Saúde mental, interculturalidade e imigração Sylvia Dantas resumo abstract
Os deslocamentos e seus contatos Displacements and intercultural contact
interculturais apresentam desafios present deep subjective challenges subjetivos profundos tanto para quem both for migrants and receiving migra como para as sociedades que societies. Immigration and refuge entail recebem os novos grupos. A imigração institutional changes the country must be e refúgio demandam mudanças prepared for. Although there are successful institucionais para as quais o país precisa immigrant-receiving initiatives, we also se preparar. Ao lado de iniciativas exitosas witness situations of discriminating, de acolhimento presenciamos situações stigmatizing and pathologizing situations de discriminação, estigmatização e in a society commonly seen as hospitable. patologização por parte de uma sociedade Based on our research at USP and Unifesp comumente vista como hospitaleira. A on intercultural psychological assistance partir de nossas pesquisas na USP e na and counseling to immigrants, returnees Unifesp de atendimento e orientação and refugees, we present the development psicológica intercultural a imigrantes, of a new model for understanding the retornados e refugiados, apresentamos migratory phenomenon, the intercultural a formulação de um novo modelo de psychodynamic approach, and case compreensão do fenômeno migratório, studies to illustrate it. a abordagem intercultural psicodinâmica, ilustrada através de estudos de caso. Keywords: immigration; mental health; psychodynamic intercultural approach. Palavras-chave: imigração; saúde mental; abordagem intercultural psicodinâmica. O s deslocamentos e seus pautado em conhecimento e compreensão contatos interculturais do processo migratório. apresentam desafios sub- A partir de nossas pesquisas na Universi- jetivos profundos tanto dade de São Paulo e na Universidade Fede- para quem imigra como ral de São Paulo baseadas em intervenção para as sociedades que psicossocial de atendimento e orientação recebem os novos gru- psicológica intercultural a emigrantes, imi- pos. A imigração e refú- grantes, retornados e refugiados, apresen- gio demandam mudan- tamos a formulação de um novo modelo ças institucionais para de compreensão do fenômeno migratório. O as quais o país precisa trabalho com pessoas que se deslocaram e os se preparar. No Bra- desafios que apresenta levaram à formulação sil, ao lado de iniciati- do que denominamos de abordagem intercul- vas exitosas de acolhimento, presenciamos tural psicodinâmica. Este modelo constitui situações de discriminação, estigmatização um instrumento teórico-metodológico para e patologização por parte de uma sociedade atuação envolvendo imigrantes. comumente vista como hospitaleira. A fim de adentrar esse universo fazemos A motivação da partida, o momento de uma breve contextualização do tema no Bra- chegada e o ajuste ao novo ambiente envol- sil, apontamos algumas repercussões recen- vem processos psicológicos específicos e a tes da imigração para a sociedade brasileira compreensão dos mesmos é urgente para e em seguida apresentamos nosso percurso que se realize um trabalho preventivo nas instituições que recebem essa população. A chegada de novos grupos ao país e seu impacto precisam ser abordados e com- SYLVIA DANTAS é professora do preendidos a fim de que o Estado possa Departamento de Medicina Preventiva da Universidade Federal de São Paulo implementar políticas voltadas para medi- (Unifesp) e coordenadora do grupo das preventivas que propiciem um contato Diálogos Interculturais do IEA-USP.
Revista USP • São Paulo • n. 114 • p. 55-70 • julho/agosto/setembro 2017 57
dossiê interculturalidades Homenagem
teórico e o modelo desenvolvido ilustrado ram o visto humanitário. Nossa pluralidade
através de estudos de caso. também se dá com emigrantes retornados, brasileiros que voltam depois de residirem BRASIL, UM PAÍS em outro país e sentem-se meio estrangeiros em sua própria terra. Um fluxo grande de PLURAL DE E/IMIGRAÇÃO retornados ocorre quando da crise financeira mundial de 2008, momento em que o país, Somos uma sociedade plural, ou seja, uma parte do Brics, encontrava-se em boom eco- sociedade composta de diferentes grupos nômico. Contudo, em torno de 2012 e com étnicos e/ou culturais. Através da temática a atual crise político-econômica voltamos a migratória revelam-se dinâmicas presentes notar um número considerável de brasileiros na formação da sociedade brasileira. A imi- dirigindo-se para o exterior. Vemos assim gração para o Brasil começa antes mesmo da como o fenômeno da e/imigração é extrema- criação do país, com a vinda de portugueses mente dinâmico e o contato entre culturas, no período colonial. Um país que se forma com as novas tecnologias de comunicação e a partir de relações de dominação colonial, locomoção, ocorre no mundo atual de forma exploração da terra e dos povos originários. rápida e contínua. Pluralidade formada com imigração forçada de povos do continente africano trazidos por RECENTES REPERCUSSÕES regime de escravidão. Outro processo mar- cante em termos da imigração na história do No Brasil, grande parte das ações de Brasil ocorreu paradoxalmente, ao término do acolhimento de imigrantes é realizada por período escravocrata, ou seja, quando havia organizações da sociedade civil de cunho mão de obra de pessoas agora libertas, os religioso. Se, de um lado, o país apresenta governos adotaram políticas de atração de em termos legais posições de abertura para mão de obra imigrante em grande parte da com o imigrante e o refugiado, com o acordo Europa, mas também do Japão. Tais políticas de residência entre países do Mercosul, o encobriam uma agenda de embranquecimento visto humanitário, a promulgação do Esta- da população brasileira. tuto do Refugiado de 1997 e a nova Lei de Em meados dos anos 1980, entramos no Imigração, aprovada em maio de 2017, por cenário internacional pela primeira vez como outro lado, não contamos ainda com uma país de emigração e não só como país de arquitetura institucional de acolhimento no imigração. Um fluxo significativo de brasi- país, conforme aponta Freitas (apud Arantes, leiros deixa o país em busca de melhores 2015). São Paulo, onde há o maior número condições de vida em outras terras. O Brasil de imigrantes no país, é a única cidade bra- é também receptor de refugiados, contando sileira a adotar uma política municipal de atualmente com cerca de 9.950 pessoas de imigração, fruto da mobilização dos movi- 80 nacionalidades, entre sírios, congoleses mentos sociais de imigrantes e organizações e colombianos, segundo o Comitê Nacional sociais e da gestão municipal de 2013 a 2016. para os Refugiados (Conare), do Ministério Dentre as medidas, prevê-se a manutenção da da Justiça, além de haitianos que recebe- rede de Centros de Referência e Acolhida de
58 Revista USP • São Paulo • n. 114 • p. 55-70 • julho/agosto/setembro 2017
