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IV Colóquio Internacional de Doutorandos/as do CES, 6-7 dezembro 2013

Cabo dos Trabalhos

“Movimento é movimento, governo é governo”?: a luta por moradia e a política


habitacional em São Paulo

Stella Zagatto Paterniani1

Resumo

Este artigo refere-se a um projeto de pesquisa em andamento que visa etnografar a extensão e
os deslocamentos da relação entre movimentos de moradia e administração municipal na
cidade de São Paulo, Brasil, considerando o envolvimento de militantes do movimento no
processo eleitoral da última gestão municipal na cidade, durante o ano de 2012. Essa gestão,
do Partido dos Trabalhadores (PT) sucede gestões do Partido da Social Democracia Brasileira
(PSDB) e dos Democratas (DEM) e enfatizou, em sua propaganda eleitoral, a não-continuidade
em relação a essas gestões. No que diz respeito à extensão e deslocamentos dessa relação,
neste artigo circunscrevo a luta a histórias narradas por militantes da ocupação Mauá e teço
algumas considerações sobre tratamentos dados por diferentes gestões municipais da cidade a
casos de política habitacional. Minha hipótese é que movimento e governo são coletividades ao
mesmo tempo reais e ficcionais – que, justamente por isso, operam politicamente.

Palavras-chave: coletividades, movimentos sociais, centro de São Paulo, ocupações, etnografia


da política.

Abstract

This paper refers to a research in progress which aims to make an ethnography of the extension
and displacements of the relation between housing movements and public administration in
the city of Sao Paulo, Brazil, considering the involvement of militants from the housing
movement in the most recent process to elect the major of the city, in 2012. The elected
administration, from the Labour Party (PT), comes after administrations from two other
Brazilian parties and emphasized, during its electoral campaign, the non-continuity in what
concerns to those two other administrations. Concerning the extension and displacements of
the relation, in this article I approach the struggle [luta] from stories that people who live in
Mauá squatting tell. I also write about the ways different administrations have dealt with
housing policy. My hipothesis is that movement [movimento] and government [governo] are
collectivities both real and fictional – and being so, act politically.

Keywords: collectivities, social movements, São Paulo – center of the city, squattings,
ethnography of politics.

1 Mestra em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas (Brasil), onde defendeu
a dissertação "Política, fabulação e a ocupação Mauá: etnografia de uma experiência", sob orientação da
Profª Drª Suely Kofes. É ingressante no doutorado em Antropologia Social na Universidade de Brasília.
Interessa-se pelos temas: Política, narrativas, pós-colonialismos, teorias da tradução. Contato:
stella.paterniani@gmail.com.

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Cabo dos Trabalhos

Este artigo refere-se a um projeto de pesquisa em andamento que visa etnografar a


extensão e os deslocamentos da relação entre os movimentos de moradia e a
administração municipal na cidade de São Paulo, Brasil, considerando o envolvimento
de militantes do movimento de moradia no processo eleitoral da última gestão
municipal na cidade e os compromissos políticos feitos. Insisto na extensão e nos
deslocamentos da relação porque a fronteira entre “movimento social” e “governo”,
em termos nativos, não é clara, embora seja a todo o tempo destacada pelos próprios
militantes. A frase “Movimento é movimento, governo é governo” foi ouvida por mim
em distintas situações durante minha pesquisa de campo de mestrado (Paterniani,
2013).
O referencial do movimento de moradia para este artigo é a ocupação Mauá, na
região da Luz, centro da cidade, e os três movimentos que a compõem. A gestão
municipal atual é a do prefeito Fernando Haddad, do Partido dos Trabalhadores (PT),
eleito em outubro de 2012. Importante destacar que a) essa gestão sucede gestões do
Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB, 2005-2006) e dos Democratas (DEM,
2007-2012), tendo enfatizado, em sua propaganda eleitoral, a não-continuidade em
relação a essas gestões e b) há outras duas gestões petistas da Prefeitura municipal da
cidade que são referência para o movimento de moradia: as gestões de Luiza Erundina
(1989-1992) e de Marta Suplicy (2001-2004). Para a abordagem que proponho, isto é,
etnografia de deslocamentos de uma relação, importam, principalmente, as histórias e
memórias que os militantes e moradores da Mauá narram e que dizem respeito às
diferentes gestões municipais, bem como e as práticas cotidianas e formativas na Mauá
e dos movimentos que a compõem. Minha hipótese é que movimento, Mauá e
governo são coletividades ao mesmo tempo reais e ficcionais – que, justamente por
isso, operam politicamente. Neste artigo, no entanto, limitarei meu olhar a histórias e
memórias narradas por militantes e moradores da ocupação Mauá e tecerei algumas
considerações sobre diferentes tratamentos dados por diferentes gestões municipais
da cidade a casos envolvendo escolhas referentes à política habitacional.
Em minha pesquisa de mestrado (Paterniani, 2013),2 direcionei meu olhar para a

2 Este artigo apresenta desdobramentos de minha pesquisa de mestrado (Paterniani, 2013), que
serão aprofundados, ainda, ao longo do doutorado. Para apresentar tais desdobramentos, no entanto,
foi necessário recorrer a trechos de minha dissertação de mestrado e apresentar, de maneira resumida,
alguns pontos lá presentes. Alguns dos argumentos, evidentemente, estão mais desenvolvidos na

