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Resumo
Este artigo refere-se a um projeto de pesquisa em andamento que visa etnografar a extensão e
os deslocamentos da relação entre movimentos de moradia e administração municipal na
cidade de São Paulo, Brasil, considerando o envolvimento de militantes do movimento no
processo eleitoral da última gestão municipal na cidade, durante o ano de 2012. Essa gestão,
do Partido dos Trabalhadores (PT) sucede gestões do Partido da Social Democracia Brasileira
(PSDB) e dos Democratas (DEM) e enfatizou, em sua propaganda eleitoral, a não-continuidade
em relação a essas gestões. No que diz respeito à extensão e deslocamentos dessa relação,
neste artigo circunscrevo a luta a histórias narradas por militantes da ocupação Mauá e teço
algumas considerações sobre tratamentos dados por diferentes gestões municipais da cidade a
casos de política habitacional. Minha hipótese é que movimento e governo são coletividades ao
mesmo tempo reais e ficcionais – que, justamente por isso, operam politicamente.
Abstract
This paper refers to a research in progress which aims to make an ethnography of the extension
and displacements of the relation between housing movements and public administration in
the city of Sao Paulo, Brazil, considering the involvement of militants from the housing
movement in the most recent process to elect the major of the city, in 2012. The elected
administration, from the Labour Party (PT), comes after administrations from two other
Brazilian parties and emphasized, during its electoral campaign, the non-continuity in what
concerns to those two other administrations. Concerning the extension and displacements of
the relation, in this article I approach the struggle [luta] from stories that people who live in
Mauá squatting tell. I also write about the ways different administrations have dealt with
housing policy. My hipothesis is that movement [movimento] and government [governo] are
collectivities both real and fictional – and being so, act politically.
Keywords: collectivities, social movements, São Paulo – center of the city, squattings,
ethnography of politics.
1 Mestra em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas (Brasil), onde defendeu
a dissertação "Política, fabulação e a ocupação Mauá: etnografia de uma experiência", sob orientação da
Profª Drª Suely Kofes. É ingressante no doutorado em Antropologia Social na Universidade de Brasília.
Interessa-se pelos temas: Política, narrativas, pós-colonialismos, teorias da tradução. Contato:
stella.paterniani@gmail.com.
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2 Este artigo apresenta desdobramentos de minha pesquisa de mestrado (Paterniani, 2013), que
serão aprofundados, ainda, ao longo do doutorado. Para apresentar tais desdobramentos, no entanto,
foi necessário recorrer a trechos de minha dissertação de mestrado e apresentar, de maneira resumida,
alguns pontos lá presentes. Alguns dos argumentos, evidentemente, estão mais desenvolvidos na
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Mauá, uma ocupação de imóvel ocioso no centro da cidade de São Paulo, que existe
desde março de 20073 e onde moram, atualmente, 237 famílias, com cerca de 180
crianças: aproximadamente 1300 pessoas. Antes de ser ocupado, naquele prédio
funcionava um hotel. Por isso, a estrutura reconhecível de um hotel de meados do
século XX: recepção, escadas de mármore, um pátio interno descoberto e corredores
muito estreitos e escuros que dão acesso a quartos de cerca de 10m² – em cada quarto
mora uma família.
Olhar para a Mauá significava também olhar para os três movimentos que a
compõem – Movimento de Moradia da Região Centro (MMRC), Movimento Sem-Teto
do Centro (MSTC) e Associação de Sem-Teto da Cidade de São Paulo (ASTC-SP) –,
entendendo-os (tanto os movimentos como a própria Mauá) como coletividades não-
estanques, múltiplas e plurais. Os movimentos e a Mauá compõem o movimento de
moradia, um campo que defino como composto por pessoas reunidas que lutam pelo
direito à moradia digna para pessoas de baixa renda, sendo que baixa renda
caracteriza famílias cuja renda mensal é entre zero e três salários mínimos. Ocupações,
manifestações, participação em conselhos e espaços de negociação com o Estado,
eleição de representantes políticos institucionais (como vereadores), investimentos em
ter boas relações com pessoas do governo, abaixo-assinados: todos são instrumentos
de luta do movimento. Esses instrumentos de luta são ações políticas que proponho
serem compostas por três elementos, nelas presentes em maior ou menor grau:
resistência, reivindicação e prefiguração. Voltarei a isso nas considerações finais.
