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LUIZ CLÁUDIO MOREIRA GOMES

A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA EM ÁREAS PÚBLICAS:

reflexões a partir do estudo de caso da Comunidade do Horto - Rio

de Janeiro (RJ)

Tese apresentada ao Curso de Doutorado do Programa de


Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional da
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte
dos requisitos necessários à obtenção do grau de Doutor em
Planejamento Urbano e Regional.

Orientador: Prof. Dr. Orlando Alves dos Santos Júnior

Rio de Janeiro

2014
G633r Gomes, Luiz Cláudio Moreira.
A regularização fundiária em áreas públicas : reflexões a
partir do estudo de caso da Comunidade do Horto, Rio de
Janeiro (RJ) / Luiz Cláudio Moreira Gomes. – 2014.
184 f. : il. color. ; 30 cm.

Orientador: Orlando Alves dos Santos Junior.


Tese (doutorado) – Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e
Regional, 2014.
Bibliografia: f. 178-184.

1. Regularização fundiária – Rio de Janeiro (RJ). 2.


Direito de propriedade. 3. Direito à moradia. 4. Estatuto
da cidade – Rio de Janeiro (RJ). 5. Comunidade do Horto
(Rio de Janeiro, RJ). I. Santos Junior, Orlando Alves. II.
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de
Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional. III. Título.

CDD: 346.0432
LUIZ CLÁUDIO MOREIRA GOMES

A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA EM ÁREAS PÚBLICAS:

reflexões a partir do estudo de caso da Comunidade do Horto - Rio

de Janeiro (RJ)

Tese apresentada ao Curso de Doutorado do Programa de


Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional da
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte
dos requisitos necessários à obtenção do grau de Doutor em
Planejamento Urbano e Regional.

Aprovado em:

___________________________________________
Prof. Dr. Orlando Alves dos Santos Júnior - Orientador
Instituto de Planejamento Urbano e Regional - UFRJ

___________________________________________
Profª. Drª. Maria Julieta Nunes de Souza
Instituto de Planejamento Urbano e Regional - UFRJ

___________________________________________
Prof. Dr. Flávio Alves Martins
Faculdade Nacional de Direito - UFRJ

___________________________________________
Prof. Dr. Marcelo Pereira de Mello
Departamento de Sociologia - UFF

____________________________________________
Prof. Dr. Raul Francisco Magalhães
Departamento de Ciências Sociais - UFJF
Dedico este trabalho a minha esposa Fabiana
Marins Rios pela compreensão e amor ao longo
desta e de muitas outras vidas.
AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador, professor Orlando Júnior, pelos seus ensinamentos, por sua
compreensão, apoio e companheirismo.

Ao amigo e professor Marcelo Mello, pelos seus ensinamentos, seu apoio e


fundamental colaboração na realização do trabalho.

À professora Julieta Nunes, uma pessoa que luta pela justiça social e acredita no
importante papel da Universidade na construção de um Brasil melhor.

Ao professor Flávio Martins, um grande companheiro na construção de uma


Faculdade Nacional de Direito cada vez melhor.

Ao professor Raul Magalhães, que não mediu esforços e prontamente aceitou o


convite para integrar a banca examinadora.

Às técnicas administrativas da Faculdade Nacional de Direito, Luciana Lopes, Letícia


Pelegrineti, Priscila Loureiro e Alessandra Monteiro, que me deram todo o suporte
necessário para que eu tivesse tempo para chegar ao final do trabalho.

Aos exemplares funcionários do IPPUR/UFRJ, em especial Zuleika e André.

À Célia Ravera, que franqueou vista de todos os volumes do processo de


regularização fundiária da Comunidade do Horto em curso na Secretaria do
Patrimônio da União no Rio de Janeiro para que fosse realizada a pesquisa.
RESUMO

A tese tem como objetivo geral discutir e identificar as condições políticas e


institucionais que favorecem ou bloqueiam as possibilidades de efetivação dos
instrumentos de regularização fundiária em áreas públicas previstas no Estatuto da
Cidade à luz do caso selecionado. Complementarmente, têm-se como objetivos
específicos: analisar a estrutura do direito de propriedade no Brasil; compreender a
dimensão da função social da propriedade pós Constituição de 1988 e o direito à
moradia; avaliar os determinantes para a elaboração de políticas públicas. Uma
digressão às origens do direito de propriedade no Brasil também será analisada.
Para atingir os objetivos do presente trabalho, adotou-se o método de estudo de
caso, o que permitirá a adoção de enfoque exploratório e descritivo. A pesquisa
evidencia que a regularização fundiária em áreas públicas e a efetividade do
Estatuto da Cidade, está diretamente relacionada aos interesses dos atores
envolvidos na questão e a forma de apresentação do tema enquanto um problema
público.

Palavras-chave: Regularização. Efetividade. Estatuto da Cidade.


ABSTRACT

The thesis has the overall objective to discuss and identify policy and institutional
conditions that favor or block the possibilities of bringing the instruments of
regularization in public areas contained in the City Statute in the light of the selected
case. Additionally, if you have specific purposes : to analyze the structure of property
rights in Brazil; understand the scale of the social function of property after the
Constitution of 1988 and the right to housing , the determinants for the development
of public policies. A tour to the origins of property rights in Brazil will also be analyzed.
Seeking to achieve the objectives of the present work, we adopted the case study
method, allowing the adoption of exploratory and descriptive approach. The research
shows that the regularization in public areas and the effectiveness of the City Statute
is directly related to the interests of the actors involved in the issue and the
presentation of the topic as a public issue.

Keywords: Regularization. Effectiveness. City Statute


LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 Mapa da área do projeto de regularização fundiária sem a 124


denominação dos setores

Figura 2 Mapa da área do projeto de regularização fundiária com a 125


denominação dos setores

Figura 3 Ilustração de parte dos resultados do projeto de regularização 127


fundiária desenvolvido pela FAU/UFRJ

Figura 4 Novo perímetro do Jardim Botânico anunciado em 07/05/2013 136

Figura 5 Ilustração do novo perímetro do Jardim Botânico anunciado 137


em 07/05/2013

Figura 6 Ilustração da proposta inicial do IPHAN das casas a serem 151


mantidas no Jardim Botânico

Figura 7 Fotografia da ordem de transporte de morador da 161


Comunidade do Horto
LISTA DE SIGLAS

AAJB - Associação dos Amigos do Jardim Botânico


AEIS - Áreas de Especial Interesse Social
AGU - Advocacia Geral da União
AMABOTAFOGO - Associação de Moradores e Amigos de Botafogo
AMAGÁVEA - Associação de Moradores e Amigos da Gávea
AMAHOR - Associação de Moradores e Amigos do Horto
AMAJB - Associação de Moradores e Amigos do Jardim Botânico
CCAF - Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Pública Federal
CDRU - Concessão de Direito Real de Uso
CONCIDADES – Conselho das Cidades
CUEM - Concessão de Uso Especial para fins de Moradia
EMBRAPA - Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária
FAU/UFRJ - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio
de Janeiro
IBAMA - Instituto do Brasileiro do Meio Ambiente
IBDF - Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal
IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
IPJBRJ - Instituto de Pesquisas do Jardim Botânico do Rio de Janeiro
IPTU - Imposto Predial e Territorial Urbano
ITERJ - Instituto de Terras do Estado do Rio de Janeiro
JBRJ - Jardim Botânico do Rio de Janeiro
LIGHT - Light Serviços de Eletricidade S/A
MMA - Ministério do Meio Ambiente
MPOG - Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão
ONU - Organização das Nações Unidas
PMCMV – Programa Minha Casa, Minha Vida
RPV -- Requisição de Pequeno Valor
SERPRO – Serviço Federal de Processamento de Dados
SPU - Secretaria do Patrimônio da União
SPU/RJ - Secretaria do Patrimônio da União no Rio de Janeiro
STF - Supremo Tribunal Federal
STJ - Superior Tribunal de Justiça
TCU – Tribunal de Contas da União
TRE - Tribunal Regional Eleitoral
UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
ZEIS - Zonas de Especial Interesse Social
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 12

2 DIREITO DE PROPRIEDADE NO BRASIL: RAÍZES DA 23


DESIQUALDADE
2.1 Contextualização histórica sobre o direito de propriedade no 23
Brasil
2.2 Os bens públicos no ordenamento jurídico brasileiro 26
2.2.1 Regime jurídico dos bens públicos 29
2.2.2 O uso do bem público 30
2.3 O plano diretor e a construção das cidades pós Constituição 34
Federal de 1988

3 O DIREITO À MORADIA E A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA NO 45


BRASIL PÓS ESTATUTO DA CIDADE
3.1 A função social da propriedade e o direito fundamental à moradia 48
3.2 A função social da posse 55
3.3 A regularização fundiária e seus instrumentos 57

4 DA PRÁTICA PARA A TEORIA: DIFERENTES PERSPECTIVAS 73


TEÓRICAS PARA A COMPREENSÃO DA REGULARIZAÇÃO
FUNDIÁRIA NO BRASIL
4.1 A perspectiva estruturalista para o entendimento dos problemas 73
público
4.2 A perspectiva pluralista para o entendimento dos problemas 81
públicos
4.3 A perspectiva neoinstitucionalista para o entendimento dos 87
problemas públicos

5 O CASO DA COMUNIDADE DO HORTO 102


5.1 Breve histórico 102
5.2 Uma área em conflito 107
5.3 O debate em torno da regularização fundiária 112
5.4 Os múltiplos atores e suas estratégias 141

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS 166

REFERÊNCIAS 178
12

1 INTRODUÇÃO

O déficit habitacional brasileiro encontra-se na ordem de 5 milhões de


domicílios. Para se chegar a esse número, o Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) considerou as seguintes necessidades: provisão de habitações
para acomodar o crescimento vegetativo da população e do número de novas
famílias; substituição das unidades precárias e provisão de serviços básicos de infra-
estrutura.
Para a existência do caos habitacional, concorrem vários fatores, tais como o
crescimento das aglomerações urbanas, a incapacidade das famílias de baixa renda
de adquirirem uma moradia adequada e a insuficiente produção de habitações de
interesse social promovida pelo Poder Público.
O conjunto destes fatores tem propiciado o crescimento das ocupações ilegais
do solo urbano, ocasionando o surgimento e desenvolvimento de assentamentos
informais em todo país, em especial em áreas públicas.
A experiência brasileira de urbanização e regularização urbanística e fundiária
dos assentamentos informais apresenta uma gama de problemas que até a presente
data não foram equacionados.
Alguns avanços na questão da ocupação do solo no Brasil foram realizados no
plano formal. O direito à moradia foi reconhecido como um direito social no ano de
2000 e principalmente surge na ordem jurídica no ano de 2001, o Estatuto da
Cidade, que promove a criação e regulamentação de vários instrumentos que
objetivam assegurar a função social da propriedade e da cidade.
A questão da irregularidade fundiária não é um problema recente no Brasil,
Rhoden (1999), informa que desde o período colonial a questão se fazia presente
em nosso território. Desde a época colonial, através da Lei de Terras (1850), das
diversas Constituições, do Código Civil e legislação extravagante, no Brasil o direito
de propriedade da terra sempre esteve vinculado ao direito de uso, gozo e
disposição, como direito absoluto e intocável.
A Constituição de 1988 buscou romper o paradigma anterior da propriedade
como direito absoluto, através da determinação de que a mesma deveria cumprir
sua função social, sob pena de sofrer restrições.
Com a incorporação de novos princípios e institutos jurídicos ao ordenamento
13

constitucional, abriu-se a possibilidade de ruptura com a tradição jurídica de


proteção da propriedade privada em caráter absoluto.
A incorporação do princípio da função social da propriedade pela Constituição
de 1988 tentou quebrar o paradigma anterior, de modo a permitir que a terra fosse
utilizada de modo a se obter justiça social.
O processo de regularização fundiária tem em mira trazer, para a cidade
legalizada, aquela em que o direito à moradia é minimamente resguardado, a cidade
irregular e clandestina. Por intermédio de diferentes atos, o Poder Público busca a
legalização de situações de posse, normalmente em terrenos ocupados pela
população de baixa renda, dotados de poucos equipamentos urbanos e não
raramente situados em áreas de risco ambiental e urbano. A questão versa sobre
uma “cidade irregular”, cuja regularização jurídica e urbanística prima pela
viabilização do acesso à moradia, mediante o reconhecimento da posse exercida há
longo tempo.
A Constituição de 1988 reconhece o direito à moradia adequada como sendo
um direito social. Os componentes do direito à moradia, previstos nas normas
internacionais de direitos humanos, dos quais o Brasil é signatário, são: adequada
habitabilidade; segurança jurídica da posse, disponibilidade de serviços de infra-
estrutura; custo acessível; acessibilidade às minorias; boa localização e adequação
cultural.
O Estatuto da Cidade inegavelmente representa um marco no direito
urbanístico brasileiro, como também já a Constituição Federal. Mas, além de fixar as
normas gerais de política urbana, mediante o estabelecimento de diretrizes e a
previsão e o aperfeiçoamento de instrumentos jurídicos, o Estatuto inovou bastante
ao exigir a participação popular nas políticas urbanas.
O Estatuto da Cidade para possibilitar que os entes federativos em especial os
Municípios, buscassem viabilizar o direito à moradia, estabeleceu a regularização
fundiária como uma diretriz vinculante da política urbana que tem como fundamento
assegurar aos habitantes destes assentamentos informais o pleno exercício do
direito às cidades sustentáveis e à moradia.
A regularização fundiária como diretriz geral da política urbana estabelecida
pelo art. 2º, inc. XIV, do Estatuto da Cidade, que tem como objetivo ordenar o pleno
desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana.
Outra diretriz geral da política urbana estabelecida pelo art. 2º, inc. IV, afirma:
14

Planejamento do desenvolvimento das cidades, da distribuição especial da


população e das atividades econômicas do Município e do território sob sua
área de influência, de modo a evitar e corrigir as distorções do crescimento
urbano e seus efeitos negativos sobre o meio ambiente.

O paradigma legal determina que as ações de regularização fundiária, devem,


necessariamente, ser planejadas para fins de execução da política urbana, conforme
dispõe a Constituição da República e o Estatuto da Cidade.
O planejamento urbano deve corrigir e prevenir o crescimento desordenado da
cidade. Para tanto, poderá induzir a ocupação de áreas dotadas de infra-estrutura
urbana e trabalho com a finalidade de promover o acesso da população de baixa
renda às áreas adequadas para moradia evitando que esta se aloque nas áreas
desprezadas pelo mercado formal de terras.
O Estatuto da Cidade, em seu artigo 4º, apresenta uma série de instrumentos
que deveriam ser utilizados para a promoção da regularização fundiária, merecendo
destaque: zonas especiais de interesse social (ZEIS); concessão de direito real de
uso (CDRU); concessão de uso especial para fins de moradia (CUEM); usucapião
especial de imóvel urbano; direito de superfície; demarcação urbanística para fins de
regularização fundiária; legitimação de posse; Assistência técnica e jurídica gratuita
para as comunidades de grupos sociais menos favorecidos.
A busca pela regularização fundiária deve estabelecer uma articulação entre
essa e os instrumentos de indução de desenvolvimento urbano, dentre eles os
direitos de preempção, direito de consórcio imobiliário, transferência do direito de
construir, outorga onerosa do direito de construir e operações urbanas consorciadas.
O Estatuto da Cidade trouxe uma série de instrumentos que buscam viabilizar a
concretização dos princípios constitucionais da função social da propriedade urbana
e da função social da cidade.
Os instrumentos previstos pelo Estatuto da Cidade apresentam natureza
eminentemente jurídica, motivo pelo qual deverão ser aplicados em conjunto com
políticas públicas mais amplas de intervenção no processo de urbanização.
Considerando que a lei não se constitui em simples fetiche, precisamos buscar
a sua efetividade, que compreendemos, conforme Silva (2004, p. 66) está
diretamente relacionada ao alcance de seus objetivos.
15

O alcance dos objetivos da norma constitui a efetividade. Esta é, portanto, a


medida da extensão em que o objetivo é alcançado, relacionando-se ao
produto final. Por isso é que, tratando-se de normas jurídicas, se fala em
eficácia social em relação à efetividade, porque o produto final objetivado
pela norma se consubstancia no controle social que ela pretende, enquanto
a eficácia jurídica é apenas a possibilidade de que isto venha a acontecer.

Uma questão de profunda relevância social é a compreensão dos fatores que


levam ao sucesso ou insucesso da regularização fundiária em áreas públicas, onde
a atuação de diversos atores evidencia a existência de diversos conflitos. Quais as
consequências atuais para a regularização fundiária em áreas públicas a partir do
advento Estatuto da Cidade? Esta questão central que permeia o trabalho será
analisada à partir da investigação do conflito instaurado na Comunidade do Horto no
Jardim Botânico do Rio de Janeiro.
O conflito fundiário urbano deve ser compreendido no presente trabalho,
através do conceito operacional disponibilizado pelo Conselho das Cidades
(ConCidades) no inc. I, do artigo 3º, da Resolução Recomendada nº 87, de
dezembro de 2009, como a:

disputa pela posse ou propriedade de imóvel urbano, bem como impacto de


empreendimentos públicos e privados, envolvendo famílias de baixa renda
ou grupos sociais vulneráveis que necessitem ou demandem a proteção do
Estado na garantia do direito humano à moradia e à cidade.

A regularização fundiária em áreas públicas encontra direta relação com a


forma de construção da cidade sob o prisma capitalista. As áreas em que o solo não
apresenta aparentemente grande valor, a regularização é estimulada e o conflito
fundiário não eclode, mas por outro lado, nas áreas providas de grande valor, o
processo de regularização é fortemente combatido.
Neste passo, far-se-á estudo de um processo de regularização fundiária em
área pública no Rio de Janeiro, que se refere à Comunidade do Horto, localizada no
bairro do Jardim Botânico no Rio de Janeiro, um dos metros quadrados mais caros
do Brasil, onde o conflito fundiário urbano encontra-se fortemente presente.
As análises envolvendo a regularização fundiária no Brasil enfocam a questão
sob o ponto de vista dos determinantes mais gerais que bloqueiam a
democratização do acesso à moradia, principalmente sobre o prisma do acesso
informal ao solo urbano e à moradia precária nas cidades brasileiras, mas não se
propõe ao enfrentamento dos determinantes do processo de elaboração de políticas
16

públicas sobre o tema, ou seja, não se entregam a questão de explicar


suficientemente os elementos que facilitariam ou dificultariam a regularização
fundiária em cada contexto e regime de propriedade específicos.
O presente estudo pretende analisar as ações dos diversos agentes envolvidos
no caso, selecionado reunindo elementos documentais, dados, leis, portarias,
memorandos, reportagens, declarações, denúncias e toda sorte de registro
produzido nesse imbróglio produzido pela ocupação da Comunidade do Horto e
Jardim Botânico, mas pretende especialmente suprir uma lacuna referente a uma
compreensão ampla do problema à luz das teorias que nos auxiliem a colocá-lo num
quadro mais amplo dos problemas sócio-políticos contemporâneos. Mobilizamos
para isso algumas teorias clássicas focadas na explicação do processo de
elaboração de políticas públicas de regularização fundiária, identificados pelas
matrizes pluralista, estruturalista e neoinstitucionalista.

A perspectiva estruturalista tem por base a questão das classes sociais e do


Estado, sendo a política pública de regularização fundiária um reflexo dos interesses
do capital e dos determinantes da acumulação capitalista. Trabalharemos esta
perspectiva a partir das contribuições teóricas de Marx, Engels, Harvey, Poulanzas,
Claus Offe, dentre outros.

A perspectiva pluralista interessa a discussão da regularização fundiária, por


sua contribuição ao papel dos grupos de pressão/interesse na formulação das
políticas públicas relacionadas aos conflitos fundiários. Para avaliação desta
perspectiva, as principais referências teóricas utilizadas são Parsons, Smelser e
Dahl.

Diferentemente das perspectivas pluralista e estruturalista, que centram as


análises na sociedade, a perspectiva institucionalista e sua vertente
neoinstitucionalista, têm as instituições do Estado como foco principal, tendo como
principais referências teóricas Skocpol, Olsen e March, Evans, Rueschemeyer,
Katzeinstein, Gershenkron, Berger, Luckman e Gusfield.
O trabalho tem como objetivo geral discutir e identificar as condições políticas e
institucionais que favorecem ou bloqueiam as possibilidades de efetivação dos
instrumentos de regularização fundiária em áreas públicas previstas no Estatuto das
Cidades à luz do caso selecionado.

Complementarmente, têm-se como objetivos específicos: analisar a estrutura


17

do direito de propriedade no Brasil; compreender a dimensão da função social da


propriedade pós Constituição de 1988 e o direito à moradia; avaliar os determinantes
para a elaboração de políticas públicas. Uma digressão às origens do direito de
propriedade no Brasil também será analisada.

Nosso trabalho parte da premissa de que a complexidade das questões


atinentes ao conflito fundiário no Brasil, não permite que qualquer dos aportes
teóricos arrolados explique sozinho e isoladamente o problema de regularização
fundiária no Brasil, em particular o papel e os significados das intervenções públicas
das instituições estatais, a participação dos movimentos sociais (incluídas as
chamadas organizações não governamentais) e dos partidos políticos. Com o
objetivo de desenvolveremos uma análise desses problemas nossa hipótese parte
do suposto de que as configurações dos problemas fundiários no Brasil,
notadamente urbanos, mudam a sua configuração e alternam-se seguidamente de
acordo com a combinação de três processos:

1) Quando o Estado e seus representantes atuam na defesa de interesses


associados à acumulação de capital, como Estado Capitalista. Estes processos
constituem aqueles típicos descritos pelas análises estruturais marxistas que vêm as
instituições estatais como intermediárias de interesses privados. Tais análises
enxergam na atuação das instituições um movimento típico de favorecimento pelos
instrumentos de força e de convencimento a legalização dos meios típicos da
acumulação capitalista;

2) Quando o Estado atua na defesa das instituições sociais existentes. Tais


processos são explicados com muita adequação pela perspectiva
neoinstitucionalista, em muitos conflitos fundiários, tal como o que analisamos, os
conflitos não podem ser explicados por posições identificadas mecanicamente com
interesses de grupos ou classes sociais específicas da sociedade. Nestes casos a
defesa do direito à moradia, do meio ambiente, de bens imateriais (patrimônio
público), dos interesses indivisíveis, isto é, públicos no sentido econômico da
expressão aparecem com frequência no rol das justificativas que instigam a atuação
e a legitimação da atuação das agências estatais e das instituições sociais e
privadas envolvidas nesses processos;
18

3) Quando o Estado atua como uma arena ou um conjunto de instituições que


intermediam e recepcionam os interesses dos cidadãos e da sociedade em geral,
atravessada por uma diversidade de agentes individuais e coletivos, entre os quais
podem se destacar lideranças sociais, partidos políticos, organizações não
governamentais, movimentos sociais reivindicatórios de direitos de acesso à terra.
Esta situação é bem explicada pelas teorias pluralista que concebem o Estado como
uma arena de interesses diversificados onde os atores se alternam na definição de
pautas para a agenda pública, políticas (vale dizer, alocação de recursos públicos) e
legislação. Cada uma dessas dimensões envolvem agentes, instituições e conflitos
específicos com resultados decorrentes da configuração de sua combinação nos
processos específicos de regularização fundiária.

Por força desse entendimento e de forma a incorporar os diversos elementos


elencados por essas perspectivas, nossa opção epistemológica recairá numa
explicação cuja ênfase está nos aspectos cognitivos dos problemas públicos.
Acreditamos que o melhor rendimento dos diagnósticos dos paradigmas teóricos
clássicos e seus elementos destacados são subsumidos pela compreensão de que
os problemas públicos e a forma de atuação dos diversos agentes e agências nos
conflitos de natureza coletiva ocorre quando os confrontamos com a questão
relacionada à natureza mais universal e irredutível dos problemas públicos. Nosso
aporte teórico, parte da distinção entre problemas sociais e problemas públicos.
Estes últimos não têm uma origem que possa ser desvelada por evidências
exclusivamente empíricas, mas constituem objeto de intenso processo de imposição
de padrões cognitivos de definição e reivindicação de autoridade, poder e
consequente distribuição de responsabilidades sobre o problema entre os diversos
agentes envolvidos.

Nossa proposição analítica desse modo parte da combinação das perspectivas


estrutural-marxista, neoinstitucionalista e pluralista procurando potencializar seus
insights e descobertas à luz da compreensão abrangente de que não existem
problemas públicos em si, que sejam apodíticos ou auto evidentes. Problemas
públicos são todos aqueles definidos como tal pelos agentes envolvidos nas disputas
por esse status. Estado e instituições (partidos, sindicatos e associações diversas)
não agem senão por intermédio de seus interpretes que vocalizam os seus objetivos
e valores. Organizações não têm lógica imanente ou transcendente àquela expressa
19

pelos que agem em seu nome. Tal é o que explica segundo nossa perspectiva
particular, a ser defendida nesse trabalho, as contradições e as mudanças de
objetivos e metas organizacionais observadas numa perspectiva histórica mais
ampla de qualquer instituição considerada. Instituições mudam porque mudam os
atores que lhes dão vida e que modificam seus objetivo e seu modus operandi a
cada gestão. Isto, naturalmente, não ocorre no contexto de plena liberdade, e sim no
contexto de uma estrutura cognitiva, isto é, interpretativa que constrange as
possibilidades de ação dos agentes e instituições.

Acreditamos que uma boa forma de aproximarmos do entendimento dos cursos


dinâmicos das ações sociais pelo direito ao solo, em particular do solo urbano, exige
um aproveitamento destes aportes teóricos na medida em que revelam cada um,
com a sua devida ênfase, as diferentes formas e os diferentes pesos para ponderar
a atuação dos principais atores e agentes no conflito fundiário nacional brasileiro.
Não partimos, portanto, de uma posição teórica cética que ao enfatizar
monoliticamente um compromisso que escapa à análise científica sem preconceitos
e resvala no discurso ideológico insiste na origem unívoca dos problemas fundiários
brasileiros. Tampouco, defendemos um ecletismo teórico que não pondera as
diferentes epistemologias e suas histórias. Defendemos isto sim, a apropriação
crítica e sem preconceitos dos rendimentos teóricos diferenciados que nos ajudarão,
cremos, a entender o emaranhado de ações sociais, institucionais e legislativas que
colocam em evidência problemas que não devem ser e não podem ser
compreendidos dogmaticamente. Desse ponto de vista, nossa se concentrará nos
processos cognitivos que informam a construção dos problemas relacionados aos
usos do solo urbano enquanto um problema público, i.e., como um problema que
emerge na esfera de atuação das instituições públicas estatais e privadas como
objeto de regulação, legislação e controle.

Para responder aos problemas de nossa pesquisa e alcançarmos os objetivos


do presente trabalho a tese está organizada em quatro capítulos, além dessa
introdução e das considerações finais, descritos a seguir:

O primeiro capítulo versará sobre o direito de propriedade no Brasil, no qual


além de uma contextualização histórica, far-se-á uma análise dos bens públicos sob
a perspectiva da dogmática jurídica, tratando inclusive de seu regime jurídico; o
papel do plano diretor e a construção das cidades pós Constituição Federal de 1988.
20

Para o enfrentamento destes temas, partimos principalmente da perspectiva


teórica apresentada por Sérgio Buarque de Hollanda, Laura Beck Varela, Ruy Cirne
Lima, Raymundo Faoro, Dirley Cunha Junior, Marçal Justen Filho, Luis Roberto
Barroso e José dos Santos Carvalho Filho.

O capítulo segundo abordará brevemente o direito à moradia e a regularização


fundiária no Brasil pós Estatuto da Cidade; a tradição e a experiência legislativa
brasileira e seus esforços de regulação e enfrentamento dos conflitos fundiários; a
função social da propriedade e o direito à moradia estabelecido pela Constituição de
1988; o direito à moradia e a legislação internacional; o Estatuto da Cidade; a função
social da posse; a regularização fundiária e seus instrumentos.

O segundo capítulo possui como principais aportes teóricos Selsnick e Nonet,


Orlando Gomes, Diguit, Di Pietro, Canuto, Sarlet, dentre outros.

O capítulo terceiro apresenta as perspectivas teóricas para a compreensão da


construção da regularização fundiária, enquanto problema público. Para efeitos
analíticos, agrupamos os diferentes autores, segundo a ênfase conferida aos
diversos fatores intervenientes nos problemas e conflitos de natureza social:
estruturais, institucionais, culturais e cognitivos. Foram utilizados neste capítulo os
seguintes autores: Marx, Engels, Harvey, Poulanzas, Claus Offe, Parsons, Smelser,
Dahl, Skocpol, Olsen, March, Evans, Rueschemeyer, Katzeinstein, Gershenkron,
Berger, Luckman e Gusfield, dentre outros.
O capítulo quarto, analisa o conflito fundiário que ilustra como veremos, a
configuração da atuação dos agentes públicos envolvidos, a saber, Estado,
sociedade civil organizada e empreendedores capitalistas e como consequência
demonstram que a natureza do conflito e a sua modelagem institucional e política.

Para fazer a seleção do conflito que envolve as disputas em torno da ocupação


da área do Jardim Botânico do Rio de Janeiro levou-se em consideração sua
capacidade de ilustrar as dimensões destacadas nas abordagens conceituais
utilizadas como referência neste trabalho. De forma sintética, a valorização ou o
potencial de valorização econômica do solo em que está inserida geograficamente
na Cidade do Rio de Janeiro, e a importância e o destaque político dos atores
mobilizados em cada uma das posições envolvidas no conflito em torno da sua
ocupação territorial, com ampla cobertura e vocalização pela mídia dos interesses
nesse processo de regularização fundiária (e que se encontra em curso na
21

Secretaria do Patrimônio da União) justificam a nossa escolha.

Conforme documentos históricos, a ocupação da área do Horto Florestal, hoje


pertencente à União Federal, data da primeira década do século XIX. No mesmo ano
da chegada da Corte Portuguesa ao Brasil (1808), D. João VI desapropriou o
Engenho de Nossa Senhora da Conceição da Lagoa, de propriedade de Rodrigo de
Freitas, para a construção de uma fábrica de pólvora. Em 1811, foram erguidas vilas
para a instalação dos trabalhadores da fábrica, em virtude de o local ser considerado
de difícil acesso. Com a transferência da fábrica para Raiz da Serra, aos pés da
serra de Petrópolis, a área foi desmembrada e alienada, sendo muitas casas de
antigos funcionários cedidas, já no século XX, a funcionários do Jardim Botânico.
Assim, gerações de famílias de funcionários e descendentes de funcionários da
antiga fábrica e do Jardim Botânico construíram uma comunidade nos arredores do
parque, com autorização (formal e informal) das diversas administrações do Jardim
Botânico.

Atualmente, segundo levantamento realizado pela Faculdade de Arquitetura e


Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FAU/UFRJ), a área é
ocupada por 621 famílias essencialmente de baixa renda, formada, em sua maior
parte, por pessoas idosas, sendo também ocupada por instituições como o Serviço
Federal de Processamento de Dados (SERPRO), Light Serviços de Eletricidade S/A
(LIGHT), Tribunal Regional Eleitoral (TER), Empresa Brasileira de Pesquisa
Agropecuária (EMBRAPA) e Escola Municipal Júlia Kubitschek.
Nas considerações finais será levado a efeito uma análise comparativa do
material empírico e apresentadas às questões que tangenciam a elaboração de
políticas públicas na área da regularização fundiária e finalmente apresentada a
conclusão.

Tendo em vista a natureza interdisciplinar do trabalho, faz-se necessária a


adoção de vários métodos e procedimentos metodológicos. De uma forma geral, o
trabalho adota metodologicamente o paradigma construtivista (SAUTU et al., 2005).
Tal opção se justifica em razão da análise da regularização fundiária não poder ser
limitada às considerações jurídico-normativas, sendo necessário o auxílio de outras
fontes das ciências sociais, que demandam o estudo analítico-sintético, mediante
exaustiva pesquisa bibliográfica e legislativa sobre os temas expostos, bem como
levantamento dos dados, relatórios, pareceres, consultorias, e toda sorte de registros
22

produzidos pelas instituições envolvidas no processo de regularização fundiária na


Comunidade do Horto. Análise das falas dos atores envolvidos no processo de
regularização fundiária complementam o conjunto de recursos metodológicos
utilizados no trabalho.

Além disso, para atingir os objetivos do presente trabalho, adotou-se o método


de estudo de caso, o que permitirá a adoção de enfoque exploratório e descritivo,
atentando-se para as novas dimensões que irão surgir, conforme ressaltam Alves-
Mazzotti e Gewandsznajder (1999, p. 147), tendo em vista que “o foco e o design do
estudo não podem ser definidos a priori, pois a realidade é múltipla, socialmente
construída em uma dada situação e, portanto, não se pode apreender seu
significado se, de modo arbitrário e precoce, a aprisionarmos em dimensões e
categorias.” Concluindo, os autores ressaltam que “o foco e o design devem, então,
emergir, por um processo de indução, do conhecimento do contexto e das múltiplas
realidades construídas pelos participantes em suas influências recíprocas”.
As questões envolvendo o emaranhado de instituições envolvidas na
regularização fundiária em terras públicas, a efetividade dos instrumentos para
viabilizá-la e os determinantes para os entraves se afiguram questões extremamente
importantes no âmbito do desenvolvimento urbano e estão todas elas representadas
de maneira típica no caso escolhido.
A nosso ver, a regularização fundiária como ação curativa, se insere no uso do
espaço urbano como instrumento de justiça social, onde deverá prevalecer o
interesse metaindividual para que se consiga diminuir as desigualdades sócio-
espaciais.
Nessa perspectiva, o presente estudo pretende contribuir para a área de
planejamento urbano, relativamente à condução de políticas públicas para a
regularização fundiária, permitindo o uso justo do espaço público e a construção de
um modelo de desenvolvimento que não reproduza desigualdades e reforce a
especulação imobiliária.
23

2 DIREITO DE PROPRIEDADE NO BRASIL: RAÍZES DA


DESIQUALDADE

As cidades brasileiras são marcadas por flagrantes desigualdades sociais, que


encontram origem no dogma do direito absoluto de propriedade, não só na esfera
privada como na esfera pública, onde bens pertencentes ao Estado geralmente não
são utilizados para construção de uma sociedade mais justa e igualitária.
O modo capitalista de produção ao mercantilizar a terra, passa a incorporá-la
no processo de acumulação de capital. Como acentua Santos Junior (2011, p. 74),
tomando como referência David Harvey (1980), pode-se perceber a questão do uso
do solo/habitação, sob o prisma da existência de um “conflito entre a mercantilização
e a desmercantilização da habitação e do solo urbano”, levando-se em consideração
o valor de uso e o valor de troca da terra, o que envolveria, além das formas de
apropriação objetiva da cidade, as formas de representação da mesma, incluindo as
definições relativas a esfera jurídica.
Neste contexto, a compreensão da disputa de classes na cidade demandaria
um olhar sobre a própria evolução e o tratamento legislativo dado à propriedade,
fazendo-se ainda necessário no escopo do trabalho compreender o regramento
dado aos bens públicos e a utilização dos planos diretores na construção das
cidades.
O capítulo que se inicia tem por conteúdo a breve abordagem sobre o direito de
propriedade, onde se percebe a matriz do patrimonialismo brasileiro, passando
posteriormente a análise dos bens públicos no ordenamento jurídico brasileiro e
finalmente realça a relevância do plano diretor na construção das cidades pós
Constituição Federal de 1988.

2.1 Contextualização histórica sobre o direito de propriedade no


Brasil
Desde o seu descobrimento, o Brasil enfrenta problemas em relação a sua
estruturação decorrente da colonização portuguesa. A ocupação do Brasil pelos
portugueses, conforme acentua Buarque de Holanda (2009), sempre foi realizada de
maneira desordenada, tanto que equiparada a ação de um semeador, enquanto que
a colonização espanhola na América, dotada de maior organização é equiparada a
24

ação de ladrilhador na organização e construção dos núcleos urbanos. O que se


pretendia em nossos primórdios era a simples exploração comercial, contendo a
povoação no litoral.
Por ocasião do descobrimento, vigorou no Brasil o regime sesmarial que
integrava o ordenamento jurídico de Portugal e segundo Varela (2005, p. 24), em
Portugal, o instrumento

Consistia a sesmaria, basicamente, na atribuição de bens incultos – porque


abandonados ou por nunca terem sido cultivados – a determinada pessoa,
com o encargos de os aproveitar, dentro de prazo fixado na Lei ou na carta
de adjudicação. Assim, fomulava-se uma resposta jurídica à crise agrícola e
demográfica, à falta de braços e de alimentos, mediante a imposição do
dever de lavrar a terra e das demais restrições referentes aos
trabalhadores.

Merece relevo, conforme informa Varela (2005), que quando da aplicação da


legislação sesmarial no Brasil, a mesma já estava em desuso em Portugal, mas em
nosso território teria longa duração e passaria a integrar a estrutura de todo o
sistema territorial, instrumentalizando as concessões de terras feitas pela Coroa aos
particulares, que seriam fundamentais para a formação da propriedade privada em
nosso país.
No Brasil, inicialmente as terras integravam o patrimônio da Coroa e somente
posteriormente passaríamos a ter a concepção da propriedade privada moderna.
Em que pese o seu desuso em Portugal, opta-se pela aplicação do instrumento
no Brasil, adaptando-o para a exigência de atender aos interesses da metrópole,
ressaltando Varela (2005, p. 76-77):

A inversão semântica operada na colônia, onde o vocábulo “sesmeiro”


passa a indicar aquele que é concessionário de terras de sesmaria, e não o
distribuidor e fiscal das terras concelhias lusitanas, é como um reflexo, no
plano linguístico, das alterações de fundo que acometem o instituto. A
escolha da fórmula jurídica encobre ainda, a exclusão a priori da população
indígena local que pudesse estar ocupando o espaço: “terras virgens”
significam, com mais exatidão, virgens de anterior ocupação portuguesa.

Portugal ao aplicar o regime sesmarial no Brasil alinha-se ao movimento que


orienta as metrópoles européias em relação às suas colônias na América, no sentido
de atender à demanda por mercadorias, estruturando o latifúndio, que vai estruturar
a agricultura voltada à exportação e a utilização do regime escravocrata, como
ressaltado por Varela (2005). O escravo chega a ter mais valor do que a terra. As
25

sesmarias buscavam o aproveitamento da terra, através do cultivo e pagamento do


dízimo à Ordem de Cristo, mas efetivamente a fiscalização era absolutamente falha
por parte da metrópole e ocorriam muitos favorecimentos com relação à dimensão
das sesmarias. A sesmaria se caracteriza como um privilégio revestido de obrigação
de explorar/cultivar a terra com a possibilidade de reversão à Coroa, constituindo-se
inegável instrumento de preferência para aqueles que efetivamente tivessem
condições de atender aos interesses dos detentores do poder.
As sesmarias foram suspensas em 1822, quando a economia cafeeira estava
em expansão e se buscava organizar a propriedade privada e a mercantilização da
terra, o que vai se consolidar com a Lei de Terras e o Código Civil de 1916, mas até
que tal ocorra acentua Cirne Lima (1954), que vigorou “o regime das posses”.
A segunda metade do século XIX demarca o processo de introdução das
relações capitalistas na América Latina e no Brasil passa-se a estruturar a
propriedade privada absoluta e a mercantilização da terra, que guarda relação direta
com a crise do trabalho escravo que passa a ser combatido1.
Finalmente em 18 de setembro de 1850, foi editada a Lei nº 601, a chamada
Lei de Terras, posteriormente regulamentada pelo Decreto Imperial nº 1.318/1854,
que segundo Varela (2005), “procurará, fundamentalmente, conferir um estatuto
jurídico à propriedade privada, adequando-a às novas exigências econômicas, além
de fomentar a colonização”.
Em relação à Lei de Terras, entende Faoro (1995), que “o estatuto corresponde
à tendência político-econômica dos meados do século XIX, desenfeudando a
propriedade ao mercantilizá-la, com a redução a valor monetário, transmissível e
avaliável”.
Inspirados pela ideologia liberal, o Brasil passa a importar a idéia do direito de
propriedade como algo absoluto, exclusivo e inviolável, construindo o paradigma
individualista para atender aos interesses econômicos2. Bandeira de Mello (2008, p.
904-905), descreve que a Lei de Terras e seu regulamento, sintetizam o primeiro
grande processo de regularização da propriedade fundiária dos particulares ocorrido
no Brasil, através das seguintes providências:

1
Neste período é editada a Lei nº 581/1850, que estabelecia medidas para a repressão do tráfico de africanos no
Império.
2
O art. 17, da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, assim preceitua: Como a propriedade é um
direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser privado, a não ser quando a necessidade pública legalmente
comprovada o exigir e sob condição de justa e prévia indenização.
26

a) Consideraram como de per si titulados tanto os sesmeiros e


concessionários que cumpriram regularmente suas obrigações ou haviam
sido delas dispensados por ato competente quanto os que tinham havido
suas terras de particulares mediante “título legítimo”, considerando-se como
tais quaisquer atos então hábeis para translação de domínio, desde que o
imposto de transmissão houvesse sido pago, ainda que ou outorgantes
houvessem sido sesmeiros ou concessionários inadimplentes ou mesmo
simples posseiros. O mesmo se admitiu em relação a companhias
colonizadoras que haviam medido e demarcado tempestivamente as terras;

b) deferiram legitimação a primeiros ou segundos ocupantes das terras, se


nelas houvesse cultura ou princípio de cultura e moradia habitual do
posseiro ou seu representante, bem como aos que as adquiriram de
primeiro ocupante que as tenha possuído até a data do regulamento e as
alienou sem tirar o título a que aludia o art. 11 do referido diploma e ainda
aos que as houveram, por compra e venda ou doação do primeiro ocupante
e pagaram o imposto de transmissão após a publicação do regulamento;

c) deferiram revalidação a atos concessivos caducos quando, embora


descumpridas as condições de outorga, ainda estivessem em poder dos
primeiros sesmeiros ou concessionários e nelas houvesse cultura ou
princípio de cultura e morada habitual dos beneficiários ou representantes
seus.

O Código Civil de 1916 consagra o ideário liberal em relação ao direito de


propriedade, caracterizando de maneira indelével o individualismo, ao assentar no
artigo 524, que “a lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de
seus bens e reavê-los do poder de quem quer que injustamente os possua”.
A formação do direito de propriedade no Brasil afigura-se deveras tortuosa, pois
os bens deixam de ostentar a titularidade do poder público e passam a poucos
particulares, de modo a atender ingerências econômicas capitaneadas pela ideologia
liberal com o fim da era escravocrata, mas o que se evidencia de mais relevante
para nosso aprofundamento de análise é a compreensão de que a lei passa a se
constituir em poderoso instrumento para a construção da legalidade/ilegalidade na
questão fundiária.

2.2 Os bens públicos no ordenamento jurídico brasileiro


A compreensão da regularização fundiária em terras públicas demanda
inicialmente, que seja compreendido, o que efetivamente sejam os bens públicos.
Gasparini (2008, p. 865) considera que bens públicos “são todas as coisas materiais
ou imateriais, pertencentes às pessoas jurídicas de Direito Público e as pertencentes
a terceiros quando vinculadas à prestação de serviço público”.
Em que pese serem regidos pelas normas de direito público, os bens públicos
ganham ainda definição no artigo 98, do Código Civil, que dispõe, que “são públicos
27

os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público


interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem”.
Relativamente aos bens das empresas públicas e sociedades de economia mista,
que ostentam natureza jurídica de direito privado, a questão precisa ser focada sob
dois prismas, pois as mesmas podem ser prestadoras de serviço público ou
exploradoras de atividade econômica.
Caso os bens das empresas públicas ou sociedades de economia mista
prestadoras de serviço público estejam afetados a tal finalidade, devem ser
considerados bens públicos. Caso as empresas públicas ou sociedades de
economia mista se dediquem a exploração de atividade econômica, não estando
seus bens afetados à prestação de serviços públicos, os bens são considerados
privados, fazendo incidir a regra do inc. II, do § 1º, do artigo 173, da Constituição
Federal, que as submete ao regime jurídico das empresas privadas3.
A questão ganha relevo no universo da regularização fundiária, vez que tanto o
Supremo Tribunal Federal, quanto o Superior Tribunal de Justiça ostentam
precedentes que autorizam a usucapião de bens de empresas públicas e
sociedades de economia mista se dediquem a exploração de atividade econômica,
não estando seus bens afetados à prestação de serviços públicos4.
Dentre as diversas classificações de bens públicos, duas afiguram-se centrais
para a compreensão do presente trabalho e levam em consideração a titularidade e
a destinação. Essas classificações são importantes para estruturar o procedimento
da regularização fundiária em seu universo prático, permitindo ainda a identificação
do ente federativo diretamente envolvido e eventuais providências a serem adotadas
para a efetivação da política pública, inclusive o emprego dos instrumentos jurídicos
hábeis à titulação das áreas objeto da regularização.

- Quanto à titularidade
Considerando a titularidade, os bens públicos podem ser classificados em
federais, estaduais, distritais e municipais.

3
Art. 173. [...] II- a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e
obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários.
4
Como exemplos, STF, 2ª T. RE 398587/RS, j. 14/12/2009, DJ 02/02/2010, rel. Min. Carlos Ayres Britto e 2ª T.
RE 536297/MA, j. 16/11/2010, DJ 24/11/2010, relª. Minª. Ellen Gracie. STJ, 4ª T. REsp. 37906/RJ, j. 29/10/1997,
DJ 15/12/1997, rel. Min. Barros Monteiro; 4ª T. REsp. 120702/DF, j. 28/06/2001, DJ 20/08/2001, rel. Min. Ruy
Rosado de Aguiar e 3ª T. REsp. 647357/MG, j. 19/09/2006, DJ 23/10/2006, rel. Min. Castro Filho.
28

Relativamente aos bens federais, são aqueles que pertencem à União e estão
elencados principalmente nos artigos 20 e 176, da Constituição Federal5. Os bens
imóveis da União serão regidos principalmente pelo Decreto-lei nº 9.760/46, que
inclusive foi recentemente alterado pela Lei nº 11.481/2007 para disciplinar
procedimentos relativos à regularização fundiária de interesse social.
Os bens estaduais ou distritais, que são aqueles pertencentes aos Estados e ao
Distrito Federal, estão elencados principalmente no artigo 26, da Constituição
Federal6.
Os bens municipais, que são aqueles pertencentes aos Municípios, não estão
especificados na Constituição Federal, mas poderiam ser listados como todos
aqueles que são de interesse local, cuja titularidade não pertença à União, Estados
ou Distrito Federal.

