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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Museu Nacional
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social

CUIDAR DA CASA E LUTAR PELA MORADIA


A POLÍTICA VIVIDA EM UMA OCUPAÇÃO URBANA

Isabel Milanez Ostrower

Rio de Janeiro
2012
CUIDAR DA CASA E LUTAR PELA MORADIA
A POLÍTICA VIVIDA EM UMA OCUPAÇÃO URBANA

Isabel Milanez Ostrower

Tese de Doutorado apresentada ao


Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social do Museu Nacional,
Universidade Federal do Rio de Janeiro,
como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Doutor em
Antropologia.

Orientadora: Adriana de Resende Barreto


Vianna

Rio de Janeiro
Maio de 2012

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CUIDAR DA CASA E LUTAR PELA MORADIA
A POLÍTICA VIVIDA EM UMA OCUPAÇÃO URBANA

Isabel Milanez Ostrower


Orientadora: Adriana de Resende Barreto Vianna

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia


Social do Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Antropologia.

Aprovada por:

_______________________________________________________
Profª. Dra. Adriana de Resende Barreto Vianna, Presidente da Banca
PPGAS/Museu Nacional/UFRJ

_______________________________________________________
Prof. Dr. José Sérgio Leite Lopes
PPGAS/Museu Nacional/UFRJ

_______________________________________________________
Prof. Dr. John Cunha Comerford
PPGAS/Museu Nacional/UFRJ

_______________________________________________________
Prof. Dr. Fernando Rabossi
IFCS/UFRJ

_______________________________________________________
Profª. Dra. María Gabriela Lugones
Universidad Nacional de Córdoba

_______________________________________________________
Prof. Dr. Antonio Carlos de Souza Lima (Suplente)
PPGAS/Museu Nacional/UFRJ

_______________________________________________________
Prof. Dr. João Paulo Macedo e Castro (Suplente)
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

Rio de Janeiro
Maio de 2012

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OSTROWER, Isabel Milanez.
Cuidar da casa e lutar pela moradia: a política vivida em uma
ocupação urbana./ Isabel Milanez Ostrower. Rio de Janeiro:
UFRJ/Museu Nacional/PPGAS, 2012.
xiv, 246 p.; 31 cm.
Orientadora: Adriana de Resende Barreto Vianna.
Tese (doutorado) – UFRJ/ Museu Nacional/ Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social, 2012.
Referências Bibliográficas: pp. 238-245
1. Ocupação urbana 2. Casa 3. Moradia 4. Território
doméstico 5. Território político I. Vianna, Adriana de Resende
Barreto. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional,
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. III. Título.

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RESUMO

O objetivo desta tese é pensar, através de uma ocupação urbana, localizada no


centro da cidade do Rio de Janeiro, a trama das relações cotidianas que se bifurcam e se
compõem pelos meandros do Estado, pelas regras de um movimento social de luta pela
moradia e pelos arranjos familiares de gestão da casa. Desse modo, busca descrever,
através de diferentes trajetórias e maneiras de se engajar no movimento, como os
moradores lidam com os múltiplos compromissos e como constroem diferentes formas de
viver coletivamente. Tem especial importância nesta tese a preocupação em pensar os
cruzamentos entre território doméstico e território político. Enquanto o primeiro refere-se à
distribuição moral dos afazeres familiares, aos compromissos miúdos do dia a dia de uma
casa, o segundo remete ao projeto coletivo de moradia, a uma convivência cercada por
regras e prescrições gerais. No entanto, longe de se configurarem como contextos
antagônicos, estas duas esferas estão em constante diálogo e disputa. Nesse sentido, este
trabalho é uma tentativa de demonstrar que o projeto político da ocupação Manuel Congo
tem ligação direta e estreita com o universo familiar, às vezes convergindo e em algumas
situações divergindo de suas práticas e valores.

Palavras-chave: ocupação urbana, casa, moradia, território doméstico, território


político.

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ABSTRACT

The aim of this thesis is to think, through an urban squat, located in the city center
of Rio de Janeiro, the web of everyday relationships that fork and are made by the
meanders of the State, by the rules of a social movement struggling for housing and by
family arrangements of a house management. Thus, it attempts to describe, through
different paths and ways to engage in the movement, as the residents deal with multiple
commitments and how they build different/distinct ways of living collectively/together. A
particular importance in this thesis concerns with thinking crosses between domestic
territory and political territory. While the former refers to the moral distribution of
homemaking, the minor commitments of everyday life of a house, the latter refers to the
collective project of housing, to a coexistence surrounded by rules and general
requirements. However, far from being treated as antagonistic contexts, these two spheres
are in constant dialogue and dispute. Thus, this work is an attempt to demonstrate that the
political project of the squat Manuel Congo has direct and close linkage with the family
universe, sometimes converging and in some situations diverging in their practices and
values.

Key-words: urban squat, house, housing, domestic territory, political territory.

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AGRADECIMENTOS

Este trabalho não teria sido possível se não fosse o apoio de várias pessoas e
instituições. Todas elas, em menor ou maior grau, compõem o mosaico material e afetivo
que sustentam esta tese.
Esta trajetória teria sido extremamente solitária (e assim o foi em vários momentos)
se não fosse pela presença sensível e certeira com que Adriana, minha orientadora, soube
participar e conduzir nosso trabalho. E eu digo “nosso” não por modismos autorais, mas
porque de fato ela contribuiu em cada detalhe ortográfico, conselhos pessoais, sugestões
teóricas e críticas audazes. Como dá gosto ouvir-lhe falar, assistir a suas aulas, acompanhar
seus olhares e trejeitos. Espero que estes setes anos de relação se multipliquem por tantos
outros e que eu possa continuar aprendendo com ela o valor da pesquisa e do conhecimento
que se esboça nas “franjas da hierarquia”.
Apesar de nunca ter participado de nenhum curso oferecido por José Sérgio Leite
Lopes, agradeço pelos comentários sempre francos e dialógicos. Sua presença nos dois
Exames de Qualificação foram fundamentais para que eu abrisse o leque de abordagem e
percebesse o “esmero” pela casa como condição central para a compreensão do universo
que estava lidando. A ele agradeço toda a paciência nesta acolhida por vezes periférica.
A John Comerford agradeço por todo esforço de relativização presente em seus
argumentos. Sua leitura sempre dinâmica do meu material de pesquisa foi crucial para que
eu atentasse para os conflitos, disputas e jogos de representação em torno dos territórios.
Agradeço ainda por seu conselho para que eu tentasse recuperar outros pontos de vista
envolvidos nos processos de resistência popular.
A Fernando Rabossi agradeço pelo diálogo sempre aberto e pela escuta atenciosa.
Provavelmente já devo ter sinalizado em algum outro momento, mas não custa reforçar a
generosidade com que Fernando lida com o processo de conhecimento. A ele sou
enormemente grata pelas trocas e incentivos desde os tempos pré-Museu.
A María Gabriela Lugones, Antonio Carlos Souza Lima e João Paulo Macedo e
Castro, agradeço por terem aceitado participar da Banca de Defesa, mesmo que isso tenha
representado um convite às pressas. Em todo caso, registro aqui meu muito obrigada por
terem dedicado tempo e atenção para ler e discutir meu trabalho.

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Da mesma maneira sou grata a todos os professores com os quais tive oportunidade
de fazer algum curso ou mesmo troquei ideias pelo labiríntico Museu Nacional: Lygia
Sigaud (in memoriam), Gilberto Velho (in memoriam), Federico Neiburg, Marcio
Goldman, Antonádia Borges e Moacir Palmeira. Agradeço ainda aos funcionários da
Secretaria, Xerox e Biblioteca que sempre se dispuseram a colaborar, atendendo com
dedicação a ânsia dos estudantes. Contei também com apoio do CNPq que me concedeu
bolsa de estudo em boa parte do curso de doutorado e, no primeiro ano, pude contar com
recursos do projeto “Políticas para a Diversidade e os Novos Sujeitos de Direitos: Estudos
Antropológicos das Práticas, Gêneros Textuais e Organizações de Governo”, realizado pelo
Laboratório de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento (LACED), Museu
Nacional/UFRJ, em convênio com a FINEP.
Ainda no Museu, agradeço aos amigos que conquistei e que, embora por diferentes
caminhos, também participaram desta empreitada: Suzana, Cláudia, Zoy, Letícia, Julia,
Fernanda, Martinho, Laura, Liane, Suiá, Pedro, Martiniano, Zé Renato, Patrícia, Deborah...
Aos amigos queridos que me aguentam a alguns anos, alguns de longe outros bem
de perto, mas sempre me preenchendo de alegria e ternura, ainda mais com seus rebentos:
Maria, Tito e Miloca, Rebeca e Clara, Mirna e Morgana, Maria e Lis, Maria Fabiana e Nilo,
Dina, Bruno, Branno, Pedro, Lidia, Francine, Janaina, Aline, Louise e tantos outros que me
constituem de alguma maneira.
Ao meu querido Mosca, por nossa efervescência diária, nossos encontros, desajustes
e parcerias, agradeço por todo apoio nesses e nos vindouros anos de nossas vidas. Não
posso deixar de reconhecer que ele também tem parcela crucial neste transcurso intelectual.
Seu amor e avidez pelo conhecimento foram grandes motivos que tanto me estimularam
nessa empreitada. De lambuja, me proporcionou um maravilhoso encontro com nossa linda
e meiga Manoela, de menina a mulher, pude acompanhar esta arrebatadora transformação.
Fruto de nosso amor tricolor veio nosso pingolim, Guido, garoto intrépido,
observador e de comentários desconcertantes cuja energia inesgotável, carinhos na
sobrancelha, cambalhotas arriscadas e gargalhadas contagiantes foram fundamentais para
que eu juntasse força e ânimo para ir até o fim.
E para segurar a fera, todas aqueles que me ajudaram a ter um pouco mais de tempo
para a escrita. Bá, pessoa essencial na minha vida, meu suporte diário, muito obrigada por

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ter me ajudado a virar gente e por trazer alegria e conforto à nossa casa. Meu pai, Frank, é
um artista, pessoa extremamente generosa, sendo capaz de reunir ao mesmo tempo, e com o
mesmo grau de intensidade, descontração e preocupação. Seus desenhos e sua arte me
inspiram até hoje e sempre me acompanharão. Minha mãe, Suzana, parceira de todas as
horas, uma paciência sem igual, consegue a proeza de eternizar a beleza. Agradeço a vocês
dois por me apoiarem sempre e por tornarem a casa dos “vós” atalho imprescindível neste
trajeto.
Às minhas irmãs, Alexandra, Tatiana e Maria por todas as nossas trocas. Acho que
aquilo que melhor representa nossa relação é a reciprocidade, de afetos, fofocas, viagens,
alegrias, angústias e, porquê não, dos perrengues da vida. Muito obrigada pela força de
sempre e por me agraciar com meus preciosos sobrinhos: Beatriz, de curvas e cachos
estonteantes, Helena, nossa mignon cuja beleza e peraltice só fazem aumentar, e Louis,
menino alto astral, francês aqui e carioca acolá, tanto faz, ele sabe nos cativar.
Por fim, a minha mais sincera gratidão a todos os moradores da Ocupação Manuel
Congo. Agradeço pela acolhida, pelo afeto, pelas conversas, comemorações, refeições e
aprendizado, em especial Fabiana, Noêmia, Marina, Carla, Bárbara, Aparecida, Ritinha,
Teresa, Sandra, Ângela, Dinorah, Paulão, Sofia, Betina, Felipe e todas as crianças que se
esforçam por tornar a luta pela moradia um acontecimento diário em suas vidas.

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LISTA DE QUADROS E FOTOS

Quadro 1 Organização política do MNLM ........................................................ 72


Quadro 2 Horário de rodízio da portaria ............................................................ 81
Foto 1 Comemoração 1 ano da Ocupação Manuel Congo .............................11
Foto 2 Brincadeira de roda durante a comemoração ......................................11
Foto 3 Parabéns durante Comemoração de 1 ano .......................................... 11
Foto 4 Palacete ocupado por Movimentos populares .....................................18
Foto 5 Faixa estendida em frente ao Palacete ocupado ..................................18
Foto 6 Famílias lancham nas escadarias do Palacete ocupado .......................18
Foto 7 Casa de Samba Mariana Crioula ........................................................ 85
Foto 8 Restaurante Cazuella ...........................................................................85
Foto 9 Espaço Criarte Mariana Crioula, “Escolinha” .................................... 85
Foto 10 Pia de uso coletivo .............................................................................. 88
Foto 11 Banheiro de uso coletivo .................................................................... 88
Foto 12 Máquina de lavar roupa de uso coletivo ............................................. 88
Foto 13 Varal de roupa no corredor ..................................................................92
Foto 14 Utensílios domésticos no corredor ......................................................92
Foto 15 Corredor de acesso ao prédio ..............................................................92
Foto 16 Palestra durante Encontro Municipal do MNLM ..............................162
Foto 17 Votação durante Encontro Municipal do MNLM .............................162
Foto 18 Grupo do discussão durante Encontro Municipal do MNLM .......... 162
Fotos 19 e 20 Despejo de famílias durante desocupação de Pinheirinho ............... 209

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LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

MNLM Movimento Nacional de Luta pela Moradia


INSS Instituo Nacional do Seguro Social
FNHIS Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social
MCidades Ministério das Cidades
OGU Orçamento Geral da União
CNBB Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
CMP Central de Movimentos Populares
MST Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
CUT Central Única dos Trabalhadores
SINDSPREV Sindicato dos Trabalhadores em Saúde, Trabalho e Previdência
Social no Estado do Rio de Janeiro
FNRU Fórum Nacional de Reforma Urbana
UNMP União Nacional por Moradia Popular
CONAM Confederação Nacional das Associações de Moradores
PEC Proposta de Emenda Constitucional
PAC Programa de Aceleração do Crescimento
FSU Fórum Social Urbano
USP Universidade de São Paulo
SPI Serviço de Proteção ao Índio
FUNAI Fundação Nacional do Índio
RMRJ Região Metropolitana do Rio de Janeiro
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
UN-HABITAT Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos
CONLUTAS Coordenação Nacional de Lutas
SEH Secretaria de Estado de Habitação
SEPE Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação do Rio
NAPP Núcleo de assessoria, planejamento e pesquisa
PETI Programa de Erradicação do Trabalho Infantil
ONG Organização não governamental

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CODEGE Comitê Democrático de Gestão
MAB Movimento dos Atingidos por Barragens
CHISAM Coordenação de Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana
do Grande Rio
BNH Banco Nacional de Habitação
UFF Universidade Federal Fluminense
UERJ Universidade Estadual do Rio de Janeiro
ITERJ Instituto de Terras e Cartografia do Estado do Rio de Janeiro
IBASE Instituto Brasileiro de Análises Socioeconômicas
IPTU Imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana
CONIC Conselho Nacional de Igrejas Cristãs
INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
ACM Associação Cristã de Moços
APPME Associação dos Pequenos Produtores do Mutirão Eldorado
OAB Ordem dos Advogados do Brasil
PT Partido dos Trabalhadores
SEE Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro
UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura
ECA Estatuto da Criança e do Adolescente
SEOP Secretaria Especial de Ordem Pública
Comlurb Companhia Municipal de Limpeza Urbana
DETRO Departamento de transportes Rodoviários
SMO Secretaria Municipal de Obras
SMAS Secretaria Municipal de Assistência Social
PMG Procuradoria Geral do Município
UPP Unidade de Polícia Pacificadora

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SUMÁRIO

Introdução .......................................................................................................................... 01
Abordagens e aproximações ............................................................................................... 01
Interesses diversos ............................................................................................................... 06
Diferentes inserções ............................................................................................................. 09
Distintas temporalidades ..................................................................................................... 17
A organização dos capítulos ............................................................................................... 26

Capítulo 1: Gestão da cidade e ocupação urbana ............................................................... 30


1.1 Um Rio de ocupações ................................................................................................... 30
1.2 Produzindo centralidades: a experiência da Ocupação Manuel Congo ......................... 45
1.3 O funcionamento interno e a apropriação dos espaços................................................. 66

Capítulo 2: Ocupação em dupla face: gestão política e moral ......................................... 102


2.1 Projeto político e dramas familiares: tensões e dilemas cotidianos............................ 102
2.2 Em busca de uma vida melhor .................................................................................... 112
2.3 O universo moral: cuidados, crianças, família ........................................................... 132

Capítulo 3: Crianças, jovens e mulheres: construindo sujeitos, projetando a luta .......... 161
3.1 Movimentos sociais e projetos de formação de sujeitos............................................. 161
3.2 Circulação e fixação ................................................................................................... 185
3.3 A luta generificada...................................................................................................... 200
 
Considerações provisórias ................................................................................................ 219
Referências Bibliográficas ................................................................................................ 227
Anexos
I. Carta de Princípios ........................................................................................................ 237
II. Croqui do Pavimento Térreo ........................................................................................ 243
III. Croqui do Segundo Andar ........................................................................................... 244
IV. Croqui do Terceiro Andar .......................................................................................... 245
V. Corte esquemático do prédio – reforma arquitetônica .................................................. 246
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Casa arrumada é assim:

Um lugar organizado, limpo, com espaço livre pra circulação e uma boa entrada de luz.
Mas casa, pra mim, tem que ser casa e não um centro cirúrgico, um cenário de novela.
Tem gente que gasta muito tempo limpando, esterilizando, ajeitando os móveis, afofando as
almofadas...
Não, eu prefiro viver numa casa onde eu bato o olho e percebo logo:
Aqui tem vida...
Casa com vida, pra mim, é aquela em que os livros saem das prateleiras e os enfeites
brincam de trocar de lugar.
Casa com vida tem fogão gasto pelo uso, pelo abuso das refeições fartas, que chamam todo
mundo pra mesa da cozinha.
Sofá sem mancha?
Tapete sem fio puxado?
Mesa sem marca de copo?
Tá na cara que é casa sem festa.
E se o piso não tem arranhão, é porque ali ninguém dança.
Casa com vida, pra mim, tem banheiro com vapor perfumado no meio da tarde.
Tem gaveta de entulho, daquelas que a gente guarda barbante, passaporte e vela de
aniversário, tudo junto...
Casa com vida é aquela em que a gente entra e se sente bem-vinda. A que está sempre
pronta pros amigos, filhos...
Netos, pros vizinhos...
E nos quartos, se possível, tem lençóis revirados por gente que brinca ou namora a
qualquer hora do dia.
Casa com vida é aquela que a gente arruma pra ficar com a cara da gente.
Arrume a sua casa todos os dias...
Mas arrume de um jeito que lhe sobre tempo pra viver nela...
E reconhecer nela o seu lugar.

Carlos Drummond de Andrade

 
 
 
 
 
 
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INTRODUÇÃO

INTERESSES, INSERÇÕES E TEMPORALIDADES

Abordagens e aproximações

Muitos estudos vêm incorporando há algum tempo as tensões que perfilam o


universo urbano, particularmente as pesquisas etnográficas. Cidade e Antropologia têm
uma relação estreita que vem possibilitando diferentes abordagens.1 Em uma perspectiva
mais ampla, esta tese se insere em um quadro de discussão que pretende pensar o espaço a
partir das suas múltiplas práticas de produção. Aproximando o olhar, veremos que a poesia
que abre este trabalho oferece algumas pistas para delinearmos nosso foco. Esta tese foi
elaborada a partir do trabalho de campo desenvolvido em uma ocupação urbana localizada
no centro da cidade do Rio de Janeiro.
Situada em um prédio de antiga propriedade do Instituo Nacional do Seguro Social
(INSS), a ocupação Manuel Congo localiza-se na Rua Alcindo Guanabara, nº 20, centro da
cidade carioca, com entrada também pela Rua Evaristo da Veiga, nº 17. O prédio, de dez
andares, foi ocupado por cerca de 100 famílias organizadas pelo Movimento Nacional de
Luta pela Moradia (MNLM) no dia 28 de outubro de 2007 com a finalidade de destiná-lo
para moradia. Em novembro do mesmo ano foi aprovada a carta consulta ao Fundo
Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS) dentro do programa “Habitação de
interesse social”2, uma vez que as famílias lá residentes são consideradas de baixa renda, na
maioria das vezes desempregados ou trabalhadores informais. Esta aprovação garantiu
verba para a aquisição do imóvel, excluído o espaço em que se encontra o Restaurante

                                                                                                               
1
A alteridade aplicada ao ambiente cotidiano do pesquisador tem como um dos seus principais marcos as
investidas da Escola de Chicago que inaugurou um tipo de reflexão, até então inédito. No início do século
XX, um grupo de pesquisadores, tomando a cidade de Chicago como laboratório etnográfico, desenvolveu
métodos qualitativos voltados à investigação empírica, ao trabalho de campo e ao uso de fontes documentais
aplicados aos estudos urbanos. Os trabalhos de Robert Park (1976), Louis Wirth (1976), Howard Becker
(1996, 2008) e Erving Goffman (1978) são alguns referenciais desta Escola no estudo de contextos urbanos.
2
Com gestão do Ministério das Cidades (MCidades) e operado com recursos do Orçamento Geral da União
(OGU), o Programa Habitação de Interesse Social, por meio da Ação Apoio do Poder Público para
Construção Habitacional para Famílias de Baixa Renda, busca viabilizar o acesso à moradia à população de
renda familiar mensal de até 3 salários mínimos em localidades urbanas e rurais.

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Cazuella3, assistência técnica para requalificação do mesmo e realização parcial das obras
de reforma.
Acompanhando o dia a dia de alguns moradores, pude perceber que duas categorias
se revelaram recorrentes. Enquanto a moradia aparecia como ponto de pauta do movimento
a casa mostrava-se com tamanha intensidade nas trocas diárias entre os moradores que
comecei a perceber a necessidade de pensar os cruzamentos entre estas duas esferas. Para
tanto, optei por construir duas categorias analíticas que servirão de âncora para refletirmos
acerca destas percepções e de suas múltiplas relacionalidades, território doméstico e
território político. Vale esclarecer de antemão que, embora referidos a contextos cujos
projetos são diferentes, estes espaços não são antagônicos. A própria noção de território nos
possibilita pensar as fronteiras, as sobreposições e justaposições que se configuram em
meio a uma cartografia moral de experiências. Se casa e moradia são duas categorias que
revelam um jogo de relações, projetos, percepções e compromissos que estão ancorados
tanto no espaço quanto no tempo, território doméstico e território político aparecem como
noções fundamentais que nos permite explicitá-las sem, no entanto, confundir-se com elas.
Deste modo, ao enfatizar o cotidiano de uma ocupação como lugar-chave de
construção de identidades, encontros e relações podemos perceber que a luta política da
ocupação é delineada em um cruzamento constante, e por vezes tenso, entre território
doméstico e território político. Enquanto o primeiro refere-se à distribuição moral dos
afazeres familiares, aos compromissos miúdos do dia a dia de uma casa, o segundo remete
ao projeto coletivo de moradia, a uma convivência cercada por regras e prescrições gerais.
No entanto, propor estas duas categorias como eixos norteadores para se pensar o processo
de construção de uma ocupação urbana, não significa dizer que o doméstico esteja em
oposição às questões políticas. Mas, ao contrário, é uma tentativa de demonstrar que o
projeto político da ocupação Manuel Congo tem ligação direta e estreita com o universo
familiar, às vezes convergindo e em algumas situações divergindo. E é neste sentido que
casa e moradia aparecem como percepções que ecoam, no dia a dia, este trânsito.
Se a gestão dos diferentes espaços na cidade apresenta-se, ao mesmo tempo, como
objeto de manipulação da administração pública e como produto de diferentes táticas dos
                                                                                                               
3
O Restaurante Cazuella localiza-se ao lado da ocupação Manuel Congo tendo, na sua instalação, ocupado a
área térrea do prisma de iluminação e ventilação do prédio, construindo sua cozinha, o que vem dificultando o
início das obras de reforma.

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agentes que circulam ou são negados de circular por seus territórios, na ocupação também
estão em jogo múltiplas modalidades de participação e reinvenção do cotidiano. Se já é
notório que o espaço é sempre simbólico, profundamente afetivo e relacional, é preciso
reconhecer que ele não é externo ou anterior às pessoas, mas é constituído a partir das
interações, sendo o tempo todo permeado por produções simbólicas cotidianas. Levando
em conta as múltiplas possibilidades de gestão do espaço urbano, pretendo pensar, a partir
de uma ocupação urbana, ordenamentos que não são estritamente de caráter político,
ideológico ou administrativo mas estão a eles entrelaçados por regras e procedimentos
geridos a partir de táticas morais e redes familiares. Assim, busco entender como se
organiza o cotidiano dos moradores da Manuel Congo e como suas práticas diárias ora
convergem ora divergem de outros projetos políticos como as ações administrativas,
perpetradas em diferentes esferas governamentais e as perspectivas dos movimentos
populares que procuram inscrever os sujeitos em uma agenda de luta estratégica.
As idas para a Manuel Congo invariavelmente implicavam uma parada estratégica
na portaria de acesso ao prédio. Era ali que podia me atualizar sobre os acontecimentos,
bater um papo ou mesmo me informar sobre algum evento ou manifestação. Ao chegar em
uma tarde de segunda-feira de setembro de 2010, aproveitei para conversar com a moradora
que “tirava a portaria”. Passado algum tempo, dois coordenadores do movimento se
aproximaram. Em certo momento, um deles começou a ponderar sobre a minha presença no
prédio, questionando sobre o meu objetivo com a pesquisa e reclamando que se sentia
muito incomodado pelo fato de eu “sacar” meu caderninho e começar a escrever na frente
das pessoas.
Insistia também que, por haver um grande movimento que procura desmobilizar e
deslegitimar o movimento, eu, através de minha pesquisa, não deveria contribuir para este
descrédito. Afinal, ao mencionar que existem conflitos e desavenças dentro da ocupação, eu
poderia estar contribuindo, ainda que indiretamente, para esta “guerra hegemônica”. O
alerta parecia ser certeiro: “Se você está aqui para falar de coisas que não nos interessam, é
melhor nem fazer pesquisa com a gente.”
Neste dia voltei pensativa para casa. Afinal, o que eu estava querendo? Qual o meu
interesse ali com aquelas pessoas? Qual o peso e valor que eu daria às situações que estava
presenciando? Parecia que minha inquietação aumentava na mesma proporção das

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recomendações que eu recebera: “é claro que nos interessa que as pessoas saibam o que
está acontecendo aqui, mas qual o tipo de informação que você estará levando?”. Afinal, o
que implica desenvolver pesquisa em uma ocupação urbana? Quais os limites de minha
presença e quais os riscos que podem daí decorrer? Fora todas as dúvidas e
constrangimentos que este episódio me proporcionou, estava certa de uma coisa: como
aquele incômodo poderia me ajudar? Se a ideia não é fortalecer a tal desmobilização, é
preciso explorar esta desconfiança pela sua positividade e não pelo o que ela me restringe.
O alerta dos coordenadores parecia tocar em dois pontos cruciais em uma etnografia:
primeiro, acompanhar o dia a dia das pessoas significa não apenas observar e analisar, mas
estar constantemente sendo avaliado e monitorado. Segundo, se eles estavam chamando
atenção para o quão delicado é lidar com dramas familiares e conflitos internos é porque de
fato estas situações têm impacto e legitimidade na vida coletiva e, portanto, merecem ser
exploradas.
Aos poucos fui percebendo que a luta por um bem coletivo, a moradia, não está
descolada das relações que cercam e constituem o território doméstico, mas no ambiente
em que eu estava pesquisando o projeto político de convivência coletiva se constitui em
uma ligação estreita com sua dimensão mais profunda e afetiva, a experiência moral de
construção da casa. Neste sentido, esta tese pretende analisar, a partir do contexto de uma
ocupação urbana, como estas duas esferas, a casa, com toda sua densidade moral e afetiva,
e a moradia, como projeto político de vida coletiva, se entrecruzam e em que medida se
distanciam em uma disputa constante e complexa de arranjos societários. Quais os pontos
convergentes e divergentes entre estas formas de apropriação dos espaços e de criação e
manutenção da vida? Quais os níveis de articulação e de disputa quanto à gestão de
populações e territórios e como isso incide sobre as trajetórias familiares? Que formatos de
cidade, de casa, de moradia e de família estão sendo idealizados e praticados e quais as
aproximações/tensões com as experiências dos próprios moradores? Como é possível um
espaço de convivência coletiva com trajetórias diferenciadas, diferentes modos de se
engajar no movimento, estilos, valores e crenças variados? Como articular múltiplos
compromissos (militância, religião, trabalho, estudo, representação política, limpeza do
prédio, atos, manifestações, cuidado com a casa, com a família, com os filhos, etc.) em prol
de uma vida em coletividade?

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Cada uma destas formas de gestão do espaço urbano – políticas públicas,
movimentos sociais e práticas cotidianas – é um universo empírico riquíssimo, o que
possibilitaria o desenvolvimento de três teses distintas. No entanto, meu objetivo é costurar
os três eixos tendo como referência o ordenamento cotidiano perpetrado pelos próprios
moradores. Ao procurar investir em uma etnografia capaz de capturar arranjos que passam
despercebidos ou incompreensíveis pelo ponto de vista de determinados gestores públicos e
de certa radicalidade das organizações populares, procuro dar luz a uma pragmática moral
que, dependendo de momentos específicos, ora interage, ora esbarra com os preceitos e
regras institucionais.
Mais do que a luta pela moradia – categoria política – as pessoas na ocupação estão
lutando por uma casa – um direito cujo significado não se esgota nos moldes
constitucionais, mas ganha eco em práticas cotidianas muito específicas, em uma dimensão
afetiva e relacional. No entanto, vale ressaltar que não estamos trabalhando com escalas
rigidamente separadas, mas com um continuum que percorre as fronteiras, sempre
complexas, da política, das moralidades e da afetividade. A dimensão moral ao mesmo
tempo em que é uma extensão e sustentação das práticas políticas, por outro lado, dela se
afasta, mas sempre em diálogo e embate constantes. A moral, como uma forma de
organizar comportamentos e valores remete sempre a moralidades, entendidas como
campos dinâmicos de construção e veiculação das representações morais, nunca fechadas e
apartadas das experiências concretas nas quais são explicitadas (Vianna, 2002). Desta
forma, a linguagem moral que atravessa a constituição da casa – educar os filhos, fazer
comida, lavar roupa, organizar tarefas domésticas – parece dar a “liga” que permite que a
conquista da moradia se efetue. São estas operações, inclusive em suas contradições, que
esta tese busca construir e analisar, modos muito particulares através dos quais algumas
pessoas, em uma dada configuração urbana, se engajam em um projeto de vida coletiva e
ao mesmo tempo viabilizam arranjos domésticos e familiares para gerir suas casas.
Esta tese poderia enveredar por múltiplos caminhos, poderia ser uma tentativa de
apreensão da ocupação a partir do projeto político de luta pela moradia ou mesmo de
compreensão dos espaços pelos arranjos pessoais dos moradores. Mas, ao invés de apostar
em um polo ou em outro, busco aqui construir e compreender este imbricamento, como
sujeitos concretos conseguem articular a luta do movimento, no sentido macro-político,

19
com a luta diária, com outras formas de engajamento, outras redes de relação como a
família, a vizinhança, o trabalho, o estudo, os filhos. Neste trânsito, ao mesmo tempo em
que o convívio na ocupação acaba por reformular estas interações, criando um novo
comportamento, uma nova moralidade, as próprias vivências familiares, ao convergir,
competir ou escapar às regras coletivas abrem espaço para uma constelação de práticas não
menos operantes na política vivida.
Assim, ao partir do universo empírico da Manuel Congo, procuro discutir como
determinados sujeitos são construídos a partir de uma orientação político-ideológica e como
estes mesmos atores lidam com estas categorizações tendo em vista anseios e engajamentos
diversificados. Para tanto, busco refletir como pessoas, de origens diversas, se
movimentaram para viabilizar uma forma de organização política a partir de motivações e
inserções distintas e como esta diversidade se combina ao território doméstico. Mesmo que
não cheguem a ocupar cargos ou mesmo se envolver em uma institucionalidade militante,
conforme mencionou uma moradora, “quando você vai para uma ocupação
automaticamente a gente faz parte do movimento.” Neste caso, se o engajamento na luta é
um processo que todo morador da ocupação deve passar, as formas e os sentidos desta
adesão são muito variados. Entre as representações governamentais e as diretrizes dos
movimentos sociais, há uma constelação de significados que são disputados e manipulados
cotidianamente. Assim, pretendo verificar como estas práticas sociais, a princípio menos
evidentes, vão ganhando legitimidade e se materializando moralmente no dia a dia da
ocupação Manuel Congo.

Interesses diversos

Desde os tempos de graduação tinha especial interesse pelo espaço urbano, visto
como um ambiente dinâmico, de trocas, disputas e negociações. Durante o curso de
mestrado, realizei pesquisa junto a vendedores ambulantes nos ônibus do Rio de Janeiro no
intuito de perceber como negociavam seu espaço físico, social e moral a partir da
construção de uma rede de relações em um universo de fronteiras fluidas que oscilavam
entre o campo legal/ilegal, formal/informal, proibido/moralmente aceito (Ostrower, 2007).
Esta experiência me possibilitou vislumbrar que existem diversos atores sociais na cidade

20
que buscam se legitimar a partir de recursos e táticas que dinamizam as leis e regras oficiais
ou formais de gestão urbana. Analisar outras formas de sociabilidade, práticas e saberes que
extrapolam os códigos de socialização institucional (ainda que em constante diálogo com
eles) sempre me fascinou intelectual e politicamente.
Ao longo do doutorado, reorientei minha problemática, abrindo um novo campo de
pesquisa. A partir do curso que realizei com minha orientadora4, fui sistematizando melhor
as ideias para uma nova empreitada. No entanto, apesar de muitas dúvidas, o lócus estava
previamente delimitado, faria campo em uma ocupação urbana no centro da cidade do Rio
de Janeiro.
Ao longo do curso foram discutidos diversos textos que iluminaram as reflexões
sobre os temas “família” e “gênero” e seus entrecruzamentos. Estas primeiras reflexões
foram fundamentais na reelaboração de meu projeto de pesquisa, na problematização
teórico-metodológica de algumas noções como família, parentesco, moradia, gênero,
obrigações, e nas minhas primeiras incursões ao trabalho de campo.
Durante o curso, buscamos discutir o que seria uma “família”, quais suas
nomeações e quais os elementos que são da ordem familiar. A partir das discussões
realizadas, pude perceber que a família foi ganhando outros contornos, representando uma
“mancha semântica” muito mais complexa do que pode ser apreendido através de uma
etnografia. Mais do que um universo que possa ser dado a priori ou uma unidade isolada, a
família representa um conjunto de questões, implica em valores, obrigações, redes,
relações, cuidados, abrigos, casas, assim como a produção social de categorias e vivências.
A partir das discussões de vários autores (Yanagisako, 1979; Creed, 2000;
Comerford, 2003; Bott, 1976; Bourdieu, 1996; Marcelin, 1996, 1999; Fonseca, 2007, 2010)
podemos perceber como a família vai sendo pensada em sua dinâmica relacional e,
sobretudo, política. Ao apostarem em “processos familiares” e não em algo dado, estas
análises nos possibilitam um trânsito maior, uma vez que falar de família é falar de uma
esfera de poder, de desigualdades, de um processo conflituoso de construção de unidades,
no sentido de mantê-las ou até diluí-las. Este conjunto de relações tensas (de gênero,
geração, sexualidade, classe, etnicidade, etc.) passa pela constituição de fronteiras, limites,

                                                                                                               
4
O curso “Antropologias especiais: família e gênero” foi oferecido no primeiro semestre de 2008 por Adriana
de Resende Barreto Vianna.

21
hierarquias e jogos de possibilidades dentro de unidades que não são estáticas, mas
dinâmicas e em constante transformação. Os limites do que venha a ser família estão dados
na sua própria condição de existência: o seu lugar eminentemente social.
Há, portanto, um trabalho social contínuo na construção da “empresa familiar”, uma
economia complexa que envolve relações simétricas e assimétricas, situações
contraditórias, disputas e alianças. Descrever o “processo familiar”, ao mesmo tempo em
que implica em sair da unidade, equivale pensar e descrever o fixo, analisando o que
permite tanto a fixidez quanto a fluidez. As unidades são, elas próprias, relações. Desta
forma, o que entra na “marca” da família e o que não entra? O que o processo de
familiarização simbólica está produzindo e como ele pode ser acionado por diferentes
atores, em contextos distintos? Quem entra neste jogo e com quais recursos? O que esta
dinâmica de diferenciação e alianças permite aglutinar e separar?
Seguindo estas premissas, minha intenção é verificar que sentidos e práticas de
família estão sendo pensados e performatizados pelos próprios moradores de uma ocupação
urbana. Ao longo do curso e das minhas experiências etnográficas fui percebendo que não é
qualquer imagem que tem uma eficácia dramática, mas a família, enquanto “direito
material” constitui um aspecto de maior legitimidade na gramática moral de pessoas
negadas de compartilhar certos “direitos formais” fundamentais à sobrevivência na cidade,
como o direito à moradia. Neste sentido, vale acrescentar que, em relação aos vendedores
ambulantes, também pude perceber como a família era acionada, em diversas
circunstâncias, para promover e garantir a integridade do camelô que por vezes se dizia
“pai de família”, se colocando no direito e até na obrigação de comparecer material e
moralmente enquanto tal.
Comecei, então, a formular alguns questionamentos: como se configuram estes
sujeitos que não têm acesso a bens econômicos, sociais e morais chave para a sobrevivência
considerada “formal” e “legal” na cidade? Que não possuem um modelo esquemático de
política de proteção social e que possuem outras representações de família para além do
padrão legalmente reconhecido? Se a família não é uma unidade fixa, como ela é construída
moralmente, como relações de parentesco, como espaços de gestão, como universo de
cuidados, como sujeito político do movimento, como alvo vulnerável das políticas
públicas? Seguindo a mesma perspectiva, o que os moradores entendem por casa e moradia

22
e como articulam as tensões geradas por este entrelaçamento? Como a casa é construída,
considerando os diversos deslocamentos entre uma plataforma administrativa e a política
vivida? Resumindo, quais os diferentes sentidos que os ocupantes dão para o território
doméstico e para a casa e qual a repercussão destas representações na vida ordinária?
Nos espaços das ocupações urbanas estão em jogo construções de visibilidade e de
direitos para além do reconhecimento burocrático. Desta forma, quais são estas dimensões
vivas de classificação que supõem ação social, negociação e performance? Como se dá a
gerência do cuidado tendo em vista que ele é matéria de preocupação mútua neste espaço
coletivo? Quais os recursos que os moradores se utilizam para satisfazer suas necessidades
e realizar seus direitos para além ou a partir dos desejos do “Estado” e de suas categorias
classificatórias? Que posições ocupam, como capitalizam seus sentimentos, como se
organizam politicamente e que forças simbólicas articulam para terem reconhecimento
social?
Pronto, estava dado o pontapé inicial para começar o meu trabalho de campo. Mas
onde estudar, tendo em vista que existem diversas ocupações urbanas no Rio de Janeiro?
Com quem conversar, com que grupo interagir? O primeiro desafio foi encontrar alguém
que pudesse intermediar o meu contato com alguma ocupação. Conversei com meu marido
que tinha um amigo que se disponibilizou a me apresentar a alguns moradores de uma
ocupação no centro da cidade do Rio de Janeiro que era organizada pelo MNLM.

Diferentes inserções

No dia 13 de outubro de 2008, fui apresentada a dois coordenadores nacionais do


movimento e moradores da Ocupação Manuel Congo, em um bar em frente ao prédio. Na
ocasião, a conversa transcorreu de forma tranquila, expliquei que estava fazendo uma
pesquisa para o meu curso de doutorado e eles se dispuseram a me levar para conhecer a
ocupação. Isso só aconteceria uma semana depois, quando conversaria longamente com um
deles.
De fato, é possível descrever três eventos que, juntos, simbolizam o rito de
passagem para a “entrada” na ocupação. Eles aconteceram em momentos distintos e cada

23
um, dentro do seu caráter e singularidade, contribuiu para que eu pudesse conhecer melhor
as pessoas que ali moram e atuam politicamente em prol de um movimento social urbano.
O primeiro evento foi realizado em função da comemoração de um ano da ocupação
no dia 28 de outubro de 2008. Atenta a esta data, perguntei a algumas pessoas se
pretendiam realizar algum festejo. A coordenadora da ocupação comentou que estavam
pensando em fazer um bolo e passar o filme do despejo5, pois todas as vezes que as pessoas
o viam, ficavam eufóricas. No entanto, como era final de mês, a maioria dos moradores não
tinha dinheiro para contribuir com os ingredientes do bolo. Achei ótima a ideia e me dispus
a contribuir com a comida, afinal seria uma oportunidade de participar de algum evento e
ver todo mundo reunido. Combinei com outra moradora, responsável pela cozinha
comunitária, de irmos juntas ao supermercado e providenciar o material necessário. Em
uma sexta-feira, véspera da comemoração (que foi realizada no dia 1º de novembro de
2008), fui com Teresa, uma de suas filhas e Fabiana, outra moradora que também
trabalhava na cozinha, fazer as compras. O bolo seria de abacaxi e, além dele, seria servido
cachorro-quente, em substituição ao jantar daquele dia.
Antes da ida ao supermercado conversei com a coordenadora do movimento e
comentei que tinha um amigo, membro de um Cineclube em Duque de Caxias (Cineclube
Mate com Angu), que havia realizado um filme sobre a comemoração de um ano de uma
ocupação em Nova Iguaçu. Falei sobre a possibilidade de passarmos, no dia do evento, este
filme junto com o do despejo das famílias do Cine Vitória, além de meu amigo falar um
pouco sobre sua experiência. Ele também havia me emprestado outro filme sobre dois
despejos em Goiás, um de uma organização sem-teto e outro de uma organização sem-terra.
Ela achou ótima a proposta, mas ficou um pouco receosa pelo fato de serem muitos filmes
para uma noite só. Recomendou que passássemos só dois (o do despejo e do acampamento
em Nova Iguaçu), pois geralmente as pessoas tendem a se desmobilizar com tantas
atividades. Eu fiquei encarregada de levar um projetor e um aparelho de DVD e meu amigo

                                                                                                               
5
No dia 8 de outubro de 2007, os moradores da Ocupação Manuel Congo, então acampados na sala do antigo
Cine Vitória, na Rua Senador Dantas, nº 45, foram desalojados por tratar-se de uma imóvel privado, cujo
proprietário havia mobilizado um advogado para pressionar as famílias a se retirar. Na ocasião foi realizado
um filme que costuma ser passado em reuniões e datas comemorativas.

24
Foto 1: Comemoração 1 ano da Ocupação Manuel Foto 2: Brincadeira de roda durante a comemoração
Congo

Foto 3: Parabéns durante Comemoração de 1 ano

25
assim como outros integrantes do Mate com Angu, levariam o filme sobre o acampamento
e aproveitariam a oportunidade para contar um pouco de suas experiências e do
funcionamento de um projeto como o cineclube.
No sábado, dia do evento, fui com meu marido e enteada (estava grávida de três
meses) e o grupo de cineclubistas para a ocupação. Começamos a montar a aparelhagem de
som e vídeo e a organizar o ambiente para a projeção e posterior debate. A sala, onde
aconteciam as assembleias quinzenais, estava toda decorada com bolas vermelhas e brancas
(cores do movimento), uma mesa central com uma toalha vermelha, várias cadeiras ao
redor e uma grande bandeira do MNLM pendurada na parede do fundo. Muitos moradores
ainda não tinham chegado, então aproveitei para subir até a cozinha coletiva, que fica no
terceiro andar, e encontrei com o pessoal terminando de fazer os preparativos para o
cachorro-quente.
O bolo estava pronto, era enorme, coberto com glacê branco e tinha os seguintes
dizeres em vermelho: “Aniversário de 1 ano da ocupação Manuel Congo”. Estavam todos
felizes, mas exaustos, pois passaram a madrugada assando e decorando o bolo. Apesar de
tudo parecer quase pronto, havia um pequeno detalhe, a largura do bolo (que estava apoiado
sobre uma tábua de madeira coberta com papel alumínio) era maior do que a largura da
porta por onde ele deveria passar. Assim, para levá-lo até a sala do evento, um andar
abaixo, seria necessário incliná-lo um pouco, a fim de que passasse pela porta. Para tanto,
vários homens foram mobilizados para tal tarefa e depois de muita discussão, tensão e
habilidade, finalmente o bolo chegou ao seu local de destino.
Aos poucos as pessoas foram chegando, fui falando com quem já conhecia e me
apresentando aos desconhecidos. Enquanto o salão não ficava cheio, fomos passando
algumas fotos tiradas por mim e por uma menina, estudante de Direito e militante do
MNLM, que faz um trabalho de assessoria jurídica para a ocupação. Enquanto ajudava a
organizar a montagem para o filme ouvi um morador dizer para outro “em todo evento, as
pessoas demoram para chegar e resolvem se arrumar no último momento!” Tudo bem,
achei compreensível, ainda mais que os banheiros são coletivos e, afinal, era dia de festa.
De repente, o salão estava repleto de crianças que brincavam e corriam de um lado para o

26
outro. Aproveitando o número considerável de público, resolvemos passar o filme “Um ano
e um dia” sobre o acampamento em Nova Iguaçu. Ao longo da sessão, foi nítida a
identificação das pessoas com aquela realidade. Afinal, tratava-se de situações semelhantes:
pessoas lutando por moradia e comemorando, finalmente, um ano de resistência e luta. A
recepção não podia ser melhor, aplausos, gritos e elogios. Em seguida, meu amigo falou
sobre a experiência da filmagem e sugeriu que poderia realizar novas sessões com outros
filmes além de levar os acampados de Nova Iguaçu para falar de suas histórias, dificuldades
e conquistas.
Depois dessa breve apresentação, foi passado o filme sobre o despejo dos
moradores ali presentes. Foi impressionante observar esta cena, pois enquanto as imagens
iam sendo projetadas, as crianças ficavam eufóricas e começavam a clamar gritos e
palavras de ordem: “Reforma Urbana já!”, “Manuel Congo: presente!”, “Ocupar, resistir
pra morar!”, “1, 2, 3, 4, 5, mil, ou faz reforma urbana ou paramos o Brasil!”, “A nossa luta
é todo dia, moradia não é mercadoria!”. As pessoas se identificavam nas imagens do filme
e lembravam sobre a ocupação no Cine Vitória, o momento do despejo, os primeiros atos,
enfim, estava ali registrado um pouco de suas histórias. Ao final, todos aplaudiram e
continuaram gritando palavras de ordem. Foi bastante emocionante e me lembrei das
palavras da coordenadora de que o filme provocava um “transe” nas pessoas. Após a
euforia, foi servido o cachorro-quente, refrigerante e, por último, foi cantado o parabéns em
homenagem a todos ali presentes e distribuído o bolo.
Esta comemoração foi importante não só para que eu pudesse ser apresentada aos
moradores da ocupação, mas para que eles próprios pudessem me conhecer e, em certa
medida, me aceitar como uma pessoa que estaria frequentando aquele espaço pelos
próximos anos. Além deste evento aconteceram mais duas situações que foram
fundamentais para que eu começasse a entender um pouco a dinâmica interna (e externa) de
uma ocupação urbana.
O segundo momento foi a realização do Encontro Municipal do MNLM que
aconteceu no Dia Nacional da Consciência Negra, em 20 de novembro de 2008, o qual será
melhor analisado no capítulo 3. O Movimento Nacional de Luta pela Moradia foi criado em
julho de 1990, durante o I Encontro Nacional dos Movimentos de Moradia, com
representação de treze estados. Materializou-se depois das grandes ocupações de áreas e

27
conjuntos habitacionais nos centros urbanos, deflagradas principalmente na década de
1980. Durante sua criação, teve como apoiadores a Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil (CNBB), Cáritas Brasileira e Central de Movimentos Populares (CMP). Atualmente
o movimento tem parceria com a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e vínculo com o
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Ele está organizado em quinze
estados brasileiros: Pará, Acre, Mato Grosso do Sul, Distrito Federal, São Paulo, Minas
Gerais, Espírito Santo, Pernambuco, Sergipe, Bahia, Rio de Janeiro, Tocantins, Paraná,
Paraíba e Rio Grande do Sul.
O Encontro Municipal do MNLM, realizado na cidade do Rio de Janeiro, foi
dividido em dois turnos: o turno da manhã foi realizado no Sindicato dos Trabalhadores em
Saúde, Trabalho e Previdência Social no Estado do Rio de Janeiro (SINDSPREV), na Lapa,
e contou com a presença de um representante da CMP. Este militante fez uma palestra
sobre a história do Quilombo dos Palmares e sobre a importância de sua principal liderança,
Zumbi dos Palmares. Foi feita ainda uma análise de conjuntura e o microfone passou pelos
participantes que puderam dar suas opiniões e fazer suas críticas e denúncias.
A parte da tarde foi realizada na própria ocupação e começou com a presença de um
colaborador do MNLM. Ele fez uma análise da situação de desigualdade social no Rio de
Janeiro que se reflete na maneira como a cidade é ocupada por diferentes classes sociais.
Falou ainda sobre a necessidade de solidariedade à Ocupação Quilombo das Guerreiras,
situada na zona portuária, evitando que não fosse despejada com o processo de
revitalização do centro do Rio. Por fim, reconheceu que existe todo um trabalho ideológico
de construção do brasileiro como ser passivo e acomodado e enfatizou que para haver
transformação social é preciso haver união, organização e formação política. Chegou ainda
a propor o desenvolvimento de um coletivo de formação o qual ajudaria os moradores a ler
textos, matérias de jornais e revistas, assistir a filmes e discutir. Após sua fala, foi aberto
um debate e as pessoas puderam tirar suas dúvidas e expor suas ideias.
Em seguida, os cerca de sessenta participantes foram divididos em três grupos para
debater alguns temas como: violência, juventude, gênero, etnia, saúde, especulação
imobiliária, moradia digna e revitalização do centro. Sentados em círculo, participavam de
cada grupo moradores da Manuel Congo e outros futuros ocupantes, sendo que cada um era
incentivado a falar. Os moradores da ocupação deveriam comentar sobre o que o

28
movimento, e as pessoas de maneira geral, estavam fazendo e o que poderiam fazer a
respeito de cada tema proposto. Os demais, a partir das observações e contribuições,
falavam sobre como poderiam aprender com outras experiências e o que poderiam esperar
da nova ocupação. Ao fim da discussão, cada grupo escolhia um relator que apresentava,
durante a plenária final, as propostas elaboradas coletivamente.
Os coordenadores nacionais do MNLM ficavam responsáveis por sistematizar e
escrever as propostas em um grande bloco exposto no centro da sala. Depois desta síntese,
eles leram em voz alta e perguntaram se todos se sentiam contemplados ou se havia
necessidade de incluir algum ponto. Após a leitura, os coordenadores chegaram à conclusão
de que as propostas estavam muito mais relacionadas à identificação de problemas do que a
desdobramentos e planos de ação capazes de enfrentá-los. Por isso, propuseram uma
agenda de reuniões para decidir estas formas de luta e todos os participantes elegeram os
novos coordenadores municipais responsáveis por “falar em nome do movimento”,
respeitando as diretrizes nacionais.
Ao final do Encontro, foi anunciado que no dia 25 de novembro de 2008, para
simbolizar o Dia Nacional de Luta pela Reforma Urbana, o qual faz parte da Jornada
Nacional de Luta pela Reforma Urbana e pelo Direito à Cidade, seriam organizados atos
articulados pelo Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU) 6 e diversos outros
movimentos sociais em vinte e dois estados brasileiros. No Rio de Janeiro, o ato seria
mobilizado a partir da seguinte agenda: contra a especulação imobiliária; contra a demora
na aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) da Moradia Digna, que
viabiliza 2% do Orçamento Geral da União para o Fundo de Habitação Popular (FNHIS) e
1% dos orçamentos estaduais e municipais para os fundos estaduais e municipais; contra a
eliminação do déficit habitacional e a revitalização do centro que acaba por excluir as
camadas populares.
O ato no Rio foi realizado no Palacete Príncipe Dom João VI, construído em 1912 e
localizado na Praça Mauá nº 10. O imóvel, onde funcionava a antiga sede do Portus
Instituto de Seguridade Social, foi vendido, em 2003, para a Procid Investimentos,
                                                                                                               
6
O Fórum Nacional de Reforma Urbana, que existe desde 1987, é um grupo de organizações brasileiras,
incluindo movimentos populares, entidades profissionais, ONGs e instituições de pesquisa que lutam por
promover a Reforma Urbana no país. Dentre os movimentos populares articulados ao Fórum destacam-se:
União Nacional por Moradia Popular (UNMP), Central de Movimentos Populares (CMP), Movimento
Nacional de Luta por Moradia (MNLM) e Confederação Nacional das Associações de Moradores (CONAM).

29
Participações e Negócios S.A, integrante do Banco Santos. No entanto, após intervenção e
liquidação do Banco Santos pelo Banco Central, a Procid deixou de pagar as prestações e o
Instituto Portus tentou, através de medida judicial, retomar o imóvel, mas não teve êxito.
Sabendo deste imbróglio, do abandono do prédio e do projeto de revitalização da
zona portuária7 do Rio, o MNLM juntamente com a União Nacional por Moradia Popular
(UNMP) e a Central de Movimentos Populares (CMP) ocuparam o imóvel na manhã do dia
25 de novembro de 2008. Cheguei ao suntuoso palacete, em situação de total abandono, no
final da manhã e encontrei várias pessoas sentadas nas escadarias e “protegidas” por um
grande portão de ferro trancado por um cadeado cujas chaves estavam em posse dos
ocupantes. Eram crianças, jovens, adultos e idosos de diversas ocupações situadas no centro
do Rio e militantes de movimentos populares. Apesar do desgaste, pareciam alegres e
determinados, entoando gritos de “Reforma Urbana, já!”, “Me parece, me parece que o
socialismo cresce!”, “1, 2, 3, 4, 5, mil, ou faz reforma urbana ou paramos o Brasil!”. No
meio da barulheira, pude acompanhar uma parte do diálogo da coordenadora do MNLM
com o advogado do Portus:
“... Agora, vai ter vontade política sem a gente cutucar, companheiro?
Não teve dinheiro para salvar os grandes bancos? Não teve dinheiro para
enfiar nessas empreiteiras vagabundas fazer essas obras de fachada do
PAC [Programa de Aceleração do Crescimento] nas comunidades? Até
para comprar boca de fumo nas favelas, não teve? Ótimo! Então, por que
o fundo dos trabalhadores tem que ficar com um buraco? Por que o povo
que não tem onde morar tem que ficar na rua? E não adianta, a resposta
que eles vão dar para a gente vai ser sempre ‘não’ se a gente não tiver nas
ruas para protestar. Quem é sindicalista sabe disso, nós que somos do
movimento popular sabemos disso.” (Ângela)

O advogado procurou se desviar das críticas, ressaltando que o presidente Lula só se


pronunciaria no dia seguinte. Mas sua real preocupação era saber por quanto tempo as
pessoas permaneceriam no local, pois caso fosse necessário, poderia convocar a polícia
para retirá-los à força. A coordenadora se mostrou indiferente quanto à possibilidade de
ação policial, eles ficariam no palacete por tempo indeterminado, caso fosse necessário,
estavam apenas aguardando uma resposta positiva do presidente. Perguntei se estavam

                                                                                                               
7
“Lançado em junho de 2010, o ‘Projeto Porto Maravilha’, uma união das esferas municipal, estadual e
federal, além da iniciativa privada, pretende revitalizar toda a Zona Portuária da cidade, transformando-a em
um polo turístico e de investimento para empresários de vários setores.” (Fonte:
http://www.portomaravilhario.com.br/oprojeto/ Acesso em 06 de abril de 2011)

30
precisando de alguma coisa e a resposta, vinda do fundo, foi certeira: “é pão e guaraná, a
casa a gente vai conquistar.” Parecia-me claro que se, por um lado, o Instituto Portus estava
reclamando na justiça o seu direito à posse do prédio, por outro, os movimentos populares
estavam questionando no “direito concreto”.
Fui com mais uma pessoa comprar pão, queijo, mortadela e guaraná em um
mercadinho próximo e retornamos rapidamente ao palacete. Após o lanche, os três
movimentos ali reunidos realizaram uma assembleia à tarde. Decidiram sair do prédio por
volta das cinco e meia em passeata de solidariedade até a Ocupação Machado de Assis que,
na madrugada do dia 22 de novembro, havia ocupado um prédio na Rua da Gamboa, centro
do Rio.

Distintas temporalidades

O período de um trabalho de campo costuma passar por diferentes etapas. No meu


caso, minha presença na ocupação pode ser delimitada por dois momentos: quando eu
estava grávida do meu filho e depois do nascimento dele, em maio de 2009. Quando
comecei a frequentar a ocupação a minha presença sempre foi notada e comentada por esta
condição. No começo, era conhecida como a “menina de barriga”, sempre me ofereciam
algo para comer, evitavam que eu subisse muito as escadas ou fizesse muito esforço,
comparavam o tamanho da minha barriga com a de outra moça em situação semelhante.
Enfim, a gravidez era ponto de pauta sempre que eu me aproximava para conversar,
aparecia em algum apartamento ou mesmo ficava observando.
Depois do nascimento de Guido, fiquei afastada por cerca de um ano para viver este
momento de grandes mudanças que a chegada de um bebê proporciona em uma família. No
início de 2010, comecei a pensar em uma estratégia de retorno. Entretanto, estava receosa:
será que lembrariam de mim? Será que me “aceitariam” de volta? Como estariam as
pessoas e em que situação encontrava-se a ocupação?

31
Foto 4: Palacete ocupado por Movimentos Populares Foto 5: Faixa estendida em frente ao Palacete ocupado

Foto 6: Famílias lancham nas escadarias do Palacete ocupado.

32
Aos poucos fui percebendo que deveria usar todo este tempo de ausência a meu favor, pois,
de fato, isso poderia ser um dado importante. Quem chegou e quem saiu da ocupação,
mudou o perfil dos ocupantes, as lideranças continuavam as mesmas? E a relação comigo,
seria diferente? Como entraria a questão da maternidade e o papel da mulher/mãe/dona de
casa? Como era realizado o cuidado dos filhos e a atenção dispensada às crianças na
ocupação? Assuntos que antes eu não tinha dado tanta atenção (amamentação, sono do
bebê, educação dos filhos, higiene, cuidados...) poderiam, agora, se tornar mais pertinentes,
ainda mais que eu dominava um tipo de savoir faire que poderia ser útil para compartilhar
com as mães.
A retomada do campo se deu a partir da participação no Fórum Social Urbano
(FSU), um evento que aconteceu na cidade do Rio de Janeiro, em março de 2010, no
Centro Cultural da Ação da Cidadania Contra a Fome, na Zona Portuária. O FSU aconteceu
de forma paralela ao evento tido como oficial, o V Fórum Urbano Mundial, organizado pela
ONU-Habitat, cujo tema era “O Direito à Cidade: Unindo o Urbano Dividido”.8 Com a
participação de diversas autoridades internacionais, este último, todo falado em inglês, era
tido, por muitos que participavam do FSU, como um espaço da elite, reservado para
discutir questões dela e para ela. Em contrapartida, o FSU, com o tema “Nos bairros e no
mundo, em luta pelo direito à cidade, pela democracia e justiça urbanas” se propunha a ser
“um espaço verdadeiramente público, de ampla participação popular”, sem a participação
de “figurões do Estado”, do “Capital” ou do “Saber”, mas “um espaço aberto a todos e
todas!”
O FSU teve início com um ato público na Candelária, no Centro do Rio, e
continuou sua programação com mesas redondas, painéis, reuniões, oficinas, debates,
plenárias, vídeos, rodas de conversa e atividades culturais que encerravam o dia com shows
de hip hop, samba, afoxé, dentre outros. Tive a oportunidade de assistir à mesa de abertura,
que contou com as presenças de Ermínia Maricato e Raquel Rolnik, ambas professoras da
Universidade de São Paulo (USP). Para dar as boas vindas aos participantes, foram
chamados à mesa os representantes dos principais movimentos sociais que apoiavam o

                                                                                                               
8
Considerado “o principal evento de urbanismo do mundo”, o V Fórum Urbano Mundial “foi estabelecido
pelas Nações Unidas para analisar um dos problemas mais urgentes que o mundo enfrenta hoje: a rápida
urbanização e seu impacto nas comunidades, cidades, economias, mudanças climáticas e políticas.” (Fonte:
http://wuf5.cidades.gov.br/pt-BR/Home.aspx)

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FSU9. Dentre estes últimos, estava a coordenadora do MNLM e moradora da Manuel
Congo. No mesmo instante pensei, “pronto, está ali uma ótima oportunidade para que eu
possa falar com ela e, quem sabe, reestabelecer os vínculos com a ocupação.”
Ao final das falas, avistei Ângela nos bastidores e corri para falar com ela, que me
recebeu com um abraço e se mostrou feliz pelo encontro. Perguntou porque eu tinha
sumido, disse para eu aparecer na ocupação e me levou para conhecer o espaço onde
estavam montando uma barraca para vender bebidas e churrasquinho durante o Fórum, a
fim de arrecadar dinheiro para o movimento.
A partir daquele encontro, aos poucos fui reconduzindo minha pesquisa e
delimitando melhor o foco desta tese. Afinal, em que termos eu quero refletir sobre e a
partir de uma ocupação urbana? Se no começo do trabalho de campo eu acabei me
seduzindo por uma linguagem militante, por vezes cativante, aos poucos fui tentando
escapar desta miríade, no intuito de recuperar outras práticas e representações menos
evidentes. Entretanto, enfatizar as trajetórias e expectativas dos próprios ocupantes não
significa se limitar a suas experiências pessoais ou unidades domésticas (mesmo
considerando a complexidade destas esferas) mas implica em um movimento para além da
Manuel Congo, com vistas a um olhar mais sólido e embasado por outras realidades
etnográficas.
Deste modo, é preciso inserir a ocupação em um plano sociológico mais amplo, o
que implica em observá-la a partir do ponto de vista administrativo, da agenda dos
movimentos sociais e das táticas cotidianas dos atores sociais. Que modelos estão sendo
oficialmente propagados como legítimos e como os moradores de uma ocupação
viabilizam, através de outras esferas, a legitimidade da família, da casa, de cidadania e de
justiça social?
Em relação ao ponto de vista administrativo, entendo todas as formas de gestão e
administração do espaço urbano, ou melhor, as relações de poder impetradas em diferentes
esferas (federal, estadual, municipal), que buscam gestar e gerir o território a partir de
programas, projetos, estatutos, leis, enfim, todo um aparato legal que constitui a chamada
“política urbana”. Estas políticas se fazem presentes não só burocraticamente, mas a própria
                                                                                                               
9
Os movimentos sociais que contaram com representantes na mesa de abertura do FSU foram: União
Nacional por Moradia Popular (UNMP), Comunidade Cruzada São Sebastião, Movimento Nacional de Luta
pela Moradia (MNLM), Quilombo Pedra do Sal e Central de Movimentos Populares (CMP).

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burocracia governamental é entremeada de valores, imagens e pré-noções do que seja uma
moradia, um arranjo familiar e uma ocupação. Há representações formuladas pelo “Estado”
no sentido de atribuir sentidos para as práticas destes atores que, em diversos momentos,
extrapolam as próprias expectativas dos moradores. Por isso, há de se ater sobre as
diferentes concepções sobre lei e justiça, legal e ilegal, formal e informal, não como esferas
antagônicas, mas como realidades que se entrecruzam e se metamorfoseiam.
Para tanto, é preciso esclarecer o que entendo por “Estado”. Se considerarmos,
como Weber (1999) sinaliza, que Estado constitui uma relação de homens dominando
homens e que “toda dominação manifesta-se e funciona como administração” (Weber,
1999: 193), devemos considerar o Estado no seu aspecto administrativo, ou melhor, é
preciso visualizar as relações de poder que são acionadas para gerir as pessoas, enquadrá-
las e alocá-las em um território regulado e normatizado.
Souza Lima (2002) nos recorda que o Estado funciona como “dispositivos de
dinâmicas de territorialização” através de “especialistas”, ou melhor, funcionários públicos
que são “portadores e produtores de certos saberes que se cristalizam em setores da
administração”. Por isso, é necessário pensar a administração pública como parte destes
processos de formação de Estado, o que implica em pensar as múltiplas modalidades de
instauração de desigualdades e hierarquias.
Nesta perspectiva, ainda que não tenha focado os eventos críticos (eles existem
através dos despejos forçados), é preciso “recuperar a dimensão de representação no
sentido performático e figurativo da administração pública” (Souza Lima, 2002: 12). Aqui
vale relembrar os dramas governamentais, encenações produzidas e performatizadas pelas
administrações públicas como forma de marcar sua presença ou sua “ausência relativa”,
ainda mais quando lidamos com a gestão de desigualdades entre segmentos pobres da
população. Este ponto será discutido no primeiro capítulo, quando abordaremos as práticas
de planejamento urbano implementadas na cidade do Rio de Janeiro, iniciadas a partir de
um paradigma higienista no início do século XX.
Como parte de um “complexo de políticas”, existe um amplo movimento de
formação do Estado, das ideias, planos e ações de governo no sentido de condensar
esquemas de pensamento e espaços sociais e geográficos diversos. Como discutido por
Souza Lima (2002), a “política indigenista” seria uma destas tentativas de assegurar a

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aparelhos de Estado – ao Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e à Fundação Nacional do
Índio (FUNAI) – o monopólio de educação, saúde, ação fundiária e mediação tutelar no
exercício dos direitos políticos e civis de povos indígenas.
Ainda que estejamos explorando outro universo empírico, esta análise pode ser útil
uma vez que existem diversas outras situações que nos possibilitam pensar as políticas
públicas, sobretudo em um país marcado por intensa desigualdade social. Como sinaliza o
autor, a “política indigenista” é um campo fértil para a análise dos poderes de Estado no
Brasil. E é neste ponto que esta discussão nos interessa, como pensar as ações do Estado a
partir de processos de regionalização e gestão territorial. Em que sentido as práticas de
aparelhos de governo destinam-se, dentre outras coisas, ao controle da mobilidade espacial
de segmentos da população brasileira? E mais, como estas práticas se valem não só de leis e
regras formalmente sancionadas, mas de saberes específicos, técnicas e especialistas, assim
como de rituais e momentos de espetacularização da vida política. O vértice dessa
discussão é justamente revelar como a formação do Estado está apoiada em uma gestão
combinada de populações e territórios.
Neste sentido, o universo de uma ocupação urbana é um ambiente profícuo para
pensarmos como se incidem certas formas de intervenção social, definidas como “política
urbana”, que são “tomadas não só como ideias racionalizadas em planos escritos, mas
também como ações que podem ser apreendidas na observação do cotidiano de relações
sociais (...).” (Souza Lima, 2002: 13). Cabe perceber, portanto, como a chamada “política
urbana” acaba criando as próprias condições para o desenvolvimento de uma ocupação
urbana, e como, através de diferentes dispositivos, ela passa a intervir na vida social diária
de seus ocupantes. Considerando sua função político-pedagógica, como é possível a criação
de definições e imagens de segmentos sociais construídos na qualidade de “carentes” e, ao
mesmo tempo, o controle cotidiano de espaços, mantendo os “desiguais em seus nichos”?
Até que ponto não é politicamente válido, administrativamente positivo e economicamente
rentável reconhecer uma ocupação urbana como moradia legítima (pelo menos em termos
legais) e apropriada para “acolher” determinados sujeitos?
Por sua vez, o movimento, através de suas lideranças (ou analogicamente de um
“corpo de especialistas”), também tenta, por vezes, territorializar sujeitos políticos, através
de agendas de luta, atos, manifestações, regulamentos internos e outras formas

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organizacionais, como assembleias, reuniões, comissões, coordenações, seguindo uma
lógica usual aos movimentos sociais. Como qualificam os sujeitos ali envolvidos e que
categorias são utilizadas para atender determinadas expectativas? Até que ponto sua
presença é válida e útil na condução de uma ocupação urbana? Como procede sua “forma”
de atuação e como este modus operandi dialoga com outros movimentos sociais? Como se
realiza a produção dos representantes e qual a sua importância para a organicidade de uma
ocupação?
Ao contemplar estes múltiplos trânsitos, é preciso observar como os próprios
moradores se organizam no seu cotidiano. Como acionam diferentes redes (familiares,
vizinhos, amigos...) no intuito de participar dos espaços coletivos, administrar a casa,
cuidar das crianças, fazer comida, lavar roupa, estudar e trabalhar? Que conflitos aí
aparecem, como lidam com as brigas, invejas, ciúmes e rivalidades? Como entendem as
múltiplas representações criadas pelos processos de estatização e pelos movimentos
populares e como negociam com eles e a partir deles? Qual a importância de uma ocupação
em suas vidas e quais as múltiplas formas de engajamento no movimento? Para tanto, vale
observar como diferentes trajetórias de vida culminam em um projeto coletivo de moradia
e que tipos de convergências e divergências aparecem neste imbricamento.
Como a ocupação vai se tornando uma realidade espacial e temporal na vida destas
pessoas? O que está sendo tecido na prática, no final das contas, é também uma carreira do
merecimento, a figura moral do morador enquanto um cidadão digno de reconhecimento
social. Como estas pessoas, a partir de múltiplas realidades e distintas convicções, acionam
diferentes recursos para se distanciar de certos estigmas? Neste caso, vale analisar
diferentes discursos e maneiras de proceder que tentam apartar a ocupação de um ambiente
hostil, violento e desorganizado. Da mesma maneira que os moradores da ocupação passam
por processos de rotulação que os associam às figuras do “invasor”, “sujo”, “desocupado”,
eles próprios lançam mão de imagens semelhantes para retratar outras realidades. Este
apartheid simbólico passa não só por categorias de acusação mas por maneiras muito
particulares de gerir o território de modo que a ocupação reflita interna e externamente um
ambiente limpo, organizado, unido e pacífico.
A despeito de todas estas problematizações, é preciso ainda precisar o meu recorte
empírico e analítico. Seria ele territorial (o prédio), corporativo (o movimento),

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governamental (as modulações estatais), biográfico (as trajetórias e percepções pessoais) ou
o meu trabalho implicaria muito mais em um trânsito por todas estas esferas? A passagem
por diferentes escalas, embora nem sempre ou necessariamente excludentes, significa
perceber não o diálogo entre unidades substantivas, mas uma dimensão relacional que dilui
as fronteiras, conectando pessoas, instituições e objetos em múltiplas direções e
temporalidades.
Ao invés de segmentar processos administrativos, moradores e movimento, como
esferas distintas, é preciso perceber como determinados sujeitos reivindicam seus direitos
não por meio de “mediadores” (categorização habitual dos movimentos sociais), mas como
incorporam novas estratégias e novas dinâmicas do engajamento político para recusar, em
alguns momentos, certas modulações, e em outros, negociar e criar através destas, novas
possibilidades de vida. Se a ocupação de um prédio abandonado aparece, em um primeiro
momento, como uma ação coletiva empenhada a confrontar diretamente uma lógica de
gestão urbana, não se trata de uma ação “contra” o Estado, “à margem” ou “apesar” dele,
mas a partir dele. Afinal, foi por meio de suas instâncias e de fundos públicos que as
famílias reivindicaram e conseguiram a aprovação de verba para aquisição do imóvel,
assistência técnica para requalificação do mesmo e realização das obras de reforma. A luta
que se revela ser “contra” o Estado (através da ocupação de prédios públicos ociosos) acaba
se consolidando através de recursos públicos, embora desencadeie relações e práticas que
escapam às fórmulas estatais. Levando-se em conta estas muitas interfaces, o interesse aqui
é recuperar a densidade moral por detrás das dicotomias paralisantes, no sentido de dar
conta de uma multiplicidade de relações que se atualizam rotineiramente a partir de
experiências de vida muito particulares.
Como sinalizado anteriormente, o Estado só se realiza através de uma pluralidade
de tecnologias de poder. E, neste sentido, é uma ilusão acharmos que ele se constitui como
unidade estável e autônoma de outras esferas. As contradições são parte constitutiva desse
processo de governança e, em certa medida, as próprias pessoas se valem disso para acionar
outros projetos de vida. Em situações extremas são estes mesmos projetos que são
interrompidos por uma ordem pública que, sob o ideário da “democratização” e da
“participação popular”, apela para o extermínio de vidas e coletividades. Neste ponto, vale

38
destacar a situação de Pinheirinho10 e todo o drama que envolveu a desapropriação das
famílias e a repercussão que teve nos movimentos populares.
O objetivo desta tese é justamente resgatar a trama destas relações cotidianas que se
bifurcam e se compõem pelos meandros do Estado, pelas regras de um movimento social
de luta pela moradia e pelos arranjos familiares de gestão da casa. Nesta perspectiva,
procuro demonstrar como pessoas, com trajetórias diversificadas, se engajam em um viver
coletivo, seja para sair do aluguel, para estar próximo ao local de trabalho, para fugir da
violência na favela, ou mesmo para dar uma vida melhor aos filhos. Estas múltiplas formas
de adesão vão ganhando sentido obviamente quando percorremos a densidade das relações
no interior de uma ocupação urbana.
Antes de descrevermos os capítulos uma última ressalva se faz pertinente. Embora,
em todos eles, esteja tomando como ponto de partida a realidade concreta de alguns
moradores, optei por perder certa precisão etnográfica, trocando seus nomes, cargos ou até
o gênero do informante. Tal decisão não implica em um descuido analítico, mas mesmo
reconhecendo que certas circunstâncias seriam melhor explicitadas quando remetidas aos
sujeitos concretos, este deslocamento é importante por alguns motivos. Primeiramente,
como em todo trabalho que pode vir a ter repercussões públicas, é prática usual a troca dos
nomes dos sujeitos a fim de preservar suas identidades. Além disso, dado o contexto
delicado e por vezes violento em que se encontram as ocupações urbanas no Rio de Janeiro,
é mister a substituição dos nomes, sobretudo, as citações que explicitam posicionamentos
políticos que podem comprometer os agentes interna e externamente. Por fim, espero que
esta decisão não traga prejuízos para o texto, uma vez que a intenção aqui é contribuir para
que um campo fértil de mobilização popular possa ser apreendido, ainda que parcialmente,
na densidade com que é construído cotidianamente. Mesmo que a presente tese tenha se
detido à análise das relações circunscritas ao espaço de uma ocupação11, o universo que
remontamos pode nos ajudar a reconhecer um panorama muito maior e mais complexo de
resistências que se proliferam pelo cenário urbano.