Percebi etnograficamente que, nesse campo, se as coletividades são contingentes e
situacionais (e, por assim dizer, fluidas), por um lado, há, ao mesmo tempo e por outro
lado, memórias e histórias de uma coletividade mais coesa constantemente reforçadas,
adensadas e postas à espreita para enredar novos militantes e fortalecer essa
coletividade-movimento enquanto tal, diferenciado de qualquer possível fusão ou
confusão com outros atores. Essas coletividades não são homogêneas nem estanques;
pelo contrário: são coletividades que a todo momento lidam com processos de
incorporação e diferenciação e, ainda, contemplam a diferença. Situacionalmente, a
dissertação.
3 Filadelfo (2008) realizou uma etnografia em que conta o processo de ocupação da Mauá. Para
mais detalhes sobre a Mauá, ver Paterniani (2013). Ver também o dossiê com registros fotográficos de
Monteiro (2013).
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4 “Quando alguém entra no movimento, aprende que o critério para a conquista da moradia é
sua participação; participação como família. Os programas governamentais, em sua maioria,
reconhecem o movimento enquanto mediador: quando há oferecimento de moradias, dispõe para que o
movimento faça a distribuição das vagas. Isso exige critérios para a distribuição interna do benefício,
como dizem. O critério fundamental é a participação: participar de reuniões, assembleias, mutirões de
limpeza e atividades comuns (quando moradores de ocupação), atos, ocupações. O instrumento para
quantificar a participação é um sistema de pontuações. Para cada atividade de que participa, a família
recebe um ponto. Quando sai uma demanda, as lideranças consultam um caderno onde consta a
pontuação das famílias; quanto maior a pontuação, isto é, a participação, está-se mais perto de ser
beneficiado.
O sistema de pontuações me parece o sistema de mediação encontrado pelos Movimentos para
ocupar esse lugar ao mesmo tempo reivindicado pelo movimento (porquanto a gestão das moradias é
responsabilidade do próprio movimento, autônomo perante o governo) e limitado pelo governo (uma
vez que o outorgado número de moradias é sempre dissonante das reivindicações do movimento); uma
mediação pra encontrar seu lugar na gestão da política pública. É um mecanismo amplamente aprovado
pela base do movimento por garantir transparência e imparcialidade no processo de seleção dos
beneficiários.” (Paterniani, 2013: 106)
5 Quando do pedido de reintegração de posse da Mauá, no início de 2012, o Batalhão da Polícia
Militar convocou as lideranças para uma reunião. Poucas semanas depois dessa reunião, uma das
lideranças da Mauá me disse que “lá fora [da Mauá] é tudo a mesma coisa”, “lá fora é comunidade
Mauá”; durante a reunião com o Batalhão, numa pausa para um cigarro, outra liderança me disse que “o
que está sendo discutido é o prédio Mauá”.
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6 O Plano Diretor de São Paulo existe desde 1985; em 2002, contudo, foi reformulado (e passou a
se chamar Plano Diretor Estratégico) e passou a contemplar alguns instrumentos de política urbana para
moradores de baixa renda, como as ZEIS e os Planos Regionais das Subprefeituras.
7 É possível acessar o projeto no site da Prefeitura de São Paulo:
http://www.novaluzsp.com.br/projeto.asp, acesso em 06/11/2013. Atualmente, o Projeto está
engavetado – essa foi uma das primeiras ações que a administração Fernando Haddad tomou no que diz
respeito às políticas de habitação na cidade. Para uma interessantíssima discussão acerca das
compreensões da legalidade envolvendo o Projeto Nova Luz, ver Pacheco, 2012.
8 Taniele Rui (2012) realizou uma etnografia dos usuários de crack da região, cuja intenção é
oposta à das ações policiais: “(...) eu fiz diferente do que fez a polícia, o governador e o prefeito: não
tentei matar por asfixia e à força a “cracolândia”. Nessas páginas, ela e os outros lugares de uso [de
crack] que visitei respiram, vivem.” (Rui, 2012: 15).