- Quanto à destinação
O Código Civil apresenta a principal classificação dos bens públicos, tomando
em conta a destinação dos mesmos, na forma do artigo 997. Segundo o conceito
legal, os bens públicos apresentariam três modalidades, sendo a primeira, os de uso
comum, aqueles que podem ser utilizados de forma indistinta por toda a população,
desde que cumpridas as condições impostas por regulamentos administrativos. A

5
Art. 20 São bens da União: I - os que atualmente lhe pertencem e os que lhe vierem a ser atribuídos; II - as
terras devolutas indispensáveis à defesa das fronteiras, das fortificações e construções militares, das vias
federais de comunicação e à preservação ambiental, definidas em lei; III - os lagos, rios e quaisquer correntes de
água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou
se estendam a território estrangeiro ou dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais; IV
as ilhas fluviais e lacustres nas zonas limítrofes com outros países; as praias marítimas; as ilhas oceânicas e as
costeiras, excluídas, destas, as que contenham a sede de Municípios, exceto aquelas áreas afetadas ao serviço
público e a unidade ambiental federal, e as referidas no art. 26, II; V - os recursos naturais da plataforma
continental e da zona econômica exclusiva; VI - o mar territorial; VII - os terrenos de marinha e seus acrescidos;
VIII - os potenciais de energia hidráulica; IX - os recursos minerais, inclusive os do subsolo; X - as cavidades
naturais subterrâneas e os sítios arqueológicos e pré-históricos; XI - as terras tradicionalmente ocupadas pelos
índios. Art. 176. As jazidas, em lavra ou não, e demais recursos minerais e os potenciais de energia hidráulica
constituem propriedade distinta da do solo, para efeito de exploração ou aproveitamento, e pertencem à União,
garantida ao concessionário a propriedade do produto da lavra.
6
Art. 26 Incluem-se entre os bens dos Estados: I - as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e
em depósito, ressalvadas, neste caso, na forma da lei, as decorrentes de obras da União; II - as áreas, nas ilhas
oceânicas e costeiras, que estiverem no seu domínio, excluídas aquelas sob domínio da União, Municípios ou
terceiros; III - as ilhas fluviais e lacustres não pertencentes à União; IV - as terras devolutas não compreendidas
entre as da União.
7
Art. 99 São bens públicos: I - os de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e praças; II - os
de uso especial, tais como edifícios ou terrenos destinados a serviço ou estabelecimento da administração
federal, estadual, territorial ou municipal, inclusive os de suas autarquias; III - os dominicais, que constituem o
patrimônio das pessoas jurídicas de direito público, como objeto de direito pessoal, ou rela, de cada uma dessas
entidades. Parágrafo único. Não dispondo a lei em contrário, consideram-se dominicais os bens pertencentes às
pessoas jurídicas de direito público a que se tenha dado estrutura de direito privado.
29

segunda modalidade seriam os bens de uso especial, que são aqueles que possuem
uma finalidade específica e por fim teríamos os bens dominicais, que são aqueles
que não ostentam uma destinação específica, representando o patrimônio disponível
do Estado.
A lei determina que os bens públicos de uso comum do povo e os de uso
especial são inalienáveis, enquanto conservarem sua afetação8. Para que possam
ser alienados, faz-se necessário que seja realizada a desafetação do bem, que
consiste em retirar do mesmo a destinação que lhe fora anteriormente conferida.

2.2.1 Regime jurídico dos bens públicos


Classicamente, os bens públicos eram revestidos das características da
inalienabilidade, imprescritibilidade e impenhorabilidade.
Carvalho Filho (2009), esclarece com muita propriedade que existe um
equívoco em sustentar que os bens públicos se revestem de inalienabilidade, pois o
que de fato existe é uma alienabilidade condicionada, ou seja, a alienação é
permitida, desde que observadas as limitações impostas por lei.
O artigo 100, do Código Civil, preceitua que os bens públicos de uso comum e
os de uso especial, somente são inalienáveis enquanto conservarem a sua
qualificação e acentua no artigo 1019, que os bens públicos podem ser alienados,
nos termos da lei.
A toda evidência, existe a possibilidade de alienação de bens públicos,
conforme se infere do artigo 17, da Lei nº 8.666/93, que regula licitações de
contatos10.

A característica da imprescritibilidade impede que os bens públicos sejam


adquiridos por usucapião, ou seja, independentemente do tempo que seja exercida a
posse, o possuidor não fará jus à obtenção da propriedade. O ordenamento jurídico
consagra tal entendimento nos artigos 183, § 3º e 191, ambos da Constituição
Federal; bem como nos artigos 102, do Código Civil e 200, do Decreto-Lei nº

8
Art. 100. Os bens públicos de uso comum do provo e os de uso especial são inalienáveis, enquanto
conservarem a sua qualificação, na forma que a lei determinar.
9
Art. 101. Os bens públicos dominicais podem ser alienados, observadas as exigências da lei.
10
Art. 17. A alienação de bens da Administração Pública, subordinada à existência de interesse público
devidamente justificado, será precedida de avaliação e obedecerá às seguintes normas [...].
30

9.760/46, que regula o domínio público federal11.

A impenhorabilidade se traduz na impossibilidade de realizar a penhora12 sobre


bens públicos. Como os bens públicos não se sujeitam à penhora, para que sejam
satisfeitos créditos em face da Fazenda Pública, que não tenham sido honrados
voluntariamente, faz-se necessário observar o regime do Precatório e da Requisição
de Pequeno Valor (RPV), na forma do artigo 100, da Constituição Federal13.

2.2.2 O uso do bem público


Os bens públicos podem ser utilizados pelos próprios titulares, por outras
entidades públicas ou por particulares. O uso dos bens públicos se submete a
regimes diferenciados, ora sob os ditames do direito público, ora sob os ditames do
direito privado. Tratando-se de bens afetados, prevalecem as normas de direito
público e tratando-se de bens que não estejam afetados, o uso poderá ocorrer nos
termos do direito público e do direito privado, levando-se em consideração a
predominância do interesse público ou do interesse privado.
Cunha Júnior (2008), esclarece que os bens afetados, por estarem fora do
comércio jurídico de direito privado, só podem ser utilizados por particulares, através
de instrumentos de direito público e aí teremos a autorização, a permissão e a
concessão de uso.
Os bens que não estejam afetados, os chamados dominicais, em relação ao
seu uso podem ser utilizados instrumentos de direito privado, que abrange
principalmente a locação, o arrendamento, o comodato, a enfiteuse e o direito de

11
Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco
anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o
domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. [...] § 3º - Os imóveis públicos não
serão adquiridos por usucapião.
Art. 191. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos
ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinqüenta hectares, tornando-a
produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade.
Art. 102. Os bens públicos não estão sujeitos a usucapião.
Art. 200. Os bens imóveis da União, seja qual fôr a sua natureza, não são sujeitos a usucapião.
12
Penhora é ato de apreensão e depósito de bens ocorrido em processo judicial para utilizá-los na satisfação do
crédito executado, caso a obrigação não seja satisfeita de forma voluntária.
13
Art. 100. Os pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas Federal, Estaduais, Distrital e Municipais, em
virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e
à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e
nos créditos adicionais abertos para este fim. [...] § 3º O disposto no caput deste artigo relativamente à expedição
de precatórios não se aplica aos pagamentos de obrigações definidas em leis como de pequeno valor que as
Fazendas referidas devam fazer em virtude de sentença judicial transitada em julgado.
31

superfície.
O uso dos bens públicos, sob a égide do direito público, pressupõe a fixação de
regras pelo ente que detém a sua titularidade14. Temos como principais instrumentos
para transferência do uso do bem público para os particulares, a autorização de uso,
permissão de uso, concessão de uso, concessão de direito real de uso (CDRU),
concessão de uso especial para fins de moradia (CUEM) e cessão de uso.
A Autorização de uso consiste em ato administrativo unilateral, de natureza
discricionária, revestido de precariedade, através do qual a Administração Pública
consente na prática de determinada atividade individual incidente sobre um bem
público. Em regra, a autorização é concedida por período de curta duração.
A Medida Provisória nº 2.220/2001, em seu artigo 9º15, cria uma autorização de
uso relativa especificamente ao universo urbanístico, que diversamente da regra
geral não estará revestida de precariedade.
A permissão de uso se caracteriza como ato administrativo unilateral, de
natureza discricionária, revestido de precariedade, através do qual se transfere o
uso do bem público para particular usar continuadamente, atendendo-se interesses
público e privado.
Concessão comum de uso consiste em contrato administrativo, por meio do
qual a Administração Pública delega o uso de um bem público ao concessionário por
prazo determinado.
Temos ainda a concessão de direito real de uso consiste em contrato por meio
do qual a Administração Pública delega o uso do bem público para fins de moradia;
para fins industriais e para fins comerciais na forma do artigo 7º, do Decreto-Lei nº
271/6716.

14
Art.23, inc. I, da CF:É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: I- zelar
pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas e conservar o patrimônio público.
15
Art.9o É facultado ao Poder Público competente dar autorização de uso àquele que, até 30 de junho de 2001,
possuiu como seu, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, até duzentos e cinqüenta metros
quadrados de imóvel público situado em área urbana, utilizando-o para fins comerciais.
o
§ 1 A autorização de uso de que trata este artigo será conferida de forma gratuita.
o
§ 2 O possuidor pode, para o fim de contar o prazo exigido por este artigo, acrescentar sua posse à de seu
antecessor, contanto que ambas sejam contínuas.
§ 3o Aplica-se à autorização de uso prevista no caput deste artigo, no que couber, o disposto nos arts. 4o e 5o
desta Medida Provisória.
16
Art. 7o É instituída a concessão de uso de terrenos públicos ou particulares remunerada ou gratuita, por tempo
certo ou indeterminado, como direito real resolúvel, para fins específicos de regularização fundiária de interesse
social, urbanização, industrialização, edificação, cultivo da terra, aproveitamento sustentável das várzeas,
preservação das comunidades tradicionais e seus meios de subsistência ou outras modalidades de interesse
social em áreas urbanas.
32

Um dos mais importantes instrumentos para a regularização fundiária em terras


públicas é a concessão de uso para fins de moradia, prevista na Medida Provisória
nº 2.220/2001, apresentando as modalidades individual e coletiva, conforme
pressupostos estabelecidos nos arts. 1º e 2º, do referido diploma 17.
Por fim, para o uso dos bens públicos temos a cessão de uso, que é um
contrato administrativo através do qual se transfere o uso de bem público de um
órgão da Administração para outro na mesma esfera de governo ou em outra.
Além dos instrumentos de direito público, temos instrumentos de direito privado
que regulam o uso de bens públicos.
Inicialmente temos a enfiteuse ou aforamento, que é um instrumento através do
qual o Estado permite que ao particular o uso privativo de bem público a título de
domínio útil, mediante obrigação de pagar ao proprietário uma pensão ou foro,
correspondente a 0,6% do valor do domínio pleno do imóvel, estando regulada no
Decreto-Lei nº 9.760/46, no Decreto-Lei 2.398/87, no Decreto-Lei nº 1.876/81 na Lei
9.636/98 e Decreto nº 3.725/2001.
A enfiteuse envolvendo bem público não se confunde com a enfiteuse do direito
civil, que inclusive, não mais subsiste em nosso ordenamento jurídico, a teor do
caput, do artigo 2.038, do Código Civil18. Na enfiteuse, o domínio útil, que é o poder
de uso, gozo e disposição do imóvel, pertence ao enfiteuta ou foreiro, cabendo a
União apenas o domínio direto, que é uma parcela da dominialidade, excluído o
domínio útil.
O enfiteuta poderá transferir o domínio útil a terceiro, mediante o pagamento
em favor da União da parcela denominada de laudêmio, que incidirá no percentual
de 5% sobre o valor da transferência.
O direito de superfície é um instituto de direito privado, que se encontra no
Código Civil nos artigos 1.369 a 1.377, estando regulado ainda no Estatuto da

17
Art. 1o Aquele que, até 30 de junho de 2001, possuiu como seu, por cinco anos, ininterruptamente e sem
oposição, até duzentos e cinqüenta metros quadrados de imóvel público situado em área urbana, utilizando-o
para sua moradia ou de sua família, tem o direito à concessão de uso especial para fins de moradia em relação
ao bem objeto da posse, desde que não seja proprietário ou concessionário, a qualquer título, de outro imóvel
urbano ou rural. [...] Art. 2o Nos imóveis de que trata o art. 1o, com mais de duzentos e cinqüenta metros
quadrados, que, até 30 de junho de 2001, estavam ocupados por população de baixa renda para sua moradia,
por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível identificar os terrenos ocupados por
possuidor, a concessão de uso especial para fins de moradia será conferida de forma coletiva, desde que os
possuidores não sejam proprietários ou concessionários, a qualquer título, de outro imóvel urbano ou rural.
18
Art. 2.038. Fica proibida a constituição de enfiteuses e subenfiteuses, subordinando-se as existentes, até sua
extinção, às disposições do Código Civil anterior [...].
33

Cidade nos artigos 21 a 24, constituindo-se como a concessão feita pelo proprietário
para que outrem (superficiário) possa utilizar, no mínimo, a superfície de seu imóvel
na forma convencionada em contrato. O Poder Público, mediante autorização
legislativa, poderá conceder o direito de superfície ao particular, constituindo-se esta
uma modalidade de uso do bem público19.
Outra modalidade de uso de bem público é a locação que se traduz no contrato
pelo qual o proprietário-locador transfere a posse direta do bem ao locatário, que se
obriga a pagar um aluguel pelo período contratado. Destaca Carvalho Filho (2009, p.
1124), que a licitação será dispensada para a “locação de imóveis residenciais ou de
comercial no âmbito local com área de até 250 m², quando resultar de programas
habitacionais ou de regularização fundiária de interesse social a carga de órgãos
administrativos”.
Existe ainda a possibilidade do Poder Público se utilizar do contrato de
comodato para permitir o uso de bens públicos, que nos termos do artigo 579, do
Código Civil é o empréstimo gratuito de coisas não fungíveis, que se perfaz com a
entrega do objeto. Ressalta Carvalho Filho (2009), que é recomendável que o Poder
Público se utilize da concessão gratuita de uso de bem público, por ser uma forma
de direito público, mas nada obsta que seja empregado o comodato.
Com muita propriedade pondera Justen Filho (2010, p. 1045), que os bens
públicos demandam uma nova concepção norteada pelos direitos fundamentais,
onde “o tratamento do instituto do bem público deve ser norteado pelo enfoque da
supremacia e indisponibilidade dos direitos fundamentais. Isso significa afastar
concepções tradicionais, que fundavam em pressupostos incompatíveis com a
ordem constitucional”.
Justen Filho (2010) assevera que o direito administrativo continua a considerar
os bens públicos como “patrimônio sagrado”, frustrando a “utilização instrumental
para satisfação das necessidades humanas”, desprezando que os mesmos devem
ser utilizados como para a promoção dos direitos fundamentais.
A Constituição Federal em seu artigo 1º20 apresenta os cinco fundamentos da

19
Código Civil. Art. 1.377. O direito de superfície, constituído por pessoa jurídica de direito público interno, rege-
se por este Código, no que não for diversamente disciplinado em lei especial.
20
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito
Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a
cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o
pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes
eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
34

organização do Estado Brasileiro e certamente dois deles vão estar relacionados


com o direito à moradia digna, que inclusive pressupõe a utilização dos bens
públicos para atendê-los. A cidadania e a dignidade da pessoa humana como
fundamentos da organização do Estado Brasileiro, conjugadas com os objetivos
fundamentais insculpidos no artigo 3º, do texto constitucional21, permite uma releitura
da utilização dos bens públicos para o atendimento das demandas sociais
crescentes, principalmente no campo da moradia digna.
Em que pese o modo de produção capitalista consagrado pelo Estado
Brasileiro, indissociável observar os objetivos fundamentais defendidos por esse
mesmo Estado, quando corporificado em texto constitucional, que busca a
construção de uma sociedade livre, justa e solidária, na qual serão empreendidos
esforços para a erradicação da pobreza e da marginalidade, que por certo
demandam o emprego de bens públicos primordialmente para a consecução da
justiça social.

2.3 O plano diretor e a construção das cidades pós Constituição


Federal de 1988
O artigo 23, da Constituição Federal de 1988, preceitua que compete ao
Município, juntamente com a União, os Estados e o Distrito Federal, zelar pela
conservação do patrimônio público; proteger as obras e outros bens de valor
histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os
sítios arqueológicos; proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer
de suas formas; preservar as florestas, a fauna e a flora.
Por outro lado, em seu artigo 30, a Constituição Federal de 1988, dispõe que o
Município ostenta competência exclusiva para legislar em assuntos de interesse
local.
Dentre os inúmeros instrumentos jurídicos disponíveis para que o Município na
qualidade de ente federativo desempenhe suas atribuições, o plano diretor se
apresenta como aquele de relevo para se levar a efeito o desenvolvimento urbano.
Não estamos atribuindo nenhum poder sobrenatural ao plano diretor, mas

21
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre,
justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as
desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor,
idade e quaisquer outras formas de discriminação.
35

apenas revelando que novas possibilidades de debatem se abrem com a sua


formulação pela via democrática na forma de imperativo constitucional.
O Plano Diretor encontra-se previsto no § 1º, do artigo 182, da CF/88 e
regulamentado nos artigos 39 usque 42, da Lei 10.257/01 (Estatuto da Cidade),
sendo instrumento principal para o planejamento urbano por definir a política de
desenvolvimento e expansão urbana.
Ao inserir no âmbito constitucional o plano diretor no capítulo relativo à política
urbana, a Constituição Federal, inegavelmente em virtude da atuação dos
movimentos sociais, procedeu a revalorização da prática do planejamento urbano no
Brasil, ainda que esse talvez não tivesse sido o seu desejo inicial, que foi ainda mais
evidenciada com o advento do Estatuto da Cidade, que principalmente através da
figura do plano diretor participativo, fortaleceu o ativismo democrático, onde se
buscou reforçar a participação popular, para que se possa chegar ao entendimento
de que a cidade pertence indistintamente à todos os cidadãos e não apenas aos
técnicos e burocratas.
O plano diretor passou a ser encarado como instrumento capaz de viabilizar a
reforma urbana e promover o desenvolvimento, inclusive para Municípios de
pequeno e médio porte, conforme destacam Leal de Oliveira e Biassoto (2011, p.
57):
Uma das grandes expectativas em relação aos planos diretores aprovados
após o Estatuto da Cidade se concentrava na possibilidade de intervenção
pública no processo de desenvolvimento urbano, especialmente no que se
refere à promoção do acesso à moradia. A regulamentação, nos planos
diretores, dos instrumentos voltados para a ocupação de áreas vazias ou
subutilizadas, a captura e redistribuição da valorização fundiária gerada por
investimentos públicos, a regularização fundiária e a reserva de área para
habitação de interesse social, entre outros, representava novas
possibilidades de democratização do acesso às áreas com boas condições
de moradia.

Até o advento da Constituição de 1988, sob o prisma jurídico não era


obrigatória a elaboração do plano diretor. O texto constitucional, não só determinou a
obrigatoriedade da confecção de Planos Diretores para cidades com mais de 20.000
mil habitantes, como também determinou que a elaboração dos mesmos não poderá
prescindir da participação popular na forma o inc. XII, do artigo 29, fazendo emergir
uma nova forma normativa, ainda pouco estudada como instrumento de participação
popular na construção da cidadania ativa, em detrimento a cidadania minorada,
onde o Estado é o grande tutor do “agir” cidadão.
36

Em que pesem eventuais entendimentos contrários, ao inserir no âmbito


constitucional a obrigatoriedade dos planos diretores participativos, a Constituição de
1988 atuou tanto no sentido de atualizar uma gestão integrada entre os entes
federativos, com destaque para o Município, como indicou uma metodologia
forçosamente democrática. Tal imperativo implica em pelo menos três importantes
desdobramentos:
1) o foco no Município, enquanto ente federativo crucial e determinante para uma
atualização das políticas públicas, convalidando o interesse local como mola mestra
para a efetividade dos projetos de desenvolvimento urbano;
2) um salto qualitativo no ideal de gestão pública, passando a União a estipular
critérios gerais a serem aferidos segundo uma metodologia expressa – o que implica
em trazer para a legislação uma outra dicção, próxima dos modelos empresariais;
3) a utilização das ferramentas democráticas para promover uma participação mais
ampla dos cidadãos, mobilizando uma transformação política, que implica em alterar
a cidadania tutelada por uma cidadania ativa e, via de conseqüência, criar condições
para a formação de um controle público voluntário da gestão.

O lema ambiental “Pensar globalmente, agir localmente” avançou pelas


metodologias multidisciplinares e hoje serve para referendar ações em diferenciados
campos, como o do planejamento urbano territorial. Não fosse também a
compreensão de ambiente tomada já em sentido complexo e impossível afastar
direito urbanístico de direito ambiental, sendo aquele uma espécie deste.
Todavia, a tradição democrática dos Municípios brasileiros sempre demonstrou
um caráter muito mais centralizador e conivente aos interesses particulares do que a
expressão da participação popular e do interesse coletivo. Essas características
históricas consagram o quadro social de injustiça das nossas cidades, onde a
necessária implementação de políticas públicas se dá, muitas das vezes, de forma
verticalizada, ineficiente e inadequada à realidade local, em decorrência dessa
tradição. A reversão desse quadro requer observar caminhos que possibilitem a
efetividade das políticas publicas e não sua mera existência; e requer formas que as
viabilizem dentro do contexto local que serão implementadas em sincronia com o
regional, o nacional e o global.

O Município deixa de ser o ente federativo tímido e dependente, passando a


37

atuar sob a égide da performance e da eficiência empresariais, julgados seus


exercícios agora a partir de metas e objetivos alcançados e da capacidade de auto-
sustentabilidade de seus programas e projetos.

O Município, e mais ainda, o munícipe, encontra-se numa situação ímpar, de


ser focado como o centro da ação universal, a partir da qual a realidade se constrói e
recebe consistência e as políticas ganham em consistência e em efetividade.

Instrumentos de participação democrática podem ser conjuntamente


implementados, fortificados e efetivados como condição indispensável, não apenas
para legitimação, mas também para a efetivação e eficiência das políticas públicas.
De forma que estes instrumentos não apenas deliberem e consultem como também
fiscalizem e eduquem, viabilizando maior controle das verbas públicas pela
população para que o andamento de políticas e programas não seja prejudicado por
desvios e corrupção. Participação popular e políticas públicas devem andar juntas.

As ações de investimento nas cidades, ou seja, as políticas públicas em todos


os seus aspectos podem, assim, ser conduzidas em consonância com os planos
diretores e estratégicos de desenvolvimento das cidades e no caso da ausência
destes planos, estes passam a ser políticas públicas prioritárias. Isso quer dizer que
a implementação das políticas deve observar formas de solucionar os problemas
sociais e prover a qualidade de vida por ações ambientalmente adequadas, como
reorientação do fluxo migratório no plano regional e vetorização do crescimento
urbano no plano local, buscar equidade na concessão e acesso aos equipamentos
urbanos e implementar ações que fortaleçam a integração regional e o respeito aos
direitos difusos.

A obrigatoriedade para que elaborem Plano Diretor apenas municípios com


mais de 20.000 habitantes; integrantes de regiões metropolitanas e aglomerações
urbanas; onde o Poder Público municipal pretenda utilizar os instrumentos previstos
no § 4º, do artigo 182, da Constituição Federal; integrantes de áreas de especial
interesse turístico; inseridas na área de influência de empreendimentos ou
atividades com significativo impacto ambiental de âmbito regional ou nacional; não
se afigura imune à criticas, pois o Brasil é uma país de dimensões continentais e
muitos municípios não se encontram inseridos nas hipóteses acima, mas nem por
isso deixam de apresentar necessidade para que se ordene o caos urbano, ainda
mais que a taxa de urbanização, que é a proporção de população urbana sobre a o
38

população total, nos anos sessenta evidenciava que o Brasil era um país
eminentemente agrícola com a referida taxa no percentual de apenas 44,7%. No
início dos anos 1980, a taxa era de 67,6% e no Censo Demográfico 2.000 do IBGE,
o percentual era de 81,2%.
Por atribuição da Constituição Federal no capítulo da política urbana, compete
ao plano diretor estabelecer as condições para que a propriedade atenda sua função
social, o que é reforçado no artigo 39, do Estatuto da Cidade. Considerando a
fragilidade do federalismo brasileiro, em especial o papel desempenhado pelas
oligarquias e grupos de interesses que atuam em nossos Municípios, principalmente
na iminência dos chamados megaeventos que “inundam” diversas cidades do Brasil,
a obrigatoriedade de elaboração de planos diretores participativos, afigurar-se-ia
medida extremamente prudente, mas efetivamente essa não vem sendo essa a
opção do Poder Legislativo.
O Estatuto da Cidade, recentemente foi alterado para incluir no rol de cidades
obrigadas a elaboração do plano diretor, aquelas “incluídas no cadastro nacional de
Municípios com áreas suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de grande impacto,
inundações bruscas ou processos geológicos ou hidrológicos correlatos”, conforme
dispõe a Lei nº 12.608/2012, mas ainda assim a obrigação de elaboração de plano
diretor participativo, não contempla a realidade nacional, pois temos mais de 5.500
municípios e aproximadamente 70% deles tem menos de 20.000 habitantes, estando
portando excluídos do principal critério quantitativo que levaria à obrigação de
confecção compulsória do plano diretor.
O Supremo Tribunal Federal, ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade
nº 826-9, infelizmente firmou entendimento, que não cabia ao Estado membro
obrigar Município com mais de 5.000 habitantes a elaborar plano Diretor:

DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. MUNICÍPIOS COM


MAIS DE CINCO MIL HABITANTES: PLANO DIRETOR. ART. 195,
“CAPUT”, DO ESTADO DO AMAPÁ. ARTIGOS 25, 29, 30, I E VIII, 182, § 1º,
DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E ART. 11 DO A.D.C.T.
1. O “caput” do art. 195 da Constituição do Estado do Amapá que
estabelece que o “plano diretor, instrumento básico da política de
desenvolvimento econômico e social e de expansão urbana, aprovado pela
Câmara Municipal, é obrigatório para os Municípios com mais de cinco mil
habitantes”.
2. Essa norma constitucional estadual estendeu, aos municípios com
número de habitantes superior a cinco mil, a imposição que a Constituição
Federal só fez àqueles com mais de vinte mil (art. 182, § 1º).
3. Desse modo, violou o princípio da autonomia dos municípios com mais
de cinco mil e até vinte mil habitantes, em face do que dispõem os arts. 25,
39

29, 30, I e VIII, da C.F. e 11 do A.D.C.T.


4. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada procedente, nos termos do
voto do Relator.
5. Plenário: decisão unânime.” (STF – Ac. unân. Trib. Pleno – j. 17-09-
1998 – Rel. Min. SYDNEY SANCHES)

São leituras formais sobre um conteúdo que extrapola a percepção do


Judiciário? Possivelmente. Não se trata certamente de forçar o Município pequeno a
participar, sem condições, de uma lógica imposta. Trata-se de anunciar para esse
mesmo Município que mudaram os horizontes e que uma nova corrida expansionista
e colonizadora se iniciou e que irão dominar os mais aptos e mais articulados, o que
sob a égide da participação democrática, poderia permitir uma significativa alteração
do modelo de planejamento urbano que atualmente pauta nossas cidades.
Como adverte Barroso (1996, p. 105), por ser uma Carta eminentemente
política, que procura transformar o poder político em poder jurídico, a Constituição
merece uma leitura sem rigor formal excessivo, devendo-se sempre atentar para a
mens legis e a partir desse ponto tentar aplicar o conceito de forma a atender aos
interesses municipais.
Desse modo, temos uma mudança conceitual importante, que se expressa no
fato de que as normas constitucionais atuam de maneira programática, constituindo
em si antes um projeto de país, que se consuma a partir de diretrizes e princípios
assinalados. Dessa maneira, reforçar o aspecto do planejamento como estrutura
sistemática a ser permanentemente elaborada (o Plano Diretor, efetivamente, na
dicção do Estatuto da Cidade, deve ser revisto, no mínimo, a cada dez anos) é
emprestar à juridicidade caráter mais prático que dogmática, apontando para uma
necessária visão relativizada do ordenamento jurídico, doravante em estreito abraço
com a interdisciplinaridade em sua permanente exegese.
Se por um lado a Constituição Federal define o plano diretor como “instrumento
básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana”, por outro, temos
como inegável a flexibilidade da conceituação do que efetivamente venha a ser
“desenvolvimento e expansão urbana”.
De pronto, temos que compreender que a extensão do desenvolvimento não se
dá apenas sob o prisma do desenvolvimento econômico e da simples expansão do
tecido urbano e aumento de sua complexidade, tampouco por estarmos cada vez
mais compelidos a conviver com as duas cidades: legal e a irregular.
Não é a sensação de estarmos diante da eterna cidade inacabada com suas
40

favelas, cortiços, mocambos e periferias que nos leva a pensar em desenvolvimento


urbano, tampouco aquilatar nosso potencial destruidor de ecossistemas e patrimônio
histórico para em nosso processo de avaliação venhamos a nos definir como
desenvolvidos.
Desenvolvimento urbano e expansão urbana precisam ser pensados
efetivamente sob a ótica social. A justiça social é paradigma básico para se pensar
em desenvolvimento, sob pena de estarmos concebendo uma suposta cidade ideal,
mas desprovida de vida. O desenvolvimento urbano precisa ser pensado na medida
do equilíbrio entre homem e natureza.
As estratégias do Estatuto da Cidade importam em duas grandes lógicas de
desdobramento: uma voltada a fortalecer o Município como ente federativo, dotando-
o de ferramentas para intervir no ordenamento territorial; a outra, centrada na gestão
democrática das cidades, incita na determinação de que o plano diretor seja
elaborado de forma participativa, o que faz do cidadão o próprio voluntário a
controlar os atos do poder público.

Na primeira ordem de questões, relativas ao caráter instrumental do Estatuto da


Cidade fortalecendo o poder público municipal, o Estatuto da Cidade delega ao
plano diretor a função de definir as condições a que a propriedade deve conformar-
se, para que cumpra sua função social. É por isto que se considera como uma das
estratégias dos municípios para buscar desenvolvimento urbano com inclusão social
a incorporação ao Plano Diretor de diretrizes baseadas na aplicação efetiva de
instrumentos urbanísticos, jurídicos e tributários conceituados no Estatuto da Cidade.
Esta discussão precisa ultrapassar as fronteiras municipais e dar-se no plano
regional, embora não exista nenhuma instância institucional para que isto aconteça.

O Plano Diretor deve interagir com as dinâmicas sociais. Nesse sentido é que
se pode dizer que o Plano Diretor contribui para reduzir as desigualdades sociais –
porque redistribui os riscos e os benefícios da urbanização.
O objetivo fundamental do plano diretor é estabelecer como a propriedade
cumprirá sua função social, de forma a garantir o acesso a terra urbanizada e
regularizada, reconhecer a todos os cidadãos o direito à moradia e aos serviços
urbanos.
Nesta perspectiva, o plano diretor, deixa de ser um mero instrumento de
controle do uso do solo para se tornar um instrumento que introduz o
41

desenvolvimento sustentável da cidade. Para isso, por exemplo, é necessário que


assegure espaços adequados para a provisão de novas moradias sociais que
atendam a demanda da população de baixa renda; que preveja condições atraentes
para micro e pequenas empresas – itens vitalmente importantes para que haja
crescimento urbano equilibrado; para que se evite ocupação irregular e informal do
território do município; e outros. Para tanto é preciso conhecer a estrutura fundiária e
suas tendências de desenvolvimento, a partir das quais o Município pode escolher –
dentre os instrumentos previstos no Estatuto da Cidade - os que mais favoreçam a
inclusão social. Após a sua inclusão no plano diretor, as secretarias municipais
devem agir de forma integrada na proposta de aplicação de instrumentos do Estatuto
da Cidade que permitem a Regularização urbanística e fundiária; a possibilidade de
criar e regulamentar Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS); a utilização
compulsória de terrenos e imóveis considerados subutilizados; obter Concessão
Especial para Fins de Moradia; destinar patrimônio público para programas de
moradia, dentre outros.

O plano diretor deve estabelecer dentre os instrumentos previstos no Estatuto


da Cidade quais devem ser aplicados de imediato, ampliando as condições
favoráveis para financiar o desenvolvimento urbano permitindo a recuperação da
valorização urbana decorrente de investimentos públicos ou definições normativas
municipais e a recuperação de áreas públicas ocupadas em desacordo com a sua
função social. Esses instrumentos tais como a Outorga Onerosa do Direito de
Construir, a utilização mais adequada do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU),
a Transferência do Direito de Construir, as Operações Consorciadas, o
Parcelamento e a Edificação compulsórias associados ao IPTU progressivo e à
possibilidade de realizar consórcios imobiliários.
Quanto à segunda ordem de questões, centradas na gestão democrática das
cidades, a lei do plano diretor deve estabelecer a estrutura e o processo participativo
de planejamento para implementá-lo e monitorá-lo. O monitoramento compreende
avaliações, atualizações e ajustes sistemáticos, que se dão através dos planos
Urbanísticos regionais e das áreas de especial interesse, e da própria revisão
decenal das diretrizes do plano diretor.
Apenas políticas públicas intersetoriais podem transformar as precárias
condições de vida nas cidades. É preciso contar nesse processo com organização
42

mais intersetorial e com disposição política para efetivamente romper com práticas
fragmentadas, elaboradas por instâncias governamentais setorializadas.
Nesse momento de uma nova proposição para o plano diretor, trazida pelo
Estatuto da Cidade e diante da crise socioeconômica, é preciso que se desenvolva
uma nova compreensão do desenvolvimento, na qual a dimensão econômica não
achate as possibilidades de emergirem novos sujeitos sociais. Levando em
consideração o plano diretor – instrumento de planejamento municipal, articulado a
planos plurianuais, leis de diretrizes orçamentárias e a orçamentos anuais –, que
visa, entre outros objetivos, a regular a função social da cidade e da propriedade
urbana, busca-se construir um outro modo de organizar a produção e o território, no
âmbito da integração das políticas públicas e da articulação com as políticas
urbanas, compatível com os limites da sustentabilidade ambiental, social e
econômica.

Infelizmente, um amplo estudo realizado por Leal de Oliveira e Biassoto (2011,


p. 95), após a análise de relatórios de planos diretores de diversas cidades
brasileiras, concluiu que os mesmos pouco avançaram no acesso à terra
urbanizada.

De acordo com os relatórios estaduais analisados, de maneira geral, os


planos diretores pós-Estatuto da Cidade pouco ou nada avançaram na
promoção do acesso à terra urbanizada. Embora a grande maioria dos
planos tenha incorporado os princípios e diretrizes do Estatuto – o que,
certamente, não é um fato insignificante -, raramente essas orientações se
refletiram nos zoneamentos, nos parâmetros urbanísticos definidos, na
regulamentação dos instrumentos de política fundiária ou na definição de
políticas e medidas voltadas para promover a democratização do acesso à
terra urbanizada e bem localizada.

A regularização fundiária deve ser entendida como uma política pública de


caráter permanente, eis que envolve moradia, mas os planos diretores não estão
efetivamente apresentando soluções adequadas para enfrentar a questão, pois os
instrumentos contemplados no Estatuto da Cidade ou não são efetivamente
empregados ou quando constam no texto de lei, como por exemplo, as Zonas de
Especial Interesse Sociais (ZEIS), que não atacam os problemas relativos aos
vazios urbanos, que poderiam ser utilizados para produção de habitações de
interesse social.

A regularização fundiária está imbricada à função social da propriedade e para


que se avance em suas conquistas, faz-se necessário que a participação popular no
43

processo de elaboração e/ou revisão, seja organizada de tal forma que passe a se
constituir em instrumento de transformação/fiscalização para que seja permitida a
ocupação da terra com justiça social em detrimento ao capital especulativo ou ao
comprometimento da ação estatal.

Desde os primórdios, a titularidade de terras no Brasil foi pautada pela


desigualdade, principalmente levando-se em consideração o modelo de colonização
portuguesa. Posteriormente o processo de mercantilização da terra acentua ainda
mais o quadro de desigualdades. A Lei de Terras surge no contexto de supostamente
regularizar a questão da titularidade da terra, o que efetivamente não vai conseguir e
acaba por concorrer para a lamentável concentração de terras nas mãos dos
detentores do poder econômico. Com o desenfreado processo de urbanização
brasileiro ocorrido no século passado, as cidades passaram a ser ocupadas de
maneira absolutamente desordenada, o que implicou em consequências
catastróficas para a população desprovida de recursos financeiros, que acabou por
ser segregada em áreas desprovidas de condições de habitação. O acesso à terra
urbanizada no Brasil ainda é um dos mais graves problemas sociais, porquanto, a
mercantilização cada vez mais acentuada da terra, que cada dia mais se relaciona
com o valor de troca impede o acesso à moradia adequada, onde a parte da
população desprovida de recursos não consegue vivenciar de fato o direito à cidade,
este sendo compreendido como a possibilidade de usufruir dos benefícios que as
cidades oferecem tais como transporte público, educação, saúde, lazer , dentre
outros. No plano ideal, o direito à cidade deve ser garantido igualmente a todos os
cidadãos, independentemente da classe social, mas de fato isto não ocorre, pois a
cidade se constitui em uma grande arena de disputas onde os atores vão tentar
plasmar uma cidade que atenda aos seus interesses e isso restará mais evidente
por ocasião dos estudos de casos a serem realizados no presente trabalho, sob as
três matrizes teóricas propostas.

A resistência ao processo de mercantilização cada vez mais acentuada da terra


passa também pela compreensão do bem público e suas possibilidades de uso,
principalmente para atender ao paradigma constitucional de respeito aos princípios
da dignidade humana e do direito à vida, conjugados com o direito fundamental à
moradia, o que nos remete a uma análise do universo de possibilidades inerentes a
utilização dos bens públicos que serão inclusive concebidas no contexto da
44

regularização fundiária.

Outra questão importante na efetivação do direito à moradia se apresenta pelo


prisma do plano diretor, onde a participação popular como imperativo constitucional
marcado na Constituição de 1988, se constitui elemento crucial para a gestão
democrática das cidades22. Não se defende a implantação do plano diretor como
uma lei meramente formal, transformada eventualmente em fetiche pelos
responsáveis por sua elaboração. Vislumbramos o plano diretor como um leque de
possibilidades para a organização do território e a busca pela justiça social, através
da utilização do arcabouço jurídico para a produção de uma nova dinâmica na
construção das cidades onde o uso da propriedade urbana deverá observar o
interesse coletivo, de modo a cumprir sua função social.

A dimensão da função social da propriedade e os instrumentos de efetivação da


regularização fundiária serão tratados no capítulo seguinte.

22
O Poder Judiciário já declarou a inconstitucionalidade de alteração de Plano Diretor sem a devida participação
popular. Como exemplo, TJ-SP, Órgão Especial, ADI 381454820118260000, j. 05/10/2011, DO 27/10/2011, rel.
Des. Walter de Almeida Guilherme. TJ-ES, Tribunal Pleno, ADI 100110030515, j. 08/03/2012, rel. Des. Carlos
Simões Fonseca. TJ-SC, Órgão Especial, ADI 644088, j. 26/10/2011, Rel. Des. Vanderlei Romer.
45

3 O DIREITO À MORADIA E A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA NO


BRASIL PÓS ESTATUTO DA CIDADE

O direito à moradia se constitui um direito fundamental no ordenamento jurídico


brasileiro. Sua efetivação, no entanto, tem sido obstacularizada por uma
interpretação jurídica restritiva e pela inexistência de ações políticas efetivas, que
consigam aproveitar e alargar as oportunidades decorrentes dos avanços
legislativos, obtidos à partir da Constituição de 1988. É preciso compreender e
depurar os elementos que irão estruturá-lo, quais sejam, a segurança jurídica da
posse, a disponibilidade de serviços e infra-estrutura, custo da moradia acessível,
habitabilidade, acessibilidade, localização e adequação cultural.
Para compreendermos a experiência brasileira relativa aos esforços legislativos
de regulação e enfrentamento dos conflitos fundiários precisamos nos referir a uma
tensão fundamental entre leis, decretos, portarias e especialmente procedimentos
judiciais relativos à regulação fundiária e que em seu conjunto poderíamos chamar
de uma tensão entre tradições legais que coabitam no interior dessa legislação. A
clássica tipologia desenvolvida por Philip Selsnick e Philippe Nonet (2001) para
analisar os diferentes tipos de ordenamentos jurídicos nos oferece um auxílio
importante. Existiriam, segundo esses autores, três tipos puros de sistemas jurídicos:
o modelo repressivo, o autônomo e o responsivo. Enquanto tipologias, não há
correspondência exata entre esses modelos analíticos com os sistemas jurídicos tais
como estes existem factualmente. Os tipos nos ajudam apenas a fixar os traços mais
gerais e marcantes de um sistema jurídico empiricamente dado, facilitando-nos,
ainda, a compreensão dos processos de mudança e transição entre os tipos
postulados. Seguindo esse sistema analítico e classificatório proposto pelos autores,
a tradição do sistema legal brasileiro se enquadraria em um tipo misto daquilo que
ambos chamam de ordenamento jurídico repressivo e ordenamento jurídico
autônomo, característicos, diga-se, dos sistemas jurídicos latino-americanos. Em
síntese, essa tradição mistura ativismo político e altas doses de repressão legal com
a crença em um sistema jurídico derivado do discernimento racional dos legisladores
e do julgamento neutro dos juízes. Ambas estas tradições identificáveis no
ordenamento jurídico brasileiro, a repressiva e a autônoma, seriam diferentes do
modelo que Nonet e Selsnick (2001) chamam de "responsivo" o qual identificam nas
46

tradições jurídicas da Commom Law inglesa e da Case Law norte-americana. A


diferença fundamental entre as tradições repressiva e autônoma, de um lado, e a
responsiva, de outro, estaria, segundo esses autores, na maior capacidade do
modelo responsivo em promover mudanças legislativas para se adequar atender as
demandas por justiça oriundas de definições sociais e políticas circunstanciadas
pelos problemas cotidianos das pessoas.

Em contraste, na tradição do ordenamento jurídico autonomista, formalista e


legalista, fazer justiça é, essencialmente, julgar em estrita conformidade com a lei; e
há dificuldade de se reconhecer, pelo sistema legal, diferenças sociais, raciais, de
gênero e econômicas, ainda que elas possam, em tese, ser consideradas. Na
verdade, nessa tradição, quaisquer legislação e ativismo jurídico de magistrados que
pressionem no sentido de se estabelecerem exceções à regra geral em virtude da
consideração de valores éticos e moralmente consubstanciados nos julgamentos
são considerados como ameaças de fissuras na cláusula formal e racionalista da
igualdade entre os cidadãos.

Toda a legislação contemporânea brasileira sobre a função social da


propriedade e o direito à moradia traz a marca dessa tensão. Por um lado a
Constituição de 1988 circunscreveu nos seus capítulos de direito social um conjunto
de normas progressistas capaz de orientar a legislação ordinária em torno de
princípios avançados e socialmente referenciados, mas que ao longo dos anos vem
sofrendo dificuldades e até mesmo retrocessos na sua efetivação. A simplificação do
processo para garantir o título de propriedade nas favelas, embora fosse tomado
como objetivo destacado das políticas oficiais dos Governos do Presidente Lula da
Silva, quando da criação do Ministério das Cidades, sofreu atraso e em muitos casos
sequer chegou ao sair do papel como se diz, por causa de dificuldades de
implementação desses direitos sociais de propriedade na legislação ordinária.
Buscando a efetividade do direito à moradia, a dimensão da função social da
propriedade, essa entendida à luz da conceituação sustentada pelo Fórum Nacional
da Reforma Urbana23, como “princípio que está vinculado a um projeto de sociedade

23
O Fórum Nacional de Reforma Urbana é uma rede de organizações brasileiras articulada em torno da agenda
do direito à cidade e de reivindicações visando melhores condições de vida e a gestão democrática das cidades.
São movimentos populares, associações de classe, ONGs e instituições de pesquisa que querem promover a
Reforma Urbana. O Fórum Nacional de Reforma Urbana existe desde 1987 e trabalha estimulando a participação
social em conselhos, organizando cursos de capacitação de lideranças sociais e discutindo a elaboração de
planos diretores democráticos para as cidades.
47

mais igualitária, isso se deve em razão de submeter o acesso e o uso da


propriedade ao interesse coletivo; portanto a propriedade urbana cumpre a sua
função social quando destinada para satisfazer as necessidades dos habitantes da
cidade”, afigura-se central para o processo de regularização fundiária.
O processo de urbanização brasileiro produziu um modelo de cidade
excludente, onde parte pequena da população tem o direito à moradia e a grande
maioria não consegue acessar integralmente tal direito, na medida em que não
consegue vivenciar em sua plenitude os elementos que integram o conceito do
referido direito.
No plano normativo, em que pesem todas as críticas, há que se reconhecer que
a Constituição da República de 1988 e o Estatuto da Cidade, que regulamenta a
Constituição Federal no que se refere à política urbana e estabelece as diretrizes
gerais de desenvolvimento urbano, se constituem importantes instrumentos na luta
pela efetivação do direito à moradia.
Acentua FERNANDES (2006, p. 11), que após a Constituição de 1988, surgiu
um novo paradigma jurídico-urbanístico no Brasil e uma série de legislações
passaram a ser criadas com observância do eixo estruturante da função
socioambiental da propriedade e da cidade que em seu entendimento “é uma
expressão do princípio de que o urbanismo é uma função pública no sentido mais
amplo, isto é, a ordem urbanística não é determinada tão-somente pela ordem dos
direitos individuais, não sendo reduzível tão-somente pela ordem dos interesses
estatais”.
Avançando, afirma FERNANDES (2006, p. 14), a relevância do Estatuto da
Cidade na nova ordem jurídico-urbanística que busca a revisão da propriedade sob
o prisma meramente individualista, destacando que “para consolidar a Constituição
de 1988, o Estatuto da Cidade propõe que esse paradigma civilista em relação à
forma específica de propriedade imobiliária urbana seja revogado”.
Detendo-se na questão da regularização fundiária, FERNANDES (2006, p. 16),
adverte que ainda não existe uma exata compreensão da atual ordem urbanística,
pois poucos percebem
48

[...] é que hoje não se pode falar de regularização fundiária tão-somente


como sendo algo que se encontra no âmbito da ação discricionária do poder
público, que faz quando quer, de acordo com os critérios que acha que deve
seguir, quando for pressionado pela população ou quando tiver
compromissos políticos com a população.
Existe juridicamente constituído no Brasil hoje um direito subjetivo do
ocupante à regularização, em condições especificadas na lei, e isso mesmo
contra a vontade do poder público.

Tais avanços legislativos não sensibilizaram os juízes, nem foram capazes de


modificar substancialmente a cultura legal patrimonialista da sociedade brasileira.
O presente capítulo tem como objetivo dimensionar a função social da
propriedade e o direito à moradia, bem como apresentar os instrumentos jurídicos
para a realização da regularização fundiária e ao final apresentar os seus dilemas e
encruzilhadas.