Migrantes e Refugiados (Crai), inaugurada rotatividade e não pagar os salários e resci- em São Paulo em 2014 através de parceria sões devidos (Zocchio, 2016). Na área edu- entre município e Serviço Franciscano de cacional, vê-se um aumento significativo de Solidariedade (Sefras), a formação de agentes crianças e adolescentes filhos de imigrantes públicos para garantir atendimento humani- nas escolas municipais e estaduais. Contudo, zado e o Conselho Municipal de Migrante. ao lado de iniciativas exitosas de integração Como apontamos anteriormente (Dantas, por parte de professores e diretores de 2016), na área da saúde os estudos indicam escolas, mencionadas inclusive pelos próprios a importância do Sistema Único de Saúde imigrantes (Dantas, 2016), encaminhamen- (SUS) e da Estratégia Saúde da Família tos para atendimento psicológico de crianças (ESF), que, no nível de Atenção Primária imigrantes por parte dos docentes em São à Saúde (APS), introduziu a contratação de Paulo para unidades de saúde passaram a imigrantes como agentes comunitários de ser recorrentes. Brandalise (2017) indica que saúde que, além de visita à família, também não há um levantamento sobre o número acessam o ambiente de trabalho do imigrante, de encaminhamentos, mas a frequência de o que propiciou maior adesão aos cuidados pedidos de avaliação para diagnóstico de em saúde. Já no âmbito do trabalho, a situ- dislexia, déficit de atenção, deficiência de ação mostra-se bastante crítica. Em 2006 aprendizagem e autismo chama a atenção. foi instalada uma Comissão Parlamentar de Vemos assim a patologização do imigrante, Inquérito (CPI) na Câmara dos Vereadores algo que sabemos ser decorrente de uma de São Paulo com o objetivo de “apurar a não compreensão do processo migratório ou exploração do trabalho análogo ao de escravo resultante de postura preconceituosa. nas empresas, regular ou irregularmente, ins- Ações xenófobas e racistas são comu- taladas em São Paulo”, principalmente no mente relatadas por imigrantes e denuncia- caso de imigrantes bolivianos. De lá para das nos meios de comunicação. O racismo cá, continuam ainda recorrentes casos de brasileiro é denunciado por uma imigrante exploração, grande parte dos imigrantes afri- de camada social abastada, Alexandra Loras, canos e haitianos está empregada na cons- esposa do ex-cônsul francês no Brasil. Loras trução civil e denúncias de acordos abusivos aponta que o preconceito racial não é só por parte de contratantes são recorrentes. uma questão de classe, como muitos ainda Em 2013 a Secretaria Nacional de Direitos querem crer. Por ser negra, foi diversas vezes Humanos publicou o Manual de Recomenda- interrogada quando adentrava espaços tidos ções de Rotinas de Prevenção e Combate ao de privilégio na sociedade paulistana (Norte, Trabalho Escravo de Imigrantes. Em dezem- 2016). Grupos conservadores como os autoin- bro de 2016 o Ministério do Trabalho, por titulados Movimento Brasil Livre e Direita exemplo, notificou o Hospital das Clínicas Brasil exprimem suas posições contrárias ao por 18 infrações trabalhistas após encon- ingresso dos imigrantes no país. Anterior- trar haitianos em trabalho precário em uma mente à sanção da nova Lei de Imigração, reforma no centro cirúrgico do hospital. A esses grupos promoveram marchas contrárias empresa contratada fazia uso sistemático da a ela na Avenida Paulista, um dos principais mão de obra imigrante a fim de manter a logradouros da cidade de São Paulo. Entre
Revista USP • São Paulo • n. 114 • p. 55-70 • julho/agosto/setembro 2017 59
dossiê interculturalidades Homenagem
seus membros e apoiadores há descendentes mente compreensível, posto que a intercultu-
da família imperial brasileira, além de sena- ralidade não deva apartar-se da lógica, mas dores, deputados e jornalistas (Ruediger et não pode reduzir-se a um problema lógico. A al., 2017). Nos discursos de repúdio à nova maioria dos pesquisadores ocidentais ou oci- lei vemos alegações de que ela propiciará dentalizados projeta um pensamento causal a invasão de estrangeiros, entrada massiva e “lógico” sobre as manifestações de outras de “terroristas, comunistas e traficantes”, o culturas que não corresponde à autocom- perigo da modificação da língua materna e a preensão da população local. O pensamento sobrecarga dos serviços públicos. Como men- científico é único e, ainda que possa ser cionamos anteriormente (DeBiaggi, 2004), considerado de excelência em seu próprio em momentos de crise política e econômica, campo, quando o ultrapassa pode destruir o imigrantes, assim como outras minorias, são universo simbólico de outras culturas. muitas vezes usados como bode expiatório, A interculturalidade enfoca a necessidade ou seja, objeto de culpa no sistema social. de privilegiar o diálogo, a vontade da inter- Dessa forma, aspectos dos sistemas sociais, relação e não da dominação. Nesse sentido, como a exploração capitalista, a competição a partir da filosofia propõe-se uma visão e a exclusão (Guareschi, 2009), são oculta- intercultural crítica que implica a descoloni- dos do público a fim de não gerar possível zação dos saberes, a favor de um equilíbrio questionamento ou crítica do sistema vigente. epistemológico no mundo (Fornet-Bitancourt, 2009). Na área do direito, interculturalidade INTERCULTURALIDADE também não se limita, como explica Flo- res (2002), ao necessário reconhecimento “Interculturalidade” é um termo que assi- do outro, mas à resistência aos processos nala uma dimensão de interação, contato de construção de hegemonia e criação de entre pessoas de culturas distintas, de uni- mediações políticas, institucionais e jurídicas versos simbólicos compartilhados. Contudo, que garantam reconhecimento e transferên- como mencionamos anteriormente (Dantas, cia de poder. 2012), dependendo da disciplina, país, con- A psicologia intercultural surge nos anos tinente ou época, o termo contém diferentes 60 a partir da consciência de que grande nuances. Conforme explicam Azibeiro e parte dos estudos na psicologia são formu- Fleuri (2012), a educação intercultural foi lações etnocêntricas, já que baseadas em inicialmente formulada pela Unesco em 1978, grupos ou amostras de pessoas da América propondo uma “educação para a paz” e “pre- do Norte ou da Europa, países hegemônicos venção ao racismo”. A definição vai mais ou centrais quanto à economia e política além quando importantes pensadores da globais, não representando a grande diver- área afirmam que a interculturalidade só se sidade da população mundial, e generaliza- produz quando um grupo começa a entender dos para todos os seres humanos. Produções e assumir o significado que as coisas e os e associações de pesquisadores de língua objetos têm para os outros. Nesse sentido, a inglesa se desenvolvem ao lado de produções abertura para a interculturalidade depende da e associações francófonas de psicologia inter- renúncia a um ideal de uma realidade total- cultural (Fernandez, Dantas & Borges, s/d).