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Mauá, uma ocupação de imóvel ocioso no centro da cidade de São Paulo, que existe
desde março de 20073 e onde moram, atualmente, 237 famílias, com cerca de 180
crianças: aproximadamente 1300 pessoas. Antes de ser ocupado, naquele prédio
funcionava um hotel. Por isso, a estrutura reconhecível de um hotel de meados do
século XX: recepção, escadas de mármore, um pátio interno descoberto e corredores
muito estreitos e escuros que dão acesso a quartos de cerca de 10m² – em cada quarto
mora uma família.
Olhar para a Mauá significava também olhar para os três movimentos que a
compõem – Movimento de Moradia da Região Centro (MMRC), Movimento Sem-Teto
do Centro (MSTC) e Associação de Sem-Teto da Cidade de São Paulo (ASTC-SP) –,
entendendo-os (tanto os movimentos como a própria Mauá) como coletividades não-
estanques, múltiplas e plurais. Os movimentos e a Mauá compõem o movimento de
moradia, um campo que defino como composto por pessoas reunidas que lutam pelo
direito à moradia digna para pessoas de baixa renda, sendo que baixa renda
caracteriza famílias cuja renda mensal é entre zero e três salários mínimos. Ocupações,
manifestações, participação em conselhos e espaços de negociação com o Estado,
eleição de representantes políticos institucionais (como vereadores), investimentos em
ter boas relações com pessoas do governo, abaixo-assinados: todos são instrumentos
de luta do movimento. Esses instrumentos de luta são ações políticas que proponho
serem compostas por três elementos, nelas presentes em maior ou menor grau:
resistência, reivindicação e prefiguração. Voltarei a isso nas considerações finais.
Percebi etnograficamente que, nesse campo, se as coletividades são contingentes e
situacionais (e, por assim dizer, fluidas), por um lado, há, ao mesmo tempo e por outro
lado, memórias e histórias de uma coletividade mais coesa constantemente reforçadas,
adensadas e postas à espreita para enredar novos militantes e fortalecer essa
coletividade-movimento enquanto tal, diferenciado de qualquer possível fusão ou
confusão com outros atores. Essas coletividades não são homogêneas nem estanques;
pelo contrário: são coletividades que a todo momento lidam com processos de
incorporação e diferenciação e, ainda, contemplam a diferença. Situacionalmente, a

dissertação.
3 Filadelfo (2008) realizou uma etnografia em que conta o processo de ocupação da Mauá. Para
mais detalhes sobre a Mauá, ver Paterniani (2013). Ver também o dossiê com registros fotográficos de
Monteiro (2013).

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coletividade pode se afirmar como mais ou menos inteiriça. Na Mauá, os movimentos


vão se diferenciando internamente uns dos outros: cada movimento tem seu(s)
andar(es), suas reuniões de base, seus mecanismos de quantificar e qualificar a
participação das famílias,4 o vereador petista para quem faz campanha. Por outro lado,
os mesmos participantes do movimento afirmam-se moradores da Mauá e, com isso,
afirmam-na como inteiriça, coesa, perante antagonistas.5
É notável a relação do movimento de moradia com o Partido dos Trabalhadores. Ao
longo de 2012, ano de eleições municipais, Nelson, liderança do MMRC, lamentou, em
assembleia na Mauá, o fato de muitos sem-teto votarem em José Serra (PSDB), então
candidato a prefeito: “É uma desgraça pra nós, trabalhadores de baixa renda”. A seguir,
ao falar um pouco do candidato do PT, Fernando Haddad, arremata: “O PT é o partido
que ainda fala um pouco a nossa língua”. Mas isso não é garantia de nada; sua fala,
embora demonstre sua proximidade com o PT, é mesclada com a descrença na política,
quando, logo em seguida, diz:
Mas não podemos esperar nada dos políticos ou da política. O que vai vir pra nós é com luta,
muita luta. Nossa resistência, que tem que ser permanente. Não é dizer “Vamos eleger o Fernando
Haddad que teremos casa”, mas sim: “Vamos elegê-lo e cobrá-lo”. É mentira dizer que ele vai dar
casa. Só vai dar se tiver pressão popular. Tem outras reuniões que podem dizer isso, mas é mentira.
(Nelson, 2012, registro em caderno de campo).