3.1 A função social da propriedade e o direito fundamental à


moradia
No ordenamento jurídico brasileiro, ao ganhar relevo a propriedade privada, a
mesma passou a ostentar um caráter absoluto e individualista, reproduzindo com
exatidão os preceitos liberais. Contemporaneamente, a citação da função social da
propriedade com base na Constituição Federal de 1988 passou a ser encarada
como uma grande panacéia para tratar as questões fundiárias, mas a efetividade de
tal medida tem sido bastante restrita. Realmente a função social da propriedade nem
sempre esteve presente em nossos textos constitucionais. As constituições de 1824
(artigo 179, inc. XXII) e 1891 (artigo 72, § 17), garantiram o direito de propriedade
sem efetivamente limitá-lo. Na Constituição de 1934 (artigo 113, item 17), existe
alusão de que o direito de propriedade “não poderá ser exercido contra o interesse
social ou coletivo, na forma que a lei determinar”, mas não faz menção à função
social da propriedade. A Constituição de 1937 (artigo 122, item 14), assegura o
direito de propriedade, mas relega o conteúdo e limite para as leis que regularem o
seu exercício. A Constituição de 1946 (artigos 141, § 16 e 147), assegura o direito de
propriedade, condicionando o seu uso ao “bem-estar social”, fazendo emergir em
nosso direito positivo efetivamente a função social da propriedade. A Constituição de
1967 com a Emenda Constitucional nº 01 de 1969 (artigo 153, § 22 e artigo 160, inc.
III), consagra o direito de propriedade e textualmente insere em seu texto a função
social da propriedade. Na Constituição de 1988, existem diversas menções ao
49

direito de propriedade e sua função social (artigo 5º, incs. XXII e XXIII; artigo 156, I,
§ 1º; artigo 170, incs. II e III; artigos 182; 184 e 185). Como dito, a função social da
propriedade não é algo que surge com a Constituição de 1988, tanto que tal
expressão ingressa em nosso ordenamento constitucional sob a égide da ditadura
militar.
Esclarece Gomes (1988, p. 97-98), que a teoria da função social da
propriedade ganhou corpo com os ensinamentos de Léon Duguit no início do século
XX, para quem a propriedade não era um direito subjetivo, mas uma função social,
onde o proprietário seria possuidor de uma riqueza e por possuir tal riqueza teria
uma função social a cumprir e enquanto o mesmo cumprisse tal função, o seu direito
de proprietário estaria assegurado. Se o proprietário efetivamente não cumprisse tal
função ou a cumprisse mal, seria legítima a intervenção do Estado para que fosse
respeitada a função social da propriedade. Temos a preservação do direito de
propriedade, mas o que decorre da teoria proposta é que a propriedade transcenda
os interesses meramente individuais, o que caracteriza uma verdadeira releitura do
conceito tradicional/liberal:

A propriedade deixou de ser o direito subjetivo do indivíduo e tende a se


tornar a função social do detentor da riqueza mobiliária e imobiliária; a
propriedade implica para todo detentor de uma riqueza a obrigação de
empregá-la para o crescimento da riqueza social e para a interdependência
social. Só o proprietário pode executar uma certa tarefa social. Só ele pode
aumentar a riqueza geral utilizando a sua própria; a propriedade não é, de
modo algum, um direito intangível e sagrado, mas um direito em contínua
mudança que se deve modelar sobre as necessidades sociais às quais
deve responder.

O próprio Duguit (1912, p. 168-169) assevera:

Sin embargo, la propiedad es una instituión juridica que se ha formado para


responder a una necesidad económica, como por otra parte todas las
instituciones jurídicas, y que evoluciona necesariamente con las
necesidades económicas mismas. Ahora bien, en nuestras sociedades
modernas la necesidad económica, a la qual ha venido a responder la
propiedad institución jurídica, se transforma profundamente; por
consiguiente, la propiedad como institución jurídica deve transformarse
también. La evolución se realiza igualmente aquí enel sentido socialista.
Está también determinada por una interdependencia cada vez más estrecha
de los diferentes elementos sociales. De ahí que la propiedad, par decirlo
así, se socialice. Esto no significa que llegue a ser colectiva en el sentido de
las doctrinas colectivistas; pero significa dos cosas: primeramente, que la
propiedad individual deja de ser un derecho del individuo, para convertirse
en una función social; y en segundo lugar, que los casos de afectación de
riquezaa las colectividades, que juridicamente deben ser protegidas, son
cada día más numerosos.
50

O que temos que constatar de fato é que a construção de um novo paradigma


pós-Constituição de 1988 permite, para muitos, a ampliação das possibilidades de
compreensão da dimensão da propriedade privada em consenso com a justiça
social. O que de fato ocorre é uma resignificação do direito de propriedade,
transmutando-se de um caráter individual para um caráter coletivo/social.
Efetivamente não existe nem de longe a extinção do direito de propriedade, que
continua sendo diuturnamente reafirmado como direito fundamental em nosso
modelo capitalista de produção, o que temos é uma construção na qual o
proprietário deverá exercer o seu direito de propriedade em observância com o
interesse da coletividade, superando o paradigma individual anteriormente
consagrado.
O patrimônio imobiliário do poder público, também se sujeita ao cumprimento
da função social da propriedade ainda que se extraia de forma implícita da
Constituição. Di Pietro (2006) relaciona-o com a função social da cidade.
Os bens de uso comum do povo e os de uso especial estão afetados a fins de
interesse público por sua própria natureza e relativamente aos mesmos a função
social se relaciona a ação do Estado em resguardar sua aplicação em benefício de
toda a coletividade na construção de cidades mais inclusivas, resguardando-se
sempre a supremacia do interesse público.
Os bens dominicais também se sujeitam ao cumprimento da função social, pois
como destaca Di Pietro (2006, p. 11), “não há dúvida de que aos bens dominicais
pode e deve ser dada finalidade pública, seja para aplicação do princípio da função
social da propriedade, seja para observância do princípio da função social da cidade”
e avançando conclui que os mesmos nas áreas urbanas devem ser submetidos às
limitações impostas pelo plano diretor e nas rurais devem ser enquadrados aos
planos de reforma agrária.
Levando-se em consideração o uso dos bens públicos, inafastável que também
devem estar relacionados com o cumprimento da função social da propriedade face
a própria finalidade pública inerente ao referido acervo patrimonial e ao
comprometimento com a inclusão social e a busca pelo bem comum da população,
sendo objetivos do Estado brasileiro a construção de uma sociedade livre, justa e
solidária.
Canuto (2010, p. 59), ressalta que “o conceito de função social da propriedade
urbana é indeterminado e abstrato. É um conceito aberto e plurissignificativo por
51

opção do legislador, para preenchimento de acordo com as particularidades de cada


cidade”, o que nos leva a evidenciar que para que tenhamos a efetividade da função
social da propriedade, estaremos inseridos em uma arena pública de disputas para
atribuir a dimensão ao conceito, onde diante da eventual litigiosidade a decisão final
caberá ao Poder Judiciário como detentor do poder jurisdicional do Estado, que
relativamente à função social da propriedade e implementação do direito à moradia
no que concerne a ocupação de bens públicos, não raramente tem posições
dissociadas da efetivação de direitos fundamentais24.
A Constituição Federal de 1988 precisa ser analisada como sendo uma
reprodutora da visão liberal em torno da propriedade, não sendo suficiente para
afastar a referida compreensão pelo fato de haver alusão à função social da
propriedade. Se por um lado é claríssimo que o direito de propriedade confere ao
proprietário o direito de usar, gozar, dispor e reivindicar o bem objeto de sua
titularidade, por outro a função social da propriedade, se afigura sujeita à
interpretação/disputa para se extrair a real dimensão de seu cumprimento em
relação a determinado bem. Na questão urbana, como instrumentos de auxílio na
efetivação da função social da propriedade, devemos ter como referência o Estatuto
da Cidade, que arrola como diretrizes da política urbana no inc. VI, do art. 2º, a
ordenação e controle do uso do solo, para que se evite a utilização inadequada dos
imóveis urbanos; a proximidade de usos incompatíveis ou inconvenientes; o
parcelamento do solo, a edificação ou o uso excessivos ou inadequados em relação
à infra-estrutura urbana; a instalação de empreendimentos ou atividades que
possam funcionar como pólos geradores de tráfego, sem a previsão da infra-
estrutura correspondente; a retenção especulativa de imóvel urbano, que resulte na
sua subutilização ou não utilização; a deterioração das áreas urbanizadas; a
poluição e a degradação ambiental; a exposição da população a riscos de desastres
naturais.
Ainda no Estatuto da Cidade, resta estabelecido no art. 39, que a propriedade
urbana cumpre a sua função social quando atende às exigências fundamentais de
ordenação da cidade expressas no plano diretor, assegurando o atendimento das

24
Como exemplo, TJ-SP, 13ª Câm. de Dir. Público. Apelação nº 0007490-24.2010.8.26.0099, j. 15.02.2012:
Reintegração de posse. Bem público. Esbulho configurado. Possibilidade de retomada a qualquer tempo. Mera
detenção não induz posse. Descabimento de invocação à função social da propriedade e ao direito à moradia.
Indenização por benfeitorias. Inadmissibilidade. Recurso desprovido.
52

necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao


desenvolvimento das atividades econômicas, conforme as diretrizes da política
urbana estabelecidas no art. 2º, do mesmo diploma legal.
A função social da propriedade, ainda que sujeita a críticas, se constitui em um
forte argumento para que seja realizada uma efetiva mobilização em torno do direito
fundamental à moradia, que é reconhecido como direito social na forma do art. 6º, da
Constituição Federal de 198825 e portanto, direito fundamental de aplicabilidade
imediata, que se reveste de caráter de essencialidade e se encontra vinculado
principalmente ao princípio da dignidade da pessoa humana.
O direito à moradia é indispensável para um mínimo existencial para uma vida
digna. Sarlet (2009) demonstra a evolução do direito fundamental à moradia,
fazendo alusão inicialmente à Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU
(1948)26. Passo seguinte, o direito à moradia vai se consolidando em tratados
internacionais, tendo sido mencionado no Pacto Internacional sobre Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais de 1966, que foi ratificado pelo Brasil em 199227,
tendo alusão ao mesmo ainda na Convenção Internacional sobre a eliminação de
todas as formas de discriminação racial (1965), Convenção Internacional sobre a
eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher (1979), a
Convenção Internacional sobre os direitos das crianças (1989) e Convenção sobre a
proteção dos direitos dos trabalhadores migrantes (1990). A proteção ao direito à
moradia também foi consagrado por ocasião da Agenda Habitat I (Declaração de
Vancouver sobre assentamentos humanos de 1976) e Agenda Habitat II (Declaração
de Istambul de 1996). A proteção do direito à moradia se dá ainda no sistema
americano de proteção dos direitos humanos e decorre da Convenção Americana de
Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa Rica (1969).
No ordenamento constitucional brasileiro, o direito à moradia foi formalmente
alçado à condição de direito fundamental à partir da Emenda Constitucional nº

25
Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência
social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
26
Art. XXV. 1. Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar-lhe, e a sua família, saúde e
bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação e cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis,
e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos
meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle.
27
Art. 11. 1. Os Estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um nível de vida
adequado para si próprio e para sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim
como uma melhoria contínua de suas condições de vida.
53

26/2000, mas independentemente do reconhecimento formal em questão, o direito à


moradia já decorria do princípio da dignidade da pessoa humana insculpido no inc.
III, do artigo 1º, da Constituição Federal de 198828, face a necessidade de serem
respeitadas condições mínimas para a sobrevivência do ser humano. Segundo
Saule Junior (2004, p. 133), para que se obtenha a concretude do direito à moradia,
precisar-se-ia respeitar os seguintes pressupostos:

O direito à moradia pode ser considerado plenamente satisfeito a partir da


existência de três elementos que são: viver em segurança, viver em paz, e
viver com dignidade. O núcleo básico do direito à moradia é constituído,
portanto, pela segurança, pela paz e pela dignidade.

O direito à moradia tem relação estreita com o próprio direito à vida, vez que o
homem não pode simplesmente deixar de habitar sem ferir a sua própria dignidade.
Por mais que muitos outros direitos sejam desconhecidos ou mesmo não
exercitáveis pelos seus titulares, não é o caso do direito à moradia, pois ao final de
sua jornada diária, a grande maioria das pessoas tem a expectativa de se recolher a
um lar. Não assegurado o direito à moradia digna, o homem tem reduzida a sua
própria condição humana, pois estará submetido à condições degradantes de
sobrevivência sujeito às vicissitudes e intempéries. Assim, não se compromete a
efetivamente do direito à moradia, mas até mesmo o direito à vida. Sarlet (2009)
pondera que a Constituição de 1988 não levou a efeito a fixação do conteúdo do
direito à moradia, mas acentua que podem ser adotados os padrões internacionais,
como aqueles fixados pela Comissão da ONU para Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais, que estabelece elementos básicos a serem atendidos e que não se
resumem a um simples espaço físico, sendo eles:
a) segurança jurídica para a posse, independentemente de sua natureza e
origem;
b) disponibilidade de infra-estrutura básica para a garantia de saúde,
segurança, conforto e nutrição dos titulares do direito (acesso à água potável,
energia para o preparo da alimentação, iluminação, saneamento básico, etc.);
c) as despesas com a manutenção da moradia não podem comprometer a
satisfação de outras necessidade básicas;

28
Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do
Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...) III- a dignidade da
pessoa humana.
54

d) a moradia deve oferecer condições efetivas de habitabilidade, notadamente


assegurando a segurança física aos seus ocupantes;
e) acesso em condições razoáveis à moradia, especialmente para os
portadores de deficiência;
f) localização que permita o acesso ao emprego, serviços de saúde, educação
e outros serviços sociais essenciais;
g) a moradia e o modo de sua construção devem respeitar e expressar a
identidade e diversidade cultural da população.

A função social da propriedade e o direito fundamental à moradia encontram-se


imbricados na medida que somente se efetivará o segundo, caso seja superado o
paradigma liberal da propriedade, através do reconhecimento de sua função social,
seja no campo dos bens de particulares, seja relativamente aos bens públicos, que
não podem ser objeto de acumulação por parte do Estado, que tem compromisso
com o bem-estar social e para tanto tem que empregar todos os meios possíveis, o
que demanda a disponibilização de seu acervo patrimonial ocioso e a regularização
fundiária dos bens ocupadas em defesa do direito dos possuidores desprovidos de
recursos financeiros, que demandam por moradia digna.
É fato que o direito urbanístico se apresentou como um dos campos mais
férteis para a aplicação da função social da propriedade, conforme se depreende do
artigo 2º, do Estatuto da Cidade.
O Estatuto da Cidade apresenta instrumentos diretamente vinculados à função
social da propriedade, que não podemos deixar de mencionar principalmente o
parcelamento, edificação ou utilização compulsórios; IPTU progressivo e
Desapropriação-sanção.
Inicialmente o Estatuto da Cidade em seu artigo 5º29, dispõe sobre o
parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, que guarda relação direta com
as delimitações estabelecidas no plano diretor e a necessidade do proprietário
aproveitar de maneira adequada o seu imóvel.
Existe a previsão do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana

29
Art. 5o Lei municipal específica para área incluída no plano diretor poderá determinar o parcelamento, a
edificação ou a utilização compulsórios do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, devendo fixar
as condições e os prazos para implementação da referida obrigação.
55

(IPTU) progressivo, na forma dos artigo 7º30, caso não seja observada obrigação
contida no plano diretor relativamente ao parcelamento ou edificação do imóvel.

Temos ainda a possibilidade de Desapropriação-sanção, prevista no artigo 8º31,


incidente sobre o imóvel urbano nos casos em que, mesmo tendo sido estabelecida
a cobrança por mais de 05 (cinco) anos do IPTU progressivo, o proprietário
manteve-se inerte e não cumpriu a obrigação de parcelar, edificar ou utilizar
adequadamente o imóvel.

3.2 A função social da posse


Inicialmente, precisamos destacar em questão envolvendo a posse, que não
existe um conceito expresso em nosso ordenamento jurídico, o que de fato existe no
artigo 1.196, do Código Civil é a definição de possuidor32. Para Rizzardo (2006, p.
18), “a posse significa, segundo o nosso direito positivo, o exercício de fato, pleno ou
não, de algum dos poderes inerentes ao direito de propriedade”.
Muito se busca repensar a construção de cidades mais inclusivas, mirando-se a
vertente da função social da propriedade conjugada atualmente à função social da
própria cidade, quando também se apresenta como uma alternativa pensar no
momento presente na densidade social da posse e sua função social. É possível
afirmar, que a temática da função social da propriedade é algo que possui certo grau
de abstração, mas a função social da posse é algo tangível. A posse direta é algo
que salta aos olhos, enquanto estágio da realidade presente, representando um
estado de fato. A visibilidade da posse direta é algo inocultável até mesmo para os
mais hábeis malabaristas jurídicos dados às tergiversações. Arremata Torres (2007,
p. 305), que “é através da prática de atos materiais na coisa que aquele que tiver a
possibilidade de uso, isto é, a posse do bem, poderá atender à função social”.
Fachin (1988, p. 19), demonstra com propriedade, que existe diferenciação

30
Art. 7o Em caso de descumprimento das condições e dos prazos previstos na forma do caput do art. 5o desta
Lei, ou não sendo cumpridas as etapas previstas no § 5o do art. 5o desta Lei, o Município procederá à aplicação
do imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana (IPTU) progressivo no tempo, mediante a majoração
da alíquota pelo prazo de cinco anos consecutivos.
31
Art. 8o Decorridos cinco anos de cobrança do IPTU progressivo sem que o proprietário tenha cumprido a
obrigação de parcelamento, edificação ou utilização, o Município poderá proceder à desapropriação do imóvel,
com pagamento em títulos da dívida pública.
32
Art. 1.196. Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos
poderes inerentes à propriedade.
56

entre a função social da propriedade e a função social da posse, realçando inclusive


que a falta de uso não afasta a propriedade:

A função social da posse situa-se em plano distinto, pois, preliminarmente, a


função social é mais evidente na posse e muito menos evidente na
propriedade, que mesmo sem uso, pode se manter como tal. A função social
da propriedade corresponde a limitações fixadas no interesse público e tem
por finalidade instituir um conceito dinâmico de propriedade em substituição
ao conceito estático, representando uma projeção da reação anti-
individualista. O fundamento da função social da propriedade é eliminar da
propriedade privada o que há de eliminável. O fundamento da função social
da posse revela o imprescindível, uma expressão natural da necessidade.

A posse quando relacionada com a moradia e o desenvolvimento de atividades


de relevância social, marcadamente ostenta função social e demanda ampla
proteção face a sua interligação com o interesse da coletividade e o bem comum. No
que tange a terras privadas, o ordenamento jurídico vai valorizá-la através da
usucapião e/ou do direito de superfície. Relativamente a terras públicas, a
valorização pode ocorrer principalmente através da concessão de direito real de uso,
da concessão de uso especial para fins de moradia e a autorização de uso, sendo os
dois últimos consagrados na Medida Provisória nº 2.220/2001. Para que possamos
dimensionar a importância da função social da posse, devemos ressaltar que a Lei
11.977/2011, que criou o Programa Minha Casa, Minha Vida (PMCMV), estabelece o
conceito de legitimação de posse e autoriza que o detentor do título de legitimação
obtenha a usucapião pela via administrativa, ou seja, extrajudicialmente.
No âmbito da regularização fundiária de interesse social em áreas públicas,
ganha ainda mais relevo a proteção da função social da posse, na medida em que
não se afigura viável a aquisição originária da propriedade pela via da usucapião,
mas a proteção possessória se impõe para evitar remoções forçadas e o indevido
deslocamento dos ocupantes das terras públicas.
O universo possessório é constituído de grande liberdade de ação. A falta de
acesso à habitação impulsiona a população excluída desse direito, a ocupar
qualquer lugar no qual seja possível se estabelecer, ainda que em condições
subumanas. Tal fato é facilmente perceptível nos grandes centros urbanos, nos
quais as ocupações irregulares vão crescendo de forma descontrolada,
principalmente pela inviabilidade de se arcar com os custos de aquisição ou locação
de um imóvel.
O Estado, possuidor de inúmeras áreas ocupadas, precisa estimular a
57

regularização fundiária de interesse social, como forma de assegurar a segurança


da posse para os moradores.
A efetividade da função social da posse, demanda a instrumentalização do
direito para transformação da realidade social, devendo-se encarar a necessidade
da segurança jurídico da posse como uma realidade mais do que emergente, que
não deve ser afastada, diante dos impositivos constitucionais da construção de uma
sociedade mais justa e igualitária. O reconhecimento da função social da posse e a
efetivação da regularização fundiária afasta a possibilidade do conflito latente
acobertado pela aparente atmosfera de tranquilidade explodir. Ao tratar da função
social da posse, Gil (1969, p. 67) afirma que tranquilidade e paz não se confundem:

La tranquilidad es algo así como um resignado conformismo – la quietud


impuesta -, que puede ser obra del derecho o tambiém de la fuerza. La paz
implica la realización de valores éticos más elevados. No el mero
matenimiento de la tranquilidad y no tampoco uma paz a cualquier precio,
sino uma paz justa y socialmente entendida y compartida pensamos
nosotros que há de constituir, por lo menos, el soporte de la posesión.

3.3 A regularização fundiária e seus instrumentos


O procedimento de regularização fundiária apresenta diversos instrumentos
jurídicos que possibilitam a sua implementação, devendo-se levar em consideração
principalmente ser a área objeto da mesma, pública ou privada. Sendo a área
pública, faz-se necessário distinguir se ocupação é de interesse social ou não para
que seja adotado o meio correto de garantir aos ocupantes a segurança jurídica da
posse.
Os instrumentos jurídicos para a implementação da regularização fundiária
serão utilizados, de acordo com a titularidade da área, ou seja, levando-se em
consideração ser a área pública ou privada.

Concessão de Uso Especial para Fins de Moradia (CUEM)


Instrumento cujos requisitos encontram-se previstos na Constituição Federal de
1988 no artigo 183, § 1º e na Medida Provisória 2.220/2001, que asseguram a quem
tenha tido a posse de até 250m² de imóvel público em área urbana por 5 (cinco)
anos ininterruptos, até 30 de junho de 2001, o direito de usá-lo para fins de moradia,
desde que não tenha outra propriedade ou não seja beneficiário de outra
58

concessão33. A CUEM poderá ser concedida na modalidade individual ou coletiva,


sendo sempre gratuita. A utilização da CUEM coletiva será aplicada quando
estivermos diante de imóvel que observadas as condições para outorga da CUEM
individual, possuam “mais de duzentos e cinqüenta metros quadrados, que, até 30
de junho de 2001, estavam ocupados por população de baixa renda para sua
moradia, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível
identificar os terrenos ocupados por possuidor”.
A CUEM integra o rol dos direitos reais34, na forma do artigo 1.225, XI, do
Código Civil, estando o Poder Público obrigado a outorgar a concessão ao possuidor
que perfizer os requisitos legais; sendo certo ainda que não se afigura necessária a
desafetação do bem por se constituir um direito subjetivo do ocupante, que caso
tenha preenchido os requisitos legais fará jus à concessão, podendo até mesmo
obtê-la pela via judicial, caso não seja outorgada na esfera administrativa na forma
do artigo 6º, da Medida Provisória 2.220/200135.
O avanço da legislação urbanística com a criação da CUEM é flagrante, haja
vista que o Poder Público em caso de preenchimento dos pressupostos legais, não
tem uma faculdade de conceder o uso, mas sim uma obrigação, o que se traduz em
inegável dever do Estado.
Deve-se esclarecer que na CUEM o Poder Público continua a figurar como
proprietário do bem, transferindo apenas o direito de uso para fins de moradia.
Desde logo, devemos realçar, que a Concessão de Uso Especial para fins de
Moradia (CUEM) e a Concessão de Direito Real de Uso (CDRU) são instrumentos
muito próximos, mas existem algumas pequenas diferenças que precisaremos
ressaltar.
A CUEM será sempre gratuita, o que não ocorre com a CDRU, que poderá ser
onerosa. O traço distintivo e mais marcante é que a CDRU é uma faculdade da
Administração e a CUEM é um direito subjetivo para os possuidores que
preencheram os requisitos legais. A CDRU, por força do Decreto-Lei nº 271/67,

33
No âmbito da União, a CUEM também encontra regulação na Instrução Normativa nº 02/2007, da Secretaria
do Patrimônio da União, que dispõe sobre o procedimento para a Concessão de Uso Especial para fins de
Moradia - CUEM e da Autorização de Uso em imóveis da União.
34
Pode-se compreender o direito real como sendo um direito que pode gerar ações contra qualquer pessoa que
queira violá-lo e contra o próprio Poder Público que concedeu o direito de uso.
35
Art. 6o O título de concessão de uso especial para fins de moradia será obtido pela via administrativa perante
o órgão competente da Administração Pública ou, em caso de recusa ou omissão deste, pela via judicial.
59

poderá ser aplicado em terras públicas ou privadas enquanto a CUEM somente será
possível de ser aplicada em área pública.
Em que pese a Medida Provisória nº 2.220/2001 traduzir um avanço em termos
de estabelecer a CUEM, mas ao fixar um marco temporal no ano de 2001 para
outorga reconhecimento do direito, o legislador deixou de considerar que o problema
habitacional cresce de forma descontrolada no Brasil, o que implica em ocupações
rotineiras de áreas públicas em muito marcadas pela ociosidade. Uma gama
crescente de excluídos estão sendo privados de utilizar um dos mais importantes
instrumentos jurídico-urbanísticos para regularizar sua condição de possuidores de
áreas públicas ocupadas para fins residenciais.
Outro entrave poderia ser descrito com a imposição do uso obrigatório da via
administrativa para a concessão da CUEM, que somente poderá ser pleiteada na
esfera judicial, após a sua recusa ou omissão na esfera extrajudicial, conforme
dispositivo anteriormente citado da Medida Provisória nº 2.220/2001, o que implica
em violação ao princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional contido no inc.
XXXV, do artigo 5º, da Constituição Federal de 198836.
Para obstacularizar a aplicação da CUEM, não podemos deixar de citar, que
existe posicionamento no sentido de inquinar de inconstitucional a Medida Provisória
nº 2.220/2001, forte no argumento defendido por Di Pietro (2002, p. 159), de que o
artigo 3º, do referido dispositivo regulou a utilização privativa de bens estaduais e
municipais, o que violaria a autonomia consagrada no artigo 18, da Constituição
Federal de 1988:

Não lhe cabe, em consequência, impor aos Estados e Municípios a outorga


de título de concessão de uso, transformando-a em direito subjetivo do
possuidor de imóveis públicos estaduais ou municipais. Se a norma
constitucional fala em título de domínio e concessão de uso é porque deixou
a decisão à apreciação discricionária do Poder Público titular do bem. A
União pode, validamente, impor a concessão de uso, como decisão
vinculada, em relação aos bens que integrem seu patrimônio; mas não pode
fazê-lo em relação aos bens públicos estaduais e municipais. Fácil imaginar-
se o ônus que tal imposição representaria para os grandes Municípios, em
que as favelas invadem espaços públicos desordenamente e em que teria
que ser assegurado a todos os invasores outro imóvel urbano ou rural. A
aplicação da medida é praticamente impossível sem a destinação de
recursos públicos a essa finalidade.

36
Art. 5º [...] .XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
60

Autorização urbanística de Uso Especial


Na forma do artigo 9º, Medida Provisória nº 2.220/2001 é facultado ao Poder
Público competente dar autorização de uso àquele que, até 30 de junho de 2001,
possuiu como seu, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, até duzentos
e cinqüenta metros quadrados de imóvel público, situado em área urbana, utilizando-
o para fins comerciais.
O referido instrumento, objetiva estimular a permanência de pequenos
comerciantes em áreas públicas diante de interesse das comunidades vulneráveis
que residem no local ou seu entorno. Busca-se se estimular a permanência do
pequeno comércio local, que se encontra consolidado ao longo de anos no
atendimento à população, tendo plena relação com os moradores.

Concessão de Direito Real de Uso (CDRU)


Trata-se de contrato administrativo em que o poder público (concedente) de
forma onerosa ou gratuita, por tempo certo ou indeterminado, que tem a faculdade
de conferir ao particular (concessionário) direito real de uso de terreno público ou do
espaço aéreo que o recobre, para fins específicos de regularização fundiária de
interesse social, urbanização, industrialização, edificação, cultivo da terra ou outra
utilização que traduza interesse social, na forma do Decreto-Lei nº 271/67
A CDRU constitui-se um importante instrumento para regularizar ocupações
que não sejam suscetíveis de aplicação da CUEM, porquanto, não exige os
requisitos de posse prolongada, tamanho máximo de terreno e inexistência de outra
moradia urbana ou rural. Trata-se de um direito real, assim como a CUEM, conforme
dispõe o inc. XII, do artigo 1.225, do Código Civil.
A CDRU poderá ser gratuita ou onerosa, sendo certo, que a concessão se
resolverá caso o concessionário dê ao imóvel destinação diversa da estabelecida no
termo ou contrato.

Direito de Superfície
Lira (1997, p. 116), conceitua o direito de superfície da seguinte forma:

O direito de superfície é o direito real autônomo, temporário ou perpétuo, de


fazer ou manter construção ou plantação sobre ou sob o solo alheio; é a
propriedade separada do solo - dessa construção ou plantação, bem como
é a propriedade decorrente da aquisição feita ao dono do solo de
construção ou plantação nele já existente.
61

O direito de superfície tem regramento no Código Civil e no Estatuto da Cidade,


conforme anteriormente explicitado e através do mesmo o superficiário terá o direito
de utilizar o solo, o subsolo ou o espaço aéreo relativo ao terreno, na forma
convencionada. O direito de superfície também se constitui direito real na forma do
inc. II, do artigo 1.225, do Código Civil.
O direito de superfície poderá ser utilizado para fins de regularização fundiária
em diversas situações, sendo mais comum aquela em que em decorrência de
dívidas tributárias com o Poder Público, o proprietário transfere o direito de
superfície de seu imóvel ocupado ou vazio que poderá ser empregado para
ocupação que atenda ao direito à moradia.
Como destaca Osório (2002, p. 186), com o direito de superfície, restou
dinamizado o conceito de propriedade, reforçando a necessidade de função social
da mesma para atender ao interesse da coletividade:

Neste aspecto, a norma urbanística brasileira, ao considerar o direito de


superfície como propriedade passível de ser separada daquela relativa ao
solo, vincula sua implementação ao interesse coletivo de democratizar o
acesso à terra e à habitação. Sua principal tarefa na atualidade, definida no
bojo de um Estatuto que impõe o cumprimento das funções sociais da
cidade e da propriedade, é possibilitar a baixa do custo do acesso à terra
legal e urbanizada no Brasil.

O direito de superfície não se confunde com a Concessão de Direito Real de


Uso (CDRU), pois no último o concessionário frui a utilidade do bem apenas
enquanto exigirem suas necessidades pessoais e de sua família, o que não ocorre
no primeiro.

Cessão de Posse
A cessão de posse permite que ao Poder Público e entidades delegadas, na
forma do artigo 26, da Lei 6.766/79, ceder a posse de terrenos destinados a
loteamentos populares, nos quais tenha ocorrido imissão provisória na posse. O
referido instrumento se diferencia totalmente dos demais, pois na aplicação do
mesmo, o Poder Público não tem a posse definitiva nem a propriedade, haja vista
não ter ocorrido o encerramento das ações judiciais de desapropriação, com o
pagamento ou depósito do valor do imóvel desapropriado.
A cessão de posse aplica-se no caso de promoção de loteamento popular em
área que não é pública e esteja passando por processo de desapropriação, no qual
62

já tenha ocorrido a imissão provisória na posse.


Com o encerramento da demanda judicial de desapropriação, a posse
converter-se-á em propriedade e na forma do § 5º, do artigo 26, da Lei 6.766/79, “a
sua cessão, em compromisso de compra e venda ou venda e compra, conforme
haja obrigações a cumprir ou estejam elas cumpridas, circunstância que,
demonstradas ao Registro de Imóveis, serão averbadas na matrícula relativa ao
lote”.

Autorização de Uso
A autorização de uso é ato administrativo unilateral, discricionário, revestido de
precariedade, através do qual o Poder Público confere ao particular o uso de bem
público.
A autorização em questão, não se confunde com a autorização de uso descrita
na Medida Provisória nº 2.220/2001, pelo fato de que a mesma se reveste de
precariedade, o que não ocorre com aquela, que decorre de ocupação de imóvel
observando-se determinado tempo, posse mansa e pacífica, bem como o tamanho
de área.
A autorização de uso em questão deverá ser utilizada de forma provisória na
medida em que com a aplicação do referido instrumento, existe de fato a
preponderância do interesse privado sobre o interesse público, não sendo portanto
um instrumento apropriado para assegurar a segurança jurídica da posse ao longo
do tempo, tanto que no processo de regularização fundiária deverá apenas
assegurar a permanência do possuidor em bem público, apenas de forma provisória.

Compra e Venda
Atualmente, a compra e venda envolvendo imóveis públicos encontra-se
regulada principalmente na Lei nº 9.636/98, constituindo-se em contrato através do
qual uma das partes transfere à outra sua propriedade, mediante pagamento em
dinheiro, aplicando-se no que for compatível as normas do Código Civil.
No âmbito da compra e venda, envolvendo regularização fundiária, é curial
destacar, que em áreas públicas, deve ser observado que a área objeto da
transação será destinada para uso de moradia de interesse social, caso a área
venha tendo outro uso.
No caso da compra e venda, deve-se obter a competente autorização legal
63

para que a área seja devidamente transferida e finalmente deverá ser declarada a
dispensa de licitação, restando consignado que a operação estará sendo realizada
para atender demanda de programa habitacional ou de regularização fundiária de
interesse social na forma do artigo 17, da Lei nº 8.666/93.
Também se aplicam as regras da compra e venda nos casos de promessa, na
qual o vendedor se obriga a vender um imóvel pelo preço e condições acordadas,
mediante compromisso de firmar a competente escritura definitiva de compra e
venda com o cumprimento das obrigações assumidas.

Doação
A doação consiste em contrato, através do qual o proprietário (doador), por
liberalidade, transfere do seu patrimônio bem para outrem (donatário), que o aceita.
É possível a utilização da doação de bens públicos, mas para que tal ocorra, far-se-á
necessária a demonstração de atendimento ao interesse público
O Poder Público deverá atentar para que a área seja destinada para uso de
moradia de interesse social, devendo obter autorização legal e declarar a dispensa
de licitação.
A doação poderá conter encargos, que caso não sejam cumpridos, ensejarão a
reversão do bem ao Poder Público, conforme explicita a Lei nº 9.636/98.
Entendemos em concordância com Carvalho Filho (2009, p. 1129), que a
doação deverá sempre que possível ser substituída pela “concessão de direito real
de uso, instituto pelo qual não há perda patrimonial do domínio Estatal”, permitindo
assim, que seja verificado se o imóvel está sendo destinado essencialmente para
atender o direito à moradia.

Permuta
Considera-se permuta o contrato através do qual determinada pessoa transfere
a outrem um bem do seu patrimônio e recebe outro bem equivalente. De fato, ocorre
uma troca entre as partes contratantes, onde se dá uma alienação e uma aquisição
simultâneas.
O Poder Público deverá atentar para que a área seja destinada para uso de
moradia de interesse social, devendo obter autorização legal e declarar a dispensa
de licitação.
Para fins de regularização fundiária, o Poder Público poderá ceder imóvel de
64

sua titularidade ao particular que teve imóvel ocupado para regularizar a situação
dos possuidores.

Dação em pagamento
A dação em pagamento é forma de extinção de uma obrigação consistente no
pagamento da dívida mediante a entrega de um objeto diverso daquele
convencionado. Considerando a regularização fundiária, o devedor transferiria ao
credor da obrigação um bem imóvel de sua propriedade, que poderia ser utilizado
para regularizar situações onde houvesse ocupações de caráter social.
Para efeito de exemplificar a aplicação do instrumento, podemos citar o caso de
um devedor de Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), que para efeito se honrar
com a obrigação, poderá transferir o bem ao Município, que na área objeto da dação
em pagamento, poderá instalar e/ou regularizar moradias populares.
O Poder Público deverá atentar para que a área seja destinada para uso de
moradia de interesse social, devendo obter autorização legal e declarar a dispensa
de licitação.

Aforamento
Conforme anteriormente tratado, o aforamento é ato por meio do qual a União
atribui a terceiro o domínio útil de imóvel de sua propriedade, obrigando-se o foreiro
ao pagamento do foro anual, equivalente ao percentual de 0,6% do valor do terreno.
O aforamento pode ser usado quando a União ostentar interesse em manter o
vínculo de propriedade, mas reconhecer a possibilidade de permitir que particulares
se estabeleçam definitivamente na área. No âmbito da regularização fundiária, o
instrumento pode ter grande relevância, servindo mesmo para que sejam realizadas
ações conjuntas entre os entes da Federação.
Para efeito de demonstrar a relevância do instrumento, vale citar o aforamento
concedido pela União ao Município do Rio de Janeiro, através da Portaria do
Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão de nº 81/2003, para que fosse
viabilizado projeto de urbanização e regularização fundiária para beneficiar famílias
de baixa renda e carentes da área denominada “Parque Royal”, situada no bairro da
Ilha do Governador.
65

Ocupação
A ocupação encontra-se regulada pelas Leis nº 9.636/98 e 11.481/2007 e nos
termos da referida legislação, a inscrição de ocupação, se constitui em ato
administrativo precário, resolúvel a qualquer tempo, que pressupõe o efetivo
aproveitamento do terreno pelo ocupante, nos termos do regulamento, outorgada
pela administração depois de analisada a conveniência e oportunidade, e gera
obrigação de pagamento anual da taxa de ocupação.
Face a própria lei especificar a precariedade do instrumento, o que não
representará maior segurança jurídica à posse, não se permite a sua utilização para
que se obtenha um processo de regularização fundiária permanente, haja vista que
a inscrição de ocupação não gera direito ao ocupante sobre o imóvel, cingindo-se a
ser levado a efeito o reconhecimento de uma situação de fato de caráter meramente
transitório.

Cessão de Uso
A cessão de uso é instrumento que a União se utiliza para conceder a terceiros
(Estados, Municípios ou particulares) direitos reais sobre os seus bens, de forma
gratuita ou em condições especiais na forma definida pela Secretaria do Patrimônio
da União.
A cessão será formalizada mediante termo ou contrato do qual constarão
expressamente as condições estabelecidas, entre as quais a finalidade da sua
realização e o prazo para seu cumprimento, e tornar-se-á nula, independentemente
de ato especial, se ao imóvel, no todo ou em parte, vier a ser dada aplicação diversa
da prevista no ato autorizativo e conseqüente termo ou contrato.

Demarcação Urbanística
A Lei nº 11.977/2009 criou importantes instrumentos e mecanismos específicos
para a regularização fundiária de interesse social, com o objetivo de facilitar e
agilizar a concretização do direito à moradia, merecendo especial relevo a
demarcação urbanística e a legitimação de posse.
A demarcação urbanística consiste na delimitação de uma área ocupada para
fins habitacionais, de domínio público ou privado, por meio da identificação de seus
limites, confrontantes, área de superfície e localização, para a realização de
procedimentos de regularização fundiária de interesse social, conforme disposto no
66

artigo 56, da Lei nº 11.977/200937.


O instrumento é voltado para intervenção em áreas de ocupação já
consolidada, onde não haja oposição do proprietário do imóvel. Como a demarcação
só pode ser aplicada nos casos de regularização fundiária de interesse social, a área
deve ser ocupada predominantemente por população de baixa renda e atender a
pelo menos um dos requisitos exigidos para essa modalidade de regularização.
A demarcação urbanística somente pode ser feita pelo Poder Público, ou seja,
pela União, pelos Estados, pelos Municípios e pelo Distrito Federal, incluindo seus
órgãos da administração indireta. Nos casos de terras particulares, qualquer um
desses entes pode fazer a demarcação urbanística. Nos casos de áreas públicas,
qualquer ente pode fazer a demarcação de terras de seu próprio domínio.

Legitimação de Posse
A legitimação de posse é um instrumento voltado para o reconhecimento da
posse de moradores de áreas objeto de demarcação urbanística. Trata-se da
identificação pelo poder público de uma situação de fato, que é a posse mansa e
pacífica de uma área por pessoas que não possuem título de propriedade ou de
concessão e que não sejam foreiras de outro imóvel urbano ou rural.
Quando feita em áreas privadas, a legitimação de posse possibilita a aquisição
de propriedade por meio da usucapião administrativa ou extrajudicial, na forma do
artigo 60, da Lei nº 11.977/200938. Em relação a áreas públicas, pode facilitar a
instrução de pedidos de concessão de uso para fins de moradia ou de outros
instrumentos definidos pelo titular de domínio da área.
Na forma do artigo 59, da Lei nº 11.977/2009, a legitimação de posse será
concedida aos moradores cadastrados pelo poder público, desde que não sejam
concessionários, foreiros ou proprietários de outro imóvel urbano ou rural e não
sejam beneficiários de legitimação de posse concedida anteriormente. A legitimação
de posse também será concedida ao coproprietário da gleba, titular de cotas ou

37
Art. 56. O poder público responsável pela regularização fundiária de interesse social poderá lavrar auto de
demarcação urbanística, com base no levantamento da situação da área a ser regularizada e na caracterização
da ocupação.
38
Art. 60. Sem prejuízo dos direitos decorrentes da posse exercida anteriormente, o detentor do título de
legitimação de posse, após 5 (cinco) anos de seu registro, poderá requerer ao oficial de registro de imóveis a
conversão desse título em registro de propriedade, tendo em vista sua aquisição por usucapião, nos termos do
art. 183 da Constituição Federal.
67

frações ideais, devidamente cadastrado pelo poder público, desde que exerça seu
direito de propriedade em um lote individualizado e identificado no parcelamento
registrado.

Usucapião
Segundo a definição de Rizzardo (2006, p. 248), a usucapião de bem imóvel
pode ser assim compreendida

[...] cuida-se de um modo originário de aquisição, pelo qual a pessoa exerce


a posse em um imóvel, por certo prazo previsto em lei, adquire-lhe o
domínio, desde que sua posse tenha satisfeito certos requisitos, ou seja,
revele que sempre foi pacífica, mansa e ininterrupta, sem oposição alguma
do titular do domínio e com o animus domini.

Infere-se do conceito acima apresentado, que são pressuposto da usucapião a


coisa hábil (res habilis), ou seja o imóvel suscetível de ser usucapido, a posse ad
usucapionem, ou seja, aquela revestida de continuidade e incontestabilidade e
finalmente o animus domini, que representa que o possuidor deverá possuir o bem
como de sua titularidade.
De fato, a usucapião, também chamada de prescrição aquisitiva é forma
originária de aquisição da propriedade, que se dá em razão da posse, mansa e
pacífica, sobre o bem, por determinado lapso de tempo.
Esclarecemos anteriormente, que são insuscetíveis de usucapião os bens
públicos, mas devemos destacar que em que pese ser inadmissível a referida
usucapião, afigura-se passível de usucapião o domínio útil, conforme jurisprudência
firmada tanto no Superior Tribunal de Justiça, quanto no Supremo Tribunal Federal39,
cumprindo entender o domínio útil como o direito de uso e gozo sobre o bem.
Merece destaque ainda, que os bens pertencentes às comunidades indígenas

39
“CIVIL. AÇÃO DE USUCAPIÃO. IMÓVEL FOREIRO. LOCALIZAÇÃO EM ÁREA DE FRONTEIRA. DOMÍNIO
ÚTIL USUCAPÍVEL. I. Possível a usucapião do domínio útil de imóvel reconhecidamente foreiro, ainda que
situado em área de fronteira. II. Recurso especial não conhecido.” (REsp 262.071/RS, Rel. Ministro ALDIR
PASSARINHO JUNIOR, QUARTA TURMA, julgado em 05/10/2006, DJ 06/11/2006, p. 327)
“Civil e processo civil. Recurso especial. Usucapião. Domínio público. Enfiteuse. - É possível reconhecer a
usucapião do domínio útil de bem público sobre o qual tinha sido, anteriormente, instituída enfiteuse, pois, nesta
circunstância, existe apenas a substituição do enfiteuta pelo usucapiente, não trazendo qualquer prejuízo ao
Estado. Recurso especial não conhecido.” (REsp 575.572/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA
TURMA, julgado em 06/09/2005, DJ 06/02/2006, p. 276)
“AGRAVO REGIMENTAL. USUCAPIÃO DE DOMÍNIO ÚTIL DE BEM PÚBLICO (TERRENO DE MARINHA).
VIOLAÇÃO AO ART. 183, § 3º, DA CONSTITUIÇÃO. INOCORRÊNCIA. O ajuizamento de ação contra o foreiro,
na qual se pretende usucapião do domínio útil do bem, não viola a regra de que os bens públicos não se
adquirem por usucapião. Precedente: RE 82.106, RTJ 87/505. Agravo a que se nega provimento.” (RE 218324
AgR, Relator (a): Min. JOAQUIM BARBOSA, Segunda Turma, julgado em 20/04/2010, DJe-096 DIVULG 27-05-
2010 PUBLIC 28-05-2010 EMENT VOL-02403-04 PP-01228 RT v. 99, n. 899, 2010, p. 103-105).
68

também não são passíveis de serem usucapidos, face ao disposto no § 4º, do artigo
231, da Constituição Federal de 198840.

No direito brasileiro, temos várias modalidades de usucapião. A usucapião


especial urbana individual tem previsão em diversos dispositivos do nosso
ordenamento. Sua previsão inicial decorre do artigo 183, da Constituição Federal de
198841, tendo ainda previsão nos §§ 1º e 2º, do artigo 1.240, do Código Civil e no
artigo 9º, do Estatuto da Cidade, que em síntese reproduzem o mandamento
constitucional. Na referida modalidade de usucapião, demanda-se que o
usucapiente possua sem oposição e ininterruptamente área urbana ou edificação de
até 250 m² com animus domini por 05 (cinco) anos ininterruptamente, utilizando o
imóvel para sua própria moradia e de usa família, sendo certo ainda, que é condição
para obter a usucapião, que o mesmo não seja proprietário de outro imóvel urbano
ou rural.

A usucapião coletiva tem previsão no Estatuto da Cidade, no seu artigo 1042,


sendo um instrumento de regularização fundiária de áreas particulares superiores a
250m² ocupadas por população de baixa renda para fins de moradia e nas quais não
seja possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, tendo ainda como
requisitos a posse mansa, pacífica, contínua e sem posição; animus domini por 05
(cinco) anos ininterruptamente, não podendo o usucapiente ser proprietário de outro
imóvel urbano ou rural.

A usucapião ordinária possui previsão legal no artigo 1.242, do Código Civil43,


tendo como requisitos a posse mansa, pacífica, contínua e sem posição; animus
domini por 10 (dez) anos ininterruptamente; justo título, que abrange todo e qualquer

40
Art. 231 [...]. §4º. As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas,
imprescritíveis.
41
Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco
anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o omínio,
desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
42
Art. 10. As áreas urbanas com mais de duzentos e cinqüenta metros quadrados, ocupadas por população de
baixa renda para sua moradia, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível
identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, são susceptíveis de serem usucapidas coletivamente, desde
que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural.
43
Art. 1.242. Adquire também a propriedade do imóvel aquele que, contínua e incontestadamente, com justo
título e boa-fé, o possuir por dez anos. Parágrafo único. Será de cinco anos o prazo previsto neste artigo se o
imóvel houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelada
posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos
de interesse social e econômico.
69

ato jurídico hábil, em tese a adquirir a propriedade, independentemente de registro e


finalmente boa-fé.
O prazo da usucapião ordinária poderá ser reduzido para 05 (cinco) anos, “se o
imóvel houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do
respectivo cartório, cancelada posteriormente, desde que os possuidores nele
tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e
econômico”.
A usucapião extraordinária possui previsão legal no artigo 1.238, do Código
Civil44, tendo como requisitos a posse mansa, pacífica, contínua e sem posição;
animus domini por 15 (quinze) anos ininterruptamente, independentemente da
demonstração de justo título e boa-fé.
O prazo da usucapião extraordinária poderá ser reduzido para 10 (cinco) anos,
“se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele
realizado obras ou serviços de caráter produtivo”.
Em que pese não se inserir diretamente no contexto tratado no presente
trabalho, não se pode deixar de mencionar, que a Lei º 12.424/2011 criou uma nova
modalidade de usucapião, a usucapião especial urbana por abandono do lar, o que
ensejou a atual redação do artigo 1.240-A, do Código Civil, para dispor que “aquele
que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com
exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros
quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que
abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o
domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural”.