                                                                                                               
10
Em 22 de janeiro de 2012, a ocupação Pinheirinho, em São José dos Campos, sofreu uma ordem de
reintegração de posse expedida pela justiça estadual do governo de São Paulo, desalojando, de forma violenta,
cerca de 1500 famílias que ocupavam a área desde 2004.
11
Em sua monografia, Mamari (2008) desenvolve um Mapa das Ocupações de sem-teto na Região
Metropolitana do Rio de Janeiro onde identifica 38 ocupações sendo que algumas conseguiram a
permanência jurídica na localidade ocupada e outras ainda estão na luta por este direito.

39
A organização dos capítulos

A tese está dividida em três capítulos. No primeiro procuro descrever o universo da


ocupação Manuel Congo, situando-a num plano genealógico mais amplo. Este trânsito por
diferentes níveis de análise nos permite questionar qualquer possibilidade de reificação de
escalas da vida coletiva, estimulando a compreensão do cotidiano, do bairro, da cidade e do
país como realidades híbridas, na medida em que, no plano “micro” é possível reconhecer
diferentes manifestações do “macro”: decisões relativas à aplicação dos recursos públicos,
influências institucionais, orientações governamentais, diretrizes de movimentos sociais,
enfim, interesses econômicos e políticos circunscritos nas práticas diárias dos ocupantes.
Nesta perspectiva, recupero brevemente alguns momentos históricos de como a
cidade do Rio de Janeiro foi sendo administrada através de reformas destinadas ao
embelezamento e à expulsão das camadas populares para áreas periféricas. Este tipo de
gestão urbana, ao priorizar investimentos em infraestrutura para transações comerciais e
financeiras, contribuiu para agravar o isolamento social e o não acesso das camadas
populares aos meios de consumo coletivos.
Diante disso, as ocupações urbanas surgem como alternativa para o resgate da
centralidade em termos de moradia, trabalho, renda e qualidade de vida. Em meio a um
contexto de disputa eminente dos territórios urbanos, dada a aproximação da Copa do
Mundo de 2014 a realizar-se no Brasil, e os Jogos Olímpicos de 2016 com sede na cidade
do Rio de Janeiro, é preciso perceber a ocupação como um contraponto e extensão à
regulação administrativa do espaço urbano, dando luz à sua própria organização interna e
sua sociabilidade cotidiana. A análise deste plano, sem perder de vista uma perspectiva
mais ampla, implica em perceber a ocupação no seu aspecto físico, político, moral e
afetivo.
Na dimensão arquitetônica cabe compreender como o prédio é dividido por andares,
salas, apartamentos, espaços coletivos e familiares, e como estes territórios são pensados
como espaços em relação. Quais as cargas sociais destes espaços, porque alguns agregam e
outros excluem? De que forma são apropriados e por quem são compartilhados? Ao mesmo
tempo em que há espaços institucionais, reservados para trabalho, reunião e comemorações
coletivas, é possível haver uma interseção entre territórios políticos e territórios

40
domésticos. Enfim, que tipo de agregação eles proporcionam e como se dá o controle moral
destas múltiplas dependências?
No plano macro-político ou organizativo vale recuperar os pressupostos colocados
pelo próprio movimento para gerir o prédio. Neste leque de prescrições vale destacar a
Carta de Princípios12 que, construída coletivamente para vigorar como regimento interno,
estabelece critérios de participação, de alocação e cadastro de famílias, delimitação de
sujeitos políticos assim como elenca as organizações políticas como coordenações,
assembleias e coletivos. Mesmo que seja passível de mudança (existem várias versões do
documento), a Carta de Princípios estabelece as diretrizes gerais para a gestão do prédio e
dos moradores. No entanto, vale observar que, ainda que estas regras sejam ditas e
praticadas no dia a dia, há uma constelação de ações que por vezes esbarram nessas
normativas e até são motivos de conflito.
Deste modo, analisando-a detalhadamente, observamos que, ainda que a agenda do
movimento se faça presente, são as práticas sociais dos próprios moradores que modulam e
sustentam os espaços coletivos, operando as normas a partir de uma pragmática moral. No
âmbito afetivo, mas não menos político, urge perceber como os moradores constroem seus
próprios arranjos familiares a partir de uma rede de cuidados, ajudas e relações e que táticas
cotidianas implementam para transformar os antigos escritórios em casas, espaços que
acabam por complementar o projeto político de moradia.
O segundo capítulo apresenta a ocupação a partir de um duplo registro: enquanto
pauta de preocupação de um projeto político do movimento e como idioma moral de
relações e gestões cotidianas. Seguindo esta linha, cabe investigar como estas diferentes
formas de apropriação suscitam, por um lado, redes de solidariedade e ajuda mútua e, por
outro, situações de reclamações, conflitos, brigas e disputas. Atentar para as tensões que
emergem deste duplo compromisso não significa menosprezar uma leitura política da
ocupação, mas demonstrar que a própria política se faz no cotidiano. Por outro lado, as
idiossincrasias dos ocupantes não devem ser encaradas como “mal engajamento”,
“interesses imediatistas”, “militância deformada”, mas devem ser recuperadas na sua
densidade moral, o que permite vislumbrar que as pessoas nas suas particularidades
desenvolvem múltiplas maneiras de aderir ao viver coletivo.
                                                                                                               
12
Ver, em anexo, uma versão da Carta de Princípios.

41
A interface entre estas duas formas de encarar a ocupação não teria sido possível
caso não tivesse executado um trabalho de contato com os moradores. Para tanto, entro
literalmente nas casas das pessoas e acompanho o seu dia a dia, percebendo como
organizam o lar, como fazem comida, como cuidam das crianças, como educam os filhos,
como lidam com os vizinhos, como celebram a vida, como lavam louça, roupa, enfim,
procuro empreender uma etnografia centrada no cotidiano. Vale lembrar que esta
empreitada foi decodificada de diversas maneiras, às vezes eu era tida como pesquisadora,
às vezes como amiga, mãe, mulher, professora, causando diferentes percepções e
acolhimentos.
Esta participação no cotidiano da ocupação implicou em presenciar brigas, dar
palpites e conselhos, ajudar a organizar festas, dar banho nas crianças, ensinar o dever de
casa, cozinhar, compartilhar almoços, festejar, conversar e fofocar. Ter levado meu filho a
participar da pesquisa me garantiu uma certa horizontalidade na relação com as pessoas,
principalmente com as mães. A presença de Guido, cobrada exaustivamente pelos
moradores foi, aos poucos, me oferecendo certa “liberdade” para que eu pudesse transitar
por suas casas, fazer determinadas perguntas, trocar experiências, dar conselhos e ouvir
críticas sobre a educação pouco severa que aplicava a ele.
Esta abertura, possivelmente proporcionada pela minha condição de mãe, foi
fundamental para que eu desse atenção para assuntos que são banalizados e categorizados
como “menores” por uma hierarquia acadêmica e social. Justamente por estar antenada a
essas miudezas do mundo doméstico, pude acompanhar de perto questões fundamentais
para a compreensão de uma projeto político e moral de construção da casa.
Por fim, o terceiro capítulo versa sobre a construção de sujeitos políticos tidos como
estratégicos para o movimento, a saber: “crianças”, “jovens” e “mulheres”. Tomando como
cena o Encontro Municipal do MNLM realizado na ocupação, percorro as múltiplas
maneiras de forjar sujeitos contemplando as expectativas neles depositadas. Como inseri-
los numa agenda política responsável por forjar lideranças, prescrever formas de atuação e
estratégias de mobilização? Afinal, o que significa ser “criança”, “jovem” e “mulher” em
uma ocupação urbana? Para compreender os múltiplos sentidos envolvidos nestas
categorias, é preciso perceber que uma empreitada política implica a constituição de
diferentes espaços de socialização (físicos, simbólicos, afetivos, morais...) no movimento e

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dentro da ocupação. Como aprendem uma linguagem específica, como se divertem, como
são matéria de disputa política e de cuidado familiar?
Ainda que esta tese não tenha sido construída através dos jovens, é preciso
reconhecer que eles apareceram como registro de preocupação em diversos enunciados.
Talvez pelo fato de ter me apresentado mais como mãe e pela relação estreita que estabeleci
com algumas mulheres e com o espaço da “escolinha”, as crianças estão mais em evidência
ao longo da tese. No entanto, seguindo as pistas dos próprios moradores, é possível
perceber em que medida o jovem vai sendo construído como categoria política do
movimento e como as mulheres, em contrapartida, ressoam o projeto moral da casa.
Em relação ao gênero, vale perceber qual o lugar ocupado pelas mulheres e pelos
homens e como a luta se generifica a partir do espaço da casa e das relações que emergem
daí. Isto não significa afirmar que a casa se esgote nas figuras da “mulher” e da “criança”,
mas o que ressoa mais forte, nesta etnografia, é a díade mãe-filho e as relações que se
multiplicam a partir desta arena de cuidados, obrigações e disputas. Neste sentido, cabe
indagar por que as mulheres costumam aparecer à frente das situações e porque assuntos
tidos como femininos ganham dimensão crucial no cotidiano da ocupação. Vale perceber
ainda que a luta é empreendida e sustentada por “mulheres” menos pelo fato da presença
feminina e mais pelo peso que se dá ao lugar da casa, à gestão moral do espaço, ao
estabelecimento de relações familiares e de vizinhança como amálgama para o projeto
coletivo de moradia.
Para finalizar, uma última ressalva diz respeito aos critérios de grafia escolhidos
para a tese. Foi utilizado o itálico para algumas noções construídas especificamente para o
trabalho (casa, moradia, território doméstico, território político, etc.), para termos
elaborados por outros estudos ou para palavras de origem estrangeira. As aspas, para além
das citações, são usadas para relativizar o sentido de alguns termos empregados e, no corpo
do texto, quando me refiro a expressões usadas nas próprias falas ou de referências teóricas.

43
CAPÍTULO 1

GESTÃO DA CIDADE E OCUPAÇÃO URBANA

A ocupação tem uma importância muito grande para as pessoas que não tem casa e para
dar uma bofetada na cara do presidente.
Moradora da Ocupação Manuel Congo

1.1 – Um Rio de ocupações

As cidades originam-se e crescem através de ocupações. Todos participam, em


menor ou maior grau, da ocupação do solo urbano. Enquanto algumas se realizam de forma
a atender interesses empresariais, assegurando maior retorno financeiro a determinados
segmentos e expulsando uma legião de trabalhadores para áreas periféricas, outras
perfilam-se de maneira insurgente, construindo valores e práticas que garantam formas
alternativas de existência coletiva. Desta maneira, os espaços urbanos não se limitam a ser
palcos da interferência de ideários administrativos, cenários de manifestações e encenações
públicas. Eles são tudo isso e muito mais, são produtos, edifícios, viadutos, ruas, calçadas,
placas, postes, árvores, enfim, paisagem que é produzida e apropriada através de
determinadas relações sociais. A cidade é objeto e também agente ativo das relações
sociais. Neste sentido, a cidade deve ser pensada, ao mesmo tempo, como um modo de
habitar e uma forma de participar: civismo e política.
Não existe cidade sem centros e sub-centros, ela é feita de entrecruzamentos.
Artefatos, técnicas e redes que articulam espaços, pessoas e territórios e que os conectam,
mas também os separam dos centros urbanos e das várias centralidades em torno das quais
gravita a vida urbana, definindo práticas e deslocamentos cotidianos. Habitação, serviços
urbanos e transportes não constituem apenas o metabolismo infraestrutural urbano, mas,
dependendo do modo como são geridos, podem servir para enquadrar práticas sociais e
hierarquizar a dinâmica dos atores envolvidos. Terreno clássico das trocas e disputas
urbanas, estas políticas públicas condicionam os circuitos das práticas cotidianas,

44
delimitando os ritmos das mobilidades urbanas e as formas de acesso ou bloqueio à cidade
e seus territórios.
É sob esta perspectiva que a questão da luta pela moradia pode ser situada. As
políticas governamentais sobre as habitações coletivas no centro da cidade do Rio de
Janeiro não constituem fato recente. Desde a passagem do século XIX para o XX, elas são
alvo de experiências de higienização, embelezamento, saneamento e expulsão das camadas
populares para áreas periféricas. Em contrapartida, vêm se observando práticas de
permanência da população de baixa renda que procura residir em áreas centrais da cidade,
local provido com melhores condições de vida, de serviços e mobilidade.
Neste período, os cortiços, localizados notadamente nas freguesias da Gamboa e
Santo Cristo, serviam de alternativa para aqueles que não podiam arcar com os altos preços
dos imóveis. Além de se constituírem como espaços de moradia para as camadas
populares, os cortiços da cidade apresentavam-se como um problema social a ser
solucionado a partir de decisões políticas que, imbuídas de um argumento racional, médico
e, portanto, “objetivo”, justificavam a perseguição a estas habitações coletivas que
concentravam os sujos e perigosos. Na abordagem literária, o cortiço é representado como:

“... o verdadeiro tipo da estalagem fluminense, a legítima, a legendária;


aquela em que há um samba e um rolo por noite; aquela em que se matam
homens sem a polícia descobrir os assassinos; viveiro de larvas sensuais
em que irmãos dormem misturados com as irmãs na mesma lama; paraíso
de vermes, brejo de lodo quente e fumegante, donde brota a vida
brutalmente, como de uma podridão.” (Azevedo, 1997:114)

Se, em um primeiro momento, como nos alerta Chalhoub (2006), o eixo


fundamental da discussão sobre os cortiços baseava-se na melhoria da qualidade das
condições higiênicas das habitações coletivas, como coleta regular de lixo, latrinas limpas,
calçamento e janelas amplas, o foco iria mudar radicalmente nas décadas seguintes. O
governo preparava os instrumentos legais para a erradicação dos cortiços e,
consequentemente, para o acirramento de políticas que promoviam a expulsão das
chamadas “classes perigosas” das áreas centrais da cidade.
A primeira década do século XX representou, para a cidade do Rio de Janeiro, uma
época de grandes transformações motivadas pela necessidade de adequar a forma urbana às
prioridades de criação, concentração e acumulação do capital. Por outro lado, objetivava
45
também controlar o espaço central da cidade e o então movimento operário. O discurso
higienista, juntamente com o discurso de modernização da capital, fazia dos cortiços e das
estalagens do centro carioca exemplos daquilo que deveria ser combatido. As habitações
coletivas foram colocadas na ilegalidade, cortiços e estalagens não poderiam ser
construídos ou sequer reformados. A intenção era alocar a população pobre que lá habitava
em vilas operárias que se constituíam como alternativa preferencial do governo para a
habitação dos pobres urbanos, pois voltavam, de certo modo, a associar o controle dos
trabalhadores aos espaços de produção.
Passados mais de um século, os grandes projetos de intervenção urbana associados
aos megaeventos esportivos como a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016
parecem trazer uma nova onda de higienização. Através de políticas de despejo e remoção
dos moradores pobres e de destruição de habitações tidas como irregulares, estes projetos
almejam atrair investimentos e negócios, viabilizando a cidade para a magnitude que
eventos como estes proporcionam.
A questão da habitação popular sempre foi um ponto nevrálgico para a cidade do
Rio de Janeiro. Estes fatos demonstram como o espaço urbano é um lócus de combate
político intermitente, um ambiente de disputa e negociações. Diante disto, podemos nos
questionar: que espaços são estes que estão constantemente se remodelando? Para quem
serão destinados, como e com que propósito serão utilizados? Eles não simbolizam apenas
os templos de atração de investimentos e de vocação turística, mas estão lá através dos
cortiços, das estalagens, das favelas, das vilas operárias, das periferias e das ocupações. O
núcleo urbano não cede lugar a uma “realidade” nova e “maquiada”, instalando-se com
livre consentimento, mas isso se dá por meio de disputas, conflitos e resistências.
A epígrafe que inicia este capítulo foi pronunciada por uma moradora da Manuel
Congo ao ser questionada sobre o papel de uma ocupação na cidade. De maneira simples
mas extremamente lúcida ela conseguiu sintetizar, através de sua própria vivência, o
contexto de disputa através do qual o espaço urbano vem sendo gerido. Ao situar a
ocupação como um efeito ao invés da origem dos problemas de habitação popular, ela
ainda consegue visualizar que a gestão da cidade segue um paradigma de gestão da vida.

“O governo, se ele fosse inteligente mesmo ele faria dos apartamentos


vazios, moradia. Enquanto o Eduardo Paes está preocupado em tirar

46
camelô, em derrubar barraco, ele poderia fazer diferente. Haveria
necessidade de nós ocupar para depois vir polícia e fazer toda essa
bagunça que eles arrumam? Não precisava disso. Mas eles só pensam em
área portuária, faz um monte de shopping, casa de veraneio, as casas da
Barra da Tijuca para botar os ricaços. Aí eles vão criando mais marginais,
mais bandido para poder ir lá assaltar eles. Porque no Alto Leblon tem
toda segurança, mas bandido sobe. Então eu acho que tinha que dar
trabalho, não é ficar matando como eles estão matando, tirando a vida das
pessoas que tem tudo para ser uma pessoa de bem.” (Sandra)

Todas as políticas públicas de intervenção urbana além de práticas discursivas sobre


a cidade desejável também são práticas discursivas sobre os sujeitos desejáveis. As medidas
de reforma urbana que vêm sendo implementadas, desde o início do século XX, com
diferentes nomes (“Bota Abaixo”, “Favela Bairro”, “Zona Sul Legal”, “Choque de Ordem”)
implicam não só um novo ordenamento físico e higiênico das moradias urbanas, mas uma
nova moralidade do comportamento dos sujeitos aí residentes. Todas estas formas de gestão
urbana, sejam elas contemporâneas ou não, são, a rigor, o biopoder de que fala Foucault,
um conjunto de tecnologias de poder-saber que “vão investir sobre o corpo, a saúde, as
maneiras de se alimentar e morar, as condições de vida, todo o espaço da existência”
(Foucault: 1993: 135). O que está em jogo nestas técnicas são fatores de segregação e de
hierarquização que garantam relações de dominação e efeitos de hegemonia. Embora o
autor identifique a origem desse processo a partir do século XVII, ele tem desdobramentos
na governança atual uma vez que as operações contemporâneas de gestão urbana são
fundamentalmente técnicas de gestão das populações, política da vida, administração de
suas demandas, negligência de suas urgências.
É nesse contexto que podemos afirmar que um projeto político não é um projeto
pouco vital, mas ele alude a procedimentos reguladores que afetam as vidas e as formas de
vida. Frente a estas operações, alguns atores não apenas paralisam, mas se articulam,
forjando outras políticas de vida e desempenhando um sem número de táticas diárias,
necessárias e fundamentais à sua sobrevivência. As intervenções, sejam elas sociais,
culturais, sanitárias ou militares seguem uma mesma lógica: a gestão dos riscos, das
disfunções, das harmonias rompidas. A lógica da intervenção e a gestão dos riscos, em suas
várias modulações, buscam assegurar o funcionamento dinâmico dos fluxos de populações,
de riquezas, de bens, de informações, produzindo um modelo de espaço social com seus

47
núcleos de segurança e ordem e, em contrapartida, uma zona cinzenta habitada por aqueles
que escapam ou se recusam a submeter-se a estes agenciamentos.
A partir desta perspectiva, procuro refletir como, a partir de uma ocupação urbana
no centro do Rio de Janeiro, os moradores, ao mesmo tempo, arquitetam um projeto
político de refuncionalização dos espaços ociosos a fim de torná-los moradia digna, assim
como de reconstrução da casa tendo em vista o contexto de ordenamento calcado na
marginalização urbana a que estão submetidos. No entanto, ao invés de fixar os moradores
em unidades ou identidades pré-moldadas, é preciso encará-los como sujeitos em
movimento, atentando para a sua capacidade empreendedora, uma agência possibilitada por
inúmeras experiências de vida.
A tentativa de compreender uma ocupação urbana como projeto político de moradia
que se sustenta e se reconstrói a partir do território doméstico, atentando ainda para o lugar
que o cotidiano exerce nesta díade, requer uma dupla atenção. O recorte da realidade social
em escalas de observação é uma construção analítica assim como aparece nas falas e
representações dos atores sociais. Neste sentido, a busca por reconstruir a realidade de uma
ocupação urbana não implica em encará-la per se e muito menos apartá-la dos fatos
históricos ou dos momentos simbólicos de intervenção urbana, mas perceber a interferência
de um plano no outro, as múltiplas conexões que acabam por reconfigurá-los mutuamente,
desafiando a apreensão do pesquisador.
São nessas interseções que as coisas acontecem, os fatos são produzidos, as tramas
de relações são construídas. Enfim, é nesta seara multiforme que o projeto coletivo de
moradia vai se materializando através de táticas muito singulares de produção da casa
enquanto projeto moral de constituição (e diluição) de relações, cuidados, reciprocidade e
afetividade. Para captar as malhas desta trama cotidiana, é preciso perceber como o “local”
e o “global” (ou as redes) estão conectados a um plano genealógico de construção e
regulação do espaço urbano. Paralelamente, é necessário capturar o panorama de situações
ordinárias estrategicamente articuladas para lidar com estes procedimentos de intervenção
urbanística.
As trajetórias pessoais não estão descoladas dos protocolos normativos, mas operam
como prismas pelos quais os projetos de ordenamento urbano ganham forma em suas
diferentes modulações. Seus artifícios passam por um feixe de códigos e procedimentos não

48
normativos, não categoriais, mas, ao contrário, dependem de circunstâncias práticas e
relacionais que viabilizam um senso de oportunidade para saber negociar, fazer alianças,
tecer lealdades, redefinindo os critérios do certo e do errado, do justo e do injusto, os
parâmetros do aceitável e os limites do tolerável. Deste modo, foi preciso o estabelecimento
de uma relação empática e o compartilhamento das práticas diárias destes ocupantes. Este
tipo de experimentação funcionou tanto como metodologia de pesquisa quanto inaugurou
um novo vínculo afetivo entre pesquisadora e interlocutores.
É sob esse prisma que Vera Telles (2010) argumenta que, para conhecer algo das
tramas sociais que configuram os espaços urbanos, não podemos nos iludir com as
categorias prévias ou tipificações dos “pobres urbanos” e nem tratar as trajetórias pessoais
como meras ilustrações de algo já sabido e dito, mas imprimir um trabalho de investigação
que coloca em perspectiva essas múltiplas realidades urbanas.
“No curso de suas vidas, indivíduos e suas famílias atravessam espaços
sociais diversos, transitam entre códigos diferentes, seus percursos passam
através de diversas fronteiras e são esses traçados que podem nos informar
sobre a tessitura do mundo urbano, seus bloqueios e seus pontos de
tensão, mas também os campos de gravitação da experiência urbana (...).
Entre os deslocamentos espaciais e expedientes mobilizados para o acesso
à moradia, os percursos do trabalho e suas inflexões recentes, os
agenciamento da vida cotidiana e os circuitos que articulam moradia e a
cidade, seus espaços e serviços, essas trajetórias são pontuadas por
situações que podem ser vistas como pontos de condensação de práticas,
mediações e mediadores nos quais estão cifrados os processos em curso.”
(Telles, 2010: 17)

Nesta mesma linha de raciocínio, o objetivo desta tese é perceber como uma
ocupação se situa no entroncamento do plano da gestão e administração públicas e das
prescrições de um movimento social e como seus moradores, com projetos de vida
diversificados, são afetados por estas múltiplas esferas ora convergindo, ora divergindo de
suas agendas. Recuperando esses “pontos de condensação” e seguindo as pistas de alguns
arranjos domésticos e familiares poderemos transitar por diferentes escalas, reconstruindo
novas tramas urbanas, uma vez que é a própria cidade que vai se perfilando nestes terrenos.
Aqui, o urbano aparece “não como contexto dado, geral e homogêneo”, mas como
“contextos variados nos quais se inscrevem os atores e o jogo tenso (e por vezes conflitivo)
de suas relações” (idem).

49
Este modo de descrever o espaço urbano colocando o foco na trama das relações
pessoais que ao mesmo tempo que se conectam acabam transbordando os campos de
práticas nas suas formas estabelecidas formalmente, é o que esta tese almeja prescrever. A
partir de uma mesma ocupação e de uma mesma família, diferentes perfis de cidade e de
apropriação do espaço podem se projetar. Por isso, longe de configurar-se como uma
“circunstância de localização”, a ocupação Manuel Congo aparece como um lugar moral
“feito de práticas, circuitos de deslocamentos, zonas de contiguidade e conexões com
outros pontos de referência que conformam o social nas suas fronteiras ou limiares,
bloqueios e possibilidades” (idem: 18).
Telles nos recorda que é no meio dos vazios (se é que eles existem), que expressões
como exclusão social podem sugerir, e das “pontas” que os princípios gestionários buscam
regular, que surge uma multifacetada malha de ilegalismos que perpassam a cidade inteira
em diversos âmbitos: trabalho, moradia, consumo, serviços, etc. É nesta tapeçaria do
mundo social que a trama dos atores e as modalidades de apropriação dos espaços e dos
seus recursos buscam tecer elos desconectos, conjugando dobras e tensionando nós.
Para a autora, essa teia de ilegalismos que vem se processando nos meandros do
cenário urbano desencadeia uma série de associações as quais se convencionou tratar como
“privações sociais, carências urbanas, ausência do Estado, ou seja: o registro do que falta,
do que falha, do que não se completa” (idem: 28). Para escapar a este jogo estéril de
reducionismos urge recuperar essas situações em outro registro e deslocamento analítico. É
justamente nos percursos dessas “mobilidades laterais” que se delineiam nas fronteiras
porosas entre o formal e informal, legal e ilegal, lícito e ilícito que podemos resgatar o
caráter de transgressão e de reatualização de diversos atores, observando como estes
sujeitos redesenham as tramas urbanas e redefinem ordenamentos sociais.
Preocupado com as relações entre espaços, negócios e legalidade, Fernando Rabossi
(2004) imprime um movimento semelhante. Na tentativa de superar os lugares comuns que
reproduzem retratos insuficientes do comércio de rua em Ciudad del Este, o autor esclarece
que é necessário analisar estas formas de ganhar a vida, que se situam nos limites das
regulamentações comerciais, de modo que não tomemos como ponto de partida as
definições legais ou as percepções do pesquisador. Para tanto, é preciso circunscrever como
os próprios sujeitos desenvolvem seus movimentos de vai e vem e como fazem do

50
comércio fronteiriço espaços de oportunidades, uma multiplicidade de particularismos que
se perfilam através da ordem jurídica e fiscal.
Como sugere Telles, a noção de “gestão diferencial dos ilegalismos”, cunhada por
Foucault (1997), pode ser útil para pensarmos a positividade destas violações que, longe de
representar imperfeições ou lacunas na aplicação das prerrogativas legais, compõem os
jogos de poder e as estratégias viáveis e vitais que as pessoas em situação de pobreza
acionam para lidar com o histórico processo de marginalização, sobretudo em tempos de
uma “economia globalizada nas sendas abertas pela liberalização financeira” (Telles, 2010).
É neste jogo de fixidez e possibilidades que os moradores da Manuel Congo buscam
se inscrever. Para tanto, estão o tempo todo operando com e a partir de mecanismos e
imagens que aludem às oposições entre formal e informal, legal e ilegal, lícito e ilícito,
embora nem sempre se refiram a estes pares explicitamente. Em vários discursos, seja na
Carta de Princípios ou mesmo nas conversas informais, eles afirmam que estão lutando
contra uma ordem considerada injusta e que o próprio sentido de justiça é realizado no
“direito concreto”. No entanto, isso não significa que não vislumbrem o reconhecimento
legal da moradia, mas que esta oficialização esteja, em certo sentido, referenciada por
moralidades que são gestadas e mantidas a partir do território doméstico. Por outro lado,
em diversas situações os moradores procuram enfatizar o espaço da ocupação como um
ambiente eivado de regras e comportamentos adequados, afastando-se das situações de
ilegalidade ou até reprimindo episódios esporádicos de roubo, violência ou transgressão às
normas coletivas.
Não se trata, portanto, de considerar a ocupação como um espaço periférico e
excluído de um certo modelo formal/legal de cidade, mas perceber como estas fronteiras se
cruzam a partir de um lugar muito singular. Quando aludimos ao “histórico processo de
marginalização” não se trata de um tempo e espaço fora do Estado e da lei, lugar de
anomia, desordem, “estado de natureza” ou “estado de exceção”, como sugeriu Agamben
(2007). Ao contrário, são espaços produzidos a partir do modo como estas forças da ordem
aí operam, são práticas e contra-condutas produzidas em situações entrelaçadas com a
presença do Estado. Como atesta Rabossi (2004), ainda que os controles das importações e
as políticas transnacionais tentem regular o fluxo das mercadorias e das pessoas limitando a
ação dos sujeitos é pela territorialidade estatal que uma grande variedade de atividades se

51
desenvolve, aproveitando ou mesmo burlando os mecanismo criados para mantê-la. Deste
modo, é justamente nesta “zona de indeterminação entre a lei e a não-lei” que sujeitos
fazem e elaboram novas autoridades, novas ordens, novos modos de regulação, ou melhor
“microrregulações” ancoradas nas condições práticas da vida social (Telles, 2010). Afinal,
como sugere a autora, “esses espaços de exceção não são espaços vazios; é justamente aí,
poderíamos então dizer, que as fronteiras do Estado estão em disputa, os sentidos de lei, de
justiça, de ordem e seu avesso” (Telles, 2010: 34).
Considerando que as ocupações não são fatos recentes na história fluminense,
principalmente para as camadas populares13, é preciso encará-las como um dispositivo
capaz de reinventar a própria lei, a partir de moralidades e dinâmicas muito sutis. E mais, é
preciso situar os diferentes modos como os ocupantes habitam e interagem nesses espaços,
chamando atenção para o que acontece de político nos (ou o quão político são os)
agenciamentos e decodificações familiares. Afinal, os indivíduos “maquinam artifícios,
agenciam contracondutas, negociam regras, limites, protocolos para lidar com as incertezas
e os riscos alojados nessas dobraduras da vida urbana” (idem: 35).
Segundo Ermínia Maricato, vivemos em um quadro de “tragédia urbana” e impasse
do futuro da cidade, pois esta enfrentou uma “história de espoliação social”, ao importar
projetos europeus e norte-americanos, fazendo com que grande parte da população passasse
a ocupar a cidade “ilegalmente”, uma vez que ela é excluída da “cidade modelo”.14
A despeito dos frequentes binarismos, não cabe aqui evocar uma questão reiterada
nos estudos urbanos que é a contraposição entre “cidade legal” e “cidade ilegal”. Como
sustenta Telles, é preciso focar uma outra ordem de problemas que essas realidades
parecem colocar: “uma crescente e ampliada zona de indiferenciação entre o legal e o
                                                                                                               
13
Analisando o trabalho de Menezes (1991), que aborda processos de mobilização para ocupações de terra, no
início da década de 1980, no Rio de Janeiro, os chamados “mutirões”, e de Grynszpan (1987), que analisa
mobilizações camponesas no Rio de Janeiro no período de 1950-1964, Macedo (2005) reconhece que de
modo algum a história da luta pela terra pode ser considerada uma novidade ou a criação de um movimento
específico como sugere uma dada literatura. Outro fato que desmistifica o caráter de novidade desses
movimentos sociais pós-70 diz respeito ao próprio relato de vários moradores da Manuel Congo que
relembram a condição de posseiros de seus pais e avós. Assim, mais do que invenção, os movimentos sociais,
seja no campo ou na cidade, parecem dar continuidade a um padrão de mobilização já adotado,
principalmente quando se refere ao processo de articulação das famílias para a ocupação por meio de redes de
amizade, parentesco e vizinhança.
14
Estas ideias foram expostas na ocasião de realização da Mesa de abertura do Fórum Social Urbano (FSU),
evento que aconteceu em março de 2010, no Centro Cultural da Ação da Cidadania Contra a Fome, na Zona
Portuária da cidade do Rio de Janeiro.

52
ilegal, entre o direito e a força, entre a norma e a exceção” (idem, 37). Logo, como pensar
estes espaços intersticiais e qual o peso analítico daremos a estas novas formas de gestão do
tecido social? Como veremos, não há tanta novidade nestes arranjos, eles sempre estiveram
presentes nos territórios urbanos e quiçá rurais do país. O ponto importante a ser enfatizado
é: mais do que pensar uma ocupação urbana pelo seu aspecto de transgressão a uma lógica
legal de apropriação do espaço, é preciso perscrutar outro tipo de deslocamento. Afinal, em
que medida este modelo formal (que não deixa de ser um ideal) é o melhor ponto de partida
para compreendermos aquilo que não se adequa a ele? Os limites de ocupação do solo
urbano (de trabalho, comércio e transações diversas) não são dados unicamente pelas
intervenções institucionais e sanções legais, mas este espaço está sujeito a definições de
outra ordem, a questionamentos e novos arranjos. Como nos lembra Rabossi,
“... o ilegal, longe se ser o resultado do funcionamento anormal ou amoral
da sociedade, faz parte das possibilidades abertas em um mundo definido
pela lei. Isto é, legal/ilegal não é uma clivagem que permita diferenciar a
priori setores do funcionamento social ou universos preexistentes, mas
sim que constitui o operador através do qual se produzem distinções, se
reproduzem desigualdades e se aproveitam oportunidades” (Rabossi,
2004: 16).

Neste sentido, considerando as intervenções governamentais mas sem encará-las


como realidades autorreguláveis e aquém dos sujeitos concretos, é preciso seguir as pistas
de ordenamentos urdidos nas tramas das relações ordinárias que se esboçam no interior dos
territórios domésticos dando uma nova roupagem à luta pela moradia. E aqui poderíamos
nos perguntar: como uma ocupação é projetada e construída a despeito de um tipo de
enquadramento político-urbano? Que modelos são forjados no sentido de enfrentar e até
subverter este quadro de “espoliação social” ao qual diversas pessoas estão submetidas?
Que práticas gestionárias são estas que buscam corrigir um déficit de urbanidade rompendo
com os bloqueios de circulação e acessibilidade na cidade? Como elas se realizam em
circunstâncias da vida cotidiana e como se legitimam moralmente? Como um campo social
que parecia (e parece) vazar dos dispositivos políticos que por vezes o associam a imagens
correntes de anomia e desorganização social, reinventa esta lógica, agenciando novos
diagramas de relações e formas associativas?
Nesta perspectiva, como se daria esta passagem do ilegal para o moralmente aceito?
Como pessoas com trajetórias diferenciadas apropriam-se tanto de si quanto do espaço onde

53
residem, abraçando a ideia de que um novo comportamento e uma nova moralidade são
necessários para uma vida em coletividade e para sua legitimidade enquanto morador de
um prédio ocupado? A transformação de um antigo edifício de escritório abandonado para
uma casa habitável e aconchegante percorre tanto uma narrativa do merecimento, quanto
táticas morais de sobrevivência15. Neste sentido, mais do que um espaço físico, a ocupação
aparece como um lugar16 simbólico em que códigos morais são acionados e compartilhados
rotineiramente a fim de dar cabo a um projeto de moradia que extrapola as prerrogativas
macro-políticas.
Neste paradigma de ordenamento urbanístico, pode-se dizer que, nos últimos anos,
dois ideais de cidade foram sendo delineados: o modelo de cidade que busca a gestão
participativa e democrática cujo exemplo maior é a cidade de Porte Alegre, entre os anos de
1989 e o final da década de 1990 (De Grazia e Rodrigues, 2003), e o modelo, apoiado no
ideário liberal, que atribui à cidade um papel protagonista não somente local, mas também
internacional, cujo exemplo pode ser encontrado no planejamento estratégico formulado
para a cidade do Rio de Janeiro.
O modelo que busca a gestão participativa e democrática é proposto pelos
movimentos sociais articulados na luta pela reforma urbana - os movimentos que conduzem
a luta pela moradia, por saneamento ou por transporte coletivo. Uma importante vitória
destes movimentos foi a aprovação, em julho de 2001, depois de dez anos de tramitação no
Congresso Nacional, da Lei Federal de Desenvolvimento Urbano (Lei 10.257/2001, o
chamado Estatuto da Cidade). Ao regulamentar e complementar a Constituição, o Estatuto
oferece as diretrizes para a política urbana no país em nível federal, estadual e municipal,
abarcando um conjunto de princípios, que expressam uma outra concepção de cidade, de
planejamento e gestão urbana, bem como uma série de instrumentos para atingir tais
                                                                                                               
15
Ainda que em um universo empírico distinto, a preocupação com a passagem de uma situação de
ilegalidade para uma condição moralmente reconhecida também esteve presente na minha dissertação de
mestrado. Nesta pesquisa procurei investigar como determinados vendedores ambulantes de ônibus
reivindicavam o reconhecimento de sua atividade como um “trabalho” digno, a fim de se colocar fora do
campo da ilegalidade e da criminalidade, distanciando-se de outras atividades mal vistas, como a mendicância
e o roubo. Para tanto, lançavam mão de narrativas que enalteciam o “sofrimento”, o “merecimento” e a luta
cotidiana além de construir situações de empatia, por meio das quais atingiam uma “alquimia social”, ou
melhor, deixavam de ser potencialmente inimigos para se transformar em aliados dos trabalhadores em
condição de formalidade. Esta passagem, do ilegal para o moralmente aceito, dependia, portanto, da agilidade
com que acionavam e negociavam com uma rede de relações que envolvia fiscais, cobradores e motoristas e,
em que medida, por ela eram sustentados.
16
Para uma distinção entre espaço e lugar ver Tuan, 1930 e Santos, 2002.

54
princípios.
Em contrapartida, o modelo perseguido pela cidade do Rio de Janeiro, a partir do
início dos anos 1990, é o da gestão empresarial. Segundo esta perspectiva, cada cidade deve
buscar seu potencial, tornar-se um polo competitivo e assumir um protagonismo
econômico. Quanto mais oferecer ao interesses privados - seja na forma de subsídio ou
alteração da legislação trabalhista e urbanística - mais capacidade terá de atração de
investimentos estrangeiros, redes hoteleiras, empresas de telecomunicação, investimentos
em infraestrutura para transações comerciais e financeiras. Trata-se, também, de oferta de
transporte, energia e segurança, recursos fundamentais para uma cidade que visa sediar
jogos internacionais como Olimpíadas, Copas do Mundo e grandes convenções.
No esteio da reestruturação produtiva, que trouxe como consequências o desemprego
estrutural e a desregulamentação trabalhista aumentaram sobremaneira a precarização do
trabalho, a rotatividade no emprego e a informalidade nas atividades econômicas.
Paralelamente, diferentes mecanismos políticos de ordenamento do espaço urbano
contribuem para agravar o isolamento social e o não acesso das camadas populares às
oportunidades oferecidas, aprofundando ainda mais as desigualdades sociais na metrópole
do Rio de Janeiro.
Como exemplo destas práticas, temos uma série de projetos urbanísticos que estão
previstos para a cidade carioca, alguns já em fase de execução. Além de projetos de
requalificação urbana e melhoria de infraestrutura, estão sendo implementados programas
de governo como o Morar Carioca (uma espécie de continuação do Favela-Bairro, que visa
“a inclusão urbana e social” de todas as favelas até 2020)17, Minha Casa, Minha Vida
(programa federal de construção de habitação de interesse social subsidiada para famílias
de 0 a 10 salários-mínimos), a renovação da região portuária da cidade através do projeto
Porto Maravilha e a construção de grandes estruturas viárias como Transcarioca, Transoeste
e Transolímpica. As melhorias que estes projetos visam oferecer carregam intrinsecamente

                                                                                                               
17
“O Programa Morar Carioca prevê a remoção de 832 residências, 515 unidades a serem removidas em
razão de ‘risco geotécnico, estrutural e insalubridade’ e 317 realocações necessárias para a realização do
projeto urbanístico no que se inclui o ‘desadensamento’ da comunidade. Estas informações foram extraídas de
material informativo do Programa Morar Carioca que não está mais disponível ao público” (Mendes et al,
2011).

55
práticas de remoção de milhares de moradores18. Afinal é em nome da urgência e da
emergência que a cidade é pensada. Toda ela, pensada e figurada sob a lógica de uma
gestão dos riscos, pautando programas sociais, precarizando serviços públicos e celebrando
os aclamados projetos de revalorização de espaços urbanos.
Na cidade do Rio de Janeiro, as favelas somam cerca de 681 unidades, enquanto a
Região Metropolitana (RMRJ) possui 971. Tal concentração de favelas cariocas pode ser
explicada por uma combinação de fatores que inclui a ausência de uma política habitacional
consistente e o elevado preço dos aluguéis e do transporte que encarecem na medida em
que aumenta a distância em relação ao núcleo. O déficit habitacional, calculado a partir do
Censo 2000, atingiu 6,6 milhões de moradias, das quais 91,6% correspondem aos que
recebem até cinco salários mínimos. Enquanto faltam 6,6 milhões de moradias, 5.030.000
imóveis estão fechados ou vagos (De Grazia e Rodrigues, 2003). As autoras ainda
recordam que se a esse dado for acrescido o número de glebas urbanizadas que ainda não
têm edificação, possivelmente se poderia assentar o dobro da população contabilizada no
déficit habitacional.
À falta de moradias, somam-se os problemas de infraestrutura: em 2009, o Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010) estimava a existência de 827 mil
domicílios sem rede coletora de esgoto ou fossa séptica no estado (apenas 30% do esgoto
coletado é tratado); 640 mil casas sem rede de abastecimento de água; e 72 mil sem coleta
de lixo. As despesas das famílias com habitação, no entanto, vêm crescendo. Segundo o
mesmo instituto (IBGE, 2010a), do total das despesas de consumo mensais de uma família
brasileira, atualmente são gastos, em média, 35,9% com habitação. Na cidade do Rio de
Janeiro, esta despesa chega a 41,3%, gasto que é, proporcionalmente, ainda maior para as
famílias com menores rendimentos (45,7%).
                                                                                                               
18
Nos últimos anos, intensa campanha em favor das remoções vem sendo realizada pelas políticas
governamentais. As atuais administrações estadual e municipal, com apoio federal, projetam a remoção de
cerca de 130 favelas através do Programa Morar Carioca. Além das áreas centrais, a região da Barra da
Tijuca, de Jacarepaguá e seus entornos são os principais alvos da especulação imobiliária e, por consequência,
das políticas de remoção. Atualmente, dada a aproximação dos grandes eventos esportivos como a Copa do
Mundo de 2014, as Olimpíadas de 2016 e as obras do projeto Porto Maravilha, algumas famílias estão
passando por um processo de remoção, com destaque para as comunidades do Morro da Providência, entre os
bairros do Santo Cristo e da Gamboa, na zona portuária; da Vila Autódromo, em Jacarepaguá; da Restinga,
Vila Harmonia e KM 35, todas na Avenida das Américas, onde será realizada as obras da via Transoeste; os
casarões no Largo do Campinho, por onde passará a chamada Transolímpica; e a comunidade denominada
Metrô Mangueira, próxima ao Maracanã, onde será construído um estacionamento para o Estádio do
Maracanã.

56
Assim como em outras metrópoles, o Rio sofre os efeitos de intensa especulação
imobiliária que resulta na valorização de espaços nas áreas centrais, que contam com
investimentos em infraestrutura, transportes organizados e diversidade em equipamentos de
cultura e lazer. Estas condições geram, por sua vez, inflação no preço dos aluguéis e
contribuem para consolidar uma nova configuração sócio-espacial que visa o estímulo ao
mercado residencial ou de serviços para as camadas mais abastadas. Se os grandes
conjuntos habitacionais, desconectados de políticas urbanas, colocam em evidência a
precariedade e as formas de segregação urbana, espalham-se, nas frestas abertas pelos
investimentos públicos, ocupações, favelas e loteamentos clandestinos.
Neste contexto de encarecimento dos aluguéis e remoção ou esgotamento de espaços
em favelas mais próximas das áreas centrais, resta, às camadas populares, outras favelas
afastadas, os loteamentos periféricos ou ainda os prédios ociosos localizados nos centros
urbanos. Neste sentido, não são apenas as favelas, por localizarem-se próximas ao local de
trabalho e dos serviços urbanos, e os loteamentos irregulares, erguidos em sistema de
mutirão, que constituem alternativas mais baratas. Em virtude de uma lógica calcada na
rentabilidade, da qual a moradia, assim como outros meios de consumo coletivo fazem
parte, as ocupações urbanas, em contraponto ao clima de insegurança que impera em
muitas favelas cariocas, aparecem como uma possibilidade viável da população pobre
resgatar a sua centralidade na cidade, garantindo direitos por meio de enfrentamentos ou até
negociações.
Os problemas com transportes são outro fator agravante para as condições de vida nas
grandes metrópoles. Apesar da abertura e expansão de uma linha do metrô, da renovação de
uma linha de trem, da ampliação e melhoramento das vias públicas, os deslocamentos intra-
urbanos continuam a figurar como uma das principais dificuldades para os moradores de
áreas longínquas dos grandes centros. Como sinaliza Telles as distâncias não são apenas
“espaços vazios” nem tampouco uma “métrica simples entre pontos e localidades distintos”
(Telles, 2010: 103), mas, como qualquer outro espaço social, circunscrevem campos de
tensão e problemas, mobilizando sujeitos, a partir de suas redes, recursos e possibilidades,
para que superem todas as complicações que os meios de transporte e a (falta de) circulação
pela cidade provocam.
É nesta perspectiva que Lourenço (2006) discute as lutas e conquistas sociais, das

57
últimas décadas, no que concerne ao direito à mobilidade espacial no Rio de Janeiro. Para a
autora, em meio “à ausência de políticas integradas e socialmente comprometidas de
transporte público” (Lourenço, 2006:16), este último torna-se um dos principais problemas
para a classe trabalhadora que habita em loteamentos e favelas da periferia metropolitana.
A viagem de casa ao trabalho acaba tornando-se uma jornada extensa, marcada pelo
desconforto, por transportes precários, pelo trânsito lento e pela longa distância. Assim,
diante de uma situação desfavorável, as ações diretas têm sido um recurso utilizado,
principalmente, pelas classes populares, o que pode, por ventura, eclodir em situações de
violência. Nas grandes metrópoles, a violência, por sua vez, pode assumir diferentes
dimensões emergindo nos confrontos entre a polícia e as pessoas ligadas ou não ao tráfico
de drogas; na guerra entre as facções e na interrupção da circulação e acessibilidade
urbanas, como forma de protesto, como a queima e a depredação de ônibus, ou ainda nas
ocupações urbanas e nos despejos forçados.
É neste contexto que diferentes movimentos sociais urbanos têm se organizado e
lutado para mudar as condições de vida urbana da classe trabalhadora. O Rio de Janeiro tem
sido palco de lutas organizadas, desde o final dos anos 1970, por diversos movimentos
populares de luta pela moradia, os movimentos pelo direito de ir e vir e contra a
privatização da circulação urbana, os movimentos em prol da paz e contra a violência bem
como ações espontâneas, como as de moradores de comunidades populares vítimas de
confrontos e situações violentas. Como Lourenço sintetiza, “se é fato o agravamento dos
problemas sociais também o é a eclosão dos protestos sociais nas suas mais diversas e
criativas formas” (Lourenço, 2006: 34).
Percorrendo as práticas ativas e atuais de seus habitantes, Mamari (2008) identificou
que, mais do que uma luta pela concretude da moradia, o movimento dos sem-teto e suas
ocupações apresentam um teor simbólico e identitário, uma vez que estão permeados de
sentimentos de pertencimento e de apropriação afetiva do espaço. “Trata-se, na verdade, da
luta pela construção de um lugar” (Mamari, 2008: 28). Assim, se o espaço aparece como
aquilo que é indiferenciável, impreciso e aberto, o lugar é o lócus do característico, do
específico e do próprio. O lugar, palco para o “teatro das paixões” (Santos, 2002), carrega
toda uma dimensão subjetiva e emocional, sendo, portanto, o espaço que nos é familiar,
onde construímos laços de pertencimento, de solidariedade e de coletividade.

58
Se considerarmos que a cidade vive constantemente momentos de ordenamento, às
vezes de maneira espetacularizada, é preciso observar que o lugar confere qualidade ao
território, produzindo significados e símbolos próprios que retiram do mundo aquilo que
desejam nutrir em si mesmo, sem que, necessariamente, isso implique em simples
repetição. O lugar cria enunciados que atravessam e modificam as relações de poder e as
organiza num sentido comum, próprio. Neste sentido, a significação do espaço, como
lugar, apesar de imersa em inúmeras operações de poder, remete mais à qualidade das
experiências coletivas, como no caso das ocupações. Enquanto o espaço atua na
delimitação das fronteiras que constituirão uma identidade amorfa, estandardizada, o lugar
diferencia um espaço do outro, criando os territórios de pertencimento (Peixoto, 2000),
qualificando estas identidades, dando cara, cor, cheiro, sangue e alma.
Nesta perspectiva, a ocupação Manuel Congo é o espaço transformado em lugar, a
moradia transformada em casa, é o lócus de construção de simbolismos, lugares onde são
tecidas novas centralidades, moralidades de outra ordem, uma unidade sociocultural na qual
e pela qual o agente se realiza, um lugar no qual ele se identifica. Entrar na Manuel Congo
é um convite para adensar uma cartografia de gestão não só dos ambientes físicos, mas da
própria vida das pessoas, multifacetada numa complexidade de disputas, relações de poder,
conflitos, arranjos familiares, redes de fofoca, cuidados, amizades, luta, militância, ajuda e
convivência.

1.2 – Produzindo centralidades - A experiência da Ocupação Manuel Congo

A ocupação Manuel Congo tem cerca de 42 famílias provenientes, em sua maioria,


da cidade de Volta Redonda, dos bairros de Anchieta e Caju, na zona norte da cidade e do
morro do Cantagalo, em Copacabana, bairro da zona sul carioca. A origem do nome da
ocupação é uma homenagem a Manuel Congo, líder quilombola, escravo da Fazenda
Freguesia, em Paty do Alferes que, em 05 de novembro de 1838, liderou uma rebelião pela
libertação de mais de 400 escravos e foi condenado à pena de morte por enforcamento, o
que veio acontecer no dia 6 de setembro de 1839.
Preocupado com a relação identitária que a proximidade do indivíduo a um
determinado espaço provoca, Mamari (2008) esclarece que a nomeação de diversas

59
ocupações de sem-teto no Rio de Janeiro com nomes de lideranças realça a apropriação
afetiva do espaço por um determinado grupo social. Assim, nomeações como Carlos
Lamarca, Chiquinha Gonzaga, Poeta Chynayba, Zumbi dos Palmares e Manuel Congo ou
ainda as datas dos dias da ocupação como 17 de Março e 29 de Março “nos faz questionar
em que medida esses símbolos estabelecem relação com a identidade de seus moradores.”
(Mamari, 2008: 27) Existem ainda nomes de ocupações que remetem ao imaginário de
territórios de luta como as ocupações Nova Palestina e a Quilombo das Guerreiras.
Considerando que as identidades não são fixas, mas estão em constante processo de
construção, em que são afirmadas e vivenciadas cotidianamente, evocar formas simbólicas
para nomear o lugar de moradia recém conquistada reforça ainda mais o projeto que se
almeja construir. Se as práticas dos movimentos sociais não estão desconectadas de uma
política sobre a vida das pessoas, sobre o devir desses ocupantes, afirmar este sentimento de
pertença, através de nomes de líderes e datas comemorativas, tem uma carga simbólica
expressiva uma vez que é mais uma estratégia de fortalecimento de suas agendas de luta.
Através das ocupações, os moradores refuncionalizam não apenas a forma, o espaço, mas
projetam lugares, em busca de um ideal comunitário que deve ser perseguido, com graus de
intensidade diferentes.
A primeira tentativa de ocupação da Manuel Congo se deu no Cine Vitória, antiga
sala de cinema, localizada na Rua Senador Dantas nº 45, então administrada pelo grupo
Luiz Severiano Ribeiro. O espaço, em ruínas, foi ocupado, na madrugada do dia 1º de
outubro de 2007, dia internacional de luta pelo habitat19, por cerca de 100 famílias que lá
permaneceram por oito dias, organizadas pelo MNLM. No dia 05 de outubro de 2007, os
ocupantes organizaram um evento em que foi exibido o filme “Encontro com Milton Santos
ou o mundo global visto do lado de cá”, documentário de Silvio Tendler, e contou com a
presença do diretor que se dispôs a discutir o processo de globalização com base no
pensamento do geógrafo Milton Santos, articulando com o contexto da ocupação.
Na ocasião, o advogado do proprietário do imóvel esteve no local e, apesar das
tentativas de negociação, por tratar-se de um espaço privado, foi impetrada uma ação

                                                                                                               
19
O Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (UN-HABITAT) instituiu toda a primeira
segunda-feira de outubro como o Dia Mundial do Habitat. Esta data vem sendo comemorada por várias
entidades, organizações e movimentos sociais como um dia de manifestações e atos políticos ou ainda como o
dia mundial de mobilização contra os despejos forçados.

60
judicial e o grupo foi obrigado a sair do imóvel dez dias após a sua ocupação, devido à
ordem expedida em caráter liminar. Um filme foi realizado sobre o dia da exibição do
documentário de Tendler, as negociações do despejo, a retirada das famílias e os atos que
foram feitos em seguida. Este registro costuma ser passado em datas comemorativas da
ocupação (como na comemoração de um ano) como forma de reforçar a luta de todos os
moradores. Durante vários dias, as famílias peregrinaram pelo centro do Rio de Janeiro em
busca de um outro espaço para morar. A memória de uma das moradoras, que conseguiu
reconstruir, com todas as aventuras típicas de um filme de ficção, pode nos ajudar a
compreender este processo de busca por um lar.
“... aqui no Vitória, a gente ficou uma semana, aí a polícia militar veio
tirar a gente, mas também não chegou assim tirando na marra, não,
chegou, veio, conversou (...) Depois do Vitória, a gente foi lá para a Rua
da Ajuda20, fazer um ato, porque não tinha como, era muita criança,
muitos jovens, pessoas doentes. Chegamos lá, ficamos horas e horas,
gritando, cantando. Foi quando chamaram uma comissão da ocupação
para subir para ter reunião. Depois fomos para a Regente Feijó, chegando
lá, todo mundo entrou, arrumamos as coisas, chegou outro carro de
polícia, de outro batalhão ‘vocês não podem ficar aí não.’ Aí veio
jornalista, veio mais polícia, a gente dormimos, ficamos lá quase 24h. Eles
falaram que não tinha como ficar todo mundo lá. Pegamos, fomos para do
lado da Sala Larissa Meireles21, eu acho que a gente ficou três dias ali. Aí
fomos para Laranjeiras22. Eu acho que ficou cinco ou seis lugares que nós
ficamos indo. O último, que teve mais uma reunião, foi que nós entramos
aqui, foi no dia 28 de outubro [de 2007]. Agora dia 28 [de outubro de
2008] faz um ano que nós estamos aqui.” (Ritinha)

Esta “peregrinação” não aparece nos discursos dos moradores mas fica estampada
em cartazes que são colados nas paredes da sala de reuniões, talvez pelo fato da
necessidade de marcar com insistência o esforço e o compromisso com a luta. Como me
disse certa vez uma moradora “a dificuldade fortalece o grupo”. Aqui, vale ressaltar que
esta via crucis não é algo pouco comum nos movimentos de ocupação, mas é um processo
que faz parte da construção da resistência. Recuperar e afirmar a “ralação” e a “disposição”
é uma maneira de oferecer legitimidade à causa, ainda mais quando esta envolve

                                                                                                               
20
Na Rua da Ajuda, nº 5 situa-se a Secretaria de Estado de Habitação (SEH), local em que as famílias ficaram
acampadas durante um dia após o despejo do Cine Vitória.
21
Sede da Coordenação Nacional de Lutas (CONLUTAS), na Rua Teotônio Regadas, Lapa, centro da cidade
do Rio de Janeiro.
22
Os moradores permaneceram cinco dias no núcleo do Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação do
Rio (SEPE), localizado na Rua Conde de Baependi, nº 99, no Flamengo.

61
“crianças”, “jovens” e “pessoas doentes”. Em diversos momentos, os moradores me
relataram todo o processo de “conscientização”, “discussão” e “preparação” como uma
tarefa árdua, mas necessária para a viabilização da moradia. No entanto, não nos interessa
aqui recuperar amiúde estas modulações de construção da luta, mas apontar para uma
dimensão menos aparente, mas crucial para a “argamassa” simbólica do prédio, o território
doméstico como lócus eminentemente político.
Em 2005, o prédio do INSS passou por uma tentativa mal sucedida de ocupação.
Nesta época, mobilizados pelo sucesso das ocupações Chiquinha Gonzaga e Zumbi dos
Palmares, algumas famílias e militantes vinculados a diferentes organizações resolveram
seguir o mesmo procedimento. Militantes já engajados em trabalhos de base, tais como
cursos de alfabetização e pré-vestibulares comunitários, começaram a se organizar para
formar o grupo de futuros ocupantes, indicando data, local e horário das reuniões. Após seis
meses de reuniões semanais, o Operativo23 optou pela escolha do edifício do INSS. A ação
se deu na madrugada do dia 14 de novembro de 2005, no entanto, logo pela manhã, um
forte aparato policial já havia sido mobilizado em frente ao edifício ocupado, impedindo a
entrada e saída de qualquer pessoa, inclusive de mantimentos e água. Ao final da tarde do
mesmo dia, o pedido do INSS de reintegração de posse foi julgado e a ordem de despejo
executada.
Dois anos depois, o episódio se repetiria, embora com outro desfecho. Em outubro
de 2007, após a ocupação liderada pelo MNLM, a Superintendência Regional do INSS no
Estado do Rio de Janeiro entrou com uma ação de despejo, movendo uma ação de
reintegração de posse (processo nº 2007.51.01.027256-6) cuja liminar, após 90 dias de
sobrestamento, foi deferida, com a “ajuda” de uma juíza “sensível ao caso”, como a própria
coordenadora do movimento fez questão de frisar. Desde então, iniciou-se um processo de
negociação entre o INSS, Governo Federal e Governo do Estado do Rio de Janeiro para
viabilizar a compra do imóvel pelo Estado do Rio de Janeiro, com o fim de que fosse
transformado em habitação de interesse social para cumprir a função social da propriedade
e garantir a moradia para os ocupantes.

                                                                                                               
23
“O Operativo é um grupo formado por apoiadores de um novo processo que possui a função de planejar e
executar a ação direta, ou seja, a ocupação em si.” (Moreira, 2011: 58)

62
Paulatinamente, as famílias vêm conseguindo se estabelecer no local, permanecendo
lá até os dias atuais. A categoria “família” apresenta-se aqui como um critério importante
sobretudo se pretendemos analisar uma ocupação a partir das estratégias morais que os
moradores acionam para lidar com as dificuldades e dilemas que vão surgindo no viver
coletivo. Primeiramente, é preciso observar que o “sujeito” da ocupação são as famílias, a
própria contagem do número de ocupantes é feita a partir do quantitativo de famílias (42).
Na Carta de Princípios, documento que estabelece, dentre outras questões, as regras de
convivência, os moradores são representados como membro de um núcleo familiar. Um dos
critérios de exclusão do cadastro ou de desalojamento de famílias já ocupantes é quando um
representante do núcleo familiar se ausenta de duas Assembleias seguidas ou de três
alternadas no período de seis meses. Assim, vale destacar que não é o indivíduo que recebe
a punição, mas toda a família é merecedora da exclusão caso seu representante tenha
infringido as regras. Em contrapartida, toda a família pode se beneficiar, ficando isenta de
sorteio nos casos de ocupação vertical em espaços que não disponham de elevadores, se,
dentre seus membros, houver um idoso acima de 60 anos, portador de deficiência ou de
doença cardiovascular grave.
Este peso da “família” se mostrou relevante em várias situações e, em uma
especialmente, ele ficou evidente, como no caso de uma situação de roubo, ocorrida na
ocupação e relatada por uma moradora. Conforme me contou, em um domingo de manhã,
ela se levantou atrasada para ir trabalhar e por isso teve que tomar um banho às pressas.
Deixou a porta de casa entreaberta, como de costume, e correu para o banheiro coletivo.
Enquanto isso, entrou outro morador no seu apartamento e pegou seu celular, que estava em
cima da mesa, enquanto seu marido dormia no sofá ao lado, mas como ela tinha tomado
banho muito rápido, quando voltou encontrou a pessoa dentro de seu apartamento. Diante
do fato inquestionável, o usurpador teve que ser retirado da ocupação, mas seus pais foram
poupados e continuaram morando no prédio. A moradora lesada foi incentivada, pelos
coordenadores, a “dar parte na delegacia”, mas por “consideração” à família que
permanecera no prédio, preferiu não consumar a queixa. A partir deste caso, vemos que a
“família” torna-se um “parâmetro simbólico” não só para o movimento que estrutura,
cadastra, separa, distribui, penaliza, desaloja e exclui, mas para os próprios moradores que,
considerando o agregado familiar como referencial moral, agregam ou destituem os laços

63
de pertencimento. Em resumo, os moradores ganham (ou perdem) status de sujeito político
em virtude de seu vínculo a uma dada configuração familiar.
Além desta possível valoração, existe ainda uma série de expectativas com relação
ao que seja o arranjo familiar. Muitos moradores reconhecem que, ao irem morar na
ocupação, passaram a estabelecer uma nova família, conquistando novos parentes,
agregando e desagregando membros, desempenhando coletivamente tarefas domésticas
para além do espaço fechado de uma residência. Uma moradora relata que quando foi
morar na ocupação “não tinha família, mas agora eu tenho uma verdadeira família.” Já
outra, ao descrever situações conflituosas pelas quais teve que passar dentro da ocupação,
reconhece, na figura da coordenadora nacional do movimento, uma extensão de sua família
original.
“A Ângela mesmo, toda vez que ela via que eu ia voar em cima de
alguém, ela falava assim ‘Bárbara, segura minha filha.’ Ela sempre me
dava carinho, muita atenção mesmo. Aqui dentro desse prédio ela fala que
se fosse para ela sair daqui de dentro, uma das pessoas que ela tiraria, que
ela levaria junto com ela era eu e minha família. E eu também falo a
mesma coisa para ela, se fosse para mim sair daqui e desistir de tudo, se
fosse para eu sair junto com ela, eu sairia numa boa.” (Bárbara)

A maneira como alguns moradores optam por incluir outras pessoas como membros
da família, a partir da dimensão do “carinho” e da “atenção”, nos oferece mais uma pista
para questionarmos qualquer tentativa de substancialização desta unidade. Vários estudos,
sobretudo os que se apoiam em trabalhos etnográficos, já se esforçaram em demonstrar que
esta categoria vai muito além de um critério de consaguinidade. Inúmeros pesquisadores
recorreram a dados produzidos através de estudos em sociedades “tradicionais”, para
desnaturalizar as percepções sobre a “família humana”. Tantos outros documentaram a
diversidade de formas familiares na história de sociedades complexas, o que, aos poucos,
contribuiu para se consolidar um consenso, no campo acadêmico, de que essa “instituição
social” (como qualquer outra) só podia ser entendida quando remetida ao contexto social,
político e econômico que a produziu. Vianna (2002) esclarece que não só antropólogos e
cientistas sociais de modo geral, mas corpos jurídicos e perspectivas doutrinárias que
regulam legalmente a infância também têm se envolvido com questões referentes às
variações que ocorrem tanto no tempo quanto em relação à diferença entre grupos em uma
mesma sociedade das formas de compor as relações familiares.

64
Deste modo, não cabe aqui duplicar esforços já realizados por outros, mas sinalizar
alguns estudos que ganham relevância justamente pelo diálogo possível com as questões
suscitadas a partir do universo da Manuel Congo. Este diálogo teórico-metodológico serve
não apenas para localizar semelhanças mas também para ressaltar contrastes e, assim,
lançar novas perguntas sobre as particularidades de cada contexto. Como alerta Vianna
(2002), a partir dos anos 1960, o modelo nuclear de organização das relações familiares
começou a ser contestado como o único (ou o mais) legítimo, tanto política como
24
academicamente. Estudos de gênero acompanhados por movimentos feministas
começaram a chamar atenção para formas alternativas e minoritárias de organização
familiar o que contribuiu para a relativização desse modelo e para a legitimação, inclusive
legal, de outros arranjos familiares.
O que nos interessa neste debate não são apenas os esforços de problematização
mas sobretudo as tentativa de enfocar as múltiplas funcionalidades em jogo no arranjo
familiar, percebendo que este último envolve uma combinação complexa do que seja e do
que se deseja como família. Estas classificações existem em diversos âmbitos, seja pelo
lugar dos afetos, dos cuidados, do território doméstico, da burocracia dos órgãos
governamentais, das agendas dos movimentos populares, enfim de disputas que se dão em
várias arenas políticas.
Falar de família, portanto, é chamar atenção para as relações de poder, de
desigualdade, além de enaltecer todo o esforço pela unidade e manutenção dos laços. É
preciso perceber que estes também são tecidos num processo conflitivo (de gênero,
geração, sexualidade, classe...), através de um conjunto de relações tensas e assimétricas em
que são constituídos limites, hierarquias e jogos de possibilidade. Há portanto, um trabalho
social e moral contínuo na construção da economia familiar.
A noção de household 25 , proposta por Yanagisako (1979), pode ser útil para
incorporarmos as densidades de relações presentes em seus extensões. Famílias não
necessariamente residem em uma mesma residência e esta não é composta unicamente por
                                                                                                               
24
Neste debate podemos situar a análise de Sylvia Yanagisako (1979) que defende a impossibilidade de
pensar a família como unidade fechada em si mesma, reivindicando a necessidade de abordar o processo de
construção valorativa e sentimental como elemento definidor do que seja família. Nesta perspectiva, é preciso
superar uma certa visão funcionalista que reduz toda a relação de parentesco a uma mera extensão das
relações emocionais e psicológicas de associações familiares íntimas.
25
Household será entendida aqui como unidade doméstica, categoria que engloba variadas relações, tarefas,
cuidados e obrigações e que é muito mais ampla e complexa do que os limites de uma casa.

65
membros de uma mesma parentela. Na Manuel Congo diversas famílias ainda têm ligação
com suas residências de origem, em outros bairros e localidades ou mesmo disponibilizam
suas casas, na ocupação, para o acolhimento de amigos, pais, tios, primos, sobrinhos ou
colegas de trabalho que precisam de um local para pernoitar, algumas semanas para
procurar emprego, dada a proximidade do centro da cidade, ou ajuda para recuperar-se de
alguma cirurgia ou acidente. Em diversos momentos pude perceber que a casa
constantemente era modificada (não só em termos espaciais) conforme a extensão ou
redução das pessoas que lá frequentavam e/ou habitavam. Desta maneira, existe todo um
complexo de relações e territórios que define o que seja família, envolvendo trabalho de
subsistência, construção e manutenção da unidade doméstica e compartilhamento de
cuidados.
Não se trata, portanto, de lidar com família e grupo doméstico como dimensões
descoladas, mas como esferas que se entrecruzam, o que implica em pensar as dobradiças
entre estas duas dimensões. O universo familiar envolve toda uma reprodução econômica,
que extrapola a dimensão monetária, mas diz respeito a um esforço contínuo de gestão, de
partilha de obrigações, produção e consumo de comida e de gerência dos cuidados. Por sua
vez, a unidade doméstica pode estar reproduzida em casas variadas, em múltiplas
atividades de gestão, o que pode ser melhor compreendido pela noção de configuração de
casas.
Em pesquisa sobre famílias negras no recôncavo baiano, Louis Herns Marcelin
(1996, 1999) chama a atenção para a importância de trabalhar não apenas com a ideia de
casas, mas de configuração de casas, enfatizando as relações de solidariedade e
compromisso estabelecidas no que chama de “relações familiares em eterna construção”
(Marcelin, 1996: 102). Questionando uma “concepção miserabilista das classes populares”
que faz de suas organizações familiares meras variáveis da estrutura socioeconômica,
transformando esses agentes em seres incapazes de produzir um mundo e habitá-lo
simbolicamente, Marcelin (1999) propõe outra linha de abordagem. Reconstruindo a
experiência familiar dos negros de Cachoeira, o autor assinala que a família trabalhadora
(ou operária) e a família negra não apenas se adaptam ao processo de modernização a partir
de estratégias de sobrevivência. Mas, ao contrário, “os agentes, os grupos, os povos agem
em função da cosmovisão (conhecimento e crença) que possuem de si mesmos, dos outros

66
e do meio em que vivem”, construindo seus próprios domínios de parentesco, nação,
religião, etc. (Marcelin, 1999: 32).
Neste sentido, para apreender os sentidos das relações sociais investidas na
experiência da família, é fundamental recuperar os usos e os modos particulares de
habitação destes agentes no meio popular, ou seja, é preciso tomar como foco a casa e suas
implicações na produção dos laços sociais. No entanto, uma “antropologia da experiência
familiar nas classes populares” deve contemplar a casa não como um fato isolado, mas
inseri-la numa configuração de casas (conjunto de casas vinculadas por uma ideologia da
família e do parentesco), a fim de perceber como estes dois níveis articulam-se por meio de
sentidos, tensões e simbolismos.
Se os apartamentos da Manuel Congo não seguem a atmosfera usual26 das unidades
domésticas distribuídas pelos bairros populares de Cachoeira, ainda assim os moradores da
ocupação organizam suas casas, atribuindo sentidos e demarcando fronteiras simbólicas e
espaciais. Por tratar-se originalmente de um prédio de escritórios, todos os apartamentos
são de um único cômodo, variando apenas de tamanho e de localização. Todos têm janelas
amplas e arejadas, algumas são viradas para a Rua Alcindo Guanabara, onde se localiza o
portão principal de acesso, outras para a Rua Evaristo da Veiga, onde situa-se a entrada
secundária, e as demais são voltadas para o prisma de iluminação e ventilação do prédio.
Para a separação do cômodo, as famílias utilizam, como mecanismo de divisória, armários,
cortinas e sofás. Em alguns apartamentos, que não dispõem das divisórias improvisadas,
verifica-se um amplo salão, mas isso não impede que haja um canto reservado para a
cozinha com fogão, geladeira e mesa, outro para a sala com sofá e televisão e outro para o
quarto com cama e armário ou uma pequena cômoda que serve para guardar roupas, toalhas

                                                                                                               
26
Segundo Marcelin, as casas em Cachoeira são normalmente “cobertas por telhas de cerâmica ajustadas
sobre uma armadura de madeira, tendo em média uma área retangular de 55 m2, com fachada de tijolos,
deixando uma abertura em forma de quadrado na qual é fixada a janela, protegida por barras de ferro. Há
sempre uma pequena varanda, cujas funções variam de lugar de comércio a espaço de lazer. O espaço interior
é organizado de tal maneira que o visitante, segundo seu grau de intimidade com a casa, percorre
sucessivamente, à direita, a varanda, a sala de visitas (que é ao mesmo tempo sala de jantar), a cozinha e o
quintal (onde se encontra o banheiro). Os quartos localizam-se, sempre, à esquerda. O interior da casa é
ordenado de tal maneira que as portas de cada quarto se abrem para a sala. No fundo desta, na extrema direita,
há a imagem do santo protetor (ou orixá) afixada na parede. A princípio, toda casa tem seu oratório,
localizado no quarto principal, consagrado às divindades de crença da família.” Neste sentido a casa é
pensada como uma combinação da ordem da natureza com a ordem social (Marcelin, 1999: 33).