4 “Quando alguém entra no movimento, aprende que o critério para a conquista da moradia é
sua participação; participação como família. Os programas governamentais, em sua maioria,
reconhecem o movimento enquanto mediador: quando há oferecimento de moradias, dispõe para que o
movimento faça a distribuição das vagas. Isso exige critérios para a distribuição interna do benefício,
como dizem. O critério fundamental é a participação: participar de reuniões, assembleias, mutirões de
limpeza e atividades comuns (quando moradores de ocupação), atos, ocupações. O instrumento para
quantificar a participação é um sistema de pontuações. Para cada atividade de que participa, a família
recebe um ponto. Quando sai uma demanda, as lideranças consultam um caderno onde consta a
pontuação das famílias; quanto maior a pontuação, isto é, a participação, está-se mais perto de ser
beneficiado.
O sistema de pontuações me parece o sistema de mediação encontrado pelos Movimentos para
ocupar esse lugar ao mesmo tempo reivindicado pelo movimento (porquanto a gestão das moradias é
responsabilidade do próprio movimento, autônomo perante o governo) e limitado pelo governo (uma
vez que o outorgado número de moradias é sempre dissonante das reivindicações do movimento); uma
mediação pra encontrar seu lugar na gestão da política pública. É um mecanismo amplamente aprovado
pela base do movimento por garantir transparência e imparcialidade no processo de seleção dos
beneficiários.” (Paterniani, 2013: 106)
5 Quando do pedido de reintegração de posse da Mauá, no início de 2012, o Batalhão da Polícia
Militar convocou as lideranças para uma reunião. Poucas semanas depois dessa reunião, uma das
lideranças da Mauá me disse que “lá fora [da Mauá] é tudo a mesma coisa”, “lá fora é comunidade
Mauá”; durante a reunião com o Batalhão, numa pausa para um cigarro, outra liderança me disse que “o
que está sendo discutido é o prédio Mauá”.

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Há uma questão candente para os moradores da Mauá e os movimentos que a


compõem: a luta para que as famílias de baixa renda tenham direito a morar
dignamente no centro da cidade. O prédio localiza-se na Luz, região central que, desde
os anos 1970, é alvo de projetos de revitalização e reforma de seus edifícios históricos
e culturais. Além disso, a região da Luz é uma região que, desde 2003, pelo Plano
Diretor Estratégico da cidade de São Paulo,6 é demarcada como ZEIS: Zona Especial de
Interesse Social, destinada à construção de moradia popular. Recentemente, as
representações da região da Luz foram fortemente ancoradas na dicotomia Nova
Luz/cracolândia. O Projeto Urbanístico Nova Luz7 previa a “requalificação urbana” de
um polígono na região (em cuja rua limítrofe localiza-se a ocupação Mauá), com
demolições de edifícios e implementações de empresas e prédios para serviços
públicos; e valorização do patrimônio histórico e cultural, com vias a intensificar o setor
de serviços e o capital imobiliário especulativo na região. O mesmo polígono recebeu,
há alguns anos, a alcunha de cracolândia, que tem sido alvo de violentas operações
que vinculam o governo municipal e estadual e a polícia militar do estado de São Paulo,
eliminando dali os usuários de crack.8 A dicotomia Nova Luz/cracolândia, contudo,
acaba sendo uma dicotomia que reflete um mesmo real: o real dos dominantes, para
usar os termos de Deleuze (1985), pois o diagnóstico da degradação (contido no termo
cracolândia) serve como justificativa para a revitalização (proposta pelo Nova Luz), e
tanto o diagnóstico como o Projeto representam interesses exteriores aos das pessoas
cujas vidas acontecem pela região.
A princípio prevista no Projeto Nova Luz, a demolição do prédio da Mauá foi evitada
e o prédio foi retirado da área de impacto do Projeto: aos olhos dos moradores da
Mauá, uma conquista, graças à participação no Conselho Gestor da ZEIS daquela área,

6 O Plano Diretor de São Paulo existe desde 1985; em 2002, contudo, foi reformulado (e passou a
se chamar Plano Diretor Estratégico) e passou a contemplar alguns instrumentos de política urbana para
moradores de baixa renda, como as ZEIS e os Planos Regionais das Subprefeituras.
7 É possível acessar o projeto no site da Prefeitura de São Paulo:
http://www.novaluzsp.com.br/projeto.asp, acesso em 06/11/2013. Atualmente, o Projeto está
engavetado – essa foi uma das primeiras ações que a administração Fernando Haddad tomou no que diz
respeito às políticas de habitação na cidade. Para uma interessantíssima discussão acerca das
compreensões da legalidade envolvendo o Projeto Nova Luz, ver Pacheco, 2012.
8 Taniele Rui (2012) realizou uma etnografia dos usuários de crack da região, cuja intenção é
oposta à das ações policiais: “(...) eu fiz diferente do que fez a polícia, o governador e o prefeito: não
tentei matar por asfixia e à força a “cracolândia”. Nessas páginas, ela e os outros lugares de uso [de
crack] que visitei respiram, vivem.” (Rui, 2012: 15).

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instituído para tentar sanar o conflito em relação à superposição de interesses – ZEIS e


