, a centralidade do desen-
como é natural, uma grande diversidade de en- volvimento da base produtiva nacional e o valor
foques e de perspectivas teóricas e políticas34-37. social e econômico do sistema de CT&I. Sem es-
Certamente muitos outros temas se mostram ses pilares, perde-se o vínculo teórico e político
áreas decisivas para a continuidade desse progra- do CEIS com a construção de um sistema de bem
ma de pesquisa comprometido com a transfor- -estar e de saúde, em particular, que seja autôno-
mação econômica e social, a equidade, a inclusão mo, equânime, inclusivo, economicamente dinâ-
e a sustentabilidade. Referimo-nos especialmen- mico e pautado pela sustentabilidade ambiental e
te à questão global e local da sustentabilidade, o do próprio padrão nacional de desenvolvimento
predomínio da lógica financeira que limita, ao Mais uma vez o campo do conhecimento e da
mesmo tempo, a produção e o desenvolvimen- política devem ser articulados. A conjuntura atu-
to produtivo e o bem-estar, e uma atualização da al impõe a necessidade de enfatizar que a saúde
economia política que envolve o capitalismo em (e o bem-estar) constitui uma oportunidade para
sua fase atual e o CEIS em particular. sair da crise, sendo uma fonte de mudança estru-
Pode-se, enfim, afirmar que o conceito e tural e social, como as matrizes teóricas do CEIS
a abordagem do CEIS estiveram presentes no evidenciam, olhadas sempre pelas lentes estru-
avanço do SUS nas últimas décadas, contribuin- turalistas e sanitárias que marcaram o encontro
do para incorporar uma agenda relacionada, de dos autores desse artigo. Procurou-se fazer jus à
modo amplo, ao padrão nacional de desenvolvi- ousadia e à liberdade de pensamento dos funda-
mento, que envolve a articulação das dimensões dores do campo da saúde coletiva que levaram à
econômicas, sociais e da base produtiva e de ino- criação do SUS como um grande projeto de um
vação. No presente, essa perspectiva se mostra tal- novo padrão de desenvolvimento em nosso País.
1901

Ciência & Saúde Coletiva, 23(6):1891-1902, 2018


Colaboradores Referências

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