67
e arranjos de cama. Vale lembrar que em nenhum apartamento verifica-se banheiros ou
pias, estando estes localizados nos corredores, para uso coletivo.
Apesar dessa confluência, de maneira semelhante ao contexto baiano, na ocupação,
os espaços da casa também são produzidos a partir de princípios que governam as relações
entre gêneros e gerações. Durante o dia, é mais comum a presença de mulheres, idosos e
crianças as quais se alternam no período da manhã ou da tarde, dependendo do turno na
escola. À noite, os espaços são redefinidos, reaparecendo os homens que retornam do
trabalho.
Assim como observado por Marcelin, na ocupação não se pode isolar o “fato da
casa” do fato de construí-la. Esta construção mobiliza projetos individuais e familiares,
recursos humanos e materiais de uma coletividade que se expande por redes de amigos,
parentes e vizinhos. Construir a casa, portanto, não implica apenas um esforço de
organização do espaço físico, mas de mobilização de recursos econômicos, humanos, uma
gama de relações de cuidado que são compartilhados através de uma rede de ajuda mútua.
Como atesta o autor, esta forma de construção, seja em Cachoeira, nas cidades periféricas
do Recôncavo baiano ou nas ocupações urbanas, é sempre “um processo pré-configurativo
da casa, só pode ser uma operação coletiva” (Marcelin, 1999: 36; grifo meu).
Mas como os moradores da Manuel Congo reconhecem sua moradia, ou melhor,
como se dá a transformação do antigo prédio de escritórios abandonado em uma casa? Será
que basta apenas dividir o cômodo, botar a geladeira ali, o fogão para cá, a cama acolá e
dependurar uma televisão? Nas entrevistas ou nas conversas informais, as respostas foram
as mais variadas. Para algumas pessoas era necessário uma chave ou algum documento
legal que sacramentasse a posse definitiva do apartamento. Para outras, o fato de sair de
uma “área de risco” e encontrar um lugar para criar os filhos de uma maneira diferente, já
caracterizava a ocupação como sua casa, mesmo que passageira. Já para outras passava por
uma conversão física e moral, sendo necessária uma reforma para ter a própria cozinha e o
banheiro, para se tornar “um lar de verdade”, assim como regras de conduta. Como me
alertou certa vez uma moradora “aqui eu não posso chegar na sua casa e tirar satisfação,
aqui é diferente, tentamos fazer coisas diferentes.”
A casa é ainda o espaço em que a família se constrói e se atualiza através de trocas
diárias, agentes que se apoiam e que se distribuem por uma extensa rede que envolve

68
amigos, vizinhos, parentes próximos e distantes. Como sinaliza Marcelin (1999), a casa
não é somente um bem, uma coisa, mas é uma prática, uma construção estratégica na
produção da domesticidade, ela é pensada e vivida em inter-relação com as outras casas
que participam de sua construção, ela faz parte de uma configuração.27
A referência permanente à casa, pelos próprios ocupantes, como espaço em que a
família se atualiza e que a própria luta é delineada, mostra que a experiência política, na
Manuel Congo, tem uma ligação direta e complexa com a experiência moral do território
doméstico. Ademais, considerando que “família” é um significante vivo, que passa por
estratégias, manipulações e classificações variadas, a casa também apresenta-se como uma
categoria cultural relevante e maleável neste contexto. Se, por um lado, na concepção do
movimento, ela é designada como moradia ou moradia digna, categoria política que visa
aproximá-la de um direito, opondo-se à ideia de mercadoria, um privilégio; por outro, nas
práticas e representações cotidianas dos moradores, ela aparece como casa, entidade moral
que implica gestão, cuidados, preparo de alimentos, arrumação, dentre outros afazeres
domésticos.
Neste sentido, a luta pela moradia, mais do que a reivindicação de um direito
consagrado constitucionalmente, é a luta pelo estabelecimento e reconhecimento moral da
casa, de diferentes configurações domésticas, arranjos familiares, partilha de obrigações,
relações de cuidado. Ainda que possa ter múltiplos usos, a casa, como é designada pelos
moradores, funciona como um espaço relativamente seguro, mas não necessariamente
oposto ao território político. Neste processo de construção da casa e da moradia, ou
melhor, do doméstico e do político, a tensão entre projetos coletivos e projetos familiares
não só distancia, mas oferece trânsito entre esferas de significação que se misturam e se
reconstroem o tempo todo. Mesmo que não tenha tranca na porta, a casa preserva um
ambiente permeado por questões pessoais e familiares que estão o tempo todo esbarrando
na moradia, espaço de luta, da Reforma Urbana, de regras e sanções coletivas. Assim,
ainda que remetam a valores e densidades diferentes, casa e moradia não são polos
antagônicos, mas estão em constante cruzamento, fazendo emergir tensões e disputas entre
os projetos familiares de vida e o morar coletivamente. Seguindo a proposta de Marcelin
                                                                                                               
27
Vale ressaltar que a configuração de casas não se refere a um ambiente localizável e nem corresponde ao
conceito de “família extensa”, mas trata-se “de uma conceitualização, por meio da categoria cultural casa e
processos relacionais entre agentes familiares originários de várias casas” (Marcelin, 1999: 37; grifos meus).

69
(1999), a casa “deve ser pensada como o lugar no qual se sobressaem as contradições e as
ambivalências da sociedade global” (Marcelin, 1999: 50). Neste entrelaçamento, podemos
observar que, de espaço íntimo por excelência, a casa, sobretudo a de alguns moradores,
pode adquirir contornos eminentemente políticos.
Em diversos momentos cheguei à casa da coordenadora nacional e era lá que
aconteciam as próprias reuniões do movimento. Conforme sintetizou um outro morador “a
casa dela é a própria ocupação.” Esta peculiaridade faz com que a coordenadora se sinta
cansada e muito requisitada pelas demandas dos moradores que entram a todo momento
para solicitar ajuda, mediar alguma confusão ou mesmo pedir conselhos.
“Eles sabem exatamente o que está certo e o que está errado. Mas, o que
eles fazem? Eles batem na porta: ‘Eu vim te chamar.’ Aí eu saio daqui, aí
eles vão tudo andando atrás de mim. Aí quando está chegando perto, eu
dou uns passos para trás, para deixar eles irem na frente.” (Ângela)

Esta situação não é “privilégio” das pessoas que ocupam cargos de representantes,
mas parece que todas as casas da ocupação são espaços coletivos, menos pelo fato de não
terem trancas nas porta, e mais por serem universos que se entrelaçam e se produzem
mutuamente. Não foram raras as vezes em que pude presenciar a entrada de vizinhos
pedindo emprestado algum utensílio de cozinha, mantimentos como café, açúcar e arroz,
fraldas descartáveis, para usar o computador ou mesmo para fofocar. Em uma destas
situações pude observar o incômodo de uma senhora em ter que emprestar sua panela de
pressão. “A última vez que eu emprestei, a tampa veio toda amassada”, reclamou. O
curioso foi perceber que, embora isso lhe causasse certo desconforto, ela parecia antecipar
as demandas por empréstimo, pois retirou uma panela já gasta do armário, que não era nem
usada, preservando uma recém comprada.
Se considerarmos que a casa não é apenas o espaço de reprodução da vida social,
devemos encará-la como um ambiente prenhe de segredos, onde preocupações e
insatisfação são externadas e discutidas e, onde, muitas vezes, a insurgência é planejada.
Lugar dos afetos, das trocas e relações de poder e de incubação da dissidência. Como visto
na Introdução da tese, não foi a toa que os coordenadores do movimento se preocuparam
com a “liberdade” que eu estava tendo ao adentrar, a qualquer momento, nas casas dos
moradores. Mais do que uma cautela a uma possível ameaça provocada pela minha
presença, tratava-se, sobretudo, de preservar o território doméstico eivado de expressão

70
política. A preocupação em resguardar o foro íntimo das pessoas era, portanto, uma
preocupação com a própria figura do movimento.
A impossibilidade de pensar a família como algo isolado, remetendo-a sempre às
interações e estratégias implementadas para sua gerência deve contemplar ainda outra
dimensão. Conforme apontado anteriormente, a “família” passa por um processo de fixação
e de classificação não só das agências estatais, mas do próprio movimento interessado em
contar, registrar, cadastrar e até penalizar. Neste sentido, quais as fronteiras que delimitam
o universo familiar? Este processo contínuo de produção passa não só pelas redes de
cuidados e reforço dos laços familiares, mas também por princípios de organização política,
normas administrativas e programas sociais.
Conforme explorado por Gerald Creed (2000), os chamados sentimentos de família
são permeados não apenas por um conjunto de práticas e significados, mas por relações e
mecanismos de poder que envolvem dimensões econômicas, políticas e jurídicas. Em
outras palavras, a definição de família passa por uma classificação administrativa. O Estado
constrói e classifica o que vem a ser família, desencadeando diversos confrontos a este tipo
de categorização28.
Sob esta ótica, Bourdieu (1996) reconhece todo o trabalho social inscrito naquilo
que aparece como a mais natural das categoriais sociais. Preocupado com as categorizações
que emergem de um campo burocrático, o autor identifica que, sob a aparência de
descrever, o registro administrativo de fato acaba por construir uma realidade social. É
neste jogo de descrição e prescrição que o Estado “contribui para criar ou reforçar essa
categoria de construção da realidade, que é a ideia de família, através de instituições como
o registro de família, as alocações familiares e todo o conjunto de ações simbólicas e
materiais, frequentemente acompanhadas de sanções econômicas, cujo efeito é reforçar em
cada um de seus membros o interesse pela manutenção da unidade doméstica” (Bourdieu,
1996: 178).

                                                                                                               
28
Creed (2000) reconhece que a construção de unidades, fronteiras e toda a gama de relações que envolve a
empresa familiar se inscreve numa modulação de escolha analítica e de olhar do próprio pesquisador. Não é a
toa que ele faz menção a uma inflexão de estudos de gênero e debates feministas no cenário político e
acadêmico. Neste sentido não se trata de descrever novas famílias, mas perceber que existem novos arranjos
que provocam teórica e politicamente uma diversidade de sensibilidades analíticas. Estas novas práticas de se
viver e classificar a família acabam, por sua vez, pressionando os limites da pretensa unidade, fazendo
emergir situações que não estavam presentes ou estavam mas até então não tinham tido impacto no cenário
acadêmico.

71
Aqui parece residir o nosso interesse por esta discussão, uma vez que a família é
também um efeito classificatório e este registro incide sobre as práticas dos ocupantes. A
Carta de Princípios é um documento-chave para pensarmos estas operações e
principalmente para esfacelarmos qualquer pretensão de tentar compreender os moradores
como indivíduos. Em nenhum momento, as pessoas se avaliam enquanto tal, mas como
pessoas diretamente remetidas a um ambiente coletivo. As referências colocadas pela Carta
e pelos próprios moradores são sempre em termos de coletividade, seja pelo território
doméstico, seja pelo território político. Estes são planos em constante diálogo e
competição, ora convergindo as lealdades, ora divergindo os compromissos. Neste
perspectiva, a casa passa a ser o bem que melhor sintetiza esta relação, pois ela é de fato o
lócus que agrega estes múltiplos projetos. É nesta linha de raciocínio que a família,
enquanto coletividade, é construída como unidade central para o movimento, dado que é
por meio dela que ocorrem a contagem de pessoas, o cadastro, os critérios de desalojamento
assim como os benefícios para distribuição pelos apartamentos quando finalizada a entrega
definitiva do prédio. O componente familiar entra, portanto, como horizonte classificatório
para o movimento e como expectativa de estabilidade das pessoas na ocupação.
Efetuando uma busca persistente por uma comunidade unida, integrada e estável, o
MNLM procura, em momentos simbólicos como a Carta de Princípios ou mesmo em datas
comemorativas, organizar, caracterizar, registrar e projetar quais, quantos são e como
devem ser os arranjos familiares dos ocupantes. Os dois principais critérios para que uma
família seja cadastrada é seu grau de participação nas reuniões prévias e a “renda familiar”
que deve girar entre “zero e três salários mínimos.” Como descrito no documento, “em
nenhuma hipótese será contemplada famílias que possuam outro imóvel e/ou tenha
declarado informações de renda inverídicas no cadastramento e afirmadas em
Assembleias.” O discurso apreensivo de um dos coordenadores corrobora os preceitos
estabelecidos na Carta “... na hora de ser titulada aqui, se ela não tiver vendido sua casa, ela
não é cadastrada.”
Neste sentido, percebemos que a condição para que uma pessoa seja cadastrada
como morador da Manuel Congo é ela estar encaixada no perfil familiar delimitado.
Embora seja uma exigência no momento do cadastro, esta restrição causa certo desconforto
entre alguns moradores, sobretudo se considerarmos que algumas famílias possuem

72
imóveis situados em terrenos cuja origem também passa por irregularidades cadastrais.
Certa vez uma moradora me dizia ter bastante dificuldade em se desfazer de sua casa em
Anchieta, que foi herdada da mãe de seu marido, uma vez que a mesma estava localizada
em terreno outrora ocupado. “As pessoas falam que para vir para cá tem que se desfazer do
que tem, mas a casa que eu tenho em Anchieta eu não posso nem vender, as pessoas pedem
documento, mas a gente não tem nada. Se precisar de um documento para alegar que é
nosso a gente não tem, só tem a conta de luz, mas a conta de luz é o de menos.”
Como visto, para ser cadastrado no prédio é preciso participação no coletivo,
pertencer a uma “família de baixa renda” e não ter nenhum imóvel. Caso tenha, é preciso
dele se desfazer, mas se o mesmo não for reconhecido oficialmente, certamente trará
dificuldades. Estas situações nos remetem a uma hierarquia de representações uma vez que
os dispositivos governamentais produzem categorias que são postas em ação e tem um peso
muito diverso das categorias nativas. Como atesta Bourdieu (2001), as representações
estatais tem um poder de legitimidade (e de verdade) que não é da mesma ordem das
disputas ideológicas e simbólicas acionadas pelos sujeitos para determinar quem está
autorizado e quem não está. Trata-se de formas legalmente sancionadas, e popularmente
reconhecidas, de sexualidade, conjugalidade, família, reprodução, gênero, etnicidade,
moradia. Afinal, existe “a família” dos censos demográficos, da certidão de nascimento, da
matrícula da escola, dos programas sociais e existe o apartamento legalizado, o terreno
reconhecido, a casa regularizada. Se família e moradia não se esgotam nesta ordem de
descrição e prescrição, os sujeitos em algum momento acabam a elas se reportando, seja
para ratificar ou para reinventar as categorias construídas como oficiais.
Por mais que esta tese tente privilegiar uma dimensão mais concreta dos sujeitos,
isso não implica em fragmentar ou desmaterializar o lugar do Estado na definição dos
contornos da família, mas perceber como as representações dos atores são construídas nos
meandros das próprias regras estatais. A luta pela moradia ou mesmo o processo de
construção da casa não é um movimento contra ou fora do Estado, mas passa por ele,
negociando com seus agentes, pressionando suas medidas e manifestando em suas
dependências. Um exemplo disso são os atos simbólicos, promovidos pelo movimento, que
ocorrem nas agências do INSS, nas Secretarias estaduais ou federais ou ainda as
conferências e reuniões articuladas juntamente com representantes administrativos a fim de

73
acelerar o processo de aquisição definitiva do prédio. A despeito de qualquer categoria
classificatória, seja por parte dos órgãos administrativos, seja por parte dos movimentos
populares, é preciso perceber que estas esferas são campos de força e de disputa, uma
malha complexa de instituições, agentes e categorias que não são assimiladas passivamente
pelos sujeitos, mas passam por ajustes, manipulações e experiências práticas de vida.
Ademais, por mais eficazes que sejam estes efeitos classificatórios, as fronteiras dos
territórios de parentesco não necessariamente coincidem com o mapa e as fronteiras
político-administrativas, ainda que possa haver superposições coincidentes, mas são “um
fenômeno da ordem do discurso, da retórica e da hermenêutica nativa, mais do que de
ordem topográfica, jurídica ou econômica” (Comerford, 2003: 41).
Neste sentido, imprimir uma leitura política da família percebendo os jogos de
poder presentes na construção dessa unidade implica uma atenção ao cruzamento entre
emoções e interesses, a uma multiplicidade de ações – de caráter simultaneamente afetivo e
material – que envolvem o trabalho doméstico. Neste movimento contínuo, é preciso
atentar para o que entra na “marca” familiar e o que sai, afinal, o que este processo de
familiarização está produzindo e como ele pode ser acionado por diferentes agentes
(Comerford, 2003).
Nesta dinâmica é preciso pensar não só naquilo que se fixa e cristaliza, mas no que
escapa, que se diferencia. Enfim, é necessário reconhecer o lugar social da fixidez, não para
sacramentá-lo como modelo explicativo, mas para, de fato, refletir sobre os processos
dinâmicos e flexíveis que competem e disputam com estas modulações. A família envolve,
portanto, um jogo retórico e performático, um processo contínuo de negociação das
fronteiras, permitindo quem pode e quem não pode fazer parte do grupo. Os atores sociais
não se submetem apenas aos critérios legalmente sancionados, mas acionam suas próprias
práticas de “fixação” e “localização”, efetuando um trabalho de estabelecimento,
mobilidade e afastamento das relações familiares.
Assim, se a família é um importante mecanismo de controle do Estado sobre os
hábitos cotidianos da população, faz-se mister refletir sobre sua plasticidade prática,
sobretudo num país marcado pela quase ausência ou insuficiência de serviços públicos
capazes de intervir com eficácia nas relações familiares da população. No contexto
brasileiro em que a vida familiar, especialmente entre grupos populares, é parcialmente

74
provida por condições mínimas de reprodução social, não podemos olhar para a unidade
doméstica a partir de um modelo único. Ou melhor, não podemos percebê-la pela ótica do
que falta, do que não se encaixa, mas atentar para uma multiplicidade de arranjos
domésticos, agregados de diversos tipos, dinâmicas sociais que pouco tem em comum com
o modelo nuclear, heterossexual e reprodutivo de família.
Mais do que privilegiar a família enquanto um corpo fechado, é preciso evidenciar o
caráter aberto desta unidade, observando as dinâmicas de parentesco e as relações de
filiação que se processam em contextos etnográficos específicos. Como diferentes pessoas,
a partir de suas atividades cotidianas, definem “família” e como esta se constitui tendo em
vista um campo de disputa com outras arenas políticas, incluindo médicos, juristas, agentes
comunitários, órgãos de governo e demais “especialistas”? É preciso, portanto, percorrer as
tramas de relações, privilegiando as práticas e discursos dos indivíduos, a fim de
compreender como eles orientam as concepções variadas de vida familiar e como se
articulam com instituições, recursos e relações sancionadas legalmente.
Mais do que um universo que possa ser apreendido como um dado a priori, a
família aparece como um conjunto de questões. O que as pessoas dizem e reconhecem
como sendo parente? Que categorias e jogos de poder estão em jogo na empresa familiar?
Esta linha de questionamento não significa deixar de contemplar a maneira como muitas
pessoas ainda apreciam a “família” como um valor de importância crucial para suas vidas,
mas perceber que, longe de uma unidade natural e universal, “célula básica” de qualquer
sociedade, existe uma proliferação de práticas familiares que colocam em xeque qualquer
suspeita de um modelo hegemônico, emergindo todo um contexto político e moral
envolvendo os familismos. Neste conjunto de obrigações e prescrições, a família aparece
como um enunciado moral, um conjunto diferenciado de relações, honra, vergonha,
herança, reputação e prestação de contas.
É neste aspecto que a noção de processos de familiarização (Comerford, 2003) nos
interessa para pensar os modos muito particulares através dos quais os moradores da
Manuel Congo constroem e manipulam o projeto de vida coletiva a partir de suas práticas
familiares. A família, esclarece o autor, ao mesmo tempo que remete a uma esfera estável,
de coesão e valores solidificados, também se refere a um terreno de risco, de conflito, a
uma tensão social extrema que está o tempo todo promovendo outras relações. A dinâmica

75
familiar, na ocupação, é constantemente influenciada e “contaminada” pelas regras gerais.
A circulação pelo prédio ou mesmo o uso do banheiro são condicionados pelos horários
coletivos. Não é possível sair a qualquer momento (salvo em situações de emergência
médica), ou tomar banho quando lhe for conveniente, é preciso respeitar os horários da
portaria ou esperar alguém liberar o único banheiro disponível por andar.
Assim como Comerford (2003) não opõe o mundo da política (do interesse) ao
mundo do “sangue” (da lealdade), havendo paralelamente uma construção territorializada
da família e uma familiarização do território, no contexto da ocupação moradia e casa não
são esferas antagônicas, mas universos que se “contaminam” e se reconfiguram
mutuamente. Os moradores estão o tempo todo fazendo escolhas, criando uma dinâmica
própria que não se restringe apenas a aderir a algum ato do movimento ou ficar em casa
cuidando dos filhos, mas de conjugar estas lealdades, transitar de um campo para outro,
estabelecer estratégias de engajamento.
Neste trânsito constante, o território doméstico constrói o território político e vice-
versa, fazendo emergir uma densidade moral que, embora menos visível, são fundamentais
para a sedimentação da luta. Se no universo rural, pesquisado por Comerford (2003), a
localidade (córrego ou comunidade) é um elemento-chave para compreender o universo das
relações de parentesco, uma vez que designa uma relativa agregação territorial, vínculos,
antiguidade no lugar e os limites do pertencimento, no contexto da ocupação, a casa ocupa
lugar central uma vez que é para lá que converge a distribuição de cuidados, que se atualiza
a sociabilidade familiar e que emergem as tensões entre projeto político e projetos
familiares. Para Comerford (2003), território e parentesco têm uma relação estreita, uma
vez que o primeiro não é construído de forma descolada dos atores sociais, mas em
consonância direta com uma certa linguagem de família, com lutas classificatórias que
envolvem performances, disputas, valores e reputação. Já no caso da Manuel Congo não é o
parentesco que funciona como economia moral chave, mas o doméstico, a distribuição dos
afazeres, a circulação das crianças, as redes de ajuda. São os compromissos miúdos que, ao
mesmo tempo que são orientados por uma lógica do movimento, acabam perfazendo o
espaço coletivo.
Perceber que estes planos estão em constante disputa significa não apenas afirmar o
quão maleáveis são os arranjos familiares, mas nos ajuda a refletir sobre o processo através

76
do qual a produção desta unidade é realizada, conjugando moralidades e projetos políticos.
Aqui vale destacar o “estudo de viabilidade” produzido por alguns membros do MNLM
juntamente com uma equipe de arquitetos do Núcleo de assessoria, planejamento e pesquisa
(NAPP) como resposta à Carta Consulta aprovada em novembro de 2007, a qual garantiu
verba para aquisição do imóvel. A ideia era demonstrar como o edifício comportaria as 42
famílias a fim de se enquadrar nas linhas gerais do projeto arquitetônico de reforma do
prédio (Anexo V).
O estudo realizou um diagnóstico em que foi feita uma estimativa do número de
famílias residentes, assim como um levantamento de suas principais características. Os
resultados a que chegaram foram: as famílias ocupantes constituem um grupo de 114
pessoas, sendo 63 mulheres e 51 homens. Destas 114, 41 são crianças e adolescentes. O
maior número de famílias (24) vive com renda entre R$ 401,00 e R$ 800,00, sendo que o
menor número (18) recebe entre R$ 401,00 e R$ 600,00. Mais da metade dos chefes de
família (com preponderância absoluta do papel das mulheres) não possui um trabalho
regular, significando uma atividade extra e casual. As crianças em idade de creche não são
atendidas, embora suas mães tenham que trabalhar fora de casa. A maioria dos
adolescentes estuda, mas jovens e adultos com idade entre 18 e 30 anos formam um
percentual elevado com baixa escolaridade ou até ausência dos estudos. (mimeo Ocupação
Manuel Congo, Conquistas e Desafios, Mobilização Comunitária – Produto 5)
Mesmo considerando o esforço por parte do movimento em produzir dados
censitários sobre a ocupação, talvez como resposta a uma demanda burocrática, o que nos
interessa neste registro talvez seja menos a informação em si e mais a sua produção. Os
números aqui importam não porque definem quantitativamente a família, mas porque
remetem à produção de realidades e categorias dentro da ocupação. Ainda que cheguem a
um total de 114 pessoas, esta é uma quantidade por vezes imprecisa, seja pelo fato de
alguns saírem e outros entrarem, seja pela variação nos componentes da unidade familiar.
Conforme me chamou atenção uma das moradoras, “tem famílias aqui que tem sete
pessoas, oito, cinco, quatro, três, dois, e até uma pessoa solteira que já é de idade.” Assim,
mais do que uma questão quantitativa, trata-se de um arranjo que envolve valores, práticas
e alianças construídas e conquistadas a partir de redes de relação tecidas cotidianamente.

77
Por isso, é preciso perceber as maneiras como as pessoas usam os laços de parentesco,
pensam a família, moldam arranjos conjugais, constroem e disputam identidades.
Todas estas abordagens nos permitem pensar a família, no contexto da ocupação,
como um processo contínuo de produção que permeia inúmeros agentes e categorizações.
De um lado, ela pode ser compreendida como o “produto de um verdadeiro trabalho de
instituição, ritual e técnico ao mesmo tempo, que visa instituir de maneira duradoura, em
cada um dos membros da unidade instituída, sentimentos adequados a assegurar a
integração que é a condição de existência e de persistência dessa unidade” (Bourdieu,
1996: 129, grifos do autor).
Nesta perspectiva, podemos perceber como a família, tomada como “instituição
instituída”, passa a ser contemplada também na ótica das políticas públicas. Ao longo dos
anos 1980, à luz dos modelos neoliberais, estas políticas são marcadas por ajustes fiscais
que provocam a liberalização do mercado e precarização do emprego, reduzindo
investimentos nos serviços públicos e acelerando a ênfase na “autonomia” das famílias, que
acaba funcionando como um tipo de amortecedor da crise estrutural.
No contexto brasileiro, dada uma situação cada vez mais crescente de desigualdades
e injustiças sociais, observa-se, ao longo dos anos 1990, a multiplicação de políticas e
programas sociais voltados a segmentos populacionais considerados mais pobres e
vulneráveis (como as crianças e os adolescentes29) demandando intervenções pontuais,
compensatórias e assistencialistas. Da mesma maneira a família passa a ser vista como
lócus privilegiado de problemas e soluções sociais. Fonseca (2007) chama atenção para
inúmeros estudos, no Brasil, que esmiúçam as táticas embutidas em leis e projetos de
intervenção voltadas para a “normalização” de comportamentos familiares não-
convencionais, como a adoção de crianças por homossexuais (Uziel, 2007), a “escola dos
pais” promovida pelo Juizado para familiares de adolescentes infratores (Schuch, 2005) ou
as tentativas judiciais de adequar práticas informas que envolvem a circulação de crianças
às leis sobre guarda e adoção (Vianna, 2002), como veremos adiante.
O programa “Brasil em Família” ilustra bem o perfil destas iniciativas. Criado em
2000 – concatenando esforços de instâncias federais, estaduais e municipais – ele procura
                                                                                                               
29
Uma análise mais detalhada do desenvolvimento de iniciativas inspiradas em agências internacionais que
procuram aproveitar o “potencial” de sujeitos, principalmente a parcela juvenil, para a participação e
integração social será feita no capítulo 3.

78
impulsionar a inclusão social de famílias de baixa renda, com atividades de atendimento,
orientação, encaminhamento, suporte social e visitas domiciliares. As ajudas financeiras a
famílias pobres, esfaceladas entre diversas “bolsas” (Programa de Erradicação do Trabalho
Infantil – PETI; Projeto Agente Jovem de Desenvolvimento Social e Humano e o Programa
Bolsa Escola) acabaram se convergindo no Programa Bolsa Família, iniciado em 2003.
Além de todo o entusiasmo governamental que alimenta o Programa por quase uma década,
vale registrar os três eixos que norteiam este benefício. Trata-se de um programa de: a)
transferência de renda; b) viabilização de direitos sociais básicos nas áreas de educação,
saúde e assistência social e c) superação da situação de vulnerabilidade em que se
encontram milhares de famílias brasileiras. No entanto, ao invés de problematizar a própria
situação histórica de pobreza extrema desse segmento, o resultado dessas políticas de
família acaba sendo, antes de tudo, a privatização de preocupações sociais, isto é, a
responsabilização individualizada das famílias pelo enfrentamento da vulnerabilidade e da
precariedade das condições de vida desencadeadas por um processo muito mais abrangente.
Ao mesmo tempo em que a família é convocada como “aliada” na solução de uma
série de problemas sociais, ela se situa como pano de fundo ao bem-estar de diferentes
categorias que a compõem (mulheres, crianças, jovens, idosos). Assim, a partir dos anos
1990, não é mais a “família” propriamente dita que mobiliza as paixões de militantes,
ONGs e interventores, mas sim, diferentes “sujeitos de direitos”, elegidos conforme
critérios de gênero, geração, sexualidade, raça e classe. A maneira como estes sujeitos
ganham sentido político, articulando uma série de redes e instituições e desencadeando
expectativas quanto ao seu protagonismo será tema do capítulo 3.
Por outro lado, vale destacar que estes “atos inaugurais de criação” não se
restringem apenas às intervenções públicas e registros burocráticos de reprodução da ordem
social, mas dizem respeito também aos inumeráveis atos de reafirmação e de reforço das
obrigações, normas de conduta e regras de convívio consideradas adequadas para residir
numa ocupação. Estas prescrições, sejam elas formais ou não, acabam por delimitar que
arranjos familiares são considerados aptos para morar num espaço coletivo, que
comportamentos serão tolerados e como determinados sujeitos serão disciplinados para tal
empreitada.

79
Para que possamos compreender como uma família passa de uma “ficção nominal”
a um conjunto atuante de sentidos e relações, “é preciso levar em conta todo o trabalho
simbólico e prático que tende a transformar a obrigação de amar em disposição amorosa e a
adotar cada um dos membros da família de um ‘espírito de família’” gerador de
devotamentos, generosidades e solidariedades que se expressa tanto nas trocas ordinárias da
vida cotidiana como dádivas, serviços, ajuda, visitas, cuidados e gentilezas, quanto nas
extraordinárias e solenes das festas familiares (Bourdieu, 1996: 129-130). Afinal, entre o
poder definidor de normas e o “público alvo”, as assimetrias de poder não obscurecem a
criatividade dos atores.
Se já é notório que a família, tomada como princípio de ação, produz alternativas à
reificação de modelos e representações convencionais, uma vez que se dedica às relações
práticas, trata-se, portanto, de sinalizar de que modo a experiência familiar acontece na vida
das pessoas, como o parentesco se atualiza e que categorias relacionadas à família estão
presentes nas narrativas dos ocupantes.
É neste sentido que abordaremos, nos próximos capítulos, como o território
doméstico se realiza através de um trabalho diário de criação de sentimentos, de embates e
construção dos espaços e das relações interna e externamente à ocupação. Como veremos,
este trabalho constante de integração familiar cabe a todos, mas, particularmente às
mulheres, ou melhor, às mães, encarregadas de manter viva as redes de relações e também
de sedimentar a luta coletiva. Assim, a despeito dos princípios de classificação existe uma
constelação de práticas rotineiras que contribuem para dar existência real a essa categoria e
que merecem uma observação mais detalhada.

1.3 – O funcionamento interno e a apropriação dos espaços

A maioria das ocupações urbanas localizadas no centro do Rio não se dão de forma
espontânea, sem arranjos pré-definidos, mas, antes de ocupar um prédio, os futuros
ocupantes passam por toda uma etapa de preparo e discussões que requer reuniões,
definição das famílias que residirão na ocupação, considerando o perfil socioeconômico das
mesmas e nível de participação, além do estabelecimento de diversos critérios que serão
incluídos em um regimento interno.

80
Embora a organização política das ocupações varie, uma preocupação constante é
com as normas que devem compor o estatuto da ocupação e orientar as regras de convívio
assim como as diretrizes para manutenção do prédio. A princípio, todas as ocupações
parecem ter um regimento interno, ou seja, um estatuto normativo elaborado pelo grupo de
moradores e organizadores do processo antes mesmo de efetuarem a ocupação, mas que
pode sofrer modificações.
Mesmo que seja passível de mudança, a Carta de Princípios é um documento que
estabelece as diretrizes gerais para a gestão do prédio. No entanto, por outro lado, há toda
uma constelação de ações que por vezes esbarram nessas normativas e até são motivos de
conflito. Ainda que seja resultado de todo um esforço coletivo, estas normas de convivência
provocam reações as mais diversas, uma vez que as pessoas, embora ali engajadas por um
motivo em comum – a luta pela moradia – trazem consigo diferentes trajetórias que, por
sua vez, acaba orientando para diferentes projetos e configurações familiares.
Analisando-a mais detalhadamente, vale destacar que, embora ela seja assinada pela
“Ocupação Manuel Congo”, “Coordenação Nacional” e “Coordenação Estadual”, ela é
escrita pelo Movimento Nacional de Luta pela Moradia, primeira entidade que aparece no
cabeçalho do documento. Em seguida são elencadas as razões que levaram as pessoas a se
organizarem para tal empreitada, aparecendo categorias políticas com forte conotação
moral, tais como: “necessidade”, “direito”, “luta”, “amor”, “força”, “união”, “ajuda”,
“dignidade”, “justiça” e “igualdade”. Para finalizar estes argumentos, o documento,
seguindo uma lógica norteadora comum em movimentos sociais organizados, enfatiza
ideias bastante genéricas e sem muita ressonância com o dia a dia das pessoas: “o lucro, o
individualismo, a competição, a ganância e a exploração são nossos inimigos e
responsáveis pela miséria e destruição da vida”.
Seguindo a perspectiva destes princípios norteadores, aparecem os objetivos
propriamente da ocupação, sintetizados em doze itens. Estas bandeiras, fomentadas pela
lógica do MNLM, englobam desde a luta por uma moradia digna até o combate a “vícios
do capitalismo e da opressão tais como preconceito, machismo, individualismo,
propriedade privada, violência, vingança, submissão a partidos e governos, divisões e
intrigas, sentimento de superioridade, etc.”. Em meio a jargões militantes como “participar
ativamente na luta Anti-Capitalista”; “lutar em defesa da mãe terra”, “estreitar os laços com

81
nossos irm@s campones@s”; “derrotar a visão e a prática da mercadoria” aparecem alguns
itens cujos efeitos são mais pragmáticos e cotidianos como “organizar a juventude e as
mulheres”, “transformar os espaços conquistados em exemplos de gestão democrática”,
“construir uma rede de solidariedade com entidades, comunidades, ocupações e pessoas.”
Esta primeira parte, responsável por forjar uma certa identidade para o sujeito
político, morador de um espaço coletivo, tem o compromisso de construir propriamente a
imagem pública do movimento. Bourdieu (1984) discute como essas noções de
representantes de coletividades são construídas tendo em vista o poder que algumas
lideranças adquirem para agir e falar em nome de muitos. Através da pessoa do líder, que é
delegado e reconhecido enquanto tal, o conjunto de indivíduos antes disperso passa a
configurar como um corpo social minimamente controlado. Nesta perspectiva, por meio da
liderança de um movimento social, famílias antes dispersas ganham status de “sujeitos de
direito” a partir da luta organizada por um bem político como a moradia. Vale ressaltar,
entretanto, que o líder não é nada que não o grupo, sua vontade é simplesmente a vontade
coletiva. Como reconheceu certa vez um dos coordenadores do movimento, “a Carta de
Princípios é uma autoridade, mas é uma autoridade construída, construída em cima de regra
coletiva.”
Este efeito de oráculo, de que fala Bourdieu, seria justamente a possibilidade de falar
em nome do grupo e envolveria uma aparente abnegação em prol da função desempenhada.
Este “interesse desinteressado” passa pela maneira como o líder deve generalizar seu
interesse próprio a fim de fazê-lo passar como interesse coletivo. Para tanto, um conjunto
de técnicas de oratória, de construção textual e de aparência são empregadas. Vale ressaltar
que o sucesso do líder está associado ao seu conhecimento das condições do jogo, ele
precisa saber como dirigir as assembleias e como evitar o confronto com seus liderados ao
demonstrar devoção e sacrifício em nome da causa coletiva.
Levando em conta o estado do jogo político, a Carta de Princípios funciona como
uma técnica de expressão e de ação, a manifestação pública materializada em um
documento, constituindo-se por isso em um “ato de instituição”, por representar uma forma
de oficialização e de legitimação de determinados sujeitos. Isso não significa, obviamente,
que os moradores não possam jogar com aquilo que já está instituído, já explicitado, mas
esta negociação deve ser controlada para que um programa mínimo de pensamento e de

82
ação não comprometa a continuidade da coletividade.
A Carta de Princípios, assim como as reuniões, assembleias e as coordenações
internas à ocupação, principalmente da Limpeza e da Portaria servem para a construção de
um ambiente relativamente estável, para evitar o entra e sai, para manter os espaços de uso
comum limpos e seguros. Trata-se de um trabalho contínuo não só para reprimir e tornar os
moradores obedientes, mas para construir outros valores, para que estejam imbuídos das
regras e comportamentos necessários para a construção da moradia como bem político.
Como me alertou um coordenador municipal do movimento “as famílias têm o
compromisso de tornar a ocupação um exemplo de iniciativa a ser multiplicado. Sabem que
esta é uma oportunidade de estar construindo uma política de ocupação de imóveis ociosos
nos centros urbanos.”
Assim, reconhecer-se como sujeito político implica uma espécie de iniciação, uma
aprendizagem necessária para adquirir o corpus de saberes, comportamentos, posturas e
linguagens que são, antes de tudo produzidas e acumuladas pelo trabalho dos
representantes, mas que devem ser inculcadas nas pessoas. Estes ritos de passagem, ou a
maneira como os ocupantes incorporam a lógica coletiva, e as tensões que daí decorrem
serão explorados nos próximos capítulos.
Este processo de produção de atores coletivos também continua quando são
elencados dezoito artigos que estabelecem os códigos de conduta, os critérios de prioridade
quando finalizado o processo de aquisição definitiva do prédio, as comissões de
representação, assim como os espaços de deliberação coletiva. Para finalizar, são expressas,
em letras maiúsculas e com múltiplos pontos de exclamação, algumas palavras de ordem do
tipo: “NINGUÉM DEU, NINGUÉM DÁ, É NA LUTA QUE EU CONQUISTO O
DIREITO DE MORAR!!!”; “A RAPOSA TEM TOCA E A AVE TEM NINHO, PRA TER
MINHA CASA A LUTA É O CAMINHO!!!!!!!”
No Artigo 1º são definidas as punições para a ausência do representante do núcleo
familiar em duas Assembleias seguidas ou de três alternadas no período de seis meses.
Neste caso, ocorreria a exclusão do cadastro ou o consequente desalojamento para famílias
já ocupantes. No entanto, durante o período do trabalho de campo, mesmo que as pessoas
não tenham conseguido atender a estes requisitos, estas sanções nunca foram registradas.

83
No seu sexto artigo, o documento decreta que “O Direito Coletivo à convivência e
desenvolvimento saudável da nova comunidade se sobrepõem aos desvios, interesses e
caprichos individuais”. Neste sentido, ficam proibidas algumas ações que possam colocar
em risco a convivência mútua, tais como: uso e comercialização de drogas ilícitas,
comercialização de bebida alcoólica e a participação de ocupantes visivelmente
embriagados nos espaços de decisão ou o uso de qualquer tipo de violência física.
Um olhar mais atento sobre este artigo nos permite observar o trânsito entre práticas
coletivas, que atuam no sentido de regulamentar os comportamentos dos ocupantes, e as
dinâmicas familiares que podem acabar reconfigurando as regras. Este ponto merece um
destaque para pensarmos a maneira como vem sendo tratada as situações que envolvem
dependência química no interior da ocupação. Nas primeiras discussões da Carta, foi
acertado que não seriam aceitos, nas reuniões do coletivo, dependentes químicos. Embora
não houvesse necessidade de fiscalização durante as reuniões, caso a coordenação
descobrisse, a pessoa seria expulsa. Com a continuação das discussões, ficou decidido que
só ocorreria a exclusão da pessoa caso ela fosse vista fazendo uso dentro das dependências
da ocupação. Por fim, chegou-se à conclusão, talvez pelas próprias experiências e
dificuldades de algumas famílias em lidar com estes assuntos, de que o dependente químico
teria a opção de escolher ir embora ou aceitar ser encaminhado para tratamento.
Esta adaptação e modificação das regras, conforme o amadurecimento da discussão,
nos permite vislumbrar que não se trata de uma norma coletiva, correta, brusca e
insuperável, que se impõe hierarquicamente sobre arranjos domésticos falhos e
corrompidos, mas de universos que se misturam e se metamorfoseiam. Todavia, de outro
lado, podemos verificar situações que escapam às prerrogativas coletivas, causando tensões
e desconfortos no convívio.
Desta maneira, algumas sanções são vistas como cruciais para manter vivo o ideal
da comunidade unida e participativa como as penalidades por faltas não justificadas nas
reuniões coletivas ou assembleias, a proibição ao uso e comercialização de bebidas
alcoólicas nas dependências coletivas bem como à participação de algum morador
embriagado ou que faça uso da violência e à aproximação do movimento a qualquer partido
ou governo. O registro destes pontos aparece justamente para decretar que o “Direito

84
Coletivo à convivência e desenvolvimento saudável da nova comunidade” deve se sobrepor
a qualquer “desvio, interesses e caprichos individuais.”
Mesmo reconhecendo que o ideal coletivo não se constitui de maneira antagônica
aos projetos familiares, a tentativa de evitar que “interesses individuais” interfiram no
andamento da ocupação é um imperativo que está decretado no documento e que tem
reflexo na vida cotidiana dos moradores, o que merecerá uma análise mais cuidadosa no
próximo capítulo. Por ora, vale destacar a necessidade de controle das condutas dos
ocupantes, reprimindo os desvios segundo punições predeterminadas, no intuito de
assegurar um ambiente profícuo para a coletivização assim como para a reprodução
ideológica do movimento.
Além de um efeito normatizador, a Carta também tem a função de especificar o
organograma político da ocupação e as responsabilidades referentes à segurança, limpeza,
alimentação e manutenção dos espaços de uso comum. Assim como o estatuto, a própria
Ocupação, no seu aspecto espacial e logístico vem sofrendo mudanças constantes. Por isso,
vale recuperar algumas transformações nestes quatro anos de existência.
Em 2007, ano de fundação da ocupação, a Carta e Princípios instituiu alguns
representantes da coordenação nacional, estadual e municipal do MNLM, além do Comitê
Democrático de Gestão (CODEGE) composto por cinco membros, eleitos em Assembleia.
Foram criados ainda a Comissão de Provimento, a Comissão de Infraestrutura, a Brigada de
Apoio, o Coletivo da Juventude e o Coletivo de Mulheres. Nesta época, competia ao
CODEGE, com apoio da Brigada de Apoio, coordenar a ocupação de acordo com as
diretrizes da Carta, as deliberações da Assembleia e os princípios do MNLM.
Na Manuel Congo, os espaços soberanos de deliberação coletiva seguem uma
organização que pode ser visualizada no seguinte organograma político:

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Quadro 1 - Organização política do MNLM

 
ENCONTROS NACIONAIS
 
COORDENAÇÃO NACIONAL

ENCONTROS ESTADUAIS

COORDENAÇÃO ESTADUAL

ENCONTROS MUNICIPAIS

COORDENAÇÃO MUNICIPAL

ASSEMBLEIA DA OCUPAÇÃO

COMITÊ DE GESTÃO LOCAL

Na época em que comecei o trabalho de campo (2008), o Comitê estava passando


por um processo de constituição, ainda era um “embrião”, como lembrou a coordenadora
nacional do movimento. Os papeis se confundiam e quem participava do Comitê eram
quase as mesmas pessoas da Coordenação Municipal. As tarefas de fato eram executadas
pelos integrantes das comissões ou coordenações internas. Conforme me explicou uma
moradora “Aqui praticamente quem é da coordenação [interna à ocupação] e quem é da
coordenação municipal termina ficando misturado, fazendo tudo junto. As reuniões é tudo a
mesma coisa, os problemas é tudo misturado. Coordenação municipal é como se fossem os
coordenadores aqui da ocupação.”
Em sua origem, a Carta estabelecia a criação de dois coletivos, de Juventude e
Cultura e de Mulheres, e de duas comissões, de Provimento e de Infraestrutura. No entanto,
na prática algumas tinham sido desfeitas, umas renomeadas e outras criadas. A

86
institucionalização de dois coletivos – Juventude e Mulheres – parecia seguir orientação
nacional do próprio movimento. Na ocasião de realização do Encontro Municipal do
MNLM, do qual participei, pude perceber como havia a necessidade de enfocar alguns
eixos de estratégia política para o Movimento, como é o caso da parcela jovem e feminina.
Quando iniciei a pesquisa, a divisão política era um pouco diferente do que fora
estabelecido anteriormente na Carta de Princípios. Conforme prescrito, as três
coordenações do movimento – nacional, estadual e municipal – existiam e funcionavam
ativamente. As duas primeiras eram compostas por dois representantes cada uma, enquanto
a terceira dispunha de quatro pessoas. O Comitê de Gestão, embora pouco atuante, contava
com a colaboração de seis moradores. Em seguida, num plano político mais prático vinham
as cinco coordenações da própria ocupação: Portaria, Cozinha, Limpeza, Juventude e
Infraestrutura.
Atualmente, as coordenações do MNLM ainda permanecem, mas seus
representantes mudam com frequência. Quanto às coordenações internas à ocupação,
restaram apenas a da portaria, limpeza e infraestrutura. Além da diluição do Comitê de
gestão, a cozinha comunitária terminou no início de 2009 devido às obras realizadas no
encanamento de gordura do prédio, permitindo que os moradores cozinhassem em seus
respectivos apartamentos.
Enquanto existiu, a cozinha coletiva, coordenada pela “Comissão de Provimento e
Segurança Alimentar” que, na prática, chamava-se “Coordenação da Cozinha” funcionava
com escalas de intervalo de 8h e às vezes até mais. Como me explicou uma das moradoras,
havia cozinheiras “que não fechavam a cozinha”. Normalmente, a primeira leva de
cozinheiras começava a trabalhar às 9h indo até 14h, horário de término do período de
almoço. Em seguida, havia uma pausa e a segunda leva entrava às 17h para iniciar os
preparativos para o jantar. No entanto, algumas cozinheiras, devido ao grande acúmulo de
tarefas e por necessidade de adiantar a janta, não faziam intervalo, chegando a prestar quase
12 horas de trabalho voluntário.
O término da cozinha comunitária não pôs fim apenas ao salão que era utilizado
como espaço de produção das refeições diárias (que se transformou em apartamento), mas
suspendeu também um local que agregava as pessoas e funcionava como ponto de encontro
para os moradores colocarem a conversa em dia e se atualizarem sobre as situações da

87
ocupação. Algumas pessoas se recordam com certa nostalgia do local e associam uma
gradual menor solidariedade entre as pessoas à falta de um espaço coletivo e agregador,
papel que outrora era desempenhado pela cozinha.

“Na época da cozinha que era bom, não por causa da comida, mas porque
a gente conversava mais, o pessoal era mais unido. Hoje em dia você não
vê o pessoal pelo corredor, tá todo mundo no seu cantinho, dispersou.”
(Fabiana)

“No tempo da cozinha era melhor ainda, sempre a gente tava muito
colado, muito junto. Depois que cada um pegou os seus fogão e levou pras
suas casas, aí você agora quase não vê as pessoas, quando vê é muito mal,
quase não se fala. Se tem alguma coisa no prédio, convida, as pessoas não
descem.” (Teresa)

No entanto, o período de existência da cozinha coletiva não desperta apenas boas


memórias, mas também é alvo de críticas, pois além de dificultar que cada um pudesse
cozinhar sua própria comida, suscitava muitas brigas, pelo fato de nem sempre alguma
família conseguir contribuir com a quantia necessária para a compra dos alimentos. O café
da manhã era de responsabilidade de cada família e tendo em vista o comprometimento da
estrutura do encanamento de gordura do prédio, não era possível cozinhar nos respectivos
apartamentos, apenas usar o forno ou “passar” um café.
Assim, os coordenadores da cozinha, além de providenciarem almoço e jantar
diariamente, se revezam na compra dos mantimentos. Para tanto, cada indivíduo30, acima
de dois anos de idade, era obrigado a contribuir com 30 reais mensais, recebendo, em troca,
uma folha, pessoal e intransferível, em que era feito o controle das duas refeições diárias a
que tinha direito. No entanto, como a maioria dos ocupantes não trabalhava de forma fixa
ou de carteira assinada, muitos tinham dificuldade em pagar, mas mesmo assim, as crianças
não ficavam sem comer, pois como alertou uma ocupante, é uma questão de “direito”.
Segundo rumores, não eram raras as vezes em que alguém perdia a folha, emprestava para
outro morador, ou não a apresentava para o devido controle.
A fim de melhorar a vigilância, cada coordenador ficava responsável, durante um
mês, por controlar o pagamento através de um caderno, no qual anotava quem tinha
                                                                                                               
30
Talvez aqui seja um dos únicos momentos em que a categoria “indivíduo” apareça como princípio de
gestão.

88
contribuído e quem tinha deixado de pagar a taxa mensal. No entanto, conforme uma
coordenadora da cozinha me alertou, esta tarefa causava muitos problemas, tanto pelo
constrangimento em ter que ficar cobrando, quanto pela falta de dinheiro de muitos
moradores.
“A gente fica com o caderno, cada morador vem pagar e paga na nossa
mão, paga e assina. Só que enquanto está entrando dinheiro, tem coisa
para comer. Quando o dinheiro não entra, é um problema. (...) Cada mês é
um coordenador diferente, cada mês é a responsabilidade de assumir
aquele caderno, porque é triste... O certo é cobrar, mas a maioria das
pessoas termina não cobrando. Tem muito coordenador que não consegue
agir como coordenador, termina amigo mesmo, vizinho, não quer ficar
mal com fulano... Eu não, eu vou cobrar, vou cobrar porque é a
manutenção.” (Bárbara)

Para Bárbara, ficar com o caderno era um “sofrimento”. Por mais que entendesse
que muitas famílias não conseguiam pagar devido à situação de desemprego ou de
informalidade no trabalho, o fato de não se esforçarem para contribuir, procurando um
“biquinho” ou se engajando em algum projeto de geração de renda31, causava-lhe certa
indignação.
“... porque antes pagavam aluguel e aqui não paga aluguel. Então, como é
que não consegue arrumar, pelo menos 30 reais para passar o mês? Pelo
menos para comer a comida, o arroz e feijão de todo o santo dia, né.
Então, às vezes eu acho que é desleixo mesmo da pessoa.” (Bárbara)

A existência da cozinha despertava um duplo sentimento que, de certa maneira,


refletia a tensão entre o engajamento em uma atividade coletiva e as opções pessoais. Por
um lado, contribuía para fomentar o senso de coletividade, mas, por outro lado, causava
conflitos e impasses, principalmente em relação às diferentes maneiras de cozinhar, ao
horário das refeições, à preferência por determinados sabores e temperos e à quantidade de
comida. Quando indaguei a mesma coordenadora o que era preciso para ela “se sentir em
casa”, ela logo respondeu “depois que tiver a cozinha, tiver banheiro dentro de casa, então
eu acho que vai ficar mais aconchegante, aí sim vai se tornar um lar de verdade, eu acho
que está faltando isso mesmo.”
                                                                                                               
31
Estes projetos de geração de trabalho e renda são executados de maneira esporádica como o fornecimento
de quentinhas para refeições ou a elaboração de almoços e jantares para eventos, aniversários ou encontros e
congressos de entidades, parceiros e movimentos sociais. Além disso, existem os projetos futuros, mediante
conclusão da reforma do prédio, como o Bar e Restaurante Casa de Samba Mariana Crioula, o Espaço de
comunicação interativa, o Espaço de Arte e Beleza, o Ateliê de artesãos e a Sala Multifuncional.

89
“Precisa da obra aqui em volta para ter a nossa cozinha, fazer a comida
que a gente quer fazer, porque a cozinha coletiva é chata, é ruim, porque a
gente vai cedo, a comida é resto dos outros dias ou a gente vai tarde, a
comida já está no fim. A gente tem que ficar na fila para poder pegar
aquela comidinha certa e muitas das vezes vem aquele pedacinho de
frango. Eu compro sempre frango e faço no micro-ondas, aí não suja
parede, não suja nada. O fogão também, quem quiser fazer alguma coisa,
no forno também pode fazer. Só não querem que cozinhem, para não ficar
sujando as paredes com gordura, não ficar aquela coisa feia. Até porque se
liberar para cozinhar, todo mundo vai cozinhar, os corredores vão ficar
todos sujos, vai virar um favelão.” (Bárbara)

Nesta tensa relação entre território doméstico e território político, outra moradora,
além de enfatizar a necessidade de uma cozinha dentro do apartamento, apresenta outro
ponto fundamental para ela de fato se apropriar do espaço, que é ter a “chave da sua casa”.
Na ocupação nenhum apartamento possui tranca na porta, a maioria fica aberta, mas alguns
moradores costumam prender um pedaço de fio ou de corda amarrado em dois pregos, que
serve, em certo sentido, para preservar um pouco da “intimidade” do lar. Segundo me
explicou uma das moradoras, a coordenação do movimento deliberou para que nenhuma
casa tivesse chave, pois em caso de incêndio ou “se uma pessoa passar mal dentro de casa
e tá fechado, como seu vizinho vai te socorrer?”
Situações como estas contribuem ainda mais para mostrar o quão fluidas são as
fronteira entre a casa e a moradia. Ainda que não esteja formalmente instituída na Carta de
Princípios, outra regra recorrente no discurso dos coordenadores diz respeito à
impossibilidade de aluguel ou venda do apartamento antes ou após o processo de aquisição
definitiva. Sanções como estas não são exclusividade da Manuel Congo, mas parece fazer
parte do rol das ocupações, justamente por tratar-se de uma habitação com interesse social.
Conforme sinaliza Moreira (2011), nas ocupações, a relação entre os moradores e suas
casas não é de propriedade, mas sim, de posse. “O morador não pode vender ou alugar a
sua unidade de moradia, pois ela pertence ao Coletivo de moradores. Deste modo, os
espaços privados não são completamente imunes às intervenções do Coletivo”, ainda que
direta ou indiretamente tais intervenções possam acabar ocorrendo (Moreira, 2011: 68).
Se a impossibilidade de venda ou aluguel da residência parece ser uma realidade
comum ao universo das ocupações urbanas, o mesmo já não o é se comparado ao contexto
das favelas. Em estudo desenvolvido na década de 1970, no conjunto habitacional Cidade
de Deus, Valadares (1978) analisa uma realidade complexa que envolve, por um lado, o
90
processo de erradicação de favelas fomentado por várias instituições governamentais e, por
outro, a resposta que diversos moradores ofereciam à ameaça da remoção. Ao discutir este
fenômeno a partir de uma perspectiva dual que implica em perceber tanto os mecanismos
formais de participação ativa do quadro burocrático, quanto os informais que envolvem as
estratégias dos moradores e mutuários para enfrentar estas situações, acabamos por nos
aproximar da proposta de Valadares, embora nossas pesquisas remetam a universos
empíricos diferenciados tanto no tempo quanto no espaço.
Ademais, um ponto merece destaque: quais os custos sociais e morais que políticas
de remoção (e de ocupação) provocam na realidade de seus moradores? Como as
intervenções institucionais buscam enquadrar, delimitar e suprimir os trabalhadores e como
estes reagem de maneira criativa e diversificada aproveitando-se das brechas destas
operações? Se no contexto analisado pela autora os residentes da favela, através de
“práticas informais de distorção”, conseguiam driblar os programas habitacionais,
especulando a venda ou o aluguel de barracos, na ocupação, os moradores recriam o espaço
e a própria política habitacional, ao trazer para a cena pública o universo da gestão moral da
casa.
Embora estudando “instituições mortas”, como a CHISAM32 – Coordenação de
Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana do Grande Rio (1968-1973), a autora
“nem por isso deixa de tratar de um processo que continua vivo e em pleno curso, sofrendo
transformações.” (Valadares, 1978: 18). Passados mais de 40 anos, parece que a vitalidade
de tais políticas de remoção continua a pleno vapor. Paralelamente, a articulação das
populações ameaçadas por este tipo de intervenção parece multiplicar-se com a mesma
magnitude, embora com interesses antagônicos. Não cabe aqui explorar a diversidade de
movimentos sociais que se mobilizam há anos resistindo a estes paradigmas higienistas de
urbanização. Por ora, interessa apresentar as estratégias de um movimento específico que,
mesmo na sua singularidade, simboliza aspectos de interesses de luta mais amplos. Por
isso, voltemos à articulação interna da Manuel Congo.
Atendendo a orientações nacionais, foi constituído o Coletivo de Juventude e
Cultura que, na época em que iniciei a pesquisa contava com três coordenadores. Neste
                                                                                                               
32
“Em 1968, o Governo Federal criou a CHISAM, órgão do Ministério do Interior ligado diretamente ao
Banco Nacional de Habitação (BNH) e destinado a ditar uma política de extermínio das favelas do Rio de
Janeiro” (Valadares, 1978: 29).

91
período tive oportunidade de conhecer e conversar longamente com duas de suas
coordenadoras. Mais tarde, conheceria o terceiro, já destituído do posto por conta do
término do Coletivo. Apesar da Carta de Princípios apontar para a necessidade de
“organizar a juventude em um projeto de alegria, luta, esperança, priorizando a formação e
a cultura”, a operação não foi muito adiante, apesar dos esforços de seus coordenadores e
dos interesses políticos depositados na ala jovem da ocupação. “A gente tem que colocar
esses jovens para o ato!”, proclama a coordenadora nacional.
Segundo os relatos de uma das representantes do Coletivo, um fator que contribui
para a falta de interesse e mobilização dos jovens é o estigma que muitos sofrem por morar
em um prédio ocupado. “O adolescente tem vergonha de dizer que mora numa ocupação”,
lamentou. No sentido de superar todos estes obstáculos, várias atividades são estimuladas
com o intuito de valorizar e articular as crianças e jovens da ocupação, como as iniciativas
fomentadas pelo Espaço Criarte Mariana Crioula, como veremos adiante. Além dos
processos de rotulação a que estão submetidos e da falta de perspectiva correlacionada,
outro fator desmobilizador resultou do fato de que dois coordenadores arrumaram emprego
e tiveram que se abster de suas responsabilidades, o que acabou sobrecarregando a única
representante restante.
“Porque às vezes a gente fala, mas tem muita gente que debocha, não
entende porque a gente quer um mundo melhor, acha que é difícil, acha
que não tem como mudar, não tem mais como voltar atrás, é daqui para
pior. Tem gente que fala isso. Adolescente então... aqui, ó, no coletivo de
juventude. Só que aqui quando é para fazer uma manifestação, até mesmo
contra o racismo, existe pessoas que fica rindo, fica se escondendo. Aí não
dá para entender. Às vezes a gente consegue, tem uma quadrilha aqui, foi
eu que comecei a botar pra frente, até quando a gente ensaiou eu ficava
pelas escadas atrás dos meninos, ‘vamos, gente, vamos!’ Tem outras
pessoas que admira minha capacidade de ficar correndo atrás deles para
fazer as coisas. Aí tem outras pessoas que fica, ‘ah, porque você tem
muito tempo.’ Então, é difícil, você tem que saber lidar com essas
situações, senão der, a gente termina desistindo mesmo (...) porque eu
sozinha, eu não vou dar conta.” (Bárbara)

No mesmo tom queixoso, a outra coordenadora também lamenta a falta de interesse


dos jovens em aderir à luta do movimento desde o início da ocupação, o que, para ela, pode
estar relacionada a uma dificuldade em abandonar seu local de origem assim como a
preferência pela diversão em detrimento da militância.

92
“O primeiro lugar que a gente entrou foi no Vitória, ficamos oito dias.
Então, nesses oito dias, muitos jovens, em vez de apoiar ... porque era
uma coisa nossa, preferia viver num lugar onde tem violência, tem tráfico.
Então, preferia morar lá do que morar num lugar aqui no centro da cidade,
onde a maioria das pessoas trabalha. Então, eu fui ficando meio
desgostosa, eu comecei a ver que a única jovem que estava ali interessada
era só eu. Porque a maioria dos jovens daqui é um pouco distante, querem
saber de festa, não querem saber do que está se passando aqui.” (Ritinha)

Por conta dessas adversidades, a coordenação da juventude foi se esvaziando, mas,


conforme sinalizou uma das coordenadoras, “qualquer ato que tem, nós convocamos a
juventude para ir, para que o jovem possa estar por dentro das coisas. Então, qualquer ato, a
gente convoca a juventude. Não só a juventude, mas principalmente ela, a ocupação em
geral é convocada.” Como veremos no terceiro capítulo existe uma expectativa em torno de
determinados atores, considerados peças-chave para a continuidade da ocupação. Não só a
juventude, mas crianças e mulheres, em virtude de sua posição “vulnerável”33, aparecem
como detentores de um potencial de transformação e também como alvo de políticas de
intervenção, responsáveis por reverter este quadro e ativar esta potência latente. Alguns
autores (Castro, 2005; Castro, 2009; Sposito e Carrano, 2003; Vianna, 2002) são
importantes para que possamos refletir sobre a maneira como estas categorias são
constituídas e substancializadas a partir de ações políticas específicas.
As coordenações internas à ocupação desempenham diferentes funções, cada uma
direcionada para atender demandas específicas, sejam elas políticas ou relacionadas à
estrutura administrativa do edifício. Em relação à portaria, trata-se de uma coordenação
com um viés demarcatório claro, ou seja, permitir quem pode e quem não pode entrar no
prédio, garantindo a segurança dos moradores. A da cozinha, além de prover alimento, base
de sustentação das pessoas, serve ainda para construir um espírito coletivo almejado pelo
movimento. A da limpeza e de infraestrutura são coordenações funcionais, ou melhor, sua
principal tarefa é providenciar e zelar pelo aspecto físico e condições de habitabilidade da
ocupação. Para tanto, buscam atender às necessidades de higiene, consertos e manutenção
dos espaços coletivos a fim de que eles sejam usufruídos por todos. Por fim, a da juventude,
                                                                                                               
33
O capítulo 3 discutirá a maneira como certos agentes são pensados, pelos próprios moradores, pelo
movimento e por determinadas políticas públicas a partir de um contexto de vulnerabilidade que os
caracteriza como público-alvo de intervenção. Neste sentido, é necessário o desenvolvimento de
procedimentos disciplinares capazes de enquadrá-los em um projeto que contribuirá para o seu protagonismo
e emancipação.

93
considerada a mais difícil de se organizar (segundo os depoimentos), talvez por não ter uma
finalidade prática e não parecer “útil” no dia-a-dia, mais do que propor atividades ou
“passatempos” aos jovens, deve ser responsável por reproduzir o movimento, afinal de
contas, como disse, em certa ocasião, uma moradora, são eles “o futuro da ocupação”.
Apesar da extinção de duas coordenações (juventude e cozinha), a lógica de
funcionamento das demais continua a mesma: cada coordenação fica responsável por
administrar o setor pelo qual é designada a gerir. No entanto, o tempo de trabalho de cada
morador dedicado ao coletivo foi reduzido. Até o final de 2008, cada morador tinha que
prestar oito horas de trabalho voluntário se revezando na escala da portaria ou da cozinha
comunitária. Com o fim desta última e a entrada de novos moradores, a prestação de horas
de trabalho para o coletivo diminuiu. A limpeza dos corredores e dos banheiros coletivos
ainda é feita por andar, sendo responsabilidade de cada morador se revezar nesta tarefa.
Para a escala da limpeza não é estipulado um mínimo de hora de serviço, mas cada membro
de um determinado apartamento fica responsável pela limpeza em um dia da semana. O
morador precisa limpar os corredores e escadas de acesso ao andar, assim como os
banheiros que são coletivos.
“.. tem a escala da limpeza, que é da escada do terceiro [andar], que é da
cozinha coletiva até a portaria. E a escala dos corredores que é assim,
como é aqui no sétimo andar, eu limpo às terças que é o meu dia, a
menina dali limpou hoje, o outro limpa na quarta-feira, outro na quinta,
minha mãe na sexta, outro no sábado e outro no domingo.” (Ritinha)

Quando cada morador usa o banheiro, ele deve deixar pia, privada e box do
chuveiro limpos. As descargas não funcionam muito bem e os chuveiros não costumam
ficar totalmente vedados. Por isso, existe um balde que fica no chão do box recebendo os
pingos d`água que caem dos chuveiros. Quando cheio, o mesmo é usado para esvaziar e
limpar as latrinas, liberando-as para o próximo usuário.
Em 2008, o rodízio na portaria, ou simplesmente “tirar a portaria”, era feito a cada
8h horas. Com o fim da cozinha comunitária e a entrada de novas famílias, ele pôde ser
reduzido para 3h20, o que pode ser visualizado na tabela abaixo, que fica fixada na parede
ao lado do portão, com os horários e os nomes das pessoas que se revezam. Vale ressaltar
que, embora não seja esperado, os nomes são constantemente substituídos, dada a alteração
na rotina das pessoas, saída ou entrada de algum morador.

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Quadro 2 – Horário de rodízio da portaria
Horário Segunda Terça Quarta Quinta Sexta Sábado Domingo

5h às Armando Lourival Rafael Paulinho Hélio Maria Joaquim


8h20

8h20 às Reginaldo Rita Giovana Noêmia Felipe Elizabeth Renata


11h40

11h40 Bárbara Valdeci Josefa Josinaldo Ana Luísa Messias Angélica


às 15h

15h às Fabiana Marina Jorge Demétrio Betina Natividade Carla


18h20

18h20 Alfredo Bruna Adriano Olga Roberto Francisco Leandro


às
21h40

21h40 Josias Cláudia Wagner Sofia Félix Olívia Leonardo


às 1h

Certo dia, conversando com uma moradora, ela me explicou que os “porteiros”,
enquanto estão “tirando a portaria”, ficam com duas chaves para abrir os dois cadeados
cujas cópias ficam de posse da coordenação em caso de emergência. Entre 1h e 5h da
manhã ninguém está autorizado para entrar ou sair da ocupação, salvo casos de emergência
médica ou hospitalar ou quando ocorre atraso no retorno do trabalho. Nestas situações, os
coordenadores da portaria devem ser avisadas por telefone para providenciar a abertura do
portão.
Além de um exercício constante de abre e fecha do portão, cada “porteiro” deve
relatar, em um caderno, o seu horário de chegada e de saída, destacando os acontecimentos
que se mostrarem estranhos à normalidade, como por exemplo, a entrada de alguém que
não esteja na listagem dos possíveis visitantes. Esta “Relação dos visitantes das Famílias da
Ocupação Manuel Congo” possui os nomes dos amigos e familiares que podem,
eventualmente, realizar visita a algum morador e estão autorizados a entrar. No caso de
chegar alguma pessoa que não tenha o seu nome na lista ou que é desconhecido, é preciso

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que o próprio “porteiro” se encarregue de conferir sua identidade, autorizando ou não sua
entrada no prédio. Este tipo de controle é feito principalmente para evitar que estranhos
entrem na ocupação, uma vez que os apartamentos não possuem tranca nas portas.
Na portaria também costumam ser afixados cartazes, anunciando mudanças,
convocando para eventos ou mesmo alertando para eventuais perigos. Um dia avistei um
cartaz, colado na parte interna do portão de acesso, alertando sobre a necessidade de
reforçar a segurança do prédio, de modo a evitar que “estranhos” (não moradores ou não
parentes de moradores) entrassem. Conforme me explicou a porteira de plantão, este aviso
fora colocado em função de uma manifestação que ocorreu na Praça da Cinelândia com
moradores que foram despejados de outra ocupação e desejavam entrar na Manuel Congo,
alegando que também tinham direito como os que ali estavam.
Esta ocupação sofreu, em agosto de 2010, uma operação de desocupação e
reintegração de posse pela subprefeitura do Centro do Rio. Esta isolou o prédio, obstruindo
a passagem com a construção de um muro de tijolo e cimento na porta e pendurou uma
faixa com os dizeres “Subprefeitura reestabelecendo a ordem”. Os moradores despejados já
haviam entregue uma carta à coordenação do MNLM anunciando uma entrada “forçada” na
ocupação Manuel Congo. Por conta destes episódios, os moradores da Manuel Congo
foram alertados que não poderiam mais receber visitar de pessoas cujos nomes não
constassem na listagem e que os porteiros deveriam redobrar a segurança.
Além de funcionar como um perímetro da fronteira entre o mundo externo e o
espaço da ocupação, a portaria também cumpre a função de espaço de convivência. Parece
que na ausência da cozinha comunitária, a portaria cumpre este papel aglutinador,
possibilitando trocas de informações, comunicado dos novos eventos e compartilhamento
de diversos tipos. Diversas vezes, ao chegar na ocupação, não conseguia sair da entrada,
pois quando encontrava pessoas que já conhecia, tinha que gastar algumas horas de
conversa. Além de me atualizar sobre as novidades, as pessoas também se distraíam com o
bate-papo nem percebendo a hora passar.
Outra mudança foi em relação à circulação dos mais jovens. Os menores de 18 anos
não podiam sair depois das 20h desacompanhados. “Quem é de menor não passa na
portaria sozinho”, me esclarecia certa vez uma moradora. No entanto, depois de muitas

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reclamações e reivindicações, os jovens a partir de 13 anos foram liberados para circular
sozinhos para fora da ocupação.
Todas as mudanças que ocorrem nas coordenações internas são discutidas e
redefinidas na Assembleia que acontece quinzenalmente, as sextas-feiras. As outras sextas-
feiras do mês ficam reservadas para reuniões das coordenações do Movimento. Durante a
Assembleia, que acontece às 22h, horário em que muitos já estão liberados dos seus
trabalhos, são discutidos desde assuntos de organização interna e cumprimento das tarefas,
até questões de ajuda mútua, no sentido de articular uma rede de solidariedade a fim de
viabilizar qualquer tipo de carência. Conforme salientou uma das moradoras:
“Na Assembleia nós tratamos de tudo, seja um caso de uma família que
está sem pagar, então a coordenação chega e tenta solucionar, se alguém
que estava precisando de alguma pessoa para fazer faxina, se tem outra
que está precisando fazer um bico de copeira. Então, nós começamos a
puxar, se tem alguma coisa para aquela pessoa fazer para não ficar com
fome.” (Ritinha)

Segundo outra moradora “tudo tem que passar na assembleia, as pessoas têm que
saber tudo que está acontecendo”. No entanto, apesar da Assembleia representar o espaço
por excelência do diálogo e das discussões feitas em comum acordo, algumas decisões são
tomadas sem necessariamente passarem pelo conhecimento de todos. Como veremos
adiante, este fato pode acabar acirrando as relações entre os assuntos coletivos e as questões
particulares.
Em sua pesquisa desenvolvida na ocupação Quilombo das Guerreias, Moreira
(2011), a fim de compreender melhor a dinâmica política dos espaços coletivos e seu papel
na viabilização da ‘autogestão’ da ocupação, desenvolveu uma tipologia dos espaços,
agrupando-os em cinco categorias: espaços formais deliberativos, espaços formais não-
deliberativos, espaços informais de uso comum, espaços de produção e geração de renda e
áreas de segurança. Os espaços formais deliberativos seriam destinados às assembleias
gerais semanais da ocupação, à semelhança da Manuel Congo. Trata-se, portanto, de um
espaço em que:
“... conflitos são solucionados e debatidos e onde as regras que regem a
ocupação são discutidas e decididas. Trata-se de um espaço caracterizado
pela possibilidade constante de autoinstituição do ‘nómos’. Ou seja,
diferentemente da heteronomia, mesmo em sua manifestação como
‘democracia’ representativa (na qual as leis devem ser obedecidas e não
discutidas, pois a discussão das leis não é incumbência dos cidadãos

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‘comuns’), na ocupação estudada as normas que compõem o estatuto da
ocupação podem ser discutidas e questionadas nas assembleias por
qualquer morador e a qualquer momento” (Moreira, 2011: 60).