60 Revista USP • São Paulo • n. 114 • p. 55-70 • julho/agosto/setembro 2017
Essa abordagem aplica-se às várias áreas da um sistema cultural, faz-se necessário anali- psicologia, a saber, clínica, social, da saúde, sar a situação socio-histórica que o produz, educacional, organizacional, e é por excelên- pois as culturas nascem de relações sociais cia interdisciplinar. No Brasil seus precurso- que são sempre fruto de sistemas de rela- res estão vinculados à Universidade de São ções desiguais. Toda cultura é um processo Paulo e à Pontifícia Universidade Católica permanente de construção, desconstrução e de São Paulo (DeBiaggi, 2004). O campo, reconstrução que, em tempos de rápidos des- conforme Berry et. al. (1992), é amplo e locamentos e constante contato intercultural, sofreu muitas mudanças. O que o unifica é torna-se extremamente dinâmico. Cultura não a proposição de incorporar a cultura como é um dado, uma herança que se transmite fator fundamental na conduta humana em imutável de geração para geração, e sim uma contraste com a longa rejeição, por parte da produção histórica, isto é, uma construção psicologia, da dimensão cultural. O deno- que se inscreve na história e mais precisa- minador comum corresponde à perspectiva mente na história das relações dos grupos universalizante da suposição de que processos sociais entre si (Cuche, 1999). psicológicos são compartilhados por todos A partir do enfoque intercultural os fenô- os humanos, mas sua forma de desenvolver- menos psicossociais são percebidos de forma -se e expressá-los varia conforme a cultura. ampla, dinâmica e flexível e o desenvolvi- mento humano e suas manifestações são vis- Imigração, processo tos como decorrentes da relação dialética entre o sujeito e os contextos culturais e e saúde mental sociopolíticos (Berry et al., 1992). Os estudos interculturais mostram que o Já em 1982 a OMS deixou claro que fato- contato entre culturas é antes fator de con- res psicossociais têm sido cada vez mais flito do que de sinergia; todos os processos reconhecidos como elementos-chave para o de interação social que envolvem diferentes sucesso de ações sociais e de saúde. Para as sistemas de crenças estão sujeitos a fricções ações serem efetivamente preventivas e pro- (Dantas, 2012). motoras de saúde e bem-estar, precisam estar baseadas no entendimento da cultura, tradi- “Nesses encontros/desencontros culturais ção, crenças e padrões de interação familiar. é toda a articulação do sentido da vida Fica claro que somos seres de relação e de que é posta em xeque, levando a comple- cultura e que o que se passa em nosso mundo xos processos de manutenção, de rejeição e interno está diretamente relacionado ao nosso de negociação relativos a valores, relações entorno. Como explica Flores (2002), a cul- familiares, identidade pessoal e grupal, edu- tura não é uma entidade alheia ou separada cação dos filhos, hábitos alimentares e de das estratégias de ação social, ao contrário, higiene, enfim, a toda realidade humana. A é uma resposta, uma reação à forma como psicologia intercultural, em diálogo com a se constituem e se desenvolvem as relações antropologia, tem resumido numa palavra sociais, econômicas e políticas em tempo e o conjunto desses processos: aculturação” espaço determinados. Assim, na análise de (Paiva, 2004).