Desapropriação
A desapropriação é uma forma extraordinária de aquisição da propriedade
privada pelo Poder Público, sujeitando-se ao cumprimento de requisitos legais. O
referido instrumento pode ser utilizado em caso de necessidade, de utilidade pública
ou de interesse social.

44
Art. 1.238. Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel,
adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare
por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis. Parágrafo único. O prazo
estabelecido neste artigo reduzir-se-á a dez anos se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia
habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo.
70

Em que pese a importância do instrumento, o mesmo pressupõe um uso muito


criterioso, haja vista que impõe como regra considerável ônus financeiro sobre o
Poder Público, diante da necessidade de prévia e justa indenização em dinheiro ou
prévio depósito judicial do valor da indenização.

Zonas de Especial Interesse Social (ZEIS)


Para além dos instrumentos jurídico-urbanísticos acima descritos, não
podermos deixar de mencionar dentro do arcabouço jurídico, poderemos ter a
instituição de Zonas de Especial Interesse Social (ZEIS), no sentido de proteger as
habitações de interesse social e estimular a regularização fundiária.
O estabelecimento pelo Município de Zonas de Especial Interesse Social
(ZEIS), que se encontram previstas no Estatuto da Cidade autoriza a demarcação e
destinação de determinadas áreas da Cidade, para que de forma prioritária, sejam
destinadas às moradias populares, permitindo a implantação de habitação de
interesse social. As ZEIS representam importante instrumento para que a população
de baixa renda ocupe áreas dotadas de infra-estrutura e não seja afastada pelo
processo de especulação imobiliária.
No universo jurídico, temos ainda que citar os instrumentos que podem ser
utilizados no processo de regularização fundiária, sendo eles o Inquérito Civil e Ação
Civil Pública, previstos na Lei nº 7.347/85, que objetivam atuar na proteção de
direitos metaindividuais, inclusive a ordem urbanística.
Considerando as nuanças do processo de regularização fundiária em áreas
públicas, entendemos que os principais instrumentos são a Concessão de Uso
Especial para fins de Moradia (CUEM) e a Concessão de Direito Real de Uso
(CDRU), pois, os mesmos permitem que os possuidores do bem público tenham
efetiva segurança da posse, através de títulos que não ostentam qualquer mácula de
precariedade. Há no processo de outorga dos referidos instrumentos um amplo
processo de debate entre o Poder Público e os possuidores, fazendo com que haja
uma efetivação da cidadania com a conquista de direitos, de modo a ser protegido o
direito fundamental à moradia.
A CUEM e a CDRU, preservam integralmente o interesse público e efetivam a
finalidade do Estado que é o bem comum e deve ser destacado, que caso não
observados os termos das referidas concessões, existe a possibilidade de extinção
das mesmas e a destinação do bem para outros particulares que demandam por
71

habitação.
Em prosseguimento, vamos enfrentar os dilemas e encruzilhadas para a
regularização fundiária no Brasil, onde a cidade formal ostenta como grande traço
característico o recheio da informalidade, decorrente de um modelo de urbanização
excludente.
O vasto e complexo aparato normativo existente contribui não somente para
criar o processo de informalidade, como também para reforçá-lo e reproduzi-lo. O
processo de regularização fundiária para que seja efetivamente operacionalizado,
pressupõe uma atuação multidisciplinar, na qual múltiplos saberes devem estar
envolvidos, principalmente a arquitetura, o direito, a engenharia, o serviço social
dentre outros. A legislação urbanística é extremamente intrincada e muitas vezes
ininteligível para um profissional do direito, muito mais o será para um posseiro,
cujas condições financeiras não permitiu outra solução para resolver a questão da
moradia.
Os obstáculos para que se avance com a regularização fundiária não se
encontram apenas no plano jurídico-normativo, mas também possuem outros
determinantes de natureza política, institucional e social, conforme restará
demonstrado.
Nos capítulos seguintes, tomaremos o estudo do conflito em torno da
Comunidade do Horto. A área escolhida encontra-se com processo de regularização
fundiária em curso junto a Secretaria do Patrimônio da União no Rio de Janeiro e
engloba uma grande quantidade de atores direta e indiretamente envolvidos e
afetados com os rumos da regularização da posse da área situada no Jardim
Botânico. Trata-se de uma região cujo solo possui um alto valor e é disputado por
interesses diversos e contraditórios. Por se tratar de uma área nacionalmente
conhecida, os ecos deste conflito fundiário se tem feito escutar em inúmeros canais
midiáticos, jurídicos e políticos.
Buscaremos considerar principalmente a natureza das relações existentes
entre os diversos atores envolvidos no procedimento de regularização fundiária, para
compreensão do fenômeno investigado e explicá-las com base nas matrizes teóricas
propostas.
A complexidade do caso analisado nos fornecerá acreditamos, um caso
paradigmático para a discussão dos entraves que envolvem a efetividade da
regularização fundiária em áreas públicas no Brasil. O estudo de caso proposto,
72

pretende produzir o conhecimento com base na análise da experiência dos agentes


individuais e coletivos, ao mesmo tempo em que propiciará uma avaliação do
rendimento das abordagens teóricas para a compreensão de políticas públicas
relacionadas à regularização fundiária.
73

4 DA PRÁTICA PARA A TEORIA: DIFERENTES PERSPECTIVAS


TEÓRICAS PARA A COMPREENSÃO DA REGULARIZAÇÃO
FUNDIÁRIA NO BRASIL

A questão da regularização fundiário no Brasil se afigura intrincada e


geralmente sua análise se faz através de relatos de experiências e apresentações
de números oficiais ou não oficiais para identificar o seu processo de avanço ou
retrocesso. No entanto, tais análises, em geral, costumam se limitar às explicações
técnicas em torno dos problemas empíricos resultantes de entraves gerados na
implementação dos instrumentos legais existentes. No mais das vezes não
contrapõem esses dados a um quadro mais amplo dos problemas sociais e políticos
da sociedade brasileira e não oferecem uma análise que permita compreender os
problemas brasileiros no conjunto dos problemas contemporâneos relacionados à
habitação e aos usos do solo urbano em outros países e sociedades. Não oferecem,
enfim, uma visão teórica abrangente que possa ajudar na produção de um
diagnóstico unificado e universal das questões relacionadas à natureza e às formas
de resolução dos conflitos fundiários. Nessa perspectiva, buscando suprir essa
lacuna, busca-se nesse capítulo incorporar as abordagens teóricas do pluralismo, do
estruturalismo, do institucionalismo e de sua vertente neoinstitucionalista, na
compreensão/construção dos conflitos fundiários.

4.1 A perspectiva estruturalista para o entendimento dos problemas


públicos
Uma das referências clássicas para o estudo da questão fundiária no contexto
das sociedades capitalistas é O Capital, de Karl Marx, especialmente o capítulo
intitulado: A Chamada Acumulação Primitiva45. Conforme o autor:

A chamada acumulação primitiva é apenas o processo histórico que


dissocia o trabalhador dos meios de produção. É considerada primitiva
porque constitui a pré-história do capital e do modo de produção capitalista”
(MARX, 1980, p. 830). E completa: “A expropriação do produtor rural, do
camponês, que fica assim privado de suas terras, constitui a base de todo o
processo (MARX,1980, p. 831).

Seguindo os princípios gerais de sua teoria sobre a estrutura do capitalismo,

45
MARX, Karl. O Capital. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1980. Livro 1 – O Processo de Produção
do Capital. Volume 2.
74

Marx acreditava que para evitar uma explicação circular sobre como a acumulação
de capital produz a mais valia, e a mais valia a produção capitalista - o que
pressupõe a existência de grandes quantidades de capital e de força de trabalho
mobilizada na produção de mercadorias - era necessário identificar uma acumulação
capitalista prévia ao próprio modo de produção capitalista. Aquilo que Adam Smith,
segundo o autor, chamava de “previous acumulation”.
Eis que, para Marx, a acumulação de capital antes do capitalismo, ainda
durante o período feudal, constituía a origem do próprio capital.
Embora esse processo tenha tomado formas e realçado aspectos diferentes em
diversos países da Europa, já nos séculos XIV e XV, a Inglaterra é tomada por Marx
como o modelo “clássico” desse processo.
Na Inglaterra, conforme Marx, assim como na maior parte da Europa, em fins
do século XIV, a servidão tinha desaparecido como força de trabalho dominante. Já
no século XV a maioria da população consistia de camponeses livres embora
revestidos de inúmeras formas de propriedade e arrendamento da terra que
lavravam. Em todos os países da Europa, a produção feudal se caracterizava pela
repartição da terra pelo maior número de camponeses. Assim, afirmava Marx (1980,
p. 833) “O poder do senhor feudal, como o dos soberanos, não depende da
magnitude de suas rendas, mas do número de seus súditos, ou melhor do número
de camponeses estabelecidos em seus domínios”.
O início do fim dessa situação começa com o surgimento de uma nova classe
feudal que substitui a antiga classe de senhores arruinados pela guerra. Num
processo que tem início no final do século XV e nas primeiras décadas do século
XVI o grande senhor feudal vai usurpando agressivamente a pequena propriedade
camponesa, destruindo lavouras e substituindo-as por pastagens para alimentar com
a lã das ovelhas a nascente indústria têxtil das cidades. Cria nesse processo um
enorme proletariado rural que sem os meios de produção engrossará com o decorrer
do tempo o exército industrial de reserva nas florescentes cidades industriais
ingleses.
Como afirma Marx, esse processo na Inglaterra pode ser considerado clássico
por que mostra com clareza quase didática a forma como se constitui o capital ainda
no feudalismo e com maiores ou menores diferenças tal é o que ocorrerá na Europa
ao longo dos séculos seguintes.
O avanço dos capitalistas contra as terras comunais e contra as propriedades
75

territoriais da Igreja completa esse processo que resulta na constituição ao mesmo


tempo da oferta de terras para produção de matérias primas para a indústria e a
criação de uma abundante oferta de mão de obra disposta ao trabalho por já não
dispor mais de qualquer outro meio de sobrevivência. O êxodo para as nascentes
cidades industriais torna-se a saída possível para essa situação.
Alguns dos principais historiadores marxistas a exemplo de Maurice Dobb
(1980) seguem as linhas gerais da análise de Marx sobre o processo de transição da
sociedade feudal para a sociedade capitalista. Dobb, por exemplo, argumenta que o
esvaziamento do campo como resultado da expropriação da terra do pequeno
campesinato segue em paralelo tanto na Inglaterra quanto na França e pelos
mesmos motivos, o surgimento de uma frenética atividade urbana relacionada ao
incremento das atividades comerciais e industriais. Em que pese as diferentes
reações das aristocracias locais, inglesa e francesa, por exemplo, o processo se
repete em função das condições estruturais dessas transformações46. Na origem da
concentração da pequena propriedade nas mãos dos empreendedores da nova
nobreza capitalista e na privatização das terras coletivas pode ser identificado o
surgimento do capital industrial e o crescimento de um proletariado urbano que
impulsionaria num e noutro país o crescimento da indústria e o assalariamento da
mão de obra livre cuja origem era o camponês expropriado47.
As condições de moradia e trabalho que esses camponeses expropriados
encontraram nas grandes cidades Inglesas, especialmente Londres, são descritas
com precisão em seus detalhes mais cruentos no magistral trabalho do filantropista
Charles Booth: Life and Labor of the People in London, publicado em nove volumes
entre 1892 e 189748.
Trabalhando com uma equipe de investigadores e com técnicas que seriam

46
DOBB, Maurice. A evolução do capitalismo. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1980.
47
As afirmações de Murice Dobb comportam também críticas. A mais vigorosa talvez seja de Alexander
Gershenkron. Para este autor, em sintonia com a crítica de Macpherson sobre a especificidade do processo de
industrialização da Inglaterra, o desenvolvimento da indústria na França só terá ocorrido em função da
intervenção decisiva do Estado no incentivo ao desenvolvimento industrial. Nada no desenvolvimento industrial
na França, segundo o autor, lembra o processo relativamente espontâneo e absolutamente sem paralelo ocorrido
na Inglaterra.

GERSCHENKRON, Alexander. Economic backwardness in historical perspective: a book of essays.


Cambridge, MA: Belknap Press of Harvard University Press, 1962.
48
CHARLES BOOTH ONLINE ARCHIVE. Charles Booth (1840-1916): a biography. Disponível em:
<http://booth.lse.ac.uk/static/a/2.html>. Acesso em: 28 ago. 2013.
76

mais tarde incorporadas à moderna metodologia dos censos populacionais49 Booth


chega à incrível constatação de que por volta dos anos de 1880 no East End of
London cerca de 35% por cento da população viviam em condições de extrema
pobreza. Como resultado desses estudos Booth desenvolve a metodologia para a
criação da chamada “linha de pobreza” que estabelecia critérios de renda diária
abaixo dos quais uma pessoa ou família poderiam ser consideradas pobres.
As condições das classes trabalhadoras na Europa podem ainda ser estudadas
pelos trabalhos de Fréderic Le Play, especialmente em sua obra Les Ouvries
Europeens, de 1855, e no livro traduzido para o inglês The organization of Labor, de
187250. Os resultados de suas investigações para a França e demais países
continentais não distam muito das conclusões de Booth para o contexto Inglês. Em
toda a Europa as condições dos trabalhadores na nascente indústria eram as piores
possíveis e a origem dessa mão de obra disponível nas cidades guardava relação
com a deterioração das condições de vida no campo em decorrência da
concentração de terras nas mãos dos empresários capitalistas.
Mas, sem sobra de dúvidas, será Friedrich Engels o autor que melhor
descreverá a organização espacial, econômica e social das cidades industriais na
Inglaterra ao integrar os estudos das condições econômicas do capitalismo de Marx
com seus estudos empíricos sobre a situação habitacional de cidades como
Manchester e Londres. As preciosas observações e análises de Engels sobre a vida
urbana da Inglaterra nos século XIX estão em seu clássico estudo intitulado “A
Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra”51.
Harvey (1980, p.113), atribui a Engels a descrição do que este chama de
“fenômeno das zonas concêntricas” com o qual analisa a ocupação espacial das
cidades industriais inglesas relacionando-a com a estrutura de classes. Vale repetir
aqui a citação que Harvey retira do próprio Engels para demonstrar sua acurada
interpretação da ocupação espacial das cidades industriais capitalistas segundo as
orientações dos interesses e das condições objetivas das classes sociais.

49
A Equipe de Charles Booth incluía sua prima Beatrice Potter, que inaugura um tipo de sociologia do gênero
quando escreve sobre as condições de vida e trabalho das mulheres londrinas.
50
LE PLAY, F. The organization of labor in accordance with custom and the law of decalogue. Filadelfia,
laxton: Remsen & Haffelfinger, 1872. Disponível em:
<http://archive.org/stream/organizationofla00lepl#page/n5/mode/2upn>. Acesso em: nov. 2013.
51
A edição brasileira usada neste trabalho é a de 1985:
ENGELS, Friedrich. A situação da Classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Global editora, 1985.
77

Manchester contém, em seu centro, um distrito comercial mais do que


amplo [...] consistindo quase inteiramente de escritórios e armazéns. O
distrito inteiro está quase sem moradores, e é solitário e deserto à noite [...]
O distrito é atravessado ao meio por ruas principais onde se concentra o
grande comércio e o nível inferior é guarnecido de lojas iluminadas [...] Com
exceção deste distrito comercial, toda própria Manchester, todo o Salford e
o Hulme [...] são quarteirões homogêneos de gente trabalhadora,
estendidos como um circuito, espalhados em meia milha de largura, em
torno do distrito comercial. Por fora, além desse circuito, vive a média e alta
burguesia em ruas regularmente enfeitadas na vizinhança de quarteirões de
trabalhadores [...] a alta burguesia em vilas remotas com jardins [...] ao ar
livre e saudável dos campos [...] servidos a cada meia ou quarto de hora por
ônibus que se dirigem à cidade. E a parte mais hábil do arranjo é que os
membros da aristocracia do dinheiro podem tomar o caminho mais curto em
meio a todos os distritos de trabalhadores sem nunca ver que estes estão
no meio da miséria suja que se esconde à direita e à esquerda [...] Eu sei
muito bem que esse plano hipócrita é mais ou menos comum a todas as
cidades; [...] mas ao mesmo tempo eu nunca vi tão sistemática separação
da classe trabalhadora das ruas principais, com o objetivo que possa ocultar
tudo que possa afrontar os olhos e os nervos da burguesia, como em
Manchester. (ENGELS apud HARVEY, 1980, p. 113-114).

Os estudos de Marx, de Engels e dos historiadores europeus do século XIX


fundamentam a perspectiva estruturalista para a abordagem dos fenômenos
associados a apropriação da terra, expulsão dos camponeses e a transformação da
pequena propriedade e da propriedade comunal em apêndices da produção
capitalista52. De maneira geral, mostram como que o surgimento das cidades estava
diretamente relacionado ao novo padrão produtivo da nascente sociedade industrial
e contextualizam com exemplos históricos a natureza dessas mudanças.
Harvey (1980) atualiza essa perspectiva sobre a estrutura espacial comum das
cidades industriais e a relação da produção capitalista com a distribuição espacial
das moradias de ricos e pobres em seus estudos sobre a formação dos guetos.
Conforme afirma o uso urbano do solo guarda uma íntima relação com a competição
que se estabelece com respeito à natureza de seu uso e as necessidades dos
grupos sociais de rico e pobres. Em suas palavras:

52
Naturalmente, essa explicação comporta inúmeras críticas. Vale mencionar especialmente a crítica de A.
Macpharlane. Em termos gerais esse autor crítica o caráter generalista e absolutamente desprovido de
evidências empíricas sobre a possibilidade do processo de industrialização na Inglaterra servir de referência para
se pensar em algo como um modelo de transição de uma “sociedade feudal” para uma “sociedade capitalista”. A
lista de suas objeções começa pela própria noção de campesinato que na Inglaterra diferia totalmente da Europa
continental e ainda mais dos países do leste europeu. Propriedade coletiva da terra, mão de obra familiar, falta
de um comércio monitorizado e inexistência de um mercado de terras são características que embora fossem
comuns na Europa oriental nunca foram centrais na Inglaterra.

MACPHARLANE, A. Família, propriedade e transição social: as origens do individualismo inglês. Rio de


Janeiro: Zahar Editores, 1980.
78

A ordem competitiva desenvolve-se de modo que as rendas do solo são


mais altas perto do centro de atividade [...] Se agora consideramos a
escolha residencial aberta para dois grupos na população (um rico e outro
pobre), com relação a um centro de emprego, podemos predizer onde cada
um deve viver, examinando a estrutura de suas curvas de quantidade de
renda. Para o grupo pobre a curva de quantidade de renda é
caracteristicamente alta, desde que o pobre tem pouco dinheiro para gastar
com transporte; e por isso seu poder de decidir sobre o uso do solo declina
rapidamente com a distância do lugar de emprego. O grupo rico, por outro
lado, tem caracteristicamente uma curva de renda baixa desde que seu
poder de decidir não é muito afetado pela soma de dinheiro gasta em
transporte. Quando colocados em competição entre si, encontramos o
grupo pobre forçado a viver no centro da cidade e o grupo rico vivendo fora
(tal como Engels descreveu). Isso significa que os pobres são forçados a
viver em solo de renda alta. A única maneira deles ajustarem-se a isso é,
naturalmente, poupar a quantidade de espaço que consomem, e apertar-se
em áreas bastante pequenas. (HARVEY, 1980, p.116).

Naturalmente, conforme o próprio autor, existem variáveis conjunturais do


mesmo modelo estrutural e isso pode ocorrer, por exemplo, quando o grupo rico
decide alterar a ordem de suas preferências em função das dificuldades de gestão
dos custos crescentes na área central, e este grupo decide que o tempo e os
inconvenientes de deslocamento da periferia ao centro não vale o sacrifícios da
organização da vida diária. Este grupo rico pode, então, alterar facilmente suas
preferências em função de quantidade de renda e voltar ao centro da cidade. Aos
pobres cumpre sacrificar o tempo gasto em infindáveis horas para o deslocamento
das periferias dos locais de emprego em busca da redução dos custos com a
moradia.
Com propriedade Harvey afirma que esta variante é observável nas grandes
cidades da América Latina onde a inexistência de um sistema razoável de estrutura
de transportes urbanos faz com que, diferentemente das cidades norte americanas e
europeias, o centro da cidade seja ocupado pelos grupos ricos e a periferia pelos
pobres. Podemos acrescentar e exemplificar que esse fenômeno do retorno dos
ricos ao centro da cidade vem acompanhado de investimentos estatais de
“recuperação” e “revitalização” das áreas centrais da cidade para a reacomodação
dos grupos de renda alta da sociedade.
Na tradição teórica marxista as teorias sobre o Estado e seu papel nas relações
entre as classes sociais sempre tiveram um lugar problemático a começar pela
própria ausência de uma explicação satisfatória do próprio Marx sobre as formas de
apropriação diferenciada pelas classes sociais no capitalismo das instituições e
instrumentos de ação estatais.
Contemporaneamente os autores que melhor enfrentaram a questão da relação
79

estrutural do Estado com a ordem dos interesses capitalistas foram Nicos Poulanzas
e Claus Offe.
Offe (1984), por exemplo, admite que na teoria de Estado de tradição Marxista
duas perspectivas têm dominado as especulações sobre o papel do Estado. A
primeira delas é exatamente aquela que recupera a perspectiva “instrumental” entre
a classe capitalista e o aparelho estatal. Afirma que essa perspectiva conduziu a
uma visão “estereotipada” e a “equívocos” na discussão da relação do Estado com
as classes sociais porque pressupõe uma fusão do Estado com os interesses
monopolistas das classes capitalistas. Lembra o autor, com razão, que o próprio
Marx apresentou uma versão mais sofisticada e matizada sobre a relação entre as
classes e os segmentos de classe e o Estado na sua obra O 18 Brumário. A visão
alternativa, que parece ao autor mais adequada, parte do pressuposto de que o
Estado em absoluto favorece interesses específicos de grupos. Em suas palavras:

O Estado nem está a serviço nem é ‘instrumento’ de uma classe contra a


outra. Sua estrutura e atividade consistem na imposição e na garantia
duradoura de regras que institucionalizam as relações de classe específicas
de uma sociedade capitalista. O Estado não defende os interesses
particulares de uma classe, mas sim os interesses comuns de todos os
membros de uma sociedade capitalista de classes. (OFFE, 1984, p. 123)

Nesse sentido, a estratégia geral da ação do Estado consistiria, segundo os


autores, em criar condições para que “cada cidadão [seja] incluído nas relações de
troca” (OFFE, 1984, p. 125).
Offe (1984, p. 128) complementa que o papel estratégico e mais abstrato do
Estado, consistiria em:

[...] tomar as medidas e criar as condições para que todos os sujeitos


jurídicos introduzam efetivamente nas relações de trabalho a sua
propriedade (em bens ou força de trabalho. Mesmo as áreas mais antigas
da atividade estatal (a formulação e aplicação das regras de direito privado,
a proteção à propriedade, o desenvolvimento do sistema monetário) podem
ser sem dificuldade ser subordinadas a esse ponto de referência comum.

E conclui Offe (1984, p. 128), que “Como se vê essa estratégia mais geral do
Estado capitalista não visa em absoluto a um proteção especial a um certo interesse
de classes, mas sim ao interesse geral em todas as classes na base das relações de
troca capitalista”
Por fim, com respeito à política do Estado afirma Offe (1984, p. 131), que “[...]
pode ser descrita como a de criação das condições nas quais se torna possível uma
80

relação de troca eficaz entre sujeitos jurídicos e econômicos”.


Essa perspectiva, indubitavelmente consegue explicar os múltiplos vínculos do
Estado com o sistema capitalista de classes sem apelar a uma visão maniqueísta e
simplificadora do Estado como títere dos interesses da burguesia. Dá uma visão sem
dúvida mais complexa para o fato de que o mesmo Estado que por vezes favorece o
capitalista com medidas de caráter tributário, subvenções e privilégios (OFFE, 1984,
p. 140) também oferece uma série de políticas de seguridade e proteção social aos
trabalhadores. Consegue, assim, oferecer uma visão integrada do papel
aparentemente contraditório do Estado capitalista cuja função precípua seria regular
as relações de troca num sistema complexo de produção de mercadorias.
A perspectiva que Poulanzas (2000, p. 26) oferece para o entendimento do
Estado procura superar os mesmos simplismos e reducionismos da visão do Estado
como instrumento direto e inconteste dos interesses da classe burguesa. O autor
reconhece, também, a ausência de uma teoria geral do Estado nos clássicos do
marxismo. Os problemas reais, afirma, são graves e complexos e jamais poderão
ser resolvidos por fórmulas grandiloquentes e generalizações simplificadoras. Em
suas palavras:

O Estado tem um papel essencial nas relações de produção e na


delimitação-reprodução das classes sociais, porque não se limita ao
exercício da repressão física organizada. O Estado também tem um papel
específico na organização das relações ideológicas e da ideologia
dominante [...] [contudo] o papel eminentemente positivo do Estado não se
limita à dupla repressão + ideologia.

Nesse sentido, para entender o Estado capitalista é necessário analisar a


reprodução e as transformações históricas de suas feições institucionais e as
diversas formações sociais e suas respectivas moldagens dos conflitos das classes
sociais, conforme acentua Poulanzas (2000, p. 24), “Uma teoria do Estado capitalista
só pode ser elaborada ao se relacionar este Estado com a história das lutas políticas
dentro do capitalismo”.
A visão de Poulanzas privilegia, portanto, a ligação do Estado às relações de
produção em seus diversos momentos históricos. Segundo o autor:

A materialidade institucional do Estado como aparelho ‘especial’ não pode


ser reduzida a seu papel na dominação política. Deve ser, antes de mais
nada, procurada na relação do Estado com as relações de produção e a
divisão do trabalho que elas implicam. (POULANZAS, 2000, p. 47).
81

No capitalismo, a especialização e a centralização, bem como seu


funcionamento hierárquico-burocrático implicam numa “atomização” do corpo político
em “indivíduos”. Assim a materialidade desse Estado atua e age sobre um corpo
social fracionado, “[...] homogêneo em sua divisão, uniforme no isolamento de seus
elementos, contínuo em sua atomização, desde o exército moderno à administração,
à justiça, à prisão, à escola, as mídias etc.”, conforme Poulanzas (2000, p. 61).
Como vimos as teorias inspiradas no marxismo defendem que a compreensão
da lógica que governa o uso do solo nas sociedades capitalistas não pode ser
desvinculada das condições gerais da produção capitalista e que implicam na
propriedade privada dos meios de produção, na liberalização da mão de obra servil
e a consequente transformação da produção de riqueza em produção de
mercadorias. Nesta perspectiva, o Estado assume o importante papel de regulação
das relações jurídicas que asseguram a cada um dos participantes desse processo,
tipicamente capitalistas e trabalhadores, as condições essenciais e a garantia da
integridade da venda (troca) de seus valores de uso (capital e trabalho).
A questão fundiária perpassa todo esse processo. Seja, num primeiro
momento, refletida na liberação das terras agrárias para produção de insumos para
a produção fabril, seja posteriormente, como condição das consequências do êxodo
rural provocado pelas transformações do campo, o que implica na recepção e na
organização dos camponeses e suas famílias transformados em trabalhadores
assalariados.
Os conflitos relativos à utilização do espaço físico das cidades, aos usos do
solo urbano, aparecem como problemas decorrentes da ordenação social que divide
e opõe a um só tempo a classe capitalista e classe trabalhadora, espaço fabril e
ordenação de moradias.

4.2 A perspectiva pluralista para o entendimento dos problemas


públicos
A perspectiva pluralista oferece uma visão particular do processo de formulação
das políticas públicas e de resolução dos conflitos nas sociedades capitalistas
contemporâneas. Nessa seção do trabalho nosso esforço será no sentido de colher
as contribuições possíveis dessa teoria para a compreensão da forma de atuação
dos atores e os constrangimentos das políticas da regularização fundiária. O
82

pluralismo se caracteriza pela concepção de que as sociedades complexas estão


organizadas em grupos de diversas naturezas: partidos, associações, sindicatos,
igrejas, lobbies cuja atuação junto aos órgãos da administração pública, o Estado,
compõe uma “arena” de disputas pela imposição de seus interesses, projetos e
visões de mundo. Segundo Alford e Friland (1991, p. 19), a base da perspectiva
pluralista consiste na análise da conduta política dos indivíduos e grupos e a
influência que têm suas ações sobre a tomada de decisões pelos governos.
Sob o prisma pluralista, os indivíduos praticam ações e se unem a grupos que
tenham afinidades com suas preferências e valores, podendo gerar organizações
(associações, grupos de pressão, etc.), que se mantenham sob uma base de
consensual de interesses comuns identificados em estatutos, programas e metas.
Desta forma, para essa abordagem, uma questão central se refere à participação
dos agentes na tomada de decisões. Assim, nos casos estudados neste trabalho,
buscar-se-á refletir sobre a atuação ativa dos atores no processo de regularização
fundiária da Comunidade do Horto.
Na perspectiva pluralista, o Estado está sujeito a pressões de múltiplos atores,
e consoante a isso atua de forma a filtrar os interesses particulares dos grupos
organizados com objetivo de obter decisões favoráveis aos seus interesses. Nesse
sentido, o Estado atuaria sem um centro próprio de interesses na medida em que
representa o conjunto de interesses da sociedade. Diante de uma perspectiva crítica,
mesmo tendo uma visão contrária a neutralidade do Estado, considera-se que a
abordagem pluralista pode dar uma contribuição na análise dos processos sociais,
ao acentuar o papel dos agentes na ação social.
Como acentuam Alford e Frieland (1991) são muitas as denominações
recebidas pela perspectiva pluralista para a análise da constituição e do papel do
Estado e sua relação com os diversos grupos da sociedade civil nas sociedades
complexas: “democrática”, “funcionalista”, “individualista”, “de mercado”. Todas essas
denominações podem ser subsumidas como “pluralistas” sem prejuízo à
compreensão das diferentes nuances dessa interpretação cujo ponto fulcral está na
concepção de que a política constitui uma arena aberta à disputa entre elites
estatais, partidos e os diversos grupos de representação concorrentes pelos
recursos públicos.
Uma versão seminal e bastante conhecida da perspectiva pluralista é a teoria
de T. H. Marshall (1950) e a sua conhecida ideia de um sistema de direitos de
83

cidadania que se institucionaliza por etapas com as conquistas de direitos civis,


políticos e sociais. Muito já se disse sobre o caráter funcionalista desta perspectiva
evolucionista de direitos que aparecem como uma construção de indivíduos
empenhados na afirmação de direitos que são conquistados e tornam-se
garantidores de uma cidadania plena para todos os indivíduos. A perspectiva
histórica de Marshall contemplava os séculos XVIII, XIX e XX como os momentos
históricos do desenvolvimento dos direitos abarcados pela ideia originalmente
desenvolvida por ele de um welfare state. Tais direitos, afirmava, não estavam
consignados como direitos de classe, mas como um conjunto universal de
prerrogativas próprias da democracia. O que segundo o autor não implicava na
eliminação da estrutura das classes sociais do capitalismo nem da desigualdade.
Do ponto de vista metodológico, outro aspecto fundamental e comum às
perspectivas pluralistas é a análise centrada nos indivíduos. São os indivíduos os
reais atores cujas preferências e valores os fazem aderir às ações constitutivas dos
grupos de pressão que atuam nas esferas públicas de disputas pela alocação de
recursos disponíveis para a execução de políticas nas diversas esferas de atuação
do Estado e da sociedade civil.
Na macrovisão pluralista mais ortodoxa desenvolvida por autores como Talcott
Parsons (1968) e Neil Smelser (1956 apud ALFORD; FRIELAND, 1991) a sociedade
é composta de indivíduos em interação orientados por sistemas de valores
referenciais que combinados com constrangimentos estruturais tornam a ação social
relativamente previsível e compreensível. Os sistemas sociais seriam em suma
complexos de decisões em parte contingenciais, i. e., sempre possíveis de
mudanças e variações, mas parametradas por sistemas de interação funcionalmente
articulados.
Na vertente política das teorias pluralistas o sistema democrático é tomado com
um conjunto de instituições tais como o direito ao voto, as eleições, os partidos, os
mandatos políticos, os plebiscitos como controles que promovem a liberdade e a
igualdade de participação de todos. A divisão de poderes constitutivos do próprio
Estado democrático é tomada como um sistema de balanços e contrabalanços de
poder que impedem a imposição autoritária e despótica da elite dirigente e garante
as condições de disputa pela imposição da alocação dos recursos públicos.
A concepção do Estado como arena de disputas das organizações de
indivíduos agrupados por interesses também privilegia uma visão funcionalista da
84

sociedade. Essa disputa entre os grupos organizados e seus interesses é controlada


por instituições reguladoras dos apetites e dos cálculos individuais. Um equilíbrio
ocorre com a concorrência da ação de instituições balanceadoras e integradoras dos
diferentes interesses e que ao fim a e ao cabo compensam-se uns aos outros
produzindo e gerando como tendência uma espécie de controle institucional ótimo
do qual nenhum dos grupos está disposto a abandonar em função dos riscos da
desregulamentação social e do caos subsequente à falta de um árbitro imparcial
para as disputas. Na perspectiva pluralista os conflitos são constitutivos das relações
políticas e sociais e considerados normais desde que situados dentro dos
parâmetros democraticamente aceitos por todos inseridos nas regras do jogo político
democrático.
Um dos alvos preferidos para o ataque aos pressupostos da perspectiva
pluralista advém, conforme Oliveira (1989) das perspectivas que ele chama de
“elitistas”, mas que para nós se inserem, de acordo com a nossa classificação, no
modelo institucionalista. Os institucionalistas criticam no pluralismo a falta de uma
explicação para o desequilíbrio entre as ações e os interesses das elites estatais e
as ações dos grupos civis. Para os institucionalistas, as elites estatais são
organizadas de maneira mais perene, persistem no tempo em seus postos de
comando e controle dos recursos do Estado, assegurando com isso mais
racionalidade e capacidade de articulação inclusive no plano internacional,
dificultando assim a contraposição de interesses potencialmente mais frágeis de
grupos civis que não dispõem usualmente de uma estrutura organizativa e de
objetivos duradouros.
Essa crítica, no entanto, conforme Oliveira (1989, p. 174-175):

[…] acaba por deixar de lado a questão crucial de como e por que estas
proposições se tornam "vitoriosas" frente a alternativas, e encontram
condições políticas de implementação, enquanto outras proposições, por
vezes igualmente formuladas por "Elites Técnicas" fracassam, são
abandonadas e esquecidas.

Esse aspecto relativo ao desequilíbrio entre os diversos grupos e seus sistemas


organizativos e as diferentes capacidades de implementação de seus objetivos não
é algo, entretanto, que tenha escapado totalmente à perspectiva pluralista
especialmente em trabalhos mais recentes. Como podemos constatar na
advertência de Robert Dahl (2001, p. 128-129), por exemplo:
85

Com todas as suas vantagens, o governo representativo tem um lado


sombrio. A maioria dos cidadãos que vivem em países democráticos tem
consciência dele, em geral o aceitam como parte do preço a pagar pela
representação. O lado sombrio é o seguinte: sob um governo
representativo, muitas vezes os cidadãos delegam imensa autoridade
arbitraria para decisões de importância extraordinária. Não delegam
autoridade apenas a seus representantes eleitos, mas, num trajeto ainda
mais indireto e tortuoso, a autoridade e delegada a administradores,
burocratas, funcionários públicos, juízes e, em grau ainda maior, a
organizações internacionais. Ha um processo ligado a instituições da
democracia poliarquica que ajuda os cidadãos a exercer influencia sobre a
conduta e as decisões de seu governo: a negociação entre as elites
politicas e burocráticas. A negociação da elite ocorre dentro dos limites
impostos pelas instituições e pelos processos democráticos. Em geral, são
limites muito amplos, a participação e o controle popular nem sempre são
vigorosos, e as elites politicas e burocráticas possuem enorme
discernimento.

Mas, ao fim, o autor não deixa de afirmar, mesmo com essas considerações, as
vantagens do sistema democrático e sua capacidade de coibir a autocracia e o
despotismo. Num sistema democrático o pluralismo é a garantia de que existem
limites claros até mesmo para as elites mais poderosas. Como afirma Dahl (2001, p.
128-129):

Apesar dos limites para o controle popular, as elites politicas nos países
democráticos não são déspotas sem controle. Longe disso. As eleições
periódicas obrigam-nos a manter um olho na opinião do povo. Além do
mais, quando chegam a decisões, as elites politicas e burocráticas são
influenciadas e refreadas umas pelas outras. A negociação das elites tem
seus próprios pesos e contrapesos. Os representantes eleitos participam
da negociação ate o ponto em que são um canal através do qual os
desejos, os objetivos e os valores populares entram nas decisões
governamentais. As elites politicas e burocráticas nos países democráticos
são poderosas, bem mais poderosas do que podem ser os cidadãos
comuns - mas elas não são déspotas.

Em suma, a perspectiva pluralista se aferra, conforme Alford e Friedland (1991)


à ideia de que os desenvolvimentos e as conquistas históricas da participação
política alcançada com o sufrágio universal, os direitos de votar e ser votado,
associar-se a organizações políticas, vincular-se a partidos e organizações sindicais,
fazer oposição ao governo, só ser condenado à perda de liberdade sob a égide do
devido processo legal, constituem, a despeito de variações de um regime
democrático a outro, a essência do estado democrático e de direito o único que
garante da participação de todos os indivíduos nas decisões de caráter público.
A perspectiva pluralista difere essencialmente da perspectiva estrutural-
marxista e suas variações, no que tange à natureza e função do Estado por
discordar da perspectiva de que o Estado serve diretamente aos interesses das
86

classes dominantes do capitalismo, conforme a versão mecanicista do marxismo, ou


mesmo indiretamente e por intermédio de mediações de natureza ideológica, legal
ou relativa às necessidades inerentes à produção capitalista conforme Poulantzas e
Offe.
Para os pluralistas, não há a suposição de que o Estado sirva os interesses da
produção econômica capitalista e que, portanto, esteja direta ou indiretamente
fazendo o jogo dos interesses das classes economicamente dominantes ou em
certos momentos das dominadas. Sua suposição é a de que a democracia liberal
serve à universalidade dos indivíduos embora não negue a existência de
capacidades diferenciadas de cada grupo organizado implementar seus objetivos e
impor seus valores e interesses.
Dos institucionalistas, a vertente pluralista recebe a crítica fundamental de que
seus princípios analíticos desprezam a ideia de que o Estado não é apenas uma
“arena” ou “rede” de instituições que selecionam os interesses dos grupos sociais,
mas que constitui um ator importante no jogo político capaz de influenciar as
decisões sobre a alocação de recursos públicos em razão de seus objetivos
estratégicos e diferenciados de quaisquer dos grupos sociais estruturados pelas
relações econômicas ou de quaisquer outras naturezas. Os pluralistas desprezam,
segundo os institucionalistas, que as elites estatais constituem um grupo com
interesses bem definidos e organicamente vinculados aos interesses estatais e que
nessa condição concentram poderes capazes de contrariar tanto os interesses das
classes sociais subalternas quanto das elites econômicas mais poderosas.
Curiosamente, estas críticas dos institucionalistas se aplicam igualmente ao
marxismo, especialmente, às suas vertentes funcionalistas. Tal como os pluralistas,
os defensores do marxismo vulgar, como diz Poulanzas, não conseguem perceber
com o seu aporte teórico que as ações organizadas do Estado ora mobilizam seus
recursos econômicos e legais a favor dos grupos dominantes, e em outros
momentos os orienta a favor dos grupos dominados. Também, tanto pluralistas
quanto marxistas desprezam a idéia de que o Estado tenha um “centro” e de que
muitas ações promovidas pelas elites burocráticas estatais especialmente as que
invocam o interesse público não são identificados inequivocamente com qualquer
dos interesses dos grupos sociais constituídos a partir da estrutura econômica das
classes.
87

4.3 A perspectiva neoinstitucionalista para o entendimento dos


problemas públicos
Os temas relacionados ao papel ativo e autônomo das instituições politicas e
sociais nas ações coletivas retomam sua importância em meados da década dos
oitenta com autores como Olsen e March (1984), Evans, Rueschemeyer e Skocpol
(1985), Alford e Friedland (1985), Katzeinstein (1985). Nestes trabalhos os autores
procuram recuperar o papel das instituições de maneira geral e do Estado em
particular como atores influentes na formulação de políticas públicas, com
consequências sobre as ações do conjunto dos agentes individuais e coletivos
envolvidos nas decisões de caráter público e com consequências de longo prazo. A
importância da compreensão da ação estatal avulta especialmente, segundo estes
autores, para o entendimento das políticas de desenvolvimento e seus efeitos de
longo prazo nas sociedades de desenvolvimento tardio ou em desenvolvimento.
Embora os países que desenvolveram o capitalismo tardiamente sejam o alvo
preferencial destes analistas acreditam que até mesmo na Inglaterra e os Estados
Unidos exemplificam as diferenças entre a ação e a inação do Estado nas políticas
desenvolvimentistas. A perspectiva institucionalista destaca, enfim, exemplos de
ações autônomas das instituições estatais impactantes nos resultados alcançados
nos processos de mudança social e econômica.
Conforme Amenta e Ramsey (2010) embora muitos analistas identificados com
esses princípios se considerem institucionalistas sem maiores adjetivos, as diversas
perspectivas e ênfases das análises abrigadas sob essa classificação poderiam ser
reagrupadas em pelo menos três tipos de “institucionalismos”: os institucionalistas
“sociológicos”, os “historicistas” e os “políticos”. Segundo os autores, enquanto que
os sociológicos tendem a enfatizar os aspectos culturais e ideológicos dos institutos
supranacionais da “sociedade mundial” como influentes nas ações estatais e
societais e seus resultados, os institucionalistas históricos tipicamente focam suas
atenções para os grandes processos macro políticos e macroeconômicos das
mudanças nos padrões de desenvolvimento econômico e social rejeitando como
consequência as explicações funcionalistas para a compreensão dos processos de
decisões coletivas. Os institucionalistas políticos, por seu turno, dirigem suas
atenções tipicamente para os processos de formação dos Estados, dos sistemas
políticos e dos sistemas partidários como influentes decisivamente nas ações
88

coletivas. A estes poderíamos três tipos de institucionalismos poderíamos destacar


um quarto, “econômico”, cujas origens remontam ao influente estudo de Alexander
Gershenkron, Economic Backwardeness in Historical Perspective, publicado
originalmente em 1962, e cujas linhas centrais destacam os diferenciais de
desenvolvimento econômico entre os países como consequência das ações
encetadas pelas elites estatais e econômicas.
Embora dedicados ao estudo de aspectos distintos da ação estatal e seus
efeitos sobre as comunidades sócio-políticas, em comum esses trabalhos trouxeram
de volta ao debate o papel das instituições como agentes ativos e relativamente
autônomos num cenário até então dominado por perspectivas sócio-centradas, isto
é, aquelas voltadas para a compreensão das ações sociais como um mero reflexo
dos movimentos estratégicos dos “reais” agentes das mudanças: os indivíduos, as
classes, os grupos sociais.
Numa visão retrospectiva e crítica dessas perspectivas sócio-centradas,
especialmente das correntes pluralista e/ou pelas diversas vertentes das teorias
estrutural-funcionalistas, especialmente as marxistas, Evans (1993) e Skocpol (2012)
afirmam que tais perspectivas tendiam a considerar o Estado e as instituições como
objetos inertes, sem ânimos próprios e, portanto, sem elementos distintivos capazes
de oferecer um campo particular para os estudos científicos das ações coletivas.
Para o pluralismo especialmente, acrescenta Skocpol (2012), o governo seria pouco
mais que uma “arena” onde os interesses econômicos e as ações dos grupos por
demandas normativas de controle social atuariam separadamente ou em alianças
estratégicas com o objetivo de moldarem as decisões públicas. Tais decisões eram
tidas então como resultados de processos de alocação de benefícios entre os
grupos organizados e distribuídos segundo a capacidade de cada um influenciar
nessas decisões. O governo propriamente não era considerado como um ator
independente, “autônomo”, sendo não mais que um conjunto desarticulado de
institutos dominados pelos interesses de grupos baseados em posições de comando
e controle dos sistemas políticos e econômicos.
Em oposição a isso surgem inúmeros estudos onde a importância do Estado
como agente e não apenas paciente ou recipiente das mudanças e das
transformações sociais é destacada de maneira significativa especialmente nos
estudos dedicados sobre os diferentes padrões de desenvolvimento econômico
perseguido e nos resultados alcançados pelos diversos países. Neste aspecto
89

particular, os estudos de Katzeinstein sobre o “corporativismo democrático” dos


pequenos países europeus constituem um marco importante. O argumento geral
desses seus trabalhos é que a experiência europeia com as guerras e as
depressões econômicas que se seguiram a elas teriam criado condições para que os
países europeus, especialmente os pequenos países como a Suécia, a Dinamarca e
os demais países nórdicos, desenvolvessem um sistema politico composto de
conjunto de instituições que combinavam ao mesmo tempo centralismo das
decisões tomadas por grupos corporativos diretamente representados nas
instituições da cúpula estatal com participação democrática. Segundo Katzeinstein
(1985) esse sistema “corporativista democrático” combinava as virtudes da
participação democrática com a agilidade e a eficácia das medidas de orientação do
modelo econômico e social em busca de uma inserção internacional “flexível” de
modo a aproveitar a oportunidades de novos nichos de exploração e produção
econômica. Tais ponderações eram feitas num estudo que chamava à comparação
os EUA e suas políticas liberais e não intervencionistas na produção e
reestruturação do seu padrão industrial e produtivo e que no contexto analisado, a
década de oitenta, apresentava sinais de declínio e esgotamento.
Em conformidade com os estudos de Katzeinstein as analises dos padrões de
desenvolvimento dos países na década de noventa passaram a enfrentar a questão
da atuação das instituições politicas e sociais, especialmente as estatais, como uma
variável independente do sucesso e do fracasso das trajetórias de desenvolvimento
econômico. A expressão industrialização por substituição das importações (ISI)
passa a dominar também o entendimento dos analistas políticos dos processos de
industrialização dos países de desenvolvimento tardio, especialmente os chamados
tigres asiáticos e os países da América Latina.
Tal é o sentido geral dos estudos reunidos no livro de Gereffi e Wyman (1990)
onde alguns dos maiores especialistas em desenvolvimento econômico comparado
se dedicaram a explicar os diferentes rendimentos dos modelos econômicos
alcançados por países da América Latina e por países Asiáticos com ênfase nos
diferenciais das políticas conduzidas por instituições criadas para esse fim. No caso
da América Latina as evocações das análises de Raúl Prebisch e de Fernando
Henrique Cardoso e Enzo Falleto sobre o desenvolvimento surgem como guia para a
conclusão quase consensual de que as diferentes inserções dependentes das
economias periféricas dos países desse subcontinente e seus rendimentos
90

guardaram estreita relação com a capacidade e com a agilidade diferenciadas de


cada um deles encetarem medidas capazes de colocar suas economias em sintonia
com as rápidas mudanças nas correntes dominantes do desenvolvimento econômico
global.
O sentido geral das analises institucionalistas está em buscar, portanto, uma
explicação para as ações coletivas que ultrapassem o mero entendimento de que
essas ações constituem num simples agregado de ações individuais ou de grupos
isoladamente. Instituições, nessa perspectiva, emergem de uma ordem mais
elevada de fatores (AMENTA; RAMSEY, 2010, p. 16), e as ações estatais
especialmente são aquelas que, exatamente, conseguem se firmar mesmo contra a
vontade e ação dos atores sociais: tipicamente os grupos de pressão e as classes
sociais (SKOCPOL, 1985, p. 9).
Entre as críticas mais contundentes à perspectiva institucionalista está a de que
de afirmações genéricas sobre o papel do Estado nas ações coletivas e
especialmente na condução de políticas publicas informa pouco sobre os casos
concretos da ação estatal nas distintas sociedades e dentro de uma mesma
sociedade dos diferentes momentos históricos onde a ação estatal pode se mostrar
mais ou menos influente e/ou decisiva. Este é o sentido geral da crítica de
Przeworski (1995), por exemplo, que afirma que o papel do Estado só pode ser
definido com o auxílio do estudo de casos concretos que informem acerca dessas
variações. Além do que, a ideia de um Estado que age em contraposição dos
interesses socialmente estruturados desconsidera que as instituições estatais são
controladas em muitos países pela sociedade civil e que o monopólio do uso da
força pressuposto pela teoria institucionalista não leva em conta, ainda, que nas
sociedades capitalistas o controle e a alocação dos recursos são realizados em
grande medida por agentes privados.
Conforme Rocha (2005), o teor dessas críticas à perspectiva institucionalista
faz com que alguns autores filiados a essa perspectiva ampliem o escopo de suas
análises passando a entender as ações coletivas e as políticas públicas não apenas
como fruto da imposição dos interesses estatais, do insulamento do Estado frente
aos interesses dos grupos sociais, mas como produto de um equilíbrio instável de
forças protagonizadas tanto por agentes (funcionários e burocracia) estatais quanto
por interesses sociais difusos vocalizados por grupos de pressão e por classes
sociais. Nesse sentido, a necessidade de estudos concretos deveriam sim
91

esclarecer as variações históricas desse tipo de composição.


