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A HISTÓRIA DE RAFAEL ILHA: O CONSUMO DE PSICOATIVOS SOB

ASPECTOS SIMBÓLICOS DE CLASSE SOCIAL NO BRASIL

Igor de Souza Rodrigues1

RESUMO

O caso do cantor Rafael Ilha não é apenas um incidente cujas justificativas


estão fundadas em fatores intrinsecamente pessoais, como uma leitura
meramente biográfica poderia supor; contém questões sociais da narrativa
sobre o crack no Brasil que estrutura o individual e, ao mesmo tempo, está
estruturada por ele. O caso, como propõe este artigo, pode ser pensado a partir
de conformações simbolicamente complementares – “extremos que se
encontram”: o usuário afortunado, o famoso vs. o paupérrimo, o esquecido.
Conforme se discute, o crack ficou conhecido na década de 1990 no Brasil,
especialmente através dos jornais de São Paulo: a Folha de S. Paulo e O
Estado de S. Paulo. Neste contexto, Rafael foi conformado como parte
estruturante na construção da agenda pública sobre a droga: sua relevância
individual se contrapõe à lógica nebulosa como os paupérrimos eram
retratados, cuja miséria os tornava indistintos para o senso comum, boa parte
da imprensa e a atenção pública. A abordagem se justifica pelo fato de que,
além da notoriedade que chamou atenção política para o crack, trata-se de
uma expressão exemplificativa das distinções discursivas entre usuários de
drogas dentro dos simbólicos de classe social no Brasil.

Palavras-chave: crack; Rafael Ilha; usuários de drogas; representações


jornalísticas.

ABSTRACT

The case of singer Rafael Ilha is not just an incident whose justifications are
based on personal factors, as a biographical interpretation might suppose;
contains social issues from the narrative about crack in Brazil that is being built
the individual and is built by it. The case, as this article proposes, can be
thought of from symbolically complementary conformations – “extremes that
meet”: the rich user, the famous verses the poor, the forgotten. As discussed,
crack became known in Brazil in the 1990s, especially through São Paulo
newspapers: Folha de S. Paulo and O Estado de S. Paulo. In this context,
Rafael was formed as a structuring part in the construction of the public agenda
on drugs: his individual relevance is opposed to the confused logic with the poor
1 Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
people were portrayed, whose misery made them indistinct for common sense,
much of the press and public attention . The approach is justified by the fact
that, in addition to the notoriety that drew political attention to crack, it is an
example of the discursive distinctions between drug users within the symbolic of
social class in Brazil.

Keywords: crack; Rafael Ilha; drug users; journalistic representations.

INTRODUÇÃO

Da mais a menos conservadora, a ciência social é bastante consensual


em admitir que não há como se estudar a vida de um indivíduo sem considerar
a dimensão de sua inserção. A própria particularização “indivíduo” é relacional
na medida em que a subjetividade emerge quando ações conscientes e
inconscientes são consideradas em um contexto de espaço-tempo. Se o
funcionalismo durkheimiano operava com pressupostos reducionistas em
direção descendente do todo para o indivíduo, pensando a ação como parte
derivada e, ao mesmo tempo, incapaz de remontar o todo ao ser reunida; as
teorias da escolha racional articulavam concepções reducionistas ascendentes,
no qual a realidade social estaria fundada na formulação do indivíduo
supostamente mais livre e suas interações, um campo amplamente dominado
pela escolha e lógicas subjetivas – mas em ambos os casos o contexto
histórico e as relações sociais são fundamentos analíticos da produção do
indivíduo.
A problemática da trajetória dos sujeitos frente ao todo social é uma
constante atravessada nas discussões das ciências sociais. As teorias do
historiador Carl Schorske, que empregou conceitos retomando o pensamento
dialético frankfurtiano, por exemplo, busca compreender a história de dado
objeto como o produto de um fio diacrônico, dadas as interferências anteriores
que conformam sua apreensão enquanto história – a relação sequencial tempo
após tempo; e um fio sincrônico, das relações e influências simultâneas que o
objeto está submetido – a relação contextual (SCHORSKE, 1988, p. 17-18). A
conexão entre os objetos e referenciais encaminha uma compreensão de
trajetória concebida na ideia de relação, narrativa histórica ou de transformação
processual, afastando, assim, uma espécie de fragmentação do indivíduo ou da
estrutura.
No campo da ação, a teoria disposicional de Pierre Bourdieu (1989), que
distenciona a objeção entre ação e estrutura no mundo social, pode ser
extremamente útil para debater uma série de hipóteses nas quais a ciência
social se aprofundou: a da livre racionalidade do indivíduo, da escolha racional,
e do reducionismo funcionalista. Bourdieu desarticula a trajetória enquanto fator
singularmente biográfico – o que chama de “a ilusão biográfica” – posições
sucessivamente ocupadas pelo mesmo agente, por si suficientes para explicar
a sucessividade de eventos, uma eliminação do aspecto sincrônico. Segundo
Bourdieu (1998, p.189), tentar compreender uma vida como uma série única e
por si suficiente de acontecimentos sucessivos, sem outro vínculo que não a
associação a um "sujeito" é quase tão absurdo quanto tentar explicar a um
trajeto no metrô sem levar em conta a estrutura da rede, isto é, a matriz das
relações objetivas entre as diferentes estações.
Em vez da ilusão biográfica, Bourdieu aloca o conceito de habitus como
um sistema de disposições duráveis e transponíveis que, integrando todas as
experiências do indivíduo, funciona como uma matriz de percepções, de
apreciações e de ações – e torna possível a realização de tarefas infinitamente
diferenciadas, mas comunicantes. O habitus surge das recorrentes
experiências de viver sob determinadas condições sociais, contextos, bem
como a regularidade de práticas sociais. Portanto, acaba sendo o mediador das
dimensões objetiva e subjetiva do mundo social, pois fornece um princípio de
sociação e de individuação.
O caso do cantor Rafael Ilha que pretendo discutir neste trabalho passa,
assim, não apenas a ser um incidente cujas justificativas estão fundadas em
fatores intrinsecamente pessoais, biográficos ou autobiográficos; contém
aspectos das tensões sociais que interessam a este estudo, um fio que
atravessa o tecido social, estrutura a narrativa individual e, ao mesmo tempo, é
estruturada por ela, diacrônica e sincronicamente. A vida de Rafael pode ser
pensada como expressão de um destes aspectos paradigmáticos – como um
indivíduo que experenciou situações diametrais complementares e, de certo
modo, ambíguas, posto no quadro geral da historicidade social: representações
simbólicas do usuário de drogas afortunado e do paupérrimo.
O crack ficou conhecido no Brasil na década de 1990, especialmente
através dos jornais do estado de São Paulo2; o caso Rafael Ilha foi conformado
como parte estruturante na construção da agenda pública sobre essa droga
(KINGDON, 2003)3. Esse processo de influência nas discussões públicas foi
pensado pela chamada “teoria do agendamento” (Agenda-setting theory), tal
como as proposições de Maxwell McCombs e Donald Shaw (2000), Kingdon
(2003) e Cobb, Keith e Mayer (1976). Em si, agenda é a capacidade dos
grupos em manter problemas e alternativas políticas dentro ou fora da pauta
política e do controle da informação, tanto as escolhas quanto as não-escolhas
(EDELMAN, 1964, 1988; BACHRACH; BARATZ, 1962).
A hipótese é que Rafael Ilha se constituiu como um elemento de valor
apropriado à articulação ideológica da narrativa sobre o crack pelos jornais
analisados. O valor atribuído ao cantor (devido à “relevância individual”), a
posição de “fama”, o tipo de pessoa cujos sedimentos comportavam a ideologia
liberal meritocrática dos jornais, o recorte subjetivo conferido pelo destaque de
Rafael no cenário nacional, contrapõem-se à lógica nebulosa, massiva e
amontoada como os paupérrimos eram tratados no período no campo
jornalístico – cuja subcidadania os tornava indistintos para o senso comum e
boa parte da imprensa (SOUZA, 2016). O pressuposto desta questão incide
sobre a contribuição dos meios de comunicação – o que podemos tratar
genericamente como poder simbólico – para formar e concentrar a atenção do
público em algumas questões, uma influência imensa e bem documentada
(LANG; LANG, 1968) e que opera sobre a ação humana.
A pesquisa foi realizada utilizando o termo de busca “Rafael Ilha” nos
acervos digitais dos jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo entre os
anos de 1990 a 2016 – ano em que o tema do crack entra em declínio na pauta
política em razão do distensionamento político em São Paulo, com a derrota do