Revista USP • São Paulo • n. 114 • p. 55-70 • julho/agosto/setembro 2017 61
dossiê interculturalidades Homenagem
O termo “aculturação psicológica” cunhado Em situações de estresse somos afeta-
por Graves refere-se a esse processo no nível dos e nosso organismo responde alterando o individual de mudança psicológica para mem- equilíbrio de substâncias bioquímicas (como bros de culturas em contato. Essa área de cortisona, serotonina e adrenalina), causando estudo vem ganhando amplitude, havendo dois desde uma cefaleia até doenças graves. É manuais de psicologia da aculturação. Contri- comum que ocorram aumento de ansiedade, buímos para o segundo manual com capítulo depressão, sentimentos de marginalização e sobre aculturação no contexto da América alienação, aumento de sintomas psicossomá- Central e do Sul (Espinosa & Dantas, 2016). ticos e confusão identitária. Daí a utilidade A aculturação psicológica consiste em do modelo de estresse de aculturação, já que um processo de ressocialização pelo qual os conflitos aculturativos variam em função os indivíduos passam decorrente de uma de um conjunto complexo de fatores con- mudança de contexto cultural. O contato textuais e pessoais. contínuo com outra cultura representa uma Diversos fatores mediam a relação entre ruptura expressiva do quadro de referência, aculturação e estresse, conforme descrito sentido e pertencimento anterior. A mudança anteriormente (DeBiaggi, 2005). Nesse impõe um ajustar-se ao novo ambiente. sentido, o modo de aculturação (integração, Reaprender outras formas do que antes assimilação, separação, marginalização), a era parte da rotina torna-se um desafio à fase de aculturação (contato, conflito, crise, memória-hábito, isto é, esquemas de com- adaptação) em que a pessoa se encontra, a portamento registrados no corpo e de que natureza da sociedade majoritária, podendo se vale geralmente automaticamente, que ser desde uma sociedade multicultural, em faz parte de todo nosso aprendizado cul- que as diversidades são respeitadas e valo- tural (Bosi, 2003). Portanto, quando esse rizadas, até uma sociedade assimilacionista, contato envolve o aprendizado de uma nova em que se impõe a cultura majoritária como língua, estamos falando de uma língua não única forma possível. Em uma sociedade pre- só verbal e escrita, mas de uma linguagem conceituosa e discriminatória, o preconceito corporal e não verbal. Conforme os estudos pode girar em torno de fenótipo, aparência, em psicologia intercultural, o contato é natu- cor de pele ou em relação a gênero, geração, ralmente gerador de estresse. O estresse de etnias ou nacionalidades consideradas infe- aculturação refere-se a um tipo de estresse riores. Alguns grupos em aculturação podem em que os fatores estressantes são identifi- ser mais aceitos e colocados no patamar cados como tendo sua origem no processo mais alto na hierarquia de prestígio e outros de aculturação, podendo reduzir o estado de ocuparem os níveis mais baixos no sistema saúde do indivíduo tanto físico como men- de preconceitos da sociedade. Outro fator tal. Os estudos mostram que problemas de são as políticas existentes com relação aos saúde mental geralmente emergem durante grupos em aculturação da sociedade (acesso a a aculturação, contudo esses problemas não saúde, moradia, direitos políticos), que podem são inevitáveis e dependem de uma série excluí-los, gerando altos níveis de estresse de de características contextuais e individuais aculturação. Muitos imigrantes encontram-se envolvidas no processo de aculturação. na condição de indocumentados, e em alguns
62 Revista USP • São Paulo • n. 114 • p. 55-70 • julho/agosto/setembro 2017
países políticas conservadoras criminalizam seus pais e a da nova sociedade. Em termos a imigração, gerando alto grau de ansiedade de características pessoais, aspectos cogni- para quem se encontra nessa condição. Se a tivos, suas crenças, construções e atitudes imigração foi planejada ou forçada, é fator são apontados na perspectiva intercultural, também fundamental. O contraste cultural em geral de orientação cognitivista. Através entre as sociedades de origem e receptoras, de nosso trabalho de intervenção psicosso- incluindo a língua maior, é o desafio acul- cial com imigrantes, a psicodinâmica do turativo. Assim, a experiência intercultural participante e da relação com o terapeuta anterior, o conhecimento da língua ou da ou facilitador mostrou-se fundamental. Daí cultura são fatores que amenizam o impacto. o desenvolvimento do modelo intercultural Com relação ao grupo em aculturação, a psicodinâmico (Dantas, 2008; 2012). presença e a possibilidade do apoio de redes sociais – já que estas funcionam como pro- Abordagem intercultural vedoras de companhia social e apoio emocio- psicodinâmica nal – fornecem guia cognitivo e conselhos, favorecem a resolução de conflitos, fornecem ajuda material e serviços e acesso a novos É princípio imperativo da abordagem contatos, além do importante aspecto do intercultural basear os estudos a partir dos reconhecimento identitário. Redes não só contextos culturais em questão. Necessária locais, mas também transnacionais. uma compreensão etnográfica das culturas Em termos de classe social, frequente- em contato a fim de entender o indivíduo. mente a imigração gera uma mobilidade Como abordagem, utiliza uma ampla base descendente, ou seja, há um rebaixamento de teorias, pois, ao contrário do que muitos em relação ao status social anterior, com pensam, não é uma teoria, mas um conjunto subemprego ou desemprego, uma inser- único de métodos. A partir do trabalho do ção em condição de precariedade na nova linguista K. L. Pike, denomina-se metodo- sociedade. Os estudos também apontam logia êmica e ética (de fonêmica e fonética). que a faixa etária é um importante fator Nesse sentido, parte-se de uma abordagem relacionado ao estresse entre imigrantes. Pes- êmica (considerando aspectos específicos da soas que imigram antes dos 12 anos estão cultura, estuda-se o comportamento a par- menos suscetíveis às tensões decorrentes tir do interior do sistema; examina-se uma dessa experiência. Nesse sentido, imigrantes cultura apenas; o analista descobre que a podem ser descritos como tardios, quando estrutura e os critérios são relativos às carac- a mudança ocorre depois dos 12 anos, ou terísticas internas), e de uma abordagem ética precoces, se imigraram antes dos 12. Os (aspectos gerais, em que se estuda o compor- estudos mostram que imigrantes tardios, tamento de uma posição externa ao sistema; assim como indivíduos da segunda gera- examinam-se mais culturas, comparando-as ção, sofrem maior grau de estresse quando umas com as outras; o analista cria a estru- comparados aos imigrantes precoces e tura; os critérios são considerados absolutos indivíduos da terceira geração. A segunda ou universais). Assim, busca-se o universal geração fica presa entre duas culturas, a de a partir da compreensão do particular.