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9 Por motivo de escopo, não tratarei dessas gestões neste artigo. As informações de que são
consideradas gestões conservadoras no que diz respeito à política habitacional por parte dos
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movimentos de moradia e que foram de partidos que historicamente não têm boas relações com
movimentos sociais bastam, por ora.
10 Em um depoimento no encontro de formação interna do MMRC, no dia 21 de janeiro de 2012,
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sobre os edifícios:
Embora fizessem parte da mesma estrutura construtiva, o São Vito e o Mercúrio formaram dois
condomínios diferentes, sendo o primeiro dividido em 603 quitinetes e o segundo em 135
apartamentos de um quarto. Tratava-se de uma alternativa habitacional de baixo custo na área
central da cidade. Embora pequenas, estas unidades serviam para quem buscava morar perto do
trabalho, uma opção de moradia metropolitana que é necessária numa cidade como São Paulo.
(Bonduki, 2010)
O arquiteto continua:
Mal administrado por anos, o São Vito tornou-se símbolo da degradação da área central,
ingressando num conhecido processo de deterioração. Nada que fosse irreversível, mas era
necessária uma intervenção do poder público, que ocorreu na administração da prefeita Marta
Suplicy. (Bonduki, 2010)
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Considerações finais
Entre os movimentos sociais – incluídos aí os movimentos de moradia do campo da
luta por moradia digna e reforma urbana –, depois de um primeiro momento
entusiástico no concernente à participação institucional, a frustração com a pouca
efetividade da participação (em termos de impacto na política pública habitacional)
tem gerado um grande debate (e grandes divergências): continuar participando ou
deixar de participar desses espaços? A resposta, geralmente, tem sido: continuar
participando, de corpo presente, para fiscalizar, acompanhar e controlar, mesmo
sabendo que a influência do movimento nos processos deliberativos é mínima. Estar lá,
de corpo presente, parece já ser uma forma de participação.
Filadelfo (2008) lembra como, por vezes, as polarizações dicotômicas entre os
movimentos de moradia e o poder público levam a interações conflituosas; ele
recupera a noção de contra-imagem, de Bhabha (2005), e precisa: “A contra-imagem
do Estado é, assim, definidora de uma identificação política dos movimentos de
moradia.” (Filadelfo, 2008: 55). Essa formulação, parece-me, aproxima-se de um
entendimento da política do movimento como política de resistência e diferenciação
em relação ao Estado – pressupondo uma não-relação com o Estado. Nos casos aqui
apresentados, contudo, estamos já partindo de uma relação: a participação no
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Conselho Gestor das ZEIS, no caso dos moradores da Mauá, por exemplo, pressupõe e
propõe uma relação, no mínimo espacial: pessoas vinculadas ao movimento sentam-se
para discutir com pessoas vinculadas ao Estado.
A identificação dos movimentos como contra-imagem do Estado pode operar
intensa e continuamente, ao fortalecer o movimento de moradia enquanto ator
singular em oposição ao governo (ou Estado) e suas políticas municipais, como ocorreu
durante as gestões de Maluf (1993-1996) e Pitta (1997-2000) – gestões cuja agenda de
política habitacional não contemplava as reivindicações do movimento de moradia que
dizia respeito ao centro da cidade; essas gestões priorizaram o atendimento a
moradores de cortiços e urbanização de favelas em áreas periféricas. Mas essa mesma
identificação (dos movimentos como contra-imagem do Estado) também pode operar
situacional ou intermitentemente, num espaço-tempo definido, enquanto, ao mesmo
tempo e de um modo geral, o movimento não está definitivamente em oposição ao
governo (ou: “contra o Estado”), como aconteceu durante as gestões Erundina (1989-
1992) e Marta (2001-2004) – ambas gestões reconhecidamente próximas dos
movimentos sociais e nas quais, ainda assim, os movimentos se diferenciavam do
Estado performativamente, com atos de rua, ocupações e nos Conselhos,
apresentando suas reivindicações e fazendo a luta.12
E o que é a luta, que aparece tanto nas falas de lideranças e de moradores da Mauá?