Nova Luz. Conquista rapidamente obscurecida, contudo, por outro acontecimento:
poucos dias depois, a Mauá foi notificada de uma liminar de reintegração de posse,
solicitada pelo proprietário do prédio e concedida pelo juiz.
Diante dessa notícia, um ato de rua foi realizado, no dia dezesseis de abril de 2012,
véspera do dia em que se lembra o Massacre de Eldorado dos Carajás. Manifestantes
reuniram-se na Mauá, pela manhã, e caminharam até o Fórum João Mendes, na Praça
da Sé. No carro de som, ideias de vida e de morte apareciam com frequência: a
sentença de reintegração de posse equivale a uma sentença de morte; ser despejado é
uma sentença de morte. A caneta que assinou a reintegração de posse é uma “caneta
assassina”, usada pelo mesmo “juiz assassino” que, anos atrás, assinara a liminar de
reintegração de posse da Prestes Maia – outra ocupação, história na cidade de São
Paulo, que retomarei alguns parágrafos adiante. Apareciam, também, avaliações e
lembranças da relação com o poder público no passado recente da história política da
cidade de São Paulo – boas referências às gestões de Luiza Erundina (PT, 1989-1992) e
de Marta Suplicy (PT, 2001-2004) e condenação das gestões de José Serra (PSDB, 2005-
2006) e Gilberto Kassab (atualmente do Partido Social Democrático mas, à época, dos
Democratas, 2006-2012).
A gestão Erundina consolidou o mutirão autogestionário como instrumento de
política pública. Teve como tônica valorizar a relação com os movimentos sociais,
reconhecendo-o como um ator distinto do governo, respeitando e incentivando sua
autonomia e participação na política pública (Cavalcanti, 2006). Mas se a participação
popular foi marca da gestão, ela não se fez isenta de conflito, pelo contrário: era
importante demarcar as diferenças entre “ser do governo” e “ser do movimento”, o
que rendeu, muitas vezes, ocupações do gabinete da Secretaria Municipal de Habitação
– sem gerar retaliação nem interromper o relacionamento (Cavalcanti, 2006: 69).
A gestão Marta Suplicy, por sua vez, evocou a gestão Luiza Erundina, especialmente
no que diz respeito à política pública de habitação. Além disso, sua eleição ocorreu
depois de oito anos de governos conservadores na prefeitura municipal (gestões de
Paulo Maluf (1993-1996) e Celso Pitta (1997-2000)).9 Nas portas de alguns

9 Por motivo de escopo, não tratarei dessas gestões neste artigo. As informações de que são
consideradas gestões conservadoras no que diz respeito à política habitacional por parte dos

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apartamentos da Mauá, entre adesivos com mensagens religiosas e o número da


Unidade Básica de Saúde escrito à mão há adesivos de propagandas políticas, muitos
com a foto de Marta Suplicy, os dizeres “A esperança vai vencer de novo” e a estrela
vermelha do PT com o número 13 dentro. Foi no primeiro ano de sua gestão que
começou a maior ocupação vertical do Brasil – por onde passaram cerca de 500
famílias: a ocupação Prestes Maia, supracitada. A Prestes Maia tornou-se referência por
seu tamanho, mas também por ter começado numa gestão da prefeitura e terminado
em outra – da gestão Marta, que evocava a gestão Luiza Erundina, especialmente pela
retomada da política habitacional de mutirão autogestionário e pela criação de
programas de habitação de interesse social, como o Locação Social e o Bolsa Aluguel; à
gestão Serra/Kassab, de uma coligação entre PSDB/DEM/PSD, que instaurou o
Programa Nova Luz, realizou violentas reintegrações de posse e tinha prioridades para
a política habitacional que não passavam pelo reconhecimento dos movimentos de
moradia como interlocutores.
Ocupada em 3 de novembro, Carlos Filadelfo Aquino (2008), em sua etnografia,
assim descreve a Prestes Maia:
O prédio é composto por dois blocos: um voltado para a Rua Brigadeiro Tobias, número 700, de 9
andares; e o outro de 22 andares na Avenida Prestes Maia, número 911. Originalmente funcionava
no prédio a Companhia de Tecidos, cuja entrada era pelo bloco menor, onde ainda consta o nome da
antiga empresa em sua fachada. (…) Além de suas amplas dimensões, capazes de comportar muitas
famílias que vinham de condições precárias de moradia, a localização do prédio correspondia a um
grande atrativo para muitos dos integrantes do movimento. A Prestes Maia é uma das avenidas de
maior circulação da cidade, com grande concentração de variados tipos de serviços e uma das mais
completas infraestruturas da cidade, com ampla oferta de transportes, saúde e educação. O prédio
localiza-se muito próximo à Estação da Luz, o que corresponde a fácil acesso ao metrô e ao trem
metropolitano. além disso, a região oferece linhas de ônibus para boa parte da cidade de São Paulo.
Mas um dos principais motivos foram mesmo as oportunidades de geração de renda que essa região
oferece, já que a maioria dos futuros moradores já trabalhava na região como ambulantes e
catadores de material reciclável. (Filadelfo, 2008: 86-87)

A reintegração de posse do Prestes Maia ocorreu em 15 de junho de 2007. As


famílias foram atendidas e o prédio continuou vazio (FLM, 2008). Heitor Frúgoli10

movimentos de moradia e que foram de partidos que historicamente não têm boas relações com
movimentos sociais bastam, por ora.
10 Em um depoimento no encontro de formação interna do MMRC, no dia 21 de janeiro de 2012,