Revista USP • São Paulo • n. 114 • p. 55-70 • julho/agosto/setembro 2017 63
dossiê interculturalidades Homenagem
“A vertente êmica desenvolveu-se como genciada, favorecendo um objetivo implícito
psicologia cultural, e a vertente ética como de um maior grau de conformismo dire- psicologia intercultural que, a partir de um cionado ao indivíduo considerado social e ético provisório, aborda os êmicos culturais culturalmente distinto do padrão dominante. e deles deriva um novo ético mais abran- Esses eixos baseiam-se no pressuposto da gente” (Paiva, 2004). abordagem intercultural que questiona as formulações etnocêntricas das teorias psi- Conforme mencionamos em outros tra- cológicas vigentes e, portanto, suas meto- balhos (Dantas, 2012), em termos de inter- dologias e técnicas. venção psicossocial, o campo da terapia e Sue (apud Sunddberg, 1986) aponta cinco da orientação intercultural é uma área con- características de orientadores culturalmente siderada emergente em razão de seu poten- efetivos: autoconhecimento, especialmente cial. É um campo que se pauta no desafio a quanto às próprias suposições acerca do que considerarmos nossos pressupostos, valores considera condutas adequadas e inadequa- e métodos como culturalmente limitados e, das; consciência das características gerais portanto, a serem colocados em suspenso da terapia e sua relação com a cultura e no encontro intercultural. O desafio para o classe social; habilidade de compartilhar da profissional que se lança para além de seu visão de mundo do cliente e não estar cul- milieu cultural é o peso que dará ao uni- turalmente encapsulado; compreensão das versal e ao culturalmente específico e como forças sociopolíticas que afetam os clientes, mudar de uma referência à outra ou como especialmente racismo e opressão; domínio combinar ambas. Assim, passos no sentido eclético de técnicas e teorias, e capacidade êmico levantam a questão da universalidade de escolher qual é a mais apropriada para na psicoterapia no plano dos conceitos, técni- o cliente em particular. cas, objetivos e valores. Daí a necessidade de Em nosso trabalho de intervenção psi- voltarmo-nos para a direção ética, mas com cossocial voltada para população migrante uma base sólida e cientes de nossa inevitável utilizamos a técnica de psicoterapia breve formação cultural. Além do eixo êmico-ético, psicodinâmica (Fiorini, 1985), que vem ao a orientação e a psicoterapia intercultural encontro das características acima descritas, definem-se pelo eixo autoplastic-alloplas- além de enfatizar as reações contratransfe- tic, o qual se refere a nossas respostas a renciais1 por parte do terapeuta. Portanto, o situações em que mudamos a nós mesmos profissional deve abordar essa situação com (autoplastic) ou o ambiente (alloplastic), ou o máximo de autopercepção; não basta estar combinando estas duas operações em dife- disposto a escutar e conhecer o outro, há de rentes proporções. conscientizar-se dos aspectos interculturais, As psicoterapias ou orientações entre cul- a fim de que não seja capturado por posicio- turas muitas vezes estão norteadas a mudar namentos etnocêntricos. A intervenção psi- o indivíduo em oposição a tê-lo mudando cossocial tem um caráter preventivo primário o ambiente. A possibilidade de estender o campo de ação do indivíduo no sentido de 1 Refere-se a sentimentos que o paciente mobiliza nos mudar o externo foi em grande parte negli- núcleos inconscientes do analista (Zimmerman, 2001).
64 Revista USP • São Paulo • n. 114 • p. 55-70 • julho/agosto/setembro 2017
em que supomos a prevenção da doença, Interessante lembrar que a palavra “crise” ou seja, uma psicoprofilaxia que se define em chinês é formada por dois ideogramas, com o emprego de recursos psicológicos por em que um significa perigo e o outro, oportu- parte de psicólogos para prevenir doenças nidade. Há, portanto, a possibilidade de essa (não só doenças mentais), sendo parte da crise ser insuperável, devido a uma série de saúde pública e instrumento de promoção da fatores situacionais e internos, assim como saúde. E um caráter preventivo secundário, a possibilidade de a mudança poder signifi- em que, a partir do diagnóstico precoce, se car ampliação do self, transformação. Nos- oferece assistência para melhora. sos estudos envolvendo a questão de gênero Através do trabalho clínico psicossocial apontam nessa direção, em que a imigração formulamos a articulação entre a abor- possibilitou processo de afirmação identitária dagem intercultural e a psicodinâmica. e emancipação (Dantas, 2009). Dessa forma não deixamos de observar os Estar entre dois mundos culturais significa aspectos latentes do inconsciente daquele adentrar diferentes jogos de espelho reali- com quem trabalhamos e compreender seu zados pelos outros. Somos introduzidos à mundo interno de relações objetais, suas cultura através das figuras primárias com as fantasias e seus mecanismos de defesa rela- quais nos identificamos e essas identificações2 tivos às ansiedades paranoides desperta- vêm carregadas de afeto. Fundamental com- das diante do novo e do desconhecido, preendermos quão profundo é o fato de que ansiedades depressivas diante das perdas nosso senso de identidade é desenvolvido a decorrentes do deslocamento e ansiedades partir da conexão com os outros, como apon- confusionais diante da inabilidade de dis- tam Grinberg e Grinberg (1989) e Winnicott tinguir entre o velho e o novo, as motiva- (1975). Ao mudarmos de cultura é como se ções manifestas e latentes de uma mudança viéssemos ao mundo novamente, pois, como (Grinberg & Grinberg, 1989). Realiza-se, mencionamos anteriormente, adentramos um portanto, uma compreensão psicodinâmica novo modus operandi social. O espelhamento do caso e de suas manifestações. O impacto que recebemos por parte dos membros da que a migração tem no senso de identi- sociedade hospedeira pode afetar tanto posi- dade do indivíduo e a crise decorrente tiva quanto negativamente o sentimento de dependerão também desses fatores inter- competência e valorização do self. nos. A crise constitui o que Bion chama O processo aculturativo envolve identifi- de mudança catastrófica, que pode levar à cações conscientes e inconscientes que estão catástrofe ou ao desenvolvimento criativo constantemente em jogo e geram mudanças e seu mais profundo significado, o enri- internas, mudanças em nosso mundo interno. quecimento do eu, o “renascimento”, o que Não raro, quando se volta ao país de origem, permite à pessoa poder voltar a “casar” consigo mesma. Contudo, a articulação com a abordagem intercultural nos coloca em 2 As identificações são um “processo psicológico pelo qual um indivíduo assimila um aspecto, uma proprie- lugar de atenção às suposições psicodinâ- dade, um atributo do outro e se transforma, total ou micas, uma vez que as mesmas são fruto parcialmente, segundo o modelo dessa pessoa. A per- sonalidade constitui-se e diferencia-se por uma série da chamada cultura ocidental. de identificações” (Laplanche & Pontalis, 1983, p. 295).