A Assembleia, espaço de deliberação máxima, não serve apenas para resolver


questões pertinentes à organização político-espacial da ocupação, mas abre caminho para a
publicização da intimidade do território doméstico o que possibilita a intervenção do
movimento em assuntos familiares e vice-versa.
Além de mudanças na estrutura político-organizacional, a ocupação vem passando
por transformações em relação ao seu aspecto físico. Originariamente, trata-se de um
edifício comercial com 10 pavimentos, construído na década de 1940 com registro no
Cartório do 7º Ofício de Registro de imóveis, sob o número de matrícula 34805, ficha
18785. No pavimento térreo (Anexo II), além do portão de entrada e de um cumprido
corredor com um recuo onde se situam os dois elevadores desativados, existe uma loja na
Rua Alcindo Guanabara, ocupada pelo Restaurante Cazuella que, no período de sua
instalação, apropriou-se de uma área térrea do prisma de iluminação e ventilação do prédio,
onde construiu sua cozinha. Ainda neste andar, com entrada pela Rua Evaristo da Veiga, há
um grande salão, conhecido como “Casa de Samba Mariana Crioula”, espaço reservado
para eventos, comemorações e futura sede do Bar e restaurante. O segundo andar (Anexo
III) conta com dois salões, um é utilizado para abrigar a Biblioteca e a Sala de reuniões e
assembleias e o outro comporta um ateliê de corte e costura desativado que dá acesso ao
Espaço Criarte Mariana Crioula, conhecido como “escolinha”.
A “escolinha” realiza algumas atividades com as crianças da ocupação com a
participação de estudantes colaboradores. Em meados de 2010, quando a conheci pela
primeira vez, ela contava com o apoio de duas estudantes de pedagogia da Universidade
Federal Fluminense (UFF) e duas estudantes de geografia da Universidade Estadual do Rio
de Janeiro (UERJ). Na ocasião, o ambiente funcionava dois dias na semana em horário
noturno e aos sábados pela manhã. Eram realizadas atividades de leitura, passeios à praia,
ao cinema e a outros estabelecimentos culturais, além de visitas a locais turísticos do Rio,
contribuindo para uma melhora no capital cultural e maior socialização entre as crianças.
Atualmente o perfil das atividades continua o mesmo, mas mudaram os professores, saindo

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Foto 7: Casa de Samba Mariana Crioula Foto 8: Restaurante Cazuella, ao lado da entrada
principal da ocupação

Foto 9: Espaço Criarte Mariana Crioula, “Escolinha”, na antiga sala.

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os dois estudantes de Pedagogia e entrando mais dois de Geografia, e foram reduzidos os
encontros, ficando um durante a semana e outro aos sábados pela manhã.
As crianças são divididas em dois grupos. Com o primeiro, garotos que ainda não
estão alfabetizados, é feito reforço na leitura, além de serem desenvolvidas atividades
lúdicas, enfocando as letras do alfabeto e a formação das palavras. Com o grupo 2, meninos
que já dominam a escrita e a leitura, é oferecida ajuda nos trabalhos de casa, em pesquisas
escolares e proposto exercícios de Português e Matemática. Os professores buscam
fomentar ainda o senso coletivo, incentivando a solidariedade através da arrecadação de
donativos para pessoas carentes. Em um sábado anterior à minha primeira visita, o grupo
tinha ido ao Morro dos Prazeres, levar doação para os moradores sobreviventes de uma
histórica enchente no estado do Rio34.
Na tentativa de atender alguns objetivos da Carta de Princípios como “transformar
os espaços conquistados em exemplos vivos de formação e educação permanente, fomento
cultural, priorizando a infância e adolescência”, a idealizadora da “Escolinha” me explicou
um pouco do trabalho que eles desenvolvem:
“Lá não é um depósito. É uma sala para que a criança tenha consciência
crítica. Mas é preciso que a família chegue junto para ajudar no reforço.
Aqui todo mundo ficava pelas escadas, assistindo à TV ou dormindo. A
gente trabalha com educação alimentar, ou seja, tirar o açúcar, o
refrigerante e o biscoito. Outro dia a merenda foi pepino com tomate.
Danoninho é horrível. Eu tento fazer coisas dentro da nossa realidade.
Compramos girassol e plantamos para entendermos o processo de
crescimento das flores. Também trabalhamos com o tema ‘família’.
Fizemos biscoito e as crianças levaram para as mães.” (Dinorah)

Funcionando desde 2008, no ano seguinte a sala teve que ser substituída por
problemas de infiltração na parede. Na mesma época, o projeto passou a contar com a
colaboração de Carla, a única moradora que resolveu se engajar nas atividades. Segundo
me contou, a escolinha vem exercendo um papel fundamental na formação das crianças,
passando desde um reforço escolar, socialização com outras crianças e atividades de lazer.
Carla comentou que quando o seu sobrinho, Elias, saiu há um ano do Maranhão, ele mal

                                                                                                               
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Em abril de 2010, o estado do Rio de Janeiro sofreu uma forte enchente que deixou vários bairros alagados,
além de vários desabrigados, desaparecidos e mortos fruto do desabamento de várias casas. O Morro dos
Prazeres, localizado em Santa Teresa, foi particularmente atingido pelas fortes chuvas que provocaram o
deslizamento de encostas e destruição de várias moradias.

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escrevia. A coordenadora do projeto tomou a frente e disse que precisava de dois meses
para alfabetizá-lo. Segundo Carla, ela conseguiu.
Com estrutura semelhante ao do terceiro andar (Anexo IV), os sete pavimentos
seguintes possuem, cada um, seis salas comerciais que funcionam como apartamentos das
famílias e um banheiro de uso coletivo, além de uma pequena área comum onde são
colocadas as máquinas de lavar roupa de uso coletivo e uma ou duas pias para lavar louça.
O décimo e último pavimento, arquitetonicamente é similar aos demais, mas há um recuo
na fachada da Rua Alcindo Guanabara formando uma pequena varanda.
Devido ao abandono por mais de dez anos, o edifício, na época da sua ocupação, foi
encontrado mal conservado, com a fachada pichada, a pintura gasta, a rede de escoamento
de esgoto obstruída, bombas e elevadores desativados, rachaduras nas paredes, decorrentes
das infiltrações, fiação aparente e rede elétrica bastante comprometida, além de um grande
acúmulo de lixo.
Desde o primeiro dia da ocupação, o prédio tem sido objeto de negociação para
assentamento definitivo das famílias ocupantes. Assim, vários esforços têm sido feitos no
intuito da concretização e regularização da propriedade do imóvel, perante o Instituto de
Terras e Cartografia do Estado do Rio de Janeiro (ITERJ), com apresentação de projeto de
financiamento para a compra do prédio. Em novembro de 2007, foi aprovada a carta
consulta ao Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS) dentro do programa
“Habitação de interesse social”, uma vez que as famílias lá residentes são pessoas de baixa
renda, na maioria das vezes desempregados ou trabalhadores informais. Esta aprovação
garantiu verba para a aquisição do imóvel, excluída a loja do Restaurante Cazuella,
assistência técnica para requalificação do mesmo e realização parcial das obras de reforma.
Até o fim da pesquisa, em novembro de 2011, a reforma ainda não tinha sido iniciada
devido à dificuldade do Restaurante em liberar a área da qual havia se apropriado.
No seu aspecto jurídico, a venda do imóvel depende de desdobramento das
edificações e do registro, fato de difícil cumprimento face às irregularidades provocadas
pelo locatário com a omissão do locador e da fiscalização municipal. Apesar destas
dificuldades, em uma reunião conjunta entre Secretaria de Estado de Habitação, INSS,
ITERJ e Ministério das Cidades, houve um consenso quanto à definição da área objeto da
venda e o formato jurídico do instrumento de venda do prédio.

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Foto 10: Pia de uso coletivo Foto 11: Banheiro de uso coletivo

Foto 12: Máquina de lavar roupa de uso coletivo

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Conforme visto, a aprovação da Carta Consulta em novembro de 2007 demandou
um “estudo de viabilidade” que demonstrasse como o edifício comportaria as famílias ali
residentes. Juntamente com o Núcleo de Assessoria, planejamento e pesquisa (NAPP),
alguns coordenadores do MNLM, realizaram um “diagnóstico” das famílias e elaboraram
as predefinições de um projeto arquitetônico. Este projeto teve o objetivo de adequar os
anseios dos moradores às reais possibilidades inerentes ao espaço físico, abrindo espaço
para alternativas de geração de trabalho e renda.
Procurei ter acesso a este “diagnóstico”, ou ainda a eventuais materiais (entrevistas,
questionários, levantamentos) que deram origem a ele. No entanto, o máximo que consegui
foi um folder, realizado por uma equipe do NAPP e por alguns coordenadores do MNLM
que especifica os “princípios filosóficos e ideológicos” do movimento, o “histórico e
localização da ocupação”, as “características físicas do imóvel e possibilidades de projeto”,
o “projeto arquitetônico”, a “organização da comunidade”, a “expectativa dos moradores” e
os “aspectos jurídicos” que envolvem a situação do imóvel.
Segundo o projeto, foi definido um programa de necessidades básicas o qual foi
dividido em dois grupos: “espaços de moradia”35 e “espaços de uso coletivo”. Nos dois
primeiros andares serão estabelecidos projetos de geração de trabalho e renda e no restante
do edifício 42 unidades residenciais. Os espaços de moradia abrangem cinco apartamentos
grandes, 17 de médio porte e 20 pequenos. Já os de uso coletivo incluem a “Casa de Samba
Mariana Crioula”, uma sala multifuncional e três espaços para geração de trabalho e renda:
ateliê de artesãos, espaço de arte e beleza e comunicação interativa.
Para a Casa de Samba está prevista uma cozinha industrial além de um pequeno
palco para apresentações culturais e grupos de música. A sala multifuncional servirá, em
horários alternados, tanto para atender cursos e reuniões, além de funcionar como área de
lazer infantil. No período da noite, ocorrerão as reuniões e assembleias e, durante o dia, as
crianças terão um espaço para brincar. O ateliê de artesãos, que já foi posto em prática de
maneira pouco articulada, atenderá um ateliê de costureiras e outras atividades artesanais,
no sentido de prover renda para os funcionários envolvidos. O Espaço de Arte e Beleza

                                                                                                               
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Aqui moradia é pensada de maneira diferente da noção construída para a tese. Segundo o Projeto
Arquitetônico, “espaço de moradia” refere-se às unidades residenciais que serão organizadas como
apartamentos. Já os “espaços de uso coletivo” são reservados para os espaços de lazer, reunião, cursos e para
os projetos de geração de trabalho e renda.

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reunirá atividades de manicure, barbeiro e limpeza facial, contando com um banheiro
próprio, recepção e salinha reservada. Já o Espaço de comunicação interativa será
constituído de livraria, lan house, pequena cafeteria, banheiro e balcão com caixa. Segundo
o projeto “a intenção é que possa eventualmente ser pensado numa interface com o
restaurante ou com o espaço de estética já que tais atividades conjuntas atrairão aqueles
cujo tempo é cronometrado.”
No final de 2010, soube, através da coordenadora nacional do movimento, que o
coletivo já havia recebido uma quantia do Fundo Nacional de Habitação para a compra do
imóvel pelo Governo Estadual do Rio de Janeiro, além de uma outra parcela para a
reforma. No entanto, a mesma me explicava que a quantia da compra veio atrelada a um
projeto que engloba mais duas outras ocupações. Por isso, o dinheiro da reforma, quando
sair, deve ser para os três prédios, daí a necessidade de que o projeto de reforma seja no
nome das três ocupações para efetuar a liberação do repasse. No entanto, apenas a Manuel
Congo havia concluído o projeto de reforma do prédio, com a ajuda de duas arquitetas
vinculadas ao NAPP.
Em toda a sua estrutura, um ambiente que merece ser “isolado” etnograficamente é
o corredor, tanto pela sua especificidade espacial quanto pela carga moral que a ele é
atribuída. Na proposta metodológica de Moreira (2011), o corredor, assim como as escadas,
varandas e banheiros coletivos são definidos como “espaços informais de uso comum”.
Estes espaços têm características micropolíticas específicas pois:
“... é lá que ocorrem conversas cotidianas, se espalham os boatos, se
estabelecem relações afetivas e se intensificam interações intersubjetivas,
inclusive abrigando discussões informais sobre propostas políticas
submetidas às assembleias do Coletivo. Os próprios moradores
reconhecem o importante papel desses espaços, sendo os loci
privilegiados do que é chamado de ‘Rádio Corredor’. A ‘Rádio Corredor’
é o nome dado, exatamente, a esta tessitura de redes informais de
informações (‘fofocas’) e boatos gestados no âmbito dos corredores.”
(Teixeira e Grandi, 2008: 6)

Sendo assim, o corredor adquire múltiplas funções, funciona como circulação das
pessoas, veículo de comunicação, área de lazer para as crianças, local de namoro para os
jovens, ambiente de fofoca, dentre outras. De espaço coletivo pode ser apropriado por
alguns para realização de festas, para dependurar fios que funcionam como varais de roupa
ou para guardar objetos pessoais que não cabem dentro de casa, como bicicletas, carrinhos

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de bebê, baldes e outros utensílios domésticos. Diante desta heterogeneidade, conflitos
aparecem e distinções são feitas, recriando uma linha interdita e uma pauta moral de quem
pode e quem não pode utilizar o local.
Em alguns andares, os corredores possuem áreas livres as quais são usadas, na
maioria das vezes, para secar roupa através de cordas que são presas nas extremidades das
paredes. Além disso, tais locais, amplos, arejados e iluminados por grandes janelas,
também podem ser utilizados para festas, mas apenas pelos moradores do respectivo andar.
No entanto, nem sempre este critério é acatado, causando impasses em algumas situações.
Um exemplo foi quando Marina solicitou à coordenadora nacional para que fizesse a festa
de seu filho em um desses vãos. No entanto, como a solicitação foi negada, embora outra
moradora tenha conseguido realizar evento semelhante, ela demonstrou enorme
insatisfação, insinuando ainda a possibilidade de haver privilégio para alguns moradores.
De área comum, o corredor, aos poucos, vai ganhando ares de particularismo ao ser
apropriado para fins específicos ou ao não ser usado da maneira pela qual foi designado. A
princípio, tudo que está no corredor é para que todos possam utilizar. No entanto, algumas
pessoas acabam utilizando os objetos de um jeito que acaba não agradando os demais.
Como veremos adiante, quando uma moradora colocou um tanquinho de lavar roupa no
corredor e o mesmo estragou devido a uma sobrecarga, o fato acabou criando um mal-estar
no coletivo.
Outro fato que desperta preocupação entre os moradores diz respeito à convivência
de algumas crianças no corredor. Tal situação faz com que alguns moradores classifiquem
as “crianças de corredor”, como sendo aquelas que são mal comportadas, falam palavrão,
batem nos colegas e não têm o devido cuidado dos pais. No sentido de estabelecer uma
hierarquia moral do cuidado, uma moradora fez questão de contar o caso de uma criança do
prédio que teve que ser internada com pneumonia, pois, segundo ela, não teve a devida
atenção da mãe, que tolerava que seus filhos andassem descalços pelos corredores,
dormissem de cabelo molhado e se alimentassem só de besteira como biscoito e pão.
Em contrapartida, as crianças que seguem (ou devem seguir) as regras do ambiente
doméstico, com tarefas e horários rígidos, ficam proibidas de frequentar o corredor, ou
mesmo de se socializar com as “crianças de corredor”, sofrendo muitas vezes repreensões
severas. Certa vez, estava na casa de Noêmia que tomava conta do neto menor, enquanto

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Foto 13: Varal de roupa no corredor Foto 14: Utensílios domésticos no corredor

Foto 15: Corredor de acesso ao prédio

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sua filha trabalhava como faxineira em Copacabana. Marina telefonava com insistência
para ter notícias dos dois filhos. O mais novo brincava tranquilo na casa da avó, mas o mais
velho não havia descido para almoçar, permanecendo no seu apartamento, no oitavo andar.
Como já passavam de quatro horas da tarde, Marina, muita aborrecida, pediu que sua mãe
subisse para buscar o neto. Noêmia, muita atarefada com os afazeres domésticos e com o
neto pequeno, se recusara a subir os quatro lances de escada, alegando também que não era
responsabilidade sua. Diante do impasse, prontifiquei-me a colaborar. Chegando ao
apartamento de Marina, Vitor estava jogando videogame junto com um colega vizinho.
Quando disse que sua mãe já havia ligado várias vezes perguntando de seu paradeiro,
desligou rapidamente o brinquedo e, calçando o chinelo às pressas, pediu que o amigo se
retirasse. “Rápido, vamos embora, preciso descer senão minha mãe vai me bater!”,
exclamou em tom de desespero. Ao chegarmos na casa de sua avó a mesma perguntou
porque ele não havia descido para almoçar já antecipando a surra que levaria quando sua
mãe retornasse do trabalho. O menino, com as lágrimas correndo, suplicava que a avó não
contasse o episódio. No entanto, dizendo que não gostava de mentiras, sua avó insistia que
deveria contar toda a verdade. Quando Vitor confirmou que estava acompanhado de um
colega, sua tensão aumentou. “Sua mãe já não te disse que não é para levar gente para
dentro de casa? Ainda mais o Rafael! É hoje que você vai apanhar!”, alertou a avó. Nesta
hora, a apreensão de Vitor foi tamanha que mal conseguia engolir o arroz com ovo que sua
avó preparara improvisadamente.
Um fato consensual entre os moradores é que falta, na ocupação, um ambiente de
lazer para as crianças. A “Escolinha” tenta suprir esta carência provendo atividades como
passeios, visitas a museus, piquenique, além das aulas com os professores que ocorrem
duas vezes por semana. No entanto, nos outros dias, as crianças, ao retornarem da escola,
acabam utilizando os espaços comuns para brincadeiras de pique-pega, esconde-esconde,
jogar bola ou mesmo uma correria improvisada.
Em uma dessas diversões, meu filho acabou entrando na roda. Todas as vezes que
eu o levava à ocupação, ele parecia ter especial predileção pelo corredor, talvez pelo fato de
sempre haver alguma criança circulando ou ainda por ser cumprido, um convite para
intrépidas aventuras. Certa vez levei Guido para brincar com o neto menor de Noêmia. No
começo ele estranhou um pouco, fez algumas cenas de ciúmes, mas logo os dois

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encontraram um ponto de equilíbrio: fizeram as pazes correndo pelos corredores. Em
segundos, já estavam entrando nos apartamentos vizinhos, gritando e chamando a atenção
de outros moradores. No mesmo instante várias crianças apareceram, um menino trouxe
uma bola, gerando alegria entre a garotada. Em seguida, o filho de Bárbara, Leonardo,
apareceu com uma máscara de monstro que ele guardara do carnaval. Guido adorou, corria,
berrava, numa mistura de êxtase com temor.
O corredor, aparece, portanto como uma zona cinzenta. De local de circulação e
encontros, vai, aos poucos reconfigurando as fronteiras entre o universo organizado como o
interior das casas e uma área de contágio, como os espaços coletivos. A criança que circula
indiscriminadamente pelo corredor deve ser contida pois pode entrar em contato com
realidades distintas, perigosas. Por outro lado, é este mesmo espaço que proporciona
encontros, afetos e alegrias, como as brincadeiras das crianças e as investidas amorosas dos
jovens namorados. Em um plano micro, através do corredor vemos transparecer a tensão
entre o território político, o projeto coletivo do movimento, e o território doméstico, os
projetos familiares, a densidade moral e afetiva.
Estes dilemas serão melhor explorados no capítulo 2, mas cabe aqui realçar algumas
polaridades que são construídas em torno do aspecto físico da ocupação. Além de um
projeto arquitetônico de reforma dos apartamentos, que será desenvolvido por meio de
verba pública, existe toda uma prática social cotidiana que busca transformar a ocupação de
instrumento legal para moradia enquanto direito. A dimensão do compartilhamento
cotidiano, das relações familiares e de vizinhança ganham especial relevância na maneira
com que os ocupantes sustentam vínculos afetivos e relações sociais de caráter comunitário.
Para não corrermos o risco de fetichizar uma ocupação urbana, não devemos limitar
esta pretensa novidade relacional aos limites da cidade, uma vez que os assentamentos
rurais, que se articulam pelos diversos pontos do país, também dependem da maior ou
menor densidade, enraizamento e extensão das redes sociais que se estruturam nas malhas
do mundo popular. Afinal, estamos falando de acessos desiguais e diferenciados ao serviços
sociais, aos equipamentos de consumo, aos polos de emprego, de privação de necessidades
básicas e direitos sociais como segurança, justiça, cidadania e representação política. E é
justamente nos meandros destas desigualdades que os indivíduos articulam outras redes
para gerenciar suas vidas.

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Não cabe aqui, contudo, recuperar vasta literatura que vem se dedicando a estudar
ocupações de terra e acampamentos rurais. Por ora, num movimento pouco pretensioso,
podemos situar alguns fios paralelos que nos ajudam a tecer os nós, pouco visíveis mas de
forte relevância, que conectam estas multifacetadas articulações das manobras diárias de
sobrevivência das camadas populares, rurais e urbanas, no Brasil.
Conforme aponta Sigaud et alii (2010), desde os anos 1980, centenas de milhares de
indivíduos tem ocupado terras no Brasil. No entanto, se os olhares dos estudiosos do
mundo rural voltaram-se mais para os assentamentos implantados pelo Estado ou para os
movimentos sociais que promoviam as ocupações, estas últimas ganharam relevância
justamente quando pesquisadores se detiveram a observar que elas representavam muito
mais do que aglutinações de pessoas interessadas em obter um lote de terra.
“Os acampamentos possuíam uma organização espacial característica,
com suas barracas alinhadas em forma de ruas; regras para ali conviver;
uma divisão do trabalho em comissões; um vocabulário próprio; e,
sobretudo, elementos dotados de forte simbolismo, que constituem a sua
marca distintiva, como a bandeira do movimento à frente da ocupação,
hasteada em mastro elevado, e a lona preta a cobrir as barracas.
Concluímos então que essa combinação de aspectos modelares constituía
uma forma social, a forma acampamento” (Sigaud et alii, 2010: 86).

Fora toda a cosmologia própria de um acampamento rural, vale ressaltar que, assim
como no contexto urbano, antes de se efetivar uma ocupação, durante o processo de
mobilização, a divulgação das reuniões é feita através das redes de amizade, de vizinhança
e de parentesco dos militantes do movimento e das famílias participantes. Este “trabalho de
formiguinha”, que consiste em percorrer moradias de determinadas localidades convocando
pessoas para reuniões, fomentando debates e articulações também é prática corrente nas
ocupações de prédio urbanos. No caso da Manuel Congo, boa parte dos atuais moradores
veio de comunidades do Caju, Anchieta (zona norte) e do Morro do Cantagalo (em
Ipanema, zona sul do Rio), locais onde o MNLM tinha um forte trabalho de base desde
2007. Conforme recorda-se uma moradora:
“Ficamos quase um ano fazendo reuniões de discussão, fazendo o
cadastro das pessoas e elaboração da Carta de Princípios. As reuniões
foram em Anchieta, no Centro, morro do Cantagalo e no Caju. Isso foi
fortalecendo o grupo, as pessoas foram se conhecendo e sentindo um certo
grau de dificuldade. Porque ela tá entrando na luta e a luta se dá de várias
formas, é você sair do centro da cidade onze horas da noite com medo de
perder o último ônibus, é ter que arrumar o dinheiro da passagem... isso é

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construção, é o compromisso. Porque à medida que você vai participando,
você vai aumentado o seu grau de responsabilidade com você e com o
grupo.” (Betina)

Além da importância destas redes de amizade, vizinhança e de parentesco nas ações


de mobilização para a ocupação, um aspecto importante para a consolidação da Manuel
Congo deve-se à grande rede de solidariedade que o MNLM conseguiu articular junto a
outros movimentos sociais que também participam ou promovem ocupações, como a
Central de Movimentos Populares (CMP), a União por Moradia Popular (UMP) e o próprio
Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), o que demonstra uma clara articulação
com as lutas promovidas no campo.
Mesmo reconhecendo a falta de estudos que foquem a mobilização para a
participação de famílias nas ocupações de terra no Brasil, Macedo (2005) argumenta que, a
despeito desta ausência, não se pode qualificar a atuação dos sujeitos como algo
espontâneo, caso contrário “fica a impressão de que os movimentos surgiram de repente,
como em um passo de mágica. De uma hora para outra estariam todos ali reunidos,
comungando demandas de modo democrático, fazendo reivindicações e organizando
manifestações para que estas venham a ser atendidas” (Macedo, 2005: 476).
Por outro lado, as pessoas não se mobilizam para a ocupação por se sentirem
constrangidas ou pressionadas por militantes de movimentos sociais – como sugere outra
tendência de encarar as ocupações, como atesta Macedo (2005), mas conduzem e são
conduzidas, adotando estratégias muito particulares. Neste sentido, é importante destacar
que antes e após o ingresso das famílias, seja num acampamento rural ou numa ocupação
urbana, estas redes de mobilização são mecanismos atuantes para dar cabo a um projeto
mais amplo que é o viver coletivo. A conversão para outra forma de convívio social se dá
por meio de etapas e procedimentos que incluem reuniões, regras, sacrifícios,
compromissos, lealdades, conflitos e dificuldades. Esta conversão, embora difícil, não
passa, pelo que pude observar, por um impulso prematuro ou coação de forças externas,
mas é uma escolha amadurecida, mesmo que possa ser abandona ao longo do percurso.
Acompanhando o trabalho de mobilização para ocupação de terra organizada pelo
MST/RJ, Macedo (2005) observou que famílias já assentadas, que passaram pela
experiência de acampamentos, são estimuladas a colaborarem com os futuros acampados,

110
renovando e alimentando o poder de ação do MST. Fato semelhante foi observado durante
o Encontro Municipal do MNLM, do qual pude participar. Nesta ocasião, os moradores da
Manuel Congo contribuíram para o processo memorizando, para os futuros ocupantes, suas
vivências, apontando os obstáculos e possíveis caminhos de superação, o que acabou
fortalecendo a socialização entre as famílias, inclusive entre as já residentes.
Além de todo o trabalho preparatório, existem diversas estratégias que contribuem
para a construção moral da moradia como espaço digno e habitável. No caso da Manuel
Congo, os pilares desta transformação são delineados, como visto, primeiramente, na Carta
de Princípios, que estabelece as condutas permitidas e as não toleradas dentro de um espaço
de convívio coletivo. Além disso, táticas sutis e diárias de valorização do espaço são
acionadas pelos moradores que costumam apresentar diferenças entre seu lugar de origem
(geralmente favelas e periferias) e a ocupação (local tido como mais unido e organizado).
Assim, procuram se afastar do estigma de “favelado”, demonstrando “orgulho” pelo seu
local de moradia, além de enfatizar o cuidado que têm pela casa.
A fim de se desvencilhar de uma visão estereotipada que associa a ocupação a um
local desorganizado, ou que não considera o comportamento do ocupante como algo digno
de ser bem avaliado socialmente, existe todo um trabalho de construção do coletivo como
algo organizado. Estes estigmas também aparecem nas falas dos próprios moradores
quando afirmam, por exemplo, que as pessoas de “comunidade” têm hábitos ruins como
falar palavrão e brigar. A princípio, o capricho e o zelo podem não aparecer como valores
das pessoas de camadas populares, mas, justamente para fugir destes estereótipos, existe a
necessidade de se tornar caprichoso, de saber zelar pela casa, se organizar, cuidar do lar. E
foi justamente isto que eu percebi na ocupação, toda uma organização que preza pela
limpeza do local, pelo cuidado, pelo respeito, solidariedade e união.
Neste sentido, se considerarmos que “impureza é essencialmente desordem”
(Douglas, 1966), há, nas falas e ações dos ocupantes, todo um esforço pelo esmero, uma
necessidade de deixar o espaço sempre limpo, bem apresentado, esquivando-se de
classificações negativas e enaltecendo a organização local, em oposição aos contextos
considerados perigosos, sujos, desorganizados. Se a sujeira aparece como ofensa à ordem,
os moradores procuram reordenar positivamente o espaço conferindo certa unidade às
experiências dos ocupantes.

111
Ainda que Mary Douglas (1966) enfatize os rituais de pureza e impureza em
sociedades primitivas, sobretudo acerca de experiências religiosas, sua abordagem é válida
para compreendermos as táticas implementadas na ocupação. Valorizar as atitudes de
limpeza e afastar-se dos símbolos de sujeira têm um duplo caráter: por um lado assume um
efeito funcional e, por outro, moral. Conservar os espaços limpos serve tanto para
possibilitar condições mínimas de habitabilidade, quanto para sinalizar, externamente, o
quanto os moradores são dignos, limpos, organizados e, portanto, merecedores do direito
que pleiteiam.
Além da repetida comparação com a favela, outras ocupações são mencionadas no
sentido de decretar as polaridades limpo/sujo, ordem/desordem. Certa vez, na portaria, uma
moradora me alertava sobre o fato de que várias ocupações estavam passando por tentativas
de despejo. “Tem uma ocupação que encontraram ‘material entorpecente’! Todo mundo
acha que ocupação é uma bagunça, tudo desorganizado.” Rumores como estes circulam no
repertório popular, alimentam histórias e fazem parte do cenário embaçado em que se
encontram muitas ocupações urbanas. Por isso, há toda uma tentativa de inibir qualquer
tipo de comportamento que atrapalhe a organização local ou que se aproxime das
características de um universo moralmente desqualificado.
Em outra ocasião, conversava com algumas mulheres no corredor quando Baiana,
uma senhora alegre e expansiva, amiga de muitos anos de uma moradora e que realiza
trabalhos de apoio, como vender acarajé em alguns eventos culturais do movimento, veio
me confessar ao pé do ouvido, “eu tinha muito preconceito com relação à ocupação, achava
tudo muito sujo, bagunçado, mas essa aqui é diferente, é toda organizada, limpinha. Eu até
penso em vir morar aqui.”
Outro episódio ajuda a ilustrar com maior clareza essa preocupação com uma boa
apresentação do espaço. Umas das casas que costumava frequentar era a de Carla e Matias.
Todas as vezes que entrava, a maioria sem ser convidada, era muito bem acolhida. Sempre
me pediam desculpas pela bagunça, embora me parecesse que estava tudo muito bem
arrumado, me ofereciam algo para comer ou beber e, embora estivessem ocupados com
algum afazer, sentavam-se no sofá ao meu lado e se dispunham a conversar tardes a fio. No
meio da conversa, geralmente solicitava para ir ao banheiro, mas Carla nunca me permitia
ir sozinha. Nas primeiras vezes eu falei que não havia necessidade, sabia qual era o

112
caminho, no entanto, aos poucos fui compreendendo que, mais do que uma companhia para
orientar no trajeto, Carla queria se certificar de que o banheiro estava impecavelmente
limpo, o que de fato foi confirmado todas as vezes.
Outra moradora reconheceu que ocupar um prédio não é, propriamente, a ocupação
de uma moradia, mas é preciso um trabalho enorme, tanto em termos físicos, o que implica
em transformar um prédio de escritórios em apartamentos contendo espaços reservados
para o quarto, a sala, a cozinha, quanto em termos de gestão cotidiana. Este empenho
envolveu não só uma tarefa de limpeza, pois quando as famílias ocuparam inicialmente o
prédio, “estava tudo empoeirado, tudo sujo, banheiro sem pia, sem luz, os vidros
quebrados”, mas atrelado a isto, existe todo um trabalho que busca efetivar certo
reconhecimento moral:
“Então nós vemos que as pessoas estão gostando que nós estamos aqui.
Igual o rapaz do restaurante aqui de baixo, ‘olha, depois que vocês vieram
morar aqui, nunca mais deu rato no meu restaurante.’ Então nós estamos
felizes das pessoas reconhecer que fazia falta de pessoas aqui ou de
pessoas que limpassem aqui. Esse é o nosso prazer de escutar as pessoas
falando ‘é, por causa de vocês que não tem mais rato, por causa de vocês’,
agora está limpinho a janela, agora está limpinho os corredores, agora
parou de rato aqui embaixo.” (Ritinha)

A limpeza pela qual o prédio está passando não é só física, mas sobretudo político-
moral. Conforme fez questão de frisar a coordenadora nacional do movimento, “a nossa
proposta é bem maior do que cuidar da limpeza ou da portaria de um prédio.” Nesta
ocasião, ela se referia a um processo de crescimento dos evangélicos na ocupação que,
segundo ela, contribuía para fragilizar a mobilização dos moradores. “A investida dos
evangélicos aqui é desmobilizadora. A agenda que você coloca aqui conflitua com a agenda
de Deus.” A agenda a qual se referia diz respeito àquela colocada pelo próprio MNLM, ou
seja, à luta em prol da transformação social, que implica em discutir um novo modelo de
gestão de cidade e não só ocupar um prédio garantindo moradia digna para as famílias com
baixa renda.
Neste sentido, sua crítica era contundente. “As pessoas evangélicas falam que Deus
já disse que conseguiu coisa melhor do que a ocupação. Os evangélicos são reacionários. A
salvação deles se dá através do milagre, eles usam Deus como fator para alimentar a luta. A
prioridade para eles é ganhar o mundo para Cristo. A questão é que a nossa proposta é bem

113
maior.” Numa tentativa pouco eficiente, tentei relativizar, alertando-a para o fato de
tentarmos entender esta crescente adesão à evangelização e não só recriminá-la, mas ela foi
enfática.
“Eu não quero entender isso, eu quero sobreviver a isso! Quem constrói
história não trabalha com receitas e fatalidades. A gente tá pau da vida
porque não se conforma com isso. Mas a gente não quer se livrar deles.
Nossa discussão não é de exclusão, de descarte. Nós achamos que
devemos fazer a provocação correta, na hora certa, para não perdê-los.
Mas eu aposto que um dia vai cair a ficha deles, eles vão entender que o
que eles estão passando é um momento.” (Ângela)

Preferi ficar quieta e ela continuou. “Quanto mais pobre melhor para os evangélicos.
São pessoas de grau de escolaridade baixa, sem esperança nenhuma na vida. Eles têm uma
incapacidade de ver o mundo e uma facilidade para seguir seitas, radicalismos. Mas nós não
queremos descartar essas pessoas.” Aproveitei para intervir e perguntei “mas como
conquistá-los? Como chamá-los para a luta?”. Ela emendou e falou “Eu enfrento eles com a
minha linguagem de Deus. Mas para eles, a outra linguagem, a stalinista, é a que dá certo,
porque ela depura, limpa, mas descarta. A tendência é fazer isso. Mas queremos fazer isso?
Excluir? Eles já fazem isso conosco.”
Neste momento, uma outra moradora que participava de nossa conversa, aproveitou
para se pronunciar. “Essa ideia de exclusão é reproduzida nas crianças. Outro dia, um falou:
‘tia, você sabia que homossexual e católico não entra no céu? Nem macumbeiro entra lá em
casa.’ Ela se mostrou muito preocupada com esta postura preconceituosa e excludente e
disse ainda que ela dificulta o desenvolvimento de algumas tarefas com as crianças da
ocupação. “Nós não conseguimos mais fazer aulas de capoeira, porque algumas crianças
chegaram para nós dizendo ‘a capoeira não é de Deus! É do capeta!’”
Diante deste comentário, a coordenadora nacional não se conteve “não podemos
aceitar essa situação, temos que intervir nessa situação!” Em seguida me explicou que havia
um pastor fazendo culto dentro da ocupação, mas que “era tanta pregação, tanta barulheira”
que foi proibido pela coordenação qualquer tipo de pregação religiosa dentro da ocupação.
Eu perguntei se eles levaram a questão para discutir na assembleia, mas sua resposta foi
emblemática “se fosse para a assembleia, a gente perdia. Os evangélicos estão se
organizando, quando vieram para cá eram dispersos, agora estão organizados. Eles pegam
as pessoas em situação desesperadora: separação, alcoolismo, desemprego. ‘Vem comigo

114
que você vai se libertar!’ O capitalismo é traiçoeiro demais. Você começa a luta já
derrotado.”
Essa enxurrada de críticas e desabafos me fez refletir sobre o projeto político, moral
e pedagógico presente não só no discurso, mas nas práticas dos representantes do
movimento. Imbuídos de um ideal que envolve um processo mais amplo de transformação
social, este acaba esbarrando em múltiplas variantes familiares, arranjos domésticos,
códigos de conduta, crenças religiosas e estratégias particulares de sobrevivência. No
entanto, para as pessoas que moram em uma ocupação urbana não se trata simplesmente de
sobreviver e levar a vida, mas trata-se, sobretudo, de contornar dois obstáculos. De um
lado, as condições adversas que aparecem sempre como um risco iminente para as camadas
populares: o desemprego, os mercados informais e ilegais, a sociabilidade violenta, a
valorização imobiliária, o transporte precário, uma morte prematura... De outro, os custos
que um empreendimento político como a ocupação coloca, as incertezas postas por uma
vida em coletividade e as dificuldades em abrir mão de algum projeto pessoal. É justamente
esta tensão entre as prerrogativas macro do movimento e as táticas cotidianas de gestão e
negociação que veremos no próximo capítulo.

115
CAPÍTULO 2

OCUPAÇÃO EM DUPLA FACE:


GESTÃO POLÍTICA E MORAL

Passava os dias ali, quieto, no meio das coisas miúdas.


E me encantei.
Manuel de Barros

2.1 – Projeto político e dramas familiares: tensões e dilemas cotidianos

Conforme visto na Introdução, em certo momento do trabalho de campo, comecei a


ser cobrada sobre a minha presença e as possíveis consequências da pesquisa que estava
desenvolvendo. Este episódio provocou não só uma autorreflexão sobre o meu papel
enquanto pesquisadora, mas foi de fundamental importância para pensar o cerne da
pesquisa que eu estava desenvolvendo.
Qual a utilidade do meu trabalho, teria algum efeito para os rumos da ocupação? O
que eu abordaria? Qual o peso e valor que eu daria às situações ordinárias que estava
presenciando ali? O alerta dado pelos coordenadores de que “existe uma guerra hegemônica
contra nós, todo mundo tentando nos derrubar!” parecia legítimo e deveria ser levado em
conta para que eu reconfigurasse o meu posicionamento em campo e norteasse melhor
meus objetivos políticos e acadêmicos para dentro e fora do universo daquela ocupação.
Entretanto, naquele momento, tentei amenizar o desconforto enfatizando a validade
de uma pesquisa científica em sinalizar para outras esferas (inclusive para a própria
Universidade) o que está acontecendo de resistência na cidade através dos movimentos
urbanos. E se, enquanto pesquisadora, tinha optado em conhecer de perto a realidade de
uma ocupação não era para mostrar suas contradições, mesmo que isso faça parte de
qualquer realidade social, mas reforçar sua capacidade organizativa, demonstrando que,
apesar de todas as dificuldades, as pessoas conseguem se mobilizar em um ambiente
coletivo e lutar por interesses que estão além das particularidades de cada um.

116
Afinal, o que eu estava realmente fazendo ali? Que papel estava desempenhando?
Que tipo de interferência estava provocando na vida daquelas pessoas e de que forma
estava sendo afetada? Que tipo de conhecimento eu produziria com elas, para elas, a favor
ou contra elas? Em que sentido o meu trabalho poderia ser útil para a vida daquelas
pessoas? O quão poderia passar despercebido? Que contribuições uma pesquisa acadêmica
pode oferecer a um movimento social? Afinal, o que eu estava procurando ali?
A cobrança pode ter me deixado metodologicamente atônita no começo e até
subjetivamente abalada. No entanto, aos poucos fui entendendo que se tratava menos de
uma implicância pessoal do que de uma inquirição instituída. A interpelação não vinha dos
coordenadores estritamente, mas era uma preocupação mais ampla, uma necessidade de
afirmar um certo controle sobre a “imagem pública”36 do coletivo e da própria ocupação.
Os representantes do movimento funcionam como “síndicos” que devem desenvolver um
trabalho de manutenção do prédio, de mobilização política de seus moradores e de defesa
contra eventuais oportunistas.
Por isso, não parecia que os coordenadores estivessem me cobrando uma postura
estritamente acadêmica e pouco afetuosa. Mas, ao contrário, estavam preocupados com os
limites das amizades ali construídas, para onde elas me levariam, que liberdade eu teria
para falar daquelas pessoas e quais os problemas que poderiam decorrer desta relação
franca e aberta.
Suas falas foram importantes para que eu pudesse compreender que, para além de
todo o esforço do movimento e de seus coordenadores em convocar as pessoas para uma
agenda de luta, existem determinadas circunstâncias que escapam às regras coletivas, seja
por experiências de vida ou por situações muito específicas do dia a dia, mas nem por isso
os moradores deixam de se engajar politicamente. Como sugere Telles (2010), talvez seja o
caso de se interrogar pelos modos como experiências de desigualdade vêm se processando
a partir de uma vivência dos bloqueios a possibilidades de vida em um tempo que celebra o
desempenho, a performance e o sucesso como medidas de autonomia individual.
Neste sentido, aos poucos, fui entendendo que privilegiar o cotidiano (ou as “coisas
miúdas”, como apontam os versos na epígrafe do capítulo) de uma ocupação e abordar as
                                                                                                               
36
A maneira como o MNLM, através de seus representantes, procura se legitimar por meio de um programa
político que envolve práticas de mobilização e mecanismos simbólicos de modulação de sujeitos será
discutida mais adiante.

117
contradições e dilemas pelos quais passam os ocupantes, não é desmerecer a atuação do
movimento nem apontar para possíveis fragilidades, mas tentar demonstrar que viver em
uma ocupação urbana é uma empreitada complexa demais que escapole a qualquer tipo de
simplificação. Nesta constelação de possibilidades é preciso pensar a moradia em um duplo
caráter, enquanto projeto político e pragmática moral. O que significa a moradia para o
movimento social e qual o valor da casa para os ocupantes? Que disputas, tensões e
arranjos decorrem daí, como estas dinâmicas dialogam e em que sentido se distanciam?
Como as pessoas conciliam as normas do coletivo com as regras do ambiente doméstico?
Na ocasião em que fui interpelada, procurei deixar claro que ao realçar os impasses
e transparecer as intrigas, não pretendia, de modo algum, contribuir com qualquer força
hegemônica de desmobilização (conforme insinuaram), mas produzir um efeito contrário.
Ao explorar a maneira como diversas pessoas se organizam em prol de um objetivo comum
(a luta pela moradia), embora mobilizadas a partir de territórios domésticos diferentes,
poderia, de certa maneira, oferecer mais um subsídio para dar luz a práticas dissidentes que
lutam por outro modelo de gestão e sociabilidade urbanas.
Superado o “puxão de orelha”, comecei a cristalizar a ideia de que, mostrar esta
dimensão latente, por mais constrangedor que possa ser para as pessoas ali envolvidas, é
atentar para uma densidade política que não é feita só por líderes e militantes, mas pelo
esforço diário de pessoas de carne e osso. As práticas ordinárias do dia a dia podem se
mostrar extraordinárias a qualquer momento, basta um olhar mais atento capaz de capturar
gestos, falas, modos de agir e de cuidar aparentemente banais e corriqueiros. Neste sentido,
não nos interessa falar dos conflitos internos de uma ocupação para demonstrar possíveis
“rachaduras” dentro de um movimento, tampouco polarizar as motivações das pessoas entre
uma razão material e outra política. Mas, ao explorar os múltiplos e heterogêneos modos de
se envolver na ocupação, poderemos restituir a dimensão prática e moral deste tipo de
engajamento político.
Ao etnografar as tramas sociais de um movimento piquetero37 no sul da Grande
Buenos Aires, Julieta Quirós (2006, 2009) chama atenção para esta dimensão submersa da

                                                                                                               
37
Em virtude das transformações no mundo do trabalho e a irrupção do desemprego estrutural na Argentina,
ao longo da década de 1990, emergiram e proliferaram organizações de desempregados que fizeram do
trabalho sua demanda em face do Estado e do piquete de rua – bloqueio e ocupação de estradas – seu
principal método de protesto. Desde então, quando os desempregados consolidaram-se nos subúrbios das

118
vida social em que as pessoas que participam de movimentos sociais podem se inscrever.
Na tentativa de superar uma abordagem usual de alguns pesquisadores que tomam o
movimento como uma unidade de análise (o “ator coletivo”) procurando dar conta de sua
dinâmica cotidiana, de suas performances de protesto e de suas definições políticas, a
autora busca imprimir um outro recorte analítico e uma outra aproximação com as pessoas.
Numa perspectiva alternativa, ela procura perceber como as pessoas manejam diferentes
planos de participação no movimento piquetero, demonstrando que fazer parte de uma
organização desta natureza é apenas uma possibilidade dentro de um universo mais amplo
de relações e oportunidades de vida.
Sob esta ótica, o movimento piquetero ou a “vida organizacional” passa a ser
restituída no fluxo da vida, inclusive para fora do piquete. Procurar iluminar a experiência
cotidiana que faz parte de um movimento piquetero a partir de sua relação com outras
experiências da vida cotidiana foi a chave metodológica que a autora buscou em sua
etnografia, a qual pôde sugerir não só que os piqueteros fazem mais do que piquetes, mas
que as pessoas identificadas enquanto tal não necessariamente se pensam como sendo
piqueteros.
Como explica Quirós (2009), a fim de obter um plano38 as pessoas podem recorrer a
um político, inscrever-se nos registros da prefeitura ou mesmo aderir a algum movimento
piquetero. Como pôde observar ao longo do trabalho de campo, as pessoas não
necessariamente eram do movimento, mas estavam com o movimento guiadas por um
objetivo claro: a obtenção dos planos. Uma vez nos piqueteros, as pessoas poderiam
receber estes planos pela quantidade de passeatas das quais participariam. No entanto,
como alerta, estar com os piqueteros não se reduz a uma “razão material” (vai-se à
manifestação por um plano, por cestas de mercadorias ou por 20 pesos), ou “ideológica” (a

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                               
grandes cidades argentinas e o piquete generalizou-se como ação de protesto, os chamados piqueteros têm
sido objeto de debate público. Cabe ressaltar que, na Argentina, o piquete tem significado distinto de seu
habitual sentido no Brasil, onde é frequentemente empregado em referência à ação de pessoas que, em greve,
procuram impedir a entrada de outros trabalhadores no local de trabalho (Quirós 2009).
38
Desde 1996, os governos nacional e provincial lançaram diversos tipos de planos de emprego: subsídios de
150 pesos mensais (50 dólares) que requer do beneficiário contraprestações em forma de tarefas para o bairro
e a comunidade. No ano 2000, o governo nacional determinou que a gestão dos planos — até então
concentrada nas entidades municipais e nas redes do Partido Justicialista — pudesse ser assumida também
por organizações da “sociedade civil”. Nesse contexto, a maioria das organizações piqueteras constituiu-se
em organizações não-governamentais, passando a gerir seus próprios padrões de planos sociais, bem como a
organizar a contraprestação em atividades dentro dos movimentos (Quirós 2009).

119
luta por uma mudança social, uma nova institucionalidade), mas está cercada por uma
diversidade de motivos que orientam o engajamento das pessoas. “Neste sentido, (...) a
expressão nativa estar com os piqueteros (...) mais do que uma identidade ou uma
trajetória, constitui uma multiplicidade de relações e identificações, sempre parciais”
(Quirós, 2009: 133).
A atribuição desta “nova identidade social”, definida pelo que se presume que essas
pessoas fazem – piquetes – pode ser uma armadilha para o pesquisador preocupado em
explorar uma série de experiências cotidianas entre aqueles que se engajam numa
organização desse tipo. Fugindo desta tentativa de reificação da identidade do piquetero, a
autora procurou revelar a dimensão humana desse mundo social para apartar a censura
moral a que este universo é sistematicamente submetido e, em segundo lugar, para expor as
condições sociais concretas nas quais e com as quais essas pessoas – com inefável esforço e
criatividade – lidam dia a dia.
Seguindo estes passos, pretendo, da mesma maneira, colocar em evidência outras
tramas de vida, ao invés de insistir em um esforço estéril de reduzir a vida a razões sejam
elas administrativas ou ideológicas. Mesmo reconhecendo que estas dimensões -
governamental e militante - fazem parte do dia a dia de uma ocupação urbana, minha
intenção foi iluminar situações cotidianas que ora esbarravam, oram se mesclavam às
diretrizes do movimento. Que fio são estes que vão se tecendo nas tramas da vida e que
transbordam as formas estabelecidas de regulação política e escapam às formas conhecidas
de representação política?
A fim de dissecar esta tensão entre um projeto político mais amplo e as práticas
familiares ordinárias é preciso compreender como funciona a organização interna da
ocupação e como as pessoas dialogam e negociam com esta gestão coletiva a partir de
projetos de vida e de tomadas de decisão muito singulares. Que processos concretos são
estes que revelam as tensões entre a agência de homens e mulheres e as forças estruturais
que modulam seus comportamentos? É nesse registro que pretendo situar a discussão,
percebendo as múltiplas práticas cotidianas que implodem a gramática política conhecida,
ou melhor, que fazem vir a tona um aspecto menos visível do campo político.
Este deslocamento exige uma outra reflexão crítica a cerca da gestão da cidade no
mundo contemporâneo. Como sinaliza Telles (2010), diante de uma “situação em que a

120
política foi implodida por todos os lados, deslizando para a gestão das urgências combinada
com formas renovadas de coerção” (Telles, 2010: 152), é preciso que prospectemos os
“pontos de fricção dos ordenamentos sociais” que vêm se delineando e reconfigurando o
estado de coisas atual.
Diante de um contexto de reordenamento territorial dirigido para atender interesses
empresariais, o que contribui para intensificar a segregação sócio-espacial, a
desapropriação, a remoção e a exclusão das camadas populares das áreas centrais
metropolitanas, diversos movimentos sociais buscam intensificar suas formas de atuação
consolidando algumas ocupações em espaços ociosos ou em terrenos abandonados.
Como visto, antes de ocupar um prédio, os futuros ocupantes passam por toda uma
etapa de preparo e discussões que requer semanas, meses e até anos de reuniões, a fim de
estabelecer os critérios que farão parte da Carta de Princípios. Esta forma de conduzir e
disciplinar os comportamentos individuais dentro de um espaço coletivo é utilizada por
várias ocupações, ainda que com uma lógica de organização diferenciada.
Uma das coordenadoras da Ocupação Manuel Congo explicou o desenvolvimento
deste processo de construção de uma “pedagogia do comportamento”, ou seja, como um
regime de moralidades39 é instituído (e reconhecido) a fim de influenciar as condutas dos
indivíduos.
“A gente fez plenárias centralizadas no SEPE e nós fizemos reuniões
descentralizadas, no caso uma em Anchieta e uma no Cantagalo, antes de
ocupar o Vitória, antes de 1º de outubro do ano passado [2007], a gente
ficou um ano se reunindo. Nas reuniões a gente tinha uma metodologia de
discutir quem era a gente, o que a gente estava fazendo ali, o que a gente
esperava, de onde a gente estava vindo, como eram os lugares de onde a
gente tava vindo, que tipo de sonho a gente tinha com o lugar para onde a
gente queria ir. Quais são os desafios que a gente achava que a ia ter que
enfrentar. Então a gente ia discutindo, fazendo trabalho em grupo,
dinâmica. Ia discutindo e sistematizando os resultados das discussões. Às
vezes jogava para o conjunto o resultado das discussões de um dia, eles
mesmo liam as coisas que tinham falado na reunião anterior, aí rediscutia.
Aí chegou na véspera de ocupar, eles acharam que a carta de princípios
não estava completa, quiseram botar um artigo dizendo que cada
Assembleia, a partir daquele dia, poderia instituir novas regras do
cotidiano. Então, isso foi um processo, ainda é um processo.” (Ângela)

                                                                                                               
39
O regime de moralidades é entendido como os padrões de conduta e códigos não explícitos que devem ser
respeitados e não transgredidos (Vianna, 2002).

121
Este processo árduo e contínuo de construção e reformulação da Carta de Princípios
se deve ao fato das mudanças pelas quais a ocupação vem passando e os ocupantes ainda
esperam passar, por isso existem várias versões do documento. Conforme a coordenadora
sinalizou, os moradores “só vão modificando na medida em que vão vivendo, vão
percebendo melhor o mundo, aí vai modificando e vai adaptando. Por isso que tem carta de
princípio primeira versão, segunda versão...” Quando a obra de reforma do prédio for
concluída, por exemplo, ela explicou que a Carta de Princípios vai ter que se adequar à
nova realidade de apartamento com chave, taxa de manutenção do prédio, luz coletiva,
elevador, IPTU. “Isso tudo a gente discute com eles, vai ter que fazer uma adequação”,
alertou a coordenadora.
Vale ressaltar que, do documento escrito para as práticas cotidianas, existe um
desnível muito grande. De fato, para que serve este tipo de regulamento? Será que ele tem
alguma validade para o interior da ocupação ou funciona mais para o seu exterior? As falas
de uma moradora sintetizam bem esta ideia de “lei que não pega”:
“Eu acho que a carta [de princípios] deve servir não só para ler e pensar,
mas para praticar. Poucas pessoas praticam a carta. Os que criticam são os
que menos vivem a Carta de princípios.” (Fabiana)

Talvez por mostrar-se por vezes vaga e imprecisa, a Carta de Princípios funciona
muito mais como uma diretriz do Movimento, ficando as regras de conduta para serem
instauradas e reconhecidas de maneira menos formal no seu uso cotidiano. Os padrões de
conduta passam a ser assimilados através de códigos não explícitos e que são ajustados
conforme as situações vão aparecendo. Por isso, não é difícil observar situações de
transgressão ou de conflitos cotidianos que a Carta, ou mesmo a própria coordenação
nacional do movimento, não são capazes de contornar.
Em certa ocasião, apareci na casa da coordenadora e ela reclamava da falta de
autonomia de alguns moradores e da sobrecarga que sofre por ter que decidir sozinha os
rumos da ocupação.
“Eles sabem o que está na Carta de princípios, mas o que eles fazem? Eles
batem na porta e falam assim:
- a fulana entrou com um cara aí que não é daqui, nós não conhecemos
e ela falou que ele vai dormir lá.
Eu falo: - e aí, faz o quê? Ele não pode ficar, porque você deixou ele
entrar?
- Não, ué, ele não perguntou se podia entrar.
- Você sabe que ele não podia entrar.
122
- Não, mas ele já entrou, eu vim te chamar, a gente não tem que tirar
ele? Eu vim te chamar.” (Ângela)

Impasses como esses são constantes. De um lado, a coordenadora, acumulada de


tarefas, lamentando o “doloroso processo” que implica a condução de uma ocupação, uma
vez que “haja paciência para poder ir construindo, porque tem horas que você acha que está
tão devagar que dá vontade de você sumir.” De outro, os moradores, perdidos diante das
múltiplas contradições que as regras suscitam.
A própria coordenadora reconhece que existe um desnível enorme entre as normas
prescritas e o que é feito no dia a dia. Para ela, uma coisa é decretar que existe um princípio
de igualdade reconhecido pelas pessoas e outra é “perceber, no dia-a-dia, como o
preconceito se manifesta.” Quando ela interpela se é correto um homem bater em uma
mulher, as pessoas facilmente concordam que é um equívoco, no entanto, muitos acabam
criticando que a própria mulher quando “vê a vizinha sendo oprimida, justifica a opressão,
dizendo que quando o marido chega ela tá fazendo fofoca na casa de não sei quem...”. Por
isso, a coordenadora reconhece que não adianta chegar com um “discurso politicamente
correto”, pois este dificilmente tem validez na rotina das pessoas.
“Se você pegar a carta de princípio, eles fizeram aquelas coisas pensando
numa comunidade ideal, mas eles nunca imaginaram que iriam decidir
sobre isso. Sabiam que era para eles que estavam fazendo, mas é como se
eles saíssem deles mesmo e falassem uma regra dos outros. Na hora que
você vai ver, vai checar a carta de princípios com a conduta deles, eles
não aguentam aquelas regras que estão ali, eles mesmo não aguentam. Aí
fica dando o jeitinho brasileiro para driblar uma coisa, para driblar outra.
E aí a coordenação tem que chegar junto, o Comitê de gestão tem que
chegar junto (...). Porque é uma autoridade, mas é uma autoridade
construída, construída em cima de regra coletiva. Só que eles não exercem
porque é uma coisa antipática, que gera antipatia.” (Ângela)

Em outra situação, outro coordenador do MNLM, explicita o objetivo de uma


ocupação em entrevista ao site da Empresa Brasil de Comunicação40:
“O nosso propósito é fazer apartamentos de moradia com interesse social.
Queremos a reforma urbana no seu sentido mais geral. Não significa só a
preocupação com a moradia, mas com tudo aquilo que se relaciona com a
cidade, seja a cultura, o lazer, a educação e o transporte.” (César, grifos
meus)

                                                                                                               
40
Disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2007-10-29/familias-ocupam-predio-do-inss-no-rio-
e-reivindicam-politicas-publicas-de-habitacao.

123
Estas falas, vindas de coordenadores do movimento deixam clara a aposta em um
ideal que parece distante da realidade dos ocupantes. Ao enfatizarem o papel dos
representantes, a necessidade de uma autoridade democraticamente instituída e de regras
coletivas em prol de um “interesse social”, ficamos a nos perguntar: como ficam os
interesses pessoais e morais dos ocupantes? Quais as estratégias de vida destas pessoas e
quais seus projetos específicos de moradia? Será que suas dificuldades em acatar as regras
passa por uma manobra consciente de favorecimento pessoal ou será que este “jeitinho
brasileiro”, ao qual a coordenadora alude, não estaria representando muito mais as
múltiplas táticas de sobrevivência ao invés de tentativas de burlar as normas e diretrizes?
Na tentativa de recuperar os sentidos políticos incrustados nas estratégias diárias
dos ocupantes, é preciso percorrer a linha tênue entre a criatividade que pulula e a esperteza
que manipula, observando as relações de força e os campos de disputa que se processam
nas dobras dos parâmetros oficiais. Enfatizar esta pragmática moral ou a “dialética da
malandragem”, para lembrar a famosa fórmula de Antonio Candido (1970), significa
atentar para as múltiplas tentativas que os moradores acionam para lidar com os códigos
prescritos, exercitando a especial “arte do contornamento” (Telles, 2010). Se insistirmos
nas falhas e nas reiteradas acusações por falta de engajamento e mobilização corremos o
risco de perdermos de mira experiências menos evidentes que se processam nestes pontos
de fricção entre a agenda política do movimento e os modos de operá-la a partir de
situações específicas. Por isso, ao invés de reduzirmos as ações dos sujeitos a uma
reprodução da chamada “cultura popular” é preciso apreender os múltiplos mecanismos de
gestão, uma economia moral ativada com um acréscimo de astúcia nas circunstâncias
práticas da vida.
Preocupado com as ações cotidianas que se realizam através de inúmeras
combinatórias de operações, De Certeau (1998) esclarece que é preciso analisar os
processos de utilização e manipulação pelos agentes das representações e códigos
difundidos pelas técnicas da produção sociocultural. Como os sujeitos, circunscritos em
uma rede de lugares e relações, apropriam-se destas normas e usando inúmeras e
infinitesimais metamorfoses da lei, fazem uma bricolagem, segundo seus próprios
interesses e suas próprias regras? Como argumenta o autor, a partir desta “atividade de

124
formigas” é preciso descobrir os procedimentos, as possibilidades, “maneiras de fazer” o
cotidiano que acabam, por sua vez, alterando o seu funcionamento por uma multiplicidade
de “táticas” articuladas em seus “detalhes”. Neste sentido, é preciso mostrar como “por trás
dos bastidores, tecnologias mudas determinam ou curto-circuitam as encenações
institucionais” (idem: 41), ou melhor, como os moradores jogam com os mecanismos da
disciplina, formando uma contrapartida, através de processos às vezes mudos, às vezes
invisíveis que organizam a ordenação político-moral da ocupação. Como eles, através de
“formas sub-reptícias que são assumidas pela criatividades dispersa, tática e bricoladora”
manipulam espaços e operam redes de ajuda que, ao invés de ferir as regras e prescindir das
leis, negociam com elas e a partir delas.
Do mesmo modo que a pretensa ordem ideal comunitária é mantida graças aos
perigos que ameaçam aos transgressores, os mesmos sancionam outros códigos morais para
lidar com os limites a que estão submetidos. Em muitos casos, os padrões de conduta
acabam sendo transgredidos não porque os sujeitos queiram necessariamente arriscar-se,
mas pelo fato das próprias transgressões constituírem vantagens para suas práticas de vida.
Assim, as trocas cotidianas que reforçam os núcleos familiares, de amizade e de vizinhança
terminam instituindo e balizando os espaços locais mesmo que não estejam submetidos às
regras socialmente definidas. Ao contrário, nesta manobra, por vezes inconsciente, novas
crenças, valores e relações são acionados tecendo uma malha relacional de outra ordem.
O desafio que se coloca é justamente compreender como as pessoas enfrentam estes
conflitos, que são gerados, sobretudo, por realidades cujos valores, origens e situações
socioeconômicas são diversificados. Que modelos e ideários administrativos são
implementados para enquadrar esta diversidade, como os movimentos sociais, através de
suas agendas, procuram limitar as condutas dos moradores em prol de uma “comunidade
ideal” e finalmente, como estes últimos lidam com esta teia de prescrições? No meio deste
emaranhado, é preciso observar como os próprios moradores se inserem nesta seara, como
se reconhecem como sujeitos políticos, que influências tiveram com a entrada na ocupação
e que desafios enfrentam para conciliar o projeto político da ocupação que envolve o viver
coletivamente e os seus dramas familiares. Quais são estes custos diante das muitas
possibilidades de engajamento no movimento?

125
2.2 – Em busca de uma vida melhor

A luta pela moradia ou o estar em uma ocupação é um processo mais complexo e


mais rico que acaba escapulindo do pretenso enquadramento imposto pelas diretrizes
institucionais e das proposições genéricas sobre “exclusão social”. Se não levarmos em
conta um intricado e tenso jogo de diversos atores que, nos seus agenciamentos cotidianos,
acabam por produzir, de forma nem sempre evidente, a própria ocupação, pouco
entenderemos deste processo que não necessariamente prescinde das leis, mas negocia com
e a partir das regulações. Diante disto, podemos observar algumas cenas que nos permitem
flagrar esta trama complexa de disputas, alianças, aberturas, bloqueios e impasses.
Marina, uma jovem de 28 anos, é casada com Felipe e tem dois filhos, o mais velho,
Vitor, de 8 anos, do primeiro casamento, e Bernardo de 1. Comunicativa e com uma
percepção bastante aguçada, Marina trabalha como diarista em Copacabana e, por não ter
com quem deixar seu filho pequeno, teve que trancar sua matrícula do ensino médio que
cursava em um Colégio Estadual à noite. Sua mãe estava se queixando de ter que ficar com
o neto todos os dias, esperando Felipe chegar do trabalho para pegá-lo, o que fez com que
Marina tomasse a difícil decisão.
Felipe trabalha todos os dias em uma ótica no centro da cidade, sai de manhã e só
volta no fim do dia. Marina procura reservar alguns dias para estar próxima dos filhos,
principalmente do pequeno que ela prefere ainda não colocar em uma creche, pois acha
“cedo demais”. No dia a dia, Marina, além de desempenhar todos os afazeres domésticos
como cozinhar, lavar louça, lavar e passar roupa, arrumar a casa, levar e buscar o filho mais
velho na escola e na natação, também se dedica às atividades da Igreja Batista.
Todas as vezes em que chegava em sua casa, Marina, mesmo atarefada, me
convidava para sentar, me oferecia alguma coisa para comer e nossas conversas duravam a
tarde inteira. Além dos assuntos corriqueiros e dos convites insistentes para que eu
conhecesse sua Igreja, Marina, nos nossos infindáveis bate-papos, sempre mencionava
algum conflito no casamento, desentendimento com o filho mais velho ou alguma
dificuldade em aderir às atividades do movimento.
Certa vez, conversávamos sobre as múltiplas funções que uma mulher tem que
desempenhar e ela aproveitou para comentar sobre um ato que o movimento havia

126
convocado contra os megaeventos na cidade do Rio de Janeiro. Um pouco contrariada,
disse que não poderia comparecer, pois tem dois filhos pequenos e achava que poderia
colocá-los em risco, indo para a Marina da Glória, no Aterro do Flamengo, onde ocorreria o
evento do sorteio das eliminatórias para a Copa do Mundo de 201441, a ser realizada no
Brasil. Disse ainda que mesmo que a coordenadora tivesse cobrado a presença de todos da
ocupação, ela se recusara a comparecer, tendo em vista o perigo e a exaustão a que os seus
filhos estariam submetidos. Algumas pessoas que compareceram reclamaram da distância
que tiveram que percorrer (do Largo do Machado, local de concentração do ato, até a
Marina da Glória) e do cansaço que isso implicou, ressaltou.
Em outra ocasião, conversava com Marina e, tratando-se de véspera do feriado
nacional de 7 de setembro, perguntei o que ela faria no dia seguinte. Comentou que desta
vez seria obrigada a participar do ato do Grito dos Excluídos42, pois foi acertado um termo
de compromisso para todos os moradores da ocupação: em seis meses, cada morador deve
comparecer a, no mínimo, quatro assembleias e dois atos. Como ela não tinha participado
do último ato, na Marina da Glória, teria que comparecer a este. Perguntei se esta decisão
tinha sido tomada em assembleia, ela respondeu que não, mas na Carta de princípios que,
por sua vez, foi elaborada pelos próprios moradores (não pela totalidade dos que estão, pois
muitos já foram embora e outros entraram), há os critérios de participação dos ocupantes.
Eu perguntei se ela estava disposta a ir e ela me disse que iria por obrigação. Perguntei se
levaria os filhos e disse que o menor sim, mas que se o maior quisesse ficar em casa ele
poderia.
Um pouco receosa, convidei seu filho mais velho para ir ao clube Fluminense junto
com meu filho, no dia do feriado, pois ambos são tricolores e poderiam brincar juntos. O
menino, quando ouviu o convite, ficou maravilhado, seria a primeira oportunidade para

                                                                                                               
41
Em 30 de julho de 2011, dia do sorteio das eliminatórias, evento que abriu os “festejos” para celebração da
Copa do Mundo no Brasil em 2014, vários movimentos sociais protestaram com o intuito de criticar as
remoções forçadas e a falta de transparência nas obras para a realização deste megaevento no país. O ato, que
começou no Largo do Machado, zona sul carioca, e caminhou até a Marina da Glória, onde acontecia o
sorteio, unificou as mobilizações dos trabalhadores da educação, então em greve, as do Comitê Popular para a
Copa do Mundo e as Olimpíadas e diversos outros movimentos populares.
42
O Grito dos Excluídos é um conjunto de manifestações realizadas no Dia da Pátria, tentando chamar a
atenção da sociedade para as condições de crescente exclusão social na sociedade brasileira. O Grito é
promovido pela Pastoral Social da Igreja Católica, mas, desde o início, conta com numerosos parceiros
ligados às demais Igrejas do CONIC (Conselho Nacional de Igrejas Cristãs), aos movimentos sociais,
entidades e organizações.