2 Macos Uchoa, na obra "Crack: o caminho das pedras" (UCHOA, 1996), diz que o primeiro
registro de apreensão da droga pelo Departamento de Investigação sobre Narcóticos –
DENARC acontece em junho de 1990.
3 A intitulação “agendamento” é uma metáfora que utiliza a ideia de pauta, programa, cuja

preocupação central é a relação entre o tempo e o tema percebidos por uma sociedade.
(MCCOMBS, 2008, p. 206). A filtragem de uma questão como “problema” e, portanto,
destacável das demais, inclusive na esfera política, não é meramente individual ou subjetiva,
mas social.
prefeito Fernando Haddad4, uma espécie de fim do efeito double-bind
(BATESON, et. al., 1956; ELIAS, 1997). Esse fenômeno acontece quando um
conflito é gerado a partir da antítese entre as alternativas colocadas na relação
social. De acordo com Bateson e outros (1956), são ordens conflitantes de
mensagens apresentadas em um mesmo tempo. Para Elias (1997) o processo
do double-bind aparece ligado diretamente à prática que tensiona o outro a
produzir respostas, tão emotivas e distorcidas quanto os próprios eventos
motivadores. A derrota de Fernando Haddad significou em termos práticos o
fim da oposição ideológica à política de guerra aos usuários de drogas.
Procurei através da linguagem R e do software Iramuteq 0.7 alpha 2
traçar o aspecto temporal e o esquema de correlações temáticas ao qual
Rafael foi submetido ao longo da história do crack nos jornais, pensando o
agendamento da droga como um problema mais amplo e a construção do
discurso, enunciados e dos espaços colaterais (FOUCAULT, 2008)5 produtores
da distinção entre as classes sociais e estruturas do saber.
A influência constatada na agenda pública não está restrita aos
respectivos jornais, contudo estes periódicos podem ser tomados enquanto
universo exemplificativo para o tipo de campo analisado. A escolha dos jornais
se deu em razão dos seguintes motivos: terem sido os primeiros a noticiar o
crack no Brasil; estarem situados e terem domínio jornalístico sobre o âmbito
do conflito, a cidade e o estado de São Paulo; a importância qualitativa (a
grande circulação) e quantitativa (a importância na imprensa nacional) da Folha