Revista USP • São Paulo • n. 114 • p. 55-70 • julho/agosto/setembro 2017 65
dossiê interculturalidades Homenagem
após residir em outra cultura, o estranha- da baixa remuneração salarial, do racismo e
mento ocorre em relação à sociedade de do preconceito social. Ficou hospedada na origem já que o migrante não se dá conta do casa de uma prima que é casada. Relata com processo e da mudança pelos quais passou. espanto que havia uma empregada doméstica O processo aculturativo é também interge- para quem pagavam um salário mínimo e sua racional. Questões da geração anterior são prima reclamava que a empregada não trazia transmitidas inconscientemente à próxima sua própria comida. “Como que alguém que geração e, quando não elaboradas, tornam- leva duas horas para chegar ao trabalho vai -se sintomas. levar almoço? Limpa o banheiro deles e não pode fazer uma refeição? E estava com ESTUDOS DE CASO um problema de saúde na perna e eles não eram capazes de aumentar um pouco o salá- rio para ajudá-la no tratamento, mas gastar Citaremos brevemente alguns estudos de para sair, tomar vinho, tudo bem.” Patrícia caso através dos quais pretendemos ilustrar mostra-se uma observadora perspicaz em alguns aspectos apontados com relação à relação à sociedade brasileira. Contudo, a abordagem intercultural psicodinâmica que frustração – e indignação – diante do que propomos. observa de forma apurada, frustração sen- tida por muitas pessoas que retornaram ao Retorno país, conforme demonstramos anteriormente (DeBiaggi, 2004), a leva a ficar fora de si. “Who am I, who?” (“Quem sou eu, Ao perguntar-lhe se isso já havia ocorrido quem?”), Patrícia pergunta gritando a mim antes, Patrícia conta de episódios em que em estado exaltado e tom agressivo, tomada chegou a bater e agredir pessoas sem se de irritação, um grau de frustração incon- dar conta. Em função do término do ano tido. Percebo a apreensão da estagiária de acadêmico, realizamos cinco sessões. Nesse psicologia que acompanha o atendimento. A breve tempo ela é capaz de entender que pergunta vem depois de Patrícia comentar viveu um momento importante de sua vida que nos EUA ela era vista como brasileira e nos EUA, sendo, portanto, tanto brasileira aqui é considerada americana. Retorna por como americana, ou seja, bicultural, e de questões familiares. Busca nosso auxílio por entrar em contato com seu funcionamento, dizer que já está há três anos no Brasil e não como lida com a frustração. Seu retorno se sente bem, quer voltar a ser a pessoa que para o Brasil tem um significado profundo, fora antes, quando via as coisas de forma pois sua história familiar está relacionada à positiva, pois agora está bitter (amarga). Não sua forma de funcionar. Às vezes é preciso entende por que a vida não está dando certo regressar para prosseguir. Segundo o psi- aqui, pois considera o Brasil como seu país. quiatra e terapeuta familiar Murry Bowen, Tendo lido em notícias jornalísticas sobre conforme lembra Leifert (2002), os rela- nosso trabalho na universidade com retor- cionamentos não resolvidos com nossas nados, nos procura. Comenta espantada que famílias de origem são os mais importan- existem muitas coisas erradas no Brasil. Fala tes negócios inacabados de nossas vidas:
66 Revista USP • São Paulo • n. 114 • p. 55-70 • julho/agosto/setembro 2017
onde quer que estejamos, os padrões relacio- temporário. “É, mas já faz dois anos. [...] nais familiares permanecem dentro de nós. Finalmente alguém também contra o remé- Patrícia consegue lidar com a frustração dio.” Em conversa com o psiquiatra que lhe de não ser possível receber atendimento de atendeu, sou informada de que lhe foi pres- longa duração no programa e prontamente crito estabilizador do humor para tratamento inicia sua terapia com profissional que lhe dos estados afetivos do transtorno bipolar. indicamos, tendo aproveitado o que pôde Em breve momento de introspecção, digo conhecer sobre si e sobre a situação do que ela está triste. Faço um rápido resgate retorno nas sessões realizadas. da história familiar, uma família em que os membros se encontram dispersos, uma Refúgio e imigração humanitária família atravessada pela questão do refúgio. Ela fica nesse momento serenamente triste. “Ah, ela escutava, mas não falava nada. Um momento de integração interna. Vejo Depois deixei de ir”, relata Samya, uma uma moça e não uma tresloucada como tem adolescente em situação de refúgio, quando se apresentado, provavelmente atuando uma indagada sobre atendimentos terapêuticos profecia autorrealizável. Ela me pergunta: anteriormente realizados. Algo expresso “Por que fico triste?”. Digo que porque ela é também por outros refugiados. Conjectu- humana. “Isso dá uma poesia, posso roubar?” ramos que o silêncio do profissional pode Digo que é uma produção nossa, conjunta. Ela ocorrer em função de concepção pautada em sai alegre da sessão, me agradece e manda técnica psicanalítica mais ortodoxa ou pelo um beijo. Alguns minutos depois retorna fato de o profissional não encontrar formas esbaforida reclamando de dor na cabeça. de intervir devido à incompreensão do que Falo para sentar-se e respirar, ela me olha se apresenta. Ela diz que não para de pen- e diz: “Por que eu não tenho esperança?”