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lembra que, após a violenta desocupação, as famílias tinham duas alternativas de


atendimento: morar na periferia, em conjunto habitacional, ou optar por receber a
Bolsa-Aluguel. Ele conta sobre a angústia que tomava conta das pessoas na hora dessa
tomada de decisão: havia uma fila que todos deviam enfrentar, imensa. Ao fim da fila,
devia-se declarar sua escolha a um representante da prefeitura. Frúgoli diz que a
dificuldade da decisão era tamanha que muitas pessoas enfrentavam a fila sem
conseguir resolver e, estando cara-a-cara com o representante da prefeitura, voltavam
ao final da fila para ter mais tempo para decidir.
Mas, embora tenha evocado a gestão Erundina, a gestão Marta foi uma gestão com
controvérsias. Na dissertação de Cavalcanti (2006)11 há uma emblemática avaliação de
uma liderança sobre a gestão Marta:
“Era um risco grande, né. De a gente acabar entrando em confronto muito forte com a Prefeitura.
E desgastar muito mais que... o programa dela já não falava muito de habitação. Então eu acho que
poderia ter pressionado mais, feito ocupação, só que desgastava muito mais. A gente tinha uma
avaliação que ela ganhando o segundo mandato aí seria muito mais fácil, e infelizmente nós
acabamos pecando talvez por não exigir mais da Marta, pressionando mais. E, por outro lado,
pecando porque não conseguimos reeleger ela, reeleição.” (Cavalcanti, 2006: 125)

Assim, a avaliação do entrevistado é de que os movimentos de moradia “pecaram”


duplamente. Primeiro, por não terem pressionado a então prefeita e seu programa que
dava pouca atenção à pauta da moradia e da política de habitação, priorizando políticas
de saúde e de educação; por outro lado, por não a terem reeleito, pois a ela seguiu-se
a administração José Serra/Gilberto Kassab na cidade de São Paulo, avaliada pelo
movimento de moradia como uma das gestões mais autoritárias da história recente da
cidade no que diz respeito à política de habitação.
É emblemático de algumas das diferenças entre a gestão Marta e a gestão
Serra/Kassab o processo que levou à demolição dos edifícios Mercúrio e São Vito,
também no centro da cidade. Construídos na década de 1950, de estética brutalista,
foram projetados numa época em que se estava em voga o uso misto das edificações.
Assim, em ambos os edifícios, o térreo e a sobreloja tinham funções comerciais, e os
mais de vinte andares de cada um, apartamentos residenciais. Nabil Bonduki escreve

no Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, em São Paulo.


11 A dissertação de Cavalcanti (2006) contém um rico material sobre a relação entre a União dos
Movimentos de Moradia (UMM) e a gestão Marta Suplicy.

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sobre os edifícios:
Embora fizessem parte da mesma estrutura construtiva, o São Vito e o Mercúrio formaram dois
condomínios diferentes, sendo o primeiro dividido em 603 quitinetes e o segundo em 135
apartamentos de um quarto. Tratava-se de uma alternativa habitacional de baixo custo na área
central da cidade. Embora pequenas, estas unidades serviam para quem buscava morar perto do
trabalho, uma opção de moradia metropolitana que é necessária numa cidade como São Paulo.
(Bonduki, 2010)

O arquiteto continua:
Mal administrado por anos, o São Vito tornou-se símbolo da degradação da área central,
ingressando num conhecido processo de deterioração. Nada que fosse irreversível, mas era
necessária uma intervenção do poder público, que ocorreu na administração da prefeita Marta
Suplicy. (Bonduki, 2010)

Assim, por problemas de administração que levaram à deterioração do prédio, a


então prefeita Marta Suplicy interviu. Seguindo as diretrizes do Plano Diretor
Estratégico de São Paulo, que preza pela recuperação das áreas centrais com moradia
para famílias de baixa renda, a prefeita determinou, em 2003, a desocupação do prédio
para sua reforma e transformação em habitação de interesse social. O São Vito e o
Mercúrio estavam em áreas de ZEIS e, juntos, somavam mais de 700 apartamentos.
Mas a administração municipal mudou, e José Serra (PSDB) assumiu o lugar de
Marta Suplicy (PT). Em 2005, Serra paralisou o Programa que incluía a reforma do São
Vito e, em 2006, já com o vice-prefeito tendo assumido a prefeitura em razão da
candidatura de Serra ao governo do Estado de São Paulo, a gestão de Gilberto Kassab
(2006-2012) paralisou as obras do São Vito, com as famílias que ali moravam já tendo
sido – a princípio, provisoriamente – realocadas para locais distantes do centro da
cidade. A alegação era de que “a obra geraria unidades habitacionais de R$ 80 mil
reais, custo que seria superior ao que a prefeitura considerava o “teto” de uma
habitação de interesse social” (Bonduki, 2010). O arquiteto continua, evocando, dentre
outros, o argumento do direito à moradia digna, isto é, direito a morar num lugar em
que se possa usufruir de serviços públicos de infraestrutura e ver outros direitos sociais
sendo realizados:
Pouco importava para os competentes administradores do setor habitacional da prefeitura se a
moradia fica na Cidade Tiradentes, gerando um elevado custo de mobilidade para moradores e de
subsídio para a prefeitura, ou no centro, junto ao emprego. Desconsiderou-se que o edifício tinha um

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excelente aproveitamento do solo, alojando centenas de famílias em um pequeno terreno. Não se


preocupou em verificar o interesse patrimonial num edifício que faz parte de uma geração de
empreendimentos que marcaram a metropolização da cidade. Não se calculou o passivo ambiental
que a demolição iria gerar. (Bonduki, 2010)