4 A eleição do prefeito Fernando Haddad no ano de 2012, que derrotou José Serra, aguçou
ainda mais o cenário político em São Paulo e, por conseguinte, as tensões e conflitos em torno
do crack e da “cracolândia”, especialmente em decorrência do antagonismo local da esquerda
(MARQUES, 2005), da relação e da politização da droga, como uma espécie de double-bind
(BATESON, et. al., 1956; ELIAS, 1997).
5 Enunciados são nexos e sistemas de referência dos signos nas instâncias de pensamento,

aquilo que em dado formato tem uma autonomia significante, mas não constitui per si um
discurso. É uma função de existência que pertence, exclusivamente, aos signos, e a partir da
qual se pode decidir, em seguida, pela análise ou pela intuição, se eles “fazem sentido” ou não,
segundo qual regra se sucedem ou se justapõem, de que são signos, e que espécie de ato se
encontra realizado por sua formulação (oral ou escrita) (FOUCAULT, 2012, p. 105). Os
enunciados não são em si mesmos uma unidade, mas sim uma função que cruza um domínio
de estruturas e de possíveis unidades e que faz com que apareçam com conteúdos concretos,
no tempo e no espaço. (FOUCAULT, 2012, p. 105). Algumas expressões como “marginal” não
têm por si só uma função enunciativa, pois precisam dos chamados “espaços colaterais”
(FOUCAULT, 2008, p.110), espaços povoados de outros referenciais, relação com algum
campo do saber para que o significado seja formatado: marginal pode se referir à posição
espacial ou a exclusão na estrutura de classe, por exemplo.
de S. Paulo e O Estado de S. Paulo; a periodicidade diária e a variabilidade
temática.
Como instrumento metodológico, aplicou-se uma ferramenta capaz de
verificar a frequência/ocorrências das palavras ou dos enunciados. Para, então,
serem divididos por contexto e agrupados a uma unidade maior chamada
classe discursiva. O mecanismo de separação ocorre através da frequência de
palavras comuns e, ao mesmo tempo, particulares para construir uma dada
estrutura discursiva e de representações. A classe não é em si o discurso, pois
lhe falta sistematicidade; são os seus indícios, elementos conectados por
algum nexo, uma vez que a regularidade de enunciados demonstra a
existência de uma estrutura mais ampla – foi o primeiro passo para constatar
os agrupamentos discursivos e as categorias produzidas dentro da lógica dos
jornais.
É preciso pontuar que trato nesta pesquisa abordagens jornalísticas
como as matérias, reportagens, notícias, opinião do leitor e notas. Levei em
conta abordagens do caso em todos os cadernos e todos os temas dos jornais.
As abordagens repetidas foram excluídas, bem como as em que o termo
“Rafael Ilha” não se relacionava ao artista. A contagem foi feita com base nas
abordagens, não nas edições, páginas dos jornais ou menção ao termo, de
modo que uma edição do jornal poderia conter várias abordagens sobre Rafael
Ilha. Não considerei repetição as menções capa/chamada e a abordagem do
interior do jornal, pois havia abordagens objetivamente distintas, até mesmo
pela redução inerente à chamada, como observei em muitos casos. Não fiz
distinção se o caso de Rafael era uma questão principal ou secundária da
abordagem: o motivo dessa escolha se deve a interpretação dos espaços
colaterais – investigação das relações em que o artista foi costurado, ainda que
como objeto secundário da abordagem jornalística
Neste estudo aponto, então, o esquema geral de correlações, heranças,
predicados morais e distinções simbólicas sob o qual o crack foi construído
pela imprensa a partir do começo da década de 90 e de sua relação com o
caso Rafael Ilha – condutor dos discursos investigados. Busquei não massificar
o banco de dados, fragmentando-o em períodos de acordo com eventos que os
marcam pelo agendamento do problema: indicadores, crises ou eventos
focalizadores (KINGDON, 2003). Esta solução metodológica evitou um
anacronismo da compreensão processual, cujo mote são as etapas que a
representação do artista perpassou e não o resultado reducionista deste
montante. Na prática, implica dizer que o crack ou as relações simbólicas
construídas não são redutíveis a um produto final, mas a diversas etapas,
processos, influxos etc. – a ideia de narrativa (SCHORSKE, 1988)

O CASO RAFAEL ILHA NOS JORNAIS

Ao inquirir as abordagens do jornal Folha de S. Paulo e O Estado de S.


Paulo sobre o caso de Rafael Ilha (palavra-chave “Rafael Ilha”) de 1990 a 2016
(período que representa a primeira abordagem sobre o crack na imprensa
nacional e o ápice do agendamento e da da disputa polítca sobre a droga), são
encontradas 14 ocorrências para o primeiro e 76 para o segundo; destas,
apenas 8 e 12 tinham relação com o tema da pesquisa. Há ocorrências
relacionadas a outros delitos, como tráfico de armas, direção perigosa e
sequestro, não contabilizados em razão de divergência temática. Em ambos os
casos, no jornal Folha de S. Paulo e no O Estado de S. Paulo, a maioria das
abordagens vinculavam a relação Rafael Ilha e crack ao aspecto policialesco e
de saúde. Na Folha de S. Paulo, encontra-se o seguinte arranjo discursivo:

I) Na cor rosa e amarela, na parte superior do diagrama, a fama de


Rafael;
II) Na cor azul claro e roxo, na lateral direita e esquerda do
diagrama, os casos específicos envolvendo o roubo de vale
transporte;
III) Na cor vermelha, na parte central do diagrama, os embates e o
intermédio entre a fama e a decadência (predominante);
IV) Na cor verde, na parte inferior do diagrama, a decadência de
Rafael;

DIAGRAMA 1 - ABORDAGENS “RAFAEL ILHA” - FOLHA DE S. PAULO


Fonte: próprio autor

No jornal O Estado de S. Paulo, encontra-se o seguinte arranjo discursivo:

I) Na cor azul claro, verde claro, na parte inferior do diagrama, a fama


de Rafael;
II) Na cor rosa e verde, na lateral direita do diagrama e e na cor roxa na
parte inferior, os casos específicos envolvendo o roubo de vale
transporte;
III) Na cor verde, na lateral direita do diagrama, o caso em que Rafael
engoliu pilhas na clínica de tratamento químico;
IV) Na cor roxa e verde, na parte superior do diagrama, o tratamento
policial do caso de Rafael;
V) Na cor laranja, na parte superior e na cor azul claro, na parte inferior
do diagrama, o tratamento médico do caso de Rafael;
VI) Na cor amarela, na parte central do diagrama, os embates e o
intermédio entre a fama e a decadência (predominante).