. sar em Deus e se não pensar em Deus vai Digo que ela tem esperança, senão ela não morrer. Diante de um discurso fragmentado estaria aqui. Num momento em que se sente e disperso, é preciso narrar histórias. É pre- compreendida e acolhida é capaz de entrar ciso dar a possibilidade do fio da meada. em contato com sua angústia e verbalizá-la, Conto minhas histórias, inclusive de iniciação resgatar sua humanidade extirpada. religiosa motivada por familiares católicos e meus questionamentos na época. Ela me Joseph é um rapaz que está no Brasil pergunta se creio em Deus. Digo que creio através de visto humanitário. Após sofrer em algo cósmico ligado à natureza. É pre- violência física e verbal por parte de jovens ciso um encontro entre pessoas concretas de brasileiros, procura atendimento. Vemos que realidades culturais distintas. Ela se acalma. a imagem da cena da agressão invade seu Em outra sessão, diz que está cheia de coisas espaço mental e o destitui da capacidade que entram e saem da cabeça. “Estou can- de pensar, assim como outros imigrantes sada.” Mostra-se avessa à medicação que refugiados ou com visto humanitário que lhe foi prescrita. Digo que o remédio não vai também sofreram agressões físicas e ver- tomar conta dela, o remédio a ajuda quando bais. Paradoxalmente, o Brasil foi o país que a cabeça está confusa, mas pode ser algo supostamente os recebeu. Através do aten-
Revista USP • São Paulo • n. 114 • p. 55-70 • julho/agosto/setembro 2017 67
dossiê interculturalidades Homenagem
dimento, Joseph é capaz de observar a ação frente ao desconhecido, ao diferente, é menos
impregnante dessas imagens e refletir sobre produto daquilo que não conhecemos do que elas. Imagens, sensações e dizeres internali- daquilo que não queremos e não podemos zados intoxicantes, que adquirem conotações reconhecer em nós mesmos”. A imigração superegoicas e com os quais a pessoa fica é uma oportunidade para que as sociedades, desconectada de si, destituída de sua pró- hoje cada vez mais plurais, possam se repensar pria existência e submetendo-se à intenção por meio dos espelhamentos mútuos que todo sádica dos agressores de acreditar que não contato intercultural propicia. Esse espelha- tem direito a um lugar nesse mundo. Teo- mento envolve as instituições que recebem os ricamente o país de acolhimento através de imigrantes e que precisam também atualizar- visto humanitário ou refúgio pressupõe que -se, repensar suas culturas institucionais no o imigrante possa sentir-se seguro. Vemos sentido de trabalharem com os impactos e os uma realidade longe disso. Vive-se um duplo desafios que lidar com pessoas de bagagem trauma. Estudos apontam que transtornos cultural distinta requer. pós-traumáticos emergem quando a sociedade Essa realidade, quando naturalizada como de recepção não oferece direitos efetivos aos problema e trauma, denota uma incompre- refugiados (Hocking, Kennedy & Sundram, ensão da amplitude do fenômeno. Sejamos, 2015). É importante termos em mente esse portanto, cautelosos a fim de não patologizar, contexto do qual fazemos parte, compre- estereotipar ou exotizar o outro. Aspectos ender o momento histórico do país e suas culturais ficam essencializados e absoluti- implicações para a saúde mental daqueles zados como se não fôssemos seres de pro- que sofrem com a dupla tentativa de anula- cesso e, portanto, dinâmicos. Deparamo-nos ção. O atendimento é uma afirmação desse com ideários teóricos e técnicos pautados lugar de direito através de uma compreensão em atitudes assimilacionistas, como se dis- efetiva e afetiva. sessem: “Se veio para cá, que se ajuste ao modus vivendi e às formas de tratamento”. A POSSIBILIDADE O exercício da empatia é fundamental. Ama- nhã todos podemos estar nessa situação e, DE UM NOVO OLHAR então, o que seria melhor? Ser acolhido com compreensão das implicações do processo Buscamos através deste artigo apresentar aculturativo ou ficar diante de um olhar que o enfoque intercultural psicodinâmico que espera uma assimilação à cultura vigente, desenvolvemos a partir de trabalho psicos- no sentido de anular formas outras de ser, social com imigrantes, descendentes de imi- pensar e sentir? grantes, emigrantes, refugiados e retornados. O Brasil carece de políticas públicas Conforme mencionamos, os deslocamentos e que sejam efetivas para que nossa plurali- seus contatos interculturais apresentam desa- dade, que nos define historicamente, possa fios subjetivos profundos tanto para quem ser valorizada e, assim, propiciar uma vida imigra como para as sociedades que rece- de sentido e pertencimento a todos, o que bem os novos grupos. Como observa Crochik está diretamente relacionado à nossa saúde (2006, p. 14), Freud nos ensinou que “o medo mental como indivíduos e estrutura social.
68 Revista USP • São Paulo • n. 114 • p. 55-70 • julho/agosto/setembro 2017
Conforme mencionamos em entrevista ao clima emocional se torna outro. Na sala de O Estado de S. Paulo: aula toda, passa a ser de acolhida”.
“Quando o professor troca o olhar de descon- Em nossa prática a importância dessa
forto pelo de compreensão, a criança percebe, postura, a partir da abordagem intercultu- pois ela acaba de se mudar, está muito sen- ral, tem-se mostrado indispensável para que sível à forma como olham para ela. E então não sejamos reprodutores de visões que, mal o olhar do professor passa a acalmá-la. O percebemos, espelham modelos advindos de professor também se acalma com isso, e o nossa herança colonial.
Bibliografia
ARANTES, J. Imigrantes: As Brechas para o Acolhimento. Agência Fapesp, 2015.