127
conhecer as dependências do clube pelo qual torce. Pensei que o convite iria dificultar
ainda mais as tentativas de Marina em se engajar nas atividades do movimento, no entanto,
ela se mostrou bastante favorável. Ao fim, percebi que a oferta contribuiu para um interesse
que já não era muito motivador. Ao voltarmos do passeio, Marina contou que não
comparecera ao ato, pois teve que levar Bernardo em um Posto de Saúde pois ele acordara
com os olhos inchados e vermelhos, com suspeita de conjuntivite.
Estas duas situações ilustram o dilema pelo qual muitos moradores da ocupação
passam. Morar em um prédio ocupado e participar de um movimento social, ainda que
indiretamente, envolve uma carreira moral do sacrifício, afinal são a dificuldade e a
“ralação” que sustentam e oferecem legitimidade à luta. No entanto, dentro do sacrifício
que significa a vida coletiva, alguns arranjos familiares ficam impossibilitados de se
envolver como o esperado. Participar ativamente das assembleias, reuniões, atos e demais
rituais coletivos tem seu preço e uma carga que não é compartilhada por todos na mesma
medida. Em muitas situações as imposições coletivas, por mais democráticas que sejam,
interferem na organização da esfera doméstica de modo que, muitas vezes, não podem ser
realizadas.
Neste tipo de relação existe uma tensão permanente entre a militância, o mundo
político das regras sociais, dos compromissos e obrigações, e a esfera doméstica, o
ambiente familiar, da intimidade, dos afazeres cotidianos, do cuidado com os filhos... São
dois compromissos distintos, embora não incompatíveis, de lealdade: levar os filhos para a
passeata e engajar-se nas atividades propostas pelo movimento ou preservá-los do cansaço
e de possíveis situações perigosas?
Vale lembrar que não se trata aqui de analisar a postura de Marina como um mal
engajamento político ou denunciar uma má formação ideológica, mas mostrar que, como
moradora de uma ocupação, a sua forma de participação é por demais complexa e oscilante
para efetuarmos qualquer tipo de julgamento ou reducionismo. Sua ida ou não à passeata
aponta para muitas possibilidades e não só para razões de cunho político (a luta por uma
moradia digna, pela transformação social), de cunho material (ter um teto para morar, sair
do aluguel) ou de cunho moral (ganhar reconhecimento, dignidade, visibilidade social). Isto
não significa, entretanto, que as pessoas não falem em nome da “necessidade”, de
“interesses pessoais”, ou ainda do “compromisso” e “responsabilidade” com a ocupação, da

128
importância em desenvolver uma nova maneira de perceber o mundo a partir de uma ótica
da “militância popular”. “Pra mim, fazer parte da ocupação mudou totalmente minha visão
de vida, eu consegui ver o mundo por um outro ângulo”, reconheceu certa vez Marina. No
entanto, é preciso observar que sua motivação não se esgota aí, mas envolve uma série de
compromissos como o cuidado com a casa, a família, a preocupação com a segurança dos
filhos, o cansaço, ou até mesmo a falta de interesse naquele momento.
Na tentativa de superar o esquema dicotômico de análise dos chamados novos
movimentos sociais que costuma classificar os objetivos do “ator coletivo” como “razão
político-moral” e as motivações dos “atores individuais” como “razão material”, Quirós
(2009, 2006) propõe uma outra linha de raciocínio. Não se trata aqui de hierarquizar as
motivações e os objetivos em jogo ou mesmo de apartar instâncias que de forma alguma
estão separadas. Em que sentido desejar uma vida melhor para os filhos é menos “político”
e menos “coletivo” que a luta por mudança social? Em segundo lugar, alerta a autora, não
se pode dividir arbitrariamente o universo econômico (entendido como aquele que está
ligado à subsistência e ao interesse) do político (domínio que presumem ligado à vocação e
à ação desinteressada), uma vez que este último é marcado por relações de troca,
obrigações e retribuições. Como aponta Quirós (2009), não precisamos nos aprofundar
muito para mostrar que teorias fundacionais da antropologia já há muito localizaram na
troca (de bens tangíveis e intangíveis) a gênese e a manutenção dos laços sociais (Mauss,
2003; Lévi-Strauss, 1967; Malinowski, 1935).
Neste sentido, não se trata, de um lado, das lutas reivindicatórias do “ator coletivo”
e, de outro, das necessidades de subsistência dos “atores individuais”, mas de um universo
relacional, uma vez que um interfere no outro, ambos se constituem e se modificam
mutuamente. Afinal, a ocupação não é feita só por orientações de uma agenda militante,
mas por sujeitos que mobilizam tempo e energia, de forma muitas vezes prazerosa,
protagonizando o viver coletivo. Originalmente, podemos reconhecer que os moradores se
engajam por razões básicas: necessidade, sair do aluguel, fugir da favela, ter um canto
para morar, trabalhar no centro, dar uma vida melhor aos filhos são algumas respostas
dadas por eles para justificar a ida para uma ocupação. Mas, ao longo de suas trajetórias,
descobrem outras formas de engajar-se na luta, inclusive ideologicamente, outras maneiras
de viver. “Eu gosto de estar junto”, “gosto de ajudar”, “gosto de fazer parte também”,

129
“gosto de sair quando tem passeata”, “quando tem alguma coisa para ir, a gente vai, não
gosto de faltar não”, são as falas de alguns moradores.
Neste sentido, pode-se afirmar que o viver coletivamente não implica apenas em
dificuldades e riscos, mas envolve uma dimensão prazerosa que permeia a vida das pessoas
engajadas em movimentos sociais. No entanto, Quirós (2009) ressalta que alguns trabalhos
recentes que incorporam as “emoções” ao estudo dos movimentos sociais tendem a
categorizar estas investidas pela atração e o entusiasmo que podem ser gerados pela crença
numa causa, pela expectativa de mudar certa ordem de coisas ou pelo “empoderamento”
advindo da participação em ações de protesto (Jasper, 1998). Por isso, alerta que mesmo
que “a devoção a uma ‘causa’ ou o sentimento de ‘ganho de poder’ possa estar presente nas
situações vinculadas à ocupação”, é preciso chamar atenção para outra força mais primária,
que Florence Weber (1989) formula como o “prazer de fazer”, o gosto despertado no e pelo
próprio fazer (Quirós, 2009: 144-145). Para além de qualquer reducionismo analítico que
tenta explicar o engajamento de setores sociais populares pela busca de recursos de
subsistência, reconhecimento, pertencimento, “empoderamento”, resistência ou identidade,
é preciso chamar atenção para a experiência de determinados sujeitos que, a despeito de
suas contradições, acabam se envolvendo e, neste convívio, descobrem outros sentidos na
luta.
Analisando o processo de multiplicação das ocupações de terra que tomou lugar na
zona canavieira pernambucana, Marcelo Rosa (2011) chama atenção para o fato de que
estes processos não podem ser entendidos somente a partir dos atributos dos indivíduos,
nem tampouco a partir de um sistema ou de uma totalidade, mas sim a partir de uma rede
de interdependências que liga sujeitos e coletividades a um só tempo.
Neste sentido, Rosa argumenta que “as ocupações só ocorrem porque existem
pessoas dispostas a organizá-las e essa disposição os arrebata, apesar de terem interesses
completamente distintos, porque encontram nessa atividade uma forma eficaz de
significação social” (Rosa, 2011: 215). Deste modo, neste intricado jogo de engajamento
político, a participação no movimento pode aparecer como elemento positivo que confere
às pessoas significação social nos diferentes contextos em que circulam. Por exemplo,
como sustenta Rosa (2011), pessoas antes estigmatizadas ou muito jovens passam a ser
respeitadas na medida em que coordenam e organizam ocupações e acampamentos com

130
centenas de famílias, passando a se reunir com autoridades como prefeitos e representantes
do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA).
Assim, sem anular as premissas materiais que condicionam as tomadas de decisão
dos futuros moradores, é preciso atentar para as maneiras como as pessoas reconfiguram
suas necessidades a partir das exigências colocadas pelo movimento. Como bem apontou
Quirós (2009), no dia a dia, além da necessidade e do compromisso as pessoas
simplesmente se envolvem – seja numa “ação de protesto”, num “movimento social”, numa
cozinha coletiva, numa passeata, na limpeza de um corredor, “tirando” uma portaria,
cuidando de um filho, educando uma criança, mas nem por isso deixam seus sonhos de
lado. Tendo em vista um engajamento em sentido amplo (econômico, político, moral,
afetivo), os sujeitos aprendem novos códigos, negociam a partir das regras coletivas,
adaptando-as sem que seus interesses sejam corrompidos.
“Quando eu entrei no Vitória, eu fiquei com medo de eu perder um ano de
escola, era o último ano do segundo grau. Eu falei assim ‘como eu vou
estar numa ocupação, e como é que vão ficar meus estudos?’ Então, o que
eu aprendi é que se você não tiver esforço, coragem e ânimo para você
fazer as suas coisas, você não faz. E lá no Vitória, às vezes eu saía 5 horas
da tarde para estudar lá em Anchieta, mas nunca desanimei. Para mim, no
dia da minha formatura, eu chorei muito. Porque eu expliquei para os
meus professores que eu estava numa ocupação, eles acharam uma coisa
maravilhosa.” (Ritinha)

Para não cair nas armadilhas sedutoras dos modelos rígidos e revelar os múltiplos
arranjos que envolvem as práticas dos sujeitos entrelaçadas às demandas dos movimentos,
observa-se que, se por um lado, a existência de um prédio gerido e fundamentado em
princípios cujas normas limitam as ações dos sujeitos, por outro lado, esta mesma forma de
gestão coletiva permite uma rede de cuidados que pode ser acionada para diversas
finalidades. Para além de uma simples dicotomia família X coletivo, esta tensão merece ser
aprofundada pela sua relacionalidade, considerando as possíveis facilidades que envolvem
o processo de criação e acolhimentos das crianças em meio a um ambiente de convivência
comunitária.
Muitos moradores se sentem confortáveis em poder confiar no coletivo, saindo
tranquilas para trabalhar, pois sabem que o filho não vai sair do prédio a qualquer hora,
assim como podem recorrer à “escolinha” como atividade extra no processo de
aprendizagem. Por outro lado, muitos se queixam das dificuldades em ter que conjugar o

131
trabalhar fora, tomar conta dos filhos, fazer comida, arrumar casa com o fato de ter que
“tirar” portaria, fazer comissão de serviços, ir para reunião.
É neste fogo cruzado, nesta tensão e justaposição permanente entre o território
doméstico – referenciado pelas relações familiares – e o território político – relacionado
aos assuntos coletivos – que os moradores tecem suas redes, estabelecem relações, enfim,
definem as fronteiras morais que fazem parte do jogo político de uma ocupação. Aqui, não
poderíamos deixar de mencionar o papel simbólico que a casa e as mulheres,
particularmente as mães, ocupam como âncoras que balizam estes cruzamentos. Nesta
perspectiva, podemos descrever outra situação que demonstra o trânsito entre estes dois
territórios oriundo de diferentes práticas cotidianas de utilização dos espaços e dos recursos
da ocupação. Ainda que o morar em coletivo implique em dificuldades e desavenças, ele
pode abrir um leque de oportunidades que de outro modo não seria possível.
Bárbara é uma jovem de cerca de 30 anos, casada com Carlos e mãe de dois filhos,
Jaqueline de 11 anos e Leonardo de 7. Originária de uma pequena cidade do Piauí, muito
jovem fugiu de casa e veio para o Rio de Janeiro, de carona, com uma colega, pois o seu
maior sonho era conhecer a “cidade maravilhosa” e “melhorar de vida, até porque eu tinha
14 anos de idade, a minha mãe era lavadeira, lavava roupa para fora, não tinha condição de
comprar as coisas que eu queria ter.”
Antes de chegar à ocupação, Bárbara e sua família moraram de aluguel, em uma
comunidade no bairro do Caju, mas, segundo ela, “é horrível morar de aluguel porque você
paga e nunca é seu e não tem tranquilidade, porque está morando na favela, no meio do que
não presta.” Bárbara veio para o Rio de Janeiro “na intenção de crescer, de arrumar um
bom emprego”, mas devido às condições adversas com as quais se deparou (tráfico de
droga, aluguel, confusão com vizinho), resolveu voltar para o Piauí com toda a família.
Ficaram lá um ano e meio, mas seu marido decidiu retornar ao Rio pois não encontraram
boas condições de emprego, as poucas oportunidades que conseguiram eram atividades de
roça ou trabalho para alguma pessoa, o que não oferecia uma remuneração satisfatória.
Quando retornaram para o Rio de Janeiro, em 2007, começou o vínculo com a
ocupação. Primeiramente alugaram um quartinho na comunidade onde haviam morado,
mas, através da cunhada de seu marido, Bárbara ficou conhecendo um coordenador
estadual do MNLM que, naquela época, estava mobilizando as reuniões para a futura

132
Ocupação Manuel Congo. Bárbara participou das reuniões durante alguns meses e recorda-
se com certa nostalgia desta empreitada.
“Aí eu comecei a ir para as reuniões, todas as reuniões que tinham,
seminário que tinha eu tava dentro. Eu acho que eu fiquei uns três meses
indo em reuniões. Aí marcaram o dia da ocupação, foi quando a gente
ocupou o cine Vitória. Fizemos a ocupação, passamos uma semana, mas
não deu certo. E nisso eu só como ocupante mesmo, estava lutando por
uma moradia, para sair do aluguel, para sair de lá [favela], não gostava de
morar lá. Para mim foram duas vitórias, pelo fato de ter saído de lá e pelo
fato de ter saído do aluguel.” (Bárbara, grifos meus)

No começo, sua intenção era “sair do aluguel” e da favela, mas como Bárbara
sempre se mostrou muito interessada participando ativamente das atividades rapidamente
foi eleita como coordenadora municipal do movimento e como integrante da coordenação
da Juventude. Apesar da dupla saída ter significado uma “vitória”, morar na ocupação e
envolver-se em um projeto coletivo, principalmente como representante, também implica
em muito “sofrimento” e certos ajustes para aprender a conviver com pessoas de estilos de
vida e lugares diversos.
“Teve gente que ficou mais tempo do que eu, eu não sofri tanto, sofre da
ocupação em diante, na luta mesmo. Nas reuniões não, era mais depois
que ocupa mesmo, depois que ocupa a gente percebe quem é quem, tem
pessoas de várias facções, as pessoas estão acostumadas a conviver com o
jeito de lá [favela]. Eu moro em área de Comando Vermelho, eu acabo me
acostumando com aquele modo de vida, termino respeitando aquela
facção. Porque é um jeito que você encontra de viver lá.” (Bárbara)

Nesta mesma linha de raciocínio, o discurso de outros moradores corrobora o


vislumbre de, através da ocupação, oferecer uma vida melhor para os filhos, fugindo de
situações de risco e perigo. No entanto, por mais que esta decisão traga benefícios ela
oferece mudanças inesperadas. Nas conversas com vários moradores, as narrativas parecem
reconstruir uma mesma trajetória. Os percursos são marcados por uma sucessão de
habitações precárias, despejos forçados, aluguéis, residências improvisadas, acolhimento
esporádico de familiares, até culminar na chegada à ocupação. Como sinaliza Telles, “são
esses diferentes percursos urbanos e diferentes configurações da experiência urbana que
escapam aos indicadores sociais que medem e identificam os pontos críticos de
vulnerabilidade social no espaço da cidade” (Telles, 2010: 91).

133
Mesmo que não estejamos acompanhando integralmente estes percursos, é possível
explorar alguns fios dessas trajetórias. Caso contrário ficaremos presos às unidades pré-
definidas, uma vez que “a enquete estatística só ‘encontra’ o homogêneo. Ela reproduz o
sistema ao qual pertence e deixa de fora do seu campo a proliferação das histórias e
operações heterogêneas que compõem os patchworks do cotidiano (De Certeau, 1998: 46).
Neste sentido, é preciso recuperar, ainda que parcialmente, essas “trajetórias
indeterminadas”, aparentemente desprovidas de sentido porque não são coerentes com o
espaço construído, escrito e pré-fabricado onde se movimentam. Até porque estas táticas
cotidianas que circulam, vão e vêm, ondulações que saem da linha, se insinuam entre os
rochedos e os dédalos de uma ordem estabelecida que aos poucos vai erodindo e se
deslocando, as estatísticas não conhecem quase nada (idem: 97).
Sandra, uma senhora de meia idade, já morou em Senador Câmara, Engenho de
Dentro, Morro do Cantagalo, em Copacabana, e nas comunidades Chapéu Mangueira e
Babilônia, no Leme. Ela também foi outra a vislumbrar na ocupação uma oportunidade de
ter “uma casa que não fosse dentro do morro para criar o meu filho de uma maneira
diferente, não como eu criei os outros.” Atualmente Sandra mora na ocupação com seu
marido Justino, o filho Alex e dois netos. Apesar de reconhecer diferenças nítidas entre
estes dois universos, ela ainda tentou ponderar reconhecendo que na comunidade também
tem “muita gente boa”.
“Aqui não tem revólver, aqui não tem droga, pode até de vez em quando
ter umas desavençazinhas, uns desentendimentos, isso aí tem em tudo
quanto é lugar, mas por exemplo, arma, o meu filho não vê arma. E dentro
de comunidade, ele é uma criança curiosa, ele passa fica olhando as
coisas, ele me pergunta ‘mãe, o que era aquilo?’, ‘mãe, o que é isso?’.
Não é dizer que o morro não presta, dentro de comunidade tem muita
gente boa, dentro de comunidade sai médicos, sai enfermeiros, sai
engenheiros, são pessoas que estuda para ter uma vida melhor. Como
também de dentro da comunidade sai o porteiro, sai a doméstica, sai o
faxineiro, sai o auxiliar de serviços gerais, sai o copeiro. Existe o lado
bom e o lado ruim, nós que temos pensamento bom a respeito dos filhos,
da família, nós não queremos. Porque se você está dentro da comunidade
e você consegue um lugar melhor para morar, você vai continuar ali? Não,
você vai embora, vai morar em lugar melhor, é o que eu pensei quando
vim para cá.” (Sandra)

Considerando os múltiplos percursos realizados pelos moradores, o que interessa é


perceber como estas histórias entrecruzam-se na dinâmica da produção dos espaços e

134
territórios, resultando num verdadeiro mosaico de situações e trajetórias que se
corporificam em uma paisagem “em que mal se distinguem as fronteiras entre bairros
consolidados, áreas de ocupação ou ainda o favelamento que vai se espalhando por todos os
lados” (idem: 92). A produção do espaço passa, portanto, por um intricado jogo de atores e
campos de conflito e tensões entre as modulações mais genéricas e as práticas e
redefinições das dinâmicas locais.
Na época em que a conheci (outubro de 2008) Rita de Cássia, ou apenas Ritinha,
apesar da fala articulada e de uma surpreendente experiência de vida, tinha apenas 21 anos
e uma filha de três. Ritinha nunca tinha participado de nenhum movimento social e
começou a ficar receosa do lugar onde morava, em Anchieta, ainda mais com uma filha
recém-nascida. Para ela, era “como se fosse uma área de risco, tem tráfico, milícia. Então
eu tinha medo de onde eu morava. Quando a minha filha nasceu, eu fui para a casa da
minha mãe, caiu um rapaz dentro da minha casa, então eu comecei a ficar apavorada.”
Depois do episódio assustador, Ritinha foi convidada, pela mãe, para ir para a futura
ocupação Manuel Congo. A partir de sua decisão, teve que frequentar algumas reuniões,
pois, conforme explica:
“... antes de você ocupar passa por um processo, não é seleção, é de
conhecimento, como é que vai ter que se impor. Pessoas de comunidade
têm hábitos, seja de palavrão, seja de briga. Então tem umas reuniões que
vem explicando como é que você vai ter que se impor, se comportar
diante de outras pessoas que vai vir para te ajudar, para te apoiar.”
(Ritinha)

Ritinha recorda deste processo, de quase um ano de reuniões, como um período de


aprendizagem, de conhecimento sobre a “ética de como se impor”, de como “se comportar
diante de outras pessoas que você não conhece”. Como ela mesma sintetiza, “foram meses
de estudo, de estratégias para quando a gente entrasse nesse lugar.” Por mais que Ritinha
reconheça que não se trata de uma processo seletivo, não são todas as pessoas que suportam
um ano de reuniões sem a certeza da moradia. A seleção acaba se dando a partir da
disponibilidade e disposição das pessoas em acompanhar esta empreitada até o fim. E mais,
após a ocupação, parece que o desafio recomeça, devendo os ocupantes reaprender códigos
de postura, maneiras de se reportar ao outro, uma miríade de regras e normas de
convivência, preceitos, limites e responsabilidades.

135
“(...) quando nós viemos para cá, muita gente ficava falando que isso aqui
ia virar favela. Então a coordenação sempre bate na mesma tecla, por quê?
Tem gente que veio de comunidade que tinha mania, botava varal na
janela, a coordenação sempre ia em cima. Muitos empresários que
passavam aqui, apontava, ‘ah, são uma cambada de favelados!’, a gente
cansou de escutar isso. São os favelados, são os desocupados que estão
invadindo as coisas dos outros. Então, nós estamos fazendo de tudo para
mostrar que nós somos, vamos dizer, igual ou então melhor do que eles.”
(Ritinha)

Reconhecendo que há uma disputa por atribuir sentido à ocupação e aos ocupantes,
seja por parte das agências estatais, do movimento ou até dos transeuntes, Ritinha assim
como vários outros moradores, preocupados com esta constelação de noções, desenham
uma fronteira bem clara entre dois mundos, socialmente próximos, mas eticamente
diferentes. Diante de uma expectativa difusa dos circundantes (pessoas que passam na rua,
vizinhos de prédio, “empresários”, etc.) sobre o perfil das pessoas que devem morar num
prédio ocupado no centro da cidade, há toda uma preocupação em tentar responder a estas
suposições. Por isso, Ritinha continua:
“... muita gente por trás está falando ‘ah, ali vai virar uma favela, vai virar
um cabaré.’ Porque muita gente já chegou aqui na portaria ‘onde é a
terma? Como eu faço para ficar com uma de vocês?’ Muitos homens já
chegaram aqui, perguntando na portaria ‘como eu faço para arrumar uma
menina aí dentro? tem um cantinho para alugar aí não?’ Porque tem
pessoas que não levam a fé que a gente vai mudar, transformar. Então, nós
estamos tentando mostrar para eles que não é simples ato ‘pode lá, entra
lá.’” (Ritinha)

O discurso de Ritinha demonstra toda a preocupação dos moradores em tentar


comprovar que, embora sejam tratados como “invasores”, “favelados” e “desocupados”,
suas condutas não têm e não devem ter conexão com qualquer comportamento que possa
ser caracterizado enquanto tal43. Ao invés de focar o olhar sobre o morador (ainda que ele
evoque uma coletividade), é preciso pensar o processo de acusação e de rotulação como um
fenômeno que envolve múltiplos atores e que acaba instituindo uma imagem deteriorada
para determinadas pessoas. É neste sentido que Becker (2008) recomenda que o “desvio”
seja encarado como um fenômeno eminentemente político (pois faz parte de uma relação

                                                                                                               
43
Diversos autores (Goffman 1978, Velho 1979, Becker 2008) já chamaram atenção para o processo através
do qual algumas pessoas são tratadas como “criminosas”, “esquisitas”, “viciadas”, “doentes mentais”, embora
não necessariamente se reconheçam como tal ou mesmo não tenham conexão com qualquer coisa que possa
ser caracterizado como “desviante”.

136
social, de uma disputa por identidades) e não apenas estatístico ou como sintoma de
desorganização social. Nesta perspectiva, o desvio não é uma qualidade inata, muito menos
algo que existe em si mesmo, mas ele é criado a partir do momento em que regras e sanções
são elaboradas para decretá-lo que assim o seja.
Assim como na Manuel Congo, todos os grupos sociais fazem regras e definem
situações e comportamentos a eles apropriados, legitimando algumas ações como “certas” e
proibindo outras como “erradas”. Neste caso, se os moradores de uma ocupação não estão
apropriando-se da cidade de acordo com os padrões considerados “certos”, “legais” e
“formais” serão encarados como outsiders. E, do mesmo modo que são acusados de
“favelados” o mesmo termo é usado por eles para referir-se a outro contexto em que as
pessoas não têm regras, onde é “marido que bate em mulher, mulher que bate no marido”,
“mãe que espanca filho”, “gente querendo tirar satisfação com você”, “caveirão que já entra
matando”. Esta situação de total anomia é sintetizada por uma das moradoras: “morar na
rua é quase a mesma coisa que morar na favela, passa dia e noite ali, no meio do que não
presta, vendo tudo que não deveria estar vendo, aprendendo e fazendo também”.
Estas falas demonstram que os rótulos são maleáveis, passageiros, históricos
justamente porque as relações de acusação mudam, os valores se transformam, renovam-se
tendências. O que pode ser considerado transgressão em um contexto pode não o ser em
outro. E mais, as pessoas sabem que podem jogar com as percepções, invertendo os valores,
acionando símbolos de prestígio e reconhecimento social, mesmo que o campo de disputa
seja politicamente desigual.
Vale ressaltar que, neste confronto de acusações, é preciso se proteger, assegurando
imagens confiáveis, seguras e moralmente legítimas, dando provas de sua dignidade e boas
maneiras. Afinal, os sujeitos, através de suas experiências, percebem que existem áreas de
comportamento menos expostas e, portanto, através delas poderão agir como qualquer
cidadão comum44. Assim, se por um lado, Ritinha reconhece que “as pessoas acham que a

                                                                                                               
44
Este recurso também foi identificado por Velho (1979) que observou que diante do estigma por residir em
um ambiente de má reputação, mas divididos pelo status e prestígio que morar em Copacabana proporciona,
os moradores de prédios considerados como “balanças” encontraram maneiras para enfrentar esta contradição.
Um destes artifícios foi achar “bodes expiatórios” que puderam ser apontados como responsáveis pelos
problemas dos edifícios. Assim, surgiram acusações contra pessoas que podiam, por sua vez, apresentar sinais
de “impureza”, o que fez com que certos moradores desenvolvessem uma “atitude moralista militante” para
afirmar sua condição de pessoas “de família” e “direitas”.

137
gente, vamos dizer no popular, somos porcas, vive numa área degradada, sem limpeza, sem
ter uma regra a cumprir”, por outro, usando mecanismos de contra-resposta, ela sabiamente
enaltece a imagem do “bom cidadão”, ressaltando que “nós também somos gente, nós
também trabalhamos, nós também fazemos compra, nós também pagamos nossas dívidas.”
Deste modo, ainda que residam em uma ocupação (o que também pode ser
passageiro), estas representações buscam um atestado moral de que os ocupantes também
trabalham, são consumidores, não estão desocupados, pagam suas contas e, portanto, são
cidadãos como qualquer outro. E mais, o fato de morarem em tal contexto não significa
estarem destituídos de regras e sinais de organização, mas, ao contrário, através do
imperativo da coletividade eles tiveram que adquirir um outro tipo de comportamento,
práticas regradas de gestão do espaço, maneiras adequadas de interação, uma linguagem
apropriada, limites, responsabilidades.

“(...) nossa ocupação tem regras, tem a carta de princípios que nós temos.
Marido que batia em mulher, tem em favela, aqui não pode, nem a mulher
bater no marido, nem o marido bater na mulher. Criança que era
espancada na favela, então, a coordenação falou assim ‘aqui não vai ter
isso’, por quê? Quando tinha reunião, as pessoas cansavam de falar ‘não,
porque na favela tem mãe que espanca o seu filho, tem marido que bate na
mulher.’ Então, essa carta de princípio foi feita conforme as pessoas
vinham falando, como queria que a nossa casa fosse diferente. Tem regra
para sair, tem regra para chegar.” (Ritinha, grifos meus)

Assim, a “casa diferente” idealizada por Ritinha deve ser aquela em que não há
“briga e confusão por qualquer coisa”, mas que prioriza a discussão e o diálogo, por mais
trabalhoso que seja. Este ambiente, mesmo com todas suas desavenças, é de longe, bem
mais pacífico, pois “se fosse na favela, um ia puxar a faca para o outro, um ia pegar a arma
e ia matar. Então aqui é diferente, nós tentamos fazer coisas diferentes, estar todo mundo
unido, todo mundo junto.” Quando eu questionei Ritinha sobre o que tinha mudado em sua
vida em um ano de ocupação, ela rapidamente emendou:
“Bem, o que mudou na minha vida foi essa união, porque onde eu morava
- eu morei desde os dois anos - é como se fosse um lugar... não é regra,
mas vizinho chato, não tinha lugar para brincar, tinha que brincar no meio
da rua, com carro. Depois que passou a ter esse negócio de tráfico, meu
irmão começou a ficar com medo, ‘não vai mais pra rua!’ Mercado, tinha
um mercadinho perto de casa, mas tinha muita gente que falava: ‘oh,
cuidado, tem tarado ali.’ As pessoas sempre com medo de fazer... pagar
uma conta, ir no mercado. E aqui não, aqui é diferente, porque a gente não
138
vê as pessoas falando ‘oh, ali naquele lugar tem assim... não vai lá não.’
Não, é todo mundo assim ‘se você quiser ir, eu vou contigo’, tem
companhia para você. É um se aproximando do outro.” (Ritinha)

A tentativa insistente em demarcar fronteiras entre estes dois universos,


aproximando a ocupação de um contexto de “regras”, “união”, participação, ao contrário da
favela que é taxada de “insegura”, “violenta”, “desorganizada”, vai de encontro, de certa
maneira, aos anseios da Carta de Princípios. Ainda que as regras, neste documento, não
sejam tão claras, existe toda uma expectativa para que os ocupantes assumam sua condição
de partícipe de um movimento social e, consequentemente, de corresponsáveis por todo um
processo de transformação social.
No entanto, esta adesão tem seus custos. Por mais que Bárbara sinta-se feliz e
orgulhosa em representar um cargo de coordenação, esta função implica em determinadas
responsabilidades que afetam sua rotina, demandando tempo e paciência para lidar com as
questões rotineiras e inesperadas.
“(...) Aí teve que eleger uma coordenação daqui da ocupação, meu nome
estava no meio dessas pessoas. Tudo bem, eu aceito, porque eu gosto, eu
gosto de ajudar, eu gosto de fazer parte também, às vezes enche o saco,
porque a gente enche muito a cabeça e não ganha nada, assim, não ganha
nada em dinheiro. Porque esquenta a cabeça mais do que se fosse um
trabalho, mas eu gosto, às vezes ele [marido] fica reclamando comigo,
mas eu gosto de ajudar, gosto de sair quando tem passeata.” (Bárbara)

O discurso de Bárbara e de Ritinha sintetizam bem os dilemas pelos quais passam


as pessoas que moram em uma ocupação. Para diversos ocupantes o objetivo principal é
sair do aluguel, fugir de um ambiente hostil como a favela, oferecer uma vida melhor para
os filhos ou mesmo estar próximo ao local de trabalho. Contudo, ao se deparar com um
projeto político mais amplo, conforme o movimento propõe, os impasses, dificuldades e
problemas começam a aparecer.
“Aqui, a gente tem muitos problemas, então existe uma carta de princípio.
Na carta de princípio diz para a gente não fazer confusão, briga de homem
querendo bater em mulher, de mulher querendo bater em homem. A gente
queria criar uma comunidade e quando eu cheguei eu já sabia disso. Uma
comunidade que a gente espera que tenha liberdade de deixar nossos
filhos à vontade. Então, sempre que tem uma confusãozinha, alguma
coisa, a gente chama a coordenação para conversar com essa pessoa. Para
poder evitar... a gente quer uma vida que dê para todo mundo viver tudo
junto, sem nenhum problema, sem nenhuma desconfiança, sem medo de
falar o que pensa.” (Bárbara)

139
Ao mesmo tempo em que Bárbara, ecoando as próprias falas dos coordenadores,
projeta uma “comunidade ideal”, sem medo, brigas, com liberdade, confiança e
mutualidade garantidas, pelo menos formalmente, ela reconhece que existem problemas e
muita dificuldade para conciliar os projetos familiares com o ambiente coletivo, de modo
que possibilite um ambiente em que “todo mundo viva tudo junto”.
A tensão entre um projeto político de moradia e os arranjos familiares também
aparece em outro episódio vivido por Bárbara. Por tratar-se originalmente de um prédio de
escritórios, os apartamentos não possuem banheiro, pia ou qualquer tipo de encanamento
para instalar, em seu interior, uma máquina de lavar roupa. Qualquer atividade dessa
natureza é compartilhada em um banheiro coletivo, situado em cada andar, em uma pia para
lavar louças ou em uma ou duas máquinas de lavar roupa que ficam em um canto do
corredor também para uso comunitário. Certa vez, Bárbara comprou um “tanquinho” para
lavagem de roupa e o colocou no corredor, disponibilizando-o para que todos pudessem
utilizar. No entanto, ao retornar de uma viagem que tinha feito para a sua terra natal,
deparou-se com o mesmo em péssimo estado, atribuindo o estrago a uma moradora do
andar.
“O meu tanquinho era novinho, não tinha nem uma semana de uso. Eu
peguei, coloquei no coletivo, no espaço coletivo para todo mundo usar.
Quando eu viajei para o Piauí, ela pegou, ela usava tanta roupa, mas tanta
roupa ali dentro que acabou estragando o meu tanquinho. Deixava roupa
de molho dentro do meu tanquinho, fazia o meu tanquinho como bacia.
As outras pessoas que precisavam usar, não usavam porque acordavam
tinha roupa lá, passava o dia todo, tinha roupa lá. Aí quando eu cheguei
estava desmantelado.” (Bárbara)

Diante desta situação, Bárbara foi se reportar aos coordenadores do movimento que
reconheceram que o tanquinho não tinha conserto, mas que ela deveria ficar de fora da
compra de um novo, pois “já tinha feito a sua parte no coletivo” e não teve culpa pois ela
não estava nem usando quando o mesmo foi “desmantelado”. Diante da decisão tomada
pelos coordenadores, a pessoa, acusada pelo feito, foi “tomar satisfação” com Bárbara que
imediatamente rebateu: “sabe qual é o problema, o problema é que você não me considera
como coordenadora!” A pessoa concordou e Bárbara ficou sem palavras e relativamente
surpresa, talvez mais pela sua reação do que pela assertiva da vizinha.

140
“Isso se fosse em outros tempos o negócio ficava feio, nunca levei
desaforo para casa, nunca cheguei ao ponto de falar “então tá, tudo bem.”
Eu não fazia isso e hoje em dia eu consigo fazer. Embora depois eu fique
me tremendo, passando mal, porque eu fico mesmo, eu fico agoniada.
Mas hoje em dia eu consigo deixar passar, mesmo passando mal. Porque
eu quero chegar um dia poder enfrentar a situação, só de chegar ficar
debatendo com a pessoa, conversando, falando. Não quero chegar ao
ponto de querer voar em cima, se não voar em cima, ficar passando mal,
eu não quero isso, eu acho que eu ainda vou conseguir muito mais. E foi
aqui que eu descobri tudo isso.” (Bárbara)

Por mais que a convivência com as outras pessoas na ocupação seja constrangedora
para Bárbara, causando-lhe agonia e tremores, também lhe proporcionou um aprendizado e
uma mudança em seu comportamento. Ao ser questionada sobre o papel da ocupação em
sua vida, ela foi enfática:
“Para mim foi tudo, eu mudei bastante, eu era... eu ainda sou muito
rebelde, mas eu era muito mais. Eu gostava de baile funk, embora eu não
gostasse de bandido, mas eu gostava de ir, sexta-feira eu ia para o baile
funk, eu bebia cerveja demais e agora eu paro mais para pensar. Não que
eu parei de beber, eu ainda bebo, mas agora eu tenho mais limite. Antes
eu não pensava, se eu tivesse 50 reais no bolso, eu gastava os 50 reais
numa noite, se eu tivesse mais, eu gastava mais. E aqui eu aprendi a ter
limite, eu aprendi a quando chegar alguém falar alguma coisa,
principalmente fazendo parte da coordenação. Muitas vezes, mesmo que a
gente tenha vontade de voar em cima da pessoa, na verdade é melhor a
gente se segurar que a gente vai ganhar muito mais. Aprendi a dar mais
uma segurada nos meus impulsos, aprendi a dar mais valor às amizades,
aprendi a ser mais sincera com as pessoas, e muita gente aqui dentro. Não
é só eu não.” (Bárbara)

Ainda que os ocupantes estejam imbuídos de um ideal de coletividade que impõe


regras e limites e que a entrada na ocupação tenha representado uma reviravolta em suas
vidas, Bárbara reconhece que nem todos os moradores conseguiram se desvencilhar dos
hábitos que tinham dos seus lugares de origem.
“Mesmo na época que eu morava lá [favela] nunca tive isso. Tem muita
gente que saiu de lá, mas não conseguiu fazer nenhuma coisa que eu fiz,
não conseguiu aprender aqui dentro, só está aqui dentro mesmo. Então,
saiu de lá, mas o lugar continua dentro da pessoa, mais ou menos isso.”
(Bárbara)

As pessoas que foram morar na ocupação são oriundas de diversas comunidades e,


ao se depararem com outras lógicas de organização e de estilo de vida, sentem certo
desconforto e dificuldade em assimilar estes novos valores comunitários. No entanto, por
mais difícil que seja incorporar esta mudança há, no discurso de diversas pessoas, uma
141
tentativa de distanciar-se do universo da favela, já que na ocupação não se vê “pano
pendurado pela janela, panela em cima da janela”. Estas estratégias demonstram que as
opções e as atividades que são feitas na ocupação em nada assemelham-se ao universo do
“tiro na mão, tiro no pé.”
“... o morador dali se acostuma com isso, porque tudo que acontece, em
vez de ele tentar resolver com a pessoa..., Aqui a gente discute tudo,
depois a gente chega num acordo, lá não, lá leva para o tráfico de drogas e
o tráfico de drogas age da maneira que ele sabe agir, que é chegar lá e
matar. Aqui já é a coordenação que resolve as coisas, a gente chama para
resolver a situação, não para piorar a situação.” (Bárbara)

A fala assustada de Bárbara demonstra não só uma aversão a uma tensa realidade,
por muitos naturalizada, mas sobretudo uma crítica a uma forma de resolução de problemas
que deve ser superada no contexto da ocupação, caso contrário sua própria posição no
prédio pode ficar ameaçada. Por mais que esta nova realidade implique em certos
desajustes com as prerrogativas do movimento, não se equipara à “covardia” a qual ela se
refere de levar os problemas para o tráfico resolver.
Este processo de construção de uma nova realidade física, política e moral também
foi sintetizado por um coordenador do movimento. Na ocasião, ele esclarecia a dificuldade
pela qual os moradores passam ao ter que assumir responsabilidades, abrir mão de certos
hábitos, construindo novas amizades, novos valores e aprendendo a negociar e conviver
coletivamente.
“Ser sujeito político gasta tempo. Tem que entender que ele tem que
assumir as responsabilidades das coisas, entender que é um trabalho
voluntário, saber que ele tem que assumir, fazer amizade, ficar aqui,
deixar de arrumar emprego para ficar aqui, igual vários deles ficam.
(...)Tem que querer abrir mão de um monte de coisa. Também abrir mão
do que está construído dentro deles para se deixar um outro pensar. O
pensar deles é o pensar geral, nesses últimos tempos a batalha é para
desconstruir o que está na cabeça, os valores para depois construir. Para
construir outros valores. É difícil pra caramba.” (Ângela)

Parece que todos, moradores, militantes e coordenadores reconhecem a dificuldade


que é morar em uma ocupação e quão penoso é engajar-se num projeto coletivo de
moradia. As vivências são diversificadas e, conforme visto, cada pessoa oferece uma
resposta aos desafios que enfrenta. A partir das situações observadas, podemos perceber
como a moradia vai ganhando contornos morais que reconfigura as prerrogativas políticas.

142
Marina prioriza a tranquilidade dos filhos e cogita, como já sinalizou, a possibilidade de ter
uma “casa só sua”, Ritinha ressalta o medo de um lugar impregnado pela “violência e
tráfico” e a tranquilidade “em ter um canto para morar” e Bárbara, mesmo reconhecendo as
dificuldades, reforça a importância que a ocupação provocou em sua vida.
As personagens aqui comentadas não podem ser situadas em planos opostos muito
menos em percepções reducionistas, uma vez que são pessoas que fazem seus percursos, de
maneira muito complexa, nas tramas do mundo social. Deste modo, as categorias habituais
que pautam os debates recentes (“carentes”, “famílias em situação de risco”) são estreitas
demais para colocar em perspectiva os dilemas que o morar em uma ocupação provoca.
Elas não correspondem às figuras canônicas do militante político muito menos às
tipificações correntes dos “pobres” e “excluídos”. Mas, ao contrário, suas trajetórias dão luz
à teia de relações e campos de força que (des)estruturam o mundo social. Através de
maneiras muito particulares de gerir suas casas, famílias e filhos, elas acabam por dar uma
outra roupagem ao território doméstico. Assim, é preciso recuperar as manobras
conscientes de que lançam mão para lidar com as experiências diárias numa configuração
societária repleta de desafios.
“Eu acho que vale muito a pena, eu acho que se a maioria das pessoas
tivesse a visão que eu tenho... porque é uma maneira de você sair do
aluguel e de aprender muita coisa, como eu aprendi, de lidar com muitas
situações. Não só pela moradia, mas por tudo que a gente termina
aprendendo. Pelas lutas que a gente termina... a gente entra no
movimento, achando que a gente vai lutar só por moradia ou achando que
a gente vai lutar só porque a gente quer um canto para dormir sem estar
pagando. E a gente termina descobrindo que o que a gente quer não é só
moradia, que tem outras coisas que a gente tem vontade também...”
(Bárbara, grifos meus)

Se o estar em uma ocupação vai muito além de um “canto para dormir sem estar
pagando”, a tomada de decisão passa longe de uma consciência ideologicamente pré-
definida, abrangendo por vezes a satisfação de uma necessidade emergencial. As ocupações
parecem estar no campo de possibilidades das camadas populares, justamente porque as
política públicas de habitação sempre foram muito precárias para este segmento. Neste
sentido, ocupar é uma possibilidade a mais na vida das classes trabalhadoras.
Conforme sintetizou Bárbara, se ela tivesse condições financeiras, compraria um
apartamento em algum outro lugar. “Em qualquer lugar que fosse, eu não estaria aqui

143
dentro. A gente vem pela necessidade de morar, não é só porque a gente quer aventura, a
gente não vai ficar se arriscando. Porque quando a gente entra para ocupar, qualquer coisa
pode dar errado e pode acontecer uma tragédia.”
O imperativo da necessidade é a grande razão que faz com que estas pessoas
venham a aderir ao movimento. Certa vez, ao saírem do prédio para um ato, uma mulher,
ao olhar o pequeno tumulto, comentou: “eles, tem que sair daí, esse bando de invasor, esse
povo não tem o que fazer, olha as crianças sofrendo no meio do sol quente!” Bárbara ficou
perplexa com o comentário e num tom um tanto raivoso, recordou desse episódio alertando
que “se essa desgraçada soubesse o que eu sou capaz de fazer para sair de um aluguel, se
ela soubesse como eu sofro para pagar aluguel todo mês, ela não estaria falando isso!”
Como esclarece Betina, outra moradora, “as pessoas pensam que é fácil, que é alguém
bonzinho que vai dando os lotes, mas não, tem que entrar para lutar, para conquistar. É ela
que vai lutar para conquistar o espaço dela. Nós juntos que vamos lutar para tirar do
governo, não vai vir de mão beijada.”
Os custos desta empreitada são enormes, as pessoas arriscam suas vidas, abrem mão
de projetos pessoais, alguns desistem, outros se engajam na luta e muitos reconhecem o
esforço que a vida em coletividade suscita. A adesão ao movimento se dá de múltiplas
formas, justamente porque os projetos de vida são diferentes. A tensão em abraçar a luta ou
preservar a intimidade do lar é constante. No entanto, não se trata aqui de pensar a
coletividade como um entrave à realização pessoal, uma vez que estes projetos não são
necessariamente incompatíveis com o universo da ocupação. Os moradores,
conscientemente ou não, não substituem um projeto por outro, mas procuram conciliar
práticas familiares e projetos coletivos desenvolvendo novos arranjos para a casa. Estes
princípios – projetos familiares e compromissos coletivos – não operam de forma
excludente, mas convergem cotidianamente, por meio de tensões, dilemas e redes de
solidariedade. Por isso, é preciso refletir acerca da participação no movimento como uma
possibilidade que ganha sentido na relação (e não anulação) com outras esferas. Analisando
as múltiplas formas de se engajar em uma organização piquetera, Quirós (2009) sustenta
que:
“... a proposta não significa desagregar e substituir o sujeito ‘movimento’
pelo sujeito ‘piqueteros’, mas partir do pressuposto relacional de que não
podemos compreender como as pessoas vivem seu engajamento numa

144
organização piquetera ou como se dispõem a participar dessas grandes
ações de protesto, se não nos voltarmos também para o que acontece além
dos limites da organização e fora do piquete, ou seja, se não inscrevermos
essa experiência num conjunto mais amplo de relações sociais e
possibilidades de vida” (Quirós, 2009: 129).

Se olharmos mais atentamente, o “doméstico”, em uma ocupação urbana, é


“público” na sua essência. Estas esferas estão o tempo todo dialogando, os assuntos de
ordem coletiva impregnam as casas das pessoas, chamando-as para o movimento. A casa,
por sua vez, não é organizada em confronto com o universo político, mas a partir de táticas
de improviso, trocas, disputas e negociações, em que ambos se metamorfoseiam. Neste
sentido, as maneiras de arrumar a casa, educar os filhos, lavar a roupa, cozinhar, estudar,
festejar, não visam apenas capitalizar proveitos próprios assegurando uma independência
em face das circunstâncias, mas estão articuladas em cima da conjuntura, considerando o
projeto coletivo, e não em confronto com ele.
O interessante, portanto, não é perceber o ponto em que doméstico e político se
polarizam, mas como estas esferas são rarefeitas e em que medida se entrecruzam, como a
organização coletiva da ocupação atua na regulamentação dos comportamentos dos
ocupantes, condicionando as relações familiares e como estas últimas também interferem
nas instâncias formais de deliberação. Neste sentido, as práticas dos moradores apresentam
fronteiras fluidas e nebulosas entre a casa e a moradia, revelando uma situação eivada de
apelo político: o universo moral dos cuidados. Aqui entende-se por cuidado desde o tipo de
atenção dispensada à casa, aos filhos, à família, à criança, incluindo o alimentar, o criar ou
ainda as relações de interdependência, do cotidiano. Pode estar marcado pelo gênero, pelo
zelo ou pela falta dele, ou ainda ser realizado entre uma rede de parentes, amigos, vizinhos
e instituições.
Assim, temas aparentemente específicos ao território doméstico como educação das
crianças, atenção aos mais velhos, obrigações, brigas de família, ciúmes e confraternizações
têm forte apelo na constituição do território político da ocupação. Neste sentido, trabalhar
com a cadeia “relacionalidade-cuidado-responsabilidade” pode ser útil para pensarmos as
múltiplas conexões entre tentativas de identificação e fixação de sujeitos, práticas
cotidianas de gestão dos espaços, estratégias políticas de mobilização dos ocupantes, assim
como políticas públicas que procuram normatizar esses valores e ações.

145
2.3 – O universo moral: cuidados, crianças, família

Ter tido um filho no meio do doutorado pode parecer, para alguns, motivo de
irresponsabilidade, desejos prematuros, insensatez. No entanto, para mim e para a pesquisa
que eu estava implementando, representou uma porta de entrada no universo da gestão
familiar e da rede de cuidados. No início da pesquisa (final de 2008 e início de 2009),
quando ainda estava grávida, várias pessoas vinham comentar comigo acerca da gestação,
se faria parto normal ou cesariana, por quanto tempo amamentaria, se já tinha organizado o
enxoval do bebê e se já havia escolhido o seu nome. De fato eu me mostrava bastante
interessada não só pelos assuntos sobre maternidade e educação dos filhos, mas porque
parecia estar estreitando os laços com meus interlocutores não só como pesquisadora, mas
como mãe.
Na retomada do campo (início de 2010), minha presença era questionada com
interpelações do tipo “como vai o neném?”, “com quem ele está?”, “por que não traz ele
pra cá?”. Depois de muita insistência, por parte dos moradores e também de minha
orientadora, reconheci que a ida de Guido para a ocupação não atrapalharia o desenrolar da
pesquisa, muito pelo contrário, abriria novos caminhos, facilitando, por vezes, a entrada em
alguns territórios. Assuntos de caráter íntimo seriam, agora, socializados com maior
desenvoltura tanto por mim quanto pelas pessoas ali envolvidas. Essa maior equidade foi
confirmada quando eu também comecei a ser questionada sobre a maneira como educava
meu filho.
Em certa ocasião, Guido, envolvido em uma disputa de um brinquedo com uma
criança, “partiu para a briga”, empurrando o oponente. Observando que os dois não
estavam conseguindo resolver o conflito, uma vez que o mesmo só aumentava, procurei
interceder, colocando-o afastado e chamando sua atenção para o comportamento
inadequado. Durante o episódio, algumas mulheres presentes chegaram a comentar “Isabel,
ele não entende o que você está falando!”. Muitas acharam curioso e até frouxo demais o
fato de eu recorrer ao diálogo ao invés de apelar para um tapa ou um castigo mais severo e,
portanto, mais eficiente. Afinal, o que estava em jogo nesta cena? Maneiras de se educar,
de cuidar, de disciplinar, de gerir as crianças, um universo eivado de carga política até
então pouco aparente para mim. Aos poucos fui percebendo que é nesta malha cotidiana

146
que a luta do movimento vai ganhando sentido, que a ocupação se concretiza e se realiza de
maneira muito sutil e revigorante.
Em sua pesquisa realizada no Morro do Palácio, em Niterói, Camila Fernandes
(2011) analisa o cuidado de crianças realizado entre redes de amigos, crianças, parentes,
vizinhos e instituições. Por cuidados a autora entende desde o alimentar, o criar ou ainda as
relações de interdependência, do cotidiano, ou apenas relações. Neste sentido, ela busca
pensar este leque de possibilidades envolvendo o cuidado, mostrando os diversos conteúdos
do que se costuma chamar de doméstico, passando do invisível para o visível, fazendo
aparecer toda uma gama de tarefas escondidas sob a rotina, aparentemente sem relevância
política e acadêmica.
Da mesma maneira, quando descrevo situações cotidianas como levar ou não os
filhos a um ato do movimento, disponibilizar ou não seu tanquinho para o coletivo,
emprestar ou não uma panela de pressão para a vizinha, pretendo dar sentido e relevância
política a sujeitos e situações que podem parecer desmotivadores aos olhos dos militantes
engajados ou de pesquisadores seduzidos pelos grandes eventos ou rituais excepcionais. Em
um movimento contrário, minha intenção é resgatar, das franjas da hierarquia, aquilo que,
de tão corriqueiro, parece monótono e sem relevância. Talvez por detrás das conversas
aparentemente despretensiosas e das atitudes banais, podemos (des)montar uma rica rede de
convívio, relacionalidades, cuidados, proximidades e distâncias que envolvem a política do
cotidiano. Ou, como sugere De Certeau (1998), estas engenhosidades vão desembocar em
uma politização das práticas cotidianas que merecem ser analisadas. Este tipo de
empreendimento metodológico corrobora com a proposta de “prospecção” delineada por
Telles (2010):
“Descrição não é uma transcrição da realidade, muito menos um
inventário ou coleção de casos interessantes. É um trabalho de construção
que passa pelo modo como se estabelecem ou se fazem ver conexões e
relações que, antes, sob um outro jogo de perspectivas, não faziam parte
da cartografia social ou, então dos critérios de pertinência e relevância
postos pelas perguntas que se endereçavam ao mundo. Hoje, porém, são
outras as perguntas e talvez sejam estas que ainda têm que ser mais bem
formuladas” (Telles, 2010: 29).

Ao desenvolver pesquisa em uma favela, Fernandes (2011) esclarece que, neste


contexto, as casas surgem como um expressivo lugar de cuidados, no qual as crianças são

147
compartilhadas através da troca e do exercício de compartilhamentos recíprocos. Se neste
circuito de intensa reciprocidade, “tudo é parente”, a autora faz questão de enfatizar que
narrativas de distinção se realizam incessantemente, marcando a exclusividade de pessoas
que não se misturam ou não querem se misturar.
“Se existe na favela uma instância da proximidade, na qual as relações
entre pessoas podem ser facilitadas dada a geografia local, por outro lado,
a aproximação dos varais, cheiros, músicas, corpos, pessoas e casas não
implica qualquer coletividade ou semelhança, qualquer uso substantivo da
pretensa proximidade desfalece e a etérea ilusão de uma
comunidade\sociedade se encerra” (Fernandes, 2011: 21).

A despeito das pessoas da ocupação insistirem em se afastar da imagem de


“favelado” e oporem veementemente o contexto da ocupação à sociabilidade na favela, a
analogia ainda parece pertinente dada a linha tênue entre o que é coletivo e o que é familiar.
Na ocupação, a casa das pessoas aparece como um lócus privilegiado de relações
familiares, vivências de intimidade, cuidados de crianças, encontros de vizinhança e,
porque não, atualização do coletivo. Se na favela algumas casas vão além da sua forma-
habitação virando bares à noite, salões de beleza, padarias e barracas, na ocupação, as casas
dos ocupantes também se metamorfoseiam, deixando antever interferências de cunho
coletivo. Por exemplo, a casa da coordenadora é uma categoria à parte, uma vez que não é
nem um apartamento como outro qualquer, mas também não chega a ser a “sede” do
movimento. Trata-se de um lugar onde as pessoas circulam, quem é visitante ou está
conhecendo a ocupação pela primeira vez (como foi o meu caso) vai parar lá. As paredes
estão cheias de cartazes, bandeiras, os papeis jogados por todos os lados. Funciona ainda
como local onde as pessoas costumam pedir orientação, conselho, apoio financeiro e até
emocional, o que faz com que a coordenadora transforme-se em referência para além do
cargo formal, sendo uma espécie de “conselheira”. Existem ainda a casa da pessoa que sabe
cozinhar bem, para onde se costumam dirigir várias pessoas em busca de uma boa refeição,
daquela que empresta utensílios de cozinha, da costureira, daquela que toma conta das
crianças e as que servem até para cultos religiosos.
Por isso, casas não se resumem à partilha de recursos, de comida, do lazer, ou das
brigas de família, elementos que já possuem amplo significado político, mas também são o
lugar no qual o parentesco é feito e no qual o contato é atualizado. Como explorado por

148
Florence Weber45 (2005, 2006), casas são instâncias nas quais o parentesco se atualiza a
partir do convívio e da comensalidade, sendo lugares de agenciamento de sentimentos,
bens, afeto e dinheiro, na chamada gestão coletiva da vida.
Nesta perspectiva, casas envolvem solidariedades familiares, ajudas, situações de
convívio, pertencimento, assim como partilha de recursos, reciprocidade, obrigações e
dívidas envolvendo toda uma economia doméstica. Este conjunto de obrigações morais e
políticas, como tomar conta de crianças, idosos e pessoas com deficiência serve não só para
atualizar o parentesco mas fazem parte da gestão cotidiana e coletiva da moradia.
Em vários contextos, o exercício dos cuidados tem uma considerável significância
na vida das pessoas, envolvendo um conjunto de casas, pessoas e objetos através dos quais
as relações de parentesco, vizinhança e amizade adquirem sentido e o cuidado se realiza. A
partir dos cuidados, podemos observar uma significativa produção de afetividades,
proximidades e distâncias, enfim, ambivalências presentes no idioma emocional e familiar.
Quando ainda estava grávida de seu segundo filho, Marina recebeu um recado
enfático de sua sogra, Aparecida: “olha, eu não sou avó, eu ainda vou ser avó!”. Diante do
aviso proeminente, Marina disse que soube, naquele momento, que não poderia contar com
sua sogra para ajudar a tomar conta de Bernardo. Com seu segundo filho já nascido, Marina
resolveu retomar os estudos e Aparecida foi uma das primeiras pessoas a incentivá-la,
dizendo que poderia tomar conta de Bernardo esperando, todas as noites, o pai da criança
retornar do trabalho para pegá-la. No entanto, Marina disse que a avó paterna raramente se
dispõe a ficar com o neto e que teve que acabar trancando sua matrícula em uma Escola
Estadual noturna pois sua mãe, que acabara se comprometendo com a tarefa, também
começou a se queixar de ter que ficar com o neto todas as noites. Hoje em dia, sua mãe fica
com os dois netos, durante o dia, para que Marina trabalhe duas vezes na semana como
diarista, mas se diz cansada e por vezes muito atarefada.

                                                                                                               
45
Embora seu estudo seja desenvolvido a partir do universo francês, em que as políticas de creche integral
possuem ampla cobertura nacional e a política de proteção social prevê auxílios financeiros para filhos que
cuidam de seus pais idosos, a proposta de Weber de pensar o cuidado, seja ele pago ou não, é útil para
refletirmos acerca do parentesco e suas dimensões legais, ideológicas e afetivas. Neste sentido, é preciso
descrever e entender o que se passa nas famílias, sendo estas consideradas ao mesmo tempo como “lares de
cuidado” e como “linhas de sucessão” (Weber, 2005: 480). E mais, perceber de que modo essa articulação
interliga dimensões econômicas e afetivas do parentesco, implicações políticas e morais em torno da
paternidade e maternidade.

149
Noêmia, uma senhora gorducha e baixinha, costureira e cozinheira de mão cheia, é
mãe de Marina e também moradora da ocupação. Ela é encarregada de cuidar dos netos
quando sua filha está ausente trabalhando ou se dedicando a alguma “missão religiosa”.
Certa vez, comentava que é “a única avó” que ajuda a cuidar do neto menor e que, por
vezes, tem que abrir mão de algum compromisso para ficar com as crianças, como, por
exemplo, deixar de frequentar suas aulas de informática na ACM, toda sexta-feira à noite46.
“Eu não pretendo mais faltar o curso e a Marina vai ter que se virar nas próximas vezes!”,
alertou reclamando. À semelhança de sua filha, Noêmia disse que a avó paterna de
Bernardo, que também é moradora da ocupação, comentou que não ia ajudar a cuidar do
neto, demarcando claramente as posições: “vó para um lado e neto para o outro.” Em tom
queixoso, Noêmia relembrou uma situação em que teve que ir para a Central do Brasil fazer
seu cartão de Bilhete Único47, o qual barateia as viagens que realiza para a casa de seu
outro filho no município de Duque de Caxias. Neste dia, chovia muito e Marina não queria
levar Bernardo no carrinho para buscar Vitor na escola. Noêmia havia aconselhado para ela
deixar com Fabiana, uma vizinha que mora no mesmo andar e costuma ficar com a criança.
No entanto, como Aparecida estava em casa e não tinha muitos compromissos, Marina
arriscou e deixou a criança com a avó paterna. Noêmia comentou que as poucas vezes em
que Bernardo ficou com a outra avó ele acabou voltando machucado pois “ela não fica o
tempo todo de olho nele”. Já quando ela fica com o neto sua dedicação é toda para a
criança, sobrando pouco tempo para si, o que vem gerando sobrecarga de tarefas e conflitos
com a filha. Embora não more no mesmo apartamento que sua filha, o fato de Noêmia
gastar boa parte do seu tempo cuidando dos netos vem causando tensão, assim como a
redefinição de esferas de autoridade dentro dessa relação avó-mãe-filho.

                                                                                                               
46
O Projeto Iniciação à Informática, que funciona desde janeiro de 1997 nas dependências da Associação
Cristã de Moços do Rio de Janeiro (ACM/RJ) – Unidade Centro, é voltado para jovens de comunidades de
baixa renda, que estejam matriculados e frequentando a escola, oferecendo noções básicas de informática
(windows, word e excel), além de palestras, trabalhos em grupo sobre cidadania e atividades culturais e de
lazer. O curso é totalmente custeado pela ACM Centro, não cabendo ao aluno qualquer custo, a não ser em
sua locomoção e o custo da apostila. Em 2006, o projeto começou a contar com turmas de adultos e idosos,
com o mesmo conteúdo oferecido aos alunos jovens. (fonte:
http://www.acmrio.org.br/proj_ininformatica.php)
47
O Bilhete Único é um cartão que oferece benefício tarifário, com redução das tarifas praticadas nos serviços
de transporte intermunicipal (ônibus, barcas, trens, metrô e vans regularizadas), para ser utilizada em no
máximo duas horas e meia com um transbordo e com valor de tarifa fixado em R$ 4,40. (fonte:
http://www.riobilheteunico.rj.gov.br/)

150
Analisando situações de divergência em famílias da zona sul carioca, Velho (1979)
reconhece que:
“Na medida em que se aceite a existência do Poder em qualquer grupo
social, constata-se uma tensão permanente entre os seus atores. Tal tensão
pode explicitar-se através de conflito entre linhagens, luta de classes etc.,
no nível mais amplo do sistema social. No entanto, manifesta-se também
em situações mais ‘microscópicas’, como no caso da família, onde os
conflitos não têm apenas um caráter ‘psicológico’, mas apresentam uma
integração do psíquico com o sociocultural. A família só existe através de
um código, de uma linguagem de papeis, status, etc., culturalmente
elaborados” (Velho, 1979: 25, grifos do autor).

Em trabalho clássico realizado entre famílias de camadas médias brasileiras,


Myriam Lins de Barros (1987) identifica que os avós ocupam posição peculiar frente à
coexistência de diferentes valores familiares. Para a autora, o confronto entre a avó e suas
filhas e noras manifesta-se como um conflito de autoridade e poder no mundo doméstico,
lugar de construção social da identidade feminina. Assim, a relação entre pais e filhos é
sempre marcada por um conflito48, mais ou menos sutil, dependendo da dificuldade em se
estabelecer um vínculo comum através de estilos de vida por vezes divergentes.
Como visto no primeiro capítulo, Comerford (2003) também chama atenção para
esta dimensão agonística presente nas relações familiares que, longe de esfacelar os laços
pode dar outros contornos aos vínculos entre as pessoas. Nas localidades rurais que visitou,
o autor percebeu que o ambiente doméstico está altamente sujeito a conflitos e enunciações,
uma vez que há múltiplas relações em jogo. Se falar de família parece remeter à ideia de
coesão, o autor esclarece que este não é um terreno de estabilidade e harmonia, mas de
risco, tensões e conflitos constantes. A família pode contaminar-se por outros níveis de
sociabilidade e outros valores, uma vez que as fronteiras não são fixas, mas há múltiplas
relações em jogo. As lutas classificatórias em torno da família envolvem, portanto, um jogo
retórico, performances, um processo de hierarquia de valores, reputação, lealdade, assim
como todo um trabalho social que mapeia a carreira moral dos sujeitos.

                                                                                                               
48
Se considerarmos, na perspectiva de Simmel (1964a), que o conflito é uma forma de associação que não
necessariamente destrói as relações, mas pode acabar resolvendo a tensão entre contrastantes, podemos
perceber como, no convívio social, e na interação familiar, particularmente, tanto forças divergentes como
convergentes estão fundidas nesta mesma unidade. As hostilidades e antipatias no interior da família podem
garantir sua própria condição de proteção e sobrevivência. Neste sentido, as relações de oposição nos colocam
numa situação de provar nossa força e vitalidade e, desta forma, garantir a reciprocidade. A oposição,
portanto, é um elemento da própria relação e pode proporcionar equilíbrio, mesmo que instável.

151
Assim, o conflito está presente em todas as relações sociais e se manifesta mais
abertamente quando estas têm um caráter afetivo. Deste modo, existem diversas
dificuldades na relação entre pais, filhos e netos, no entanto, isto não impede que o afeto
coexista nessas relações. A tensão no relacionamento entre pais e filhos se faz sentir com
maior nitidez quando os filhos se tornam adultos, principalmente em situações como o
casamento ou o nascimento do primeiro filho. Estes ritos de passagem, tanto para os filhos,
quanto para os pais, estabelece um confronto de gerações.
A respeito destas diferenças, Weber (2006) chama atenção para a distinção que
pode ocorrer entre responsabilizar-se e cuidar. Se as avós, em certo momento, têm a função
de tomar conta de seus netos, o mesmo não se pode dizer do direito de ser responsável por
eles, de tomar as decisões, de dar advertências. Conforme visto no capítulo anterior, quando
Noêmia, a pedido de sua filha, se recusa a subir para pegar o neto mais velho que, entretido
com o videogame, esquecera de descer para almoçar na casa da avó, ela está demarcando
claramente as fronteiras entre o cuidado e a responsabilidade. Mesmo atarefada, a avó não
se esquiva de cuidar dos netos, mesmo que isso envolva assumir algum nível de
responsabilidade, mas quando este cuidado extrapola sua alçada, devendo ela também se
responsabilizar pelos horários das refeições, o controle das amizades, o limite das
brincadeiras, as tensões se estabelecem, não só entre mãe e filha mas também entre avó e
netos. Em diversos momentos pude acompanhar o cansaço de Noêmia em ter que fazer suas
tarefas como cozinhar e costurar para fora, tomar conta dos netos além de ter que se
posicionar sobre a educação das crianças, principalmente em relação ao neto mais velho
que já toma algumas decisões sozinho, confrontando a autoridade da avó e da mãe.
Apesar das divergências, verifica-se, por outro lado, uma prestação de serviços por
parte dos avós, inclusive pela possibilidade de dispor de um espaço físico em suas casas
para acolher os filhos em caso de necessidade, como nascimento de netos, mudança de
residências, férias e separação de casais. O nascimento de uma criança modifica o projeto
de formação de família, outrora estruturado num triângulo pai-mãe-filho, substituído agora
pela forma triangular avó-mãe-filho. Neste caso, a avó passa a ocupar uma posição crucial
no processo de educação e cuidado dos netos. Segundo Lins de Barros, “os avós se veem
como agentes do movimento socializador da maternidade e da paternidade, papel adquirido
pela idade e sobretudo pela experiência de vida” (Lins de Barros, 1987: 52).

152
Cabe aos avós, portanto, ensinar e auxiliar os pais de seus netos a desempenhar suas
funções e prosseguir na mudança inaugurada pelo nascimento. Os avós veem-se como
corresponsáveis por seus netos menores e, por mais que não pretendam assumir a
paternidade, legalmente ou de fato, tornam-se, em alguns casos, indiretamente pais de seus
netos. Surgem assim questões e discussões sobre disciplina, respeito, normas educativas,
limites, cuidados, preferências afetivas, assim como fronteiras entre quem sabe e quem não
sabe cuidar das crianças.
Se no contexto das camadas médias estudadas por Lins de Barros, a prática da
doação (ainda que temporária) dos filhos aos avós é pouco comum, salvo em situações de
separações conjugais, doenças dos filhos e nascimento dos netos, o mesmo não se pode
dizer das camadas populares. Tal recurso é verificado não só por condições materiais de
existência pouco satisfatórias, mas também à própria concepção de família. No caso da
ocupação, este dispositivo é ainda mais ativado pelo fato de muitas famílias encontrarem-se
morando no mesmo prédio, o que acaba por facilitar uma rede de apoio mútuo. A estadia do
neto na casa dos avós é encarada como um fato recorrente entre os moradores da Manuel
Congo, por mais que isto traga conflitos entre pais e filhos, dada a vivência intergeracional
e as diferentes perspectivas de vida decorrentes desta interação.
O trabalho feminino fora do mundo doméstico aparece como um forte indicador de
que os avós devem entrar em cena, oferecendo um aparato econômico e afetivo. E aqui vale
destacar a força da relação mãe-filha no quadro familiar. Lins de Barros (1987) demonstra
que em situações como estas, há uma tendência em se priorizar a família da mulher tanto no
apoio financeiro quanto emocional. Segundo a autora, a relação mãe-filha, mesmo
conflitante é a que traça com nitidez as linhas de preferências de parentesco, fazendo dos
parentes consaguíneos lineares, sobretudo as mulheres, o foco fundamental das relações
familiares” (idem: 72).
No caso de Marina, esta aliança entre mãe e filha se torna ainda mais sólida quando
a avó paterna passa a ocupar um papel secundário na hierarquia moral dos cuidados,
gerando queixas e limites entre quem sabe e quem não sabe cuidar. Se a solidariedade
feminina é capaz de reforçar a consaguinidade dentro das relações de parentesco, ela pode
também reconfigurar a noção de família. A presença de vizinhos, considerados mais aptos e
confiáveis para cuidar das crianças, do que a avó biológica exemplifica esta ampliação do

153
núcleo familiar. O caso de Fabiana, como veremos adiante, é um bom exemplo para
percebermos que, longe de se reduzir a uma unidade fechada, a família é caracterizada por
uma “flexibilidade constante” – passando por mutações que pouco têm a ver com as fases
previsíveis do modelo clássico do ciclo doméstico (Lins de Barros, 2009: 56).
Neste sentido, qualquer idealização de um família nuclear acaba se diluindo
sobretudo se considerarmos as relações envolvidas no parentesco mais extenso ou na
própria vizinhança. A análise de Elizabeth Bott (1976) sobre a relação entre as famílias e as
redes sociais, é importante para pensarmos toda uma “rede de conexidade” que vai se
constituindo ao redor da unidade doméstica. Compreender como as relações familiares
atuam implica, para a autora, focalizar não apenas as relações mais estreitas, mas também a
“parte da rede composta pelos vizinhos”, bem como pelas “redes independentes do marido
e da esposa” e o modo como se dá a conexidade dessas redes com a “rede total” (Bott,
1976: 104)49.
Nesta perspectiva, a família não é pensada só pelo seu viés afetivo, mas como uma
rede de gestão, uma empreitada coletiva, definindo-se a partir das condições estabelecidas
com a rede. Assim, diversos fatores estão em diálogo com a dinâmica interna da família,
estão em jogo tarefas de produção de recursos, assim como de reprodução de conexões, de
elos e afetos. A família deve ser apreendida, portanto, a partir dos limites da casa, das
atividades domésticas, das tarefas de cuidado e de uma ampla conexão com instituições
uma vez que os sujeitos lidam o tempo todo com diversas organizações e funcionários, num
diálogo constante, num processo de porosidade contínua. Neste tipo de operação simbólica,
os sujeitos constroem vínculos, marcam hierarquias e oferecem classificações, para além
dos laços consanguíneos. É neste emaranhado que a família se constitui como espaço
societário primordial e aberto para outros trânsitos como amigos, vizinhos, parentes, locais
de trabalho e instituições sociais.

                                                                                                               
49
No caso de Bott (1976), a opção pela noção de “rede” é uma tentativa de fugir da “estrutura” ou do modelo
fechado, abarcando toda uma ordem de complexidade que tem a ver com mudanças e negociação dos sujeitos
frente à plasticidade da família. Enquanto um processo de caracterização, esta última é construída pelos
próprios sujeitos através de cruzamentos sociológicos que permitem entender quem é parente e quem não é.
Esta empreitada é ao mesmo tempo nominativa, jurídico-legal (quem é reconhecido legalmente como parente)
e simbólica. A despeito dos processos administrativos há uma constelação de procedimentos cotidianos que
ultrapassam o que é reconhecido oficialmente como família e que perpassam maneiras muito precisas de, a
partir de critérios próprios, selecionar fragmentos tomados nos capilares da rede familiar para a partir deles
compor suas próprias trajetórias.

154
Para Lins de Barros (1987), esta extensão dos laços conjugais deve-se sobretudo
pela crescente coabitação de três ou mais gerações ou, como no caso supracitado, pelo
compartilhamento de cuidados e socialização das crianças. Assim, as relações de
parentesco constituídas por laços afetivos, por mais difusos e conflitantes que sejam, não se
produzem apenas pela troca de substâncias, como sangue, sêmen e leite, mas também a
partir de outros intercâmbios, incluindo a realização cotidiana de atividades em conjunto,
como fazer comida, tomar conta de crianças, ajudar na arrumação da casa. Sob esta ótica,
as redes de ajuda mútua servem para aproximar não somente uma parentela de gerações
diferentes (avós, filhos, netos), mas também vizinhos, amigos e colegas de trabalho.
Voltemos à descrição de algumas cenas a fim de compreender as múltiplas manifestações
imbricadas na sociabilidade familiar.
Em certa ocasião estava conversando com Noêmia e outras duas moradoras em sua
casa quando Bernardo fugiu para a casa da vizinha. Fabiana foi se certificar e disse que a
mesma estava “de olho nele”. Passado algum tempo, Noêmia, preocupada, foi conferir o
neto e encontrou a criança “quase” dentro do armário enquanto a vizinha tirava um cochilo
no sofá. A avó voltou irritada reclamando que é por isso que não gosta de deixar o neto na
casa de ninguém e tampouco frequenta a casa de algum vizinho, à exceção da de Fabiana
que, elogiada por sua paciência e por já ter um filho mais velho, parece ser a pessoa mais
recomendada para tomar conta das crianças da ocupação quando seus pais estão ausentes.
Conforme observado por Vianna (2002), é bastante significativo que o cuidado e gerência
da infância seja tomado como algo predominantemente materno e não só feminino, como
veremos no capítulo 3.
Estas duas situações nos ajudam a pensar sobre uma categoria importante, cunhada
por Fernandes (2011), que se encontra inserida na economia doméstica: o jeito que
determinadas pessoas têm e outras não para cuidar de uma criança. Conforme esclarece a
autora, o jeito não recai somente no modo particular de realizar determinadas ações no
mundo, mas consiste em um dos principais índices da cartografia moral na qual o cuidar se
fortalece. Falar do jeito de alguém cuidar de uma criança é atribuir valores a outrem, é
estabelecer um juízo. O jeito é o mediador da esfera coletiva para a doméstica e ao mesmo
tempo é o signo que dissolve estas fronteiras. O jeito é da ordem da moralidade e exprime a
avaliação de um registro sutil e delicado, que versa acerca da forma de orquestrar o amor, o

155
carinho, o toque, o zelo, a educação, a imposição de limites, a alimentação, o respeito, a
vigília dos horários da criança, os olhares, a impostação de voz (Fernandes, 2011: 39).
Nesse sentido, o jeito de cuidar de alguém é um qualificador de relações e um delimitador
de hierarquias50. Afinal, que tipo de jeito torna um care51 superior a outro? Será que uma
ajuda financeira permite que um determinado tipo de care suba na hierarquia dos cuidados?
Conforme observado, para se cuidar de uma criança é preciso ter jeito, é preciso
possuir esta qualidade, atribuída como inata, uma vez que existem pessoas que não têm
jeito para cuidar de criança. Diz-se que todos têm um jeito de fazer as coisas, mas nem
todos os jeitos são socialmente aceitos por aqueles que participam das relações de cuidado.
Neste caso, Noêmia aparece como a avó que sabe cuidar, que não deixa o neto se
machucar, que fica de olho nele, já Aparecida é aquela que não tem jeito para a coisa, que é
distraída e pouco responsável.
Parece, portanto, que o jeito não é um caráter intrínseco aos parentes e pais
biológicos. Pessoas que originalmente não têm nenhuma ligação com a criança, dado o
convívio e a relação amistosa, acabam por construir uma relação de respeito e confiança
filiando-se e ampliando o núcleo familiar. Neste sentido, Fabiana passa a assumir o papel
de “tia” na ocupação, tomando conta de várias crianças e conseguindo a proeza de que
todas fiquem calmas e durmam bastante em sua casa. Certa vez, ficou encarregada de
tomar conta de uma criança de um ano e meio, pois a mãe estava em um ato em Brasília e o
pai estava trabalhando. Pegou a criança com o tio e como ela estava cheia de cocô, deu um
banho, colocou para assistir a TV e a mesma acabou pegando no sono sozinho.
Conforme visto no capítulo anterior, a família, longe de um modelo reificado, se
atualiza a partir de relações práticas e cotidianas, demarcando limites e fronteiras. Neste
sentido, a produção de cuidados pode reforçar, diluir ou recriar laços familiares. Por confiar
mais na atenção da mãe, Marina prefere deixar o filho com a avó materna, afastando-o da
possibilidade de cuidados da avó paterna, que originalmente também tinha protocolado o

                                                                                                               
50
Weber (2006) recorda que, embora todos os seres humanos, com efeito, necessitem de algum tipo de
cuidado que deverá ser suprido por outros, as necessidades, a definição de quem presta os cuidados e as
noções de bons cuidados são construídas a partir de cada contexto cultural.
51
Deve-se entender por care “qualquer tipo de atenção pessoal, constante e/ou intensa, que visa melhorar o
bem estar daquela ou daquele que é seu objeto. Assim, pode-se definir um leque de ‘atenções pessoais
constantes e/ou intensas’ que tem, numa extremidade, o cuidado da manicure num salão de beleza ou o breve
conselho telefônico num hotline de ajuda psicológica, e, na outra, os laços estabelecidos ao longo de uma vida
inteira entre uma mãe e sua filha, ou, ainda, o devotamento de um velho empregado” (Zelizer, 2010: 380).