Sob uma argumentação pouco precisa, os administradores públicos decidiram


demolir não só o São Vito, mas também o Mercúrio, que estava sob administração
razoável, e com moradores – que foram despejados de seus apartamentos, muitos
recém-reformados. A Defensoria Pública entrou com ação que conseguiu uma ordem
de suspensão da demolição, posteriormente contestada pela Prefeitura. A demolição
fez parte do projeto de revitalização do Parque Dom Pedro II, começou em setembro
de 2010 e terminou em maio de 2011.
Por fim, a gestão a que finalmente chegamos, e sobre a qual pretendo debruçar-me
mais detida e continuamente nos próximos anos de pesquisa, e à qual me referia no
início deste texto é a gestão de Fernando Haddad (PT, 2013-atual). Os meses de julho a
outubro envolveram os moradores da Mauá e militantes dos movimentos de moradia
em campanhas eleitorais para eleger o petista. Na noite do mês de outubro em que foi
contabilizada sua vitória nas urnas, os militantes da Mauá comemoravam, enrolados
em bandeiras do Partido dos Trabalhadores. Menos de um mês depois das eleições, a
Mauá amanheceu com sua fachada pintada de branco e vermelho.
Uma das primeiras medidas de Haddad foi engavetar o Projeto Nova Luz (Folha de
São Paulo, 24 de janeiro de 2013). Alternativamente, ele propôs trabalhar em conjunto
com o governo federal, com recursos do programa Minha Casa, Minha Vida e em
parcerias público-privadas (PPPs). Também foi arquivado o Plano Diretor da gestão
Kassab, e convocadas as primeiras reuniões e audiências públicas para revê-lo e propor
alterações nas diretrizes de desenvolvimento da política pública para o município.
Pouco mais de um mês depois, o movimento de moradia organizou um grande ato de
luta por moradia contra as PPPs e para exigir que os acordos com o governo fossem
cumpridos. Na leitura do movimento, as PPPs não contemplam os interesses da
população de baixa renda e, por isso, reivindicam a construção de 25 mil moradias por
modelo de autogestão, na qual há participação popular nas decisões, e não via PPP.
O que surpreendeu a todos foi a participação não anunciada do prefeito no ato: ele
subiu no carro de som, pegou o microfone e garantiu amplo diálogo com os

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movimentos sociais e o movimento de moradia no encaminhamento da política pública


de habitação. Assegurou que ao menos metade dos programas destinados ao centro
será para Habitação de Interesse Social, ressaltando que não destinará ao centro
políticas públicas somente à população de uma faixa de renda para não homogeneizar
a região (Rede Brasil Atual, 17 de abril de 2013). Finalmente, em 24 de julho de 2013,
Fernando Haddad assinou o Decreto de Interesse Social de alguns prédios do centro – o
primeiro passo para a desapropriação desses imóveis para reformá-los e destiná-los a
Habitação de Interesse Social. O prédio da Mauá foi um desses imóveis (Rede Brasil
Atual, 24 de julho de 2013). À primeira vista uma conquista para a Mauá, o decreto, no
entanto, deixou os movimentos ressabiados: não foram consultados, não sabem como
será o processo, são muitos prédios sem destinação clara, não sabem como se dará o
processo da reforma e quais serão as famílias contempladas com a HIS ao final do
processo. Resta acompanhá-lo.

Considerações finais
Entre os movimentos sociais – incluídos aí os movimentos de moradia do campo da
luta por moradia digna e reforma urbana –, depois de um primeiro momento
entusiástico no concernente à participação institucional, a frustração com a pouca
efetividade da participação (em termos de impacto na política pública habitacional)
tem gerado um grande debate (e grandes divergências): continuar participando ou
deixar de participar desses espaços? A resposta, geralmente, tem sido: continuar
participando, de corpo presente, para fiscalizar, acompanhar e controlar, mesmo
sabendo que a influência do movimento nos processos deliberativos é mínima. Estar lá,
de corpo presente, parece já ser uma forma de participação.
Filadelfo (2008) lembra como, por vezes, as polarizações dicotômicas entre os
movimentos de moradia e o poder público levam a interações conflituosas; ele
recupera a noção de contra-imagem, de Bhabha (2005), e precisa: “A contra-imagem
do Estado é, assim, definidora de uma identificação política dos movimentos de
moradia.” (Filadelfo, 2008: 55). Essa formulação, parece-me, aproxima-se de um
entendimento da política do movimento como política de resistência e diferenciação
em relação ao Estado – pressupondo uma não-relação com o Estado. Nos casos aqui
apresentados, contudo, estamos já partindo de uma relação: a participação no