DIAGRAMA 2 - ABORDAGENS “RAFAEL ILHA” – O ESTADO DE S. PAULO

Fonte: próprio autor


Observando os dados, é possível perceber que a organização geral da
narrativa de Rafael Ilha em ambos os jornais está estruturada do seguinte
modo: o uso de drogas a partir de uma perspectiva singular, Rafael como
indivíduo, inclusive “o artista” (classe 1); o caso específico do roubo do vale
transporte (classe 2); a problemática jurídica, Rafael como usuário a partir de
uma perspectiva médica e policialesca (classe 3), todos marcados pela
oposição fama versus decadência. A ocasião específica da classe 2 ocorreu
em setembro de 1998, quando Rafael foi acusado de roubar um real e um vale
transporte em Campo Belo, São Paulo, para usar crack:

Vício leva ex-Polegar a cometer crime. O cantor Rafael Ilha Alves


Pereira, 26, ex-integrante do grupo Polegar, é mais um exemplo do
envolvimento de jovens de classe média com o crime – na maioria
das vezes motivado pelo consumo de drogas. Em setembro de 98,
Rafael foi preso depois de roubar um vale transporte de R$ 1,00 de
uma balconista em um ponto de ônibus no Campo Belo para comprar
Crack. Momentos antes, ele já havia tentado assaltar outra passoa
fingindo portar uma arma. Na delegadia, Rafael confessou ser viciado
em drogase disse que dormia na rua havia alguns dias. Dias depois,
o cantor foi acusado de ter roubado R$6.000 de um policial militar na
saíde de uma agência bancária em Santo Amaro. Ele nega o crime.
Rafael entrou para o grupo Polegar em 88, aos 14 anos, depois de
uma breve carreira como modelo de comerciais de televisão. Aos 17
anos, famoso e assediado pelas fãs, Rafael namorou a atriz Cristiana
Oliveira, na época estrela da novela “Pantanal”, ta TV Manchete e
dez anos mais velha do que ele. Após o fim do romance com a atriz,
em 91, Rafael passou a chegar atrasado a shows e foi afastado do
grupo. (VÍCIO, 2000, p. 7)

Essa configuração discursiva não era exclusiva dos jornais Folha de S.


Paulo e O Estado de S. Paulo, o Jornal Nacional, da Rede Globo de Televisão,
por exemplo, anunciava através do jornalista William Bonner: “Queda precoce:
primeiro a fama: depois as drogas e agora a cadeia: Rafael Ilha Alves Pereira,
o ex-líder do grupo Polegar, está preso em São Paulo” (ABRÃO, 2015, p.129).
Para descontruir a imagem idealizada do cantor através de predicados como
angelical, “terno”, “fraternal”, “responsável”, “caridoso”, foi preciso transformá-lo
em uma ambiguidade inconsequente, insensível e irresponsável, associando a
espaços colaterais da subcidadania e das classes desprivilegiadas.
Ou seja, a imagem de Rafael Ilha foi construída positivamente pela
imprensa e também através da imprensa se deu o processo de desconstrução,
como um espelho que inverte os polos da imagem e, na mesma intensidade,
torna-os pejorativos6. Foi alvo tanto de jornais que têm holofotes voltados aos
famosos, quanto dos espaços colaterais nas páginas policiais. Porém, foi
somente com o uso do crack e uma marginalidade de classe esteticamente
representada que o cantor passou à condição de doente-criminoso.
Os discursos extraídos dos jornais indicam que o uso de drogas
acontece e reverbera na ordem moral, atuando como um transfomador da
psicologização comportamental. Na prática, o discurso ajuda a pensar e
privilegia as relações e transformações históricas: como o conteúdo discursivo
cria um contexto de sentido, especialmente na relação das estruturas objetivas,
indivíduo e meios de comunicação. O conceito fornece, então, uma definição
para a noção de significado dominante, poder, para examinar empiricamente o
papel da mídia na construção da hegemonia, de uma direção intelectual e
moral do “crack” e suas expressões na sociedade:

IMAGEM 1 – “EX-CANTOR DO POLEGAR É PRESO POR ROUBO” –


FOLHA DE S. PAULO

6Para que se chegue ao controle e à criminalização é necessário que exista vigilância e uma
desqualificação moral, o estigma (GOFFMAN, 1988) e condição de aberração. Segundo
Foucault (2011, p. 85), periculosidade não está estritamente vinculada à infração de uma
norma penal, mas às representações do que significa e do que traz à tona. No limite, significa
um tipo de indivíduo, não um julgamento cujo sentido corresponde estritamente à esfera
comportamental.
Jornal Folha de S. Paulo em 15 de setembro 1998 (VERGARA, 1998, p.6)