Os usos são de acordo com os indicados por Comerford (1999): em falas que são
“denúncia ou reflexão sobre a situação de quem fala e sobre a condição dos pobres e
as causas de seu sofrimento individual e também coletivo” (Comerford, 1999: 19), e
também para caracterizar o cotidiano de trabalho dos pobres; sugiro, no entanto,
12 Importante ressaltar que rejeito, aqui, considerar o movimento social como cooptado pelo
Estado, quando de sua participação dentro deste. Quando os participantes do Movimento são também
vinculados ao mesmo Partido que detém a gestão da prefeitura municipal, as oposições, identificações e
composições são muitas: porque são muitos os “partidos” dentro do Partido, e muitas as “militâncias”
dentro do movimento. Embora sejam muitas, contudo, partilham de um mínimo comum, algo como um
mínimo ético-político – que também é processual e sofre abalos (como, no caso do PT, os escândalos
envolvendo processo de corrupção). No âmbito da relação com o Estado em situações de discussão e
deliberação sobre a política pública, participar é tomar pra si o poder de fala, a capacidade de se colocar.
Também pela participação o movimento social torna-se gestor da política pública. Há, inclusive, uma
política pública federal, o Programa Minha Casa, Minha Vida, que atende camadas baixas e médias da
sociedade. No que diz respeito ao atendimento às famílias de renda mensal de zero a três salários
mínimos, foi criado um ramo do programa, o Minha Casa, MinhaVida-Entidades. Nesse ramo, as
decisões sobre os critérios de seleção de beneficiários ficam totalmente a cargo dos movimentos de
moradia. É nesse sentido que é possível dizer que o movimento social torna-se gestor (ou cogestor) da
política pública. Agradeço à Luciana Tatagiba por essa indicação.
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estender essa noção para um outro uso, ainda mais corrente: para caracterizar a vida
dos pobres – qualificada por uma experiência cotidiana de precariedade, muitas vezes
agravada por dramas pessoais específicos. Além disso, e ainda semelhante a Comerford
(1999), luta também remete a uma categoria (os sem-teto) e a ações nos planos
jurídico (especialmente nos litígios envolvendo processos de ocupação e reintegração
de posse) e político (em ocupações, atos de rua e participação em espaços
institucionais de discussão e deliberação), em benefício ou em defesa dessa categoria.
Assim, ocupação de imóveis ociosos e protestos, e participação em espaços
institucionais, à parte serem práticas contraditórias ou não, são coexistentes. Isso não
significa uma esquizofrenia nas relações situacionais, mas sim uma coexistência de
lógicas distintas orientando a ação. Goldman (2000), em seu estudo sobre as relações
entre o movimento negro de Ilhéus e o processo das eleições municipais, afirma que
“as lógicas postas em ação não são nem extrínsecas (...) nem simétricas. Elas
coexistem, se interpenetram, se subordinam, se opõem e se compõem (…).” (Goldman,
2000: 328). Tudo isso, talvez, conforme algo como a “lógica da luta”, no movimento,
que incorporaria práticas como a ocupação de imóveis ociosos e a participação em
espaços institucionais. A “lógica da luta” incorporaria tanto o “tempo da política” como
o “tempo da urgência”, como propõe Blikstad (2012) e, do meu ponto de vista, é uma
tentativa de não ceder a interpretações ou análises dicotômicas do estudo envolvendo
movimentos sociais.
Ainda, essa abordagem de etnografar extensões e deslocamentos da relação entre
movimento e administração pública exige uma requalificação da noção de política que,
proponho, deve ser entendida como composta por elementos de resistência,
reivindicação e prefiguração. A luta por permanecer morando no centro da cidade de
São Paulo, especificamente na região da Luz, alvo do Projeto Nova Luz, pode ser
claramente entendida como uma luta de resistência, um movimento de resistência em
relação a um Estado e a uma política de Estado para o centro baseada na expulsão das
pessoas de baixa renda e em processos de gentrificação.13 A luta para que
especificamente aquele prédio, isto é, o prédio que já habitam, o prédio que é a Mauá,
13 Para uma abordagem sobre processos de gentrificação, ver Leite (2007). Para considerações
sobre o centro de São Paulo, ver Frúgoli Jr. (2000). Para uma abordagem de ocupações como resistência,
ver Lima (2012).