AZIBEIRO, E.; FLEURI, R. “Paradigmas Interculturais Emergentes na Educação Popular”, in S. Dantas (org.). Diálogos Interculturais. São Paulo, IEA-USP, 2012, pp. 219-45. BERRY, J. et al. Cross-cultural Psychology: Research and Applications. Cambridge, Cambridge University Press, 1992. BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade. São Paulo, Companhia das Letras, 2003. BRANDALISE, V. “Autista Não, Imigrante”, in O Estado de S. Paulo. São Paulo, 19/mar./2017, pp. 1-20. Disponível em: http://educacao.estadao.com.br/noticias/geral,autista- naoimigrante,70001705273. Acesso em: 24/07/2017. CROCHIK, J. L. Preconceito, Indivíduo e Cultura. São Paulo, Editora Casa do Psicólogo, 2006. Cusche, D. O Conceito de Cultura nas Ciências Sociais. Bauru: Edusc, 1999. DANTAS, S. “Mulheres entre Culturas e seu Mundo Emocional: A Possibilidade de Ouvir a Própria Voz ou o Silenciar do Eu”, in Oralidades Revista de História Oral, v. 6. São Paulo, USP, 2009, pp. 10-22. Disponível em: http://diversitas.fflch.usp.br/sites/diversitas.fflch. usp.br/files/2019-09/Oralidades%206.pdf. Acesso em: 10/11/2017. . Diálogos Interculturais. Reflexões Interdisciplinares e Intervenções Psicossociais. São Paulo, IEA-USP, 2012. Disponível em: www.iea.usp.br/pesquisa/grupos/dialogos- interculturais/.../dialogosinterculturais.pdf. Acesso em: 24/07/2017. . “Imigrantes, Retornados, Refugiados: Contatos e Dinâmicas no Sudeste Brasileiro”, in A. Zimerman (org.). Impacto dos Fluxos Imigratórios Recentes no Brasil. Santo André, Editora UFABC, 2017, pp. 65-79. Disponível em: http://biblioteca.ufabc. edu.br/index.php?codigo_sophia=104035. Acesso em: 11/07/2017. DEBIAGGI, S. D. Changing Gender Roles: Brazilian Immigrant Families in the U.S. New York, LFB Scholarly Publishing, 2002. . Psicologia, E/Imigração e Cultura. São Paulo, Editora Casa do Psicólogo, 2004. . “Migração e Implicações Psicológicas: Vivências Reais para o Indivíduo e o Grupo”, in Travessia Revista do Migrante, ano XVIII, n. 53. CEM, 2005, pp. 16-20.
Revista USP • São Paulo • n. 114 • p. 55-70 • julho/agosto/setembro 2017 69
dossiê interculturalidades Homenagem
. “Nikkeis entre o Brasil e o Japão: Desafios Identitários, Conflitos e Estratégias”,
in Revista USP, n.79, p. 165-172, 2008 DRAGUNS, J. “Cross-cultural Counseling and Psychotherapy: History, Issues, Current Status”, in A. Marsella; P. Pederson (eds.). Cross-cultural Counseling and Psychotherapy. New York, Pergamon Press, 1986. ESPINOSA, A.; DANTAS, S. “Acculturation in Central and South America”, in D. Sam; J. Berry. The Cambridge Handbook of Acculturation Psychology. Cambridge, Cambridge University Press, 2016. FERNANDEZ, E.; DANTAS, S.; BORGES, L. “As Abordagens Interculturais como Novo Campo de Saber e Atuação do Psicólogo”, in R. Xipas; E. Costa-Fernandez; C. Marques- Laurendon (orgs.). Comunicação e Interculturalidade. Recife, UFPE, s/d. FIORINI, H. Teorias e Técnicas de Psicoterapias. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1985. FLORES, J. F. “Direitos Humanos, Interculturalidade e Racionalidade de Resistência”, in Revista do Curso de Pós-Graduação em “Derechos Humanos y Desarrollo”. Sevilha, Universidad Pablo de Olavide, 2002.Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index. php/sequencia/article/view/15330/13921 Acesso em: 11/7/2017. FORNET-BITANCOURT, R. “De la Importancia de la Filosofia Intercultural para la Concepción y el Desarollo de Nuevas Políticas Educativas en América Latina”, in J. Viaña et al. Interculturalidad Crítica y Descolonización. Fundamentos para el Debate. La Paz, III CAB, 2009. GRINBERG, L.; GRINBERG, R. Psychoanalytic Perspectives on Migration and Exile. New Haven, CT, Yale University Press, 1989. GUARESCHI, P. “Pressupostos Psicossociais da Exclusão: Competitividade e Culpabilização”, in B. Sawaia. As Artimanhas da Exclusão. Petrópolis, Vozes, 2009. HOCKING, D.; KENNEDY, G.; SUNDRAM, S. “Mental Disorders in Asylum Seekers the Role of the Refugee Determination Process and Employment”, in The Journal of Nervous and Mental Disease, vol. 203, n. 1, 2015. LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J.-P. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo, Martins Fontes, 1983. LEIFERT, G. “Migração de Retorno: Psicoterapia Breve de Jovens Brasileiros. Um Diálogo entre Psicologia Intercultural e Construcionismo Social”, in S. Dantas (org.). Diálogos Interculturais, 2012, pp. 315-36. Disponível em: www.iea.usp.br/pesquisa/grupos/ dialogos-interculturais/.../dialogosinterculturais.pdf Acesso em: 24/7/2017. NORTE, D. “O Brasil É o País Mais Racista do Mundo”, in Veja. Disponível em: https:// complemento.veja.abril.com.br/entrevista/alexandra-loras.html. Acesso em: 02/6/2017. RUEDIGER, M. et al. “O Debate sobre a Lei de Migração”, 2017. Disponível em: http:// bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/18340. Acesso em: 20/6/2017 SUNDDBERG, D. “Cross-cultural counseling and psychotherapy: A research overview”, in A. Marsella; P. Pederson (eds.). Cross-Cultural Counseling and Psychotherapy. New York, Pergamon Press, 1986. WINNICOTT, D. O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro, Imago, 1975. ZIMMERMAN , D. Vocabulário Contemporâneo de Psicanálise. Porto Alegre, ATMED, 2001. ZOCCHIO, G. “Fiscais Flagram Haitianos em Trabalho Precário no Hospital das Clínicas de SP”. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2016/12/1839013-fiscais- flagram-haitianos-em-trabalho-precario-no-hospital-das-clinicas-de-sp.shtml. Acesso em: 20/6/2017.
70 Revista USP • São Paulo • n. 114 • p. 55-70 • julho/agosto/setembro 2017