Skocpol (1995), por exemplo, amplia o sua concepção state-centered para
polity-centered resumindo nessa mudança de foco, segundo Rocha (2005) os
princípios básicos da análise neoinstitucionalista:

1) os interesses e os objetivos das elites estatais devem sempre ser analisados


com a consideração de que os grupos de pressão e os distintos interesses sociais
vocalizados por eles redefinem dinamicamente o escopo das políticas públicas e de
Estado. Não há por que falar, portanto, dos interesses de um “Estado capitalista”
genérico e atemporal;

2) o jogo político define as identidades dos atores envolvidos nas diferentes


políticas afetando a sua capacidade na definição das políticas;

3) os sistemas partidários e as regras eleitorais afetam agudamente a forma da


participação dos grupos sociais e os do próprio corpo de funcionários estatais
afetando sobremodo o poder de influência desses grupos na formulação de políticas;

4) as políticas formuladas no passado afetam de modo decisivo a tomas


decisões presentes e futuras moldando os grupos e a forma da expressão dos seus
interesses. Ou seja, o sucesso ou o insucesso das politicas pregressas influenciam
os policymakers na forma da sua cognição sobre os problemas atuais.

Rocha (2005) exemplifica ainda o neoinstitucionalismo invocando os estudos de


Peter Hall (1993) sobre produção das políticas econômicas na Inglaterra.
Olsen (2008) destaca ainda o aumento da complexidade das instituições
contemporâneas e o avultamento da sua importância como um fator fundamental
para o entendimento das suas influências e determinações da vida coletiva. Destaca
Olsen (2008, p. 121-122), que “A maioria dos principais atores nos sistemas
econômicos e políticos modernos são organizações formais e as instituições da lei e
da burocracia ocupam um papel dominante na vida contemporânea”.
Nesse sentido, o institucionalismo surge como uma alternativa às perspectivas
analíticas tradicionais e fechadas em determinismos monolíticos. Nas suas palavras:
92

Essas idéias minimizam a dependência do Estado politicamente organizado


com relação à sociedade em favor de uma interdependência entre
instituições sociais e políticas relativamente autônomas; elas minimizam a
simples primazia de microprocessos e histórias eficientes em favor de
processos relativamente complexos e da ineficiência histórica; elas
minimizam as metáforas da escolha e os resultados alocativos em favor de
outras lógicas de ação e da centralidade do significado e da ação simbólica.
(OLSEN, 2008, p. 126-127).

As contribuições das perspectivas institucionalistas para a compreensão do


papel do Estado nas disputas dos interesses entre os diversos grupos sociais são
importantes para a ponderação de ações dos agentes estatais que efetivamente
guardam particularidade com respeito aos interesses dos grupos sociais,
notadamente das classes. O Estado não é apenas um conjunto de instituições
dominadas pelos grupos sociais, mas constitui em muitas situações concretas um
ator com interesses próprios e as vezes contrários aos interesses dos demais
grupos.
No entanto, podemos destacar dois problemas que prejudicam o rendimento da
perspectiva institucionalista na análise dos conflitos inerentes às sociedades
marcadas pela desigualdade e pela descontinuidade das ações estatais. O primeiro
problemas é que a própria definição do que sejam as instituições. Rocha (2005)
identifica este problema e invoca Levi (1991) para exemplificar um dos poucos
autores filiados à perspectiva institucionalista que enfrenta essa questão:

[As instituições] não possuem apenas hierarquias internas de


implementação e de tomadas de decisão, pois são capazes também de
estabelecer e ratificar o poder coercitivo de certos membros da sociedade
relativamente a outros. Este poder passa, então, a ser usado para a
distribuição de serviços, a coordenação das ações de indivíduos com
interesses comuns, a garantia de que os poderosos possam continuar a
usufruir de benesses, ou para arbitrar conflitos inevitáveis, de forma a
reduzir os custos para os participantes e outros afetados pela contenda
(LEVI, 1991, p. 83 apud ROCHA, 2005).

Ora, tal definição é insuficiente para captar uma questão essencial que reside
no fato observado por sociólogos como Berger e Luckman (1986) de que as
instituições tem origem nas transações de significado e sentido correntes entre os
indivíduos e que são externalizados nos relatos que constroem a respeito de suas
rotinas e seus métodos de ação. O fato de a linguagem destacar algumas rotinas
como estáveis e recorrentes não significa que essa estabilidade de procedimentos e
de métodos formalizados de ação se desvincule das ações efetivas dos indivíduos e
que se tornem, assim, perenemente independentes de processos de negociação e
93

redefinição conforme a sua origem nos processos cognitivos inerentes às interações


sociais. Estabelecer por intermédio da linguagem uma descrição das regras e dos
procedimentos formais das instituições estatais ou de qualquer outra instituição
social não significa que, por isso, elas se cristalizem indefinidamente no tempo e se
naturalizem. Nossa experiência cotidiana confirma que as regras muitas vezes
existem para fixar os parâmetros negociáveis de sua burla. Sem esse entendimento
a própria natureza da mudança e da descontinuidade institucional deixa de ser
enfrentada ou então passa a ser explicada por elementos exclusivamente
contingenciais e empíricos.
O segundo problema das teorias institucionalistas podemos dizer que deriva
deste. Ao definir peremptoriamente as instituições como entes dotados de
estabilidade de funções e de procedimentos, os institucionalistas e mesmo os
neointitucionalistas retiram ou pelo menos constrangem as possibilidades de uma
visão teórica mais abstrata sobre o funcionamento geral das sociedades diminuindo
a possibilidade de previsões sobre o comportamento futuro das sociedades como é
esperado. Neste aspecto particular, o estrutural funcionalismo, especialmente em
suas vertentes marxistas, fornece com mais arrojo uma prospectiva para os
comportamentos dos grupos estratégicos nas sociedades capitalistas
contemporâneas conformando-se assim como um instrumento potente do
alinhamento dos grupos e a definição de um comportamento estratégico.
Com base nas críticas formuladas ao institucionalismo surge o que podemos
considerar uma variante dessa perspectiva que tende a enfatizar os aspectos
cognitivos dos atores que acabam por ser decisivos na atuação das instituições.
Essa vertente cognitivista não nega a influência das instituições na definição de
interesses, na ação coletiva, especialmente, no que se refere à formulação das
políticas públicas. No entanto, privilegia na sua explicação sobre as decisões que
envolvem os atores coletivos os processos de formação de consensos que se
solidificam no plano cognitivo. Não há, segundo essa perspectiva, uma metodologia
segura e inequívoca para a identificação dos problemas públicos que esteja baseada
exclusivamente em procedimentos puramente racionais (interesses), intencionais
(classistas) ou que esteja fundada em definições de objetivos e metas
organizacionais (institucionais) atemporais e independentes de contextos.
Problemas públicos são diferentes em sua natureza dos problemas sociais por que
não são racionais ou puramente empíricos, mas resultados de negociações entre
94

atores com visões conflitantes sobre o que deve e o que não deve ser considerado
“público” e que têm poderes diferenciados na sua capacidade de imposição dessas
definições.
No âmbito possível de uma reflexão da questão da regularização fundiária
como um problema efetivamente público acreditamos que a perspectiva
neoinstitucionalista especialmente na sua clivagem cognitivista tenha muito a nos
ajudar na compreensão dos problemas fundiários brasileiros.
Um dos problemas básicos envolvendo os conflitos relativos à posse e à
propriedade de terras e a regularização fundiária no Brasil, notadamente do solo
urbano, deriva da falta de uma definição satisfatória de aspectos básicos inerentes à
constituição do problema fundiário urbano como um problema público.
A afirmação merece explicações. Em texto clássico sobre a natureza dos
problemas públicos Joseph Gusfield (1981) discorre sobre o interessante paradoxo
de que embora todo problema público tenha uma dimensão social, nem todo
problema social adquire um caráter público.
O autor exemplifica de inúmeras formas sua proposição afirmando, por
exemplo, que embora problemas conjugais e de insatisfação sexual sejam
amplamente difundidos entre os membros das sociedades atuais e que, portanto,
mesmo que sejam problemas sociais amplamente reconhecidos não ocorre, até o
momento, aos agentes sociais e aos formuladores de políticas que eles devam ser
considerados como temas de políticas públicas conduzidos por qualquer agência
estatal. Por mais evidentes que sejam enquanto experiências que afetam um
número significativo de pessoas não ocorrerem ainda de serem criadas regulações
legais e bem como agências estatais especializadas para sua administração. O que
não significa que isso não possa vir a ocorrer no futuro.
Por outro lado, problemas que afetam os indivíduos sem qualquer perspectiva
de tratamento social como o alcoolismo, no caso que o próprio Gusfield analisa, têm
se tornado objeto de um sem fim de leis e regulamentos assim como tem originado
instituições especializadas e se tornado objeto de políticas públicas. Outros tem
tomado o caminho contrário, como a religião, isto é, depois de terem sido
considerados problemas de Estado e de regulamentação pública, cada vez mais são
tratados como objeto da escolha da vida privada dos cidadãos. Ou seja, os
problemas públicos não são problemas naturais. Sua existência e seu
reconhecimento não dados à percepção dos indivíduos ou dos grupos sociais,
95

privados e estatais, como um objeto natural ou empírico os quais basta ver, sentir ou
escutar para lhes reconhecer a existência incontestável.
Gusfield reconhece então que os problemas públicos tem uma dimensão
cognitiva evidente. Os problemas públicos são os problemas sociais que são
reconhecidos dessa maneira pelos decisores e titulares das instituições públicas e
que penetram nas arenas públicas de ação coletiva exigindo alguma ação. Também,
uma vez que são reconhecidos como tal, i.e., como problemas públicos dependem
de um intricado processo de disputa com respeito a quem ou que órgão ou
instituição pública estatal terá autoridade para falar e regulamentar as ações sobre
ele.
A abordagem cognitivista dos problemas públicos nos remete à questão de que
os problemas públicos não possuem uma “natureza” auto evidente, isto é, não são
objetos factuais ou apodíticos, mas dependem de uma construção cognitiva que os
defina como tal, isto é, como problemas públicos. Conforme Gusfiled (1981) há uma
dimensão dos problemas públicos que dependem de um processo de definição
cognitiva, isto é, nem todo problema que atinge um grupo de pessoas, por mais
extenso que seja é automaticamente definido como público. Outros há que são
definidos de determinada maneira em dado momento e de outra completamente
diferente em momento posterior. Tais definições implicam em propostas de soluções
diferenciadas e acarretam uma distribuição diversa de responsabilidades e de
autoridade sobre quem deve responder pela resolução do problema. Veja-se o caso
das primeiras leis conservacionistas no Brasil. Segundo Mello e Meirelles (1996) o
controle de mananciais de água e florestais nas primeiras legislações
conservacionistas criadas no governo de Getúlio Vargas atendia a uma demanda de
controle dos “recursos naturais” para atender às necessidades da indústria e do
desenvolvimento econômico, algo que seria considerado nos dias atuais como um
problema de manutenção de um meio ambiente equilibrado a ser protegido da
exploração econômica, o que evidencia que existe uma volatilidade na questão da
construção do problema público.
A abordagem cognitivista, portanto, concebe que as políticas públicas são
determinadas em primeiro lugar por consensos estabelecidos no plano cognitivo e
não no plano das realidades fáticas. São os atores públicos e privados que definem
os problemas públicos e concebem as respostas para os mesmos.
De acordo com Grisa:
96

[...] a elaboração de uma política pública envolve primeiramente a


construção de uma representação da realidade sobre a qual se intervém e
é através desta imagem, denominada “referencial de uma política pública”,
que os atores interpretam o problema, confrontam possíveis soluções e
definem sua ação.

A mesma autora, baseada no modelo desenvolvido por Muller (2004) destaca


quatro níveis de percepção do mundo que se encontram interligados na definição
dos problemas públicos:

a) os valores vistos como representações mais amplas e fundamentais


sobre o que é bom ou mal, desejável ou não (equidade, sustentabilidade);
b) as normas estabelecidas entre o real observado e o real desejado e que
definem os princípios de ação mais que os valores (a agricultura deve se
modernizar, devem ser reduzidos os subsídios à agricultura);
c) os algoritmos concernentes às relações causais que exprimem uma
teoria da ação (se o Estado intervir menos na agricultura ela será mais
eficiente, e, se realizada a reforma agrária diminuirá a pobreza) e;
d) as imagens que representam simplificadamente os vetores dos valores,
normas e algoritmos (agricultor “forte” com tratores e colheitadeiras; e
aquele com vários alimentos) (MULLER, 2004 apud GRISA p.cit.).

A abordagem cognitivista também considera os diferenciais de poder na


formulação de políticas. De acordo com Gusfield (1981) a arena pública não é um
campo no qual todos podem jogar e se inserir em termos igualitários. Alguns atores
têm mais poder de acesso para influenciar as definições das questões públicas.
Deste modo, o autor define o conceito de “propriedade” dos problemas públicos com
o que quer demonstrar como e porque alguns atores se arrogam o poder de liderar e
distribuir as soluções para os problemas definidos. No caso em que analisa da
legislação punitiva dos motoristas que bebem o autor afirma que em quase todos os
fóruns que participou havia representantes de associações médicas que eram
chamadas a informar os formuladores dessa legislação. No entanto, a medicina não
é capaz de oferecer qualquer tipo de cura para alcoólicos. Ao contrário, os
representantes de associações de alcoólicos como Alcoólicos Anônimos, os únicos
com expertise para a cura e o controle da dependência do álcool jamais estavam
nessas reuniões.

Por fim, a perspectiva cognitivista ressalta a dimensão cultural dos problemas


públicos ao afirmar que os problemas públicos têm uma dimensão social e histórica,
isto é, são construídos socialmente. Cada sociedade constrói os seus problemas
97

públicos de acordo com as suas visões de mundo, isto é, suas escalas de valores e
a importância que atribuem às diversas questões que afetam um número
significativo de seus membros.

A abordagem cognitivista não elimina o caráter autoral das políticas e não se


furta a identificar seus agentes principais: representantes da burocracia estatal,
ativistas de organizações civis, políticos profissionais, cientistas, religiosos e os
diversos grupos de pressão. Cada um desses grupos consegue ter êxito, em algum
momento, na definição de problemas que atendem de algum modo seus interesses
seletivos e especiais. Idosos, jovens, pessoas com deficiência, homossexuais nem
sempre foram sujeitos de políticas que os reconhecessem como portadores de
direitos especiais. Hoje dispõem de um arsenal de instituições voltadas para as suas
necessidades especiais.

Permite, também, a compreensão dos diferenciais de poder na formulação de


políticas. Os agentes envolvidos na formulação de políticas públicas têm poderes
diferenciados na sua definição cognitiva, contam com acervos de conhecimento mais
ou menos influentes na formação de convicção sobre os seus diagnósticos, bem
como possuem capacidades distintas de implementação de suas soluções em
função das posições que ocupam nas burocracias estatais e nas organizações
influentes nas decisões de caráter público.

A dimensão cultural tem, também, uma relevância considerável nessa


abordagem cognitivista uma vez que os problemas públicos por serem construídos
intersubjetivamente dependem de acordos e consensos que estão vinculados em
último plano às distintas visões de mundo, concepções de natureza e a consequente
discussão da origem dos problemas identificados. Algumas sociedades definirão a
capacidade de comunicação com espíritos um problema de loucura e distúrbio
mental, a solução nestes casos será a internação em hospitais psiquiátricos e
sanatórios, outras sociedades verá essa capacidade como uma propriedade especial
de indivíduos com poderes que merecem veneração.

Por fim, a dimensão histórica aparece como uma componente fundamental.


Para o cognitivismo as construções sociais de problemas mudam no tempo bem
como variam no tempo as definições do que sejam problemas públicos, ou seja,
aqueles que demandam a intervenção das instituições públicas e estatais. Durante
98

muitos anos a educação de filhos foi um problema restrito à família e essencialmente


privado, hoje trata-se de um problema público dos mais importantes para as
agências estatais.

Parece consensual entre os analistas dos problemas fundiários que a


concentração de terras no Brasil é um problema secular e que a distribuição e a
utilização do solo, seja rural ou urbano, segue como um problema gerador de um
sem números de conflitos e problemas sociais que ferem as mais elementares
noções do justo até mesmo para os padrões das sociedades capitalistas.
Que os conflitos fundiários no Brasil são um dos problemas sociais mais
agudos da sociedade brasileira não parece ser, portanto, um diagnóstico difícil de
identificar. Mas, se é um problema social assim tão evidente porque tem faltado ao
país a criação de marcos mínimos para a construção de políticas públicas para o
enfrentamento desses problemas notadamente os relativos aos problemas fundiários
urbanos. Se for certo, como afirma Marx, que a acumulação primitiva da propriedade
de terras, em exemplo tomado ao processo de concentração de terras e
expropriação dos camponeses na Inglaterra, esteve na origem do capital mobilizado
para constituição do capital que deu origem ao desenvolvimento industrial, exagerar
e estender o diagnóstico e atribuir cruamente ao sistema capitalista per si os
problemas relativos à concentração de terras é solução teórica que esbarra nos
inúmeros exemplos históricos onde o capitalismo para existir e florescer precisou
acertar as contas, como diria o próprio Marx, com o passado feudal de concentração
da posse e da propriedade da terra.
Ora, não parece razoável e seguramente não é logicamente aceitável explicar
um processo supostamente universal apelando ao idiossincrático e singular. Se não
é condição sine qua non a concentração do solo para o desenvolvimento do
capitalismo, se, ao contrário, a repartição da propriedade foi em todos os países
capitalistas desenvolvidos não um empecilho, mas uma condição para sua
existência e desenvolvimento que explicação poderemos dar ao caso brasileiro?
Não valem aqui, igualmente, explicações culturalistas que atribuam ao caráter
do brasileiro, qualquer que ele seja, cordial ou acomodado, brutal ou aristocrático,
explicações ad hoc que deixam de enfrentar uma explicação universalista para o
problema.
Nas sessões anteriores mostramos que a teoria marxista, a teoria
99

institucionalista e a teoria pluralista oferecem diferentes diagnósticos para a questão


da formulação das políticas públicas e a relação dessas políticas com os interesses
conflitivos e contraditórios dos diferentes atores sociais. Mostramos, também, que
todas essas perspectivas, com diferentes gradações, reconhecem diferentes atores
como protagonistas das decisões do Estado em e que essas decisões afetam
diferenciadamente o conjunto das sociedades.
Para o estrutural marxismo, como vimos, as ações estatais reproduzem direta
ou indiretamente o sistema de dominação social baseado nas classes sociais
fundamentais do capitalismo: burguesia e trabalhadores assalariados. Seja na sua
expressão mais mecanicista ou nas versões revisionistas de autores como
Poulantzas, Offe e Harvey as decisões que passam pelo Estado refletem de algum
modo as necessidades da reprodução do capitalismo e da consequente exploração
da classe dos capitalistas sobre as demais classes subalternas desse sistema. A
estruturação do espaço urbano e rural e a organização dos lugares e dos “não
lugares”, segundo a expressão de Marc Augè (1994), atendem de algum modo à
lógica e às determinações dos interesses consolidados numa sociedade baseada
num conflito de interesses estruturais inerentes ao capitalismo.
Para os institucionalistas, tais abordagens estruturais marxistas desprezam
inexplicavelmente o papel das elites estatais na formulação das políticas públicas.
Os institucionalistas alegam que as burocracias e a organização racionalizada do
Estado, baseada em princípios legais e impessoais, acabaram por constituir uma
classe de dirigentes e elites técnicas que sem qualquer identidade com os grupos
sociais dominantes ou dominados, controlam recursos poderosos de poder político e
econômico que não possuem qualquer identificação com os interesses postos no
jogo político por capitalistas ou pelas organizações de trabalhadores. Alegam
também que os elementos culturais conformadores das instituições estatais e civis
também exercem um papel decisivo nas escolhas e decisões coletivas o que
explicaria as diferenças de rendimentos e resultados sociais e econômicos
resultantes dos caminhos trilhados por diferentes países. Não haveria apenas,
afirmam os institucionalistas, uma única forma de inserção nos fluxos de comércio
da economia internacional, apenas um capitalismo, mas formas muito diferentes de
capitalismos como demonstram a existência de países ricos e com equilíbrio social e
países dependentes e com concentração de pobreza e de riqueza.
Os pluralistas, por sua vez, rechaçam a perspectiva de que o Estado e seus
100

agentes constituam atores com interesses próprios uma vez que sua principal função
é regular os conflitos entre grupos de pressão interessados na imposição de seus
projetos. Tais grupos originados nas sociedades democráticas apresentam-se
organizados em partidos políticos, sindicatos, organizações não governamentais e
uma infinidade de formas associativas. As regras de participação democrática
colocariam os limites de atuação desses grupos garantindo as regras de alternância
na alocação de recursos de poder e econômicos.
A compreensão da regularização fundiária em áreas públicas demanda que o
seu analista tenha claro que nenhuma das perspectivas teóricas apresentadas
permite dar conta isoladamente de todo o processo. A regularização fundiária em
áreas públicas se constitui um grande mosaico onde em regra diversos atores irão
atuar e buscar a prevalência de seus interesses, através de inúmeras estratégias
desencadeadas ao longo do processo.
O caso da Comunidade do Horto foi selecionado para análise empírica, pois
constitui um dos mais importantes paradigmas no campo da regularização fundiária
em áreas públicas urbanas e no processo fica mais do que evidente que todas as
perspectivas nos auxiliarão no entendimento da problemática.
A perspectiva estruturalista nos permite destacar que existe uma lógica de
interesses econômicos que alinham os grupos sociais em posições afinadas com o
valor do solo urbano, as apreciações de caráter estético e ambientais e a
precificação das propriedades que nos remetem à própria constituição dos pilares da
produção capitalista do espaço.
Sob o foco da perspectiva pluralista, destacaremos o papel dos atores
individuais escudados em agências e organizações coletivas envolvidas no
processo, suas articulações e estratégias para que venham a prevalecer seus
interesses nas decisões com impactos coletivos produzidos pelos agentes públicos
investidos de legitimada pela ordem jurídica vigente.
Buscaremos capturar com o auxílio da perspectiva neoinstitucionalista o papel
desempenhado pelas instituições, principalmente a construção da ocupação da
Comunidade do Horto como um problema público, i. e., como um problema que
precisa ser sanado pelo poder público consoante ao conflito cognitivamente
construído de que essa ocupação constitui um problema que contrapõe o interesse
público ao interesse privado.
Por fim, esclarecidas as contribuições das correntes teóricas para a colocação
101

num quadro mais amplo do problema empírico da comunidade do Horto nossa


opção explicativa deposita seus esforços e ênfase no entendimento do processo de
construção cognitiva desse conflito. Poder, interesse, disputa não são inerentes aos
fatos porque os próprios fatos necessitam de um arcabouço cognitivo para que
venham à luz das discussões como tais, ou seja, como fatos. A Comunidade do
Horto constituída por moradores cuja origem os liga os ao Jardim Botânico do Rio de
Janeiro pelos vínculos laborativos e empregatícios tem existência secular, como
dissemos. Porque apenas em 2001 se transforma em problema público? Apelar para
uma lógica do capitalismo explicação monolítica da questão não é o bastante. O
capitalismo em nosso país tem existência no mínimo bicentenária. As instituições
que agora se digladiam para a imposição de seus princípios e lógicas
organizacionais, tais como a justiça, o patrimônio histórico, o próprio Jardim
Botânico, idem. O problema habitacional e social por certo transcende em muito no
nosso país e no Rio de Janeiro os problemas dos moradores do Horto e do Jardim
Botânico e não mobilizaram e galvanizaram até o momento a mesma atenção e
importância que as instituições e organizações públicas e coletivas têm conferido à
esta problemática.
Nossa explicação não descarta as questões de poder, interesse, influência,
autoridade e disputa embutidas na questão dos problemas públicos e que estão em
maior ou menor ênfase destacadas nas perspectivas teóricas analisadas, mas as
veem todas elas como originárias de conflito e disputas que se estabelecem primeiro
e determinantemente no plano cognitivo.
102

5 O CASO DA COMUNIDADE DO HORTO

O caso da Comunidade do Horto representa um dos exemplos mais ricos para


a compreensão da complexidade da regularização fundiária em áreas públicas
urbanas no país.
O conflito fundiário está encravado em um das áreas mais valorizadas do Brasil
e envolve uma multiplicidade de atores de diversas origens sociais e posições
políticas. Por certo, caso a área objeto de regularização estivesse situada na
periferia, não haveria tanta celeuma.
A Comunidade do Horto é estruturada em sua grande maioria por pessoas de
baixo poder aquisitivo, o que contrasta com a vizinhança de classe média alta, de
grandes empresas e ainda é habitada por membros da classe alta da sociedade
carioca. A região é caracterizada pela forte presença de especulação imobiliária.
No presente capítulo, pretendemos expor brevemente o surgimento do Jardim
Botânico e a complexa questão fundiária do local, evidenciando como diversos
atores estão participando do processo de regularização fundiária.

5.1 Breve histórico


A criação do Jardim Botânico guarda relação com um acontecimento relevante
na história do Brasil - a transferência da Corte Real portuguesa para o país - e se
insere num conjunto de realizações que marcaram a sua instalação na cidade do Rio
de Janeiro e visavam dotar a cidade de condições estruturais para se tornar a sede
do império português53.
Com as guerras napoleônicas na Europa, D. João VI, então regente de
Portugal, deixa o país e instala no Rio de Janeiro a sede do governo português.
Destaca Niemeyer de Lavôr (1979, p. 275), que ao chegar no Brasil com a Corte
Portuguesa em 1808, D. João VI desapropria o Engenho de cana-de-açucar Nossa
Senhora da Conceição da Lagoa, de propriedade de Rodrigo de Freitas e cria uma
fábrica de pólvora que funcionou no interior do hoje Jardim Botânico do Rio de
Janeiro.

53
Disponível em: <http://www.jbrj.gov.br/publica/cronologia.pdf>. Acesso em: 1 fev. 2014.
103

Hoje, devido a sucessivos aterros não tem mais o aspecto de então, mas foi
em sua margem norte que no século XVI, mais precisamente em 1596,
quando governador do Rio de Janeiro Francisco Mendonça de
Vasconcellos, que Diogo de Amorim Soares, fundou o engenho de cana,
que deu o nome de Nossa Senhora da Conceição da Lagoa.

Posteriormente, em 1609 passou a pertencer a Sebastião Fagundes Varella,


genro de Diogo de Amorim Soares e em 1660 a Rodrigo de Freitas Mello e
Castro. Quando este resolveu voltar para Portugal, passou o engenho para
dois de seus filhos, que o conservaram, assim como seus herdeiros.

Tão logo Portugal foi invadido pelos franceses, a Família Real transferiu-se
para o Rio de Janeiro, isto em 1808. O Príncipe Regente, que mais tarde se
chamaria D. João VI resolveu fundar uma fábrica de pólvora à altura da
cidade para onde se deslocara. Assim comprou o engenho que tinha sido de
Rodrigo de Freitas, pagando aos herdeiros 42:193$430 (RODRIGUESIA...,
p. 275).

Em 13 de junho de 1808 na vizinhança da referida fábrica de pólvora, o


monarca cria um “Jardim de Aclimatação” para introdução e aclimatação de plantas
exóticas de grande valor e interesse na Europa, vindas do Oriente. Posteriormente o
local passou a ser chamado de Real Horto, depois Real Jardim Botânico e
finalmente Jardim Botânico do Rio de Janeiro, conforme descreve Niemeyer de
Lavôr (1983, p. 82):

Em 13 de junho de 1808 o Príncipe Regente mandou preparar próximo da


casa do Inspetor da Fábrica da Pólvora um jardim de aclimação.

Com a assinatura do Decreto de 11 de outubro de 1808, foi tornado público


e passou a ser chamado de Real Horto, ficando subordinado ao Museu Real
até 29de fevereiro de 1822, quando passou à subordinação do Ministério do
Interior, mais tarde Ministério do Império.

O nome Real Jardim Botânico surgiu, após a coroacão de D. João como rei
do reino unido de Portugal e Brasil, época em que foi introduzido o cravo-
da-india, trazido pelos Jesuístas e finalmente Jardim Botânico do Rio de
Janeiro.

O Museu do Horto retrata que com a criação do Jardim Botânico, houve não só
autorização do Poder Público para que trabalhadores efetivamente se instalassem
no local, mas também incentivo:

Em 1808 D. João VI desapropriou o Engenho de Nossa Senhora da


Conceição da Lagoa, de propriedade de Rodrigo de Freitas, para a
construção de uma fábrica de pólvora. Alguns meses depois, fundou o Real
Horto (que hoje é o Instituto Jardim Botânico). Para tais empreendimentos,
houve uma 2ª onda populacional, pois os trabalhadores da fábrica e do
parque foram convidados a residir nas proximidades do trabalho. Em 1811,
foram erguidas vilas para a instalação dos trabalhadores da fábrica de
pólvora e do Jardim Botânico. Assim, gerações de famílias de funcionários e
descendentes de funcionários da antiga fábrica e do Jardim Botânico
104

construíram uma comunidade nos arredores do parque, com autorização


(formal e informal) das diversas administrações do Jardim Botânico e/ou do
Ministério da Agricultura, instância de poder a que o Horto Florestal estava
subordinado na época.

Com o advento da República e seus projetos de industrialização surgiram


as fábricas de tecidos na região, como a famosa América Fabril. Delas
decorreram as vilas operárias, um casario bastante emblemático do início
da história operária no país e localmente conhecido como Chácara do
Algodão. Esta foi a 3ª onda de ocupação pelos habitantes do Horto.

Durante anos, os moradores do Horto vêm cuidando desta localidade como


extensão de suas vidas, impedindo, inclusive, a implantação de projetos de
grande impacto sócio-ambiental, como a construção do cemitério Santa
Catarina de Siena (de iniciativa do então governador Carlos Lacerda) e de
um conjunto residencial do BNH, de 35 blocos de 6 andares cada, ambos
projetos da década de 1960 para a região.54

A necessidade da mão-de-obra para atender ao Jardim Botânico, fez com que


ao longo de várias décadas fosse estimulada a ocupação do parque por
trabalhadores, não tendo sido manifestada maiores preocupações com eventuais
questões de ordem ambiental, o que permitiu o surgimento da Comunidade do Horto
e sua integração com a paisagem do local.
No ano de 1916, através do Decreto nº 11.904, houve a anexação formal do
Horto Florestal ao Jardim Botânico, como uma seção desse último.
O Jardim Botânico e o Horto Florestal possuem em seus limites territoriais três
tombamentos distintos realizados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (IPHAN), a saber:

a) o Jardim Botânico e, especialmente o Portão da Antiga Fábrica de Pólvora, o


Pórtico da Antiga Academia Imperial de Belas Artes e o Antigo Aqueduto da Levada
– Processo 101-T-38, inscrição 02, fl. 02, inscrição datada de 30/05/1938 no Livro
Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico;

b) Parque Nacional da Tijuca e Floresta de Proteção, inclusive as áreas florestadas


do Jardim Botânico e Horto Florestal que se encontram acima da cota de 100 metros
do nível médio do mar – Processo 762-T-65, inscrição datada de 27/04/1967 no Livro
Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico;

54
Disponível em <http://www.museudohorto.org.br/História_do_Horto>. Acesso em: 01 fev. 2014.
105

c) Conjunto Paisagístico do Horto Florestal do Rio de Janeiro – Processo 633-T-73,


inscrição 61, fl. 04, datada de 17/12/1973 no Livro Arqueológico, Etnográfico e
Paisagístico.

Destacamos que a questão envolvendo o tombamento do Jardim Botânico


suscita controvérsias no interior da própria Administração Pública55.
Quando na localidade havia apenas o primeiro tombamento, na década de
sessenta, por força da política habitacional desenvolvida pela Ditadura Militar em
curso no Brasil, pretendeu-se instalar na área do Horto Florestal um conjunto
habitacional de responsabilidade do Banco Nacional de Habitação, o que foi
combatido pelos moradores, conforme noticiado acima pelo Museu do Horto e
destacado por Miranda Filho (2012, p. 498), que acentua inclusive a participação de
figuras notórias da sociedade brasileira na defesa do Horto.

Na década de 1960, houve certa pressão de mercado para que grande


parte da área do Horto Florestal fosse destinada a empreendimento
imobiliário ligado ao Banco Nacional de Habitação (BNH), em consonância
com a política habitacional nacional desenvolvida pelo regime militar. Essa
pressão foi veementemente rechaçada por importantes expoentes da
sociedade e cultura carioca e brasileira, como Pedro Calmon, Carlos
Drummond de Andrade e Roberto Burle-Marx, que era, à época, conselheiro
do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

No ano de 1992, o Jardim Botânico foi considerado Reserva da Biosfera pela


Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).
A União em épocas diversas cedeu áreas inseridas no limite do Jardim
Botânico a instituições como, EMBRAPA, TRE, Central Elétrica de Furnas S.A.,
posteriormente LIGHT e ao Serviço Federal de Processamento de Dados
(SERPRO). A Escola Municipal Júlia Kubischeck, como as duas últimas entidades

55
A questão da área efetivamente tombada do Jardim Botânico, afigura-se controversa, conforme informação
obtida no Procedimento nº 032.772/2010-6, que se encontra no Tribunal de Contas da União: “Os processos de
tombamento 101-T-38 (Jardim Botânico) e 633-T-73 (Horto), citados anteriormente, estão atualmente em
tramitação conjunta no IPHAN por conterem sucessivos pareceres técnicos produzidos dentro desse órgão que
convergem em propor ratificação do tombamento do JBRJ para melhor detalhamento da área geográfica que
estiver atingida por ele, área esta pesquisada, definida e demonstrada como tendo os limites territoriais originais,
historicamente pertencentes à instituição, verificados conforme os mapas, os relatórios, os laudos de vistoria e
outros elementos técnicos ali juntados”. No mesmo sentido a informação contida no processo nº
00405.00827/2010-50, junto à Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal, prestada pelo
procurador do IPHAN, Dr. Heliomar Alencar de Oliveira: “Sob o prisma da proteção do patrimônio cultural, o
Procurador do IPHAN esclareceu que toda a área onde se encontra situado o Jardim Botânico encontra-se
tombada, o que afeta também o entorno da área. Esta condição implica em que qualquer edificação ou
ampliação de edificação dentro da área exige autorização do órgão, que leva em conta a manutenção da
harmonia arquitetônica e paisagística do local. Por outro lado, a indefinição da área exata do Jardim Botânico
sempre dificultou o estabelecimento de uma regulamentação-padrão, bem como a fiscalização da área”.
106

citadas, funcionam na antiga área do Horto.


Pela Lei nº 9.649/98, de 27/05/1998, o Jardim Botânico adotou a denominação
Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro e foi alçado à condição de
autarquia através da Lei nº 10.316/200156, que se encontra vinculada ao Ministério
do Meio Ambiente.
O Plano Diretor do Jardim Botânico, elaborado no ano de 2003, na época em
que era presidente do Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro era
o Sr. Sérgio de Almeida Bruni, informa que o Jardim Botânico está compreendido
entre as coordenadas 22°57’ e 22°59’ de latitude sul e 43°13’ e 43°14’ de longitude
oeste, na Região Meridional do Estado do Rio de Janeiro. Em seu entorno, ao Sul e
a Oeste, está o Maciço da Tijuca; a sudeste, a Lagoa Rodrigo de Freitas; ao norte o
Rio dos Macacos e o Maciço da Tijuca. Faz parte da bacia do Rio dos Macacos e
inclui a vertente norte do Morro da Margarida que integra a Serra da Carioca.
Segundo o supracitado Plano Diretor, o Jardim Botânico está localizado na
Área de Planejamento II, na VI Região Administrativa do Rio de Janeiro, a RA da
Lagoa, Zona Sul da Cidade. Situa-se em sua maior parte no bairro do Jardim
Botânico, tendo uma pequena parte no bairro da Gávea. Em seu entorno, ao sul,
está o Parque Municipal da Cidade e o bairro da Gávea; a sudeste, o Jóquei Clube
do Rio de Janeiro; ao norte e a oeste, o Parque Nacional da Tijuca. No noroeste, é
circundado pela localidade chamada Horto que integra o bairro do Jardim Botânico.
O Plano Diretor, adotando como instrumentos referenciais na delimitação do
Jardim Botânico, mapas constantes do relatório datado de 1985, publicado pelo
Ministério da Agricultura/ IBDF/ JBRJ, de autoria de Victor Hugo Diniz,
"Levantamento e Demarcação das Áreas do Horto Florestal e Jardim Botânico do
Rio de Janeiro" e a revisão feita da delimitação constante do documento de 1985 por
uma comissão do Jardim Botânico do Rio de Janeiro (ofício nº 076/2002,
JBRJ/MMA, enviado à Delegacia do Patrimônio da União, no Rio de Janeiro),
especifica que com base em relatório feito pela instituição em 1985, considerava-se
uma área total de 137 ha (Área do Arboreto: 54 ha e Àrea do Horto Florestal: 83 ha),
mas já ressalva que quando da elaboração do Plano Diretor, a área total do Jardim
Botânico poderia atingir 138,34 ha.

56
Art. 1o Fica criada a autarquia federal Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro (JBRJ), dotada
de personalidade jurídica de direito público, com autonomia administrativa e financeira, vinculada ao Ministério
do Meio Ambiente, com sede e foro na cidade do Rio de Janeiro.
107

5.2 Uma área em conflito


De fato, a área efetiva do Jardim Botânico é objeto de profundas controvérsias,
estando o conflito fundiário encravado em uma das áreas mais nobres do Rio de
Janeiro. Em que pese ter sido criado em 1808, o Jardim Botânico não tem os seus
limites demarcados para fins de registro junto ao cartório imobiliário competente.
A questão da ocupação do Jardim Botânico, recentemente, por força de ações
da Associação de Moradores e Amigos do Jardim Botânico (AMAJB), do Instituto de
Pesquisas do Jardim Botânico do Rio de Janeiro e de empresas privadas, entre as
quais destaca-se as Organizações Globo, com parte importante da sua sede
administrativa na região, passou a ocupar grande parte do noticiário do Estado do
Rio de Janeiro, sob a alegação de que estaria havendo invasão de um importante
bem público e prejuízo ao meio ambiente.
O impasse sobre a remoção da Comunidade do Horto se arrasta desde o início
da década de oitenta. Os moradores, preocupados com a situação, buscaram se
organizar através da criação da Associação de Moradores e Amigos do Horto
(AMAHOR), não sé para garantir o direito à moradia, como também para afastar o
estigma de invasores que já estava se tentando construir em torno dos mesmos57.

Ameaçados de remoção e revoltados com a acusação de que suas casas


formam pequenas favelas dentro de uma área verde, os moradores do
Horto resolveram fundar sua própria associação. Há duas semanas eles se
reúnem no Condomínio Esporte Clube, na rua Pacheco Leão, procurando
encontrar saídas para os problemas comuns às quase 400 famílias que
moram no local. Muitas não têm rede de esgoto e são servidas por fraca
corrente elétrica, e várias outras, as “clandestinas”, correm o risco
permanente de ter que deixar o local a qualquer hora.
A Amahor nasceu “para mobilizar os moradores na conquista de seus
direitos”, como explica o presidente da entidade Roberto Paladini:
- Queremos ser tratados como uma comunidade, não como um grupo de
marginais. Aqui todos trabalham. Não queremos brigar com ninguém, ao
contrário, nossa intenção é entrar em entendimento com o diretor do Jardim
Botânico. Além disso, a Amahor pretende ser também um canal entre todos
os que moram aqui, para que juntos possamos melhorar nossas ruas e
casas.

Pela edição do jornal O Globo do dia 20 de novembro de 198658, verifica-se,


que a situação da remoção da Comunidade do Horto se agrava com a notificação
das famílias para desocupação da área.
57
MORADORES do Horto se organizam. O Globo, Rio de Janeiro, 09 ago. 1982. Jornais de Bairro, p. 08.
58
IBDF despeja os moradores do Jardim Botânico. O Globo, Rio de Janeiro, 20 nov. 1986. Grande Rio, p. 22.
108

Cerca de cem famílias já receberam notificações de despejo da


Procuradoria Geral do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal
(IBDF) para deixarem no máximo dentro de 30 dias as casas que ocupam
há décadas nas imediações e interior do Jardim Botânico e Horto Florestal.
Segundo a Procuradora Marialva Teresa Swicklo, esta é apenas a primeira
etapa de notificações que o IBDF pretende entregar aos moradores de 480
casas do Jardim Botânico, sob a alegação de que estas se encontram em
situação irregular e vêm contribuindo para a degradação do parque.

A reportagem acima citada revela o drama dos moradores da Comunidade do


Horto, o que pode ser demonstrado pelo depoimento prestado pelo guarda florestal
José Augusto de Souza. Pessoas nascidas na localidade, que lá moram há décadas,
passaram a ser ameaçadas de remoção.

Funcionário há 21 anos, o guarda florestal José Augusto de Souza, de 52


anos, também recebeu a notificação de despejo apesar de ainda estar na
ativa. Nascido e criado na casa 9 da sede do Jardim Botânico, onde mora
com a mulher e três filhos, ele paga mensalmente uma taxa simbólica de
Cz$ 54,00 como aluguel ao Serviço do Patrimônio da União (SPU).
- Nossa família mora aqui desde o século passado. Meu bisavô foi capataz
do Jardim Botânico, meu avô foi mestre e meu pai e meus tios foram
guardas florestais. Não é justo nos tirarem daqui – comentou José Augusto
que ganha Cz$ 1.490,00 como agente florestal.

A moradora Alzira Francisca Gonçalves, já na década de oitenta, demonstrava


a determinação dos moradores da Comunidade do Horto de resistir à remoção,
preservar o direito à moradia e a memória59.

No Solar da Imperatriz, uma das moradoras atingidas é Alzira França


Gonçalves de 85 anos, há 60 na casa de número 16, que assegura que de
lá não sairá de maneira alguma. Ela é viúva do ex-funcionário Antônio
Pereira Gonçalves, já falecido, e atualmente mora ali com a filha Ivone e o
Genro.
- Já criei raízes nesse lugar. Isso aqui faz parte do meu eu.

O morador Pedro Bento Pimentel, ilustra bem o clima de insegurança em


relação à posse da terra, que foi implantado desde a década de oitenta na
Comunidade do Horto60.

59
DESPEJO do Jardim Botânico pode chegar à solução através de diálogo. O Globo, Rio de Janeiro, 21 nov.
1986. Grande Rio, p. 18.
60
AMEAÇA de despejo ronda o Horto. O Globo, Rio de Janeiro, 12 jan. 1987. Grande Rio, p. 18.
109

O funcionário aposentado do Ministério da Agricultura, que ainda trabalha no


Jardim Botânico pela Pró-Memória, Pedro Bento Pimentel, de 77 anos,
conta que construiu sua casa, de pau-a-pique, por volta de 1950, com
autorização da administração. Há um ano, quando a casa já estava caindo,
procurou o Departamento de Engenharia do Jardim Botânico e conseguiu
licença para fazer obras utilizando tijolos. Em novembro de 1986, recebeu a
notificação e está desesperado, sem saber o que fazer. Além dele, moram
na casa a filha e cinco netos. “Tenho fé em Deus que não vou sair daqui”,
diz Pedro, bastante assustado.

Outro morador, Sr. Moacir Ferreira, relata não ter para onde ir, caso viesse a
ocorrer a retomada de sua casa61: “Trabalhei 35 anos no Jardim Botânico. Acho um
absurdo ter que desocupar minha casa. Eu, como muitos outros, não tenho para
onde ir. A maioria aqui ganha salário mínimo”.

A angústia e o desespero envolvendo a remoção da Comunidade do Horto se


revelam com grande significado no livro “Diário de uma invasora”, lançado no ano de
2012, onde uma menina que vive na comunidade, então com 17 anos de idade,
identificando-se apenas pelo nome de Flávia, relata um drama coletivo envolvendo o
direito à moradia e o direito à memória na forma de seu diário pessoal.

A sua trajetória de vida, traduz a história da grande maioria dos moradores e


denota o processo histórico de criação da Comunidade do Horto e a emergência do
conflito de interesses pela ocupação/desocupação de áreas de terra, que passaram
a ser muito valiosas na Cidade do Rio de Janeiro.

Flávia (2012), em livro-diário, inicia sua narrativa, informando a chegada de sua


família no local, desde o seu tataravô no início do século passado, passando pelo
seu bisavô e seu avô, que nasceram na Comunidade do Horto, tendo trabalhado
inicialmente para o IBDF, IBAMA e ainda no próprio Jardim Botânico. Acentua, que
todos os seus ascendentes tiveram licença para construir suas casas, onde sua
família vive até hoje.

Como muito bem destaca Flávia, na época de seus ascendentes os tempos


eram outros, quando as pessoas chegavam a ficar meses sem ir ao Centro da
Cidade, que não fica tão próximo e não havia transporte regular.os tempos eram
outros e o ritmo de vida era outro e as pessoas se conheciam.

Com o passar do tempo, as coisas foram mudando e o clima de tranquilidade


da Comunidade do Horto também começou a sofrer alterações. Na administração do

61
FANTASMA do despejo ronda a vila do IBDF. O Globo, Rio de Janeiro, 13 jul.. 1987. Jornais de Bairro, p. 3.
110

Estado da Guanabara por Carlos Lacerda, tentou se construir um cemitério no local,


o que foi obstacularizado pelos moradores e posteriormente, na Ditadura Militar,
houve uma tentativa de instalar um conjunto habitacional no local, o que também foi
objeto de resistência pela Comunidade.

No início da década de setenta, o bairro do Jardim Botânico passou a sofrer


transformações e novos moradores de alto poder aquisitivo e empresas começaram
a se instalar no local, dentre elas a Rede Globo, que ocupou inicialmente endereço
na Rua Von Martius e foi se expandindo até ocupar quase todo o quarteirão entre as
ruas Lopes Quintas e Pacheco Leão.