O pressuposto básico desse tipo de discurso consiste numa concepção


infantilizada que separa perfeitamente o bem e o mal na sociedade: o
“craqueiro”, encarna todos os males sociais, enquanto o "cidadão” representa
uma espécie de "donzela em apuros", ameaçada e necessitada de socorros.
Essas dicotomias permeiam o discurso dos jornais, a mocinha e o bandido, o
herói e o vilão, a polícia e o ladrão. A apreciação jornalística, uma espécie de
exame, busca assemelhar o indivíduo ao crime antes dele o ter cometido
(FOCAULT, 2011, p.20-24), transferindo a repulsa ao crime para a repulsa da
existência, faltas sem infração: as características são apresentadas como a
origem, ponto de partida do delito. Essa costura dita uma compreensão
temerária e ao mesmo tempo inconciliável entre os representados como
“usuários de crack” e os demais indivíduos. No limite, as abordagens desse tipo
tinham a seguinte tônica: ao usar crack, os indivíduos ficam mais motivados ao
cometimento de crimes.
A hierarquia em torno das drogas está ligada à sociabilidade e à
representação dos seus usuários, não simplesmente à questão química ou
tóxica (VELHO, 1998). Velho concluiu que o uso de drogas não é
necessariamente um pilar da vida marginal ou classificação moral. Na verdade,
é no âmbito simbólico que as drogas são classificadas, não químico. Neste
sentido, um drogado não é "aquele que consome e necessita de alguma droga
ou substância química", mas um tipo de (des)qualificação social e, neste caso,
fortemente influenciada pelos predicados de classe social.
A tiragem de 15 de setembro de 1998 do jornal Folha de S. Paulo
(VERGARA, 1998, p.6) é exemplo dessa transformação: de um lado, foto de
Rafael “criminoso”, de cabeça baixa e blusa sob o rosto e algemado, logo após
a prisão por suposto roubo. Do outro, Rafael brioso, sorrindo, altivo enquanto
ainda era líder do grupo Polegar. Contudo, o que estava em dualidade não era
o uso de drogas; a oposição está pressuposta no auge da fama versus a
decadência do cantor7. Este tipo de enunciado, conforme é possível observar,
repete-se em toda estrutura discursiva dos jornais analisados:

TABELA 1 - OPOSIÇÃO AUGE DA FAMA VS. DECADÊNCIA

• “Rafael Alves Pereira, de 25 anos, é acusado de tentar assaltar uma balconista


em um ponto de ônibus. Depois de ter viajado pelo Brasil inteiro para realizar
show com o grupo Polegar, Rafael Ilha Alves Pereira, de 25 anos, ex integrante
da banda teve sua vida completamente modificada pelas drogas” (VERGARA,
1998, p. 6);

• “Magro, sujo e abatido, o ex-líder do grupo está irreconhecível”. (ANTAR, 1998,


p.8)

• “Rafael, que já foi namorado da atriz Cristina de Oliveira, fez sucesso com a
banda no começo dos anos 90, participando de vários programas de televisão e
até de um filme dos Trapalhões, agora está sendo obrigado a dividir uma cela
com mais de 60 detentos, lugar que comportaria no máximo 20”. (ANTAR, 1998,
p.8)

• “Vício leva ex-Polegar a cometer crime. O cantor Rafael Ilha Alves Pereira, 26,
ex-integrante do grupo Polegar, é mais um exemplo do envolvimento de jovens
de classe média com o crime – na maioria das vezes motivado pelo consumo de
drogas”. (VÍCIO, 2000, p.7);

7 A Revista Isto É, n° 1512, em 23 de setembro de 1998, também trouxe na capa uma relação
diametral: em branco, uma foto áurea de Rafael, tratado como o ídolo do Polegar, popular e
namorador de famosas vs. em preto, uma foto maltrapilha, retratado como drogado, “usuário de
crack” e “morador de rua”.
• “Rafael entrou para o grupo Polegar em 88, aos 14 anos, depois de uma breve
carreira como modelo de comerciais de televisão. Aos 17 anos, famoso e
assediado pelas fãs, Rafael namorou a atriz Cristiana Oliveira, na época estrela
da novela “Pantanal”, ta TV Manchete e dez anos mais velha do que ele. Após o
fim do romance com a atriz, em 91, Rafael passou a chegar atrasado a shows e
foi afastado do grupo” (VÍCIO, 2000, p.7);
Fonte: próprio autor

Entretanto, a sucessão de eventos, tal como posta na equação das


classes discursivas [começo do uso de droga (leia-se crack) = crime +
declínio artístico] nunca foi verdadeira para o caso de Rafael, mas uma
máxima/lógica na abordagem jornalística que acabou fundamentando,
posteriormente, o senso comum e até mesmo o debate político no Brasil.
Acredita-se erroneamente que o uso de drogas ou mesmo o crack tenha
determinado o seu fracasso artístico: Rafael não é tratado como um usuário de
substâncias psicoativas que ascendeu à fama, mas como um famoso que
sofreu uma derrocada pelo uso de drogas8. Ofusca-se tantos outros artistas do
período que desapararecem das mídias sem qualquer uso de substância
psicoativa ilícita, do mesmo campo e valor simbólico de Rafael Ilha – das
chamadas boy bands, como Alan Frank, Alex Gill, Ricardo Costa, Marcelo
Souza, Marcos Quintela e Marcelo Rodrigues.
O “usuário de crack” é causa da reação de medo dos próprios
construtores deste significante (SOUZA, 2016). O pavor vem da ruptura ao
ethos burguês: o rompimento estético, comportamental, moral, por exemplo,
isso se reflete no esquema imagético de nebulosidade, obscuridade, disforme
com que o usuário de crack é retratado (RODRIGUES, 2016). Contudo, se
havia uma figura medonha, existia um sujeito temeroso: esse indivíduo
pertence ao grupo o antagonista ao “craqueiro”, aquele que produz e para o
qual jornal era produzido: a lógica de combate pela oposição. O discurso crack-

8 A fama de Rafael se misturou com o uso de drogas ilícitas desde o começo; mesmo antes
disso, o artista já fazia uso dessas substâncias. O auge de sua carreira como integrante do
grupo Polegar foi cumulado com inúmeras internações e overdoses. Entratanto, todos esses
eventos foram mantidos sob sigilo, em cifra-obscura – como se o que a mídia não vê,
desconhece ou escolhe não retratar, não acontecesse.
crime-violência é o mais repetido pelos jornais paulistas desde que a droga
chegou ao Brasil, especialmente sob uma vinculação entre o aumento dos
índices de criminalidade e o uso de crack.
Além de um ser moralmente abominável, o “usuário de crack” foi
apontado como o causador dos crimes e do aumento da violência na cidade de
São Paulo. Refiro-me a absorção da figura do criminoso/delinquente. A
sociedade passa a tratá-lo como se ele fosse aquilo que se supõe que ele seja.
Seus comportamentos passam a ser sempre encarados como reafirmações de
uma suposta característica que lhe foi atribuída, ao passo que essa prisão, a
expectativa acaba se refletindo nas ações dos “craqueiros”, uma verdadeira
idiossincrasia do estigma.