156
distanciamento. Assim, quem realiza o cuidado mantém-se em contato, mantém-se em
relação e é reconhecido como tal. Não é a toa que Bernardo se sente muito mais confortável
na casa de Noêmia, estranhando o colo da avó paterna e reconhecendo o de Fabiana,
vizinha próxima, incorporada à família como um membro que sabe tomar conta.
No entanto, o contato não necessariamente implica em proximidade física,
tampouco o “estar junto”, mas é possível se fazer presente através do contato à distância, da
provisão de alguns bens de cuidado e da coexistência de um fluxo de coisas e dinheiro
(Vianna, 2002, Weber, 2005, Zelizer, 2010). Neste aspecto, como sinaliza Creed (2000), se
interesse e emoção estão imbricados no universo familiar, o mesmo se pode dizer das
transações no interior dos cuidados. Estas relações deixam transparecer uma combinação
muito forte, mas não rígida, entre afeto e bens materiais, entre trabalho doméstico e
retribuições52.
Na tentativa de mesclar estas esferas e “para que o care saia de seu gueto de
marginalidade econômica” (Zelizer, 2010) e ocupe um lugar pleno, coerente, mantendo
conexões com todas as atividades econômicas, é preciso pensar todas as relações de poder e
de negociação que constituem as transações familiares. A existência do dinheiro não
elimina de maneira racional as relações íntimas (familiares, amizade e vizinhança),
tampouco enfraquece o fluxo dos sentimentos e das obrigações de retribuição. Mas, quando
se fala em cuidados – seja próximo ou à distância – há uma interconexão sistemática entre
aspectos materiais e afetivos, conjugando idiomas relacionais de acordo com cada situação.
Nestas relações bem ajustadas entre care e questões econômicas, o objetivo não é o
de eliminar a intimidade das questões econômicas, mas criar combinações equitativas
(Zelizer, 2010). Que imbricações ocorrem entre o “amor” e o “dinheiro” e que situações
decorrem daí, sejam danos e injustiças ou bons arranjos entre esposos, filhos, avós, netos,
amigos e vizinhos?
No caso da ocupação, quando algum membro da família não compartilha dos
cuidados cotidianamente, dele é esperado comparecer pelo menos materialmente. E,
                                                                                                               
52
Neste trabalho de “cuidar” dos outros – atividade que, em geral, é relegada às mulheres dentro do espaço
doméstico, Viviana Zelizer (2009, 2010) critica a chamada “hipótese dos mundos hostis” – uma noção
prevalente na tradição econômica clássica e no imaginário social – que postula uma radical separação entre,
por um lado, a esfera “familiar”, supostamente regida pelo altruísmo puro, e, por outro, a esfera do mercado,
regida por uma lógica financeira. Para a autora, essa perspectiva reforça estigmas contra quem trabalha
cuidando de velhos, doentes e crianças, justificando o eterno baixo status (e, por conseguinte, baixo salário)
de quem não “se doa” a essas tarefas de forma “desinteressada“, por amor à família.

157
reconhecendo que a ausência é superada (ainda que momentaneamente) pelo provimento de
bens, brinquedos, presentes e mesadas, os parentes “ausentes”, para compensar esta lacuna,
se utilizam destes recursos, reatualizando compromissos e lealdades. Em outra situação,
uma filha se sente na obrigação de retribuir, ainda que simbolicamente, o presente dado por
sua mãe, devido a tanta dedicação no cuidado com os netos.
Aparecida também é avó de Larissa, primeira filha de Felipe, fruto de um
casamento passageiro. Segundo Marina, a menina, muito mimada, é criada pelos avós
maternos, pois sua mãe “passa o dia assistindo a TV e cada hora está com um namorado
diferente”. No aniversário de oito anos de Larissa, o namorado de sua mãe estava com um
filho de dois meses no colo, o que, para Marina, significava que ele tinha se separado há
pouco tempo da mãe do bebê e já estava em outro relacionamento. Os avós maternos de
Larissa moravam em Copacabana, onde o avô, um ourives conhecido no bairro, tinha
comércio. Há pouco tempo, mudaram-se para o Rio Comprido, mas permaneceram com
todas as atividades da neta no antigo endereço. Para desespero de Marina, a menina ainda
estuda em Copacabana, em escola particular, e faz aulas de natação em uma academia cujo
valor gira em torno de R$150,00 mensais. Marina reclamou indignada “por que a menina
não pode frequentar a ACM?”, local em que Vitor faz atividades e o valor é muito inferior
ao do estabelecimento da zona sul. Comentou ainda que Felipe contribui com uma pensão
mensal para a filha, mas quando os avós precisam de dinheiro, ele acaba pagando, por fora,
a natação, os remédios ou alguma outra atividade. Para Marina, talvez pelo fato dele ver
pouco a filha, Felipe acaba custeando um estilo de vida para a menina que não corresponde
a sua realidade. A menina vai para a casa do pai, na ocupação, quinzenalmente, ficando o
restante dos dias sob os cuidados dos avós. Aparecida, que tampouco vê a neta, procura
preencher a lacuna do distanciamento, enchendo-a de presentes, para a ira e ciúme de
Marina.
Outra situação relatada por Marina nos ajuda a compreender a maneira como as
transações familiares são entrecortadas por obrigações, dádivas e objetos. Como os
apartamentos não têm tranca na porta, certo dia a sogra de Marina entrou em sua casa para
pegar uma manteiga na geladeira. Marina se sentiu bastante ofendida com o ato e
questionou tamanha liberdade da sogra, “ainda mais que ela nem ajuda a cuidar do meu
filho!”. A reclamação de Marina era menos em relação ao produto, “eu não tenho problema

158
em emprestar as coisas aqui de casa”, e mais devido ao fato de Aparecida não ser
reconhecida como um parente que atua na rede de compartilhamento dos cuidados, talvez
pelo fato de não demonstrar predisposição para cuidar presencialmente dos netos.
Podemos perceber como, nestes casos, distância e proximidade são as marcas de
quem está fora ou dentro da rede de cuidados e, portanto, da rede familiar. O uso de termos
de parentesco aplicados a não parentes, como o “tia”, é um indicador da proximidade, de
quem originalmente estava fora do circuito familiar, mas que, a partir de uma rede de
cuidados, sofreu um processo de “parentalização”, como no caso de Fabiana. Por outro
lado, o excesso de presentes entra como uma estratégia de minimização da ausência,
construindo um contato à distância. Ou então, a liberdade para adentrar nas casas dos
parentes é questionada sobretudo quando os mesmos não são considerados parceiros
legítimos nas redes de cuidado.
Neste sentido, a família vai adquirindo sentido a partir das dificuldades e facilidades
possibilitadas por um conjunto de relações, e não de um núcleo fechado de pais/filhos.
Amor, dinheiro, presentes e atenção operam como híbridos numa cadeia de cuidados e não
como coisas e propriedades estanques, fazendo emergir novas alianças parentais. Conforme
esclarece Fonseca (2010), o universo familiar não se limita às relações diádicas (pai/filho,
marido/mulher), mas revela dinâmicas de uma rede social que inclui as relações entre
ascendentes e descendentes de uma mesma linha consaguinea, entre os membros de uma
parentela que se estende horizontalmente, entre parentes por casamento e também entre
vizinhos, amigos e colegas de trabalho.
A legitimidade para conduzir e decidir acerca das crianças extrapola as relações
diádicas atravessando quase sempre uma composição triádica a exemplo do triângulo:
criança, responsável e cuidador. A triangulação pode assumir diversas formas:
pai/mãe/filho, neto/mãe/avó, neto/avó/avô, responsável/criança/amigo, avó/criança/vizinho,
mãe/filho/vizinho. Quanto a esta relação por vezes conflituosa que envolve o cuidado de
crianças, vale ressaltar a contribuição de Georg Simmel (1964b) quando este discorre
acerca das tríades.
Com a inserção de um terceiro elemento no grupo, um novo número de posições
passa a se constituir. Existe uma multiplicidade de mediações com a aparição deste terceiro
agente, tendo este um fator decisivo na negociação das duas partes. O mediador, ao escutar

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os anseios e argumentos de ambas as partes, é capaz de objetivamente eliminar o aspecto
afetivo e pessoal imbuído nas relações familiares. Ao atuar de forma duplamente leal, ele
torna-se apto a oferecer um certo tipo de desdobramento a situações conflituosas. Por outro
lado, o terceiro elemento pode ser aquele que inclusive enfraquece os outros dois, criando e
mantendo uma posição privilegiada e exercendo uma espécie de força ameaçadora à
individualidade de outrem.
Neste sentido, Noêmia, por diversas vezes, se “intromete” na educação dos netos, o
que gera conflitos sistemáticos com a filha. Apesar de ser iniciante na informática, existe
um computador na casa de Noêmia que, segundo ela, foi comprado basicamente para o
neto mais velho, pois ela não sabe abrir seu próprio e-mail. Um pouco decepcionada,
Noêmia disse que “ajuda muito a filha” cuidando dos netos, mas lamentou sua falta de
solidariedade e disse que ela “não tem a mínima paciência em ensinar”, o que também
acontece com os filhos. Esta situação eu já presenciei inclusive com os estudos de Vitor, de
quem Marina cobra muito e por vezes fica sem paciência, alegando que o filho a expõe
diante de outras pessoas, respondendo e questionando suas colocações.
Quando Noêmia menciona que “ajuda muito a filha” e que a mesma não tem
paciência com os filhos nem para orientá-la em pequenos ensinamentos de informática,
podemos pensar um outro elemento inserido nas tramas do cuidado: a reciprocidade. Sabe-
se (e espera-se) que os parentes, enquanto cuidadores de filhos dos outros, viabilizem
inúmeras ajudas, sejam elas materiais, afetivas ou logísticas. Assim, a expectativa de
Noêmia ecoa o postulado maussiano de que toda dádiva implica sua retribuição. No
entanto, por mais que as relações afetivas evoquem um constante dar, receber e retribuir,
algumas dimensões não são contempladas em termos de prescrição ou restituição. A
reciprocidade instaura a assimetria e, neste sentido, a eterna dívida entra como um elemento
crucial na incrível ambivalência que constitui as obrigações familiares.
Certa ocasião fui convidada para a festa de aniversário de Marina na casa de sua
mãe. Noêmia me ligou com antecedência e, apesar de insistir que seria uma comemoração
simples, fez questão de me chamar, assim como meu filho e meu marido. No dia da festa,
levei Guido e, ao chegar, presenciei um mutirão de mulheres organizando um verdadeiro
banquete que incluía salgadinhos, salpicão de frango e de bacalhau, carne assada, pernil,
arroz colorido, farofa, salada de folhas e legumes cozidos, além de várias sobremesas como

160
bolo confeitado, pavê de chocolate, torta de limão, mousse e sorvete. Antes dos convidados
chegarem, Noêmia fez questão de chamar a filha para lhe entregar em mãos seu presente.
Tratava-se de uma caixa tão bem embrulhada que custou alguns minutos para Marina
descobrir do que se tratava. Ao se deparar com um laptop, ela ficou sem palavras para
agradecer, só sabia chorar e abraçar a mãe que, orgulhosa, demonstrava sua felicidade no
sorriso estampado.
As festas parecem ser momentos privilegiados através dos quais pode-se observar
como o cotidiano se realiza na relação com o espaço e sobretudo nas relações familiares. As
festas de família apresentam-se como um evento que rompe o tempo comum simbolizando
práticas e códigos que na vida ordinária talvez não pudessem ser percebidos. A cena
descrita adiante, além da dramatização usual das celebrações, oferece elementos para que
possamos compreender os processos de exclusão e de inclusão nas redes familiares ou
como o universo dos cuidados é prenhe de obrigações, dívidas e retribuições.
Antes do jantar ser servido, foi feita uma corrente de oração no meio da sala. Ao
final do agradecimento, Marina pediu a palavra e, em tom emocionado, disse que aquela
festa só fora possível graças aos esforços da mãe. Inclusive reconheceu que não era
merecedora de tanta dedicação, mas sua gratidão e afeto pareciam ser, para Noêmia, que
também demonstrava tamanha emoção, sentimentos indicativos de uma possível retribuição
por tanta ajuda dispensada aos netos. Este episódio, com toda sua carga dramática, nos
remete ao fato de que nas relações intergeracionais estão em jogo não só disputas e tensões,
mas sentimentos de solidariedade e tentativas de reparar rebeldias e desacordos.
Vale lembrar ainda que o cuidado não se realiza apenas no universo doméstico, ele
extrapola o espaço da casa e o ambiente familiar. Neste aspecto, destaca-se o Espaço
Criarte Mariana Crioula, mais conhecido como “escolinha”, como outro lócus em que se
atualizam os diversos modos de cuidar, experiências de convívio, de aprendizado, de
disciplina, de afeto, zelo e preocupação.
Conforme visto no capítulo anterior, além de realizar atividades socioeducativas,
como aulas de reforço escolar, passeios, filmes e atividades culturais, a “escolinha” exerce
um papel central na proposta política do movimento. Se, em um primeiro momento, as
atividades podem ser encaradas como um “trabalho de reforço escolar” que visa suprir o
“grande problema da área de educação” de modo que “os alunos melhorem seu

161
desempenho na escola”, aos poucos, percebe-se que este é um ponto central que coloca em
xeque os trânsitos entre o território doméstico e o território político. Através dos discursos
de seus idealizadores, é possível observar que, mais do que disciplinar o comportamento,
adaptar os hábitos alimentares, monitorar a higiene e a aparência das crianças, a proposta é
a “construção de cidadãos críticos na luta pela garantia dos direitos da infância e
adolescentes, tornando-os protagonistas e futuros agentes políticos deste país”, conforme
me alertou certa vez um colaborador.
Aqui vale uma ressalva. Talvez devêssemos tratar estas propostas como
perspectivas que se justapõem, uma vez que a proposta política não aparece descasada de
uma proposta de ensino, de educação e disciplina. Como tenho tentado alertar ao longo
desta tese, a política se faz presente nos espaços afetivos, nas relações de cuidados e redes
familiares. A “escolinha” provavelmente seja o ambiente que melhor sintetiza os
cruzamentos entre a proposta coletiva de moradia e os arranjos familiares. Em vários
momentos o projeto é visto como uma possibilidade de “empoderamento das crianças”,
contribuindo para a “socialização da ocupação” e para a construção de uma vida “em total
interação comunitária”. No entanto, nem todas as crianças da ocupação participam das
atividades, algumas reclamam do rigor da disciplina, outras se queixam das implicâncias
dos colegas, além daquelas que preferem ficar em casa. As crianças que frequentam as
aulas precisam justificar as eventuais ausências, assim como respeitar as regras de horário,
compartilhamento de material e dinâmica interna. No entanto, o trabalho com as crianças
não envolve só regras quanto ao horário de entrada e de saída, mas também hábitos
alimentares saudáveis, “eu tento trabalhar a merenda escolar, não essa merenda do
refrigerante, mas a gente leva pra merenda cenoura, pepino, tomate...”, assim como uma
“educação para a vida”.
Conheci o espaço através de Dinorah, sua principal idealizadora, em meados de
2010, quando ele ainda funcionava em uma pequena sala muito bem decorada. Dinorah fez
questão de me acompanhar para mostrar, orgulhosa, a concretização de seu projeto. Ao
adentrar fiquei surpresa com tamanha organização: em um canto da sala, havia um pequeno
palco com uma cortina rosa dependurada que servia para as apresentações teatrais, pufes de
garrafa pet serviam de banco e cadeira, estantes e prateleiras guardavam livros, papeis, lápis
de cor, giz de cera, caneta e outros materiais de desenho, móbiles feitos de material

162
reciclado pendiam das janelas e, ao longo das paredes, marcas de mãos pintadas a tinta,
cartazes com fotos das famílias, mensagens, desenhos e trabalhos desenvolvidos pelas
crianças sobre a história da ocupação, meio ambiente, folclore popular, entre outros temas.
Devido a uma infiltração, que ocasionou umidade excessiva e mofo no ambiente, a
“escolinha” foi removida para uma sala ao lado. Em 2011, no final do trabalho de campo,
verifiquei que a sala tinha mudado novamente de lugar, liberando o espaço para uma sala
de reuniões.
Apesar das diferentes composições espaciais, a “escolinha” traz uma marca do
movimento: ser “uma sala para que a criança tenha consciência crítica”. Segundo Dinorah,
“no início foi difícil, agora não precisa nem chamar, eles descem sozinhos. Eles fizeram
autoanálise e disseram que gostam mais de ler. O comportamento melhorou muito. Isso
aqui não é fábrica de crianças, a educação ainda é uma possibilidade.” Estas falas refletem
bem a preocupação de uma pessoa que passou pela academia e teve acesso a um nível
educacional diferenciado e que, portanto, é uma figura política chave para o movimento.
Originária de Volta Redonda, Dinorah é bastante articulada e com um discurso
feminista bem representativo. Em 2008, encontrava-se na Bahia e quando soube, através de
um representante do MNLM, que estava ocorrendo a ocupação do prédio do INSS, apesar
de não ter participado das reuniões, mas considerando sua trajetória política, conseguiu ser
aceita para morar na Manuel Congo. Dinorah é oficialmente filiada a um partido político,
mas ultimamente anda fora da política partidária, por achar que “é melhor contribuir para o
movimento do que para o partido. O partido está esgotado, querem apenas o poder para
governar. Governança por governança, prefiro continuar onde estou.” Dinorah reconhece
que sua opção por ter vindo ao Rio de Janeiro se deve aos estudos, no entanto, acabou se
focando nas crianças, por achar que “criança é coisa séria. Não pode brincar com uma vida.
Não é só dar comida e roupa.”
Devido à sua experiência com trabalhos anteriores, Dinorah idealizou o projeto da
“escolinha” e o colocou em prática, empreitada que gera orgulho para muitos moradores e
militantes do movimento responsáveis por acompanhar e viabilizar políticas educacionais
como estas. Em suas falas, ela procura enaltecer o protagonismo das crianças e a
necessidade de que se sintam partícipes da ocupação, demonstrando orgulho pelo lugar
onde moram.

163
“Nós fizemos uma ocupação das crianças dentro da Ocupação. Dormimos
na nossa sala, trouxemos colchonete, cobertor e no dia seguinte
chamamos a família para tomar café da manhã junto conosco. Fizemos
isso porque elas tinham vergonha de morar aqui. Trabalhamos com o
ECA, o direito à moradia, ao lazer e à cultura. Criança não pode trabalhar
nem em casa, mas é difícil convencer a família. No espaço tem reunião
com os familiares, estabelecemos regras e critérios como chegar na hora,
ter presença. Senão, não tem retorno. Morar aqui é um processo
pedagógico, senão acabamos reproduzindo a Casa Grande e Senzala.”
(Dinorah)

O discurso inflamado de Dinorah parece ecoar a agenda proposta pelo movimento.


Em todas as conversas que tivemos, mesmo quando me solicitou uma ajuda para
desenvolver um trabalho para uma disciplina da faculdade, o tom era o mesmo. Insistia na
necessidade de mobilização política, de contribuição de cada morador para um espaço
coletivo e de solidariedade. “Não é porque fiz universidade que devo ter benefícios. Não tô
fazendo mestrado para vender livro. Não me mandem me afastar do meu objeto. Eu sou o
meu objeto. Não estou estudando a comunidade, eu sou a comunidade!”. Proclamava ela no
meio de nossas discussões teóricas, talvez menos por pretender qualquer tipo de
enfrentamento e mais por marcar seu posicionamento político. “Eu sou humanista, não sou
marxista”, fazia questão de frisar.
Além deste apelo político mais evidente, participando das atividades rotineiras da
“escolinha”, pude perceber elementos mais submersos nas franjas das moralidades que
envolvem o cuidar. Além de Dinorah, a única outra moradora da ocupação que se engajou
com o projeto foi Carla. Segundo a idealizadora, “ela era uma pessoa muito calma, mas não
achava que tinha dom para trabalhar com crianças.”
Cabe aqui ressaltar este poder quase mágico que algumas pessoas tem em saber
lidar com as crianças. O “dom” ao qual Dinorah se refere ao expressar a facilidade com que
Carla lida com os meninos e meninas parece vir não só da sua paciência, mas de um
interesse pelo cuidado com crianças. Não é a toa que Carla pretende fazer vestibular para
Pedagogia assim que tiver um tempo livre na sua pesada jornada de casa, trabalho e
atividades na ocupação.
Carla nasceu em São Luís do Maranhão e aos quinze anos veio para o Rio de
Janeiro, tentar um trabalho, pois, segundo ela, “a vida no Nordeste é muito sofrida.” Em sua
cidade natal, apesar de ter que andar quilômetros para chegar ao colégio, ela nunca repetiu

164
de ano e conseguiu concluir o ensino médio, o que não é comum para os jovens e adultos
da ocupação. Antes de ocupar o prédio, Carla morava de aluguel em Pavuna, bairro da zona
norte da cidade, com seu marido, Matias, e sua filha Milena, de 4 anos.
Com a saída de Dinorah da ocupação, por conta de outros compromissos, Carla
passou a ser a única moradora que participa ativamente das atividades do espaço, além de
outros professores, estudantes universitários e militantes do movimento, que colaboram na
organização dos trabalhos. Todas as vezes em que estive presente na “escolinha”, as
crianças pareciam bem a vontade, tanto é que Carla comentou que elas costumam ficar
tristes todas as vezes que, por ventura, alguma aula tem que ser cancelada, ou quando há
feriado, ocasião em que a sala não abre.
Certo dia, cheguei despretensiosa na ocupação e ao subir o primeiro lance de
escada, avistei algumas crianças descendo e se dirigindo à “escolinha”. Logo em seguida
apareceu Carla que insistiu para que eu entrasse e, apesar da pouca intimidade, fui me
aproximando das crianças que, aparentemente, se mostraram bastante afáveis. Neste dia, a
primeira atividade proposta foi uma folha com as letras do alfabeto em que as crianças
deveriam reproduzir cada uma, em um quadrado abaixo da letra original. Em seguida,
deveriam escrever seus nomes no topo da folha e colorir as letras que identificassem serem
iguais aos dos seus respectivos nomes. A princípio, parecia ser uma atividade de simples
execução, mas as crianças insistiam em ficar dispersas, disputar material, correr e berrar
pelo espaço, além de terem dificuldade na ortografia e na própria identificação das cores.
Os professores deixavam as crianças explorar o ambiente, mas buscavam discipliná-las na
medida do possível, chamando-as de volta à mesa para finalizar a tarefa proposta. Algumas
crianças mais velhas apareceram no meio da primeira aula e os professores pediram que se
retirassem e só retornassem no seu horário, pois poderia atrapalhar a dinâmica com as mais
novas. Mesmo assim, um garoto de cerca de 8 anos, aluno da segunda turma, apareceu com
a irmã no colo e ficou sentado em um canto observando o movimento das outras crianças.
Como não se tratava do seu horário de aula, os professores pediram que ele se retirasse,
mas ele insistiu em ficar, alegando que seus pais não estavam em casa, que ele era o
responsável por cuidar da irmã mais nova e que a mesma ficaria quieta junto a ele. No
entanto, a menina era muito apegada ao irmão e bastava que ele se afastasse, para ela
começar a chorar. Na medida em que o choro foi crescendo e os professores ficando

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irritados, o menino foi aconselhado a se retirar, subir para casa e, caso seus pais não
retornassem no horário da sua aula, ele estaria dispensado daquela noite.
Esta situação ao mesmo tempo tensa e sensível nos remete a outra dimensão na
realização dos cuidados. Assim como em outros espaços, na ocupação as crianças não se
apresentam apenas como meras receptoras de cuidados, mas em justaposição, se situam
como produtoras de cuidados. As crianças contribuem na realização das atividades
domésticas e no cuidado de outras crianças. A disciplina a que as crianças estão submetias
não só na “escolinha”, mas em casa, não se restringe apenas ao cumprimento de horários, à
feitura dos deveres de casa ou à ingestão de certos alimentos saudáveis como verduras e
legumes, mas também está relacionada ao aprendizado das atividades domésticas, da
responsabilidade pela manutenção da casa e da atenção dispensada aos irmãos mais novos.
Perguntei a um dos professores se as crianças precisavam se justificar caso
faltassem. Um deles falou que sim, pois as crianças não devem faltar muitas aulas, mas que
geralmente elas se ausentam sem maiores explicações. Aproveitei para perguntar como era
realizado o trabalho e eles falaram que faziam parte do MNLM e que atuavam há cerca de
oito meses, sendo um trabalho de militância e não de estágio ou pesquisa de extensão
universitária. O trabalho com as crianças tinha dois eixos, durante a semana focava-se mais
o desenvolvimento da escrita e da leitura e aos sábados privilegiava-se atividades lúdicas e
passeios. Neste momento estavam trabalhando com a cultura nordestina, por conta das
comemorações da festa junina. Um dos professores retirou do armário, orgulhoso, alguns
textos que os alunos mais velhos fizeram inspirados na literatura de cordel e me mostrou os
cartazes colados nas paredes contra a remoção de famílias da zona portuária, por ocasião do
projeto “Porto Maravilha” naquela área.
Verifiquei que além de um trabalho de reforço escolar e ampliação do repertório
cultural destas crianças, aqueles estudantes procuravam enfatizar também um cunho
político às suas atividades, despertando consciência crítica nas crianças, conforme diretrizes
do próprio movimento. E mais, embora não estivesse presente em seus discursos, eles
contribuíam de fato para ajudar a cuidar daquelas crianças. Carla, que parece ter muito
entusiasmo com o trabalho, ajuda em atividades básicas como apontar lápis, recolher o lixo
do chão, organizar o material na prateleira ou mesmo fomentando bons hábitos de
comportamento. Conforme me disse, o trabalho desenvolvido com as crianças mais novas

166
tende a ser menos cansativo do que com as mais velhas por estas já estarem “mais no
mundo” e, por isso, acabam sendo mais indisciplinadas e desafiadoras.
Em outra ocasião, conversava com Juliana, uma das professoras, enquanto
observávamos de longe o desenrolar das atividades. Daniele, uma menina bastante agitada,
começou a implicar com um garoto menor que tentava desenhar em uma folha. Juliana
chamou atenção da menina, mas ela insistia na perturbação. Alertou outra vez e pediu para
ela se afastar, mas a menina fingiu que se esquecera da implicância e voltou só para bater
no seu alvo. No mesmo instante, Juliana me pediu licença e subiu rapidamente as escadas
com a garota. Quando voltou disse que teve que deixá-la, aos prantos, em casa e explicar
para sua mãe que ela estava atrapalhando as atividades do dia. Ao retornar contou-me que
esta não é uma prática regular, mas quando é preciso, os professores retiram a criança da
sala a fim de manter a ordem no lugar.
Além deste aspecto mais instrutivo, outra medida que parece fazer parte de um
manual de bons costumes diz respeito ao cuidado com a aparência e higiene das crianças.
Um dia, participando das atividades da escolinha, observava meninos e meninas brincando
de corrida de carrinho, enquanto outros desenhavam e Carla apontava os lápis de cor, cujas
pontas teimavam em quebrar. Um pouco atrasado, Caio, um menino de 4 anos, muito
esperto e peralta, entrou esbaforido na sala. Como estava descalço, Priscila, uma das
professoras, recomendou que retornasse imediatamente. Passado algum tempo, Caio voltou
com o tênis desamarrado, encaminhando-se diretamente para a professora, numa tentativa
de se desculpar e, ao mesmo tempo, solicitar ajuda para amarrar o cadarço.
Por mostrar-se bastante receptiva, combinei de conversar com Carla em sua própria
casa. Ao entrar, lá estavam ela, seu marido Matias e a filha Milena que brincava
livremente, espalhando papeis picados pela pequena sala. Depois de me situar em sua
trajetória, começamos a conversar sobre sua atuação na ocupação. Ela comentou que não
eram todas as crianças que participavam da “escolinha” e indaguei como se dava esse
processo.
Contou-me que os coordenadores não obrigam ninguém a participar, mas que
existem muitas famílias cujas crianças não fazem nada quando chegam da escola e
poderiam estar participando das atividades. Ela criticou a situação de uma mãe que tem
quatro filhos e que havia alegado que eles não desciam pois já estavam tendo atividade

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extraescolar. Surpreendentemente ela não via nenhuma destas crianças saindo para tais
atividades e, por isso, provavelmente, “deviam acabar assistindo TV o dia todo”.
Relembrando Dinorah, que costumava dizer que a “escolinha não é um depósito”, Carla
rejeitou a conduta de alguns pais que “despejam” seus filhos no local sem o devido
cuidado. Segundo ela “algumas crianças chegam todas sujas, com a boca suja de mingau, a
fralda cheia de xixi, o cabelo para o alto” e esperam que os professores resolvam estas
situações. Nestas ocasiões, as crianças são mandadas de volta para casa para que retornem
nas devidas condições para participar das atividades.
Em relação ao cuidado institucional vale destacar ainda o papel das creches no
acolhimento das crianças menores. Conversando com algumas mães que têm filhos
pequenos, quase todas relataram que preferiam deixá-los com as avós ou abdicar de algum
trabalho para ficar um maior tempo com eles ao invés de deixá-los prematuramente em
creches. Mesmo receosa, Marina, que tem um filho de 1 ano, resolveu colocá-lo em uma
creche municipal que realiza um projeto de recreação aos sábados. No entanto, na última
vez, a criança havia retornado “completamente assada” e com todas as fraldas descartáveis
intactas dentro da mochila. Este fato lhe deixou muito indignada pois, para ela,
demonstrava a falta de cuidado dos funcionários do estabelecimento escolar. Ela inclusive
gravou um vídeo dos ferimentos do filho, para ter um registro em caso de alguma denúncia.
Perguntei que procedimento havia tomado e ela disse que comentou na creche o ocorrido e
pediu maiores cuidados com seu filho nas próximas vezes. Entretanto, desde o episódio,
Marina preferiu afastar a criança das atividades. Certa ocasião, ela se queixava de que o
filho mais novo estava com piolho e que provavelmente devia ter pego de alguma criança
da própria ocupação, pois nas últimas semanas não tinha ido à creche.
Estes fatos nos remetem ao tipo de atenção que cada família dispensa aos seus
filhos, assim como os possíveis juízos de valor que podem surgir por parte de alguns
moradores quanto à falta de cuidado dirigida a algumas crianças. Afinal, quando Marina
insinua que Bernardo pode ter pego piolho através de uma das crianças da ocupação e Carla
critica o fato de algumas crianças descerem para a “escolinha” com a boca suja ou o cabelo
em pé, estas acusações demonstram uma polaridade entre a família que cuida, que peca pela
higiene de seus filhos e aquela que, descuidada, não dá a devida atenção à limpeza e

168
aparência das crianças. De fato, é comum observar as crianças correndo despenteadas, com
os pés descalças e coçando as cabeças insistentemente.
Outro discurso comum nas falas de alguns moradores refere-se às “crianças de
corredor”. Conforme visto no primeiro capítulo, o corredor é um ambiente à parte na
ocupação, funcionando como área de lazer para as crianças, ponto de encontro dos jovens
namorados, área de serviço de alguns apartamentos, até canal de fofoca e informação. No
entanto, não foram poucas as vezes em que presenciei Marina determinando que seu filho
mais velho não saísse de casa para brincar no corredor, a fim de que não aprendesse “coisas
que não prestam” nem que se juntasse com crianças que falavam palavrão, batiam e se
comportavam de maneira inadequada. Na visão de Carla e de Matias, os pais são os
maiores responsáveis pela falta de limite dos filhos. Segundo eles, Milena não é uma
menina “de corredor”, tem seus horários, sua rotina e suas tarefas. Carla reclamou do
menino que por vezes tem que faltar a “escolinha” porque tem que cuidar de suas irmãs
mais novas, o que para ela é um absurdo “criança tomando conta de criança”.
Este fato nos remete ao contexto porto-alegrense estudado por Claudia Fonseca
(2000) sobre as diferentes formas de circulação de crianças, prática comum entre grupos
populares. Inserida numa dinâmica de família extensa, regida pela tensão entre
consanguíneos e afins, estas práticas incluem uma série de famílias cuidadoras que
participam da criação e socialização das novas gerações. Neste parentesco
“dessubstancializado”, aparecem novas formas de conectividade, a despeito do sangue.
Além da mãe biológica, diversas mães de criação, tais como uma avó, uma madrinha, uma
madrasta, uma vizinha ou mesmo um irmão mais velho, como no caso supracitado, são
acionadas configurando um universo pluriparental. Assim, se as crianças são assunto
pessoal já que pertencem sempre a alguém, por outro lado, estão o tempo todo sendo
compartilhadas e se atualizando como bens coletivos. Pertencimento e compartilhamento
são compatíveis, embora com sentidos diferentes.
Neste sentido, vale ressaltar que os variados expedientes colocados em prática para
criar crianças, como recorrer à parentela, não se limitam a um estrato social particular,
embora sejam mais visíveis e tenham formas específicas nas camadas populares. Mesmo
em contextos de famílias de camadas médias, crianças e jovens circulam por diversas
unidades domésticas sobretudo em situações de divórcio e recasamento de seus pais.

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Entretanto, como aponta Fonseca (2007), fora toda a funcionalidade da rede extensa de
parentes, enquanto que para as camadas médias e altas tal comportamento é cada vez mais
aceito como parte da família “moderna”, apresentando-se como uma alternativa, ele ainda
continua a ser visto como fonte de problemas para as crianças de famílias pobres,
frequentemente rotuladas de “desorganizadas”.
Estas divisões e hierarquias em torno dos modelos familiares também são analisadas
por Vianna (2002) e Lugones (2009), no contexto argentino, ao descrever as tentativas
judiciais de adequar práticas informas que envolvem a circulação de crianças às leis sobre
guarda e adoção. Como observado por Vianna (2002), os casos levados ao Juizado acabam
por “regularizar uma situação”, devendo apenas sancionar, pela instância judicial, arranjos
já feitos. Deste modo, este novo status – ou reconhecimento legal – acaba dando não só
uma outra visibilidade a transações efetuadas de maneira informal, mas está relacionada ao
deslocamento de autoridade a partir da intervenção de uma instância superior de poder,
capaz de produzir uma nova verdade social.
Assim, a circulação de crianças “pode ser compreendida judicialmente como
estratégia de gestão de modelos familiares ideologicamente percebidos como faltosos ou
imperfeitos, independente da forma que a intervenção judicial assuma (ratificando ou
desconhecendo como válido tal expediente)” (Vianna, 2002). Isto não significa que toda
circulação de crianças – ou as configurações que incluem menores – seja alvo de ações
fiscalizadoras, mas que, os casos levados ao Juizado, acabam desencadeando uma relação
complementar de autoridade delegadas e reconhecidas. E mais, que estas intervenções
atribuem às chamadas populações pobres critérios que usualmente coincidem com a
inferioridade ou precariedade econômica, características carregadas de conotação
pejorativa.
Aqui vale lembrar que o cuidado não se restringe às casas ou a uma unidade
doméstica, tampouco se polariza entre as instituições formais, na forma da creche, da escola
ou dos juizados. Ele não advém somente de adultos, mas é vivido também entre crianças,
expressivamente provedoras de cuidados. As crianças não se encontram guardadas o tempo
todo por alguém, elas escapam, circulam, se distribuem em vivências e em mobilidades
urbanas e domésticas. São crianças distribuídas e partilhadas, mas, não podemos nos

170
esquecer, são crianças que moram em uma ocupação e, portanto, devem seguir as regras de
um ambiente coletivo.
Assim, estas circulações remetem a um outro registro que será analisado adiante: o
lugar das crianças na ocupação. Se, para algumas famílias, elas precisam realizar a carga de
trabalho doméstico que envolve o cuidado da casa e dos irmãos mais novos, elas também
precisam incorporar a demanda do movimento, materializada no espaço da “escolinha”.
Como veremos no próximo capítulo, delas é esperado um tipo de comportamento
responsável, uma maneira adequada de se vestir e de se apresentar, um compromisso com a
coletividade, enfim, em torno delas são fixados limites e obrigações e criadas expectativas
de continuidade da ocupação.
Certa ocasião, conversava com Noêmia na casa de sua filha, pois estava tomando
conta de seu neto menor que adormecia no berço. Com o tardar da hora e cheia de tarefas
para fazer em casa, Noêmia reclamava da demora da filha que chegou mais tarde do que o
combinado alegando que tinha passado na farmácia para comprar um shampoo para ela e
um remédio para a dermatite de Vitor feito a base de óleo de girassol. Olhando com certa
repugnância para a perna machucada do neto, Noêmia comentou “como pode, um menino
tão bem cuidado, com toda a higiene e ter as pernas todas feridas!”. Marina censurou a mãe
e, como conhecedora de causa, alertou que dermatite não tem nada a ver com “falta de
higiene”, mas é uma lesão de pele causada por alergia e até por antecedentes na família.
Noêmia disse que quando levou Vitor para visitar seu filho em Duque de Caxias, quase não
conseguiu dormir pois o neto se coçou a noite inteira e, como os dois estavam dormindo
juntos num colchão inflável, a cada comichão da criança ela despertava.
Este apreço pela higiene e pela limpeza não circunda apenas o universo infantil, mas
o próprio espaço da ocupação. Como vimos, enaltecer o prédio, demonstrando que nele
ninguém pendura varal na janela, que há um capricho pela limpeza e pela organização, um
esmero em deixar o espaço visivelmente apresentável trata-se de uma estratégia para dar
resposta às interpretações difusas acerca de quem mora na ocupação, assim como marcar
uma posição clara entre este universo e aqueles tidos como perigosos, sujos, abandonados.
Diante de uma série de expectativas do que seja uma ocupação, de que tipo de
arranjos são delineados ali dentro, se as pessoas são limpas, organizadas, pacíficas e
“civilizadas”, os moradores, preocupados com estas representações e com a repercussão

171
dos possíveis rumores, acionam certas práticas referentes à gestão dos espaços coletivos e
individuais. De imediato, os moradores insistem em reafirmar as regras colocadas pelo
próprio movimento, no entanto, aos poucos, vai se observando que estão em jogo outras
estratégias, menos evidentes, mas fundamentais para a estrutura organizacional.
Quando o segundo filho de Marina nasceu fui fazer-lhe uma visita e ela se queixava
de fortes dores nos seios, pois a região do bico estava muito sensível com as primeiras
sucções do bebê. Recomendei que o mais adequado seria não passar nenhum produto, pois
poderia intoxicar o bebê, mas de fato utilizar o próprio leite materno para ajudar na
cicatrização da região lesionada. Propus também que ela tentasse abafar o menos possível
os seios e tomasse banho de sol diretamente nos bicos. No mesmo instante ela riu e falou
“Mas como?! Imagina o povo me vendo de peito de fora na sacada da janela? Já olham
desconfiados pra cá, chamam a gente de invasor, ainda mais fazendo isso...!”
Circulando pelas proximidades do prédio, aproveitei, um dia, para puxar conversa
com uma senhora que trabalhava de faxineira em um edifício comercial em frente à
ocupação e olhava curiosa para o prédio. Perguntei se ela sabia do que se tratava,
imediatamente confirmou e emendou “são pobres, mas são caprichosos”. Originária de
Nova Iguaçu e morando em um terreno de posse, a senhora fez questão de demarcar a
fronteira entre sua condição de posseira e a dos “invasores”. “Eu não sou a favor de
invasão, a não ser que seja direita” ponderou. Curiosa, indaguei como compreendia esta
categoria, a princípio nova para mim, “invasão direita”. “É uma invasão que traz benefício
para a localidade, valorizando o local, dando vida ao ambiente”, respondeu entusiasmada.
Mesmo morando em condições semelhantes, mas “por não achar correto você invadir um
lugar que não é seu”, ela procurou regularizar a área junto à Prefeitura Municipal. Por
último emendou: “sou contra você mexer na coisa que não é sua. Tem que ter ciência e
fazer cada vez melhor.”
Neste sentido, para quem não conhece a realidade do local, existe uma imagem
sobre os ocupantes, mesmo que o acusador esteja em uma mesma situação social. “Ser
pobre, mas ser caprichoso” é, a princípio, um enunciado elaborado em relação à condição
material da pessoa e que pode estar atrelado a um comportamento mal avaliado. Esta
mesma imagem aparece nas falas de Ritinha quando ela afirma que as pessoas de
“comunidade” têm hábitos ruins como falar palavrão e brigar. A princípio, o capricho e o

172
zelo não são valores das pessoas de camadas populares, mas existe a possibilidade de se
tornar caprichoso, comprometer-se pela moradia, se organizar, cuidar da casa.
“Quando nós entramos aqui estava tudo empoeirado, tudo sujo e sem
ninguém para limpar. Porque o que alegaram na justiça é que tinha vigia
aqui, que tinha pessoas que limpavam aqui. Quando nós fizemos a festa
daqui, que nós saímos do Vitória, dia 1º nós fizemos um cartaz com as
fotos que tiramos daqui com aquela poeira preta de anos fechado.
Banheiro sem pia, banheiro sem luz, os vidros quebrados. Porque tinha
pessoas, quando entraram aqui, que tinha pânico de sair na rua, porque
tinha medo das pessoas brigar, falar alguma gracinha ‘ah, o invasor’, tinha
gente que tinha vergonha de sair daqui. E hoje não, hoje nós temos prazer
de passar na rua e as pessoas falarem ‘ela mora ali no prédio’. Agora eles
falam bem da gente, mas quando a gente entrou aqui, as pessoas olhavam
‘invasor, mora aí no prédio’. Agora não, já vai fazer um ano que nós
estamos morando aqui, as pessoas já sabem que nós estamos aqui, que
aqui não está mais vazio.” (Ritinha)

Em virtude da proximidade com uma possível decadência moral, e da necessidade


de fugir dos estigmas de “invasor”, “desocupado” e “favelado”, os moradores buscam
deixar a casa limpa, os corredores varridos, o banheiro impecável e as fachadas visíveis.
Ainda que estejam imbuídos da necessidade de dar uma resposta política aos transeuntes,
pesquisadores e pessoas de fora, o cotidiano dos ocupantes não é orientado unicamente pela
militância. E é justamente neste interim que surgem os dilemas, as dificuldades e
contradições que, longe de apagarem a força política do movimento, parecem dar uma outra
roupagem a esta forma de organização.
Outro ponto que merece destaque neste repositório moral em que se insere a
ocupação Manuel Congo diz respeito à presença feminina. Talvez pelo fato de ter
frequentado mais o prédio em momentos diurnos e matutinos ou por um traço realmente
marcante nos movimentos de luta pela moradia, parece que por onde eu percorria e com
quem conversava, quem arrumava a casa, olhava os filhos, fazia a comida, lavava e passava
a roupa e executava os afazeres domésticos eram sempre as mulheres. O cuidado, elemento
fundamental para o arranjo familiar e para as redes de relação com parentes, amigos e
vizinhos, parecia quase sempre estar marcado pelo gênero. Os discursos das pessoas
também ecoavam esta linha de conduta, ainda que ela não tenha se apresentado como um
padrão.
O capítulo seguinte discute como determinados sujeitos são construídos a partir de
um projeto político de moradia e como as próprias pessoas reproduzem ou re-significam

173
estas categorizações. Neste sentido, o que significa ser criança, jovem e mulher em uma
ocupação urbana? Por que, afinal, estas categorias são estratégicas dentro do movimento?
Que atributos carregam, ou melhor, quais as condições necessárias para que estes atores se
entendam como sujeitos responsáveis por dar prosseguimento à luta? Vale sugerir que o
problema aqui não diz respeito somente aos processos efetivos de produção de sujeitos.
Mas, recuperando o estatuto da pessoa, é preciso “elaborar uma política dessas astúcias”
(De Certeau, 1998), verificando como sujeitos concretos, a despeito de amplos
enquadramentos, escapam, apropriam-se dos espaços e administram com certo gozo suas
próprias redes de relações.
Nesta seara multiforme de percepções, é preciso observar como tarefas tidas como
femininas vão sedimentando a luta. A ocupação vai sendo construída a partir de fronteiras
geracionais, de gênero, familiares e coletivas que acabam significando e sustentando moral
e politicamente esta empreitada. Assim, a “unidade” vai sendo constituída a partir de
alianças microscópicas, multiformes e inumeráveis que, a despeito das disputas, conflitos e
dificuldades cotidianas, são aquilo que fazem do prédio abandonado uma moradia digna e
desta uma casa aconchegante.

174
CAPÍTULO 3

CRIANÇAS, JOVENS E MULHERES:


CONSTRUINDO SUJEITOS, PROJETANDO A LUTA

3.1 – Movimentos sociais e projetos de formação de sujeitos

Para celebrar o Dia Nacional da Consciência Negra, foi realizado, em 20 de


novembro de 2008, o Encontro Municipal do Movimento Nacional de Luta pela Moradia
(MNLM). Tive oportunidade de participar do evento no período da tarde na própria
ocupação. No turno da manhã o mesmo foi realizado no núcleo do Sindicato dos
Trabalhadores em Saúde, Trabalho e Previdência Social no Estado do Rio de Janeiro
(SINDSPREV), na Lapa, centro da cidade. Segundo comentários, neste período havia
poucos participantes, pois muitos estavam organizando o almoço que foi servido na
ocupação entre os dois turnos. Durante a manhã, o Encontro contou com a presença de um
militante da Central de Movimentos Populares (CMP) que aproveitou para fazer uma
“análise de conjuntura compartilhada”, conforme explicou uma das coordenadoras do
movimento. Trata-se de uma metodologia 53 de debate em que os participantes são
incentivados a falar, dar suas opiniões e fazer suas denúncias.
No período vespertino, o evento teve a presença de um militante e colaborador do
MNLM. Ele fez uma análise da situação de desigualdade social no Rio de Janeiro que, na
sua perspectiva, se reflete na maneira como a cidade é ocupada por diferentes classes
sociais. Falou ainda sobre a necessidade de solidariedade à Ocupação Quilombo das
Guerreiras, situada na zona portuária, evitando que ela não seja despejada com o processo

                                                                                                               
53
A análise de conjuntura é um instrumento estratégico para os movimentos sociais no sentido de articular
argumentação teórica e ação política. Na busca por possibilidades concretas de ação, quando realizada pelos
próprios atores dos movimentos sociais, ela ganha ainda mais sentido, uma vez que substitui a análise distante
de assessores e especialistas, pela memória das pessoas envolvidas nos próprios acontecimentos. A análise de
conjuntura foi um instrumento muito utilizado no final da década de 1970 e ao longo da de 1980, quando do
processo de redemocratização no Brasil. Diversas ONGs desenvolveram este tipo de atividade, sendo que o
Instituto Brasileiro de Análises Socioeconômicas (IBASE), através da figura de Herbert de Souza (Betinho),
desenvolveu um método próprio de fazer análise que resultou no livro Como se faz análise de conjuntura.

175
Foto 16: Palestra durante Encontro Municipal do MNLM Foto 17: Votação durante Encontro Municipal do
MNLM

Foto 18: Grupo de discussão durante Encontro Municipal do MNLM

176
de revitalização do centro da cidade. Em seguida, enfatizou que para haver transformação
social é preciso haver “união”, “organização” e “formação política”. Para tanto, propôs o
desenvolvimento de um “coletivo de formação articulada” para fomentar práticas de
estudos, leitura de artigos, textos, jornais e revistas e discussão de filmes. Após sua fala, foi
aberto um debate e as pessoas puderam tirar suas dúvidas e expor suas ideias.
Em seguida, os cerca de 60 participantes foram divididos em três grupos que se
sentaram em círculo para debater temas considerados estratégicos para o movimento:
violência, juventude, mulher, etnia, especulação imobiliária, moradia digna,
revitalização do centro e saúde. Em cada grupo participavam os ocupantes da Manuel
Congo e famílias de uma futura ocupação54, sendo que cada um era incentivado a falar. Os
primeiros deveriam comentar sobre o que o MNLM (e os moradores de maneira geral)
estavam fazendo e o que poderiam fazer a respeito de cada tema proposto. Já os futuros
ocupantes, a partir das observações e contribuições, deveriam falar sobre como poderiam
aprender com outras experiências e o que esperar da nova ocupação. Ao fim da discussão,
cada grupo deveria escolher um relator para apresentar, na plenária final, as propostas
elaboradas coletivamente.
Como na época ainda não conhecia muita gente, aproveitei para me inserir
aleatoriamente em um grupo, escolhi o que tinha menos gente, na tentativa de reforçar, pelo
menos quantitativamente, o debate. Sentei-me em círculo junto aos demais participantes e
comecei a acompanhar a discussão. O primeiro tema escolhido por este grupo foi
juventude. Os comentários gerais eram: durante pouco mais de um ano, muita pouca coisa
havia sido feita para os jovens na ocupação. “Os jovens estão querendo avançar, mas
precisa de alguém para instruir eles!”, comentou Fabiana, uma das moradoras, “vamos
fazer reunião com o jovem. Eles gostam de estar inventando”, concluiu. Uma moça, que
participava da discussão, aproveitou para interceder. Ela reconheceu que já havia iniciativas
como esta, mas que os projetos não iam para frente devido à falta de mobilização dos seus
próprios colegas. “A Bárbara e a Ritinha desistiram de fazer reunião porque os jovens não
vão, quando vão, sobem [para suas casas] logo!”. Diante deste impasse, as pessoas
começaram a se perguntar: quais os fatores que contribuíam para a falta de interesse da
                                                                                                               
54
Na ocasião de realização do Encontro, havia a participação de várias pessoas que estavam se reunindo a
alguns meses para ocupar um novo prédio, organizado pelo MNLM, que daria origem à ocupação Mariana
Crioula.

177
juventude? “O problema não está na ocupação e nem na escola. É preciso que os jovens
conversem entre si!”, recomendou um dos participantes. Fabiana reconheceu que “o
essencial é educação e escola. Se o pobre quiser ele chega onde for, é só ter educação e
escola.” Um pouco desanimada completou dizendo que todas as vezes que seu filho
chegava na reunião do Coletivo de Juventude55 não havia nada para discutir. Dinorah, que
participava do grupo apenas observando, aproveitou para apresentar uma nova questão:
“será que as coordenadoras não devem partir do que o jovem gosta para, a partir daí,
discutir o que fazer com ele?” Diante da sugestão, o grupo começou a se entreolhar, numa
tentativa encontrar uma saída: afinal qual seria o desejo dos jovens? No entanto, uma garota
de cerca de 20 anos reconheceu que “os jovens não participam por falta de interesse deles
mesmos.” Ela frisou que já teve a presença de um professor de capoeira, “a pedido da
própria garotada”, mas após uma semana de aulas, não havia mais aluno interessado. Até
então calada, uma senhora decidiu diagnosticar “se os pais não estão conseguindo, é
necessário um psicólogo!”. No mesmo instante, outro morador ponderou “o pai tem que ter
comunicação com os filhos, tem que saber cativar. O processo de crescimento é demorado,
é preciso paciência. Tudo tem que ser pausado, nem se dedicar totalmente, nem deixar a
pessoa à vontade.” O debate estava travado: afinal, qual o ponto de equilíbrio? Como atrair
o jovem, como torná-lo partícipe das questões que mobilizam o próprio movimento? Em
que medida a desmobilização, tomada em si como um problema, era originária deles, da
escola, dos pais ou dos coordenadores? Em que medida era uma combinação de todos estes
fatores? Apesar de todas estas inquietações, uma questão precedente merece destaque: por
que a juventude é considerada uma categoria política estratégica para os movimentos de
ocupação?
Descrever a maneira como este Encontro se desenrolou nos permite perceber certo
modus operandi presente nas estratégias de mobilização dos movimentos sociais. No
entanto, não nos interessa aqui fazer uma análise minuciosa da maneira como esta
“forma”56 social de reivindicar direitos e legitimar lutas se realiza através de códigos de

                                                                                                               
55
Conforme visto no capítulo 1, o Coletivo de Juventude e Cultura e de Mulheres, assim como as comissões
de Provimento e de Infraestrutura foram criados em Assembleia e instituídos na Carta de Princípios logo no
início da ocupação. No entanto, na prática, apenas o Coletivo de Juventude chegou a funcionar, ainda que
parcialmente.
56
Sobre a performance das ocupações de terra, com suas barracas de lona preta e bandeira, uma linguagem e
um modo de fazer afirmações por meio de atos, destinada a fundar legitimidades ver Sigaud, 2000. Sobre as

178
conduta, modos de falar e de conduzir debates, maneiras de se reunir, dividir os trabalhos
em comissões, simbolizar e publicizar o sacrifício. Mas o que nos interessa neste capítulo é
capturar elementos que sobressaem a estes aspectos modelares, principalmente quando
referidos à fabricação de determinados sujeitos. Os “jovens”, assim como “crianças” e
“mulheres”, longe de categorias reificadas, fazem parte de um campo semântico, em que se
atribuem valores, depositam-se expectativas, produzindo rótulos, percepções e esperanças
que perfazem os próprios sujeitos.
Neste capítulo, nosso interesse é explorar as matizes, impasses e tensões em torno
da construção de determinados sujeitos tendo em vista o projeto político de uma ocupação
urbana o qual segue as diretrizes do Movimento Nacional de Luta pela Moradia. Para tanto,
é preciso observar a maneira como estes sujeitos são conduzidos, instruídos e disciplinados
convergindo para um ideal de coletividade. Como alertado anteriormente, embora a
discussão sobre juventude não estivesse no foco desta tese, existem várias situações que
parecem atestar a importância que os jovens têm no projeto coletivo da ocupação. Neste
sentido, tanto as falas dos moradores como as da coordenação, as diretrizes gerais do
próprio movimento, as preocupações dos colaboradores da “escolinha” assim como a Carta
de Princípios são elementos suficientes para que possamos pensar a maneira como os
“jovens” são transformados em “protagonistas e futuros agentes políticos”. Para que
possamos tornar a discussão mais profícua, recupero algumas literaturas que problematizam
a maneira como os “jovens” são constituídos como categoria política que, mais do que
identidades fixas, geracionais ou de gênero, são efeitos de instituições, práticas e discursos.
Por tratar-se do Dia Nacional da Consciência Negra outro tema que mereceu debate
no grupo foi a questão étnica. Em certo momento, alguém reconheceu que antes da
concretização da ocupação, as pessoas discutiram e conheceram a história de Manuel
Congo. “Quem foi este escravo? Qual a importância de sua liderança? Como está a situação
do negro no Brasil?” Eram algumas questões postas para os participantes do grupo. Uma
coordenadora ainda foi adiante: “podemos discutir o preconceito numa perspectiva
ampliada, pelo gênero, pela desigualdade social...”

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                               
múltiplas performances em torno das reuniões em sindicatos rurais, ver Comerford, 1999. Vale ressaltar que
nas performances não há só manifestação, mas sobretudo criação.

179
Assim, apesar de um leque maior de discussões, três eixos pareciam conduzir o
debate: juventude, mulher e etnia. A pergunta que norteava a discussão era: “será que a
Ocupação Manuel Congo conseguiu avançar durante este ano, em algum ponto?” Apesar
das divergências, todos pareciam concordar em um aspecto: neste período, o que mereceu
destaque foi a maior solidariedade entre as pessoas. Segundo Fabiana, “com a cozinha
comunitária, as pessoas ficaram mais tranquilas, mais unidas”. A coordenadora nacional
aproveitou para interpelar, “então, falta a gente conversar sobre que tipo de assunto?”
Silêncio... ninguém soube responder. Ela continuou “se a pauta é um eixo de discussão e
ainda não foram discutidos alguns pontos, é preciso retomá-la como bandeira.” Esta
orientação parecia ecoar os princípios do próprio movimento estabelecidos na Carta de
Princípios: é preciso “construir um espaço democrático de luta dos milhares empobrecidos
do nosso país”, “participar dos espaços de organização e fortalecimento da luta”, “organizar
a juventude e as mulheres”, “transformar os espaços conquistados em espaços de uso
coletivo”, “construir uma rede de solidariedade”, enfim é preciso criar uma “agenda de
reuniões”, elaborar projetos, dar continuidade ao trabalho...
Após as discussões dos três grupos, cada um teve que escolher um “relator” para
apresentar o resultado do debate. Como nenhum grupo decidia por um representante, os
dois coordenadores nacionais do MNLM, que conduziam a atividade, optaram por
sistematizar e escrever as propostas de cada um num grande bloco exposto no centro da
sala. Em seguida, foram lendo lentamente cada proposta.
Para o Grupo 1, em relação à juventude, era necessário se fazer um diagnóstico
para saber o que os jovens querem, para então elaborar alguma atividade com a ajuda dos
familiares. Quanto ao eixo mulher, chegou-se à conclusão de que foram feitas algumas
reuniões, mas devido à responsabilidade da mulher no lar e dos múltiplos papeis que
desempenha na sociedade, faltou dar continuidade e saber onde se quer chegar. “Tudo que
começa, para”, era o comentário geral. Quanto ao aspecto étnico, concluiu-se que ele só foi
contemplado em uma reunião, quando foi discutido o nome da ocupação. Por isso, é preciso
trabalhar a questão da “negritude” no dia a dia, uma vez que “os próprios jovens acham que
este assunto não faz parte da vida deles”, chamou atenção uma das moradoras.
Para o Grupo 2, no quesito juventude foi chamada atenção para a necessidade de se
criar uma capacitação ampla com palestras semanais direcionadas aos jovens. Em relação à

180
etnia foi consenso a criação de um ambiente de boa convivência e respeito entre pessoas de
“raças” diferentes57. Quanto à violência foi observado que as mulheres, assim como as
crianças e idosos estão sendo desrespeitados nos seus direitos sociais. Além destes eixos,
outro ponto que mereceu destaque foi a revitalização do centro. Quanto a isto, foi feita
uma proposta para um levantamento dos prédios abandonados na área central do Rio além
de uma mobilização com outros movimentos sociais para pressionar o poder público sobre
a maneira como os pobres estão sendo incluídos (ou excluídos) neste processo de
revitalização.
O Grupo 3 começou seu relatório apontando para uma questão: “a violência não é
só física, mas moral. A falta de moradia já é um tipo de violência que provoca outras.” Em
sua apresentação, o grupo destacou a violência como o eixo norteador através do qual os
outros puderam ser costurados e contemplados. Deste modo, foi citada a Carta de
Princípios como um documento que tentava minimamente regular os comportamentos para
não haver violência na ocupação. No entanto, reconheceram que ela por si só não era
suficiente, era preciso outros artifícios como, por exemplo, esclarecer o sentido da Lei
Maria da Penha e estimular as mulheres a fazerem denúncia, procurando apoiá-las em
situações de violência. Foram citados ainda os despejos forçados como mais um ato
violento que estava se tornando comum na cidade. Em relação à juventude, foi apontada a
necessidade de mobilização dos jovens, articulando reuniões, encontros, fóruns, de modo a
trabalhar com a formação política e artística. Quanto à etnia, era preciso apoiar as
manifestações de cultura popular e lutar contra a discriminação.
Depois de lido cada ponto, um dos coordenadores nacionais perguntou se todos se
sentiam contemplados ou se havia necessidade de incluir algum ponto. Todos negaram e foi
dado o prosseguimento às tarefas. Os coordenadores chegaram à conclusão de que as
propostas estavam muito mais relacionadas à identificação de problemas do que a
desdobramentos e planos de ação capazes de enfrentá-los. “O que foi lido agora deve ser
                                                                                                               
57
Sobre a oscilação entre raça e etnia, Verena Stolcke (1993) recupera o caminho político que foi feito em
relação ao conceito de raça para transpor para a discussão de gênero. No pós-guerra, argumenta a autora,
houve um trabalho intenso de questionamento da raça como verdade biológica. Se a raça é uma invenção, o
uso do termo etnia aparece justamente para dar conta de todos os aspectos culturais, históricos, linguísticos,
religiosos, etc. que caracterizam os grupos humanos. Da mesma maneira, o termo gênero aparece para mostrar
que o sexo é uma construção social não se referindo a aspectos biológicos. No entanto, para a autora, não é
substituindo raça por etnia que você acaba com as desigualdades ou com os princípios racistas. Afinal, as
construções ideológicas não são uma linha de raciocínio tão linear, mas tem múltiplas facetas e dinâmicas
interligadas, ordens de hierarquias que rebatem umas às outras.

181
transformado em proposta e executado por todos nós. Mas como fazer? Como vamos
combater? Precisamos tirar as ferramentas de luta. Vocês não apontaram como enfrentar,
apenas disseram que deve ser enfrentado”, alertaram os coordenadores. Diante do impasse,
os dois propuseram uma “agenda de reuniões” para decidir as formas de luta. “Trabalhar
com esses eixos é obrigação e necessidade do MNLM a nível nacional!”, alertaram.
De imediato, um dos representantes aproveitou para apontar algumas necessidades
primordiais, como a criação de um Coletivo de Juventude municipal. “A coordenação
municipal do MNLM pode organizar a reunião do coletivo. Chama os jovens, discute suas
questões, tira os coordenadores e leva para a coordenação nacional”, orientou. Quanto ao
gênero, os participantes reconheceram que foram feitas algumas tentativas de reunião, mas
por falta de continuidade, parou. Alguém na plateia reconheceu: “é porque a mulher já tem
muita responsabilidade no lar!” No entanto, um dos coordenadores voltou a insistir: “é
preciso fazer uma reunião com todas as mulheres da ocupação!” Neste momento, foi gerada
uma pequena polêmica pois algumas pessoas apontaram a necessidade de formação de um
coletivo masculino, aparentemente a fim de que os homens também se mobilizassem pelas
causas coletivas. A resposta dos coordenadores foi imediata: “é novo no mundo os
oprimidos querendo que os opressores se organizem”, criticaram. Relembrando o processo
de formação dos coletivos, os coordenadores recordaram que a construção da Brigada58,
conforme consta na Carta de Princípios, foi uma tentativa de mobilizar alguns homens para
participarem dos assuntos da ocupação, uma vez que as próprias mulheres reconheceram
que os homens quase não participavam das atividades. Por isso, seria necessária uma
reunião dos homens para discutir os valores da Carta. Mas “nunca que se formasse um
coletivo de homens. Isso é uma aberração! Estamos voltando à ideia de ‘Terra, família e
propriedade’”, declararam consternados os coordenadores. Nesta perspectiva, eles
procuraram deixar claro que a organização das mulheres em uma Comissão específica se
deve ao fato delas fazerem “parte de uma parcela oprimida da história. As mulheres
apanharam durante milênios. A Lei Maria da Penha é a vingança fatídica. A nossa luta é
para que a classe trabalhadora não se espanque, a nossa luta é guardar nossas forças para

                                                                                                               
58
Na Carta de Princípios a “Brigada de Apoio”, composta inicialmente por cinco membros, aparece como o
coletivo que deve, dentre outras tarefas, zelar pelo cumprimento das regras internas deliberadas em
Assembleias e auxiliar o Comitê Democrático de Gestão no que couber.

182
bater contra nosso verdadeiro inimigo”. E, para finalizar, reafirmaram a bandeira de luta já
posta na Carta de Princípios: “temos que defender as crianças, as mulheres, os negros e os
idosos. Devemos estar junto de onde está a vulnerabilidade do nosso povo! Onde está a
vulnerabilidade dos homens? Só no desemprego”, alertaram.
Neste instante, o palestrante que havia inaugurado o Encontro na parte da tarde,
pediu a palavra numa tentativa de esclarecer a inquietação dos coordenadores: “cabe às
mulheres se organizarem e desenvolverem atividades para que os homens possam ir e
participar. A violência é geral, não é só o homem que bate na mulher”, ponderou o
debatedor.
Em seguida, todas as pessoas foram convocadas para aderir ao ato do dia nacional
de luta pela reforma urbana, que se realizaria alguns dias depois. “Nós estamos indo para a
luta, não venham de sapato alto, saia justa! Venham à vontade, com tranquilidade que a
gente vai conseguir a comida”, sugeriu uma das representantes do movimento. Por último,
como tarefa final, foram escolhidos os nomes de cinco pessoas para serem os novos
coordenadores municipais responsáveis por “falar em nome do movimento”. “A luta é
grande, precisa de pessoas com lutas específicas para representar o movimento”, chamou a
atenção um dos coordenadores nacionais, “a pessoa deve andar na linha e obedecer às
diretrizes do movimento nacional”, concluiu.
Esta recomendação nos chama atenção para uma questão debatida por Bourdieu
(2001), a necessidade de preparação das pessoas que integrarão o campo político. A fim de
que “representem o movimento”, que “falem em nome do coletivo” como alerta o
coordenador, é necessário que estes sujeitos estejam preparados para tal empreitada, que
sejam “(…) portanto responsáveis, no sentido do inglês responsable, quer dizer,
competentes, sérios, dignos de confiança, em suma, prontos a desempenhar com constância
e sem surpresas nem traições o papel que lhes cabe na estrutura do espaço de jogo.”
(Bourdieu, 2001: 172, grifos do autor). Este compromisso supõe, portanto, “andar na linha
e seguir as diretrizes” postas pelo MNLM, caso contrário, o líder corre o risco de perder a
confiança a ele delegada.
A partir da descrição acima podemos concluir que o projeto de construção de
“representantes” é carregado de expectativas. Um ponto que parece vir à tona diz respeito a
dois eixos tidos como estratégicos para o movimento (“juventude” e “mulher”) e que, por

183
sua vez, refletem duas esferas de significação que se misturam o tempo todo, ora
convergindo ora divergindo, o território doméstico e o território político. Por que será que
estes sujeitos e estes espaços são considerados emblemáticos nos movimentos de luta pela
moradia? Até que ponto as esperanças neles depositadas viram canais concretos de
construção de direitos? Como veremos a seguir, os “jovens”, ao serem construídos como
“protagonistas e agentes políticos” do movimento devem estar mobilizados em prol de um
projeto coletivo de moradia e, em contrapartida, as mulheres, representando a moral vivida
que sustenta o engajamento político, não estão organizadas institucionalmente. Neste
sentido, o que significa ser “jovem” e “mulher” em uma ocupação urbana? Como estas
pessoas lidam com o peso destas categorias e que códigos acionam para lidar com os
dilemas cotidianos oriundos das relações entre casa e moradia?
Durante o trabalho de campo, “crianças”, “jovens” e “mulheres”, ainda que
remetendo a universos diferentes, apareceram como figuras-chave não só nas falas dos
coordenadores e nas orientações da Carta de Princípios, mas povoavam o imaginário dos
moradores como aqueles a quem se deve prestar cuidados. Como sinalizou uma das
idealizadoras da “escolinha”, “por estarmos em um local de movimentação populacional e
próximo a lugares de muita vulnerabilidade e risco, este projeto deverá garantir a proteção
das crianças e adolescentes da ocupação.” Nestes novos tempos em que se verifica a
transferência do protesto do campo econômico para o campo cultural (Touraine, 1985),
essas categorias parecem substituir a emblemática classe operária, ou melhor, conjugam-se
a ela reformulando as demandas dos chamados “novos movimentos sociais”.
De modo semelhante, mas em outro contexto etnográfico, Quirós (2006) indica que
alguns autores, preocupados em dar ao termo piquetero o estatuto de uma nova identidade
social e ao piquete a instância privilegiada de produção dessa identidade, acabam
pressupondo um vazio que se restituiria pelos laços de pertencimento ao movimento. No
entanto, alerta a autora, se pensarmos exclusivamente em termos de rupturas e de aparição
de um “novo”, acabamos por demarcar fronteiras por demais taxativas demonstrando que
antes dos piqueteros não havia nada e que após esta conversão surgiria uma nova realidade,
horizontal, participativa, autônoma. Deste modo, mais do que identidades, a vida dessas
pessoas transcorre em identificações – circunstâncias, estados – que se deslizam em uma
multiplicidade de trajetórias e relações, sempre parciais (Quirós, 2006). São estes

184
movimentos, por exemplo, que permitem que Marina opte não ir a uma passeata, por
colocar seus filhos em risco e, em outro momento, afirme “fazer parte da ocupação mudou
totalmente minha visão de vida, em relação à militância popular... eu consegui ver o mundo
por outro ângulo.”
Não é o objetivo desta tese, porém, discutir a formação de um novo ator social, a
constituição de novas identidades e de novas formas de sociabilidade em um movimento
sem-teto. Conforme fui percorrendo ao longo do texto, tendo em vista diferentes inserções
no movimento, surge uma multiplicidade de atuações e posições que são constantemente
negociadas e confrontadas, dificultando uma delimitação identitária. Assim como os
chamados piqueteros são mais do que piqueteros e fazem mais coisas do que piquetes, os
chamados “sem-teto” extrapolam esta categoria, demonstrando que a luta por um teto vai
muito além de um canto para morar. O que nos interessa, portanto, é demarcar este jogo
discursivo e categórico de converter sujeitos numa doxa do movimento e, paralelamente,
toda a luta simbólica que se processa a partir dessas representações. Como determinados
sujeitos são indexados deixando transparecer toda uma tensão entre um projeto político e
projetos familiares? E mais, qual a positividade desta tensão que, por meio da conversão
para outra visão de mundo, articula pessoas para um projeto mais amplo de justiça social?
Para tanto, vale recuperar algumas etnografias a fim de perceber modos particulares
de representação política, maneiras de se legitimar através da construção de direitos
específicos para sujeitos específicos. Analisando os processos de subjetivação inerente ao
projeto identitário que atua com intensidades variadas no Movimento dos Atingidos por
Barragens (MAB), André Guedes (2006) observou que o “atingido por barragem” não é
qualquer pessoa que tenha sofrido danos em razão do advento de uma barragem, mas um
sujeito político oriundo de resistência, mobilização e luta coletiva.
Através dos cursos nacionais de formação de militantes, Guedes pôde verificar a
elaboração de práticas pedagógicas que são colocadas a serviço de uma determinada
estratégia política que visa formar militantes de acordo com um “modelo de atingido”.
Neste sentido, estes cursos, por reunir pessoas das mais diversas regiões do país, tinham a
importância de propiciar troca de experiências, trazer conhecimento e sociabilizá-los para o
fortalecimento do movimento, além de estabelecer “pessoas com potencial multiplicador”.

185
Vale destacar, portanto, que este projeto identitário está atrelado a múltiplas dimensões,
sendo também:
“(a) um ‘projeto pedagógico’, uma vez que leva a cabo práticas
relacionadas à ‘formação’ e/ou ‘educação’; (b) um ‘projeto discursivo’, já
que promove a disseminação de determinadas maneiras de falar que são
simultaneamente objetivo e instrumento de realização desse projeto; (c)
um ‘projeto ideológico’, pela intenção de provocar um alinhamento
ideológico dos militantes a partir da ‘exportação’ e difusão de um modelo
de ação política específico” (Guedes, 2006: 15, grifos do autor).

Embora o foco desta tese não seja a formação de lideranças propriamente, muito
menos do atingido-militante, vale observar a maneira como alguns movimentos sociais
organizam cursos, reuniões, mobilizações, ocupações, marchas e manifestações no intuito
de agrupar e constituir determinados sujeitos em prol de um projeto de luta coletiva. Assim,
para sintetizar apenas algumas preocupações do MNLM: que juventude é esta que se
pretende construir? Como organizá-la para um “projeto de luta e esperança”? Como
gerenciar as crianças para que incorporem códigos de comportamento adequados para uma
vida comunitária? Como articular as mulheres restaurando sua “autoestima” e propiciando
a “emancipação feminina”? Além de considerar a “eficácia das representações” na criação
das condições para o fazer e desfazer de grupos sociais, é necessário, por outro lado,
perceber como estes sujeitos recepcionam estas imagens, como negociam com elas e a
partir delas, tendo em vista que não são meros usuários “supostamente entregues à
passividade e à disciplina” (De Certeau, 1998: 37). Como visto no capítulo 2, entre as
normas e prescrições de conduta e as ações dos sujeitos existe um conjunto de
“combinatórias de operações”, “modos de proceder da criatividade cotidiana” e “maneiras
de fazer” que dizem respeito às formas através das quais se processa a apropriação ou
leitura desses códigos e, em última instância, ao projeto político-moral de gestão da casa.
Por ora, vale destacar que, na ocupação, a produção da “juventude” como sujeito
protagonista não está descolada de um projeto político de coletivização, mas este mesmo
projeto supõe participação, formação e ressignificação dos sujeitos. De maneira
semelhante, Elisa Guaraná de Castro (2005) analisa como o “jovem rural” é construído
como categoria de pensamento a partir da disputa de percepções sobre as relações
pais/filhos e jovens/adultos em um assentamento rural da Baixada Fluminense, região
metropolitana do Rio de Janeiro. Ainda que assuma posição de destaque nos discursos

186
sobre a continuidade do assentamento, já que é visto como espaço de projeção política, ser
jovem “carrega” múltiplas marcas. Assim como pude observar na ocupação, a disputa sobre
a “juventude” envolve situações de pouca confiabilidade nas relações familiares, “essa daí
só me traz problema, só quer namorar, não quer estudar”, a exclusão do próprio grupo em
determinados espaços e momentos, ou ainda a categoria é tida como “pivô” de uma
possível descontinuidade do projeto coletivo, “a maioria dos jovens daqui não quer saber de
nada do que está se passando.”
Conforme sugere Abramo (2008):
“... juventude é desses termos que parecem óbvios, dessas palavras que se
explicam por elas mesmas e assuntos a respeito do qual todo mundo tem
algo a dizer, normalmente reclamações indignadas ou esperanças
entusiasmadas” (Abramo, 2008: 37).