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Conselho Gestor das ZEIS, no caso dos moradores da Mauá, por exemplo, pressupõe e
propõe uma relação, no mínimo espacial: pessoas vinculadas ao movimento sentam-se
para discutir com pessoas vinculadas ao Estado.
A identificação dos movimentos como contra-imagem do Estado pode operar
intensa e continuamente, ao fortalecer o movimento de moradia enquanto ator
singular em oposição ao governo (ou Estado) e suas políticas municipais, como ocorreu
durante as gestões de Maluf (1993-1996) e Pitta (1997-2000) – gestões cuja agenda de
política habitacional não contemplava as reivindicações do movimento de moradia que
dizia respeito ao centro da cidade; essas gestões priorizaram o atendimento a
moradores de cortiços e urbanização de favelas em áreas periféricas. Mas essa mesma
identificação (dos movimentos como contra-imagem do Estado) também pode operar
situacional ou intermitentemente, num espaço-tempo definido, enquanto, ao mesmo
tempo e de um modo geral, o movimento não está definitivamente em oposição ao
governo (ou: “contra o Estado”), como aconteceu durante as gestões Erundina (1989-
1992) e Marta (2001-2004) – ambas gestões reconhecidamente próximas dos
movimentos sociais e nas quais, ainda assim, os movimentos se diferenciavam do
Estado performativamente, com atos de rua, ocupações e nos Conselhos,
apresentando suas reivindicações e fazendo a luta.12
E o que é a luta, que aparece tanto nas falas de lideranças e de moradores da Mauá?
Os usos são de acordo com os indicados por Comerford (1999): em falas que são
“denúncia ou reflexão sobre a situação de quem fala e sobre a condição dos pobres e
as causas de seu sofrimento individual e também coletivo” (Comerford, 1999: 19), e
também para caracterizar o cotidiano de trabalho dos pobres; sugiro, no entanto,

12 Importante ressaltar que rejeito, aqui, considerar o movimento social como cooptado pelo
Estado, quando de sua participação dentro deste. Quando os participantes do Movimento são também
vinculados ao mesmo Partido que detém a gestão da prefeitura municipal, as oposições, identificações e
composições são muitas: porque são muitos os “partidos” dentro do Partido, e muitas as “militâncias”
dentro do movimento. Embora sejam muitas, contudo, partilham de um mínimo comum, algo como um
mínimo ético-político – que também é processual e sofre abalos (como, no caso do PT, os escândalos
envolvendo processo de corrupção). No âmbito da relação com o Estado em situações de discussão e
deliberação sobre a política pública, participar é tomar pra si o poder de fala, a capacidade de se colocar.
Também pela participação o movimento social torna-se gestor da política pública. Há, inclusive, uma
política pública federal, o Programa Minha Casa, Minha Vida, que atende camadas baixas e médias da
sociedade. No que diz respeito ao atendimento às famílias de renda mensal de zero a três salários
mínimos, foi criado um ramo do programa, o Minha Casa, MinhaVida-Entidades. Nesse ramo, as
decisões sobre os critérios de seleção de beneficiários ficam totalmente a cargo dos movimentos de
moradia. É nesse sentido que é possível dizer que o movimento social torna-se gestor (ou cogestor) da
política pública. Agradeço à Luciana Tatagiba por essa indicação.

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estender essa noção para um outro uso, ainda mais corrente: para caracterizar a vida
dos pobres – qualificada por uma experiência cotidiana de precariedade, muitas vezes
agravada por dramas pessoais específicos. Além disso, e ainda semelhante a Comerford
(1999), luta também remete a uma categoria (os sem-teto) e a ações nos planos
jurídico (especialmente nos litígios envolvendo processos de ocupação e reintegração
de posse) e político (em ocupações, atos de rua e participação em espaços
institucionais de discussão e deliberação), em benefício ou em defesa dessa categoria.
Assim, ocupação de imóveis ociosos e protestos, e participação em espaços
institucionais, à parte serem práticas contraditórias ou não, são coexistentes. Isso não
significa uma esquizofrenia nas relações situacionais, mas sim uma coexistência de
lógicas distintas orientando a ação. Goldman (2000), em seu estudo sobre as relações
entre o movimento negro de Ilhéus e o processo das eleições municipais, afirma que
“as lógicas postas em ação não são nem extrínsecas (...) nem simétricas. Elas
coexistem, se interpenetram, se subordinam, se opõem e se compõem (…).” (Goldman,
2000: 328). Tudo isso, talvez, conforme algo como a “lógica da luta”, no movimento,
que incorporaria práticas como a ocupação de imóveis ociosos e a participação em
espaços institucionais. A “lógica da luta” incorporaria tanto o “tempo da política” como
o “tempo da urgência”, como propõe Blikstad (2012) e, do meu ponto de vista, é uma
tentativa de não ceder a interpretações ou análises dicotômicas do estudo envolvendo
movimentos sociais.
Ainda, essa abordagem de etnografar extensões e deslocamentos da relação entre
movimento e administração pública exige uma requalificação da noção de política que,
proponho, deve ser entendida como composta por elementos de resistência,
reivindicação e prefiguração. A luta por permanecer morando no centro da cidade de
São Paulo, especificamente na região da Luz, alvo do Projeto Nova Luz, pode ser
claramente entendida como uma luta de resistência, um movimento de resistência em
relação a um Estado e a uma política de Estado para o centro baseada na expulsão das
pessoas de baixa renda e em processos de gentrificação.13 A luta para que
especificamente aquele prédio, isto é, o prédio que já habitam, o prédio que é a Mauá,

13 Para uma abordagem sobre processos de gentrificação, ver Leite (2007). Para considerações
sobre o centro de São Paulo, ver Frúgoli Jr. (2000). Para uma abordagem de ocupações como resistência,
ver Lima (2012).