TRANSFORMAÇÕES NA AGENDA, ESTRUTURAS E O HABITUS DE


RAFAEL

O ponto central dessa discussão está na relação entre indivíduo e as


instâncias de agendamento: as pessoas (inclusive cientistas e pesquisadores)
tendem a incluir ou excluir da visão de mundo, dar atenção àquilo que as
instâncias de agendamento como os jornais incluem ou excluem de sua pauta.
O que sabemos sobre o mundo é em grande parte baseado no que a mídia nos
diz. Ou seja, mais especificamente, o resultado é que as prioridades dos meios
de comunicação influenciam prioridades do público (MCCOMBS, 2002). Nesse
sentido, conceitos como "indivíduo" e "sociedade" não dizem respeito a dois
objetos que existiriam separadamente, mas a aspectos diferentes, embora
inseparáveis, dos mesmos seres humanos, e que ambos os aspectos
habitualmente participam de um processo de transformação estrutural (ELIAS,
1994, p. 220).
Rafael Ilha nasceu em 1973 e se iniciou na carreira de modelo aos nove
anos de idade através da agência de modelos infantis Prytt da caça talentos
Tia Irany – uma das mais famosas do periódo. Branco, indivíduo de classe
média disposicionalmente construído a partir da autoconfiança, Rafael fazia
comerciais de TV e era “garoto propaganda” de diversas marcas. Aos 12 anos
começou a frequentar matinês em uma boate chamada Up & Down, localizada
na região dos Jardins, bairro das classes mais abastadas da cidade de São
Paulo. Segundo Rafael narra em sua biografia escrita pela apresentadora e
jornalista Sonia Abrão, foi lá que experimentou lança perfume (cuja base é a
benzina) e cola de sapateiro (cuja base é o tolueno) pela primeira vez: “Era o
grande barato, daí comecei a usar com a garotada” (ABRÃO, 2015, p.25).
Quando detalhei a pesquisa sobre a cola de sapateiro, investigando os
espaços colaterais que contornavam o uso de cola de Rafael, sistematizei as
abordagens de 01 de janeiro de 1988 (incluí o período que antecede a chegada
do crack) a 31 de dezembro de 2016 no Jornal Folha de S. Paulo e no O
Estado de S. Paulo. A questão que escapava a uma abordagem biográfica
passava por entender contextualização do uso da cola de sapateiro, a relação
objetiva entre a respectiva droga e Rafael, bem como a hipótese da sucessão
pelo crack na agenda pública. Daí, então, observei que houve entre a primeira
e a segunda droga uma relação inversamente proporcional em quantidade, isto
é, enquanto diminuíam as abordagens sobre a cola, aumentavam as do crack9
- uma mudança na pauta pública e social em relação ao tipo de objeto de
disputa no campo jornalístico.

GRÁFICO 1 - ABORDAGENS “COLA DE SAPATEIRO” VS. ANO – FOLHA


DE S. PAULO E O ESTADO DE S. PAULO

9 Ao todo, 190 referências ao termo “cola de sapateiro” foram encontradas neste período no
jornal Folha de S. Paulo; 10 foram descartadas devido ao fato da referência não ter sentido
relacionado à droga (Teledramaturgia; indústria; estofamento; venda, artesanato). No jornal O
Estado de S. Paulo 194 ocorrências foram encontradas, 95 foram descartadas em decorrência
do termo estar vinculado a outra questão diversa da cola de sapateiro enquanto droga ou
duplicação da abordagem.
50

45

40

35

30

25

20

15

10

0
1988
1989
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
2015
2016
Folha de S. Paulo O Estado de S. Paulo

Fonte: próprio autor

Aos poucos os meninos de rua e a cola de sapateiro deixaram de ser a


fonte e o centro da perversidade nas páginas dos jornais. A ambiguidade que
ajuda a explicar a distinção entre alguém que consome uma substância
psicoativa e aquele rotulado como “drogado” é que mesmo usando a cola de
sapateiro, as características que Rafael não estiveram enquadradas na forma
como este agrupamento era retratado pelos jornais. Ou seja, a qualifcação se
direcionava para os paupérrimos, o cantor ainda não tinha sido rotulado como
usuário tampouco tido seu universo de classe associado ao consumo desses
psicoativos. A tiragem de 2 de fevereiro de 1992 da Folha de S. Paulo expressa
a vinculação diacrônica entre cola e crack sob o arranjo da substituição estética
e moral. Uma das matérias dizia "Crack substitui cola de sapateiro e vicia
meninos de rua em São Paulo: deitados em barracos, crianças fumam derivado
da cocaína por 3 dias sem comer” (NASCIMENTO, 1992, p.1).
Não se tem referência midiática ou no campo político a respeito do crack
durante a década de 1980 em São Paulo, embora constem evidências que ele
já tivesse sido apreendido no ano de 1986 (MAGALHÃES, 2015). De uma certa
forma, isso quer dizer que a droga não era um problema na agenda política.
Percebe-se, entretanto, um aumento abrupto da produção legislativa em torno
ou sobre a droga, a chamada “agenda oficial” (KINGDON, 2003) ou “agenda
formal” (BAUMGARTNER; JONES, 1991) coincidente aos governos de Luiz
Inácio Lula da Silva (2003-2011) e Dilma Rousseff (2011-2016) assim como as
discussões, sobretudo no período de tensionamento político (2012-2016) dos
programas “De Braços Abertos” (município de São Paulo) e “Recomeço”
(estado de São Paulo).
Já na década de 1990, embora o crack fosse um tema da pauta
midiática e conhecido na instância legislativa (1995), não estava na agenda
política, conforme demonstra o gráfico abaixo10:

GRÁFICO 3 - PRODUÇÃO LEGISLATIVA DO MUNICÍPIO E ESTADO DE


SÃO PAULO SOBRE O CRACK VS. ANO (1990-2016)
12

10

0
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
2015
2016

MUNICIPAL ESTADUAL

Fonte: elaborado pelo autor.

Mesmo no auge da fama no grupo Polegar, Rafael não abandonou o uso


de substâncias psicoativas. Conta que aos 15 anos usou “a irmã química rica

10
O gráfico foi construído através de pesquisa da palavra-chave “crack” nos arquivos
digitais da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (ALESP), site
https://www.al.sp.gov.br/alesp/pesquisa-legislacao/ e da Câmara Municipal de São
Paulo http://www.saopaulo.sp.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/leis-e-outras-
normas/.
do crack”11, a cocaína: “cheirei aquele pó e senti um prazer maravilhoso”
(ABRÃO, 2015, p.49). Entretanto, até o momento o cantor nunca tinha sido
visto como um “usuário de drogas” pela imprensa, mesmo fumando maconha,
inalando cola de sapateiro e consumindo cocaína. Ou seja, as drogas só
aparecem na vida do artista com a decadência e uma expressão estética ligada
à extrema miséria: situação de rua, roupas sujas, rasgadas, cabelo mal
cortado. Mesmo quando o uso de cocaína se tornou problemático, Rafael não
foi evidenciado desta forma pela imprensa – há uma proximidade química com
a cocaína e, ao mesmo tempo, uma distância moral. Isto é, embora Rafael
tivesse usado drogas por várias vezes, só passou a ser representado, rotulado
como “drogado”, “usuário”, “criminoso” quando sua carreira artística já estava
arruinada, ou pior, quando passou a expressar a imagem típica construída em
torno do que se convencionou chamar de “craqueiro”, “usuário de crack” –
numa falsa vinculação entre miséria e droga. Nessa visão, o uso da cocaína,
cola, as overdoses acabaram sendo invisibilizadas.
O apresentador Augusto Liberato, conhecido popularmente como Gugu,
descrevia Rafael como “um adolescente que não conseguia respeitar os limites
e seguir as regras” (ABRÃO, 2015, p.13), sinalizando a ausência disposicional
quanto à disciplina, autocontrole. O apresentador impôs a Rafael a pedido de
Sylvia, “ou você se trata ou está fora!” (ABRÃO, 2015, p.60). Rafael aceitou,
“foi para a Clínica Alphaville, em Barueri, às escondidas. Os meninos e a
equipe não foram avisados, e a imprensa nunca desconfiou” (ABRÃO, 2015,
p.61). Essa questão levanta o tipo de tratamento dado aos usuários de cocaína
das classes mais abastadas, sempre às escuras, em clínicas privadas,
enquanto o tratamento do crack é público, espetacularizado, portanto, suplicial
(FOUCAULT, 2004).
A decadência artística e, consequentemente, da vida financeira,
cumulada a diminuição da autoestima, a falta de disciplina (também estimulada
pela irreverência necessária à configuração das boy bands), autocontrole, o

11 Após revisão, em 1994, a terceira edição do Novo Dicionário Aurélio incluiu o verbete crack
“droga derivada da cocaína”11. Essa referência também aparece em larga escala nos jornais.
Contudo, a denotação “crack” não é capaz de expressar os atributos e os significados da
referida droga: o crack é submetido e coligado ao sistema simbólico da marginalidade social e
não ao usuário de cocaína, que, muitas vezes, sequer aparece como “usuário de drogas”
(IRWIN, 1995; FIORE, 2013).
flerte entre medo e prazer desembocaram no uso de crack: “Desempregado, já
não tinha mais dinheiro para sustentar o vício, porque havia gasto tudo o que
ganhara no Polegar com internações nas melhores clínicas de reabilitação e na
compra de mais e mais drogas” (ABRÃO, 2015, p.77).
O formato geral da noção de “vício” e de “fissura” de Rafael nos jornais
são ditados pelo discurso do “vício” vinculado ao âmbito policialesco: “o
drogado que sem dinheiro furta ou rouba para manter seu vício”. A partir da
análise dos dados, é possível verificar que a representação da imprensa
caminha para o argumento que a vida e as condições sociais e econômicas do
artista foram modificadas pelo uso de crack – e não que o crack expressa esse
processo de decadência. Esses dois pressupostos convergem para uma noção
de trauma. Aos poucos, Rafael se tornou o trivial exemplo agendado do crack
como experiência trágica e traumática, isto é, causa que gera repentina
destruição, sendo retomado diversas vezes para construção da narrativa “uma
carreira destruída pelo crack”.
O simulacro do trauma é aquele que tende a reforçar o acontecimento
de rompimento em decorrência de um excesso, assim, acaba encobrindo uma
série de problemas na trajetória individual que interferem diretamente nesse
próprio acontecimento, as disposições e o processo (MACEDO; KOTHER;
WERLANG, 2007, p.101). No caso de Rafael, o trauma é o evento “roubo de
vale transporte”. Trata-se de uma perspectiva plástica, ultraindividualizada, pois
desvincula o indivíduo da sociedade, de seu passado, apagando-se a ordem
histórica das coisas e os fios sincrônicos e diacrônicos.