Nesta perspectiva, vale frisar a fronteira simbólica na qual o jovem se encontra ou é


classificado enquanto tal. Ao mesmo tempo em que ele é visto como espaço de projeção,
sujeito de formação política por excelência, o suposto desinteresse dos jovens, seja pela
terra, pelo prédio ocupado ou por questões tidas como “políticas”, é apresentado como um
problema crucial a ser superado. Perambulando entre a indignação e a esperança, essa
categoria vai sendo moral e politicamente forjada.
Como demonstra Castro (2005), esta situação se torna ainda mais dramática quando
referida à imagem de assentamento “velho”, construída pelos informantes rurais. Se, de um
lado, os “velhos” aparecem como as pessoas que não têm mais condições de manter os
lotes, os jovens, por outro lado, devem seguir adiante esta empreitada. No entanto, estes
últimos eram reconhecidos como aqueles que haviam rompido com sua responsabilidade de
manter o assentamento.
Apesar de identificar esta percepção da descontinuidade do projeto coletivo associada
ao desinteresse dos jovens, não pude, todavia, remetê-la a uma possível atração pela cidade,
conforme aponta as pesquisas sobre juventude rural. Desta forma, a quem ou a quê atribuir
o desinteresse dos jovens da Manuel Congo? Será que a cidade é o único elemento capaz de
desmotivar o jovem para as questões coletivas? E o que dizer daqueles que já estão
inseridos no contexto urbano? Essas são apenas algumas pistas para prosseguirmos em
nossa análise. Por ora, voltemos a Eldorado.
Conforme identificou Castro (2005), se os jovens não participavam e estavam indo

187
embora do assentamento, o que explicaria a presença de uma moça de 27 anos na
presidência da Associação dos Pequenos Produtores do Mutirão Eldorado (APPME)? Se,
por um lado, havia a presença de uma jovem em um papel prestigiado no assentamento, por
outro, persistia a imagem de que os jovens tinham outros interesses que extrapolavam os
limites rurais. Do mesmo modo, se são frequentes os rumores sobre a desmobilização dos
jovens na Manuel Congo, por que podemos encontrar pessoas como Ritinha, Marina e
Bárbara que, nos seus vinte e poucos anos, executam tarefas estratégicas para o movimento,
ocupando, em certos momentos, cargos de coordenação?
Neste sentido, vale frisar que ser jovem não se restringe apenas a uma faixa etária,
mas envolve outros atributos, discursos e práticas de identificação e/ou auto-atribuição.
Afinal, o que é ser jovem em uma ocupação urbana? Mesmo que não estejamos trabalhando
com a “visão da juventude”, torna-se mister observar como ela é projetada como sujeito do
devir, como aquilo que ainda não existe, mas que pode e deve vir a ser. Que estatuto é este
que tentam imprimir a estes rapazes e moças? Estarão aí incluídas as crianças que, na sua
energia inesgotável, teimam em circular pelos espaços, mas que, para evitar a perda de
controle, são a todo momento capturadas pelas redes de cuidado, fixadas no ambiente
doméstico e na “escolinha”?
Vale aqui enfatizar que o “jovem”, e todas as mobilidades a ele atribuídas, remete à
tensão, já muito explorada neste trabalho, entre o projeto político do movimento e os
projetos familiares. Se não estamos trabalhando com critérios etários, talvez os “jovens” e
as “crianças” representem este dilema entre a fuga, aquilo que escapa, a desordem, o
nomadismo, o componente desestabilizador e a fixidez, o comportamento ordenado, o
projeto coletivo, o prédio mapeado, o ambiente seguro. Os “jovens” e “crianças” são,
portanto, aqueles que ameaçam e até invertem as hierarquias, colocando em xeque a própria
autoridade dos professores, coordenadores e pais. Neste sentido, devem ser classificados
em um projeto político maior de categorização, aprendendo códigos de comportamento,
limpeza, higiene e liderança para que assumam a responsabilidade de formação e
continuidade da ocupação. Deste modo, ambos devem ser retirados da rua ou mesmo do
corredor, de uma zona cinzenta, lócus do contágio, do mau comportamento, espaço da
perda do controle e reinseridas nos ambientes “seguros” da disciplina. Externando esta
preocupação, uma das responsáveis pela “escolinha” reconheceu que “em algumas áreas do

188
Rio de Janeiro, denominadas cracolândia, as crianças e adolescentes têm sido as vítimas
preferenciais do comércio de drogas, levando à perda parcial ou total do seu referencial e
identidade.” Assim, é preciso que as crianças e os jovens sejam protegidos, que conheçam o
lugar onde moram, que valorizem sua condição de morador de uma ocupação e que se
mobilizem pela coletividade.
Conforme sinalizou Ritinha, quando começaram as reuniões para a futura ocupação
Manuel Congo, a primeira pessoa com quem “pegou amizade” foi a coordenadora nacional
do movimento, talvez preocupada em garantir de antemão uma maneira da jovem se
sensibilizar com a causa coletiva.
“Foi a Ângela que me explicou, perguntou quantos anos eu tinha, por
quê? (...) Eu tinha 19 anos, porque eu fiz 21 agora. Aí eu falei a minha
idade, ela falou assim ‘nossa, não acredito.’ Ninguém acreditava que eu
tinha aquela idade. Ela começou a se interessar por ver jovem, vamos
dizer, de uma área, classe baixa, se interessar por essas coisas. (...) Então,
eu sempre me interessei por esse lado da juventude. Quando ela falou para
mim ‘Ritinha, a gente quer que você fique do nosso lado’, ela falava
comigo. Eu falei ‘que lado? Não estou entendendo.’ Ela falou ‘assim que
a gente entrar, você vai saber o porquê.’” (Ritinha)

Neste sentido, apesar de uma leitura recorrente59 que define a “juventude” como um
período de transição, estando inserida numa faixa etária específica, é preciso compreender o
“jovem”, especificamente o da Manuel Congo, como este sujeito que ocupa uma zona
fronteiriça, que é impelido a ter consciência crítica, a aderir a projetos coletivos, mas que
esbarra em suas prerrogativas, que circula por aí, escapando das normas e forjando outras
formas de vida. Talvez estejamos falando aqui de “devires minoritários” que escapam dos
axiomas que capturam energias sociais e afirmam outras possibilidades de vida, outras
maneiras de problematizar a existência (Telles, 2010: 124).
A categoria “juventude” é central não só para os movimentos sociais, mas aparece
como objeto de investigação para diversas disciplinas, além de nortear a atuação do poder
público. O desafio que se coloca é não reificar essa categoria, mas procurar compreendê-la
em suas múltiplas práticas e significados. Neste sentido, o diálogo com as questões
exploradas por Castro (2005) é de grande validade não porque a autora realizou um

                                                                                                               
59
Castro (2005) esclarece que a concepção que define o “jovem” a partir de limites mínimos e máximos de
idade se estabeleceu a partir da Conferência Internacional sobre Juventude (Conferência de Grenoble-1964),
sendo posteriormente amplamente discutida.

189
“inventário extenso” sobre o tema, mas porque o trânsito com outros campos temáticos
propicia uma gama de recortes e abordagens que podem contribuir para a análise da
construção social dessa categoria e como ela nos permite antever os dilemas entre território
doméstico e território político em uma dada ocupação urbana.
Neste mapeamento, a autora identifica que, atravessando as abordagens que definem
a categoria a partir de elementos físicos/psicológicos, como faixa etária, mudanças
biológicas ou comportamentais, existe a frequente associação de “juventude” a
determinados problemas sociológicos ou como agentes privilegiados de transformação
social. E é neste ponto que os nossos interesses se entrecruzam, perceber como estas
representações vão sendo tecidas e como perambulam por duas formas de representação,
aparentemente contraditórias: problema e vanguarda.
Castro (2005) esclarece que estas percepções, aparentemente opostas, se aproximam,
pois partem da visão do “jovem” como ator social detentor de certas características e
atributos. O ponto de partida, em muitos casos, é uma categoria genérica e pré-construída.
Entretanto, longe de perceber o “jovem” como dotado de características que definem
indivíduos a priori é preciso explorar de que modo definições tais como “jovens em
situação de risco”, “jovens delinquentes”, “comportamento desviante”, “juventude
transformadora” ou “juventude questionadora” vão sendo construídas a partir de
determinados contextos, projetos políticos e programas sociais.
No caso do MNLM existe uma preocupação apriorística em aportar a esta categoria
um espaço privilegiado de vanguardismo político. Além da constituição de uma
coordenação nacional de juventude e de núcleos de juventude nos estados, há nos
documentos do movimento algumas orientações no sentido de priorizar espaços e políticas
voltados tanto à educação e formação em caráter mais geral, quanto às crianças e
adolescentes, em específico. No caso da Manuel Congo, reservou-se, desde o início da
ocupação, um espaço destinado à formação e interação das crianças e adolescentes, o
Espaço Criarte Mariana Crioula, conhecido como “escolinha”, conforme sinalizamos nos
capítulos anteriores.
Dinorah, moradora da ocupação e uma das responsáveis pelo espaço, aposta nesse
protagonismo infanto-juvenil:

190
“Lá do outro lado tem uma sala... onde há um trabalho de formação, pra
poder contribuir com a criança. Que ela venha da escola, e que ela tenha
aqui uma outra atividade. Não aquela atividade massacrante da escola
formal, mas que ela tenha um momento de lazer, que ela possa discutir as
dificuldades... Pra ela poder se sentir também parte dessa ocupação.
Porque, geralmente, o adulto pensa nele, não pensa no papel que a criança
pode ter, de contribuir também em uma ocupação urbana. Se chama
Espaço Criarte Mariana Crioula. Um lugar onde pode realizar a partir da
arte, mas arte educação. Um lugar onde ela pode estar falando do papel
dela na ocupação, mas também de uma outra forma.” (Dinorah)

Percebe-se, portanto, o estímulo do movimento à participação dos moradores nas


lutas sociais relativas aos direitos das crianças e adolescentes. Os ocupantes da Manuel
Congo, e os jovens particularmente, são incentivados a participar de atos e manifestações,
como as do dia 23 de julho, aniversário da chamada “Chacina da Candelária”60. Outra
iniciativa foi a adesão à caminhada em solidariedade às pessoas assassinadas durante ação
policial no Complexo do Alemão, zona norte da cidade do Rio de Janeiro61. Ritinha recorda
deste episódio:

“Igual teve Campanha da Caminhada da Paz. Chamamos a juventude ‘o


que vocês acham? Porque devemos ir nessa caminhada?’. Foi onde eles
falaram ‘a gente sabia de ver assim na televisão, mas a gente não sabia
que a caminhada pela paz era pela chacina que teve no Alemão.’ E a
juventude que chegou e falou. Então, para você ver que tem coisas que
eles estão por dentro, tem coisas que eles estão totalmente por fora.”
(Ritinha, grifos meus)

Diante do incentivo para que os jovens participem de atos e manifestações como o


aniversário da “Chacina da Candelária”, nos questionamos: por que os jovens da ocupação
tem que se conscientizar deste drama, deste luto? Em que medida o movimento, através
desta mobilização, não estaria comungando da percepção reiterada de “jovem em situação
de risco”, “jovens vulneráveis”? Talvez a captura política do jovem da ocupação passe pela
                                                                                                               
60
A “Chacina da Candelária” ocorreu na madrugada do dia 23 de julho de 1993 próximo às dependências da
Igreja de mesmo nome localizada no centro da cidade do Rio de Janeiro. Aproximadamente à meia-noite,
vários carros pararam e logo em seguida policiais abriram fogo contra mais de setenta crianças e adolescentes
que estavam dormindo nas proximidades da Igreja. Como resultado, seis menores e dois maiores morreram e
vários ficaram feridos.
61
A operação policial no Complexo do Alemão aconteceu em 27 de junho de 2007, no Rio de Janeiro, e
reuniu cerca de 1.300 policiais, entre civis, militares e soldados da Força Nacional. Foi a maior operação
realizada no complexo desde que a polícia ocupou as favelas no dia 2 de maio de 2007. Dezenove pessoas
foram mortas e várias outras feridas. A Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil
da Seção Rio de Janeiro (OAB/RJ) informou ter recebido denúncias de que pessoas sem envolvimento com o
tráfico teriam sido mortas durante os confrontos. (Fonte: Agência Brasil – agenciabrasil.ebc.com.br)

191
captura do ritual, da produção do drama, de eventos críticos que devam ser
compartilhados62. Participar do aniversário da Chacina da Candelária ou da Campanha da
Caminhada da Paz serve para reforçar, de modo simbólico, que os jovens da ocupação,
mesmo que não sofram atos de execução sumária, são partícipes deste sofrimento. Ainda
que a vivência cotidiana na ocupação não se assemelhe ao contexto de meninos e meninas
que moram nas ruas, é preciso que os jovens partilhem de uma memória coletiva, que
participem, solidarizem-se tendo em vista um universo de fronteiras fluidas que ora o
coloca como vítimas ora como protagonistas.
Esta posição dúbia também é reforçada por Ritinha quando ela sintetiza que tem
assuntos que os jovens se interessam - “estão por dentro” - e tem outros que eles não se
interessam - “estão totalmente por fora”. Ao demarcar esta polaridade, ela acaba
reproduzindo as concepções do jovem “problema”, “desligado”, “alienado” que deve, deste
modo, estar “engajado”, ser “transformador”. Neste aspecto, ela se recorda de uma dupla
tarefa empreendida pelos coordenadores de juventude: de um lado, articular momentos
festivos, a fim de que ocorra maior adesão da juventude e, por outro, estimular debates e
situações de discussão política encampando uma agenda de luta maior apesar de, nestes
contextos, muitos não participarem.
“Tem um coordenador que sempre chama para ter atividade na praia,
porque é perto, pra jogar basquete, futebol, fazer piquenique, sempre tenta
incentivar a juventude. E quando estava no momento da festa junina, nós
fizemos nossa festa junina aqui. Foi eu, a Bárbara que ainda estava
fazendo parte e o Matias que convocamos a juventude, ficamos ensaiando
quase um mês pra sair a quadrilha. Chamamos todo mundo para vir... por
isso que a gente sempre tenta fazer mais festa. Porque se for assim... tem
um filme ali. Eles perguntam logo ‘é de quê?’ se fala que é sobre
ocupação essas coisas, eles falam ‘ah, não, mas a gente já sabe sobre o
que é.’ Mas fala assim, ‘não, a gente vai organizar uma festa’, ‘não, tô lá,
vão bora.’ A juventude se interessa mais por esse negócio de festa. Então,
nós tentamos arrumar tudo para que a juventude esteja encaixada nisso.”
(Ritinha)

                                                                                                               
62
Mediante a seleção de um conjunto heterogêneo de “eventos críticos”, Veena Das (1995) tenta mostrar, a
partir do sofrimento cotidiano das pessoas que passaram por estes acontecimentos, como categorias nativas de
“memória”, “tradição”, “honra” e “sacrifício” vão sendo construídas como centrais no confronto entre Estado
e comunidades políticas na Índia. É a partir destes momentos de “quebra do cotidiano” que estas comunidades
se constituem como sujeito político e que passam a ser reconhecidas como “vítimas” sobre quem o Estado
deve atuar “em favor” de seus interesses. Vale ressaltar que, na perspectiva da autora, a violência não é
somente destruição, mas o sofrimento e a dor têm contribuição fundamental na criação de “comunidades
morais”. Ao exigirem justiça e ao se relacionarem com o sistema burocrático e jurídico do Estado, tais
comunidades são deslocadas do mundo privado e “criadas” como comunidades políticas.

192
Mesmo reconhecendo a dificuldade em mobilizar a ala jovem da ocupação para
assuntos considerados de ordem política, Ritinha insiste no fato de que a juventude deve
estar “encaixada”. Afinal, como fixar estas pessoas? Que propostas o movimento forja para
inserir o “jovem” e as “crianças” num modelo de sujeito, de moradia e de gestão social?
Como sintetiza Dinorah, “a ocupação tem que ter preocupação com essa educação”. No
entanto, esta última não se restringe apenas à alfabetização dos mais novos ou reforço
escolar para os mais velhos, mas trata-se de um projeto de “formação de sujeitos críticos,
conscientes da importância da reforma urbana.”
“... as crianças chegavam aqui, pegavam os livros nas estantes e rasgavam
tudo! Os pais olhavam assim e falavam: ‘meu deus, que loucura!’. Hoje
você pode deixar, eles não rasgam. Tem uma estante deles, é
pequenininha, lá na salinha... Tem poucos livros, mas eles têm acesso,
eles podem pegar e eles sabem que não pode rasgar. Quando a gente vê
que rasga, sem aquela coisa de ‘por que você rasgou?’ eu falo ‘gente, isso
acontece...’, e aí vou explicando... Porque é uma coisa muito ruim tratar a
criança como se fosse uma punição. Educação não é punitiva. Nós temos
uma educação punitiva por causa do regime militar, por causa desse
colonialismo... A punição é o quê? Quando você fizer a prova, tem que
tirar tanto, se não tirou... você não está dentro do esquema. Isso não foi
bom pra mim. Então, não quero reproduzir uma coisa que não foi boa pra
mim pras outras pessoas.” (Dinorah)

Esta preocupação com uma forma menos punitiva de educação passa, portanto, pelo
“encaixe” de que falava Ritinha. Novas regras de convívio, novas moralidades, novas
maneiras de se comportar, de se alimentar, de se relacionar, no sentido de formar crianças e
jovens para que assumam o “bastão” e deem continuidade à lógica do movimento.
“Eu trabalho muito a questão do conceito da comida, do comer de tudo,
tento trabalhar a merenda escolar, não essa merenda do refrigerante, mas
assim, vamos comer hoje tomate, a gente leva pra merenda cenoura,
pepino... A criança não come essas coisas em casa. E as mães falam que
eles não gostam. Mas quando chega na escola, corta o pepino em
rodelinhas, pega a cenoura... Nós fizemos, esses dias, um jantar com
batata frita e cenoura. Eu falei ‘só pode comer batata frita quem comer a
cenoura.’ ‘Ah, tia, eu não como cenoura!’ Então, se você faz um suco de
beterraba com laranja, a criança bebe, come, sabe... É refrigerante, é
Coca-Cola, é hambúrguer... Ela tem que comer isso, mas ela precisa ter
um tempo... Então, a gente contando as histórias, a gente vai tentando
mudar um pouco essa pedagogia, essa educação deformada...” (Dinorah)

Se por um lado há um trabalho concreto com as crianças através da “escolinha”, por


outro, são nítidas as dificuldades para organizar os adolescentes em torno das prerrogativas

193
do movimento. Conforme sintetiza a coordenadora nacional, é difícil ter alguém que seja
“jovem” - e, portanto, com afinidade com as aspirações deste grupo - e ao mesmo tempo
com formação e experiência política suficiente para dar conta das tarefas dessa articulação.
“O que eles mais reclamam é a falta de uma metodologia que articule a
questão da luta com os interesses deles como juventude. Então, tem que
ter gente muito trabalhada nisso... Um jovem como eles, pra trabalhar com
eles a questão da organização da juventude, que deve ter um mínimo de
formação política, de capacitação pra isso e também poder ficar dedicado
a isso. Não dá pra fazer um milhão de outras coisas, não só da militância,
mas da vida pessoal... e além disso tudo, se capacitar, ter formação
política para organizar a juventude.” (Ângela, grifos meus)

Através do discurso da coordenadora, podemos explorar alguns termos que parecem


pertencer a uma linguagem corrente nos movimentos sociais, tais como “metodologia”,
“organização”, “formação política”, “capacitação” e “militância”. Estas ideias além de
remeterem a uma forma de mobilização política demonstram a preocupação em identificar
como deve ser o “jovem” da ocupação. Por mais que ele “só se interesse por negócio de
festa”, é preciso capturá-lo, localizá-lo moralmente no espaço da ocupação, a fim de que
possa dar continuidade a luta.
Conforme observou Guedes (2006), um sujeito político não surge fortuitamente,
mas está atrelado a um contexto de mobilização e luta coletiva, a um projeto político,
pedagógico, ideológico e discursivo de fabricação de militantes. Analisando o material
pedagógico distribuído aos militantes durante os cursos de formação, o autor verificou que
este processo passa por uma forma de ver e falar da realidade, um posicionamento
particular perante o mundo social. No entanto, vale esclarecer que os cursos de formação
não são a única instância de realização do projeto identitário do MAB, assim como a
“escolinha” e o “Coletivo de Juventude” não são os únicos espaços responsáveis por
alimentar o potencial de luta das crianças e jovens. Mas reuniões, atos, manifestações, datas
comemorativas, festas, passeios, discursos e palavras de ordem também funcionam como
rituais e eventos privilegiados capaz de reforçar o ideal de coletividade.
Conforme visto na Introdução, tive oportunidade de participar de alguns destes
momentos simbólicos de reforço do ideal de luta. Um deles foi durante a comemoração do
aniversário de um ano da ocupação. Nesta ocasião, foi passado o filme feito durante o
despejo dos moradores do Cine Vitória, local de primeira tentativa de ocupação. Enquanto
as imagens iam sendo projetadas, as crianças, em estado de euforia, começavam a entoar

194
gritos e palavras de ordem, puxadas por Sandra, uma moradora com voz grave e potente:
“Reforma Urbana já!”, “Manuel Congo: presente!”, “Ocupar, resistir pra morar!”, “1, 2, 3,
4, 5, mil, ou faz reforma urbana ou paramos o Brasil!”, “A nossa luta é todo dia, moradia
não é mercadoria!”. Participar daquela cena, com o bolo enorme produzido e confeitado
durante toda a madrugada, a sala decorada com cartazes, bandeiras, bolas vermelhas e
brancas, as pessoas arrumadas e reunidas, as crianças correndo e gritando, o vídeo do
despejo e as aclamações posteriores foram importantes para compreender como este
processo de formação de sujeitos vai sendo forjado de maneira muito sutil, mas bastante
eficiente.
Estas práticas de mobilização e agenciamento de sujeitos também são observadas
em outros estudos. Conforme visto no primeiro capítulo, ao analisar processos de
mobilização para ocupação de terra organizadas pelo MST, Macedo (2005) chama atenção
para estas tecnologias de participação que envolvem a realização de reuniões preparatórias
para a ocupação e a formação do acampamento. Estas reuniões constituem uma das
principais atividades de um modelo de mobilização que vem sendo adotado pelo MST em
diversos estados do país.
Da mesma maneira, Rosa (2011), observando a atuação de vários movimentos que
ocupam terra na zona canavieira pernambucana e aprofundando a contribuição teórica de
Sigaud (2000), cria a noção de “forma movimento” para enfatizar que, a despeito das
especificidades de cada movimento, suas composições, tendências e orientações seguem
um formato específico de ação. Esta forma, caracterizada pela presença de uma bandeira,
de bonés, camisetas, hinos e outras simbologias específicas, além do essencial repertório de
ocupação da sede do INCRA, exerce um papel fundamental de linguagem na relação com o
Estado. Em outras palavras, este é o formato de apresentação reconhecido pelo INCRA
como legítimo para os atores que reivindicavam reforma agrária.
Além da preocupação com uma certa “metodologia” capaz de articular os jovens,
outro ponto que vemos emergir na fala da coordenadora é a tensão que se estabelece entre
as questões coletivas, a “luta”, a “formação política”, a “capacitação” e as questões
pertinentes ao território doméstico, aos “interesses deles”, à “vida pessoal”. A própria
coordenadora reconhece que “não dá pra fazer um milhão de outras coisas”, daí a

195
dificuldade em aglutinar uma categoria que por vezes é definida como “desinteressada”,
“complicada”.
Em muitos momentos, Castro (2005) percebeu a reprodução, pelos próprios
“jovens”, de imagens calcadas no desinteresse pelo lote e assentamento. Estas percepções,
que se expressam numa disputa de significados, eram construídas a partir da dualidade
entre “ficar e sair”, do “discurso, principalmente de adultos, que questiona a saída do
jovem, mas, ao mesmo tempo, deseja um futuro melhor para seus filhos, sobrinhos e netos”
(Castro, 2005: 33). Assim, alguns elementos que norteiam essa dualidade são a reprodução
ou não da pequena produção familiar, os conflitos das relações de autoridade na família e
na comunidade; e os diferentes olhares para o universo rural e urbano.
Apesar dos jovens da ocupação se sentirem tensionados por dualidades de outra
ordem, eles também reproduzem as representações de “jovem desinteressado” e, pelo fato
de morarem em um ambiente coletivo, se sentem divididos entre as bandeiras de luta e seus
próprios anseios. Michel, de 18 anos, morador da ocupação desde 2008, sintetiza bem esta
“sinuca de bico”:
“Cara, a juventude aqui é muito complicada. Porque jovem é complicado,
como você sabe. Porque a gente fica dividido... A gente começa a fazer
alguma coisa e aí vai parando... Aí acaba não conseguindo fazer muita
coisa! (...) Já teve uma peça de teatro, mesmo a juventude sendo fraca, a
gente conseguiu fazer uma peça que a gente apresentou e tudo.” (Michel)

As falas de Michel, ao mesmo tempo que reproduzem as percepções de “jovem


complicado”, “juventude fraca” dão margem para questionarmos esta reificação. Como nos
alerta Castro (2005), a fim de fugirmos dos caminhos “fáceis” da substancialização, é
necessário um esforço analítico capaz de perceber como a categoria jovem se constrói e se
reconstrói enquanto ator social. Neste sentido, é preciso observar como esta categoria,
permeada por diferentes interesses e realidades, vai sendo constituída na própria produção
acadêmica, nos projetos de políticas públicas e nas esferas dos movimentos populares.
Mesmo considerando que a categoria jovem alude a questões muito mais amplas do
que esta etnografia é capaz de mapear, nosso interesse foi aos poucos sendo levado a
considerar estes atores (e as representações a eles atribuídas) justamente porque eles
apareciam nas falas, nos documentos, nas manifestações, nas preocupações e
principalmente nas projeções para o futuro. Dada sua posição fronteiriça (desinteresse de
um lado e protagonismo de outro) e seu caráter multifacetado, é preciso chamar atenção
196
tanto para os enquadramentos quanto para os deslocamentos uma vez que estes dois
movimentos aludem ao trânsito entre território político e território doméstico. Morar em
um prédio ocupado e organizado pelos princípios de um movimento social implica
constantes negociações quanto a percepções sobre diferentes realidades (“jovem”,
“favelado”, “criança”, “mulher”, etc.), assim como ajustes às regras e códigos de como agir
e se comportar em grupo.
Neste contexto de disputa e de interesses diversos, algumas iniciativas são tomadas
no intuito de “chamar” o jovem para a luta. Mesmo reconhecendo que eles são
“complicados”, algumas atividades são desenvolvidas, principalmente aquelas direcionadas
para uma dimensão mais cultural, uma vez que neste quesito parece que a mobilização é
mais garantida. Como a própria Ritinha havia sinalizado, “a juventude se interessa mais por
esse negócio de festa”. Assim, as peças teatrais, as quadrilhas, a capoeira, as rodas de funk
e hip hop são tentativas de promover a integração deste grupo e estimular os jovens para
participar dos processos de elaboração e decisão coletiva.
O local da ocupação, no quadrilátero cultural da Cinelândia63, também facilita um
maior acesso aos equipamentos culturais, contribuindo para a ampliação do repertório
cultural dos jovens e crianças. Reconhecendo a importância deste ponto estratégico,
Dinorah esclarece: “como essa região é uma área cultural, então dá pra criança sair,
conhecer o próprio espaço onde ela mora, onde ela vive. Isso pra gente é muito importante.
A gente vai, vai de graça. Porque é tudo aqui, na região ...”. Seguindo o mesmo raciocínio
outro colaborador da “escolinha” reconhece que “devido à ocupação estar situada em um
lugar conhecido como corredor cultural, a gente tenta trabalhar, em sala de aula, a
necessidade destas crianças conhecerem o lugar onde moram, os principais pontos culturais
e futuramente elas mesmas serem agentes de difusão cultural na Cinelândia.”
Assim, morar em uma ocupação localizada no centro da cidade pode proporcionar
maior acesso a equipamentos culturais, proximidade com o mercado de trabalho,
capacitação através de cursos de formação, saída do aluguel, ambiente de segurança e
aprendizado para as crianças. Todavia, é preciso reconhecer que estas possibilidades são
                                                                                                               
63
O quadrilátero da Cinelândia, no centro da cidade do Rio de Janeiro, é formado por construções de grande
valor histórico, arquitetônico e cultural. Neste espaço se incluem a Biblioteca Nacional, o Theatro Municipal,
o Museu Nacional de Belas Artes e o Centro Cultural da Justiça Federal. Além disso, a praça Marechal
Floriano foi e ainda é palco de manifestações artísticas e políticas, as quais costumam se concentrar nas
escadarias da Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro, localizada a poucos metros da ocupação.

197
condicionadas por uma determinada forma de conduta, comportamentos estabelecidos pela
Carta de Princípios e regidos pelo movimento mas que são adaptados a partir de táticas
morais desenvolvidas dentro de casa. Se a apropriação coletiva do prédio não representa
apenas a conquista de um teto, mas uma mudança de valores, transformação na visão de
mundo de seus moradores, as atividades voltadas especificamente para crianças e
adolescentes não significam apenas reforço educacional, mas um estímulo ao engajamento
e à participação política. Para tanto, há uma série de militantes do movimento dedicados
prioritariamente à implementação destas políticas, o que sugere que uma alta prioridade é
conferida pelo MNLM a este segmento. Neste sentido, toda luta que almeja ir além do
direito à moradia requer práticas de enquadramento, estratégias de fixação dos sujeitos,
uma superação da “pedagogia deformada”, como sugere Dinorah, num trabalho constante
de territorialização destes agentes. Por outro lado, vale esclarecer que estas práticas estão
constantemente dialogando e esbarrando com os projetos familiares.
Na ocupação, algumas atitudes que são tomadas para que a ordem seja estabelecida
costumam defrontar-se com outros arranjos. Para que sujeitos tidos como vulneráveis
tenham seu “porto seguro”, é preciso que sejam cuidados, olhados, preservados das mazelas
e orientados para que incorporem uma lógica coletiva de organização. A fim de que as
crianças não fiquem soltas, circulando por aí, arriscando-se e “contaminando-se” nos
corredores e casas de vizinhos, é preciso estabelecer horários de entrada e saída, espaços
exclusivos para as brincadeiras, territórios morais, seguros, educativos e disciplinadores.
Estes imperativos fazem vir à tona os conflitos entre território político e território
doméstico. Neste jogo de interferência mútua, transparecerem as tensões entre as
prerrogativas do grupo e os projetos familiares. Neste emaranhado de poder, por mais que a
assembleia “fale” em nome do coletivo, dificilmente as decisões tomadas neste espaço
representarão fidedignamente os desejos de cada família. Por mais que os moradores
tenham voz e voto e se sintam representados, prevalecerá sempre uma opinião geral, o
consenso, institucionalizando regras coletivas, favorecendo a vontade da maioria em
detrimento de alguns e, geralmente, provocando polêmicas.
Regras são sancionadas com diferentes motivos, para proteger, imobilizar, limitar,
salvaguardar a vontade geral, estabelecer horários de trânsito, prescrever códigos de
conduta, determinar quem tem controle sobre quem, enfim, para circunscrever

198
determinados sujeitos em territórios políticos. Talvez isto explique toda a expectativa, por
parte do movimento para que “crianças” e “jovens” se enquadrem e se engajem na luta,
respirando cotidianamente os ares da coletividade. Dito de outra forma, coordenadores,
professores, pais, crianças e jovens vão aos poucos reconhecendo, através das práticas e
representações diárias sua posição na hierarquia político-moral da ocupação.

3.2 – Circulação e fixação

A corrente percepção dos jovens como seres transitórios, como “adultos em


potencial”, agindo para uma iminente ruptura com a ordem contribuem para as diversas
tentativas de, primeiro, o assumirem como um problema e mais, um problema que deve ser
limitado, superado, através de um enquadramento, para que aprendam os códigos morais
necessários para uma vida adulta64. Por outro lado, estas mesmas representações investem
nos atributos positivos dos segmentos juvenis, sendo estes classificados como detentores de
certo protagonismo.
Nesta seção, ainda que não estejamos trabalhando diretamente com o material de
campo, outras bibliografias podem nos ajudar a perceber como o “jovem” é construído
como categoria política e como são remetidos a determinadas intervenções responsáveis
por recuperar seu potencial de transformação social. E mais, através deste diálogo podemos
compreender como o jovem aparece como questão central na Manuel Congo uma vez que
as percepções construídas sobre ele chamam a atenção para os dilemas entre político e
doméstico.
Nesta perspectiva, João Paulo Macedo e Castro (2009) recorda que “ao fornecer
substância à juventude, o termo passa a operar não apenas como categoria analítica, como
também se torna um conceito político, que transforma o jovem em ator social” (Castro,
2009: 136; grifos do autor). Por isso, urge verificar como os jovens são identificados em
determinados contextos socioculturais e qual o reflexo político destas múltiplas
classificações, seja na formulação e implementação de políticas públicas, seja na projeção
das agendas de luta de movimentos sociais ou mesmo nas disputas intergeracionais. Como,
                                                                                                               
64
De acordo com Sposito e Carrano (2003), existe um “reconhecimento tácito” na literatura sobre juventude
de que este segmento é caracterizado pela sua condição de transitoriedade, como fase de vida marcada por
uma certa instabilidade associada a determinados “problemas sociais”.

199
afinal, o “jovem” se torna um ator social que deve praticar certas ações e se comportar de
determinada forma?
No assentamento, Elisa Guaraná de Castro (2005) identificou que o termo “jovem”
era usado em sentido genérico e naturalizado em jargões do tipo “os jovens não querem
nada....” ou “os jovens estão indo embora”. No contexto da ocupação, a situação não foi
muito diferente, uma vez que não foi raro ouvir falas como “os jovens estão completamente
por fora”, “a juventude só se interessa por festa”. Em contrapartida, da mesma maneira que
Castro (2005) pôde observar expectativas quanto à participação da juventude em instâncias
de representação formais como na Associação de produtores, na Manuel Congo existe todo
um empenho para que a Coordenação da Juventude torne-se um lócus de representação
política deste segmento, promovendo sua integração e estimulando os jovens a participar
dos processos de elaboração e decisão coletivas. Apesar de todo este empenho, a
coordenadora nacional reconhece as dificuldades desta mobilização.
“São várias tentativas, e a gente não consegue centrar naquilo pra dar
continuidade. O que a gente queria era, a partir do interesse da meninada
aqui, trabalhar isso, a partir dos interesses da juventude, e eles mesmos
entenderem. Só que isso demanda tempo... Porque se você chamar pra
fazer uma discussão, pelo menos uns cinco vêm.” (Ângela)

Como indica Castro (2005), a percepção que associa a categoria “jovem” a problema
e/ou à transformação social não aparece apenas imbricada a instâncias que visam a atuação
política (jovens do MST, Coletivo de Juventude do PT, Pastoral da Juventude, Pastoral da
Juventude Rural, Grupo de Jovens de igrejas evangélicas, Juventude do Movimento
Sindical de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais) mas é alvo de políticas públicas ou de
intervenções governamentais e ações de ONGs e de outras instituições.
Neste aspecto, a autora destaca que uma das evidências do que pode ser uma
consequência deste processo é a criação no Brasil, como já havia ocorrido em países
europeus e outros países Latino Americanos, de uma Secretaria Especial da Juventude em
fevereiro de 2005 (no âmbito do poder executivo federal) e Comissões Parlamentares de
Juventude, Federal e estaduais.
“Com isso, a categoria deve ser percebida como categoria de pensamento,
no sentido de construir imagens e percepções sobre determinados
indivíduos; e como categoria social, na medida em que se percebe a sua
configuração como uma identificação que gera coletividades e ações,
tanto na realidade investigada, como em organizações que se pretendem
atuar em âmbito nacional” (Castro, 2005: 31).

200
Neste sentido, vale observar como o “jovem” vai sendo construído como “categoria
de pensamento”, como “categoria social” e, poderíamos acrescentar, como categoria
política que visa atender a determinadas anseios de programas sociais, políticas públicas e
governamentais65.
Aqui, vale recuperar o esforço empreendido por João Paulo Macedo e Castro (2009)
ao tentar compreender de que modo a “juventude violenta” vai sendo elaborada como um
problema que passa a demandar intervenções dirigidas à sua resolução. Na difícil posição
de participante (como consultor) no mundo social em que analisa, Castro (2009) toma como
pano de fundo uma experiência da Unesco no Brasil, dirigida à juventude, nos anos 1990,
conhecida como Programa Escolas de Paz66, no intuito de explicitar como uma categoria –
o jovem violento – vai sendo construída como um problema social, político e ideológico a
partir de noções e procedimentos de inspiração científica. Segundo o autor:
“... estes problemas foram formulados pelas pesquisas da Unesco-Brasil, a
partir da noção de que a violência é o novo paradigma da
contemporaneidade, e de que o jovem é vítima e protagonista de ações
violentas. A cidadania, enquanto matéria de aprendizado, em uma
pedagogia da democracia, constitui o elemento ideológico e o instrumento
necessário para reverter tal quadro de violência, a que estão submetidos os
jovens” (Castro, 2009: 39, grifos do autor).

Nesta perspectiva, observamos mais um exemplo de como a categoria “jovem” vai


sendo substancializada e fixada em uma posição dúbia, ora como vítima, ora como
protagonista de situações violentas. E mais, a construção dessas categorias fornecem as
precondições para o surgimento de um programa social voltado para um segmento que se
pretende corrigir, através de um aprendizado, a chamada “pedagogia da democracia”.
A despeito de explorarmos outro universo empírico, não tão distante das questões
                                                                                                               
65
Como aponta Sposito e Carrano (2003) “é preciso não confundir políticas públicas com políticas
governamentais. Órgãos legislativos e judiciários também são responsáveis por desenhar políticas públicas.
De toda a forma, um traço definidor característico é a presença do aparelho público-estatal na definição de
políticas, no acompanhamento e na avaliação, assegurando seu caráter público, mesmo que em sua realização
ocorram algumas parcerias.” (Sposito e Carrano, 2003: 17) Ademais, vale acrescentar que a ideia de políticas
públicas situa-se em um campo de conflitos entre atores que disputam orientações e recursos destinados à sua
implantação.
66
O Programa Escolas de Paz é parte de um acordo firmado entre o Governo do Estado do Rio de Janeiro e a
UNESCO, sendo “desenvolvido pela Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro (SEE/RJ) em 111
escolas da rede estadual, com o objetivo de oferecer oportunidades de acesso à cultura, esporte e lazer para
jovens em situação de vulnerabilidade social, utilizando como estratégia a abertura de escolas nos finais de
semana.” (Abramovay et al., 2001:17)

201
levantadas por Castro (2009), vale ressaltar a maneira como o jovem é construído como
uma categoria política, um objeto merecedor de intervenção a fim de reverter o quadro de
desordem a que está submetido. Como observado pelo autor, no contexto das políticas
públicas, a “cidadania” constitui um elemento central para a definição das diretivas e dos
objetivos dos programas sociais. De forma paralela, na ocupação são enaltecidas políticas
voltadas à educação e formação das crianças e adolescentes. Como esclarece Dinorah, na
“escolinha” é desenvolvida a arte educação, atividades menos “massacrantes” e “punitivas”
do que na escola formal. Mesmo que conservem suas especificidades, essas realidades –
políticas públicas e movimentos sociais - não são tão polares quanto nos parecem a
primeira vista. Ademais, poderíamos nos questionar, promover a “cidadania” não seria
desenvolver um conjunto de instrumentos pedagógicos e de metodologias capazes de
reverter e/ou criar soluções para a resolução e superação de certos problemas?
Afinal, até que ponto a pedagogia democrática, idealizada pelo Programa Escolas de
Paz se distancia da educação menos deformada preconizada pelos representantes da
“escolinha”? Ainda que tenham perfis ideológicos diferentes, parece-nos que o ponto de
partida dos dois projetos é o mesmo: o jovem em situação de vulnerabilidade, público-alvo
de intervenção, ajuste, sujeito de fixação de regras e normas fundamentais para reverter este
quadro de imprecisão.
Talvez o que diferencie estas instâncias é menos a existência de instrumentos
pedagógicos e mais o modo como estes são aplicados. Se no contexto das políticas
públicas, especificamente no universo da cooperação internacional, estes instrumentos se
inscrevem na lógica da “transferência de conhecimento”, orientada por um viés técnico e
por princípios “científicos”, saberes dotados de magia e força para atuarem com
objetividade, na “escolinha”, o processo de construção do conhecimento passa muito mais
por paradigmas dialógicos e horizontais, tendo como foco a própria demanda dos jovens e
crianças. No entanto, isso não exclui a presença de professores e coordenadores,
autoridades responsáveis por ordenar os espaços e disciplinar os comportamento, mesmo
com toda a sua flexibilidade.
Ainda que apresentem diferenças substancias na forma de condução, trata-se de dois
projetos que implementam um conjunto de ações moldadas sob a perspectiva de melhoria
das condições de vida de certos segmentos sociais. E, para atingir tais objetivos, por vias as

202
mais diversificadas, é mister a constituição de um “objeto discursivo”, o que significa
identificar o sujeito sobre o qual devem incidir políticas específicas. Deste modo, parece-
nos que, nos dois casos analisados, “tal operação é configurada com a visibilidade e a
formulação de atributos ao par jovem/juventude” (Castro, 2009: 244).
Nesta perspectiva, poderíamos acrescentar que as operações discursivas, ou melhor,
os discursos produzidos sobre (e pel)os jovens na/da ocupação alinham-se a uma tendência
mais ampla que os identificam ao sujeito “desinteressado”, “vulnerável”, “complicado”,
“fraco” (para usar algumas das representações dos próprios moradores), merecedor de
ações que o recuperem em prol da continuidade de um projeto coletivo como o é a Manuel
Congo. Neste sentido, é necessário o desenvolvimento de técnicas e procedimentos
disciplinares para que estes sujeitos sejam de fato enquadrados na lógica do movimento.
Caso contrário, tratar-se-ia de mais um prédio ocupado pelos chamados “pobres urbanos” a
procura de um lugar para morar.
Mas não, trata-se de uma forma de controle que se exerce através da vigilância, da
disciplina, da discussão moral de quem circula e quem não circula, o que as crianças podem
comer, como devem se comportar, quem pode bater, quem não pode. Recuperando
Foucault (1990), podemos problematizar: “de que regras de direito as relações de poder
lançam mão para produzir discursos de verdade?” (Foucault, 1990: 179) Como esta
“economia dos discursos de verdade”, a gramática moral idealizada e performatizada pelo
movimento, funciona nas instâncias da ocupação, especificamente, naquelas responsáveis
por formar sujeitos a partir de uma determinada linha de raciocínio? Vale dizer que todo o
plano de discussão moral passa também por um plano de constituição de sujeitos. Afinal,
quem consegue se enquadrar no “tipo ideal”, o sujeito do dever ser, aquele que abraça a
coletividade e a militância, que se comporta de maneira correta e age conforme as regras? É
preciso lembrar, todavia, que este sujeito não existe, mas ele está em constante processo de
construção, sendo fruto de um prática discursiva, de um projeto político-pedagógico
cotidiano.
Em diversas falas e atos, podemos observar o modo como uma pedagogia da
moralidade vai sendo forjada no sentido de aglutinar os jovens. Estabelecer regras e limites
para a participação nas atividades coletivas, criar mecanismo de formação política,
implementar uma consciência crítica, fortalecer sua “autoestima” para que seja construída a

203
partir dos referenciais de sua história, foram algumas das propostas que observei acerca do
projeto direcionado aos jovens. Enfim, é preciso disciplinar os corpos, orientar os sujeitos
para que desempenhem determinadas tarefas, aprendam um certo modo de viver e
reproduzam satisfatoriamente a lógica coletiva da ocupação.
Além do espaço da “escolinha” e do Coletivo de Juventude essas regras também são
delineadas na Carta de Princípios. Por mais que já tenhamos nos detido extensivamente a
este documento, não custa retomarmos alguns compromissos colocados pelo Movimento
Nacional de Luta pela Moradia. Para tanto, destaco três pontos que nos dão luz para
pensarmos os modos como os sujeitos são classificados e designados como protagonistas
da luta a ser empreendida.

“...por isto, nós nos comprometemos:


(...)
Quarto: Organizar a juventude da moradia em um projeto de alegria, luta,
esperança, priorizando a formação e a cultura.
Quinto: Organizar as mulheres da e na moradia de forma a restaurar sua
autoestima e propiciar a emancipação feminina na busca de igualdade,
potencializando sua capacidade de luta em defesa da mãe terra e seus
filh@s.
Sexto: Transformar os espaços conquistados em exemplos vivos da cidade
que queremos: com corresponsabilidade, gestão democrática,
participativa, formação e educação permanente, fomento cultural,
alternativas de geração de renda, espaços de uso coletivo, prioridade para
infância e adolescência, biblioteca, etc.” (Carta de Princípios, Movimento
Nacional de Luta Pela Moradia/Ocupação Manuel Congo; grifos meus)

O destaque para estes três pontos tem a sua pertinência justamente porque neles se
vê claramente o chamado para três sujeitos que são peças-chave para o quebra-cabeça
político do movimento: infância, juventude e mulheres. Dos doze compromissos
estabelecidos pela Carta, apenas nestes três (quarto, quinto e sexto), essas categorias
aparecem na sua forma definida. Nos outros tópicos, os sujeitos são identificados de
maneira muito genérica como os “milhares [de] empobrecidos”, “a luta de todos”, a “nossa
Classe”, as “famílias com baixa renda familiar”, o “povo” ou designados através do recurso
simbólico @, estampando uma luta plural “d@s trabalhador@s”, de “tod@s nós” e de
“noss@s irm@s campones@s”.
Neste fragmento, podemos observar claramente como as crianças, a juventude e as
mulheres são constituídas como os sujeitos da “esperança”, um ser em trânsito, em

204
formação, atores a quem se depositam expectativas, seres de uma capacidade emancipadora
sui generis, sujeitos de “prioridade” para quem são criados espaços de uso coletivo, de
“gestão democrática, participativa, formação e educação permanente, fomento cultural,
alternativas de geração de renda...”. No entanto, mais do que meros receptáculos de
promessas, estes mesmos sujeitos devem se tornar partícipes, engajar-se na luta, apropriar-
se das esperanças, reconhecendo em si, sua capacidade transformadora.
Nesta lógica, os sujeitos não são “peças de engrenagem”, mas jogam a partir das
oportunidades, forjam novas maneiras de se viver. Não são raros os discursos que
enaltecem as mudanças proporcionadas, na vida de cada morador, pela ida para a ocupação.
Rosa, 44 anos, mãe de dez filhos, seis dos quais moram com ela na Manuel Congo (com
idades entre 11 e 19 anos), é uma das moradoras que reconhecem os benefícios que a nova
moradia trouxe para a vida de sua família.
“Mudou muita coisa. Até a saúde do meu marido, que ele não tinha. Ele
hoje conversa comigo, ele diz que lá ele pensava muito nas crianças, que
eles estavam soltos na rua. Aqui, ele fica despreocupado, eles vivem aqui
dentro, estão estudando, não tem perigo. (...) todo mundo se organiza.
Tem os porteiros, que não deixam os de menor sair, tem regras, né, pros
de menor não saírem pra rua. Então, não tem perigo nenhum.” (Rosa)

Mesmo reconhecendo as dificuldades que, em diversos momentos, resultam da


dupla lealdade a que deve se engajar - luta coletiva e necessidades familiares -, Marina
também não hesita em tecer comentários favoráveis ao processo de integração a Manuel
Congo.

“Pra mim, fazer parte da ocupação mudou totalmente minha visão de vida,
em relação à militância popular... eu consegui ver o mundo por um outro
ângulo. Totalmente diferente. Coisas assim inimagináveis pra mim, que
eu nem esperava estar vivendo. Mas foi muito importante! Pra vida do
meu filho (...) foi bom também, porque ele vai crescer aqui no centro da
cidade. Já estamos inserindo nele a militância, ele já gosta de participar.
Esses dias, nós fomos pra porta da Caixa Econômica panfletar, e ele foi
também, participou e tal... Então, ele cai dentro mesmo!” (Marina)
Através destes comentários, podemos observar como os moradores vão se
confrontando com o mundo da “militância popular” e como este universo se reflete no
comportamento de crianças e adolescentes. Se, em seus bairros de origem, as crianças
ficavam soltas na rua, agora, na ocupação, elas são organizadas, existem regras, porteiros,
professores, coordenadores que se encarregam não só de cuidar, orientar e disciplinar, mas

205
de fazer valer um compromisso maior de vida, formando sujeitos para que enxerguem “o
mundo por um outro ângulo”, como sugere Marina. Essas conquistas, “inimagináveis” para
a moradora e para o futuro de sua família, não são aleatórias, mas passam por um processo
pedagógico, político e ideológico de modulação dos sujeitos.

Afinal, como nos recordam alguns moradores, através do processo de construção de


uma ocupação, os futuros ocupantes vão paulatinamente incorporando novos hábitos, uma
nova ética de comportamento através de regras e práticas que se legitimam menos em
formas regulamentares e centrais e mais em mecanismos ramificados, em que o poder se
torna capilar, penetrando e corporificando-se na suas extremidades. É preciso, portanto,
perguntar como funcionam as coisas neste nível “dos processos contínuos e ininterruptos
que sujeitam os corpos, dirigem os gestos, regem os comportamentos.” (Foucault, 1990:
182). Em outras palavras, torna-se necessário saber como são constituídos, pouco a pouco,
estes sujeitos da esperança, “a partir da multiplicidade dos corpos, das forças, das energias,
das matérias, dos desejos, dos pensamentos” (idem: 183).
Como propõe Foucault (1990), o poder não é um “fenômeno de dominação maciço
e homogêneo de um indivíduo sobre os outros”, mas ele circula, exercendo-se em rede.
Deste modo, os corpos não são apenas o alvo inerte ou consentido do poder, mas dele se
apropriam, transformando-o, deslocando-o e desdobrando-o. E foi exatamente este
movimento que eu procurei circunscrever nesta tese, perceber como os moradores
apropriam-se das normas e prescrições e, através de estratégias moleculares, mudam as
regras do jogo, ou melhor, demonstram que estas são tecidas na vida ordinária, através de
relações de cuidado, de lealdade, da gestão prática e moral dos espaços, enfim, de múltiplas
formas de se engajar no projeto coletivo da ocupação.
É nesta trama de relações que os sujeitos ganham densidade, as categorias são
definidas, fixadas e tensionadas. Se o sujeito não é apenas uma matéria inerte que o poder
golpeia e sobre o qual se aplica, submetendo-o a regras e normalizações, é preciso perceber
como os ocupantes imprimem processos de desterritorialização, acionando outros códigos e
moralidades, novas “tecnologias de poder que são, ao mesmo tempo, relativamente
autônomas e infinitesimais” (idem: 184) nas suas possibilidades de transformação.

Nesta linha de raciocínio, cabe aqui estabelecer algumas diferenças em relação às


pesquisas que nos serviram como diálogo para a problematização de algumas

206
categorizações. No caso estudado por Castro (2009), os jovens “rebeldes”, “contestatórios”,
“agressores” e “violentos”, precisam ser pacificados e educados em nome da “democracia”,
inserindo-os em uma humanidade plural e diversa. Para o autor, conhecer esta juventude e
compreender suas práticas não significava (re)aprender a olhar sobre este segmento,
respeitando sua diversidade e liberdade, mas definindo e instaurando sobre ela dispositivos
capazes de prever e prescrever seus movimentos e ações. Nesse cenário, trata-se muito mais
de entender o que os jovens querem a partir de modelos pré-definidos de programas e
projetos de intervenção pública. Por outro lado, ainda que na ocupação estes sujeitos
também passem por um processo de categorização política, os projetos são construídos a
partir de outros valores e não moldados pelas “imposições temporais das agências
financiadoras”. Mesmo que os movimentos sociais tenham suas agendas e urgência nas
práticas de transformação, o tempo de implementação é outro, a lógica de gestão dos
espaços passa por outros cânones de reflexão.

Deste modo, na ocupação, as crianças, jovens e mulheres também são


(re)significados e convertidos em ações e ideias, assim como no Programa Escolas de Paz,
desenvolvido pela UNESCO-Brasil. Entretanto, o jovem da ocupação por mais que seja
“produzido”, ele não o é da mesma maneira que nas políticas públicas. O pressuposto da
vulnerabilidade e o protagonismo juvenil reivindicado nos dois contextos parecem confluir
para objetivos diferentes. Se nos dois contextos os jovens são incentivados para que
empreendam a construção da sua identidade em termos sociais, como “integrantes de uma
comunidade política”, os pressupostos são forjados em escalas variadas. Como aponta
Castro (2009), a implementação de um programa da natureza e especificidade do Programa
Escolas de Paz “remete a uma discussão sobre processos de formação e consolidação do
Estado” (Castro, 2009: 249).67
Talvez neste ponto podemos perceber a grande diferença entre os dois projetos. Na
ocupação, a formação político-pedagógica das crianças e adolescentes não serve para
consolidar uma comunidade política enquanto autoridade governamental soberana, mas

                                                                                                               
67
Como alerta Das (1995), as tentativas do Estado de controlar a identidade de seus membros inscrevendo-os
na categoria de “vítimas” não deixa de ser um poder disciplinador, ainda que as comunidades tentem resistir a
ele. Através dessa operação de reconhecimento, o Estado se apropria do sofrimento deles e, ao fazê-lo,
conduz esses atores a uma dupla violência, submetendo-os agora à sua própria lógica administrativa.

207
para forjar novos territórios políticos e arranjos familiares a partir de outra lógica de
sociabilidade, mesmo que em constante diálogo com as esferas estatais. Se, de um lado,
organismos internacionais e Estados nacionais cooperam para ordenar e formar “um modus
operandi da ‘arte de governar’” (Castro, 2009: 250), de outro, trabalhadores, famílias e
movimentos populares se articulam para acionar justiça e direitos viabilizando projetos
alternativos de vida. Talvez no contexto das ações intervencionistas – tais como o programa
desenvolvido pela Unesco – o exercício do poder se “cristalize” de maneira mais
contundente nas técnicas e procedimentos disciplinares destinadas ao exercício da
democracia. Já no ambiente da ocupação este mesmo procedimento de formulação de
sujeitos e de um conjunto de ações moldadas para enfrentar os problemas sociais são
tecidos na contramão dos projetos governamentais, ainda que em referência a eles, menos
para ratificá-los e mais para combatê-los. Assim, mais uma vez vale ressaltar que Estado e
movimentos sociais não são esferas de poder estanques, mas dinâmicas e flexíveis, elas
dialogam, entrecruzam-se, negociando e disputando os espaços na cidade.
A fim de contribuir para esta relativização, podemos nos remeter a outro trabalhado
que discute o cruzamento entre diferentes escalas políticas. Analisando processos de
mudança social no contexto das relações sociais dos sindicalistas da Mata pernambucana,
em que negociações por reforma agrária eram “invariavelmente conduzidas pelas
instituições estatais”, Marcelo Rosa (2011) demonstra a importância do Estado para a
conformação dos movimentos sociais de luta pela terra. O autor constata que a ação dos
movimentos tem como efeito o fortalecimento do Estado e não o seu enfraquecimento ou
deslegitimidade na medida em que, ao estabelecer o conflito, via ocupação, os movimentos
chamam o Estado a agir em locais onde antes não estava presente. Por outro lado, o autor
mostra que ir ao INCRA, seja por meio de ocupação ou através da negociação com o
superintendente, tem importância para o estabelecimento dos movimentos, uma vez que é o
momento de legitimação e de reconhecimento desta esfera de poder. Essas constatações
contribuem ainda mais para problematizarmos as interpretações que dicotomizam a relação
entre Estado e movimentos sociais, como se aquele fosse responsável por práticas de
cooptação e este por desenvolver uma proposta autônoma e antagônica de gestão. Neste
aspecto, vale aqui a reprodução da fala de uma moradora quando a interpelei por onde a
moradia viria, se pelo governo ou pelos moradores.

208
“Eu acho que é um pouco de cada, porque se a gente não fosse lutar,
porque ocupar para nós é luta, a gente chegar ‘ó, esse é o nosso direito,
nosso direito à moradia digna, porque a moradia não é mercadoria.’
Porque a casa está 16 mil reais, isso é uma mercadoria, como se fosse
comprar um feijão ali no mercado. Então, nós estamos tentando mostrar às
pessoas que isso é um direito nosso. Então a gente tenta passar isso para
as pessoas e tem pessoas que acha que ‘não, o governo que vai dar para
vocês’, mas não, se a gente não lutasse ‘ó, esse é o nosso direito, a gente
tem que morar, tem muito prédio vazio.’ Eu acho que o governo não ia ‘ó,
toma esse prédio aqui para vocês, arruma 50 pessoas aí que eu tenho um
prédio para vocês’, não ia. Se a gente não fosse ‘é nosso direito, nós
queremos moradia, queremos comida, roupa’, se a gente não for à luta,
vai chegar de mão beijada? Não vai. A gente tem que mostrar a garra para
fora, mostrar que tem pessoas necessitadas, pessoas precisando, porque se
a gente ficar todo mundo na casa de seus parentes ou em área de risco, vai
chegar o governo e ‘ó, vocês saiam daí porque é área de risco, eu tenho
um prédio ali’, não vai. Se não for lutar, se não for ‘ó, eu quero aquilo ali,
porque aquilo é meu por direito.’ Eu acho que é meio a meio porque se a
gente não lutar, a gente também não tem. Se tivesse todo mundo em casa,
eu bato na mesma tecla, o governo não ia chegar e ‘ó, aqui para vocês’,
sem lutar, sem nada... Então eu acho que pela nossa luta, o governo vai
chegar e vai dar a gente. Então eu acho meio a meio, a luta e o governo.”
(Ritinha)

Esta arena conflitiva não se dá apenas no confronto com as esferas estatais (federal,
estadual e municipal), mas aparece no interior da própria ocupação. É na trama das relações
cotidianas que percepções sobre jovens e crianças vão ganhando contornos políticos e
desencadeando um leque de expectativas. Como visto, está em jogo não só uma disputa
simbólica de características e atributos, mas um embate acerca da autoridade sobre
determinados sujeitos que, a princípio, parecem destituídos de autonomia o suficiente para
reclamar seus próprios direitos. Segundo Sposito e Carrano (2003), as políticas orientadas
para a infância e adolescência podem estar próximas de modelos participativos e
democráticos ou ainda serem definidas com base na “cidadania tutelada”. Neste sentido,
práticas de assistência e controle sobre a sociedade e, sobretudo, para os grupos que estão
na base da pirâmide social, são implementadas visando a gestão controlada de seus
impulsos, produzindo aquilo que se espera de uma infância e juventude domesticadas.

Do ponto de vista legislativo, o jovem pode estar submetido tanto ao Estatuto da


Criança e do Adolescente (ECA), na condição de menor de idade, mas também à legislação
que rege a maioridade. Não há uma legislação específica para este segmento em processo
de construção sociológica. Nesta perspectiva, Castro (2009) sugere que se em relação à

209
juventude não há um “correspondente legal” que se responsabilize pelo jovem, isto não
exclui a existência de “tecnologias de controle”, responsáveis por enquadrá-lo em um
recorte sócio-demográfico. Assim, classificações que identificam a juventude como uma
situação de instabilidade, indefinição e vulnerabilidade não deixam de ser técnicas de
exercício de poder. Mesmo que não operem ao nível dos “corpos” – através do que
Foucault denominou de “biopolítica” – estas tecnologias propiciam uma constante disputa
acerca do que é ser jovem e o que deve ser feito em relação a ele. Se o jovem é rotulado
como um problema, associado ao comportamento violento ou visto como o foco em que se
incidem práticas sociais violentas, é preciso que algo seja feito, ou melhor é, necessário
corrigir esta falha.

Nesta imprecisão identitária, em que o jovem é visto como um indivíduo sem papel
claramente demarcado, como alguém que transita entre o que não é mais e o que pode vir a
ser, é preciso orientá-lo moralmente para que incorpore as leis e regras necessárias para a
vida em sociedade. Neste contexto, termos como “cidadania”, “participação”, “mecanismos
democráticos”, “inclusão social” entram em cena através de diversos publicações, atores e
instituições capazes de superar o fracasso do Estado, inoperante na garantia dos direitos
universais e da igualdade entre os indivíduos.

As estratégias e recomendações elaboradas em seminários, publicações e artigos,


ainda que preocupadas em discutir “um segmento social excluído” não designam apenas
um esforço científico na construção de um objeto. Este “jogo de prescrições”, conforme
analisado por Castro (2009), vai muito além da apropriação de instrumentais analíticos na
formulação de um problema, mas estabelecem “práticas discursivas”, definem conceitos,
estipulam normas.68

Em um trabalho minucioso, Castro (2009) elenca um conjunto de proposições e


sugestões de natureza distinta, envolvendo instâncias (especialmente da administração
pública) e ações diversificadas capazes de promover as transformações necessárias para

                                                                                                               
68
Segundo Foucault “as práticas discursivas caracterizam-se pelo recorte de um campo de projetos, pela
definição de uma perspectiva legítima para o sujeito de conhecimento, pela fixação de normas para a
elaboração de conceitos e teorias. Cada uma delas supõe, então, um jogo de prescrições que determinam
exclusões e escolhas. (...) Ganham corpo em conjuntos técnicos, em instituições, em esquemas de
comportamento, em tipos de transmissão e de difusão, em formas pedagógicas, que ao mesmo tempo as
impõem e as mantêm” (Foucault, 1997: 11-12).

210
superar os principais problemas referentes ao comportamento dos jovens. Afinal, se o
jovem é um problema para a sociedade, é sob essa ótica que o poder público deve tratá-lo.
No entanto, como esclarece Sposito e Carrano (2003), para que as políticas públicas de
juventude, por mais democráticas e propositivas que sejam, não resvalem para um quadro
rígido e burocrático de distanciamento, tutela e subordinação diante do governo e demais
organizações da sociedade, é preciso que elas busquem ações inovadoras e mecanismos
descentralizadores de gestão. Caso contrário, estão fadadas a assumirem representações
normativas acerca destes segmentos, deixando de contemplá-los como sujeitos capazes de
transformação. Afinal, “serão [os jovens] parceiros e atores relevantes ou apenas usuários
potenciais dos programas?” (Sposito e Carrano, 2003: 33).

Na mesma linha de raciocínio, poderíamos nos perguntar: de que modo os jovens e


as crianças estão sendo incorporados nos processos decisórios acerca da ocupação? Como
interlocutores ativos ou meros receptáculos da esperança? E mais, qual o papel dos
movimentos sociais na articulação e implementação de ações transformadoras? Será que
exercem uma função meramente decorativa e apaziguadora da pressão que jovens e demais
setores sentem na sociedade? Ou, ao contrário, estas ações impõem rupturas com padrões
tradicionais de uma cultura política tutelar da administração pública brasileira? Como será
que a Manuel Congo conseguiu se estabelecer ao longo desses quatro anos?
A partir da fala de vários moradores, de coordenadores, militantes e colaboradores,
ou mesmo circulando pelos corredores e pelas casas era possível observar uma fala
repetitiva “a ocupação precisa de articulação”, “a ocupação tem responsabilidade de ser um
espaço de empoderamento das crianças e adolescentes”, “os jovens precisam se sentir
protagonistas deste processo”, precisamos “fortalecer a identidade racial e a questão de
gênero”, “o que mudou na minha vida foi essa união.”
Por outro lado, mesmo reconhecendo a importância deste espaço para a
concretização de um velho sonho, alguns moradores enfatizam que “muitas pessoas acabam
não se envolvendo”, “ninguém nunca tá satisfeito”, “é fofoquinha direto”, “ninguém chega
junto”, “tem muita coisa que a gente não sabe, não participa”. Conforme disse uma
moradora:

“Era muito mais unido, todo mundo, não só os moradores comuns. A


coordenação era mais unida com a gente também, às vezes fala assim: ‘ah,
o povo tá afastado.’ Mas será que eles também não se afastaram da gente?
211
Se conversavam mais, se falavam mais, aqui tá tipo, como fala no morro,
‘é lei de murici, cada um por si.’ Eu fico triste com isso, eu gostaria
realmente que existisse união, existisse aquela coisa gostosa que existia
antes. As vezes eu falo ‘era muito melhor quando a gente dormia todo
mundo amontoado, um em cima do outro, um agarradinho no outro,
dividindo a caminha um com outro, do que agora que está cada um no seu
cantinho.’ Porque agora ficou cada um cuidando de si, as pessoas passam
por você já não falam mais, uns olham para você como se ele fosse
melhor do que você. Antigamente tinha festinha, agora as pessoas tem
muita opinião. Existe uma falta de amor.” (Sandra)

Logo após esta fala mais descrente, Sandra emendou “o meu sonho é continuar
aqui, eu gosto daqui. No começo eu não gostava porque o supermercado é longe. A minha
esperança é que saísse a obra e que cada um tivesse o seu cantinho, seu apartamento.” O
curioso no discurso de Sandra talvez seja menos o fato de que a ocupação vem se tornando
cada vez menos unida, o povo cada vez mais afastado e mais as múltiplas percepções que
este viver coletivo proporciona. Se de um lado, ela percebe que “agora está cada um no seu
cantinho” em outro momento é esse mesmo “cantinho” que ela reivindica para que as
pessoas possam se sentir em casa e acolhidas. No entanto, longe de parecer uma fala
contraditória o que nos chama atenção é que a entrada e a permanência na ocupação não é
feita só de “vitórias”, mas são caminhos tortuosos, difíceis, que requer sacrifício, ajustes,
perdas e conquistas. Talvez o que seja necessário frisar não sejam as “fofoquinhas” em si,
mas a maneira como elas são contornadas e trabalhadas.
Em relação à juventude, é possível que estes dilemas ganhem maior densidade
talvez pelo fato de eles não estarem fixos nem no território doméstico nem no território
político. O desejo insistente em articulá-los em uma organização institucional como o
Coletivo de Juventude é uma tentativa de dar cabo a um “projeto de alegria e esperança”,
conforme sintetizado na Carta de Princípios.
Como sugere Sposito e Carrano (2003), contemporaneamente, vem sendo acionados
“... novos agenciamentos capazes de fomentar a ação coletiva juvenil para além dos espaços
consagrados da política institucional partidária ou do movimento estudantil” (Sposito e
Carrano, 2003: 36). Mesmo que a arena pública privilegie formas organizativas
tradicionais, novas possibilidades de ação se insurgem pela cidade.

“O caráter emergente dessa nova agregação dos interesses e da


sociabilidade juvenil no âmbito da cidade, muito mais ligada a formas
expressivas, resistentes a certa racionalidade instrumental inerente ao
mundo da política institucional, abre para um novo campo de conflitos e
212
de ações que poderão, de certo modo, contribuir para uma reinvenção da
esfera pública, na esteira dos movimentos sociais observados a partir dos
anos de 1970 na sociedade brasileira” (Sposito e Carrano, 2003: 37).

É justamente no apelo para canais abertos de diálogo e participação, que a


coordenadora nacional do MNLM proclama a necessidade de promover atividades “a partir
do interesse da meninada. (...) Só que isso demanda tempo...”, reconhece. A dificuldade
para esta mobilização é referida ainda a uma possível falha de método.

“... eles tinham uma coisa aqui, equivocada, que era achar que pra reunião
da juventude do MNLM tinham que vir todos os jovens e adolescentes, de
todas as ocupações do MNLM, inclusive da Manuel Congo. Aí, agora eles
já conseguiram compreender que não tem. Que tem aqueles que querem
se organizar e, quando eles estiverem encaminhando, ou outros vão vir!
Então, agora, estão entendendo isso. Agora começa a andar, começa a
deslanchar. (...) Não tem que ser todo mundo pra se interessar...” (Ângela)

Ainda que não haja necessidade de que o interesse pelas atividades coletivas seja
unânime, de fato é preciso que ele se realize em alguma esfera e com certo grau de
organização. Para tanto, como a coordenadora havia sinalizado em outro momento, “tem
que ter gente trabalhada nisso”, deve haver alguém que tenha “um mínimo de formação
política”, “capacitação” e tempo disponível. Através deste conjunto de competências
mínimas apontadas por Ângela, é possível antever que o exercício de “articular a luta com
os interesses da juventude” é algo que vai muito além da boa vontade política. Requer
tempo, dedicação, aprendizado, assim como disponibilidade para abrir mão de projetos
pessoais em prol de um projeto coletivo de vida.
Este dilema também está presente nas falas de algumas mulheres da Manuel Congo.
Constituídas como sujeitos políticos, nelas também é depositada a esperança pela luta e
emancipação. Divididas entre o duplo compromisso - o engajamento político e os
compromissos familiares -, estas tensões ganham maior densidade nas relações das
unidades domésticas, ainda que reverberem para outros espaços da ocupação.