Narra Flávia, que até mesmo uma unidade pública de saúde que era
frequentada por sua avó, acabou por dar lugar a um condomínio de luxo, realçando
a especulação imobiliária que começava a se fortalecer.

O crescimento da Cidade do Rio de Janeiro é apontado por Flávia, como um


fator de exposição para a Comunidade do Horto, pois as cercanias estavam ficando
muito valorizadas e passava não interessar ter como vizinhos, pessoas desprovidas
de recursos financeiros, conforme a mesma ressalta:

Conforme a cidade aumentava, crescia o olho no Horto. Agora, as casinhas


da comunidade passavam a parecer feias perto das mansões, e a grande
área pela qual elas se espalhavam, atrás do parque, cada vez despertava
mais interesse. Pela primeira vez, houve tentativas de expulsar as famílias
dos moradores antigos, ex-funcionários, para “aproveitar melhor” o terreno.
Dizem que a Globo, cheia de poder político depois de ter apoiado a
revolução de 1964, queria ficar com tudo para ela, e fazer ali o que acabou
fazendo no PROJAC, mas não conseguiu.
O fato é que, de lá pra cá, os moradores do Horto nunca foram deixados em
paz. Mais antiga do que a metade das vilas brasileiras, com mais história e
identidade própria do que quase todas elas, a comunidade passaria a ser
perseguida pelo seu único grande pecado: atrapalhar os interesses dos
ricos e poderosos que chegavam ao bairro.
Tudo isso aconteceu muito antes de eu começar a escrever este diário, mas
é preciso explicar direitinho a história, para que se possa entender essa
situação, meio complicada: na verdade, eu não me tornei uma invasora.
Eu já era uma invasora, antes de nascer.

Flávia com sua linguagem jovial anota em seu livro-diário (p. 44), o sentimento
da Comunidade do Horto, de que a remoção não é buscada apenas para atender os
interesses científicos e de preservação ao meio ambiente.
111

A real é que a comunidade do Horto, com suas casinhas humildes,


atrapalha a valorização dos imóveis dos grandes proprietários do Jardim
Botânico, inclusive e principalmente a Rede Globo. Não é que dê qualquer
problema, aqui não é esconderijo de ladrões nem território de milícias, não
tem tiroteio, barulho nem confusão. Mas, simplesmente, se nós não
existíssemos, ia ficar tudo mais bonitinho.

Agora, por que tanta gente que não mora aqui nem é dona de imóveis no
bairro fica contra nós ? Uma grande parte deve achar que nós ameaçamos
a própria existência do Jardim Botânico, pelo que eles leem no jornal e
veem na televisão. Mas gente da Zona Sul que conhece o local, botânicos e
ecologistas que sabem muito bem da história, não têm esta desculpa.

A única explicação é o mais puro e simples preconceito. Lugar de pobre não


é bairro de rico, mesmo que tenha chegado lá um século antes, e fim de
papo. Que não queiram sair por bem é absurdo: cada um tem que saber o
seu lugar. Infelizmente, querido diário, esta é a razão.

Lembra Flávia em seu livro-diário (p. 51-52), que as seculares famílias da


Comunidade do Horto sempre buscaram preservar o Jardim Botânico, não só no
exercício de seu labor, mas também na defesa de parte de suas vidas, que se
confundem com o próprio parque.

Está acabando o período das tradicionais festas juninas com fogueira,


quadrilha, balão. De uns tempos para cá, os balões grandes praticamente
sumiram, apesar de ainda soltarem uns, em lugares escondidos da polícia:
como são justamente os meses mais secos, o risco de um incêndio florestal
é muito grande, e por este motivo eles foram proibidos.

Na época do meu bisavô, em muitas noites de inverno era dado o alarme,


tinha começado fogo na mata. O caminhão do Jardim Botânico passava
pelas ruas do bairro buzinando, normalmente de madrugada, e todo mundo
pulava da cama, corria de suas casas, para entrar na floresta, que só eles
conheciam tão bem, e combater o incêndio antes que ficasse incontrolável.

Ninguém reclamava, nem hesitava, nem mesmo recebia alguma coisa por
isso. E não fossem eles, não haveria como impedir a destruição, já que até
que os bombeiros chegassem seria tarde demais, e caminhões-tanque não
serviriam de nada nas encostas sem estradas. Proteger a natureza à sua
volta era uma parte de suas vidas, do seu dia a dia.

São filhos, netos e bisnetos destes homens que são acusados hoje de
querer acabar com o Jardim Botânico.

As inquietações externadas pela jovem Flávia em seu livro-diário (p. 67-68), por
certo não se limitam ao seu universo, mas tangencia todos os integrantes da
Comunidade do Horto.

Gente, tão querendo me expulsar da minha casa! Expulsar minha família, e


mais um monte de famílias, do bairro que eles fizeram, do lugar onde
nasceram, porque não querem mais gente pobre morando perto dos ricos e
da Globo! Nada pode ser tão errado, nada justifica isso, por mais mentiras
que se contem, por mais histórias inventadas que publiquem nas primeiras
páginas e botem na televisão.
112

Invasores? Quando eles foram chamados para cá, para cuidar do próprio
Jardim Botânico ? Vão derrubar as casas que eles construíram com suas
próprias mãos e seu dinheiro suado, nos terrenos onde foram autorizados a
viver, e dizer que estão fazendo isso para defender a natureza, a ecologia?

Muitos velhinhos e velhinhas nasceram aqui no Horto, há 70, 80 anos ou


mais, e nunca moraram em outro lugar. Eles se lembram de tudo, como era
e como foi ficando, lembram-se de Getúlio Vargas discursando na festa do
Dia da Árvore, que acontecia no lugar onde hoje fica o SERPRO, de
Juscelino Kubitschek inaugurando a escola, dando a ela o nome da própria
mãe. Como pode querer botas eles pra fora, melhor matar de uma vez, e
matar logo a História junto com eles.

5.3 O debate em torno da regularização fundiária


Nos anos oitenta do século passado, a União começou a pedir os imóveis de
volta ingressando com dezenas de ações de reintegração de posse em nome do
Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF), posteriormente sucedido
pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
(BAMA), pelo Ministério Público Federal e Advocacia Geral da União.
As demandas apresentadas foram elaboradas com base em um paradigma
liberal relativo ao direito de propriedade como algo absoluto e não mais interessando
ao seu titular a permanência de ocupantes, que lá já estavam por dezenas de anos,
caberia a sumária retirada pela via judicial em caso de resistência. O referido
paradigma patrimonialista, não leva em consideração a função social da propriedade
pública, tampouco a função social da posse.
Bello (2008, p. 6) realizou uma pesquisa na qual analisou “a Postura do Poder
Judiciário” em algumas ações envolvendo a retomada de imóveis no Jardim
Botânico. Como base de sua análise, foram apreciados 15 (quinze) acórdãos
proferidos pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região.
Em um primeiro momento, concluiu-se que teria ficado clara a adoção de uma
visão afeta ao universo do Direito Privado, no qual não há que se perquirir sobre a
existência de interesse público envolvido na relação entre as partes.

Nesses julgados ficou clara a adoção do prisma do Direito Privado (Civil,


Imobiliário, etc.), evidenciado pelas relações jurídicas locatícias, cujo
referencial é o bem objeto do direito real de propriedade, não o seu uso,
caracterizado pelo exercício do direito à moradia. Assim entendeu-se que
uma mera rescisão contratual, unilateral, feita pela União, traria a solução
para os conflitos: a desocupação, compulsória, dos imóveis pelos servidores
inativos ou seus sucessores, sob pena de caracterização de esbulho, que
legitima o manejo de ação possessória.

Passo seguinte destaca Bello (2008, p. 8), que as demandas foram julgadas
113

pelo Poder Judiciário, sem que fossem analisadas as particularidades dos casos
concretos e sopesados o direito à moradia digna e o direito ao meio ambiente.

Da análise dos acórdãos acima, verifica-se uma tônica de aplicação


subsuntiva de dispositivos legais aos casos concretos, sem se desenvolver
argumentações quanto ao contexto fático (social) dos réus e aos direitos
fundamentais subjacentes à demanda – o direito difuso ao meio ambiente
saudável/sustentável e o direito à moradia.

Bello (2008, p. 8) realça um ponto por demais interessante, qual seja, uma
parte das ações de reintegração de posse foram propostas sob um determinado
ordenamento jurídico, que veio a sofrer transformações ao longo do tempo,
principalmente na questão da legislação urbanística, mas que simplesmente foram
desprezadas pelo Poder Judiciário. Nas palavras do autor,

Portanto, pode-se qualificar como legalista e dogmático o tratamento


conferido pelo Judiciário às demandas relativas às ações de reintegração de
posse, movidas pela União Federal contra os moradores da região do
Jardim Botânico, pois norteado basicamente pelo DL 9760/46, norma
jurídica elaborada com a finalidade de proteger o patrimônio da União.

Por outro lado, não foram aplicados diplomas como o Estatuto da Cidade
(Lei 10.257/2001), a Medida Provisória 2.220/01, o Código Civil de 2002 e a
Constituição Federal de 1988, esta no que tange ao direito à moradia (art.
6º), reconhecido pela Emenda nº 26/2000. Assim, foram ignorados
importantes institutos jurídicos, como a função social da propriedade (art. 5º,
XXIII, CF/88) e a concessão de uso especial para fins de moradia (MP
2220/2001), que representam ferramentas para se lidar com um novo
cenário das relações sociais.

Dessa forma, pode-se afirmar que os fundamentos das referidas decisões


judiciais são obsoletos e defasados, chamando a atenção o fato de não ter
havido qualquer discussão sobre o direito à moradia, o que poderia ser
explicado pelo fato que um terço das demandas foi ajuizado antes do
advento da CF/88 e as demais antes de 2001 (ano da edição da MP 2220).

O formalismo e a visão conservadora de defesa do patrimônio dos bens da


União adotada pelo Poder Judiciário, que se apresenta totalmente anacrônica,
desbordaram as fronteiras do Rio de Janeiro e foram consagrados pelo Superior
Tribunal de Justiça ao enfrentar o caso moradora da Comunidade do Horto, Srª.
Dagmar Gonçalves da Fonseca, quando do julgamento do Recurso Especial nº
808.708, ocorrido no dia 18/08/200962.
No julgado em questão, restou reconhecido desde a instância local, Tribunal
Regional Federal da 2ª Região, que a Srª. Dagmar era viúva de um servidor público

62
Vide REsp. nº 808.708, 2ª. T., j. 18/08/2009. Rel. Min. Herman Benjamin.
114

que construiu sua casa no Jardim Botânico na década de cinquenta, com a devida
autorização por parte da União.
Ainda assim, a Justiça Federal do Rio de Janeiro em segunda instância
entendeu ser inviável a posse de área pública, sendo indevida qualquer indenização,
devendo ser ultimada a saída do local nos termos do termos do artigo 71 do DL
9.760/1946.
O julgado do Superior Tribunal de Justiça, assevera ainda, que os bens
públicos não estariam sujeitos ao usucapião e que os bens de uso comum do povo e
os de uso especial são inalienáveis, enquanto conservarem a sua qualificação e
esse seria o caso do Jardim Botânico.
Com o referido julgado, o Superior Tribunal de Justiça, não levou em
consideração a função social da propriedade pública e a efetivação do direito
fundamental à moradia, bem como desprezou total a evolução social na legislação
urbanística que rege a regularização fundiária em terras públicas.

Definitivamente, não há como proteger o Jardim Botânico do Rio de Janeiro


sem assegurar, de maneira firme, o espaço físico que ocupa. Nas palavras
do professor J. H. Merryman, "o ingrediente essencial de qualquer política
de propriedade cultural é que o objeto em si mesmo seja fisicamente
preservado. Este ponto é óbvio demais para demandar maior
esclarecimento" (The public interest in cultural property , in California Law
Review, vol. 77, 1989, p. 355). É incontroverso que a casa foi construída
após o local ter sido tombado e ao arrepio da legislação de tombamento em
imóvel público. Assim, a não provada "autorização" que teria sido dada pela
União e o mal explicado pagamento de aluguéis pela ocupação não têm o
condão de alterar a sorte da demanda. Quando da ocupação da área, na
década de 1950, o tombamento do Jardim Botânico contava
aproximadamente 20 anos.

A própria legislação do patrimônio histórico e artístico nacional traz outro


empecilho, insuperável, à pretensão dos ocupantes do imóvel público.
Segundo o Decreto-Lei 25/1937, "As coisas tombadas, que pertençam à
União, aos Estados ou aos Municípios, inalienáveis por natureza, só
poderão ser transferidas de uma à outra das referidas entidades " (art. 11,
grifei). Vale dizer, os bens tombados não podem – e a vedação é absoluta –
ser transferidos, total ou parcialmente, a particulares. [...]

Ninguém deixa de se sensibilizar com a situação daqueles que precisam de


moradia. Contudo, a grave crise habitacional que continua a afetar o Brasil
não será resolvida, nem seria inteligente que se resolvesse, com o
aniquilamento do patrimônio histórico-cultural nacional. Ricos e pobres,
cultos e analfabetos, somos todos sócios na titularidade do que sobrou de
tangível e intangível da nossa história como Nação. Daí que mutilá-lo ou
destruí-lo a pretexto de dar casa e abrigo a uns poucos corresponde a
deixar milhões de outros sem teto e, ao mesmo tempo, sem a herança do
passado para narrar e passar a seus descendentes.

O Estado pode – e deve – amparar aqueles que não têm casa própria, seja
com a construção de habitações dignas a preços módicos, seja com a
115

doação pura e simples de residência às pessoas que não podem por elas
pagar. É para isso que existem Políticas Públicas de Habitação federais,
estaduais e municipais. O que não se mostra razoável é torcer as normas
que regram a posse e a propriedade públicas para atingir tais objetivos
sociais e, com isso, acabar por dar tratamento idêntico a todos
(necessitados e abastados) os que se encontram na mesma posição de
ocupantes ilegais do que pertence à comunidade e às gerações futuras. [...]

Além de rasgar a Constituição e humilhar o Estado de Direito, substituindo-


o, de fato, pela "lei da selva", a privatização ilegal de espaços públicos,
notadamente de bens tombados ou especialmente protegidos, dilapida o
patrimônio da sociedade e das gerações futuras.

O Superior Tribunal de Justiça apresenta outras decisões contrárias aos


moradores da Comunidade do Horto, utilizando sempre uma visão conservadora e
patrimonialista em favor da União ou filigranas de ordem processual para
obstacularizar a análise no caso concreto da efetivação do direito fundamental à
moradia63.
Reforçando o argumento de que o Poder Judiciário vem atuando no caso da
Comunidade do Horto como um ator no qual o seu papel fica circunscrito ao
formalismo e a defesa da propriedade do bem público com base em uma legislação
ultrapassada, deve-se destacar que não há qualquer menção no julgado acima ao
direito fundamental à moradia consagrado na Constituição Federal, desde a Emenda
Constitucional 26/2000, tampouco aos princípios contidos no Estatuto da Cidade,
que data de 2001.
Ao longo do julgado, o mais inusitado é que o Ministro Herman Benjamin,
relator do acórdão acentua que “Para que fique claro: não se discute, na presente
demanda, a irregularidade da ocupação ou o dever de desocupar o imóvel. O debate
restringe-se ao direito de indenização pela casa construída no Jardim Botânico do
Rio de Janeiro” .
O Poder Judiciário está ignorando, que após o ajuizamento das dezenas de
ação de reintegração de posse dos moradores da Comunidade do Horto, houve
alteração na Constituição Federal de 1988 com a consagração do direito à moradia
como um direito fundamental, bem como o advento do Estatuto das Cidades, que
consagra em diversos dispositivos tal direito.
O Tribunal de Contas da União é um outro ator que surge no conflito fundiário e
posteriormente veremos que passará a ostentar o protagonismo em relação a

63
Vide REsp. nº 960953, 1ª T., dec. singular de 21/08/2007, relator Min. Francisco Falcão; REsp. 941450, 2ª T.,
dec. singular de 26/04/2010, relator Min. Mauro Campbell Marques; REsp. 900159, Ac. unân. da 2ª T., j.
01/09/2009, relator Min. Herman Benjamin; REsp. 816.585, Ac. unân. da 1ª T., j. 05/10/2006, relator Min. José
Delgado; REsp. nº 863939, Ac. unân. da 2ª T., j. 04/11/2008, relatora Min. Eliana Calmon.
116

questão, da qual já se ocupa de forma indireta desde o ano de 200164.


A questão da existência de moradias no Jardim Botânico passou a ganhar
maior relevo no Tribunal de Contas da União, por ocasião do acórdão nº 1028/2004,
que não versava especificamente sobre a questão, mas sim sobre procedimento de
auditoria envolvendo a Gerência Regional do Patrimônio da União no Rio de Janeiro,
no qual se buscava a verificação da aplicabilidade da metodologia de fiscalização da
gestão patrimonial e avaliação da arrecadação de aluguel, dentre outros temas.
Consta do acórdão do Tribunal de Contas da União nº 1028/2004, que se busca
a desocupação de imóveis que estão legitimamente ocupados por várias décadas
essencialmente por familiares de ex-funcionários para transformar o Jardim Botânico
em um espaço de produção de receitas para a autarquia.

Segundo o Presidente do JBRJ, de todas as casas construídas dentro dos


limites do Jardim Botânico, apenas as localizadas na Rua Major Rubens Vaz
têm vocação para imóveis funcionais (2). As demais casas são, há alguns
anos, motivo de transtorno para os administradores do JBRJ. O ideal seria
demolir as casas desnecessárias. A diretriz adotada pelo gestor é no sentido
de transformar o Jardim Botânico em um parque que seja, ao mesmo
tempo, amplamente visitado e desabitado. Entende-se que a ocupação do
parque fere a paisagem local e promove a degradação ambiental da
floresta, prejudicando tanto as atividades finalísticas do órgão, como o
potencial de arrecadação de receita.

Consta ainda no corpo do acórdão do Tribunal de Contas da União nº


1028/2004, que desde o ano de 2002, o presidente do Instituto de Pesquisa Jardim
Botânico do Rio de Janeiro, reconheceu em relação às casas construídas no Jardim
Botânico, que “grande parte levantadas por funcionários do órgão, em tempos
pretéritos, com autorização dos ministros da agricultura que moravam na residência
oficial do Parque”.
De acordo com o atual Presidente do Instituto de Pesquisa Jardim Botânico
do Rio de Janeiro (JBRJ), em entrevista realizada em 15/10/2002, além
dessas residências registradas no SPIU, que foram, em tese, construídas
pela União, existem outras. O total de casas construídas no Jardim Botânico
seria de 680, grande parte delas levantadas por funcionários do órgão, em
tempos pretéritos, com autorização dos ministros da agricultura que
moravam na residência oficial do Parque. Hoje essas casas são habitadas,
via de regra, pelos descendentes dos antigos funcionários.

O Tribunal de Contas da União informa que a pretensão de desocupação da

64
Existe expressa citação ao acompanhamento da questão pelo TCU desde 2001, na forma do relatório
constante do Procedimento TC 030.186/2010-2: “Este problema está sendo acompanhado pelo TCU desde
fevereiro de 2001, quando a 2ª Câmara deste Tribunal determinou ao JBRJ adotar medidas para a correção e a
prevenção de novas invasões de imóveis nos limites do patrimônio da União pelo qual é responsável,
demonstrando, nas suas próximas contas, os resultados alcançados e as providências em andamento. (Decisão
referente à Relação -05/2001 - TCU Gab. Min. Valmir Campelo, Ata 04/01 TCU-2ª Câmara)”.
117

área foi concedida pelo Poder Judiciário, mas não foram cumpridas as ordens de
desocupação, em virtude da resistência dos ocupantes em deixar o local65.
No acórdão nº 1028/2004, o Tribunal de Contas da União, recomendou à
Secretaria do Patrimônio da União no Rio de Janeiro, que cedesse o terreno do
Jardim Botânico ao Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro, em
regime de concessão de direito real de uso resolúvel, até que fossem levadas a
efeito as averbações no Cartório do Registro de Imóveis as delimitações exatas do
imóvel.
No ano de 2004, o Governo Federal editou a Portaria 360-A, de 27/12/2004,
publicada no Diário Oficial da União - Seção 2, no dia 28/01/2005, através da qual o
Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão e o Ministério do Meio Ambiente,
instituíram Comissão Interministerial “com a finalidade de promover estudos e propor
soluções que possibilitem à Secretaria do Patrimônio da União a regularização da
cessão do imóvel de domínio da União, constituído pelo Jardim Botânico do Rio de
Janeiro, ao Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro, autarquia
vinculada ao Ministério do Meio Ambiente”.
A referida Portaria autorizou o presidente da Comissão Interministerial a
convidar representantes do Ministério da Cultura, da Advocacia Geral da União, da
ONG Ler e Agir, da AMAHOR, da AMAGÁVEA, da AMAJB, da Associação dos
Amigos do Jardim Botânico e da AMABOTAFOGO a participarem dos estudos e
elaboração da proposta para que fosse realizada a regularização da cessão do
imóvel de domínio da União, constituído pelo Jardim Botânico do Rio de Janeiro, ao
Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro.
A Comissão Interministerial apresentou o seu relatório datado em 22/01/2007,
subscrito pelo representante do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão,
Sr. Antônio Carlos Barbosa Gomes, pelo representante do Ministério do Meio
Ambiente, Sr. Renato Rabe e pela Associação de Moradores e Amigos do Horto
(AMAHOR), Srª. Emília Maria de Souza66.

65
Na década de 80, o extinto Instituto Brasileiro de Direito Florestal (IBDF), posteriormente sucedido pelo
IBAMA, ajuizou diversas ações possessórias na Justiça Federal/Seção Judiciária do Rio de Janeiro cujo objeto
era o pedido de reintegração de posse de imóveis ocupados por pessoas físicas e localizados em área
pertencente ao Instituto de Pesquisas Jardim Botânico (JBRJ). Essas ações transitaram em julgado no início da
década atual, quando a Justiça Federal do Rio de Janeiro reconheceu o direito da União de ser reintegrada na
posse dos imóveis e determinou a expedição dos respectivos mandados, com vistas a retomar a posse dos
bens. No entanto, o cumprimento das diligências de reintegração de posse não se efetivou face aos protestos
dos ocupantes”.
66
O relatório da Comissão Interministerial foi obtido no processo administrativo nº 04967000306/2010-89, que se
encontra em curso junto à SPU/RJ.
118

O relatório em epígrafe sustenta que a questão fundiária do Jardim Botânico é


anterior a sua própria criação.
A questão fundiária do que hoje é conhecido como Instituto de Pesquisa
Jardim Botânico iniciou-se com a fundação em 1596 do “Engenho de Nossa
Senhora a Conceição da Lagoa” de propriedade de Diogo de Amorim
Soares. Em 1660 a propriedade foi adquirida por Rodrigo de Freitas Melo e
Castro (que deu nome a atual lagoa Rodrigo de Freitas).

Com a chegada da Corte Portuguesa ao Brasil D. João VI resolveu


desapropriar o engenho de Rodrigo de Freitas para a criação da Fábrica de
Pólvora. Em 13 de maio e 13 de junho de 1808 o regente criou a fábrica de
pólvora e desapropriou as terras do engenho.

No antigo engenho existiam moradores e lavradores que residiam no local e


muitos se recusaram a sair. Sendo este o início da questão fundiária no
Jardim Botânico.

O relatório informa que os problemas fundiários se desenvolveram até chegar


aos nossos dias, através da autorização oficial para diversos trabalhadores
estabelecerem suas residências próximas ao local de trabalho.

Em 18 de julho de 1811 o Príncipe Regente determinou a desapropriação de


inúmeros moradores da – agora – fábrica de pólvora, para que fossem
instaladas residências para os trabalhadores da referida fábrica. Assim,
inúmeras vilas foram erguidas para que os trabalhadores pudessem residir
próximo ao trabalho (considerando que a área era rural e de difícil acesso).

Esta é a origem da segunda grande causa dos problemas fundiários do


Jardim até a presente data e a origem das causas que foram objeto de
cessão. [...]

Com relação às casas dos antigos empregados da fábrica de pólvora,


muitas delas foram cedidas para funcionários do Jardim Botânico (Art. 76,
92 e 94 do Dec. Lei 9.760/46 e 6.874/44), outras são ocupadas por
pesquisadores atendendo a atividade fim da Autarquia e outras ocupadas
por descendentes de funcionários.

Inicialmente, o relatório da Comissão, destaca, que ao longo três


cadastramentos de moradores e acentua que no ano de 1975 existiam 377 casas no
Jardim Botânico, que no ano de 1985 eram 408 casas e que no ano de 2005, o
número havia crescido para 589 casas.
O relatório aponta a necessidade de expansão do arboreto67, com a finalidade
de atender às exigências científicas e levar a efeito a preservação do local, tendo o
Instituto de Pesquisa do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, requerido à Gerência do
Patrimônio da União no Rio de Janeiro, a cessão da área com base no art. 6º, da Lei

67
Arboreto deve ser compreendido como área destinada para o cultivo de uma coleção de árvores, arbustos,
plantas herbáceas, medicinais, ornamentais ou outras, mantidas e ordenadas cientificamente, em geral
documentadas e identificadas, e aberto ao público com as finalidades de recreação, educação e pesquisa.
119

10.361/200168, que incluiu cerca de 589 casas, além da área cedida à Central
Elétrica Furnas e a área cedida ao Serviço de Processamento de Dados (SERPRO).
O relatório destaca duas questões importantes, que surgiram no acórdão nº
1028/2004 do Tribunal de Contas da União, sendo a primeira, a vedação da
transferência, entrega, cessão ou doação das casas alugadas que se localizam no
Jardim Botânico, à autarquia federal Instituto de Pesquisa do Jardim Botânico do Rio
de Janeiro69.
A segunda questão importante que aparece no relatório tem relação com a
recomendação do Tribunal de Contas da União para que a Secretaria do Patrimônio
da União fizesse a cessão da área ao Instituto de Pesquisas do Jardim Botânico do
Rio de Janeiro em regime de concessão de direito real de uso resolúvel, até que
fossem estabelecidos os exatos limites da área70.
A Comissão informa no relatório, que para não comprometer o trabalho da
mesma, foi acordada a suspensão das ações de reintegração de posse em face dos
moradores, após terem ocorridos problemas para o cumprimento de decisões
judiciais, até que fossem concluídos os trabalhos.
A Comissão em seu relatório estabeleceu como premissa a possibilidade de
convivência harmônica entre a Comunidade do Horto e a pretensão de expansão e
preservação do Jardim Botânico.

A Comissão entende que não existem dois caminhos conflitantes, a


evolução da Comunidade do Horto ou a expansão do IJB até porque o
histórico do próprio Jardim Botânico está intimamente ligado a ocupação do
Horto e a história do Bairro.

A ocupação social do Horto remonta e atravessa a história de nosso país,


do Império à República, da Ditadura à transição até a Democracia uma
ocupação de dois séculos com a permanência de um lugar que não se

68
Art. 6o À Autarquia de que trata esta Lei serão transferidos as competências, o acervo, as obrigações, os
direitos e a gestão orçamentária e financeira dos recursos destinados às atividades finalísticas e administrativas
do Instituto de Pesquisas JBRJ, unidade integrante da estrutura básica do Ministério do Meio Ambiente.
69
Destacamos do trecho do acórdão nº 1028/2004: “9.4 – determinar, com fulcro no art. 43, inciso I, da Lei nº
8.443, de 16/7/1992, c/c art. 250, inciso II do Regimento Interno, à Gerência do Patrimônio da União no Rio de
Janeiro (GRPU/RJ) que não promova a transferência, entrega, cessão, ou doação das casas alugadas que se
localizam no Jardim Botânico à autarquia federal Instituto do Jardim Botânico do Rio de Janeiro”
70
Destacamos do trecho do acórdão do TCU nº 1028/2004: “9.8 - recomendar, com base no art. 250, inciso III,
do Regimento Interno, ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, considerando o risco de invasão do
Jardim Botânico do Rio de Janeiro (JBRJ) e a necessidade de se viabilizar o cumprimento desta Corte (2ª
Câmara – Relação 0005/01, Ata nº 04/01), que, com apoio do GRPU/RJ e em conjunto com o JBRJ, adote as
medidas cabíveis para, nos termos do Art. 18 da Lei 9.636/98 c/c art. 1º, inciso I do Decreto nº 3.125/99, ceder o
terreno do Jardim Botânico ao JBRJ, em regime de concessão de direito real de uso resolúvel, até que sejam
averbadas em cartório as delimitações exatas do imóvel, que pertence, por sua lei criadora (Lei 10.316/01), à
autarquia”
120

deixou corromper pelo tempo, último reduto na Zona Sul da poesia


característica da população do Rio Antigo.

O estilo de vida na ocupação do Bairro do Horto Florestal e a presença do


Jardim Botânico são de uma importância que extrapola o interesse local,
sendo sua dimensão de interesse de toda a Cidade do Rio de Janeiro.

A Comissão destaca que o Prefeito da Cidade do Rio de Janeiro, César Maia,


havia demonstrado interesse em declarar a área abrangida pelo Horto como Área de
Especial Interesse Social (AEIS).
O Prefeito César Maia, chegou a enviar correspondência à Secretaria do
Patrimônio da União, datada de 23/12/2005, na qual defende os interesses da
Comunidade do Horto e condena a pretensão de remoção defendida pelo Instituto
de Pesquisas do Jardim Botânico do Rio de Janeiro.

Ao consultarmos o histórico da ocupação do Horto, verificamos que esse


tipo de ocupação está intimamente ligada a História do bairro, assim como
do próprio Jardim Botânico, fundado à época de D. João VI.

As informações dão conta de que a estratégia adotada pelos diretores do


Jardim Botânico para fazer o parque funcionar consistiu em, no trecho que
hoje encontra-se ocupado por 589 famílias, doar lotes de terra para que os
funcionários construíssem suas casas por conta própria, resolvendo as
questões de vigilância sobre as plantas e da falta de recursos para
pagamentos de salários. Pois era sabido que o pagamento não vinha
regularmente, e os funcionários, por terem recebido os lotes, acabaram
concordando com esta situação.

[...] As famílias que ali habitam preservam um estilo de vida do Rio de


Janeiro de décadas atrás, em que as pessoas ainda se cumprimentavam
nas ruas, crianças andavam e brincavam livremente e os idosos eram
respeitados. A Vila não tem criminalidade, favelização, nem tráfico, mas
enfrenta alguns problemas sociais relativos à moradia, à cidadania e à
identidade. Hoje a Administração do Jardim Botânico insiste na tese da
remoção dessas famílias, o que fere justamente, esses direitos.

Nesse sentido, a Administração Municipal, ao examinar a possibilidade de


declarar aquela área como de Especial Interesse Social, tornar-se-á co-
partícipe da Superintendência de Patrimônio da União, que tem interesse na
manutenção daquela área para fins de assentamento e futura titulação dos
imóveis para aqueles moradores.

O relatório da Comissão em sua parte final apresenta seis propostas, que foram
consolidadas, de modo a amoldar os interesses de todos os envolvidos na questão.
O relatório conclui ainda, que “a complexidade dos trabalhos considerando a
importância da área ultrapassa o interesse local, assumindo dimensão de interesse
de toda Cidade do Rio de Janeiro”, o que demandaria uma ação governamental para
além dos limites da Comissão.
121

Proposta 1: o estabelecimento de convênio, visando a reurbanização e


regularização de toda área da União no Jardim Botânico, entre o Ministério
do Planejamento, Orçamento e Gestão através da SPU, Ministério do Meio
Ambiente através do Instituto de Pesquisa Jardim Botânico /RJ, o Ministério
das Cidades, a Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro e o Estado do Rio de
Janeiro, independentemente da utilização total ou em parte de qualquer
uma das sugestões apresentadas pela Comissão;

Sugestão 1: Realocação – Transferência de 329 famílias localizadas no


interior do novo limite acordado com o IJB e sua alocação com transmissão
de propriedade em prédios a serem projetados e construídos em terrenos
na mesma região, como sugerido pelo ilustre Sr. Procurador da República
no anexo 5.

Sugestão 2: Adensamento – Transferência de 329 unidades localizadas no


interior do novo limite acordado com o IJB e a realocação de 189 famílias
com vínculo funcional direto ou indireto (cônjuge e filhos) em áreas definidas
no entorno do IJB onde já residem 174 famílias, cujas casas, por demolição
dariam lugar a construção de 363 novas unidades no total. Formalização de
acordo judicial ou de realocação de 140 famílias sem vínculo funcional com
o IJB no projeto de regularização fundiária na Colônia Juliano Moreira ou
em outra área a ser definida. Todos os remanejamentos seriam efetuados
gerando transmissão de propriedade.

Sugestão 3: Manutenção do adensamento – Sugestão apresentada pela


Comunidade. A manutenção e restauração das residências de 329 famílias
localizadas dentro dos limites propostos para o Jardim Botânico, efetuando-
se remanejamento das famílias residentes em área de risco ou inadequadas
para espaços vazios existentes na comunidade. A ocupação seria regida por
um código de postura próprio a ser discutido entre a sociedade e o poder
público, e neste caso não haveria transmissão da propriedade;

Proposta 2: Manutenção da suspensão da execução das decisões das


ações de reintegração de posse até a definição e execução no projeto de
reurbanização da área;

Proposta 3: Realização de acordos judiciais, através da Advocacia Geral da


União com pagamento de indenização para devolução do imóvel;

Proposta 4: Realocação de moradores em imóveis vazios na área;

Proposta 5: Extensão para a área do Jardim Botânico do Acórdão TCU nº


2.245/2006 – Plenário – relativo ao recurso impetrado pelos locatários da
União residente a Rua Xavier Sigaud, que permite a ação de V0 da
Prefeitura do Rio de Janeiro (valor venal), no cálculo de locação de cada
unidade imobiliária. A Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro já manifestou
oficialmente interesse de declarar a área do Jardim Botânico como de
Especial Interesse Social;

Proposta 6: Ratificar os limites acordados neste relatório da área a ser


regularizada pela GRPU/RJ ao Instituto de Pesquisa Jardim Botânico, que
deverá apresentar o levantamento topográfico e o memorial descritivo do
novo perímetro.

As propostas apresentadas pela Comissão Interministerial não foram


efetivamente implementadas e a mesma à partir do ano de 2009 foi substituída por
um grupo de trabalho composto por representantes do Ministério do Planejamento,
122

Orçamento e Gestão, pela Secretaria do Patrimônio da União, pelo Ministério do


Meio Ambiente, pelo Instituto de Pesquisas do Jardim Botânico do Rio de Janeiro,
pelo Ministério da Cultura, por meio do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (IPHAN), pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro, pela Prefeitura do Rio
de Janeiro, pela Procuradoria da União no Estado do Rio de Janeiro, pela
Associação dos Moradores e Amigos do Horto (AMAHOR), pela Associação de
Moradores e Amigos do Jardim Botânico (AMAJB) e pela Associação de Moradores
e Amigos da Gávea (AMAGÁVEA).
Com a criação do grupo de trabalho, verificou-se a necessidade de ser feito um
estudo técnico detalhado para que fosse fundamentado o projeto de regularização
fundiária da área utilizada pelo Instituto de Pesquisas do Jardim Botânico do Rio de
Janeiro, com a delimitação do seu perímetro e delimitação do perímetro da área
consolidada, ocupada pelas moradias.
No fim do ano de 2009, a Secretaria do Patrimônio da União realizou destaque
orçamentário à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), para que a mesma,
através da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, cuja coordenação dos trabalhos
coube ao cargo do prof. Ubiratan da Silva Ribeiro de Souza, viesse a realizar as
seguintes atividades:
a) cadastramento socioeconômico e físico das famílias e suas unidades
habitacionais;
b) diagnóstico físico-ambiental e levantamento planialtimétrico da área;
c) delimitação do perímetro da área que será destinada ao Instituto de Pesquisa do
Jardim Botânico;
d) plano de intervenção urbanística para definição:
1) dos parâmetros urbanísticos e edilícios de ocupação dos núcleos
residenciais;
2) das áreas passíveis de remoção, consolidação e reassentamento, visando
garantir, por um lado, a preservação do sítio e as atividades finalísticas do
Instituto de Pesquisa do Jardim Botânico do Rio de Janeiro e por outro, a
integração da Comunidade do Horto à cidade formal.

e) elaboração dos títulos;


f) elaboração de banco de dados.
123

Os aglomerados habitacionais correspondentes à comunidade do Horto foram


divididos em 11 (onze) setores físicos, a saber:
Setor 1: Dona Castorina;
Setor 2: Pacheco Leão I;
Setor 3: Solar da Imperatriz;
Setor 4: Pacheco Leão II, III e IV;
Setor 5: Pacheco Leão V;
Setor 6: Grotão I;
Setor 7: Morro das Margaridas;
Setor 8: Caxinguelê;
Setor 9: Grotão II;
Setor 10: Major Rubens Vaz nº 64;
Setor 11: Major Rubens Vaz nº 122.

As ilustrações abaixo, decorrentes dos trabalhos realizados pela Faculdade de


Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro, delimitam os
respectivos setores, sendo certo, que deve ser desconsiderado o traçado do
perímetro da área do extinto Banco Nacional de Habitação, porque esta área, apesar
de inicialmente cedida pelo Poder Público a esse banco, não foi usada por ele, e
retornou ao Jardim Botânico em 1972.
124

Figura 1 - Mapa da área do projeto de regularização fundiária sem a denominação dos setores

Fonte: FAU/UFRJ (2010)


125

Figura 2 - Mapa da área do projeto de regularização fundiária com a denominação dos setores

Fonte: FAU/UFRJ (2010)

Em que pese a divisão da Comunidade do Horto por setores para efeito dos
levantamentos realizados pela UFRJ, isso não caracteriza a existência de um
conjunto de núcleos habitacionais fragmentados, dispersos e/ou desconectados.
A parceria realizada entre a SPU/RJ e a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
da Universidade Federal do Rio de Janeiro, permitiu a elaboração de um estudo
sobre a área objeto do conflito fundiário, no qual foram identificadas 621 casas na
área do Jardim Botânico.
Do universo de famílias cadastradas, foi constatado que mais de 70% (setenta
por cento) dos moradores da localidade são pessoas com renda inferior ou igual a 5
salários mínimos.
126

No universo total de famílias, 57,69% são chefiadas por mulheres e 43,31% são
chefiadas por idosos.
Outro dado importante é que quando da elaboração do estudo,
aproximadamente 2 % das famílias moravam no local a menos de 5 anos e que mais
de 80% moram no local há mais de 20 anos.
A complexidade do conflito fundiário na área do Jardim Botânico fica ainda mais
realçada quando estamos diante de uma questão que envolve aproximadamente
1.890 moradores que estão vivendo sob a constante incerteza com relação ao futuro
de suas moradias.
Consta do processo de regularização da Comunidade do Horto, junto ao
Serviço do Patrimônio da União, que foram promovidas 213 ações de reintegração
de posse em face dos moradores e os pedidos foram acolhidos desde o primeiro
grau de jurisdição.
Apesar de ter logrado êxito em suas pretensões de reintegração de posse, a
Advocacia Geral da União, passou a solicitar a suspensão das referidas demandas
judiciais, face ao processo de regularização fundiária conduzido pela Secretaria do
Patrimônio da União no Rio de Janeiro.
A Advocacia Geral da União reconheceu que muitos dos moradores
demandados, poderiam ser contemplados no processo de regularização fundiária,
onde os ocupantes das terras do Jardim Botânico poderiam ser distribuídos nas
áreas limítrofes com aquele, fora do espaço destinado à administração, pesquisa e
visitação.
Considerando o significativo lapso de tempo necessário para conclusão dos
trabalhos de reintegração de posse, desde o ano de 2008, a Advocacia Geral da
União passou a apresentar reiterados pedidos de suspensão das ações de
reintegração de posse envolvendo o Jardim Botânico.
A Advocacia Geral da União objetivou com os seus pedidos de suspensão de
ações de reintegração de posse, que houvesse tempo hábil para elaboração de
estudos/levantamentos na área do Jardim Botânico para que fosse respeitado o
direito fundamental à moradia, em especial para aqueles ocupantes que pudessem
integrar o projeto de regularização fundiária.
O jornal O Globo em sua edição do dia 13 de outubro de 2010, realizou uma
ilustração para descrever alguns dos resultados obtidos pelos estudos realizados
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e que nos permite uma melhor
127

compreensão da ocupação do Jardim Botânico.

Figura 3 - Ilustração de parte dos resultados do projeto de regularização fundiária desenvolvido pela
FAU/UFRJ

Fonte: Jornal O Globo (2010)

Questão importante envolvendo o conflito fundiário é que o Jardim Botânico do


Rio de Janeiro não tem sua extensão territorial registrada por meio de matrícula no
Cartório de Registro de Imóveis e que o pedido da Secretaria do Patrimônio da
União no Rio de Janeiro poderia colidir com os interesses do Instituto de Pesquisas
do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, por isso foi instaurado um procedimento
conciliatório no ano de 2010 no âmbito da Câmara de Conciliação e Arbitragem da
128

Administração Federal (CCAF)71, mas não foi obtida a pacificação do conflito.


No curso do processo de regularização fundiária na área do Jardim Botânico,
no dia 28 de setembro de 2010, a Secretaria do Patrimônio da União celebrou
contrato de cessão sob regime de Concessão de Direito Real de Uso (CDRU)
gratuito, por prazo indeterminado, com a Srª. Gracinda Santos da Silva,
relativamente ao imóvel situado na Rua Pacheco Leão nº 1.235, casa 124, de modo
a impedir que uma senhora muito idosa e com filho doente sofresse os efeitos da
decisão do Poder Judiciário que determinou a reintegração de posse do imóvel em
questão.
No dia 03/12/2010 foi apresentada uma denúncia junto ao Tribunal de Contas
da União, que deu origem ao procedimento TC 032.772/2010-6, tendo sido
preservada a identidade do denunciante na forma da Lei nº 8.443/1992, que dispõe
sobre a Lei Orgânica do referido tribunal.
Consta do relatório do procedimento supracitado, que a denúncia foi
apresentada através de um documento denominado de “Denúncia de Ilegalidade em
áreas do Instituto de Pesquisas Jardim Botânico, bem público de uso comum do
povo, de uso especial, unidade de conservação, patrimônio cultural brasileiro,
tombado pelo patrimônio artístico e nacional”.
A denunciante argumentou que estavam sendo praticadas diversas
irregularidades/ilegalidades, através do procedimento de regularização fundiária de
interesse social envolvendo a Comunidade do Horto, tais como: tentativa da
Secretaria do Patrimônio da União no Rio de Janeiro, promover regularização
fundiária em área tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(IPHAN) em violação da Constituição Federal e da legislação infraconstitucional;
tentativa da Secretaria do Patrimônio da União no Rio de Janeiro de promover
regularização fundiária em área classificada como unidade de conservação
ambiental, área de preservação permanente e biomas da Mata Atlântica, em
violação da Constituição Federal e da legislação infraconstitucional; aparente
inconsistência nas informações apresentadas no Relatório Interministerial SPU/IPJB

71
A Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal (CCAF) foi criada em 27 de setembro de
2007 e instituída pelo Ato Regimental n.° 05, de 27 de setembro de 2007, sendo unidade da Consultoria-Geral da
União (CGU), que é órgão de direção superior integrante da estrutura da Advocacia-Geral da União (AGU). A
CCAF foi criada com a intenção de prevenir e reduzir o número de litígios judiciais que envolviam a União, suas
autarquias, fundações, sociedades de economia mista e empresas públicas federais, mas, posteriormente, o seu
objeto foi ampliado e hoje, resolve controvérsias entre entes da Administração Pública Federal e entre estes e a
Administração Pública dos Estados, Distrito Federal e Municípios.
129

de 2007 que indicava a existência de 3.000 moradores na área do Jardim Botânico e


o levantamento realizado pela UFRJ em 2010 indicava 1.890 moradores no local;
ausência de resposta da Secretaria do Patrimônio da União no Rio de Janeiro
relativa a solicitações de interessados de obter cópia de documentos, relatórios e
pareceres relativos ao projeto de regularização fundiária; formalização irregular de
cessão sob o regimento de concessão de direito real de uso gratuito, por prazo
indeterminado, com ocupante de imóvel situado à Rua Pacheco Leão 1.235, casa
124, antes da conclusão das etapas previstas no cronograma do projeto de
regularização fundiária na área do Jardim Botânico; o Instituto de Pesquisa do
Jardim Botânico do Rio de Janeiro estaria descumprindo suas finalidades e
competências fixadas em lei, em virtude das pressões que estaria sofrendo da
Secretaria do Patrimônio da União no Rio de Janeiro para implantar, dentro de área
ambiental de preservação permanente, projeto de regularização fundiária,
contrariando interesse público.
Após os esclarecimentos prestados pela Secretaria do Patrimônio da União no
Rio de Janeiro, o Tribunal de Contas da União, no dia 23/03/2011, proferiu o acórdão
nº 719/2011, no qual foi concedida uma medida cautelar para impedir que fossem
celebrados novos instrumentos de Concessão de Direito Real de Uso (CDRU), antes
do término do projeto de regularização fundiária da área do Jardim Botânico,
conforme demonstramos:

Nesse contexto, a adoção de medida cautelar mostra-se necessária para


impedir a concessão de novas CDRU, pois considero presentes seus
pressupostos: o fumus boni juris (indícios de irregularidades graves
inconciliáveis com a legislação sobre tombamento, legislação ambiental e
princípios constitucionais) e o periculum in mora (precedente de concessão
de direito real de uso – CDRU, por tempo indeterminado, à ocupante de
imóvel antes da conclusão das etapas previstas no cronograma do projeto).