Nesse sentido, a vinculação entre pobreza e consumo de drogas


também acontece de modo mais sutil: não através do pertencimento direto,
mas de aspectos travestidos, que numa visão trivial não teriam correlação com
classe, mas que somados qualificam essa própria conformação. Muitas vezes,
a classe social não aparece enquanto tal, ela é camuflada em aspectos morais
e outras divisões. Isso acontece porque a classe é um dos grandes
mecanismos de dominação social, portanto, não pode ser escancarada a ponto
de ser percebida e, então, passivelmente contestada. Essa camuflagem faz
com que nem sempre as expressões “classe”, “pobreza”, “miseráveis”
apareçam diretamente nas abordagens jornalísticas sobre o crack, embora o
discurso e as características narradas sejam, em boa medida, relativas a tais
distinções

Quero sugerir que o episódio de rompimento também deva ser


percebido como consequência e não meramente como causa deste processo.
No caso de Rafael Ilha, a perspectiva do trauma é superficial e equivocada,
uma vez que dá ênfase apenas à parte mais visível, situacional em detrimento
das explicações mais profundas e históricas, tanto social quanto individual.
Assim, o cantor foi utilizado para legitimar publicamente a ideia de que o uso do
crack é o responsável pela derrocada do indivíduo, de qualquer indivíduo,
inclusive para a inserção na vida criminal: a argumentação “caiu no crack já
era”.

CONCLUSÃO

O consumo de drogas nos discursos produzidos sobre o cantor Rafael


Ilha revelam mais do que a condição individual ou sua biografia – enquanto
traço singular e exclusivo. O artista vivenciou situações bastante distintas em
termos de atributos simbólicos: o usuário de drogas famoso (sequer
reconhecido enquanto consumidor de psicoativos) e o paupérrimo (apontado
sobretudo a partir dos predicados policialescos). Ou seja, enquanto estava
associado aos espaços colaterais das classes mais abastadas nos jornais
analisados (como fama, dinheiro, amigos, autoestima), o artista mantinha o uso
de drogas ilícitas, por exemplo, cola de sapateiro, maconha, cocaína, sem com
que os aspectos morais pejorativos lhe fossem impregnados. Contudo, sua
trajetória entrou em declínio artístico e por este motivo Rafael se desproviu de
alguns capitais, a derrocada se misturou ao consumo de crack; a partir da
condição estética e imagética da miséria e suas consequências no
aparecimento de Rafael, que passou a ser representado pelos jornais como um
drogado, doente, impulsivo, compulsivo e criminoso.
O artista pode ser pensado enquanto parte da narrativa que estrutou os
discursos sobre o crack no Brasil, sua trajetória foi subjetivamente e
objetivamente costurada a questões mais amplas que permeiam a discussão
sobre a droga. Embora o crack e a cocaína não sejam drogas essencialmente
distintas em termos químicos (derivando da pasta base), não se diferenciam
apenas pela forma de uso (fumo vs. aspiração), mas pelos predicados que
guarnecem os espaços colaterais que circulam entorno de cada uma dessas
drogas. No caso de Rafael, o crack é representado como exclusivo causador
da destruição artística, ignorando-se todo consumo de psicoativos que
perpassaram o auge da carreira do cantor.
Contudo, percebe-se a incorrência de alguns mitos quando uma análise
relacional dos jornais é posta em curso, o que reverbera ao caso analisado. Um
dos mitos, por exemplo, é que o crack marca o começo da destruição da vida
das pessoas, ignorando-se sumariamente a trajetória do indivíduo e suas
disposições. Inúmeros outros mitos acabam sendo (re)produzidos na glosa
jornalística: reduzir o grupo dos “craqueiros” ao grupo dos “pobres”,
associando o enfrentamento da droga à atuação junto a esta própria camada
social.
Outro mito é a associação entre sujeira, pobreza e o consumo de
psicoativos; associação entre aspectos e predicados morais e o consumo de
drogas, especialmente do pauperismo urbano: são conexões entre o usuário de
crack e as categorias “pobres”, “mendigos”, “marginais”, “miseráveis”, “pedinte”,
“desprovidos”, “lixo”. Os esquemas mais visíveis da vinculação de classe ao
crack são os aspectos físicos e materiais, no qual o “usuário de crack” é
retratado como indivíduo sujo, esfarrapado, maltrapilho, ligado à situação de
rua, favela e a fome.
Em ambos os casos, o não reconhecimento dos indivíduos
representados a partir do simbólico de “drogado” como dignos de direitos ou
mesmo como indivíduos também operou com a função tentar recuperar a
legitimidade política de instituições de controle, como a polícia e a prisão, cujas
crenças populares se encontravam estremecidas no começo dos anos 90
devido à crise das políticas de bem-estar social e a não resolução dos
problemas ligados ao crime e a violência (GARLAND, 2008; DORNELLES,
2003). Em vez dos “usuários de crack” serem vistos como pessoas que
estavam em situação de risco, foram considerados ao longo dos anos como
grupo que oferecia risco ao restante da população, exatamente dentro desses
dois aspectos: crime e violência.
O controle exercido através dos jornais está na construção, formatação,
arranjo ideológico da própria categoria “usuário de crack” e nas consequências
negativas que são tomadas como verdadeiras e substanciais aos indivíduos. A
construção de limites e marcadores simbólicos da classificação “usuário de
crack” põe tal categoria em uma posição marcada a partir da diferença,
exclusão e da oposição à própria ordem social, ou seja, que não envolve
pontos de referência comuns, conexões e semelhanças com seus
antagonistas, inclusive o laço de humanidade, o que acabou encontrando
acolhimento nas agendas públicas.

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