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seja reformado com verba pública, via programas de política pública de habitação, é
claramente reivindicativa: assume, agora, o Estado como interlocutor. Também é
reivindicativa a participação dos moradores da Mauá no Conselho Gestor das ZEIS da
região.14 Por fim, pintar o prédio pode ser visto como uma expressão prefigurativa, isto
é, eles já estão vivendo como e onde desejam viver: naquele mesmo lugar, naquele
prédio, trabalhando-o e cuidando para que seja dignificado – qualidade que a pintura
agrega parcialmente; ele só se tornará moradia digna quando tiver passado pelo
processo de reforma via política pública. Isto é: viver do modo como desejam viver só
será possível se as três dimensões de sua ação política se completarem plenamente.15
Os moradores da Mauá, outros movimentos de moradia e outras pessoas que
compõem o movimento de moradia têm seus direitos usurpados. Não têm moradia ou
vivem no que chamam de moradia precária. Formulam sua situação como indigna, a
partir da percepção de que estão tendo seu direito à cidade desrespeitado. Direito à
moradia digna não é direito a um teto sobre sua cabeça; é o direito a uma moradia
acoplada a outros direitos. É o direito à cidade (Lefebvre, [1968]2008), que só pode ser
efetivado quando serviços públicos, como escolas, hospitais, trabalho, transporte e
bens culturais podem ser usufruídos pelo cidadão na região onde mora. Para essas
pessoas, não há alternativa para viver, ou seja, para existir com dignidade, isto é, existir
como cidadão, que não a luta. E os moradores da Mauá afirmam isso quando escrevem
na Carta Aberta da Comunidade Mauá (2012): “A ocupação Mauá é hoje sinônimo de
Vida”, ou quando escrevem na parede do saguão de reuniões, no térreo da ocupação:
“Quem não luta, tá morto”. Os termos do trinômio moradia-dignidade-vida são
intercambiáveis nas falas das pessoas que estão na luta: “Luta refere-se a tudo aquilo
que se é obrigado a enfrentar no dia a dia para viver dignamente” (Comerford, 1999:
28).
Por fim, proponho o exercício em se considerar alguma dinâmica mítica tanto nas
ocupações como nos processos que criam ou enfatizam coletividades em relação. O
caráter mítico aparece especialmente em narrativas e ações que visam afetar os
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interlocutores – pessoas que estão participando pela primeira ou segunda vez de uma
reunião de base, moradores numa assembleia, o poder público, o juiz ou
desembargador que porta a “caneta assassina”, jornalistas, estudantes etc. Para Lévi-
Strauss (1997), os mitos dizem respeito a acontecimentos que, de maneira recorrente,
atualizam problemas estruturais da sociedade referida e referenciada no mito,
reposicionando uma contradição fundamental e justificando posições políticas. A
política de revitalização da Luz engloba/supõe/engendra um “fazer morrer” através de
um “deixar viver” no abandono. A luta por direitos significa, nesse contexto,
exatamente a luta pela vida, como já percebera Foucault (1988: 158): “Foi a vida, muito
mais do que o direito, que se tornou o objeto das lutas políticas, ainda que estas
últimas se formulem através de afirmações de direito.” No caso em questão, a
contradição fundamental que a temporalidade mítica das ocupações parece atualizar é
a do próprio direito, na forma de lei, que versa, por definição, sobre o lícito e o ilícito. A
contradição imanente a um direito calcado no biopoder cuja transgressão – ocupar – é
garantida pelo próprio direito – à moradia16 –, mas cujo castigo para a transgressão –
ocupar – é a morte – despejo, reintegração de posse.17 Da qual, contudo, é possível e
preciso escapar pela luta.
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