3.3 – A luta generificada

Depois de um tempo afastada, retornei ao trabalho de campo participando do Fórum


Social Urbano (FSU), que ocorreu em março de 2010, no Rio de Janeiro. Sentada na plateia

213
junto a diversos outros espectadores, incluindo estudantes, professores, militantes e
curiosos, algo me saltou aos olhos de imediato: a presença quase que majoritária de
mulheres ao meu redor. Esta marca feminina ficou nítida na composição da mesa de
abertura. Convidados para dar as boas vindas aos participantes, foram chamados à mesa os
representantes dos principais movimentos sociais que apoiavam o FSU. De seis entidades
que ali se pronunciaram, cinco eram lideradas por mulheres. Indaguei o fato a uma senhora
que estava sentada ao meu lado, moradora e militante da União Nacional por Moradia
Popular (UNMP) em uma comunidade em Nova Iguaçu. Ela reconheceu que este papel
proeminente se dá pelo fato das mulheres já estarem acostumadas a enfrentar as
dificuldades do seu dia-a-dia, como a falta d’água, o fornecimento precário de energia, o
filho doente, a ausência de médicos e especialistas no atendimento do posto de saúde... “A
mulher tem paciência para enfrentar isso, o homem não”, reconheceu, “por isso, a gente
parte para a luta”, concluiu sorrindo. Em seguida eu perguntei como ela havia se engajado
no movimento e ela logo emendou “eu me tornei uma liderança sem querer. Quando eu vi
já estava tomando a frente. Mas um líder não é aquele que fala bem, na frente de todos. Um
líder é aquele que torna os problemas da comunidade em seus problemas”. Assim, para se
tornar uma liderança não basta apenas ter o “dom” da palavra ou o carisma, mas é preciso
compartilhar as dificuldades que todo um grupo passa, tornando este problema uma questão
coletiva e passível de mudança.
Ao longo do trabalho de campo fui percebendo que o papel central das mulheres nos
movimentos sociais, sobretudo os vinculados com a luta pela moradia, poderia estar
conectado com a importância da casa e das necessidades emergenciais neste contexto.
Acostumada a executar tarefas tidas como femininas, o pioneirismo das mulheres acaba por
politizar a esfera privada, tornando os assuntos corriqueiros e a pragmática do cotidiano a
grande bandeira de luta em suas vidas. Ao optar por morar em uma ocupação, elas acabam
assumindo o espaço e a proposta coletiva como uma escolha de vida, ainda que isso
implique em riscos para os filhos e para o casamento.
Conversando com Dinorah sobre a condição das mulheres e as diferenças de gênero
na ocupação, ela se mostrou enfática, flamejando o usual discurso feminista:
“Os homens têm outra lógica. Nós, mulheres, fazemos mil coisas ao
mesmo tempo: ocupação, trabalho, filhos, estudo. As mulheres aqui
trabalham. O marido que caminha ao lado, bem devagar.” (Dinorah)

214
Betina, uma senhora sorridente e fala articulada, mãe de cinco filhos e avó de nove
netos, também foi outra a reconhecer esse pioneirismo feminino. Originária de Ubá (MG),
nasceu em 1945 e foi mandada, para o Rio de Janeiro, aos quatro anos de idade, pois seus
pais eram meeiros e tinham muita dificuldade de “tirar o sustento para toda a família”. O
seu maior sonho “era ser universitária”, no entanto, desde cedo, já sabia que não chegaria
ao ensino superior pois acabou sendo criada por um tio em uma casa onde residiam quinze
pessoas, sendo que apenas ele era o “único provedor”. As mulheres acabaram se tornando
costureiras o que fez com que Betina estudasse até a 5a série, “pois o curso ginasial69 na
época não era público, aí que os estudantes pobres dançavam”. Durante os anos 1960,
período que ela caracteriza como de “grande efervescência política”, Betina começou a
namorar, mas rapidamente ficou noiva. No entanto, “sempre quando tinha aqueles comícios
no centro, eu fugia... pegava o trem e ia embora”. Quando veio o golpe militar, ela já tinha
se casado e, apesar de não estar “metida na militância”, Betina se considerava “antenada”.
Justamente no período que estava casada e que frequentava a Igreja católica, foi quando
começaram a acontecer as “reuniões de base”, iniciando-se sua trajetória política. No início
dos anos 1990, quando ela presencia o governo Collor “dar mais um golpe na população”, e
paralelamente escuta o discurso dos sem-terra, ela pensa “é aqui mesmo, é nessa que eu
vou”. Toda a sua empreitada era conduzida por um lema “sem medo de ser feliz”. Quando
questionei o que era felicidade, ela foi enfática: “Ser feliz é lutar por aquilo que você
acredita, é ir atrás, conquistar seus direitos, tem que ser no grito, na ação, porque ninguém
vai te dar nada, não vai perceber nem que você está ali.”
Desde então, Betina têm se envolvido em diversas ocupações, a começar pelo bairro
em que morava, Anchieta, passando por Costa Barros, Fazenda Botafogo, Pavuna, até
culminar na Manuel Congo. Em todas essas experiências, passado o momento de conflito
com a polícia, as principais tarefas eram “abrir rua, puxar água, ver os bicos de luz e a
mulheres sempre tavam na frente. Nós tínhamos uma comissão que de seis pessoas cinco
eram mulheres.” Quando questionei o porquê dessa presença feminina na linha de frente
destes processos, Betina nem titubeou, parecia ter a resposta na ponta da língua.

                                                                                                               
69
“Ginásio”, “liceu” ou “escola secundária” são designações que correspondem ao ensino secundário ou
educação secundário, que hoje representaria a segunda metade do Ensino fundamental (6o ao 9o ano).

215
“Na ocupação a mulher sempre está na frente porque ela desempenha
vários papeis, de mãe, ajudante, trabalhadora. O núcleo familiar não é
mais convencional e a mulher não tem mais a presença do companheiro.
A maioria das mulheres vão para o movimento por conta da separação.
Em Anchieta também era assim, as mulheres sempre estavam na frente.
homem não tem coragem de fazer ocupação. Na hora de pegar a foice é a
mulher que pega, na hora do conflito, é a mulher que enfrenta. Homem
não tem essa guerra... A mulher tem um dispositivo que se for acionado,
não tem quem segure.” (Betina)

A opção que a moradora nos conta “da maioria das mulheres irem para o
movimento por conta da separação”, aconteceu com ela própria. Betina trabalhava como
costureira em Anchieta, mas quando se separou, após trinta anos de casamento, vendeu o
seu imóvel. Sem ter como pagar aluguel e relativamente sozinha, pois não queria morar em
um “puxadinho” na casa de sua filha, foi apresentada à liderança da Associação dos
Moradores do Parque Esperança que futuramente tomaria a frente da ocupação Criança
Esperança em Anchieta, da qual participou e tornou-se moradora.
Embora não tenha uma trajetória política semelhante à de Betina, a ida de Teresa
para a Manuel Congo se deu em circunstâncias similares. Morando a vida toda na
comunidade Vila Alvorada, em Anchieta, com o marido e as três filhas, Teresa “tinha muita
vontade de sair da favela.” Quando recebeu a proposta através de uma amiga da Igreja, ela
não pensou duas vezes. Com as malas prontas foi se despedir do marido “Rogério, tô indo
embora”, mas este retrucou “eu não vou, vocês querem ir para esse negócio, mas eu não
vou não!” Apesar da desistência do marido, Teresa foi com uma das suas três filhas para o
centro da cidade sem saber o que ia acontecer dali em diante. Aos poucos suas outras filhas
também foram morar com ela, mas seu “marido continuou batendo na tecla que não
queria.” Apesar da relutância do marido, Teresa disse que “não esquentou”, pois eles
brigavam muito. Parece que essa foi uma decisão sensata, pois deste modo “é bom que ele
fica para lá e eu fico pra cá.” Seu marido ficou doente e Teresa ia visitá-lo todos os dias no
hospital, mas quando ele teve alta ela decretou “você vai para a sua casa, eu vou limpar e a
nossa filha mais velha fica com você lá.” Mas Rogério não queria viver sem a mulher e foi
tentar pedir desculpas, “Teresa, eu mudei, agora eu estou vendo que você não merecia o
que eu fazia com você, agora eu vou mudar, agora eu vou ajudar você, você vai descansar,
vou trabalhar para te ajudar.” Teresa resolveu aceitar a conciliação e o levou para morar
com ela e as filhas na ocupação. No entanto, novamente o marido continuou a arrumar

216
confusão, além de crises de ciúme com outros rapazes da ocupação, mas Teresa finalmente
decretou, “sabe de uma coisa, é melhor você viver a sua vida que eu vou viver a minha.
Aqui você não canta de galo, não, porque aqui quem manda é a mulher, a lei é das mulher.
E se levantar a mão aqui pra mim, a coordenação bota você na rua.”
Quando Teresa se refere ao contexto da ocupação como sendo a “lei das mulheres”
isso não significa que os homens estejam necessariamente subjugados a elas, mas que as
regras da ocupação, as redes de cuidado, os espaços físicos e simbólicos, a gestão da casa e
dos filhos são construídos e produzidos por este ordenamento feminino, ou melhor pela
presença central das mães neste universo. Neste sentido, esta legalidade está permeada por
moralidades femininas e sobretudo domésticas. Como reconheceu Marcelin (1999), se a
família entra no mundo pela mãe, não é surpreendente que a ocupação que se forja também
passe por este critério.
Com Ritinha a história de engajamento político não foi muito diferente. Aos 19
anos, separou-se do pai de sua filha e paralelamente começou a participar das reuniões para
a futura ocupação Manuel Congo. Como nesta época ela estava concluindo o Ensino Médio
em um Colégio Estadual em Anchieta, chegou a temer desistir dos estudos por conta do
deslocamento diário do Centro da cidade até a Baixada Fluminense, mas concluiu a
empreitada até o fim. Posteriormente, em um movimento de reconciliação com o marido,
optou por levá-lo a morar com ela na ocupação, mas acabou sendo uma tentativa frustrada.
“Eu fiquei com medo de perder um ano de escola. Eu ficava pensando
assim ‘se eu não conseguir ter a minha casa, eu vou parar os meus
estudos, vou ficar dependendo da minha mãe’, porque eu tinha me
separado do pai da minha filha. Quando foi para a gente vir para cá, ele
pediu para eu voltar para ele, fiquei seis meses com ele. Quando chegou
aqui ele falou ‘não, não vai dar certo’, sempre botando para baixo. Eu
falei, ‘eu quero uma pessoa que me ajude e que também me ajude a ir para
frente, não ir para trás.’ Porque a gente brigava muito, discutia muito, não
de cair no tapa, não. Eu falei ‘não dá pra gente ficar junto’, porque para
ele dinheiro influencia mais do que ter uma pessoa ali do lado, ajudando,
sendo companheiro. Então, para ele era mais isso do que a própria união
do povo. Eu falei ‘depois de quase dois anos aqui - eu tinha 19 anos
quando eu fui para a primeira reunião, porque eu fiz 21 agora em
setembro - largar tudo por causa de marido? É melhor a gente se
separar.’” (Ritinha)

A decisão de Ritinha em permanecer separada mesmo depois da difícil tarefa que


representou a entrada no prédio foi tomada de maneira muito consciente. Segundo ela, seu

217
marido não se preocupava com a “união do povo”, priorizando, de maneira muito
unilateral, o dinheiro e a ascensão pessoal. “Depois de quase dois anos, largar tudo por
causa de marido” não faria sentido, como ela alertou. E, mesmo muito jovem, com uma
filha pequena e sem ter trabalho fixo, Ritinha diz ter tomado a decisão certa em sua vida.
A ida para a ocupação implica tomadas de decisão muito difíceis na vida de
algumas famílias. Diante de situações muito problemáticas como a saída da casa dos pais, a
separação do marido, a interrupção dos estudos e o desemprego, ao mesmo tempo em que
Ritinha, Teresa e Betina se sentem compelidas a engajar-se em um projeto coletivo de vida,
estas opções políticas não podem e não devem esfacelar seus projetos familiares, uma vez
que estes são tão importantes quanto a militância. E talvez seja a partir deste idioma
doméstico que a luta do movimento se corporifique, afinal é a partir dele que moral e
política se realizam, que casa e moradia articulam-se na constituição de um bem coletivo.
Como bem sintetiza Betina, “quando eu me separei, eu pensei: eu não vou ficar esperando,
eu vou à luta.”
A fala da militante durante o FSU de que as mulheres estão acostumadas a enfrentar
as dificuldades do dia a dia, “por isso, a gente parte para a luta” também nos ajuda a
problematizar algumas associações equivocadas. Alguns estudos, embora vigorosamente
criticados, sugerem que a desvalorização das mulheres estaria relacionada com sua
associação simbólica ao domínio da natureza (Ortner, 1974) ou com a esfera doméstica
(Rosaldo, 1974), instâncias consideradas subordinadas ao domínio da cultura e à esfera
pública, respectivamente. Ainda que estas explicações enfatizem fatores de ordem cultural,
simbólica e social para dar conta de um contexto de desigualdade de gênero, o que
podemos observar através da fala da senhora e do cotidiano da ocupação é exatamente o
oposto. As experiências de Ritinha, Teresa e Betina assim como de várias mulheres na
ocupação, embora estejam geralmente relacionadas ao mundo doméstico, nos possibilitam
enxergar não uma situação de subordinação, mas justamente uma condição para o seu
engajamento. É aqui que o ambiente da casa nos permite perceber o quanto projetos
familiares e projetos coletivos estão relacionados. É justamente da familiaridade com as
“dificuldades do dia a dia”, de uma relação estreita com o universo dos cuidados e do seu
papel de mãe, que elas descobrem a força para a luta e um potencial para a militância, ainda
que isso proporcione dilemas em suas vidas. Outra questão, já debatida nesta tese, refere-se

218
ao fato de que a dicotomia doméstico-público é mais uma das muitas fantasias culturais a
ser combatida, pois em que medida a primeira esfera pode ser considerada menos política
do que a segunda? Nosso material etnográfico mostra exatamente o oposto, é de dentro dos
agrupamento domiciliares que a ocupação vai sendo primordialmente construída. A
reprodução social da casa é uma valor crucial para o desenrolar da luta, atividades tidas
como femininas são de fato aquilo que oferece sustento moral a toda essa empreitada.
Não obstante, apesar destas atividades serem executadas principalmente por
mulheres, elas tendem a ser associadas às imagens de vulnerabilidade, mas nem por isso
são automaticamente consideradas inferiores na vida da ocupação. Ao mesmo tempo em
que os discursos do risco aparecem com insistência, na fala dos coordenadores, na
observação dos moradores ou em algumas passagens da Carta de Princípios, é em nome
dele, por exemplo, que o protagonismo é enaltecido. Em diversos momentos podemos
perceber como as “mulheres” (assim como “crianças” e “jovens”) vão sendo categorizadas
como pessoas vitimizadas e, por outro lado, como são chamadas para assumir uma posição
estratégica dentro do movimento. “Fica proibido o uso de qualquer tipo de violência física,
em especial contra crianças, adolescentes, jovens, mulheres, idosos e portadores de
deficiência”, decreta o documento. E mais, é preciso “combater dentro, entre nós e na
sociedade, vícios que aprendemos com o capitalismo e com a opressão, especialmente, o
machismo”, alerta a Carta. Deste modo, urge “propiciar a emancipação feminina na busca
de igualdade, potencializando sua capacidade de luta.”
Estas prescrições contribuem para forjar uma certa imagem do que seja a “mulher”
para o movimento. No entanto, que “mulher”, enquanto sujeito político, interessa ao
movimento, ou melhor o que “de mulher” está se fazendo na ocupação? A “mulher”
enquanto vítima, que deve mostrar sua força e conquistar a tão esperada “emancipação
feminina”, também é uma figura que povoa o discurso feminista, mas aqui parece que o
nível de discussão é outro.
As “mulheres” da ocupação não são o sujeito universal de certos discursos
feministas, mas têm conexão com a gestão da casa, com as redes de cuidado, com a força
dos laços relacionais. O ideal coletivo, desejado pelo movimento, ao eleger “crianças”,
“jovens” e “mulheres” como instâncias privilegiadas, mais do que reivindicar direitos

219
humanos universais, reivindica de e por um lugar muito específico, o ambiente doméstico,
o espaço moral dos cuidados, da maternidade, das relações familiares.
Neste sentido, de que “mulheres” estamos falando? Como elas são constituídas a
partir dos espaços da ocupação? Já de imediato podemos argumentar que não é novidade,
no campo antropológico, afirmar que as figuras do homem e da mulher não se restringem
ao do ser macho e do ser fêmea, mas trata-se de construções sociais e culturais modeladas
por regras e códigos simbólicos específicos70.
Na mesma linha de raciocínio, Judith Butler (2003) argumenta que o sexo não é
uma “facticidade anatômica pré-discursiva”, mas é sempre gênero desde o começo. Para
ela, apesar de todo o esforço de desnaturalização das figuras do homem e da mulher, este
empreendimento ainda manteve-se restrito ao campo simbólico, negligenciando as esferas
de poder. Retomando a proposta foucaultiana e problematizando o caráter universalista das
categorias de gênero, a autora chama atenção para o fato de que estas últimas são efeitos de
instituições, práticas e discursos cujos pontos de origem são múltiplos e difusos. Como
alerta, algumas perspectivas feministas desenvolveram uma linguagem a fim de promover a
visibilidade política das mulheres, no entanto, ao pretender descrever e representar as
“mulheres” – mesmo no plural – depararam-se com um problema, uma vez que “o gênero
nem sempre se constitui de maneira coerente ou consistente nos diferentes contextos
históricos, e porque o gênero estabelece interseções com modalidades raciais, classistas,
étnicas, sexuais e regionais de identidades discursivamente constituídas” (Butler, 2003: 20).
Afinal, se alguém “é” uma mulher, certamente isso não é tudo o que essa pessoa é. Como
assinala Moore (1997), o gênero não é o único eixo de diferenciação social em uma
sociedade, mas outros fatores, como classe e raça, por exemplo, são elementos

                                                                                                               
70
Segundo Henrietta Moore (1997), ao longo das últimas duas décadas, as ciências sociais têm trabalhado
vigorosamente num esforço de contestação de afirmativas que descrevem as diferenças entre mulheres e
homens na vida social a partir de bases biológicas. A ideia de que os termos “mulher” e “homem” denotam
construções culturais já tinham sido introduzidas por Margareth Mead em Sexo e temperamento,
argumentando que existe uma considerável variabilidade cultural nas definições de feminilidade e
masculinidade. Em decorrência disso, impetrou-se críticas severas à categoria sexo, marcada por uma
concepção equivocada, apostando na de gênero, a fim de que se possam conhecer os procedimentos que lhe
são constitutivos. É neste campo de debate, na tentativa de combater os argumentos do determinismo
biológico, que projetos teóricos e políticos de produção da identidade tomaram corpo tendo como condição
histórica os movimentos gay e feminista.

220
significativos de diferenciação social que organizam o acesso a recursos, incluindo
educação, emprego e serviços públicos.
Assim, na “presunção política” de acreditar haver uma base universal, encontrada
em diferentes culturas, o sujeito de algumas correntes feministas revela-se discursivamente
constituído e reprimido pelo próprio movimento que supostamente deveria facilitar sua
emancipação. É neste sentido que este sujeito aparentemente estável, compreendido como
uma categoria una das mulheres, acaba por gerar múltiplas recusas por parte das próprias
“mulheres”, deslegitimando que esta política de identidade as represente. Será que existe
uma região do “especificamente feminino” diferenciada do masculino como tal e
reconhecível por uma universalidade indistinta?. Ainda que exista uma “especificidade” do
feminino ela não pode ser descontextualizada e muito menos separada de outras relações de
poder como classe, raça, religião, etnicidade, sexualidade, etc.
Na tentativa de contestar e superar as reificações de gênero, urge compreender a
“identidade” como construção variável no tempo e no espaço. Logo, é preciso colocar
corpos concretos nestes indivíduos universais, pensando todas as esferas de poder que
perpassam estes sujeitos. Afinal, a experiência de uma mulher branca é completamente
diferente da de uma mulher negra, assim como o é a de uma mulher moradora de um
condomínio de luxo e de uma ocupação urbana. Não estamos aqui falando de “mulher”
enquanto indivíduo, mas de “mulher” enquanto pessoa, como mãe, responsável pelos
filhos, pela manutenção e gestão da casa, por administrar uma zona de tensão constante
entre o projeto político do movimento e os projetos familiares. Relembrando o que me disse
certa vez um dos coordenadores do movimento “A ocupação Manuel Congo é composta
por 42 famílias cujas chefes são, em sua maioria, mulheres que cuidam de crianças,
adolescentes e jovens.” O que nos chama atenção aqui não é apenas perceber em que
sentido as mulheres são maioria no prédio ou por que acabam sendo as protagonistas da
luta, mas refletir como estas “mulheres” estão sendo construídas enquanto mães que
cuidam dos filhos, que incorporam e externalizam, a partir da casa, uma moral vivida que é
a própria sustentação do projeto político de moradia.
Olhar para o cotidiano da ocupação, foco que acompanhou todo o trabalho de
campo e que orienta o desenvolvimento desta tese implica perceber, portanto, como este
plano micro é marcado por temas femininos. Se, conforme fazem questão de frisar diversos

221
moradores, a luta é empreendida e sustentada por “mulheres”, isso se deve menos pelo fato
da presença feminina marcante e mais pelo peso que se dá ao lugar da casa, à gestão moral
do espaço, ao estabelecimento de relações familiares e de vizinhança de outra ordem. Estes
traços são construídos simbolicamente como temas femininos e contribuem para a
fabricação do sujeito político que deve encampar a luta. Afinal, se este sujeito deve estar
comprometido com o coletivo, ele não deve se omitir (e de fato não quer e não consegue)
de seus compromissos morais enquanto mãe, avó, tia, dona de casa, esposa, vizinha, amiga.
Como insistiram algumas pessoas durante o Encontro Municipal do MNLM, “as mulheres
têm dificuldade de se organizar porque tem muitas responsabilidades no lar” e na
sociedade, de maneira geral. Talvez seja daí que a luta se corporifique, do papel central que
o cotidiano, a gestão moral da casa, o cuidado com os filhos, a educação das crianças têm
na legitimidade da luta pela moradia.
Embora o meu foco não tenha sido os eventos dramáticos, mas a vida ordinária e a
sua contribuição na conquista da moradia, uma situação recente pode nos ajudar a entender
melhor o cruzamento dos movimentos populares com o gênero através da unidade
doméstica. Mesmo que não tenha repercutido na grande mídia, o chamado processo de
reintegração de posse da comunidade Pinheirinho, em São José dos Campos (SP), ocorrido
em janeiro de 2012, percorreu os movimentos sociais, recebendo solidariedade de várias
frentes populares71.

                                                                                                               
71
No blog do Movimento Nacional de Luta pela Moradia/RJ, além de notícias das ocupações e lutas
relacionadas à reforma urbana, desde o dia 22 de janeiro de 2012, a postagem que tem destaque central no site
é o “Ato em Solidariedade a Pinheirinho!”. No cartaz de divulgação, além das imagens da repressão policial e
das famílias desalojadas, aparecem os dizeres: “Eu posso estar longe; eu posso não ser de lá, mas eu não
posso ficar indiferente. Juntos da mobilização! Somos todos Pinheirinho!” (fonte:
http://mnlmrj.blogspot.com.br/ acessado em 23 de março de 2012.

222
Foto 19: Despejo de famílias durante desocupação de Pinheirinho.

Foto 20: Despejo de famílias durante desocupação de Pinheirinho.

Fora toda a brutalidade que acompanhou a ação da Polícia militar do Governo de


São Paulo responsável pelo despejo de cerca de 1500 famílias que ocupavam a área desde
2004, o que chama a atenção nestas fotos não são as imagens de mulheres fugindo com
crianças no colo, mas de mães abraçadas a seus filhos, chorando e correndo do fogo que
flameja suas casas. Qual a representação das mulheres nos movimentos de ocupação?
Afinal, que concepções são estas que estão sendo constituídas acerca da maternidade e
como elas são disputadas no contexto das ocupações urbanas?
Outra fonte com a qual tive contato e que sinaliza para o imbricamento entre
mulheres e crianças, no movimento sem-teto, e a fabricação daquelas como mães, é o filme

223
“Atrás da porta” produzido, em 2010, por Vladimir Seixas e Chapolim. O documentário
registra a experiência de ocupações na área central do Rio de Janeiro (Manuel Congo,
Zumbi dos Palmares, Chiquinha Gonzaga, Quilombo das Guerreiras, Casarão Azul, Flor do
Asfalto e Guerreiros do 510) e a criação de novos espaços de sociabilidade realizada por
famílias sem-teto. As ações de despejos forçados72 são entrecortadas por entrevistas e
acompanhadas pelas imagens de moradores indignados com a retirada. Destes, mães e
filhos aparecem na linha de frente de confronto com o aparato repressor, talvez por
representarem, especialmente nesta situação, sujeitos políticos para quem, em tese, haveria
de se ter maior cuidado e sensibilidade.
Afinal, como as “mulheres” são construídas nestas imagens ao mesmo tempo de
fragilidade e de força que resiste e luta na contramão dos projetos de revitalização e
embelezamento da cidade? Estes estereótipos são apenas concepções de gênero, mas são
estas relações sociais acumuladas que se tornam naturalizadas com o passar do tempo.
Nesta seara multiforme é preciso explorar como a “mulher” é construída a partir de um
projeto político de luta pela moradia. Afinal, por que é preciso “restaurar sua autoestima”,
“propiciar sua emancipação”, “potencializar sua luta”? E como, a despeito destas
representações, ainda assim ela “está sempre na frente”, tornando-se “guerreiras” e
conseguindo fazer “mil coisas ao mesmo tempo: ocupação, trabalho, filhos, estudo?”
Antes de tudo, é preciso esclarecer que estes atributos seja de “vulnerabilidade” ou
de “protagonismo” não são inerentes ao corpo sexuado feminino (uma vez que este também
não existe como um dado), mas são construídos a partir de representações, práticas,
projeções do que é ser mulher, uma busca infindável por tornar-se mulher. Neste aspecto
Butler (2003) esclarece que se já é notório que o gênero é construído culturalmente, é
preciso questionar-se sobre os mecanismo desta construção, uma vez que esta última não

                                                                                                               
72
A entrevista de um defensor público no filme, nos possibilita entender melhor o caráter destes despejos: “...
não são ações isoladas, fruto de uma ação desastrada de algum subprefeito. Mas são ações que hoje estão
presentes dentro da lógica de ação mais ampla do município. Os dados mais graves em relação a essa questão
são: não há notificação prévia do dia e da hora da realização do despejo e da demolição, não há publicidade
com relação ao procedimento administrativo que gera a demolição, as pessoas não têm acesso às razões, à
ampla defesa, não podem realizar uma contra-argumentação. E no fim, quando o município chega para
realizar a demolição, elas acordam com um aparato da polícia civil, da guarda municipal, de delegados
cedidos da Secretaria de Ordem pública que realizam de forma truculenta o despejo. E mesmo quando [estes]
se preocupam com alguns bens, com o que sobrou da moradia, o sofá da sala, as pessoas se deparam com um
caminhão de lixo, aberto, de entulho como solução de transporte para esses bens.” (Entrevista cedida ao filme
Atrás da porta)

224
pode ser vista como uma forma de determinismo social. Caso contrário, não haveria
possibilidade de qualquer agência ou transformação por parte das pessoas. Logo, como e
onde ocorre a construção do gênero?73
Assumindo a proposta de Simone de Beauvoir de que “a gente não se torna mulher,
mas torna-se mulher” Butler (2003) sugere que não há nada nesta explicação que garanta
que o “ser” que se torna mulher seja necessariamente fêmea, uma vez que este corpo só
passa a existir nas marcas de gênero e por meio delas. E aqui poderíamos acrescentar, será
que é necessário que haja um “ser” neste processo de construção? Nossa sugestão é que não
só seres humanos são passíveis de transformações via significados culturais de gênero, mas
relações, atividades, circunstâncias, espaços e temporalidades podem se constituir enquanto
tal. Afinal, não só “seres” tornam-se mulheres, mas a própria luta diária que fabrica política
e moralmente a ocupação é mediada por processos de generificação.
Nesta perspectiva, Guattari (1985) propõe que o devir mulher sirva de referência a
outros tipos de devir (devir criança, devir animal, devir vegetal, devir mineral, devir
música etc.), por não estarem tão longe do binarismo do poder fálico. Entretanto, não
devemos confundir o devir mulher com a categoria “mulher” tal como ela é considerada no
casal, na família, pois tal categoria “só existe num campo social particular que a define!
Não há mulher em si! Não há polo materno, nem eterno feminino...” (Guattari, 1985: 36).
Assim, o devir mulher estaria associado a todas as formas de organização
dissidentes que buscam uma linha de fuga do socius repressivo, a tudo o que quebra as
normas, a tudo o que rompe com a ordem estabelecida. Mais do que colocar a questão sobre
o que há de dissidente nas relações de gênero e nas práticas dos ocupantes, é preciso
procurar o que há de feminino nos movimentos de ruptura encontrados na ocupação Manuel
Congo. Estes movimentos podem, por sua vez, ser impetrados por mulheres, crianças,
jovens, homens, relações familiares, de vizinhança, de coletividade... Afinal, se homens se
engajam em um devir mulher na medida em que se desligam das disputas fálicas e de todas
as formações de poder, o mesmo se pode dizer das ocupações urbanas que, através de lutas
                                                                                                               
73
Butler alerta que em algumas explicações, os significados do gênero parecem estar inscritos em corpos
“anatomicamente diferenciados”, em que estes passam a ser vistos como “recipientes passivos de uma lei
cultural inexorável”. Assim, “quando a ‘cultura’ relevante que ‘constrói’ o gênero é compreendida nos termos
dessa lei ou conjunto de leis, tem-se a impressão de que o gênero é tão determinado e tão fixo quanto na
formulação de que a biologia é o destino. Nesse caso, não a biologia, mas a cultura se torna o destino”
(Butler, 2003: 26).

225
generificadas de ruptura com os projetos e práticas de embelezamento e gestão urbana,
imprimem um novo arranjo societário.
Vale ressaltar que estas circunstâncias não são exclusivas ao contexto da Manuel
Congo, mas outras ocupações também produzem politicamente as “mulheres” seja num
ambiente de insegurança seja como protagonistas no processo de reforma urbana. Ao
analisar as tensões entre as condutas dos ocupantes e as punições determinadas pelo
regimento na tentativa de reprimir os “desvios”, Moreira (2011) observa que, na Ocupação
Quilombo das Guerreiras,
“... o Coletivo não interfere diretamente na hierarquia estabelecida entre
os gêneros, no âmbito do território doméstico – não há nada que proíba o
marido de ter a palavra final em sua casa em relação a sua companheira e
a educação dos filhos, se assim o casal compreender ser o certo –,
entretanto, o Coletivo tende a organizar seu território de forma a impedir a
utilização da violência para impor essa hierarquia. Por sua vez, o Coletivo
pune os moradores que utilizam a violência como forma de coerção e de
dominação, principalmente quando se trata de violência doméstica”
(Moreira, 2011: 18).

Nas duas ocupações supracitadas, os atos violentos, principalmente aqueles


cometidos contra sujeitos tidos como vulneráveis (“crianças”, “jovens”, “mulheres”) são
reprimidos por uma representação coletiva. A fronteira que delimita o território doméstico
e o território político existe e é sancionada socialmente, sendo claramente representada
pelo ditado “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”. Entretanto, como sugere
Moreira (2011), nas ocupações essas fronteiras são diluídas uma vez que um espaço
interfere no outro, como lhe disse certa vez uma moradora, “Em briga de marido e mulher o
Coletivo mete sim a colher!”
Neste sentido, nas duas ocupações, os espaços coletivos são instâncias legitimadas
para proibir e punir o uso da violência, normatizando o comportamento dos moradores e
contribuindo para definir as relações de gênero. Na Manuel Congo, parece haver toda uma
preocupação, por parte do movimento, para que sujeitos em situação de vulnerabilidade
sejam preservados de atos coercitivos e mais, para que se conscientizem de seu potencial de
transformação. Assim como são reservados espaços específicos para as crianças
(“escolinha”) e jovens (Coletivo de Juventude), com o objetivo de orientar suas condutas,
assegurando algumas condições para que desenvolvam sua autonomia, tentativa semelhante
também é feita em relação às mulheres. Na Carta de Princípios, há um artigo que expressa

226
claramente este objetivo: “ficam constituídos os Coletivos de Juventude e o Coletivo de
Mulheres conforme orientação nacional do MNLM.”
Embora o Coletivo de Juventude tenha se organizado, ainda que de maneira
incipiente, o mesmo não ocorreu com o Coletivo de Mulheres. No entanto, mesmo que as
mulheres não estejam organizadas institucionalmente, elas estão lá, seja na cozinha
comunitária, na “escolinha”, nos atos e manifestações, na confecção de bolsas para o
Encontro Municipal, no preparo do bolo para a comemoração de aniversário da ocupação,
no cuidado diário dos filhos, aglutinando as redes familiares, de vizinhança, de fofoca. Isto
não significa que os homens estejam ausentes dos espaços de organização da ocupação,
mas talvez estejam desempenhando tarefas tidas como femininas e fundamentais para o
desenrolar da luta, e mais, talvez estejam também engajados em um devir mulher.
Nesta lógica, talvez não seja tão necessário (e também não faça sentido) organizar
as mulheres em uma coordenação, pois o que estamos tentando mostrar ao longo desta tese
é que o espaço doméstico é um ambiente essencialmente político. A relação entre cuidado e
política se mostrou tão estreita na Manuel Congo porque de fato estes dois universos estão
eivados de relações de disputa e categorizações. Nesta confluência de compromissos e
lealdades, a casa aparece como lócus privilegiado não porque eu tenha permanecido mais
tempo dentro dos apartamentos do que nos ambientes institucionais, mas porque ela é ao
mesmo tempo o projeto político e o projeto moral de conquista da moradia.
As relações de gênero são uma questão central no cotidiano da ocupação menos
pelo fato de existirem “mulheres” que “tomam a frente”, que ocupam cargos, que “fazem
mil coisas”, e mais porque essas mil coisas, que envolvem a maternidade, o cuidado, a
limpeza, o trabalho, a família, o estudo, os filhos, são tarefas femininas construídas
simbolicamente como tais. E é justamente na filigrama da tensão entre o viver
coletivamente e o conseguir dar conta desta constelação de tarefas que o gênero se faz
presente, que o sujeito moral, que está na base da ocupação, se constitui. É neste sentido
que as “mulheres” da ocupação aparecem, que mães, avós, tias, vizinhas, madrinhas,
amigas e esposas surgem, não porque estejam sustentando a luta a partir de uma
cronograma de luta, de um “manual” de formação política, mas porque lidam diariamente
com dilemas, dificuldades e facilidades que vão sendo gestados a partir do projeto coletivo
e dos compromissos familiares.

227
Neste sentido, mais do que a politização de um sujeito universal, talvez estejamos
falando da politização de uma instância bem específica, a maternidade. Uma passagem da
Carta de Princípios deixa bem clara esta preocupação: “Organizar as mulheres da e na
moradia de forma a restaurar sua autoestima e propiciar a emancipação feminina na busca
de igualdade, potencializando sua capacidade de luta em defesa da mãe terra e seus
filh@s.” Assim, organizar as mulheres da ocupação significa não só impetrar uma luta
contra a “violência”, o “machismo”, o “preconceito”, o “Capitalismo e todas as formas de
opressão”, mas garantir sua condição de mãe, o fortalecimento dos laços comunitários, o
cuidados com os filhos, o prosseguimento nos estudos, a possibilidade de que outros
arranjos familiares possam se desenvolver. Assim, na Manuel Congo, não basta ser
“mulher”, tem que ser mãe, mas não qualquer uma, mas aquela que cuida dos filhos, que
tem “autoestima” elevada, que se reconhece potencialmente como capaz de lutar e defender
a causa dos outros.
A “politização da maternidade” por sua vez também é um argumento que aparece
nas políticas de intervenção ou “políticas de gestão da vida” que tendem a ver a família
como locus privilegiado de problemas e soluções sociais. Nesta medida, Dagmar Meyer
(2005) sustenta “que estamos re-vivendo um período de intensa ‘politização do feminino e
da maternidade’” (Meyer, 2005: 81). Ao longo dos séculos XIX e XX multiplica-se uma
rede discursiva de cuidados específicos – do pré-natal, da medicina, das tecnologias, da
nutrição, da psicanálise – que tem como foco mulheres-mãe. De uma forma geral, essa
politização é incorporada pelas políticas de Estado, pelos manuais, revistas, jornais,
televisão, cinema e publicidade, difundindo uma determinada forma de maternidade, o
modelo da mãe cuidadosa que cuida e se cuida.74

                                                                                                               
74
Como atesta a autora, estes investimentos em determinados modos de “ser mulher” e de “exercitar a
maternidade” funcionam também como poderosos processos de produção de subjetividades (Meyer, 2005: 89)
além de assumir uma retórica eminentemente técnica e universalista. As políticas e programas de inclusão
social (Programa Nacional de Incentivo ao Aleitamento Materno, Programa Bolsa Escola, Programa Prá-
Nenê/Porto Alegre) não consideram os efeitos e a complexidade das dinâmicas de classe, raça/etnia, gênero
ou inserção regional, mas homogeneízam tais especificidades em noções essencialistas e universais como
“populações de risco”, “populações vulneráveis”, “famílias em situação de pobreza”. Neste sentido,
classificadas em uma gramática da probabilidade e do risco (“risco de não amamentar”, “maior risco de
engravidar”, “de ter uma gestação de risco”, “risco de se submeter a uma cesariana”, “risco de depressão pós-
parto”), essas mulheres são transformadas em sujeitos-alvo de práticas assistenciais, educativas e de controle
sistemático.

228
Embora o nosso foco não sejam políticas e programas de intervenção nem as
políticas representacionais de algumas correntes feministas, vale, contudo, ressaltar a
maneira como a relação mãe-filho é re-significada a partir de um projeto político de
coletividade. Ainda que este não seja explicitamente um regime de vigilância e regulação
sobre a maternidade, ele concebe representações, define comportamentos, projeta
expectativas, encoraja o “empoderamento”, planeja ações, executa atividades, forjando
discursos que têm impacto no cotidiano da ocupação. Não se trata, contudo, de um modo de
conceber e ordenar o “indivíduo mulher-mãe”, mas de constituir “pessoas mulheres-mães”,
em que o universo moral da casa tem uma marca crucial.
Afinal, a luta pela moradia é um direito fundamental que deve ser conquistado
principalmente por/para sujeitos concretos, pessoas mulheres-mães. Como disse certa vez
uma moradora “Eu tinha o sonho de conseguir a casa própria, que é o sonho de toda a
pessoa que mora em comunidade e que tem filhos.” Em diversas situações, na ocupação,
tive a sensação de que a condição da maternidade criava certa blindagem para eventuais
situações. Ser mãe parece duplicar o direito e a necessidade de ocupar um prédio, da
mesma maneira que te redime da obrigação de ter que participar de todos os atos do
movimento, uma vez que isto pode colocar em risco a segurança e saúde de seus filhos. O
próprio fato de ter iniciado o campo grávida e depois ter levado meu filho para participar,
abriu inúmeras possibilidades de pesquisa e de estreitamento das relações, assim como
limitou e entrecortou minha presença no campo.
Mais uma vez, a produção do sujeito político mãe reintera uma reflexão que
perpassa toda esta tese: como conjugar compromissos coletivos com arranjos familiares?
Que dilemas são estes que as mães na ocupação (e não só neste contexto) têm que enfrentar
diariamente de modo a engajar-se na luta, reconhecendo seu potencial, mas ao mesmo
tempo preservar seus filhos, reservar tempo para o estudo, o casamento, os afazeres
domésticos? Certamente elas sabem que para dar conta dessas “mil coisas” é preciso se
adequar ao um novo ethos de sociabilidade, assumindo outros modelos de família, de casa,
de vizinhança, a fim de viabilizar direitos que não são dados de presentes, mas devem ser
conquistados.
Parece-nos, portanto, que, no âmbito de um novo paradigma societal, como é o caso
dos movimentos de luta pela moradia, é indispensável um trabalho não só de

229
refuncionalização dos espaços físicos, mas de (re)invenção dos atores e das relações
sociais. Conceber “crianças”, “jovens” e “mulheres” como atores privilegiados nesta
agenda de luta requer, portanto, novas práticas pedagógicas, novas maneiras de se
comportar, de cuidar do outro, de reivindicar direitos e relacionar-se coletivamente. Como
propõe Moore (1997), mudanças nas relações de gênero não implicam apenas novas
maneiras de se conceber “homens” e “mulheres”, mas transformações estruturais nas
relações de poder dentro e fora do mundo privado.
“Todas as formas de mudança social implicam a reelaboração das relações
de gênero em maior ou menor grau. Isso porque as mudanças nos sistemas
de produção implicam mudanças na divisão sexual do trabalho; conflitos
políticos implicam a reconfiguração das relações de poder dentro e além
da esfera doméstica; e o gênero, como uma forma poderosa de
representação cultural, é envolvido nas lutas emergentes em torno do
significado e nas tentativas de redefinir quem é o quê são as pessoas.”
(Moore, 1997: 828, tradução livre)

Seguindo a aposta da autora, se concordarmos que “as relações de gênero poderão


ser transformadas nas sociedades atuais e nas do futuro”, é preciso observar como outras
modalidades de gestão da vida estão se processando a partir das relações de gênero, ou o
que de gênero está se produzindo nas relação cotidianas de uma dada ocupação urbana.
Entretanto, para não acharmos que tudo se passa de um clima de total harmonia, ainda que
ele seja enunciado e praticado, na maioria das vezes, é preciso atentar para as tensões, os
embates e os conflitos como partes constitutivas e não destrutivas destas sociabilidades.
Mesmo em um ambiente coletivo como são as ocupações urbanas, existem disputas,
hierarquias, sanções e limites. Todavia, vale ressaltar que estas novas maneiras de forjar a
moradia popular de fato não se aproximam dos emaranhados burocráticos do corpo
administrativo, mesmo que dele dependa para encaminhar alguns processos, como a
compra do prédio, por exemplo.
Por ora, vale chamar atenção para o perigo de se resvalar em um movimento de fácil
sedução como a fetichização da ocupação. Ainda que possa servir para uma leitura nestes
termos, o objetivo não é encará-la como um atmosfera idílica e imune aos conflitos e
impasses cotidianos. Mas, ao contrário, eles estão lá através de brigas de família,
confrontos entre vizinhos, debates entre moradores, discussões em assembleias, tensões
entre os projetos coletivos e as propostas familiares.

230
Questionando a postulação da universalidade da identidade feminina e da opressão
masculina, Butler (2003) reconhece que a ação política, ao invés de insistir na “unidade da
coalizão”, deve também reconhecer suas contradições, questionando as relações de poder
que condicionam e limitam as possibilidades de diálogo. Como alerta a autora, “talvez o
entendimento dialógico também encerre em parte a aceitação de divergências, rupturas,
dissensões e fragmentações, como parcela do processo frequentemente tortuoso de
democratização” (Butler, 2003: 35).
Nesta perspectiva, em busca de um projeto societário mais democrático, é preciso
observar que a “unidade” da ocupação também é feita de caminhos tortuosos,
“fofoquinhas”, desavenças. Afinal, se a ocupação surge como uma prática insurgente que
não se conforma com as normas de inteligibilidade urbana, porque não considerar matrizes
“incoerentes” (e muitas vezes contraditórias) no seu próprio interior? No entanto, não cabe
aqui enaltecê-las ao ponto de “jogar mais lenha na fogueira”, contribuindo para a tal
“guerra hegemônica” de que tanto me alertavam os coordenadores do movimento. Mas é
preciso reconhecer que é disto também que são feitas as práticas insurgentes e essas
“rachaduras” longe de anularem sua capacidade de transformação, parecem oferecer uma
densidade maior à luta empreendida. Ações concretas que tenham outras propostas que não
o objetivo político explícito do movimento podem emergir no contexto da ocupação e são
estas estratégias de deslocamento que também fazem a “obra”, afinal, “o cotidiano se
inventa com mil maneiras de caça não autorizada” (De Certeau, 1998: 38). Aqui parece
sensato evocar novamente Butler uma vez que “sem um agente não pode haver ação e,
portanto, potencial para iniciar qualquer transformação das relações de dominação no seio
da sociedade” (Butler, 2003: 49).
Como já foi dito anteriormente, este entrelaçamento não implica a substituição de
um projeto por outro, mas a “unidade” surge do embate, das críticas, das múltiplas
convergências e divergências. Afinal, a ocupação de um prédio abandonado e sua
consequente transformação em moradia digna não passa apenas por categorizações,
práticas de conversão, desconstrução de olhares e limitação de condutas, mas por uma
gestão moral da casa, da criação de redes de cuidados e solidariedades que são tecidas
cotidianamente por pessoas comprometidas a partir de uma variedade de trajetórias.
Embora este engajamento se dê por motivos mais diversos, os esforços convergem para um

231
objetivo comum, uma forma de vida, se não ideal, pelo menos satisfatória para os
moradores.

232
CONSIDERAÇÕES PROVISÓRIAS

A política urbana na cidade do Rio de Janeiro, desde o início do século XX, tem
como uma de suas principais características a retirada das populações de baixa renda de
seus locais de moradia e trabalho, sobretudo quando localizados em regiões centrais e
valorizadas economicamente. A gestão do prefeito Eduardo Paes continuou este tipo de
política; em um primeiro momento através do discurso da ordem, depois, após as chuvas de
abril de 201075, com o discurso do risco e, atualmente, com as propostas de requalificação
urbana para a realização da Copa do Mundo de 2014, no Brasil, e dos jogos Olímpicos de
2016, na cidade do Rio de Janeiro.76
Com a aproximação da realização destes megaeventos, diversas comunidades estão
sendo ameaçadas de remoção e tantas outras já estão sendo removidas77 a considerar dois
grandes projetos voltados para a região portuária do Rio de Janeiro: o Porto Maravilha e o
Programa Morar Carioca. A região portuária abriga, além da população originária dos
Morros da Providência, da Conceição, do Livramento, da Saúde, da Gamboa, do Pinto e de

                                                                                                               
75
As fortes chuvas que inundaram o Rio de Janeiro no dia 5 de abril de 2010 duraram mais de 36 horas e
provocaram inundações, deslizamentos de terra e soterramentos, além de vários mortos e desabrigados.
76
No dia 1º de janeiro de 2009, Eduardo Paes assumiu a prefeitura da cidade do Rio de Janeiro. Em seu
primeiro ano de mandato, o prefeito concentrou suas atuações na chamada Operação Choque de Ordem, um
conjunto de operações de combate à “desordem urbana”, ou seja, situações que geram as “condições
propiciadoras à prática de crimes (...) que banem as pessoas e os bons princípios das ruas, contribuindo para a
degeneração, desocupação desses logradouros e a redução das atividades econômicas.” A ação, coordenada
por uma nova secretaria criada para gerir o assunto, a Secretaria Especial de Ordem Pública (SEOP), é
realizada por guardas municipais, fiscais de controle urbano, policiais militares e civis, equipes da Companhia
Municipal de Limpeza Urbana (Comlurb), do Departamento de transportes Rodoviários (DETRO), das
Secretarias Municipais de Obras (SMO) e de Assistência Social (SMAS) e da Procuradoria Geral do
Município (PMG). O objetivo é “ordenar o espaço público, fazendo valer as leis e o código de postura
municipal (...) desenvolvendo ações de fiscalização, tais como combate ao estacionamento irregular, à
ocupação irregular do espaço público e à prática de pequenos delitos”, inibindo ambulantes informais,
flanelinhas, transporte pirata, construções irregulares, população de rua, publicidade não autorizada,
desrespeito no trânsito e desordem nas praias. (Fonte: Portal da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro -
http://www.rio.rj.gov.br/web/guest/exibeconteudo?article-id=87137 Acesso em 21 de abril de 2012).
77
Neste processo de desalojamento, a prefeitura do Rio marca as casas para remoção com tinta spray, o que
vem causando contestação por parte dos moradores. Existe uma ação judicial em trâmite, proposta pelo
Núcleo de Direitos Humanos juntamente ao Núcleo de Terras e Habitação da Defensoria Pública do Estado
do Rio de Janeiro, responsabilizando a prefeitura pelas “pixações” realizadas nas casas objeto das
intervenções urbanísticas, obrigando o poder público a interromper este procedimento e desfazer as
marcações das casas por toda a cidade. (Mendes et al, 2011)

233
São Diogo um grande número de imóveis abandonados, boa parte deles ocupados por
famílias sem-teto.
Vale esclarecer que em nenhum destes projetos encontra-se uma orientação clara
para a construção de habitação de interesse social através do aproveitamento dos vazios
urbanos existentes nas áreas de intervenção, composta majoritariamente por imóveis e
terrenos públicos abandonados há vários anos. Alguns dados divulgados na página do Porto
Maravilha mostram a expectativa de aumento de cerca de 10 mil moradias no local, no
entanto, nenhuma delas referentes à habitação de interesse social. Na proposta do Programa
Morar Carioca, estão previstas obras de infraestrutura e urbanização em comunidades já
estabelecidas, além de oferta de novas moradias, mas sem especificar que estas são voltadas
para famílias de 0 a 3 salários mínimos. Tais procedimentos contribuem ainda mais para o
questionamento sobre as bases sociais em que se apoiam as melhorias previstas para a
região central do Rio de Janeiro78.
É neste contexto, de intervenções em nome da “paz” e da “ordem”, no espaço e nas
formas de vida, que a ocupação Manuel Congo se insere. Se por um lado observa-se a
existência de estratégias de controle social, amparadas pelo discurso da segurança pública,
que regulamenta boa parte da população na cidade, reprimindo desde ambulantes e
moradores de rua a habitações tidas como ilegais, por outro, diversos movimentos
populares procuram se articular, ocupando prédios e terrenos públicos ociosos e abrindo um
novo universo de possibilidades para seus moradores. Vale observar que a pauta dos
movimentos sociais e as mobilizações urbanas não se reduzem a reivindicações específicas
(terra, moradia, saneamento, escola, etc.), mas incluem a necessidade de gerir, a partir de
outros valores, a cidade em todos os seus aspectos.

                                                                                                               
78
Aqui vale destacar que a instalação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) está vinculada, de modo
concomitante e complementar, às políticas de remoção de camadas populares de favelas e assentamentos
informais, à renovação urbana de áreas degradadas e aos empreendimentos urbanos voltados para a Copa do
Mundo de 2014 e para as Olimpíadas de 2016. Dada a necessidade de atender às demandas e exigências dos
comitês esportivos e dos patrocinadores, e aos anseios de um público vultoso de turistas advindos de vários
lugares do mundo, o governo do estado do Rio de Janeiro implementou, em pontos considerados estratégicos
da cidade, equipamentos de segurança pública que visam promover “a aproximação entre a população e a
polícia, aliada ao fortalecimento de políticas sociais nas comunidades. Ao recuperar territórios ocupados há
décadas por traficantes e, recentemente, por milicianos, as UPPs levam a paz às comunidades.” (Fonte: Página
da Secretaria estadual de Segurança: http://upprj.com/wp/?page_id=20. Acesso em 21/04/2012.)

234
Mesmo que o foco desta tese não tenha sido as políticas públicas de intervenção e
de segregação social, é mister o reconhecimento de que é sobre estas bases e não
necessariamente contra elas que as práticas cotidianas e insurgentes de vida buscam se
inscrever. Atentar para a maneira como a cidade é planejada e administrada através de
determinadas técnicas e ordenamentos governamentais pode nos oferecer algumas pistas
para pensarmos como as relações de compartilhamento e as diferentes maneiras de cuidar
da casa vão ganhando tamanha dimensão na luta pela moradia. A propósito, vale esclarecer
que estas (não tão) novas configurações societárias, que se fundamentam na cooperação e
coletivização, não se constituem a revelia dos aparatos burocráticos e governamentais, mas
através deles e de seus meandros. Ao mesmo tempo em que a ocupação Manuel Congo se
aproxima deste cenário, dele se distancia, uma vez que estamos lidando com um universo
que está conseguindo se manter há 4 anos no local, além de ter efetivado, em setembro de
2010, a assinatura de compra do imóvel destinando-o para fins de interesse social.
O pilar que estrutura este trabalho é a consideração de elementos do cotidiano de
uma ocupação urbana, as malhas e redes de cuidado, o compartilhamento e apropriação dos
espaços, os arranjos familiares e os projetos de re-significação de sujeitos a partir de duas
esferas que se entrecruzam constantemente: o território político e o território doméstico.
Estas duas categorias foram elaboradas especificamente para esta tese a partir de duas
noções que se mostraram recorrentes no cotidiano da ocupação: moradia e casa. Enquanto
o projeto político da ocupação, seguindo diretrizes gerais do MNLM, apontava a moradia
como o eixo norteador dos compromissos coletivos, do “espaço democrático” e da
“Reforma urbana”, a casa aparecia, pela percepção dos próprios moradores, como lócus
privilegiado de relacionalidades, cuidados e projetos familiares.
Aqui vale um questionamento: afinal, o que o foco no cotidiano e nas relações de
cuidado estão nos possibilitando? Será uma descrição pela descrição? Será que a narrativa
dos conflitos internos e das dificuldades de mobilização na luta refletem as “fragilidades”
do movimento, preocupação de que tanto me alertaram os coordenadores? De fato, falar do
cotidiano e das contradições que envolvem o morar coletivamente não implica em uma
narrativa anedótica muito menos em uma tentativa de enaltecer eventuais “rachaduras” na
luta. Mas, ao contrário, significa uma busca por tentar compreender o cotidiano, enquanto
operações espaciais e temporais, a partir de uma escala de reflexão eminentemente política.

235
Neste sentido, ter mencionado o panorama político em que se insere a Manuel
Congo não é apenas uma maneira de pintar o quadro, apresentar o cenário, mas atentar para
o fato de que é no cerne desta cena pública que o tecido cotidiano vai se constituindo não
como algo que está fora ou em oposição, mas como planos que se combinam e justapõem.
O cotidiano não é um reflexo congelado desta escala política mais ampla, mas através dele
é possível antever linguagens, falas e práticas que vão se projetando, inclusive
reconfigurando o próprio espaço urbano. Percorrendo narrativas e ações ordinárias por
vezes tidas como desimportantes e banais, consegui visualizar um universo cujo caráter
disruptivo merece ser apreciado.
É neste sentido que os termos território político e território doméstico devem ser
compreendidos. Estas noções foram usadas para dar conta de contextos que, longe de se
mostrarem antagônicos, estão o tempo todo dialogando e se tensionando, o que nos
possibilita perceber a complexidade que o morar em uma ocupação representa. Chamar
atenção para a moradia enquanto projeto político e para a casa como densidade moral e
afetiva não significa dizer que os espaços domésticos são lugares destituídos de força
política. Afirmar isso seria cair em contradição com todo o nosso esforço ao longo da tese.
Afinal, atentar para o doméstico foi uma maneira (talvez facilitada pela minha presença
decodificada enquanto “mãe”) que encontrei para demonstrar que a proposta de
convivência coletiva se constitui em uma ligação estreita com a experiência moral de
construção da casa. Os projetos políticos ganham densidade não só através de certa
teatralização governamental e nem se valem apenas de atores organicamente vinculados na
resistência militante, mas a política vivida – esta malha intricada de compromissos
familiares e engajamento coletivo – deve ser resgatada através das pessoas de carne e osso,
de suas táticas diárias de cuidar dos filhos, organizar a casa, fazer comida, lavar roupa,
trabalhar, estudar, ir para a reunião, “tirar portaria”, educar as crianças... Na Manuel Congo,
o território político é construído a partir do território doméstico e vice-versa, em uma
relação estreita, e por vezes tensa, entre coletividade e familiaridades.
Aqui é preciso destacar outro ponto que percorre a abordagem desta tese. A tensão
permanente entre político e doméstico não remete a um jogo entre público e privado ou
entre coletivo e indivíduo. O indivíduo foi uma categoria que em nenhum momento se fez
presente, salvo em apenas uma situação, quando cada morador deveria contribuir com trinta

236
reais mensais para a compra de mantimentos na confecção das refeições durante o período
da cozinha coletiva. A exceção desta situação, o sujeito da ocupação era sempre a
“família”. Esta aparecia como unidade de contagem para o número de moradores, como
parâmetro para alocação nos apartamentos, como critério de exclusão do cadastro ou
desalojamento por parte do movimento, como norte para a definição da moradia no
momento da entrega definitiva do prédio ou mesmo como percepção identitária entre os
moradores. Enfim, dado seu caráter processual, o que estava em jogo, no final das contas,
era um arranjo familiar, uma maneira muito específica, vinculada ao espaço da casa e às
relações de cuidado, de lidar com as normas e prescrições gerais. A dificuldade em se
ajustar às propostas coletivas não se refere diretamente a cada um dos moradores, mas ao
universo doméstico, a um espaço que também não deixa de ser coletivo, mas que está
submetido a outros valores e regências.
A tese que ora finda é resultado de um processo de pesquisa ao longo do qual
procurei conviver com algumas pessoas, cujas relações extrapolaram a proposta acadêmica.
O trabalho de campo e a redação do texto foram guiados pelo objetivo de perceber como
práticas cotidianas se ajustam ou se apartam de determinadas prerrogativas políticas. A
tentativa de acompanhar alguns momentos da vida ordinária de uma ocupação urbana
implica em percebê-la como processo dinâmico cuja cartografia se processa em uma
complexidade de gestão, gestão dos espaços, das pessoas, dos sujeitos, da casa. Fora toda
as pretensões que cercam uma tese, é preciso reconhecer suas limitações. O que mais nos
chama atenção nestas lacunas talvez seja o fato de que, em alguns momentos, não tenha
conseguido reconstruir etnograficamente a densidade do trabalho de campo. No entanto,
não nos interessa aqui encontrar motivos inteligíveis, muito menos procurar um abrigo
“seguro” em outras etnografias, mas reconhecer que esta ausência não exclui a necessidade
de afirmar a importância de alguns temas que, embora não tenham se transformado em
dados analíticos, apareceram como questões cuja importância merece ser problematizada.
Neste aspecto, me refiro em especial à discussão sobre juventude. Conforme grifado
em outros momentos, não foi possível desenvolver pesquisa diretamente com os “jovens”
da ocupação. Em outras situações, um registro pelo olhar das próprias crianças acabou
tornando-se secundário dada a relação mais estreita que estabeleci com seus
“responsáveis”, mães, pais, avós, tias, professores, vizinhos... Não obstante, as percepções,

237
disputas e expectativas em torno destes sujeitos nos oferecem algumas pistas para perceber
em que sentido eles são construídos como “problema” a ser superado e de que maneira
sugerem certo protagonismo a ser valorizado.
De maneira semelhante, as “mulheres” também são chamadas a comparecer nesta
posição privilegiada de engajamento social. Talvez pela sua condição de vulnerabilidade,
como afirmou certa vez um dos coordenadores do movimento, faz-se mister sua
mobilização, a fim de que isto propicie sua emancipação e a busca pela igualdade,
conforme previsto na Carta de Princípios. Outro compromisso assumido pelo documento e
vislumbrado pelos coordenadores no MNLM diz respeito à necessidade de constituição dos
Coletivos de Juventude e de Mulheres.
Conforme discutido no capítulo três, “crianças”, “jovens” e “mulheres” aparecem
como sujeitos políticos estratégicos para sedimentar a luta. Em relação aos primeiros, a
“escolinha” aparece como o espaço institucionalmente construído para dar cabo a um
projeto de formação e educação, exercendo um papel fundamental não só no reforço escolar
e socialização entre as crianças através de atividades de lazer, mas como um espaço em que
“a criança tenha consciência crítica”, conforme fez questão de frisar uma de suas
idealizadoras. Se as crianças parecem estar relativamente restituídas, mesmo que
“escapem” por rotas de fuga como o “corredor” e as casas dos vizinhos, o mesmo não se
pode dizer da juventude. Apesar das tentativas insistentes de recrutamento dos jovens a fim
de que participem e se engajem nos processos coletivos, estes geralmente eram vistos como
“desinteressados”, “complicados” e “fracos”, o que dificultava sobremaneira as atividades
do Coletivo de Juventude.
O ponto curioso é que, embora o Coletivo de Juventude tenha se organizado, mesmo
com certa dificuldade, o mesmo não ocorreu com o Coletivo de Mulheres. Por que será que
as mulheres não se organizaram institucionalmente em nenhum momento? Talvez aqui
resida um ponto para pensarmos as tensões entre território doméstico e território político.
A princípio, tanto jovens quanto mulheres aparecem como eixos estratégicos nos critérios
políticos do movimento, entretanto, na cartografia moral da ocupação, as mulheres já estão
organizadas. São elas que mobilizam as redes de cuidado, que administram a casa, que
enfrentam as dificuldades do dia a dia. Enquanto o projeto de formação da juventude parece
ecoar uma certa “forma” dos movimentos, sustentada pela necessidade de formação política

238
e pelo ideal coletivo, a presença feminina, principalmente através da figura materna,
demonstra que este mesmo ideal só faz sentido quando remetido ao universo doméstico.
Neste sentido, dada à sua condição de imprecisão identitária, o “jovem” aparece,
nos discursos dos moradores e dos coordenadores, sempre atrelado a uma preocupação. É
preciso “organizar a juventude”, é preciso “produzi-la politicamente”, é necessário
“priorizar sua formação e educação”, são algumas falas que norteiam o imaginário dos
ocupantes. Talvez pelo fato de não estarem fixos nem no ambiente doméstico nem no
projeto político, existem tantas aspirações e expectativas depositadas nos jovens. Por outro
lado, como as mulheres parecem se apropriar organicamente do território doméstico em
nenhum momento a não constituição do Coletivo de Mulheres se apresentou como um
problema a ser superado. Muito pelo contrário, as próprias falas de alguns moradores
deixavam claro que é a partir destes compromissos miúdos e dos afazeres cotidianos que
elas encontram força e motivos para se engajar na luta.
Como sustenta De Certeau (1998), são estas operações multiformes e fragmentárias,
relativas a ocasiões e a detalhes muito particulares que os sujeitos usam as regras e
esboçam outras possibilidades. Afinal, são estas práticas que “colocam em jogo uma ratio
‘popular’, uma maneira de pensar investida numa maneira de agir, uma arte de combinar
indissociável de uma arte de utilizar” (De Certeau, 1998: 42).
A partir das questões que foram surgindo no campo e de categorias como casa e
moradia, eu procurei ir costurando algumas noções e construindo um universo político
centrado em elementos do cotidiano. Embora (e infelizmente) alguns temas não tenham
aparecido etnograficamente, eles acabaram de alguma maneira me guiando aos problemas
teóricos que aparecem na redação final da tese. Confesso que muitas discussões poderiam
ter sido mais desenvolvidas e outras tantas melhor articuladas. No entanto, espero que tenha
alcançado minimamente meu objetivo. O importante aqui, mais do que descrever
“direitinho” as coisas, é mostrar como o objeto foi sendo construído, como as questões
foram sendo definidas, como formulei as perguntas que me orientaram nessa experiência
coletiva do conhecimento. Nos parâmetros de Telles (2010) em que sentido fui capaz de
deslocar o campo do já-dito e dos fatos incontestáveis, demonstrando como a ordem das
coisas se configura num mosaico cotidiano de redes e relações. Afinal, como sugere a
autora, é nisso que está em jogo a tarefa descritiva, é nisso que reside a leitura crítica, não

239
mais na retórica da denúncia, mas num exercício criativo de traçar, nas franjas da
hierarquia, um novo ordenamento que vem sendo urdido nas dobras do mundo atual.
Por fim, uma última ressalva se faz pertinente para que possamos finalizar (ainda
que parcialmente) nossa empreitada. Minha proposta analítica não se esgota neste trabalho
e muito menos em uma única ocupação urbana, mas espero que as questões aqui discutidas,
a partir da realidade de alguns moradores da Manuel Congo, possam nos lançar para além
do círculo fechado do presente imediato, abrindo perspectivas para outros estudos e práticas
de pesquisa.

240
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250
ANEXOS

ANEXO I - CARTA DE PRINCÍPIOS

MOVIMENTO NACIONAL DE LUTA PELA MORADIA – MNLM/RJ

Porque a necessidade, o direito, o amor pelo outro e a disposição de luta nos une;
Porque sabemos que não podemos esperar que os governos respeitem a nossa dignidade, se
nós antes não nos respeitarmos;
Porque descobrimos que nossa força está na nossa capacidade de união e ajuda mútua;
Porque sabemos que o que nos falta pra viver com dignidade, sobra para aqueles que nos
exploram e oprimem a vida inteira;
Porque sabemos que a justiça que precisamos e a igualdade que sonhamos tem que ser obra
das nossas mãos;
Porque sabemos que o mundo (a natureza) nos foi dado, tem que ser partilhado, preservado
e defendido para nós e para as nossas futuras gerações;
Porque sabemos que o lucro, o individualismo, a competição, a ganância e a exploração são
nossos inimigos. E responsáveis pela miséria e destruição da vida e, por isto, nós nos
comprometemos:
Primeiro: Construir o Movimento Nacional de Luta pela Moradia como um espaço
democrático de luta dos milhares empobrecidos do nosso Estado e do nosso País em busca
de moradia digna e da Reforma Urbana de forma a derrotar o capitalismo e todas as suas
formas de opressão sobre @s trabalhador@s.
Segundo: Combater dentro, entre nós e na sociedade, vícios que aprendemos com o
capitalismo e com a opressão, especialmente:
a) O preconceito e o desrespeito às diferenças;
b) O machismo;
c) O egoísmo/individualismo;
d) O acúmulo do que não é necessário para minha vida e de minha família;
e) A especulação imobiliária e a propriedade privada da terra;
f) A tendência que sinto às vezes de esperar que o outro lute sozinho para eu não me expor;
g) Todas as formas de violência, entre nós e contra nós;

251
h) O sentimento de vingança contra o outro e contra o mundo, entendendo que a luta coletiva
pela justiça e pela igualdade é missão dos que amam a vida;
i) A submissão do nosso movimento a partidos e governos;
j) O Capitalismo e todas as formas de exploração do homem pelo homem;
k) As divisões e intrigas que nos enfraquecem e fortalecem nossos inimigos, sabendo que o
Movimento somos tod@s nós, e o debate fraterno e franco tem que ser feito nos nossos
espaços democráticos;
l) O sentimento de superioridade ou inferioridade, respeitando os limites, o jeito e o tempo do
outro sem comprometer a luta de todos.
Terceiro: participar dos espaços de organização e fortalecimento do nosso movimento e da
nossa luta.
Quarto: Organizar a juventude da moradia em um projeto de alegria, luta, esperança,
priorizando a formação e a cultura.
Quinto: organizar as mulheres da e na moradia de forma a restaurar sua autoestima e
propiciar a emancipação feminina na busca de igualdade, potencializando sua capacidade
de luta em defesa da mãe terra e seus filh@s.
Sexto: transformar os espaços conquistados em exemplos vivos da cidade que queremos:
com corresponsabilidade, gestão democrática, participativa, formação e educação
permanente, fomento cultural, alternativas de geração de renda, espaços de uso coletivo,
prioridade para infância e adolescência, biblioteca, etc.
Sétimo: construir uma rede de solidariedade e compromisso na luta com entidades,
comunidades, ocupações e pessoas que tenham os mesmos objetivos.
Oitavo: participar ativamente na luta Anti-Capitalista contra a criminalização da pobreza e
o empobrecimento da classe trabalhadora na perspectiva da emancipação da nossa Classe,
em conjunto com as Organizações da Classe Trabalhadora que não se entregaram ao
Capitalismo, à Burocracia e à Corrupção.
Nono: lutar pela garantia com absoluta prioridade de acesso à moradia digna das famílias
com baixa renda familiar de zero a três salários mínimos;
Décimo: lutar até a vitória pela transformação concreta da moradia e do acesso à terra na
cidade e no campo em direito, derrotando na sociedade e nos governos a visão e a prática
de mercadoria e de compra e venda, sabendo que esta visão foi constituída para deixar a

252
maioria do povo excluída e que nossa missão é construir um novo mundo onde tod@s
estarão incluídos pela dignidade da vida e não pela capacidade de pagar;
Onze: estreitar os laços de solidariedade e comprometimento na luta, com noss@s irm@s
campones@s em luta pela Reforma Agrária e contra o latifúndio na certeza que as
Reformas Urbana e Agrária acontecerão como fruto da nossa luta;
Doze: buscar o cumprimento dos preceitos constitucionais no que diz respeito à Função
Social da Cidade e da Propriedade e a destinação dos imóveis não utilizados, sub utilizados
e mal utilizados para habitação e Interesse Social;
EM CUMPRIMENTO À NOSSA CARTA DE PRINCÍPIOS, ESTA ASSEMBLÉIA
DETERMINA:
Artigo 1º - A ausência do representante do núcleo familiar em 2 (duas) Assembleias
seguidas ou de 3 (três) alternadas no período de 6 (seis) meses, implicará na exclusão do
cadastro e o consequente desalojamento nos casos de famílias já ocupantes.
Artigo 2º - Os espaços serão ocupados de forma coletiva e as acomodações se darão de
forma provisória até a conquista definitiva.
Artigo 3º - a definição da moradia de cada família no momento da entrega definitiva de fará
por sorteio.
Parágrafo único – estarão isentos de submeter-se a sorteios os idosos acima de 60 anos e
portadores de deficiências ou doenças cardiovasculares graves, nos casos de ocupação
vertical em espaços que não disponham de elevadores, aos quais será garantido por esta
Assembleia as unidades habitacionais térreas e/ou pavimentos inferiores.
Artigo 4º - As famílias cadastradas obedecerão a critérios de prioridade como se segue:
a) Participação
b) Renda Familiar
c) Número de pessoas por núcleo familiar

Artigo 5º - Em nenhuma hipótese será contemplada famílias que possuam outro imóvel
e/ou tenha declarado informações de renda inverídicas no cadastramento e afirmadas em
Assembleias.

253
Artigo 6º - O Direito Coletivo a convivência e desenvolvimento saudável da nova
comunidade se sobrepõem aos desvios, interesses e caprichos individuais o que significa
dizer entre outras coisas a serem definidas nas próximas Assembleias:
a) O uso e a comercialização de drogas ilícitas ficam proibidos dentro da ocupação;
b) Da mesma forma fica proibida a comercialização de bebida alcoólica e a
participação de ocupantes visivelmente embriagados nos espaços democráticos de decisão e
comando coletivo;
c) Fica proibido o uso de qualquer tipo de violência física, em especial contra crianças,
adolescentes, jovens, mulheres, idosos e portadores de deficiência;
Artigo 7º - As assembleias serão diárias nos primeiros 3 meses da ocupação, passando a
semanais após este período, sendo obrigatória a participação de, no mínimo, um
representante de cada núcleo familiar;
Artigo 8º - Fica proibida a interrupção do ano escolar das crianças, adolescentes e jovens
em virtude de mudança do endereço familiar, assim como garantido o esforço coletivo de
condução a escola dos que estejam fora da sala de aula;
Artigo 9º - As refeições serão feitas coletivamente pelo período mínimo de um mês,
devendo para isto ser composta uma Comissão de Provimento e segurança alimentar
composta de dois coordenadores e três membros, devendo os coordenadores promover
diretamente a substituição dos membros a cada semana, submetendo ao Comitê
Democrático de Gestão eventuais problemas.
Artigo 10º - Fica constituída a Comissão de Infraestrutura composta por três membros
eleitos em Assembleia, cuja principal tarefa é providenciar e zelar pelo aspecto físico e
condições de habitabilidade da ocupação.
Artigo 11º - Compete a Brigada de Apoio composta inicialmente por 5 membros indicados
por esta Assembleia, dentre outras tarefas zelar pelo cumprimento das regras internas
deliberadas nesta e nas próximas Assembleias e auxiliar o Comitê Democrático de Gestão
no que couber;
Artigo 12º - Ficam constituídos os Coletivos de Juventude e Cultura e Coletivo de
Mulheres conforme orientação nacional do MNLM;
Artigo 13º - Fica constituído o Comitê Democrático de Gestão, composto como se segue:
a) um representante da Comissão de Provimento

254
b) um representante da Comissão de Infraestrutura
c) um representante da Brigada de Apoio
d) um representante do Coletivo de Juventude
e) um representante do Coletivo de Mulheres
f) cinco representantes eleitos em Assembleia
Artigo 14º - Compete ao CODEGE coordenar a ocupação de acordo com as diretrizes e
regras aqui expressas, as deliberações de Assembleia e Diretrizes das Instâncias do
Movimento Nacional de Luta pela Moradia;
Artigo 15º - O CODEGE elegerá 2 membros efetivos e dois suplentes para compor o
Coletivo Municipal do MNLM;
Artigo 16º - São integrantes do MNLM aptos a votarem e serem votados tod@s que
assumirem o MNLM como ferramenta de luta pela Reforma Urbana e superação do
capitalismo;
Artigo 17º - Representantes dos Coletivos de Juventude e Mulheres integrarão os Coletivos
respectivos do MNLM nos âmbitos Municipal, Estadual e Nacional;
Artigo 18º - Nossa organização será permanentemente avaliada em face dos nossos
objetivos e modificadas nos espaços soberanos de deliberações coletiva qual seja:
• COMITÊ DE GESTAO LOCAL
• ASSEMBLEIA DA OCUPAÇÃO
• COORDENAÇÃO MUNICIPAL
• ENCONTROS MUNICIPAIS
• COORDENAÇÃO ESTADUAL
• ENCONTROS ESTADUAIS
• COORDENAÇÃO NACIONAL
• ENCONTROS NACIONAIS
NA LUTA, COM GARRA A CASA SAI NA MARRA!!!!!!
OCUPAR, RESISTIR PRA MORAR!!!!!
NINGUÉM DEU, NINGUÉM DÁ, É NA LUTA QUE EU CONQUISTO O DIREITO DE
MORAR!!!
A RAPOSA TEM TOCA E A AVE TEM NINHO, PRA TER MINHA CASA A LUTA É
O CAMINHO!!!!!!!

255
A CIDADE QUE EU QUERO EU NÃO VOU ESPERAR, É COM REFORMA URBANA
QUE EU VOU CONQUISTAR!!!!!
ASSINATURAS
OCUPAÇÃO MANUEL CONGO:
COORDENAÇÃO NACIONAL:
COORDENAÇÃO ESTADUAL:

256
ANEXO II

Croqui do Pavimento Térreo – Ocupação Manuel Congo

257
ANEXO III

Croqui do Segundo Andar – Ocupação Manuel Congo

258
ANEXO IV

Croqui do Terceiro Andar (Pavimento tipo) – Ocupação Manuel Congo

259
ANEXO V

Corte esquemático do prédio –


Projeto arquitetônico de reforma da Ocupação Manuel Congo

260

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