A decisão acima determinou ainda, que o procedimento de denúncia fosse


apensado aos autos do procedimento TC 030.186/2010-2, que trata do
Levantamento-Conformidade empreendido pelo TCU, relativamente à área do
Jardim Botânico, tendo ao seu final alertado os responsáveis pelo projeto de
regularização fundiária no Jardim Botânico, que a outorga de títulos aos moradores
da área antes do julgamento do mérito da denúncia, poderia ensejar a
responsabilização dos gestores, caso o TCU viesse a entender que se encontrariam
presentes irregularidades no projeto.
A Constituição Federal de 1988 atribuiu ao Tribunal de Contas da União, o
130

papel de auxiliar do Congresso Nacional no exercício do controle externo. As


competências constitucionais privativas do TCU constam dos artigos 71 a 74 e 161,
do texto constitucional.
Para além das competências constitucionais, outras são conferidas ao TCU,
mas dentre elas não se contempla a criação e/ou implementação de políticas
públicas envolvendo regularização fundiária em áreas públicas, que com maior
propriedade deveriam ser conduzidas no âmbito do Ministério das Cidades e do
Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.
Em que pese não ser um órgão vocacionado para resolver questões de
regularização fundiária, o TCU, através do acórdão 2380/2012 proferido no mês de
setembro do ano de 2012, delimitou o universo em que a mesma teria margem para
ocorrer.
O TCU afirma na decisão em questão, que a regularização fundiária de
interesse social é um procedimento administrativo complexo, que se destina a
concretizar o direito constitucional à moradia digna para pessoas que já estejam
alocadas ou pretendam se alocar em imóveis públicos, cabendo a Secretaria do
Patrimônio da União, funcionar como um dos principais órgãos planejadores e
executores da referida ação.
Consta do acórdão supracitado, que a equipe de auditores do TCU optou por
analisar mais detidamente o projeto de regularização fundiária na área do Jardim
Botânico do Rio de Janeiro, pelo fato de parte do projeto abranger áreas tombadas e
protegidas por legislação ambiental; o preço médio do metro quadrado dos imóveis
naquela área está entre os mais altos do Brasil e que a solução da questão pode
servir como referência para casos semelhantes, elevando a expectativa da
população sobre a atuação fiscalizadora do TCU e de outros órgãos de controle
público.
Os auditores do TCU ressaltaram em relatório, que o problema do Jardim
Botânico do Rio de Janeiro, está sendo tratado no referido órgão desde 2001,
quando foi determinado ao Jardim Botânico, que fossem adotadas medidas para
correção e prevenção de novas ocupações de imóveis nos limites do patrimônio da
União pelo qual seria responsável, cujos resultados alcançados e as providências
seriam apuradas nas contas subsequentes.
No relatório realizado pela equipe de auditores do TCU e que se encontra
incorporado ao corpo do acórdão nº 2380/2012, restaram destacadas as seguintes
131

questões: omissão de cessão de área do Jardim Botânico pela SPU/RJ ao JBRJ;


regularização fundiária em áreas tombadas do Jardim Botânico; proposição de
cessão de áreas pelo JBRJ para uso incompatível com sua missão; alienação de
áreas sem comprovação prévia da desnecessidade das mesmas para a
administração pública; insuficiência dos controles internos da SPU/RJ relativos aos
projetos de regularização fundiária; insuficiência das informações fornecidas nos
canais de acesso disponibilizados aos cidadãos; adoção de instrumento jurídico
(CDRU) sem base legal; CDRU praticada com irregularidades; previsão de
regularização fundiária de edificações situadas em faixa não edificável; posse
irregular de imóveis da união; sonegação temporária de dados pela SPU/RJ.
Os auditores do TCU opinaram que a tentativa da Secretaria do Patrimônio da
União de promover regularização fundiária de interesse social na área do Jardim
Botânico, não teria base legal, destacando ainda, que somente o setor 01 (Dona
Castorina), que é um dos onze setores fixados pela UFRJ em seu estudo, estaria
localizado fora do polígono do tombamento do Jardim Botânico e poderia ser objeto
de regularização.
Argumentam os auditores, que a verdadeira motivação de realização de projeto
de regularização fundiária no Jardim Botânico, seria a existência de mais de duas
centenas de mandados de reintegração de posse de parcelas da região em favor da
União.
Os auditores do TCU sustentam inclusive que sejam cumpridas decisões em
que já tenha sido operada a coisa julgada, ou seja, das quais não caiba mais
recurso, ainda que os ocupantes dos imóveis estejam inseridos no cadastramento
realizado pela UFRJ, pois sustentam o entendimento formal-legalista de que a coisa
julgada não se discute nem se adia simplesmente se cumpre.
Os auditores do TCU são categóricos em afirmar que não há possibilidade de
ser feita regularização fundiária de interesse social na área interna do Jardim
Botânico, face ao tombamento da área, em que pese a argumentação da Secretaria
do Patrimônio da União no Rio de Janeiro, que as etapas descritas pelo projeto de
regularização fundiária do território do Jardim Botânico, assim como a intervenção
urbanística, somente seriam implementadas após análise e eventual aprovação da
“Proposta Preliminar das Poligonais do Horto e IJBRJ” apresentadas pela UFRJ, o
que permitiria a demarcação dos limites do Jardim Botânico do Rio de Janeiro.
Relativamente ao caso da Srª. Gracinda Santos da Silva, ter firmado com a
132

União contrato de cessão sob regime de Concessão de Direito Real de Uso (CDRU)
gratuito, por prazo indeterminado, os auditores do TCU entenderam que o fato da
mesma ser idosa e ter um filho portador de necessidade especial, não justificaria a
exceção, haja vista que entendem que existem milhares de pessoas na mesma
situação na Região Metropolitana do Rio de Janeiro e tal procedimento de
concessão de titulação pela SPU/RJ, teria violado o princípio da igualdade.
Em síntese o relatório dos auditores do TCU apresentaram as seguintes
questões para serem objeto de apreciação pelos Ministros do Tribunal no
procedimento TC 030.186/2010-2, que estava apensado ao procedimento de
denúncia TC 032.772/2010-6:
a) omissão de cessão de área do Jardim Botânico pela SPU/RJ ao JBRJ;
b) regularização fundiária em áreas tombadas do Jardim Botânico;
c) proposição de cessão de áreas pelo JBRJ para uso incompatível com sua missão;
d) alienação de áreas sem comprovação da sua desnecessidade para a
administração pública;
e) insuficiência dos controles internos da SPU/RJ relativos aos projetos de
regularização fundiária;
f) insuficiência das informações fornecidas nos canais de acesso disponibilizados
aos cidadãos;
g) adoção de instrumento jurídico (CDRU) sem base legal;
h) CDRU praticada com irregularidades;
i) previsão de regularização fundiária de edificações situadas em faixa não
edificável;
j) posse irregular de imóveis da união.

O Ministro Valmir Campelo, relator do acórdão nº 2380/2012, destacou


inicialmente em seu voto, que o ponto central do levantamento de auditoria estaria
na possibilidade ou não de haver regularização fundiária em áreas do Jardim
Botânico do Rio de Janeiro, tombadas pelo IPHAN, acrescendo a tal situação a
existência de dezenas de ações de reintegração de posse com sentenças
transitadas em julgado e o conflito institucional entre o Instituto de Pesquisas do
Jardim Botânico do Rio de Janeiro e a Secretaria do Patrimônio da União no Rio de
Janeiro, que foi inclusive submetido à Câmara de Conciliação e Arbitragem da
Administração Federal (CCAF), porquanto, o primeiro reivindica não só a retomada
133

das áreas objeto de regularização, como também que lhe seja cedida de forma
definitiva a área em que se situa.
O relator pondera que o TCU vem atuando para resolver o problema fundiário
do Jardim Botânico e já teria inclusive apontado que a primeira solução seria a
delimitação da área, pois caso não ocorra a delimitação, ainda que o Instituto de
Pesquisas do Jardim Botânico pretendesse dispor de parte da área para fins de
regularização fundiária de interesse social, não poderia fazê-lo, pois o mesmo não
ostenta a propriedade da terra.
Reconhece o Ministro Valmir Campelo, que deve-se buscar o equilíbrio nas
ações do Estado entre a necessidade de prover moradia e preservação do
patrimônio tombado e do meio ambiente para se cumprir o imperativo constitucional
de respeito à dignidade humana.
O relator, mesmo entendendo pertinente tornar definitiva a medida cautelar
adotada no procedimento de denúncia instaurado junto ao TCU, de modo a
obstacularizar a emissão de títulos de Concessão de Direito Real de Uso (CDRU),
houve por bem não tornar imediatamente sem efeito o título outorgado a Srª
Gracinda, em virtude de ser idosa, ter um filho portador de necessidade especial e o
imóvel que ocupa, estar situado fora de interesse imediato do Instituto de Pesquisas
do Jardim Botânico do Rio de Janeiro e outros 48 imóveis estarem em situação
jurídica idêntica.
Ao finalizar o seu voto, o relator destaca intervenção da AMAJB, na qual
apresenta no processo um relatório elaborado pela Secretaria de Biodiversidade e
Florestas do Ministério do Meio Ambiente, sobre a inspeção das áreas de
preservação permanente e áreas de risco do Jardim Botânico e o acórdão proferido
pelo Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial nº 808.708, que envolve a
situação de um dos moradores da Comunidade do Horto, conforme anteriormente
realçado.
Em sua parte dispositiva, o acórdão passa a efetivamente dispor sobre a
solução do processo administrativo, tendo deixado de impor qualquer punição aos
representantes da Secretaria do Patrimônio da União no Rio de Janeiro, as Srªs.,
Marina Ângela Miranda Esteves da Silva e Célia Beatriz Ravera Schargrodsky e ao
representante do Instituto de Pesquisas do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, Sr.
Liszt Benjamin Vieira pela atuação dos mesmos no processo de regularização
fundiária envolvendo a Comunidade do Horto.
134

O acórdão confirma a determinação para que a SPU/RJ se abstenha de realizar


a titulação a ocupantes de imóveis no projeto de Regularização Fundiária de
Interesse Social no Jardim Botânico da cidade do Rio de Janeiro, enquanto perdurar
as irregularidades identificadas no processo.
Dentre os principais pontos da decisão, devemos destacar que foram
determinados prazos para as seguintes ações:
a) para que o Instituto de Pesquisas do Jardim Botânico do Rio de Janeiro e IPHAN
findem a delimitação da área de interesse e essencial às atividades da autarquia,
considerando os respectivos tombamentos, para que o MPOG, a SPU e a SPU/RJ
procedam à cessão da área;
b) para que o MPOG, a SPU, SPU/RJ e ao JBRJ, para que adotem as medidas
cabíveis para a formal transferência ao Instituto de Pesquisas do Jardim Botânico do
Rio de Janeiro de todos os bens imóveis, inclusive o Horto Florestal;
c) para que MPOG, a SPU, a SPU/RJ, o JBRJ e o IPHAN findem a delimitação da
área essencial às atividades da autarquia e a conclusão da revisão dos respectivos
tombamentos, fazendo-se a averbação e/ou registro no cartório de imóveis
competente das exatas delimitações das áreas tombadas ou não, abrangidas pelo
JBRJ;
d) para que o MPOG, a SPU, a SPU/RJ, o JBRJ e o IPHAN enviem ao TCU
relatórios trimestrais sobre as medidas adotadas para cumprimento de
determinações do acórdão, sob pena de responsabilização por descumprimento de
decisão do TCU;
e) para que a SPU, a SPU/RJ, a AGU e o JBRJ, caso este tenha legitimidade
judicial, que, tão logo definidos e regularizados em cartório os limites territoriais do
Jardim Botânico, que adotem todas as medidas judiciais e extrajudiciais necessárias
ao fim de suspensão, arquivamento, diferimento ou qualquer outra situação
impeditiva ou restritiva da execução de qualquer mandado de reintegração de posse
decorrente de decisão judicial transitada em julgado, em área definitiva após sua
delimitação, devendo ser apresentado relatório apresentem a este Tribunal, a cada
seis meses, relatório contendo informações acerca das providências que têm sido
adotadas visando o cumprimento de todos os mandados de execução de
reintegração de posse concedidos por meio de decisões judiciais transitadas em
julgado, em respeito à coisa julgada (Constituição Federal, art. 5º, inciso XXXVI);
135

f) para que a SPU, a SPU/RJ, a AGU e o JBRJ, caso este tenha legitimidade judicial,
adotem todas as providências para a obtenção da reintegração de posse de
qualquer outra área do Jardim Botânico do Rio de Janeiro ocupada indevidamente e
não contemplada com correspondente decisão judicial transitada em julgado e
vigente, para cumprimento da determinação da 2ª Câmara do TCU ao JBRJ, “no
sentido de corrigir e prevenir invasões (Sessão de 08/02/2001, Relação nº 05/01
Gab. Min. Valmir Campelo, Ata- CU 04/01-2ª Câmara)”.

O voto do relator deixa acentua que caso restem áreas remanescentes à área
definitiva do JBRJ e se houver possibilidade jurídica, poderão ser disponibilizadas
para fins do projeto de regularização fundiária de interesse social pretendido pela
SPU/RJ, procedendo-se à regularização das moradias nelas existentes.
O Ministro Walton Alencar Rodrigues, levou a efeito uma declaração de voto, na
qual realça com suas tintas a complexidade da questão envolvendo a regularização
fundiária na Comunidade do Horto e o embate de múltiplos atores.

A questão assume grau de importância ainda maior em razão da politização


do tema. Noticiam os meios de comunicação que autoridades públicas
graduadas estariam desenvolvendo ações, na defesa de interesses
privados, junto à Secretaria de Patrimônio da União, à Superintendência de
Patrimônio da União no Estado do Rio de Janeiro e a outros órgãos
públicos, para a regularização dessas áreas, nas quais habitam seus
parentes e eleitores. Há notícias, também, de que autoridades federais e
estaduais teriam passado a habitar o local. A situação hoje existente
equivale a um cabo de guerra, em que de um lado se colocam os invasores
e seus defensores e, do outro, isoladas, a lei e a sociedade.

Entendendo que no acórdão nº 2.380/2012 estaria eivado de omissões,


obscuridades e contradições, a União ofertou Embargos de Declaração, objetivando
a melhor compreensão da decisão. No dia 31/12/2012 foi proferido o acórdão nº
2949/2012, no qual foram incluídas a SPU e SPU/RJ no processo de delimitação da
área de interesse e essencial às atividades do Instituto de Pesquisas do Jardim
Botânico do Rio de Janeiro, mantidos em essência os demais comandos do acórdão
embargado.
No dia 07/05/2013, a Ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira, anunciou a
definição do novo perímetro do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, que implica na
remoção de cerca de 520 famílias, ou seja, mais de 80% das famílias que compõe a
Comunidade do Horto.
136

A definição do novo perímetro do Jardim Botânico do Rio de Janeiro não levou


em conta os trabalhos desenvolvidos pela SPU/RJ e pela UFRJ.

Figura 4 - Novo perímetro do Jardim Botânico anunciado em 07/05/2013

Fonte: MPOG (2013)

Participaram do anúncio o Secretário-Executivo do Ministério do Meio


Ambiente, Francisco Gaetani, o advogado-geral da União, Luís Inácio Adams, a
Secretária do Patrimônio da União, Cassandra Nunes e a Presidente do Instituto de
Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro, Samyra Crespo. O novo perímetro do
Jardim Botânico delimita 132,5 hectares e retira, pelo menos, 520 famílias do
terreno. Apenas 101 famílias do Setor Dona Castorina ficaram de fora da
delimitação.
Na nova delimitação do Jardim Botânico, cerca de 520 famílias serão
removidas da área do parque, em disputa que durava mais de três décadas. Prédios
do TRE e Serpro devem ser desativados. Subestação da Light e escola
permanecerão funcionando. Somente não serão removidas as famílias que ocupam
137

o Setor 1 (Dona Castorina), o seja, somente poderão permanecer 101 famílias.


Após a divulgação do novo perímetro do Jardim Botânico, o jornal O Globo em
sua edição do dia 08/05/2013 elaborou uma ilustração que demonstra em
conformidade com o novo perímetro do Jardim Botânico, as instalações públicas que
irão permanecer no local, as instalações públicas que serão desativadas, as
comunidades que serão retiradas e a comunidade que será mantida.

Figura 5 - Ilustração do novo perímetro do Jardim Botânico anunciado em 07/05/2013

Fonte: Jornal O Globo (2013)

Conforme reportagem publicada no Jornal do Brasil em sua edição eletrônica


do dia 08/05/201372, os moradores do Jardim Botânico não aceitaram proposta do
Governo Federal de realocação. Em reunião realizada entre os moradores, a
Secretaria do Patrimônio da União, Advocacia Geral da União, Ministério do Meio
Ambiente, a Casa Civil e a Secretaria da Presidência da República, o sentimento dos
moradores era de que a questão ainda não está finalizada.
A presidente da AMAHOR, Srª. Emília Maria de Souza aponta para a

72
MARINI, Íris. Moradores do Jardim Botânico não aceitam acordo proposto pela União. Jornal do
Brasil, Rio de Janeiro, 8 maio 2013. Disponível em: <http://www.jb.com.br/rio/noticias/2013/05/08/moradores-
do-jardim-botanico-nao-aceitam-acordo-proposto-pela-uniao/>. Acesso em: 14 fev. 2014.
138

possibilidade de judicialização da questão por parte da associação e para a


construção de uma saída política para a conflito fundiário:

A situação não está decidida. Vamos conversar com os advogados para ver
o que podemos fazer judicialmente. E consultar outras instâncias do
governo para apresentar o que queremos - permanecer na área do Horto –
e que retornem com a ideia do projeto elaborado pela UFRJ e o TCU, que
previa o remanejamento de algumas famílias dentro do próprio Horto e a
expansão das áreas de pesquisa do Instituto Jardim Botânico de Pesquisas
do Rio de Janeiro.

O morador da comunidade Moacyr Paiva, apresentou uma fala que demonstra


a preocupação da Comunidade do Horto:

Não podemos, de uma hora para a outra, na calada da noite, uma família ir
para o meio da rua. Precisamos de tempo, planejamento, construir
alternativas habitacionais, porque boa parte desses moradores não
possuem condições econômicas para ter uma moradia digna se não houver
um esforço do governo federal nessa direção.

Conforme a reportagem, o momento mais emocionante da assembleia ocorreu


quando a esposa do Sr. Moacyr Paiva, a Srª Beatriz, pegou o microfone e externou
“não aguentar mais passar por isso” e fazer um clamor: “Eu só quero ficar na minha
casa. Deixe a gente em paz”.
Não se conformando com a decisão proferida pelo Tribunal de Contas da União
(TCU) que julgou o relatório de levantamento de auditoria de conformidade nos
processes de regularização fundiária de interesse social, promovidos pela
Superintendência do Patrimônio da União no Rio de Janeiro, com enfoque no projeto
que abrange a área do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, no acórdão 2380/2012,
complementado pelo acórdão nº 2949/2012, a Associação de Moradores e Amigos
do Horto (AMAHOR), objetivando desconstituir o entendimento firmado pelo Tribunal
de Contas da União, ingressou com um Mandado de Segurança com pedido de
liminar junto ao Supremo Tribunal Federal no dia 09/11/2012, que foi inicialmente
distribuído ao Ministro Joaquim Barbosa e posteriormente redistribuído ao Ministro
Luis Roberto Barroso73.
A AMAHOR sustentou junto ao Supremo Tribunal Federal, que o Tribunal de
Contas seria incompetente para intervir na Concessão de Direito Real de Uso
(CDRU) celebrada com uma posseira em particular, Srª. Gracinda Santos da Silva e
na proposta de regularização fundiária do Executivo, por se tratar da definição do

73
Mandado de Segurança nº 31.707.
139

interesse público e do exercício de competência discricionária; que seriam regulares


os procedimentos que resultaram na Concessão de Direito Real de Uso (CDRU) e
na proposta geral de regularização; e que teriam sido violados os direitos ao
contraditório e à ampla defesa, uma vez que o Tribunal de Contas da União (TCU),
não haveria permitido a participação dos moradores na instrução processual, nem os
teria notificado quanto à decisão proferida.
Diante de tais argumentos, a Associação de Moradores e Amigos do Horto
(AMAHOR), requereu liminar para obter a suspensão dos efeitos da decisão
proferida pelo TCU, especificamente o item 9.3.5 e subitens74, determinando que
não haja qualquer reintegração de posse na área do Horto Florestal, até que seja
analisado pelo STF a legalidade da decisão do TCU e ao fundo requereu que fosse
declarada a incompetência do TCU para intervir na CDRU celebrada com a Srª.
Gracinda Santos da Silva; que fosse declara a incompetência do TCU para intervir
na proposta de regularização fundiária desenvolvida pelo Poder Executivo, através
da SPU; que caso o STF entenda que o TCU seja competente para intervir em ato
discricionário do Poder Executivo, que seja declarada a nulidade da decisão
proferida pelo TCU em relação a Srª Gracinda Santos da Silva, face a inexistência
de irregularidades, bem como que seja declarada nula a decisão do TCU no que
tange a proposta de regularização fundiária apresentada pela União Federal e
elaborada em conjunto com a Universidade Federal do Rio de Janeiro, que a
decisão do TCU seja declarada nula por violar os princípios do contraditório e da
ampla defesa, pois os moradores do Horto Florestal não foram autorizados a
participar da instrução processual do processo na Corte de Contas.
O Ministro Luis Roberto Barroso, em decisão proferida em 14/11/2013 indeferiu
o pedido de liminar formulado pela AMAHOR, mas ressalvou quando da prolação da

74
“9.3.5. à SPU, à SPU/RJ, à AGU e ao JBRJ, caso este tenha legitimidade judicial, que, tão logo definidos e
regularizados em cartório os limites territoriais do Jardim Botânico, que: 9.3.5.1. no prazo de 60 (sessenta) dias,
adotem todas as medidas judiciais e extrajudiciais necessárias ao fim de suspensão, arquivamento, diferimento
ou qualquer outra situação impeditiva ou restritiva da execução de qualquer mandado de reintegração de posse
decorrente de decisão judicial transitada em julgado, em área definitiva na forma do item 9.3.3 deste Acórdão;
9.3.5.2. apresentem a este Tribunal, a cada seis meses, relatório contendo informações acerca das providências
que têm sido adotadas visando o cumprimento de todos os mandados de execução de reintegração de posse
concedidos por meio de decisões judiciais transitadas em julgado, em respeito à coisa julgada (Constituição
Federal, art. 5º, inciso XXXVI), tempestivamente, dentro dos respectivos prazos; 9.3.5.3. no prazo total de 90
(noventa) dias, adotem todas as providências para a obtenção da reintegração de posse de qualquer outra área
do Jardim Botânico do Rio de Janeiro ocupada indevidamente e não contemplada com correspondente decisão
judicial transitada em julgado e vigente, para cumprimento da determinação da 2ª Câmara desta Corte feita ao
JBRJ, no sentido de corrigir e prevenir invasões (Sessão de 08/02/2001, Relação nº 05/01 Gab. Min. Valmir
Campelo, Ata-TCU 04/01-2ª Câmara)”
140

mesma, que a matéria se apresenta complexa75.

[...] não vislumbro, no caso, a existência de uma excepcional situação de


urgência (periculum in mora) que autorize a concessão de uma tutela
inaudita altera parte. Também a complexidade da matéria justifica uma
cautela adicional: como a pretensão de ambas as partes são muito
relevantes, convém não interferir na questão de forma irrefletida. Por essas
razões, sem prejuízo de nova reflexão sobre o tema no futuro, considero
prudente indeferir a liminar, ao menos por ora.

A interposição do Mandado de Segurança pela AMAHOR deixa em aberto a


discussão sobre o projeto de regularização fundiária na Comunidade do Horto na
forma tratada pela TCU, pois o que o Supremo Tribunal Federal apreciou até o
momento foi o pedido de liminar, mas ainda não existe decisão sobre o mérito da
controvérsia.
A decisão proferida pelo Tribunal de Contas da União, longe de esgotar a
questão, fortaleceu a atuação da AMAHOR, que busca não só na via judicial, mas
com suas articulações politizar cada vez mais o processo de regularização da
Comunidade do Horto.
No ano de 2013, o Conselho das Cidades, que é um órgão colegiado de
natureza deliberativa e consultiva, integrante da estrutura do Ministério das Cidades
e tem por finalidade estudar e propor diretrizes para a formulação e implementação
da política nacional de desenvolvimento urbano, com base na nova ordem jurídico-
urbanística estabelecida no Brasil após a Constituição Federal de 1988, editou uma
Resolução Recomendada, ainda sem número, através da qual recomenda ao
Ministério das Cidades, que faça gestões junto à Comissão Interministerial criada
pela Presidência da República para rever a decisão de remoção da Comunidade do
Horto e faça gestão junto aos tribunais federais e órgãos do estado e município do
Rio de Janeiro, responsáveis pelas políticas urbana e ambiental, de modo a garantir
a sua permanência, respeitando o princípio da função social da propriedade e das
cidades, bem como o direito humano à moradia.
A referida resolução recomenda ainda ao Ministério das Cidades que faça
75
Ementa da decisão: “MANDADO DE SEGURANÇA. MEDIDA LIMINAR. HORTO FLORESTAL DO RIO DE JANEIRO.
REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA. TCU. ORDEM PARA PROMOVER-SE A REMOÇÃO DOS OCUPANTES. 1. A complexidade
da matéria desautoriza uma intervenção precipitada no conflito. Por um lado, a ocupação do Horto remonta ao início do
século XIX e sempre se fez com a autorização ou a tolerância das autoridades públicas. Famílias se
estabeleceram na área por porém, há um interesse público relevante na proteção do meio ambiente, do erário e
do patrimônio histórico e cultural na área do Jardim Botânico do Rio de Janeiro e da Floresta da Tijuca. 2. Como
o prazo para as medidas de desocupação só começará a correr depois de duas outras medidas que, juntas,
podem levar mais de seis meses para serem concluídas, inexiste periculum in mora que autorize a concessão de uma
tutela inaudita altera parte. 3. Medida liminar indeferida.”gerações.
141

gestão junto à Comissão Interministerial criada pela Presidência da República, para


que busquem soluções que possibilitem a permanência da comunidade na área do
Horto Florestal.
Insta frisar, que anteriormente à resolução supra, o Conselho das Cidades já
havia editado a Resolução Recomendada ConCidades nº 94 de 21 de outubro de
2010, que recomenda que o referido Conselho, por meio do Grupo de Trabalho de
conflitos fundiários urbanos, passe a acompanhar o projeto de regularização
fundiária da Comunidade do Horto localizada no Jardim Botânico no Rio de Janeiro,
com vistas à garantia do direito à moradia.
A dimensão política da regularização fundiária da Comunidade do Horto é tão
relevante no cenário nacional, que até hoje o Ministro das Cidades não homologou
as resoluções recomendadas do Conselho das Cidades, de modo a permitir que as
mesmas tivessem eficácia plena.
No dia 02 de outubro de 2013, a Comunidade do Horto foi tema de uma
audiência pública na Câmara dos Deputados, promovida pela Comissão de
Desenvolvimento Urbano e convocada pelos deputados do Partido dos
Trabalhadores, Edson Santos (RJ), Zezéu Ribeiro (BA) e Paulo Ferreira (RS). A
sessão teve duração de aproximadamente três horas e o Governo foi representado
pela Secretária do Patrimônio da União, Cassandra Nunes e pelo assessor especial
do Ministério do Meio Ambiente, Luiz Antonio Correia de Carvalho.
No dia 03 de dezembro de 2013, foi realizada uma audiência pública sobre a
Comunidade do Horto na Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro,
promovida pela Comissão de Política Urbana, Habitação e Assuntos Fundiários,
tendo como proponentes da sessão, os deputados do Partido dos Trabalhadores,
Nilson Salomão e Gilberto Palmares.
A questão da Comunidade do Horto, como dito acima não foi resolvida
definitivamente pelo Tribunal de Contas da União e a problemática está em aberto,
sujeitando-se a atuação dos atores envolvidos no conflito fundiário.

5.4 Os múltiplos atores e suas estratégias


A regularização fundiária da Comunidade do Horto envolve diversos atores,
dentre eles merecem destaque a Secretaria do Patrimônio da União (SPU), o
Instituto de Pesquisas do Jardim Botânico do Rio de Janeiro (JBRJ), o Instituto do
142

Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), a Advocacia Geral da União


(AGU), a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a Associação de
Moradores e Amigos do Horto (AMAHOR), a Associação de Moradores e Amigos do
Jardim Botânico (AMAJB).
Por volta do ano de 2005, a partir de um rumoroso processo que ganhou as
manchetes dos principais jornais e noticiários televisivos, o que passou a se chamar
de ocupação irregular de área pública destinada à preservação ambiental surge
como um problema onde antes havia apenas uma comunidade de funcionários,
antigos empregados do Jardim Botânico do Rio de Janeiro e seus descendentes
diretos e que estava ali assentada por dezenas de anos em terras cujo título legal
estava vinculado ao patrimônio da União.
A atuação de diversos atores públicos e privados no conflito fundiário
envolvendo a Comunidade do Horto denota que uma grande gama de interesses se
encontra em jogo no processo de regularização fundiária.
Atores públicos e privados montam suas estratégias para fazer com que os
seus discursos tenham a hegemonia na criação, modelagem e solução do problema
público, conforme anteriormente destacado por Gusfield (1981).
A questão posta em evidência expõe que entre as instituições integrantes do
Estado não existe uma uniformidade de entendimento ou posição monolítica, mas ao
contrário, suas posições são muitas vezes antagônicas e ficam realçadas à partir
das práticas conduzidas pelos seus dirigentes eventuais.
A regularização fundiária envolvendo a Comunidade do Horto, sob o prisma da
atuação das instituições públicas, marca uma acirrada disputa entre o Instituto de
Pesquisa do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, autarquia ligada ao Ministério do
Meio Ambiente e a Secretaria do Patrimônio da União, órgão vinculado ao Ministério
do Planejamento, Orçamento e Gestão.
Como realçado anteriormente, a Comunidade do Horto fica em uma das
regiões mais valorizadas do Rio de Janeiro, estando exposta a forte ação da
especulação imobiliária existente no local, que não pretende que em uma área tão
exclusiva existam moradores desprovidos de recursos financeiros, colocando em
risco a nobreza do bairro.
A problemática molda-se em torno de um aparente conflito entre a proteção ao
meio ambiente e o direito à moradia, colocando em oposição dois órgãos da
Administração Pública, quais sejam a Secretaria do Patrimônio da União e o Instituto
143

de Pesquisas do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, que não conseguiram chegar a


um acordo institucional para a solução da questão, mesmo tendo sido estabelecido
procedimento junto à Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal
(CCAF).
Conforme destacado na sessão anterior a questão envolvendo a ocupação da
área do Horto com casas construídas para abrigar os funcionários do Jardim
Botânico começa a ganhar os contornos de um problema público no início da
década dos anos de 1980 quando o antigo Instituto Brasileiro do Desenvolvimento
Florestal (IBDF) iniciou um processo de retomada da área onde havia se instalado a
vila dos trabalhadores sob o argumento de que por estar situada em área de
preservação ambiental e constituírem patrimônio da União. Instado pelo IBDF a AGU
leva a questão à esfera da Justiça Federal que começa, por seu turno, a emitir
sentenças favoráveis à remoção dos moradores em acordo com as leis de controle e
defesa do patrimônio público da União.
Os moradores do Horto são surpreendidos pelas ações e sentenças judiciais e
começam a se mobilizar para a defesa do que consideram seu direito legítimo à
moradia naquelas casas em função dos seus antigos vínculos de trabalho ou de
seus parentes próximos com o Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Fundam, então, a
Associação de moradores do Horto, a AMAHOR, em 1982.
A constituição da associação revela-se importante para a inserção qualificada
dos moradores nos debates que a esta altura envolviam atores estatais das esferas
do poder executivo e judiciário. Tomados como simples invasores e enredados nas
teias das burocracias estatais a partir da constituição da sua associação os
moradores puderam vocalizar suas reivindicações e apresentar o contraditório de
suas reivindicações a representantes do legislativo. A politização do conflito era uma
arma que se mostrou importante para a publicização da sua perspectiva do
problema. Também, passou a fazer um contraponto à representação da poderosa
Associação de Moradores do Jardim Botânico, a AMAJB. Nos fóruns oficiais e na
própria imprensa a AMAHOR passou a marcar sua posição impedindo que o
problema fosse apresentado apenas por uma visão e perspectiva. Além do mais, por
força de suas articulações esses moradores encontraram na Secretaria do
Patrimônio da União um aliado que se mostraria fundamental na sua luta de
resistência contra a remoção que se apresentava como iminente.
Um dos principais atores institucionais no conflito fundiário envolvendo a
144

Comunidade do Horto é a Secretaria do Patrimônio da União no Rio de Janeiro


(SPU/RJ), que quando do início do processo de regularização fundiária, tinha como
sua Superintende a Srª. Marina Ângela Miranda Esteves da Silva e como
Coordenadora de Regularização Fundiária, a Srª. Célia Beatriz Ravera
Schargrodsky, que foram figuras centrais na condução do processo de regularização
fundiária de interesse social, tanto que responderam pela atuação junto ao Tribunal
de Contas da União, conforme consta do acórdão nº 2.380/2012.
A SPU/RJ, ao longo de sua atuação, buscou observar as diretrizes nacionais da
Secretaria do Patrimônio da União, em especial sua função de “conhecer, zelar e
garantir que cada imóvel da União cumpra sua função socioambiental em harmonia
com a função arrecadadora, em apoio aos programas estratégicos para a nação”,
implementando à partir do ano de 2010 em parceria com a UFRJ e apoio do Instituto
de Terra do Estado do Rio de Janeiro (ITERJ), um projeto de regularização fundiária
para a Comunidade do Horto em observância ao direito fundamental à moradia,
buscando ainda delimitar a área destinada Instituto de Pesquisas do Jardim Botânico
do Rio de Janeiro para que o mesmo levasse a efeito o desenvolvimento de suas
atividades.
A SPU/RJ firmou sua posição relativamente à regularização fundiária da
Comunidade do Horto, no atendimento de uma política habitacional do Governo
Federal onde se busca solucionar conflitos fundiários em imóveis da União,
observando as diretrizes fixadas pela Constituição Federal, Estatuto da Cidade e
Ministério das Cidades, observando por um lado a garantia de moradia digna para
famílias de baixa renda e por outro a proteção ao meio ambiente.
A SPU objetiva com a regularização fundiária, urbanística e ambiental da
Comunidade do Horto atingir três objetivos76:
a) a eliminação do risco geológico e do conflito ambiental;
b) o respeito a relevância cultural do conjunto paisagístico do Horto Florestal e do
Jardim Botânico – bens tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional;
c) a garantia do direito fundamental à moradia digna.

76
Os objetivos descritos constam da Nota Técnica nº 340/2012/CGHRF/DEDES/SPU/MP, conforme informação
obtida no processo administrativo nº 04967000306/2010-89, junto à SPU/RJ.
145

A SPU, no corpo da Nota Técnica nº 340/2012/CGHRF/DEDES/SPU/ME77,


ressalta que o seu posicionamento em favor da regularização fundiária de interesse
social da Comunidade do Horto tem ligação direta com a construção de um novo
ambiente jurídico-institucional e a reformulação da política de gestão do Patrimônio
da União.
A referida nota técnica destaca que somente a partir de 2003 se iniciou o
processo de um novo ambiente jurídico-institucional na SPU, que acabou por
culminar com a reformulação da política de gestão do patrimônio da União e
consolidação de sua missão institucional. Com o advento da Lei nº 11.481/2007, que
prevê medidas voltadas à regularização fundiária de interesse social em imóveis da
União e reformulou a legislação patrimonial com o objetivo de viabilizar as ações de
regularização fundiária de interesse social nos imóveis da União, o que permitiu à
SPU utilizar instrumentos legais para fazer cumprir a função socioambiental das
terras da União.

Ressalta-se, por fim, que é pacífico que as diretrizes de política urbana do


Patrimônio da União inserem o patrimônio público federal como recurso
estratégico para execução das políticas públicas voltadas para um novo
modelo de desenvolvimento econômico e social, baseado na inclusão
socioterritorial e no fomento ao desenvolvimento sustentável. Outra diretriz,
não menos importante é garantir que a regularização fundiária ocorra de
forma articulada com a regularização urbanística e ambiental, promovendo a
compatibilidade e a adequação de uso e ocupação do território.

Neste sentido, é importante destacar que os órgãos estão atendendo a


razões legais, de interesse público e de grande relevância, não obstante à
cultura comunitária e à preservação do sítio histórico-paisagístico e
ambiental local.

Assim, afirma-se que a destinação do bem em questão ao ser promovida


nos moldes propostos, não ensejará em prejuízo ao patrimônio imobiliário
histórico federal, a partir do momento em que a dominialidade pública deste
será preservada, dado que a destinação da área ao IPJBRJ se dará por
meio de entrega da mesma ao Ministério do Meio Ambiente, que promoverá
a cessão de uso ao Instituto, e a regularização fundiária e urbanística dos
imóveis utilizados para fins de moradia será viabilizada por meio da
Concessão de Direito Real de Uso (CDRU), a cargo da SPU, seja ela
gratuita ou onerosa conforme os critérios expostos nesta Nota Técnica.

É importante ressaltar que a SPU mantém-se no propósito, junto com os


demais parceiros envolvidos neste processo, de construir uma convivência
harmônica e sustentável entre os diferentes interesses sob o mesmo
território, materializando uma cidade mais justa e sustentável, do ponto de
vista social, cultural e ambiental.

77
A Nota Técnica em questão, consta do processo administrativo nº 04967000306/2010-89, em curso na
SPU/RJ.
146

Em confronto com a posição da Secretaria do Patrimônio da União, que


entende plenamente possível o projeto de regularização fundiária desenvolvido em
conjunto com a UFRJ para assegurar o direito fundamental à moradia para
população de baixa renda, que ocupa o local há várias décadas e que em sua
grande maioria foram autorizados a lá se estabelecerem, o Instituto de Pesquisas do
Jardim Botânico do Rio de Janeiro, sustenta posição contrária, sob o argumento de
que o Jardim Botânico é uma área destinada à fins científicos enquanto espaço
privilegiado para pesquisa e divulgação da ciência e da botânica e para conservação
ex situ de espécies ameaçadas e da flora nacional.
O Plano Diretor do Jardim Botânico elaborado em 2003, marca a posição do
Instituto sobre a questão, que defende na área tida então por seu perímetro, que
fosse dada continuidade às ações necessárias à reintegração de posse das
ocupações tidas por irregulares para evitar que fossem abertos precedentes e novas
áreas ocupadas, vez que estaríamos diante de um patrimônio da União, de interesse
coletivo, que não poderia ser usufruído por poucos.
Com a desocupação do local, pretende-se estabelecer uma destinação, em
curto, médio e longo prazos, para todas as áreas atualmente utilizadas
irregularmente, condizentes com a missão do Instituto de Pesquisas Jardim Botânico
do Rio de Janeiro, com o exercício de suas competências e com a preservação dos
valores naturais e histórico-culturais do Jardim Botânico.
Segundo os termos do Plano Diretor do Jardim Botânico, as ocupações
irregulares existentes geram diversos problemas, dentre eles poderiam ser citados a
crescente deterioração da área devido ao constante crescimento das ocupações
irregulares em décadas passadas; obstáculo à expansão do Arboreto, bem como de
áreas administrativas e de serviços; a dificuldade na interligação dos setores do
Jardim Botânico; a poluição do Rio dos Macacos por resíduos líquidos e sólidos; os
gastos excedentes com a segurança do Jardim Botânico; o risco de desmatamentos
no habitat natural; a prática de atividades potencialmente poluidoras, sem
autorização ou fiscalização; a ameaça para a fauna silvestre com a criação de
animais domésticos.
O Plano Diretor, afirma que é possível identificar impactos ambientais de
natureza diversa, provocados pelas ocupações no Jardim Botânico. Consideram-se
impactos provocados pelas ocupações em três eixos, sendo o primeiro, a localização
em terrenos de fragilidade ambiental, nas encostas ou na faixa de proteção dos
147

cursos d’água; localização nos Remanescentes Florestais de Mata Atlântica;


dificuldade ou inadequação dos serviços de saneamento básico; justaposição ou
interferência direta nos Valores Naturais, Paisagísticos, Científicos e Histórico-
Culturais; situação que ponha em risco a segurança do Jardim Botânico; o segundo
eixo seria decorrente da localização em áreas imprescindíveis à realização de
atividades atuais do Jardim Botânico e situação de dificuldade a acessibilidade aos
setores do Jardim Botânico e o terceiro eixo, seria a localização em áreas
necessárias a futuras atividades do Jardim Botânico.
Para além dos argumentos constantes do Plano Diretor do Jardim Botânico, na
mesma linha de afinidade outros são apresentados, tais como que estaria se
defendendo o direito ao meio ambiente equilibrado, a preservação da biodiversidade
e o cumprimento das metas estabelecidas pelo Ministério do Meio Ambiente, em
decorrência de compromissos assumidos pelo Brasil ao subscrever a Convenção da
Biodiversidade.
A defesa da posição do Jardim Botânico foi sustentada principalmente pelo Sr.
Liszt Vieira, que foi presidente do Instituto de Pesquisa do Jardim Botânico no
período de janeiro de 2003 até maio de 2013, inclusive a remoção da Comunidade
do Horto.
O discurso defendido pelo Sr. Liszt Vieira para justificar a remoção da
Comunidade do Horto, sustenta-se sobre uma necessidade científica de ampliação
do Jardim Botânico e na defesa do meio ambiente. Afirma o ex-presidente do
Instituto Jardim Botânico, que existe um embate entre os critérios científico e
ambiental de um lado e o de outro o critério habitacional, sustentado por um viés
político.

Mais de 600 famílias ocupam a área do Jardim Botânico. Quais os prejuízos


dessa ocupação para o parque?
O Jardim Botânico está sufocado no seu atual espaço. Necessita de espaço
para efetuar o plantio de espécies ameaçadas de extinção e representativas
de biomas brasileiros, e para expansão de laboratórios. Há muitos anos
estamos propondo que o governo faça construções de habitações de
interesse social para abrigar os atuais ocupantes. Mas não houve nenhuma
iniciativa concreta nessa direção. Então, temos essa necessidade do ponto
de vista científico, que não pode ser cumprida porque estamos sufocados. O
Jardim Botânico, hoje é parte da agenda científica do país. Ele contribui com
a política nacional de conservação da biodiversidade.

O Jardim Botânico precisa de todos os cerca de 50 hectares ocupadores


irregularmente?
Pessoalmente, abriria mão da faixa alongada entre o Rio dos Macacos e a
Rua Pacheco Leão, desde que haja amparo legal. Mas a diretoria do Jardim
148

Botânico, entende que toda a área precisa ser retomada para que a
instituição possa cumprir a sua missão prevista em lei. Concordamos que
seja feito um cronograma para que os ocupantes saiam gradativamente, até
que o governo faça construções de interesse social para abrigar famílias.

Mas essa não é uma questão muito política, que envolve parentes do
deputado Edson Santos (PT)?
O Jardim Botânico tem um critério científico e ambiental. A SPU, um critério
habitacional. São duas linhas que não são convergentes, são paralelas.
Agora, tem a pressão política também. Parentes do deputado moram dentro
do Jardim Botânico.78

O discurso do Sr. Liszt Vieira, passou a ser encampado por segmentos da


classe artística e empresários, sendo amplamente apoiado pelas Organizações
Globo, que se situa nas imediações do Jardim Botânico e que vem faz longo tempo
tentando caracterizar os seus históricos vizinhos da Comunidade do Horto como
invasores de bem público. Notícia publicada na edição do jornal O Globo do dia 01
de setembro de 2012, ilustra bem a força do discurso de remoção.79

O posicionamento do presidente do Jardim Botânico, Liszt Vieira, contrário à


proposta da SPU de reassentar 119 famílias nas áreas do Caxinguelê e do
Morro da Margarida, dentro do parque, fez surgir um movimento em defesa
da área, que é tombada. Como antecipou a coluna de Ancelmo Gois, um
grupo de artistas se mobiliza em apoio a Liszt.

O movimento, liderado pelo músico Frejat, reúne da atriz Camila Pitanga ao


cantor Jards Macalé. – O Jardim Botânico está deslumbrante. O Liszt Vieira
fez um trabalho espetacular para resgatar o lugar, que está um brinco, ao
contrário do descaso com que muitas áreas públicas são tratadas. Seria
triste perder um administrador como ele.

Queremos saber o que está acontecendo, inclusive em relação ao que


impede o cumprimento da decisão judicial de remover famílias do Horto. È
uma decisão forte que precisa ser discutida levando-se em conta o direito
de quem mora lá. Tudo precisa ser esclarecido – diz Frejat.

Macalé, morador do Jardim Botânico há 30 anos e frequentador do parque


faz coro: - Claro que remoção de famílias é sempre um assunto delicado,
mas o Jardim Botânico tem que ser preservado. É um parque e tem que
continuar assim.

O presidente da Firjan, Eduardo Eugênio Gouvêa Vieira, também enviou


ofício em apoio a Liszt para os ministérios do Planejamento e Meio
Ambiente.

A Ministra do Meio Ambiente, Srª. Izabella Teixeira, exterioriza em relação a


questão da Comunidade do Horto um discurso de remoção, centrado na

78
VIEIRA, Liszt. Pretendem construir casas dentro do parque Jardim Botâncio. Não dá. O Globo, Rio de Janeiro,
31 ago. 2012, Rio, p. 15. Entrevista concedida a Selma Schimidt.
79
SCHIMIDT, Selma. Em defesa do parque. O Globo, Rio de Janeiro, 1 set. 2012. Rio, p. 16.
149

preservação do Jardim Botânico80, quando textualmente assevera: “Concordo em


retirar as pessoas de áreas de risco e que busquem alternativas para realocá-las.
Agora, por que colocá-las dentro de uma área tombada? Acho que o parque tem de
ser preservado”.
Evidenciando flagrante interesse na remoção da Comunidade do Horto, as
Organizações Globo na tentativa de desmoralizar a posição da Secretaria do
Patrimônio da União que defende a regularização fundiária para todos os moradores
da área, a edição do jornal O Globo do dia 19 de agosto de 2010, traz reportagem no
qual tenta caracterizar os moradores como pessoas portadoras de grandes recursos
financeiros81, o que não corresponde a verdade dos fatos, conforme restou
amplamente provado pelo estudo elaborado pela Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

A Superintendência de Patrimônio da União (SPU) informou ontem que


continuará abrindo mão de executar os mandados de reintegração de posse
nas áreas ocupadas em terrenos do Jardim Botânico, já conquistados na
Justiça. Segundo o secretário adjunto da SPU em Brasília, Jorge Arzabe, a
intenção é garantir habitação para famílias de baixa renda. No entanto, em
frente a uma das casas ocupadas, na Rua Major Rubens Vaz,
rotineiramente, fica estacionado um carro de luxo, um Toyota Prado Land
Cruiser 2008, avaliado em cerca de R$ 130 mil. Segundo dois funcionários
graduados do parque, o carro seria de um morador. O endereço do
documento do veículo no Detran confirma que o proprietário reside em um
dos terrenos do parque ocupados por particulares na Rua Major Rubens
Vaz.

Demonstrando parcialidade na questão da remoção da Comunidade do Horto,


na mesma edição do jornal O Globo do dia 19 de agosto de 2010, está estampada
claramente a posição das Organizações Globo, relativamente a um dos mais
importantes conflitos fundiários do Brasil.82

Fica mais fácil entender o efeito corrosivo do aparelhamento do Estado


quando surgem exemplos próximos.

Como no Jardim Botânico, parte não só da História do Rio, mas do país.


Pois, em função da subordinação a interesses privados, a Secretaria do
Patrimônio da União (SPU) trai a missão de proteger bens públicos e se
recusa a tomar posse de uma área invadida do JB.

Quando o aparelhado Incra distribui indevidamente dinheiro público entre

80
SCHIMIDT, Selma. Ministra defende área para Jardim Botânico. O Globo, Rio de Janeiro, 1 set. 2012. Rio, p.
16.
81
SCHIMIDT, Selma; MALTCHIK, Roberto; COSTA, Jacqueline. Baixa renda de luxo. O Globo, Rio de Janeiro,
20 ago. 2010. Rio, p. 21.
82
O GLOBO, Rio de Janeiro, 19 ago. 2010, p. 21. Rio. Opinião.
150

organizações de sem-terra parece algo esotérico, distante. Mas, quando a


vítima dessa “privatização” do Estado é o Jardim Botânico, é simples
entender o tamanho do prejuízo que a sociedade brasileira tem acumulado
devido à divisão do comando da máquina pública entre grupos de
interesses com influência no Planalto.

As Organizações Globo, logo após a decisão do Tribunal de Contas da União,


apresenta matéria no jornal O Globo na edição do dia 06 de setembro de 201283, na
qual denomina os moradores da Comunidade do Horto de invasores e alardeia que
“o verde prevalece” e informa que as medidas do TCU foram comemoradas pela
Associação de Moradores e Amigos do Jardim Botânico (AMAJB).