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seja reformado com verba pública, via programas de política pública de habitação, é
claramente reivindicativa: assume, agora, o Estado como interlocutor. Também é
reivindicativa a participação dos moradores da Mauá no Conselho Gestor das ZEIS da
região.14 Por fim, pintar o prédio pode ser visto como uma expressão prefigurativa, isto
é, eles já estão vivendo como e onde desejam viver: naquele mesmo lugar, naquele
prédio, trabalhando-o e cuidando para que seja dignificado – qualidade que a pintura
agrega parcialmente; ele só se tornará moradia digna quando tiver passado pelo
processo de reforma via política pública. Isto é: viver do modo como desejam viver só
será possível se as três dimensões de sua ação política se completarem plenamente.15
Os moradores da Mauá, outros movimentos de moradia e outras pessoas que
compõem o movimento de moradia têm seus direitos usurpados. Não têm moradia ou
vivem no que chamam de moradia precária. Formulam sua situação como indigna, a
partir da percepção de que estão tendo seu direito à cidade desrespeitado. Direito à
moradia digna não é direito a um teto sobre sua cabeça; é o direito a uma moradia
acoplada a outros direitos. É o direito à cidade (Lefebvre, [1968]2008), que só pode ser
efetivado quando serviços públicos, como escolas, hospitais, trabalho, transporte e
bens culturais podem ser usufruídos pelo cidadão na região onde mora. Para essas
pessoas, não há alternativa para viver, ou seja, para existir com dignidade, isto é, existir
como cidadão, que não a luta. E os moradores da Mauá afirmam isso quando escrevem
na Carta Aberta da Comunidade Mauá (2012): “A ocupação Mauá é hoje sinônimo de
Vida”, ou quando escrevem na parede do saguão de reuniões, no térreo da ocupação:
“Quem não luta, tá morto”. Os termos do trinômio moradia-dignidade-vida são
intercambiáveis nas falas das pessoas que estão na luta: “Luta refere-se a tudo aquilo
que se é obrigado a enfrentar no dia a dia para viver dignamente” (Comerford, 1999:
28).
Por fim, proponho o exercício em se considerar alguma dinâmica mítica tanto nas
ocupações como nos processos que criam ou enfatizam coletividades em relação. O
caráter mítico aparece especialmente em narrativas e ações que visam afetar os

14 Há um extenso debate sobre a relação reivindicativa entre movimentos sociais e administração


pública, pelo qual passo brevemente na Introdução de minha dissertação de mestrado (Paterniani,
2013). Recomendo a leitura de Tatagiba (2009), Dagnino (1994) e Blikstad (2012).
15 A política entendida como prefiguração está mais presente nas recentes análises sobre os
movimentos de Occupy, principalmente nos Estados Unidos e em países da Europa. Razsa e Kurnik
(2012) fazem um bom uso do termo em seu artigo sobre o Occupy Slovenia.

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interlocutores – pessoas que estão participando pela primeira ou segunda vez de uma
reunião de base, moradores numa assembleia, o poder público, o juiz ou
desembargador que porta a “caneta assassina”, jornalistas, estudantes etc. Para Lévi-
Strauss (1997), os mitos dizem respeito a acontecimentos que, de maneira recorrente,
atualizam problemas estruturais da sociedade referida e referenciada no mito,
reposicionando uma contradição fundamental e justificando posições políticas. A
política de revitalização da Luz engloba/supõe/engendra um “fazer morrer” através de
um “deixar viver” no abandono. A luta por direitos significa, nesse contexto,
exatamente a luta pela vida, como já percebera Foucault (1988: 158): “Foi a vida, muito
mais do que o direito, que se tornou o objeto das lutas políticas, ainda que estas
últimas se formulem através de afirmações de direito.” No caso em questão, a
contradição fundamental que a temporalidade mítica das ocupações parece atualizar é
a do próprio direito, na forma de lei, que versa, por definição, sobre o lícito e o ilícito. A
contradição imanente a um direito calcado no biopoder cuja transgressão – ocupar – é
garantida pelo próprio direito – à moradia16 –, mas cujo castigo para a transgressão –
ocupar – é a morte – despejo, reintegração de posse.17 Da qual, contudo, é possível e
preciso escapar pela luta.

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16 Importante lembrar que a Constituição brasileira, promulgada em 1988, garante o direito à


moradia como direito fundamental – embora este só tenha sido incluído no caput referente aos direitos
fundamentais no ano 2000.
17 Entendo biopoder como desenvolvido por Foucault (1988: 95ss; 145-158).

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com-sem-teto-na-construcao-de-55-mil-moradias, acesso em 01/02/2014.

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Cabo dos Trabalhos

______. “Prefeitura decreta prédio da ocupação Mauá como de interesse social”. 24 de julho de 2013.
disponível em: http://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2013/07/prefeitura-decreta-predio-da-
ocupacao-maua-como-de-interesse-social-404.html, acesso em 01/02/2014.

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