Para corrigir as invasões existentes e prevenir outras, o TCU determinou


ainda que a SPU e a AGU “adotem todas as providências para a obtenção
de reintegração de posse de qualquer outra área do Jardim Botânico” que
esteja ocupada indevidamente e ainda não tenha recebido decisão judicial
favorável em última instância. Os órgãos terão até 90 dias após a definição
dos novos limites do parque para fazê-lo. Com isso, a expectativa é que, até
outubro do ano que vem, todas as moradias irregulares existentes dentro
dos limites do parque sejam retiradas.

Em seguida, mesmo os moradores que já tenham obtido decisão definitiva


da Justiça favorável à sua ocupação deverão ser retirados do parque. O
TCU determinou que o Iphan e o Ministério do Meio Ambiente realizem
estudos para promover a desapropriação de todas as áreas com pagamento
de indenização, para que o parque seja integralmente recomposto.

É uma decisão muito importante, histórica, porque depois de 204 anos, nós
estamos sugerindo isso, e vamos monitorar. Se não forem cumpridos os
prazos determinados, vamos procurar responsabilizar a quem de direito –
afirma o relator do caso, ministro Valmir Campelo.

O tribunal definiu ainda que, até a conclusão desse processo, a Secretaria


de Patrimônio da União não poderá realizar a titulação a ocupantes dos 620
imóveis irregulares do parque. Só após os novos limites do Jardim Botânico
serem registrados, o governo poderá retomar o projeto de regularização
fundiária para as residências que ficarem fora da área do parque. As medida
foram comemoradas pela Associação de Moradores e Amigos do Jardim
Botânico (AMA-JB).

Outro ator importante no conflito fundiário é o Instituto do Patrimônio Histórico e


Artístico Nacional (IPHAN), porquanto, a delimitação da área tombada nunca foi
clara, em que pese existirem três tombamentos que possuem ligação com a
localidade, conforme esclarecido anteriormente.
Após a decisão do Tribunal de Contas da União, o jornal O Globo, noticiou na
edição do dia 30 de março de 201384, em reportagem denominada “Ponto para

83
PEREIRA, Paulo Celso; MAGALHÃES, Luiz Ernesto. O verde prevalece. O Globo, Rio de Janeiro, 6 set. 2012.
Rio, p. 12.
84
GERBASE, Fabíola; Schmidt, Selma. Ponto para invasores do parque. O Globo, Rio de Janeiro, 30 mar. 2013.
Rio, p. 10.
151

invasores do Parque”, que o IPHAN estaria propondo manter 316 casas no Jardim
Botânico apresentaria a delimitação da área tombada.

A delimitação da área tombada do Jardim Botânico proposta pelo Instituto


do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), que deve ser defendida
pelo Ministério do Meio Ambiente no processo que tramita no Tribunal de
Contas da União (TCU) sobre a ocupação irregular do parque, dará uma
vitória parcial aos invasores. Para o verde, a derrota será retumbante.
Depois de três décadas de disputa sobre a permanência de 621 famílias
num dos maiores espaços de interesse cultural, histórico e ambiental do
Rio, já está nas mãos do Ministério do Meio Ambiente o projeto do Iphan
que mantém 316 moradias erguidas nas chamadas comunidade do Horto,
em lugar destinado à ampliação do arboreto e das instituições de pesquisa.
Outras 305 casas seriam removidas.

A reportagem apresenta inclusive uma ilustração que nos permite identificar o


que teria sido a proposta inicial do IPHAN, relativamente à permanência das casas
por setores metodologicamente construídos no estudo da UFRJ para a regularização
fundiária da Comunidade do Horto.
Destaque-se, que o jornal O Globo apresenta como fonte da ilustração o
Instituto Jardim Botânico.

Figura 6 - Ilustração da proposta inicial do IPHAN das casas a serem mantidas no Jardim Botânico

Fonte Jornal O Globo (2013)


152

A proposta do IPHAN citada na reportagem seria diferente da que havia sido


apresentada pelo Instituto de Pesquisas do Jardim Botânico do Rio de Janeiro ao
Ministério do Meio Ambiente e ao TCU no ano anterior, pois segundo o Jardim
Botânico, somente seria possível a permanência das casas localizadas na localidade
denominada Dona Castorina e entre a Rua Pacheco Leão e o Rio dos Macacos.
A proposta do IPHAN ao final da demarcação do novo perímetro divulgado em
relação ao Jardim Botânico acabou por não prevalecer, pois aproximadamente 520
famílias vão precisar deixar o local.
A reportagem traz ainda a notícia de que o Sr. Liszt Vieira estaria deixando a
presidência do Instituto de Pesquisas do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, o que
fez com que diversos ambientalistas reconhecidos no cenário nacional e integrantes
do Partido Verde fizessem falas de apoio ao mesmo e se posicionassem sobre a
questão do Jardim Botânico.
Fernando Gabeira faz uma fala questionando a saída de Liszt Vieira da
presidência do Instituto de Pesquisas do Jardim Botânico do Rio de Janeiro e
reforçando a posição dos ambientalistas com relação à questão da Comunidade do
Horto:
Eu acompanhei a batalha do Liszt em relação aos invasores do Jardim
Botânico. Espero que a saída dele não seja por causa disso, que esse
afastamento não ocorra para facilitar uma solução diferente daquela
defendida pelos ambientalistas que trabalham com a Mata Atlântica. Não sei
como isso vai ser resolvido, qual será a posição da Samyra. Mas a posição
dele buscando a integridade do parque me pareceu algo digno de ser
apoiado.

O deputado federal Alfredo Sirkis, manifestando preocupação com a mudança


de presidente do Jardim Botânico, afirmou que “isso pode estar ligado ao
enfraquecimento da posição defendida pelo Liszt. Não sei as circunstâncias que
levaram a esse fato, mas sou solidário ao Liszt pelo que ele defendeu no parque”.
No mesmo sentido de apoio ao Sr. Liszt Veira e seu posicionamento enquanto
presidente do Instituto de Pesquisas do Jardim Botânico do Rio de Janeiro se
manifestou a deputada estadual Aspásia Camargo:

Vejo que ele sai consagrado, inclusive com o prêmio que ganhou esta
semana (o Prêmio Faz Diferença, do GLOBO). Ele fez um trabalho sério de
defesa do patrimônio ambiental do Jardim Botânico e terá sempre a gratidão
dos cariocas e minha pessoal. A Samyra é muito comprometida com o meio
ambiente e muito experiente. Tenho certeza de que ela vai dar continuidade
a essa proteção ao patrimônio do Jardim Botânico.
[...]
153

Foi uma negociação dura (a remoção das moradias). E o Iphan está


fazendo a proposta de liberar metade do jardim, mas essa negociação ainda
precisa de algumas revisões. Algumas áreas são vitais para o Jardim
Botânico.

Sônia Rabello, também do integrante do Partido Verde, defende que seja feita a
desocupação da área do Jardim Botânico e sua recuperação. Em artigo intitulado
“Jardim Botânico do Rio: verdades e mentiras”85, a mesma sustenta que o Jardim
Botânico seria inegociável pelos que ela denomina autoridades de plantão, pois
essas não teriam legalmente poderes de dispor ou não dos espaços do parque, por
se tratar de área afetada às suas atividades de uso comum do povo e de uso
especial científico. A jurista sustenta que não seria possível regularizar algo que em
sua percepção seria ilegal.

Embora o assunto tenha tomado as manchetes de jornais, especialmente


com o anúncio da saída do seu diretor Liszt Vieira, o direito da população do
Rio, e do Brasil, de ver preservada a integridade daquele bem público
destinado e afetado a um uso comum e especial de pesquisa, já vinha sido
buscado há anos na Justiça Federal. E esta, a Justiça Federal já vem
reconhecendo este direito em processos judiciais, nos quais dá à União,
como representante do interesse público, o direito de retomar os espaços
públicos do Jardim Botânico para o uso público para o qual foi criado há
mais de 200 anos.
Portanto, se as ocupações para moradias dentro do Jardim Botânico foram
fruto da desídia de autoridades públicas no passado, não podemos, agora,
em plena era histórica de julgamento do mensalão, compactuar com
“mensalões fundiários”, sob o falso discurso do “direito à regularização”.
Regularizar o que é ilegal?

Em outro artigo denominado Jardim Botânico: história da persistência86, a


jurista, narra o caso se uma ação judicial iniciada no ano de 1987, através da qual se
buscava a reintegração de posse de um imóvel localizado na área do Jardim
Botânico.
Acentua que vinte e um anos depois o juiz federal da 27ª Vara Federal do Rio
de Janeiro, reitera à União a ordem judicial de desocupação do bem, cuja suspensão
da demanda havia sido requerida pela Secretaria do Patrimônio da União, que
estaria construindo a tese da regularização fundiária de parte da área do Jardim
Botânico.
A tese da Secretaria do Patrimônio da União, segundo a jurista, conflitou com o

85
Disponível em: <http://www.soniarabello.com.br/jardim-botanico-do-rio-verdades-e-mentiras-legais-2/>.
Acesso em: 16 fev. 2014.
86
Disponível em: <http://www.soniarabello.com.br/jardim-botanico-historia-da-persistencia/>. Acesso em: 16 fev.
2014.
154

Instituto de Pesquisas do Jardim Botânico, tendo sido estabelecido conflito no âmbito


do Governo Federal. Argumenta, que os ocupantes que foram crescendo ao longo
de décadas, lutavam com todas as forças por seus direitos, mas que do outro lado
estaria parte da sociedade civil, em especial a Associação de Moradores e Amigos
do Jardim Botânico (AMAJB), que estaria vendo com restrições os estudos de
regularização fundiária envolvendo o Jardim Botânico.
A jurista ressalta que a questão para os opositores da regularização fundiária
do Jardim Botânico era saber como “fazer para reverter a opinião da Secretaria do
Patrimônio da União?”.
Surge a revelação de que foi a jurista Sônia Rabello, ao ser procurada pela
AMAJB no ano de 2009, uma das responsáveis por acentuar na questão da
regularização fundiária do Jardim Botânico a atuação do Tribunal de Contas da
União, face a divergência existente entre órgãos da União. O processo de
regularização avançava e foi percebido que poderia ser finalizado com a
permanência da Comunidade do Horto, o que conflitava com os interesses dos
ambientalistas e do Instituto de Pesquisas do Jardim Botânico do Rio de Janeiro.
Esclarece a jurista, que já havia atuado nos idos de 1985 em movimento de
defesa da área do Jardim Botânico.
Diante da estratégia de inserir o TCU na regularização fundiária do Jardim
Botânico, surgiu a petição da AMAJB à Corte de Contas, tentando frear o processo,
valendo-se principalmente da alegação de que se tratava de um bem tombado, o
que acabou prosperando.

Lembro-me que, nesta época, em 2009, fui procurada por membros da


AMA-JB para auxiliá-los na construção jurídica da defesa da preservação
pública do bem. Aderi de imediato ao desafio, até porque, nos idos 1985, já
havia participado do mesmo movimento.
[...]
Com o novo grupo concluímos que se os órgãos, dentro da própria União,
divergiam sobre a tutela do patrimônio público federal, restava colocar mais
uma entidade neste processo - o TCU.
[...]
Daí surgiu a petição da AMA JB ao TCU, cujo conteúdo em última análise,
era a exposição da impossibilidade jurídica de se aplicar, in casu, as normas
de regularização fundiária, em função da incidência de uma série de outras
normas jurídicas especiais que protegiam aquele bem público, tornando-o
inalienável por natureza – especialmente o tombamento cultural pelo
IPHAN.
[...]
O TCU, depois de quase dois anos de estudo do processo, acolheu a
posição de que um bem tombado, unidade de conservação, não poderia ser
objeto de alienação e, portanto, de regularização fundiária para fins de
estabelecer lotes para moradia.
155

O problema da Comunidade do Horto mobiliza partidos políticos que se


posicionam sobre a questão. O Partido dos Trabalhadores encontra-se dividido em
relação ao caso da remoção da Comunidade do Horto. De um lado o deputado
estadual Carlos Minc, renomado ambientalista, defende que problemas habitacionais
não podem ser resolvidos com o uso do solo do parque87.

O Liszt tem feito uma gestão correta do Jardim Botânico e a mensagem dele
é na tentativa de encontrar uma solução. Não se pode imaginar que vamos
resolver uma questão habitacional dentro de uma instituição de pesquisa
internacionalmente reconhecida.

Por outro lado, o deputado federal Edson Santos, que nasceu e morou na
Comunidade do Horto e cuja irmã, Srª. Emília Maria de Souza é a atual presidente
da AMAHOR, em artigo intitulado “Não à remoção dos moradores do Horto Florestal
RJ”88, defende a permanência da Comunidade do Horto, alegando que a pretendida
remoção está pautada em preconceito e estimulada pela especulação imobiliária,
que se encontram encobertas por um discurso de proteção ao meio ambiente.
O deputado argumenta que tenta não polemizar com lideranças da AMAJB,
pois a associação buscaria exercer com legitimidade a representação de parte dos
moradores do bairro que não concorda com a presença da população pobre no
Jardim Botânico, mas rechaça a tese de que o seu mandato seria o único obstáculo
à remoção da Comunidade, pois a trajetória de resistência já vem sendo construída
há vários anos.
No embate interno do Partido dos Trabalhadores, a posição defendida pelo
deputado Edson Santos em favor da Comunidade do Horto tem tido prevalência. A
Executiva Municipal do Partido dos Trabalhadores na Cidade do Rio de Janeiro, no
dia 05 de setembro de 2009 firmou uma nota de apoio em favor da Comunidade.

O Partido dos Trabalhadores sempre lutou pelo direito de moradia digna


para toda a população Brasileira. Desta forma se posiciona contrária a atual
decisão do Presidente da Fundação Jardim Botânico, cuja posição ora
expressa e contrária a atual política que visa priorizar a Habitação de
Interesse Social
[...]
Manifestamos nosso total apoio aos trabalhadores e seus filhos que
nasceram e se criaram no Horto, cujo único desejo é a regularização
fundiária através da Cessão de Direito Real de Uso para fins de moradia.
Em defesa dos moradores.

87
Vasconcellos, Fábio. Ocupação de parque vira polêmica no PT. O Globo, Rio de Janeiro, 22 nov. 2010. Rio, p. 18.

88
Disponível em: <http://www.amahor.org.br/5116>. Acesso em: 16 fev. 2014.
156

No mesmo sentido se manifestou o Diretório Estadual do Partido dos


Trabalhadores em resolução datada de 11 de novembro de 2012, ou seja,
posteriormente à decisão proferida pelo Tribunal de Contas da União sobre a
regularização fundiária envolvendo a Comunidade do Horto.

Diante de seu compromisso histórico com a defesa do meio ambiente e com


a luta da moradia e da terra, o Partido dos Trabalhadores do Rio de Janeiro
apoia a conclusão do processo de regularização urbanística da região do
Horto Florestal, iniciada pela União Federal através do Serviço do
Patrimônio da União (SPU). Defendemos a adoção de medidas para a
delimitação das áreas do Instituto do Parque do Jardim Botânico que
garantam a preservação ambiental do Parque e o direito à moradia das
famílias que compõem a comunidade do Horto.
Ao entender que a defesa do meio ambiente é a defesa da vida e que a luta
da moradia é, sobretudo, o direito à cidade, somos contrários à campanha
pela criminalização dos moradores do Horto Florestal articulada pela grande
imprensa do Rio de Janeiro e pela elite residente na região.

No fim do ano de 2009, a Secretaria do Patrimônio da União realizou destaque


orçamentário à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), para que a mesma,
através da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, cuja coordenação dos trabalhos
coube ao cargo do prof. Ubiratan da Silva Ribeiro de Souza.
O papel dos indivíduos que atuam na representação das instituições é
extremamente importante para identificar o posicionamento das mesmas, conforme
se infere da entrevista concedida no mês de junho do ano de 2013 ao Boletim UFRJ
Plural, em sua edição nº 01089, na qual o mesmo afirma que existe uma visão
distorcida em afirmar a incompatibilidade entre o direito à moradia e a preservação
do ambiente natural, com o objetivo de remover população de áreas consideradas
nobres. Afirma o professor Ubiratan:
Esse é um discurso falacioso. O Direito Ambiental e o Direito Urbano estão
em um processo de aproximação. Não existe dicotomia ou conflito entre o
direito coletivo e difuso ao ambiente saudável e o direito coletivo e difuso, e
também individual, à moradia adequada. Na verdade, os assentamentos
humanos tendem a se articular com o ambiente natural de modo a garantir o
processo de desenvolvimento sustentável.
A incompatibilidade entre essas duas dimensões existe apenas por uma
visão distorcida de cidade por parte de gestores públicos e de setores
ligados à especulação imobiliária. É uma visão que não contempla os
interesses da sociedade, principalmente das classes mais pauperizadas e
vulneráveis, e se ancora no discurso fantasioso de que o direito à moradia
estaria subordinado ao direito difuso ao ambiente sustentável. Essa é uma
ideia completamente descabida.

89
SOUZA, Ubiratan da Silva Ribeiro de. Moradia para quem? Boletim UFRJ Plural, n. 10, Rio de Janeiro, jun.
2013. Entrevista concedida a Coryntho Baldez. Disponível em: <http://www.plural.ufrj.br/010/entrevista.php. >.
Acesso em: 13 fev. 2014.
157

No caso do Jardim Botânico, o professor Ubiratan afirma que um estudo técnico


realizado pelo Laboratório de Habitação do Programa de Pós-Graduação da
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ, demonstrou que o uso do solo para
fins de moradia na região seria anterior à criação do parque e está perfeitamente
integrado ao contexto urbano e ambiental local. Em sua visão, a Comunidade do
Horto seria um dos alicerces de defesa do patrimônio ambiental e científico do
Jardim Botânico.
Mesmo com a decisão do Governo Federal de desalojar 520 famílias da
Comunidade do Horto, o professor Ubiratan acredita que a decisão possa ser revista
e adotada a proposta de regularização fundiária apresentada pela UFRJ.
Esclarece o professor Ubiratan que foi realizado o levantamento cadastral e
habitacional dos moradores da região, o reconhecimento da área e ao final foi
elaborada uma proposta de organização, de ordenamento do território, objetivando à
concessão de títulos aos moradores e a possibilidade do Instituto de Pesquisas do
Jardim Botânico do Rio de Janeiro receber grande parte do território para o
desenvolvimento de suas atividades.
O professor Ubiratan, ao responder sobre a visão da mídia que imputa aos
moradores da Comunidade do Horto o rótulo de invasores, contesta com veemência
tal entendimento:

Agora, o que ocorre de fato é que os moradores, por serem de baixa renda,
são objeto de criminalização ao serem classificados como invasores. Na
verdade, invasores são os grileiros de terra que, muitas vezes, são
acobertados por práticas políticas danosas à sociedade.
Um processo histórico de ocupação que, inclusive, garante às famílias a
posse da terra não pode ser classificado como prática criminosa. A visão de
que aquela comunidade de cerca de 2 mil pessoas é uma “praga” invasiva é
cruel e desumana.

O professor Ubiratan afirmou que a especulação imobiliária está presente na


questão, pois a região apresenta um dos metros quadrados mais caros do Brasil,
concentrando-se no local “interesses poderosos e influentes, como a própria sede da
Rede Globo. Sem dúvida, pelo seu alto valor econômico, é uma região que não
poderia abrigar populações pobres”.
Indagado se a apropriação do território na região refletiria conflitos inerentes à
produção da cidade na sociedade capitalista. Respondeu enfaticamente o professor
Ubiratan:
158

Sem dúvida. A sociedade capitalista é desigual, excludente por natureza. No


meu entendimento, não existe um capitalismo que não seja voraz. As
relações humanas estabelecidas nesse sistema são essencialmente
injustas. E essa injustiça se reproduz na ocupação do espaço físico. Ou
seja, a própria constituição e ordenamento dos territórios reflete essa
desigualdade. Portanto, o que temos na comunidade do Horto/Jardim
Botânico é uma elite econômica e política que se opõe ao direito de moradia
de uma população mais pobre. Embora em suas origens a ocupação
naquela região tenha surgido exatamente pela presença de trabalhadores,
as suas famílias agora estão sendo excluídas desse processo de
participação na cidade formal.

Como um dos principais atores envolvidos na questão, surge a Associação de


Moradores e Amigos do Horto (AMAHOR), que foi criada no início da década de
oitenta com a finalidade de garantir o direito à moradia e afastar o estigma de
invasores que começava a se criar em torno dos moradores da Comunidade do
Horto.
A AMAHOR, em seu processo de resistência à remoção da Comunidade do
Horto, vem participando junto ao Poder Público de discussões em torno da
regularização fundiária da área, tendo inclusive subscrito o relatório da Comissão
Interministerial elaborado em fevereiro do ano de 2007, juntamente com
representantes do Ministério do Planejamento e do Ministério do Meio Ambiente.
No processo de regularização fundiária da Comunidade do Horto, a AMAHOR
estabeleceu importante articulação com a Secretaria do Patrimônio da União no Rio
de Janeiro e na Universidade Federal do Rio de Janeiro para que houvesse avanço
na concessão de segurança à posse dos moradores.
Atualmente a presidência da AMAHOR é exercida pela Srª. Emília Maria de
Souza, que tem atuado de forma destacada na defesa da Comunidade do Horto,
buscando dar visibilidade junto aos órgãos governamentais e a sociedade de
maneira geral do problema enfrentado pelos moradores.
Em entrevista concedida à revista Carta Capital que foi publicada no mês de
maio de 201390, a presidente da AMAHOR esclarece que foi realizada uma indevida
criminalização da SPU pelo fato do órgão estar tentando regularizar a situação do
Jardim Botânico mesmo tendo poderes para tanto. Ressalta ainda, que por outro
lado, o Ministério do Meio Ambiente tem uma posição contrária à regularização

90
SOUZA, Emília Maria de. “Somos excluídos”, dizem os moradores do Horto. Carta Capital. Rio de Janeiro. 02
maio 2013. Entrevista concedida a Gabriel Bonis. Disponível em:
<http://www.cartacapital.com.br/sociedade/201csomos-excluidos-das-discussoes201d-dizem-moradores-do-
horto-4223.html>. Acesso em 14 fev. 2014.
159

fundiária, o que acabou por gerar um conflito institucional.


A presidente da AMAHOR, pontua que cada vez mais o Poder Judiciário vai
dominando a situação e determinando as reintegrações de posse avancem,
colocando em risco os moradores que não tem para onde ir.
Pondera a presidente da AMAHOR, que não existiria efetivamente um conflito
inconciliável entre o direito à preservação ao meio ambiente e o direito à moradia,
pois o estudo realizado pela UFRJ permitiria contemplar na medida das
possibilidades as partes envolvidas.

Entendemos que ninguém terá 100% de satisfação. Um estudo da


Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) determinou as áreas de
risco e locais para onde as pessoas podem ser remanejadas. Há espaço
para a pesquisa do Jardim Botânico. E o estudo concilia as necessidades do
parque com a regularização social.

Após a referida entrevista, em cumprimento à determinação do Tribunal de


Contas da União, foi divulgado o novo perímetro do Jardim Botânico, no qual 520
famílias deverão deixar o local e a AMAHOR continuou se articulando para evitar a
remoção da Comunidade do Horto, já tendo participado de duas audiências públicas
no Legislativo Federal e Estadual para tentar reverter politicamente a situação.
Em oposição ao processo de regularização fundiária no Jardim Botânico, surge
um importante ator que é a Associação dos Moradores do Jardim Botânico (AMAJB),
que defende o argumento de que a preservação do meio ambiente inviabilizaria a
permanência dos moradores da Comunidade do Horto na área do Jardim Botânico.
Se por um lado nós temos uma aproximação da AMAHOR com a SPU,
defendendo o direito à moradia, por outro, nós temos a aproximação da AMAJB com
o Instituto de Pesquisas do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, defendendo o direito
ao meio ambiente.
A aproximação entre o público e o privado, denota a complexidade da situação
da regularização fundiária em áreas públicas, principalmente quando a terra estiver
situada em área sujeita à especulação imobiliária e outros interesses
A AMAJB está acompanhando a regularização fundiária da Comunidade do
Horto, tendo tido papel importante no sentido de submeter argumentos ao Tribunal
de Contas da União para frustrar o processo em curso, conforme informado pela
jurista Sônia Rabello.
Tanto quanto a AMAHOR, a AMAJB também busca articulações para que ao
160

final da questão prevaleçam os seus argumentos. Um dos mais importantes aliados


da AMAJB é a Rede Globo91, que contribui para a referida associação desde o início
do ano de 2010, conforme informado pelo seu presidente:

Como se fosse novidade, revela que a Rede Globo é associada da AMAJB.


É verdade. Desde o começo de 2010 a Globo se associou à AMAJB e
contribui com R$ 5.000,00 mensais para a nossa associação. Abertamente.
E este dinheiro não engorda a conta pessoal do presidente em exercício
nem o torna “refém dos barões da emissora”. É utilizado em ações para o
bairro que a AMAHOR ajuda a degradar. As contas da AMAJB estão à
disposição de qualquer associado e todas as receitas e despesas
contabilizadas. Não temos caixa dois.
O que Dona Emília não disse é que a Globo não tem direito a voto: as
ações da AMAJB são decididas apenas pelos seus associados, pessoas
físicas. Não há nenhuma ilegalidade no fato de empresas de qualquer bairro
contribuírem para as associações destes bairros.

A AMAJB esclareceu em reunião realizada na Câmara de Conciliação e


Arbitragem da Administração Federal em seis de janeiro de 2011, que é uma
associação que conta com dois mil associados contribuintes, sendo todos moradores
do Jardim Botânico e que o referido número de associados corresponde a 15% da
população do bairro. Informou ainda, que os principais objetivos estão ligados à
preservação ambiental na região e que não existem outras associações
representativas na região que atuem no tema da regularização fundiária do Jardim
Botânico, à exceção dela e da AMAHOR, pois as associações de menor porte se
alinham com uma ou com outra.
Neste rol de alianças entre associações, poderíamos citar como uma aliada da
AMAJB na questão envolvendo a regularização fundiária da Comunidade do Horto, a
Associação dos Amigos do Jardim Botânico (AAJB), que segundo denúncia
formulada pela AMAHOR em seu site na internet, teria custeado a mudança de um
morador para que fosse cumprida uma decisão judicial de reintegração de posse. A
AMAHOR apresentou como prova de suas afirmações uma fotografia da ordem de
serviço de transporte92. A denúncia formulada pelos moradores da Comunidade do
Horto de que a mudança de um morador teria sido custeada pela AAJB, caso
procedente, evidencia que os atores estão durante todo o tempo atuando para que

91
Disponível em: <http://www.amajb.org.br/2011/09/pelo-nosso-direito-de-resposta-a-acusacoes-infundadas/>.
Acesso em 14 fev. 2014.
92
Disponível em:
<http://www.amahor.org.br/Den%C3%BAncia:_quem_s%C3%A3o_os_inimigos_do_Horto_por_tr%C3%A1s_da
_hist%C3%B3ria_dos_limites_do_IPJBRJ>. Acesso em 17 fev. 2014.
161

se torne hegemônico no conflito os seus interesses. Causa maior perplexidade o fato


do Poder Judiciário ter acolhido a intervenção de um terceiro que não participa do
litígio judicial para custear o transporte necessário para que fosse levada a efeito
uma reintegração de posse.

Figura 7 - Fotografia da ordem de transporte de morador da Comunidade do Horto

Fonte: AMAHOR (2013)


A AMAJB destaca em seu site na internet uma matéria denominada “Quanto o
vale o Jardim Botânico?”93, segundo a qual, representaria um bairro com 26.000
moradores e a AMAHOR falaria pelo comunidade que possui segundo suas
estimativas 3.000 moradores.
Segundo a matéria, duas posições estão em confronto. O Jardim Botânico quer
suas terras de volta e a comunidade quer permanecer onde está. Diante disso, que a
seria estar entre “sai todo mundo” e “não sai ninguém”, entende-se que seria
possível um “bom negócio”, que não passasse pela construção de um conjunto
habitacional na borda do Jardim Botânico na Rua Pacheco Leão, pois seria construir

93
Disponível em: <http://www.amajb.org.br/quanto-vale-o-jardim-botanico/>. Acesso em 19 fev. 2014.
162

um “grande minhocão emparedando o Jardim Botânico”. Logo, propõe-se o


pagamento de indenizações em dinheiro para os ocupantes dos imóveis que
fizessem jus para que fosse desocupado o Jardim Botânico e prosseguindo no
encaminhamento, chega a sugestionar o auxílio da iniciativa privada, operando-se
com a lógica de que todas as questões se resumem em dinheiro.

Sem a tutela dos poderes públicos e com dinheiro na mão, cada família
seria livre para morar onde quisesse. Umas ficariam no bairro, outras
mudariam, outras iriam para o interior, outras ainda abririam um negócio…
Não temos que decidir como elas vão viver, o que não podemos é lesá-las.
Quem ficaria feliz em sair do Jardim Botânico e morar numa Cidade de
Deus? Ninguém. No entanto, o custo das cidades-de-deus, se repartido por
quem mora nelas, daria uma vida digna a todos [...].
O Jardim Botânico é uma autarquia. As autarquias recebem recursos
públicos e podem receber doações. Várias empresas já patrocinam o JB, a
última é a Vale. Numa parceria público-privada não seria difícil conseguir
patrocínio para bancar o projeto de retomada de suas terras, com uma boa
indenização à comunidade, com rapidez e sem causar nenhum problema
social.

O conflito fundiário da Comunidade do Horto chamou a atenção da relatora


especial para o Direito à Moradia Adequada da Organização das Nações Unidas,
Raquel Rolnik, que em seu blog na internet em artigo denominado “Verdes versus
gentes: entenda o conflito da comunidade do Horto, no Jardim Botânico do RJ”94 ,
asseverou que hoje se opõe indevidamente o direito à moradia e a preservação
ambiental. Em seu entendimento a questão deve ser tratada de acordo com o caso
concreto e que o que se percebe é um tratamento absolutamente diferenciado da
questão quando o conflito envolvendo a preservação ambiental possui como
interessados instituições, empresas ou moradias de alta renda e moradores mais
pobres. Para os primeiros haveria segundo sua argumentação uma certa leniência e
o objetivo de adequação à legalidade na medida do possível por parte do Poder
Público e para os pobres, caberia a remoção, principalmente pela manipulação da
opinião pública, que passa a encarar os ocupantes como invasores.
Raquel Rolnik argumenta que o projeto elaborado pela UFRJ permitiria
harmonizar a preservação ambiental e ao mesmo tempo garantir o direito à moradia
das famílias, inclusive realocando-as na mesma região, aquelas que estivessem em
situação de risco ou cuja permanência de fato causasse impacto nas condições de
funcionamento do Jardim Botânico.

94
Disponível em: <http://raquelrolnik.wordpress.com/2013/04/04/verdes-versus-gentes-entenda-o-conflito-da-
comunidade-do-horto-no-jardim-botanico-do-rj/>. Acesso em 22 fev. 2014.
163

Além de formular defesa da permanência da Comunidade do Horto, Raquel


Rolnik, na qualidade de relatora especial para o Direito à Moradia Adequada da
Organização das Nações Unidas, enviou carta ao Ministro Joaquim Barbosa, então
relator do Mandado de Segurança impetrado no STF pela AMAHOR para
desconstituir a decisão proferida pelo TCU sobre o processo de regularização
fundiária do Jardim Botânico, na qual destaca a adesão do Brasil à tratados que
resguardam o direito à moradia adequada como direito fundamental, tendo solicitado
atenção especial à ação mandamental e urgência no pronunciamento, face a
iminente remoção.
Edésio Fernandes, uma das maiores referências na área do Direito Urbanístico
no Brasil, também defende a posição pela manutenção da Comunidade do Horto,
entendendo que o conflito social e o ambiental é falso, pois existem cenários
possíveis para articulação entre eles.
Em entrevista concedida ao Canal Ibase95, o jurista destaca a ocupação secular
da Comunidade do Horto, retomando toda a trajetória histórica dos moradores para
afirmar que não poderiam ser chamados de moradores. Edésio Fernandes
demonstra total estranheza pela atuação do TCU no caso e a mudança de posição
de importantes atores envolvidos no processo e destaca a ausência do Ministério
das Cidades, conforme demonstramos:

Uma nova demarcação foi feita por uma comissão integrada pelo Ministério
do Meio Ambiente (MMA), pelo SPU e pelo Instituto do Patrimônio Histórico
Artístico e Nacional (IPHAN, neste caso porque o parque é tombado),
mudando os limites tradicionais entre Horto e Jardim Botânico com base em
interpretação equivocada de documentos históricos e assim condenando
mais de 520 famílias à remoçãoo. A SPU, que até outro dia era favorável à
permanência da comunidade e à regularizacao fundiária, bem como o
IPHAN, que de acordo com noticias de jornal até então era favorável à
permanência da maioria da comunidade, mudaram de posição em vista da
pressão do MMA, da Fundacao Jardim Botanico, do TCU e da Rede Globo.
É interessante notar que essa comissão do governo federal não incluiu o
órgão federal que é encarregado do cumprimento do Estatuto da Cidade, da
MP no. 2.220 e do reconhecimento do direito social de moradia, qual seja, o
Ministério das Cidades.

Fernandes (2006, p. 357), em um dos textos mais clássicos no direito


urbanístico brasileiro na atualidade, afirma que é totalmente falso o conflito entre
preservação ambiental ou moradia, pois as situações precisam ser harmonizadas,

95
FERNANDES, Edésio. “O conflito entre o social e o ambiental é falso”. Canal Ibase. 27 jun. 2013. Entrevista
concedida a Rogério Daflon. Disponível em: <http://www.canalibase.org.br/os-falsos-argumentos-para-a-
remocao-do-horto/>. Acesso em 14 fev. 2014.
164

pois, estamos diante de dois direitos fundamentais, que efetivamente não


apresentam colidência. A realidade do caso concreto precisa ser questionada para
que possa ser feita a ponderação dos interesses e buscada uma solução
harmoniosa que contemple ambos, como o mesmo afirma:

Mas, haveria mesmo um conflito entre preservação ambiental e moradia?


Trata-se de uma falsa questão: os dois são valores e direitos sociais
constitucionalmente protegidos, tendo a mesma raiz conceitual, qual seja, o
princípio da função socioambiental da propriedade. O desafio, então, é
compatibilizar esses dois valores e direitos, o que somente pode ser feito
através da construção não de cenários ideais, certamente não de cenários
inadmissíveis, mas de cenários possíveis.

Não podemos deixar de citar, que através do Decreto nº 37.632, de 04 de


setembro de 2013, o Prefeito do Rio de Janeiro, Sr. Eduardo Paes, desapropriou por
interesse social, o imóvel situado na Rua Marques de Sabará nº 59 - Jardim
Botânico, área ocupada pelo Toalheiro Brasil, onde poderão futuramente ser
realocados moradores da Comunidade do Horto, caso venha a prevalecer a retirada
da maioria das famílias.

Como vimos o conflito envolvendo a Comunidade do Horto, tem início na


década de oitenta, quando o extinto IBDF, inicia várias demandas judiciais
requisitando a remoção dos moradores que se encontravam no local há várias
décadas.
A demanda encontra eco no Poder Judiciário, que valendo-se da legislação
relativa ao patrimônio da União, começa a proferir decisões onde determina a
imediata desocupação dos imóveis situados na área pertencente ao Jardim
Botânico.
As motivações do então IBDF eram segundo as alegações externadas nos
pedidos judiciais, de natureza preservacionista. Nenhuma menção à questão social e
habitacional dos moradores era levada em consideração.
Seguramente, o contexto político de restrições aos direitos em muito contribuiu
para que uma ação com efeitos sociais tão evidentes pudesse ter sido acolhida na
esfera judiciária, sem a consideração de quaisquer argumentos por parte de defesa
dos moradores.
As repercussões na mídia também foram bastante tímidas, à época,
desprezando a gravidade das questões que envolviam um grande número de
famílias, o que se revelou posteriormente serem as raízes de um grave conflito de
165

natureza fundiária, urbanística e ambiental.


Não demorou, para que o problema envolvendo a Comunidade do Horto,
mobilizasse inúmeros organizações civis, partidos políticos e diversos órgãos do
próprio aparelho estatal com destaque para a SPU; IPJB; IPHAN; AMAHOR,
constituída como reação dos moradores à ameaça de remoção, bem como a
AMAJB.
As diferentes posições muitas vezes contraditórias de cada um dos atores
envolvidos, fomentaram a constituição de um imbróglio de tal monta que anos depois
de iniciada não se conseguiu chegar a uma definição sequer sobre qual a
componente do problema seria de fato a mais importante: problema de moradia,
preservação ambiental, direito patrimonial, defesa do patrimônio histórico.
Não demoraria aqui a questão desbordasse para a esfera política e nem
mesmos os partidos da base governista federal, conseguiram obter uma visão
consensual à respeito do que se tratava afinal o conflito instaurado na Comunidade
do Horto.
A situação a que se chegou depois de anos de disputa pela definição, pela
responsabilização, não nos permite vislumbrar uma solução para o problema.
Tendo passado pela Justiça Federal, após ter sido apreciado por uma
Comissão Interministerial, por um grupo de trabalho e por uma Câmara de
Conciliação, pelo TCU, o conflito chegou finalmente ao STF, onde aguarda um
julgamento que espera-se ao menos definir os elementos centrais do problema.
166

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O conflito na Comunidade do Horto envolve inúmeros atores e suas


perspectivas, tornando-se um problema cuja complexidade impede a aplicação
isolada de qualquer das teorias que mobilizamos para entender o problema.
Não há uma perspectiva teórica isolada que possa ser aplicada para o
entendimento caso sem que se incorra em uma visão estereotipada das questões
que envolvem as instituições estatais, os partidos políticos as associações de
moradores, IPJBRJ, órgãos de imprensa e o que chamamos a opinião pública. Por
fazer parte da história do Rio de Janeiro, um lugar de muitos significados para sua
população, especialmente para a classe média carioca mobilizada pelos valores
contemporâneos da preservação ambiental, da ecologia e do lazer.
O capitalismo é um sistema que produz desigualdades, cuja apropriação
diferenciada dos resultados da riqueza produzida coletivamente constitui diagnóstico
por demais explorados nas explicações de problemas macro-sociais. As cidades no
sistema capitalista como sabido desde as descrições de Engels da Londres e de
Manchester do século XIX atendem a uma organização que segrega ricos e pobres,
espaços produtivos e residenciais estes por sua vez por sua vez separados entre
residências de ricos e residências de pobres. A repetição em diversas partes do
mundo capitalista daquilo que Engels chamou de zonas concêntricas para explicar a
forma como o espaço urbano com o advento do capitalismo passou a segregar as
diversas funções da produção capitalista são por demais sabidas e vivenciadas
cotidianamente na rotina das construções, demolições e requalificações do espaço
urbano. Há um padrão observado nos países mais avançados entre as sociedades
capitalistas que concentra as áreas comerciais no centro urbano e em seu entorno
imediato as residências dos mais pobres pelas razões destacadas por Harvey,
especialmente diminuir os custos do deslocamento da mão de obra até o seu local
de trabalho. Para as regiões distantes, bucólicas e aprazíveis foram se instalando os
mais ricos, aqueles que podem despender mais dinheiro em seus deslocamentos
diários e que dispõem de uma jornada flexível de trabalho.
Ora esse padrão “capitalista” só com muito esforço retórico poderia se dizer que
se reproduz nas cidades do chamado capitalismo periférico. Numa cidade como o
Rio de Janeiro os padrões de disputa e conflito em torno do solo urbano produziram
167

uma ocupação muito diferente daquilo que poderíamos chamar de um padrão


urbano capitalista.
Claro, a cidade do Rio de Janeiro é dividida entre pobres e ricos, entre
habitantes com acesso aos confortos dos equipamentos urbanos mais modernos e
aqueles que não possuem ainda o saneamento básico, cidade partida, segundo a
expressão consagrada pelo jornalista Zuenir Ventura.
Numa clara diferença com o padrão capitalista ocidental onde as classes
populares conquistaram seu espaço nas cidades em residências em tudo
assemelhadas às classes média e alta, tais como os confortos do aquecimento, da
água encanada, das áreas de lazer, do transporte público eficiente, das escolas nas
proximidades de suas habitações, no Rio de Janeiro surgiram os enclaves dos
bairros pobres e regiões com padrão de conforto e infraestrutura precária no coração
das áreas mais ricas da cidade: as favelas.
A história da ocupação da cidade, pré-capitalista, produziu também um
ordenamento especial com suas vilas operárias, cortiços e conjuntos residenciais de
pobres contíguos às residências dos ricos para melhor lhes servirem. Aqui o
capitalismo encontrou dificuldades em avançar sem o acerto de contas com o
passado, como disse Marx a respeito dos Estados Unidos sem passado feudal.
Feudalismo não o tivemos, de fato, em que pese o delírio explicativo de
historiadores nacionais apressados em colar à realidade brasileira as teorias
marxistas oitocentistas desenvolvidas para explicar o processo histórico europeu.
Mas é, verdade, também, que o acidente histórico da transferência do governo
imperial português para a cidade, no início do século XIX, quando ainda não
passava de uma vila empoeirada fora do mundo deixou suas marcas indeléveis
sentidas até hoje na cultura aristocrática e na mentalidade escravagista de seus
habitantes: elites e classes subalternas.
No capitalismo clássico descrito magistralmente por Marx e seus discípulos o
comando das transformações é da burguesia intrépida, atrevida e arrogante nos
seus propósitos de submissão de todas as coisas às suas ambições. É a classe dos
capitalistas afirma Marx que transforma solido em líquido, concreto em fumaça, e
que doma todos os instintos humanos aos seus objetivos.
Tudo tão diferente do Brasil. País estamental, hierarquizado, governado pelo
conchavo de lideranças regionais e posteriormente de um centro estatal dominado
por elites dependentes de ministrar altas doses de repressão oficial para
168

acompanhar sofregamente as conquistas do capitalismo industrial.


A comunidade do Horto fixada nas franjas do Jardim Botânico ilustra com
perfeição as singularidades desse capitalismo tropical temperado com escravidão,
aristocracia, e o desenvolvimento econômico industrial patrocinado e tutelado pelo
Estado. Como dizia Weber na Ética Protestante, capitalismos são muitos e o
capitalismo tropical brasileiro apresenta características especiais com suas riquezas
industriais e pós-industrial temperado com enclaves de atraso econômico e misérias
ancestrais da espécie humana.
Num problema aparentemente pontual e tópico de um enclave territorial entre
as franjas das montanhas derivadas da imponente Serra do Mar e a lagoa
caprichosamente espraiada a partir do litoral, onde o capricho de um Rei desterrado
fez erguer um Jardim Botânico para o cultivo de espécies com potencial econômico,
surgiu a vila com moradias de funcionários da instituição que por ali permaneceram
décadas convivendo com as mudanças da cidade e da própria organização do
Jardim Botânico. Chamaram-na de Horto por ser auxiliar aos objetivos da imponente
obra imperial.
Apelar para uma visão estruturalista e afirmar que o conflito instaurado ali se
trata, afinal, de apenas mais um episódio típico da luta de classes que separa
proprietários e não proprietários dos meios de produção é forçar uma modelagem
marxista para o problema que seguramente não abarca as diversas nuances da
questão. Que a região concentra valor imobiliário e que se preste por isso à
especulação imobiliária não resta qualquer dúvida. Mas, a classe média habitante do
seu entorno e os empreendedores da região não reivindicam a área para a produção
de capital. Os que defendem a extinção da comunidade que durante dezenas de
anos abrigou os funcionários do Jardim Botânico e seus familiares acenam em sua
luta com os valores imateriais: o verde, a preservação ambiental, o lazer. Os pobres
atrapalham o idílio imaginado pela classe média aristocrática local. Não é uma luta
simplesmente da imposição do capital, mas dos valores pós-modernos da vida
integrada à natureza.
Além disso, a intervenção de um sem número de agentes e agências estatais
agindo uns contra os outros, anulando uns as ações dos outros, SPU contra TCU,
Judiciário contra Executivo, retira da questão qualquer possibilidade da aplicação
sem mediações da ideia de um aparelho estatal monolítico organicamente integrado
para a imposição das necessidades das classes dominantes e da acumulação
169

capitalista.
Neste ponto, precisamos ressaltar que a visão mais dura da perspectiva
institucionalista não esgota tão pouco, e ainda mais isoladamente, a compreensão
possível da questão. Se o Estado tem um centro, um conjunto de meios e de
instituições integrados para impor sua vontade, como afirma Skocpol, Evans,
Ruechmayer (2002) e os líderes científicos da perspectiva institucionalista, não é
seguramente do Estado brasileiro que estão falando. Na verdade de nenhum Estado
em especial segundo a crítica de Przeworski (1995). Conforme o autor, não existe
Estado desvinculado de arranjos particulares que precisam ser analisados e
dissecados caso a caso e no tempo antes de uma formulação geral e inflexível sobre
algum tipo de lógica estatal.
Se o estruturalismo marxista peca por secundarizar as particularidades da
organização estatal e, por não separar adequadamente os interesses econômicos
das classes sociais dominantes das intenções e objetivos das elites políticas
estatais, a visão institucionalista exagera, nos parece, na ideia de que o Estado
constitui um conjunto articulado de institutos liderados por um grupo com objetivos
comuns e distintos dos demais grupos sociais.
Parafraseando Weber e seguindo os críticos do institucionalismo poderíamos
dizer que não é apenas o capitalismo que não é um. Estados, também, são muitos.
Para ficarmos no continente, a comparação do Estado e das elites estatais da
Argentina com o Estado e as elites estatais brasileiras, conforme o estudo
comparativo de Katryn Sikkink ilustra bem a afirmação. Conforme a autora, no Brasil
o Estado desde a Revolução de 30 se tornou o centro da política e concentrou poder
suficiente para submeter as elites regionais aos seus desígnios e criar ele próprio as
elites econômicas gestoras desse nosso especialíssimo capitalismo estatal. Na
Argentina o Estado sempre foi secundarizado e desprezado pelas poderosas elites
agroexportadoras que jamais viram nas politicas estatais um meio eficaz para
melhorar seus negócios. Largaram o Estado, por assim dizer, ao populismo urbano e
aos líderes messiânicos.
O conflito em torno da ocupação da comunidade do Horto ilustra um aspecto
importante dessa questão. Não obstante poderoso e central, autoritário e burocrático
a atuação do Estado por intermédio das suas diversas instituições nessa questão
produziu paroxismo ao invés de ação, contradição ao invés de concertação e
serviram aos atores diretamente interessados, especialmente aos moradores do
170

Horto, organizados em sua associação, a AMAHOR, e aos dirigentes do JBRJ em


consórcio com a associação do entorno rico da região, a AMAJB. O mesmo Estado
representado por suas instituições e agências próprias gerou até aqui um arsenal de
recursos legais, administrativos, retóricos que municiaram um e outro lado da
questão com recursos que, ao fim, se neutralizaram mutuamente.
Se de um lado, o IPJBRJ, o IPHAN, o TCU, afinados com o desejo de expulsão
dos moradores encontraram na justiça e na tradição formalista e legalista do Estado
brasileiro um abrigo seguro para suas reivindicações, por outro, a SPU e, por vezes,
a AGU, encontram no Executivo Federal abrigo para suas reivindicações. Por um
lado, a Justiça Federal e o TCU se mostraram funcionais para expressão da
legitimidade da ação daqueles que pugnavam pela remoção dos moradores do
Horto, por outro, a SPU, a UFRJ, e representantes legislativos atuaram com eficácia
em consórcio com a AMAHOR na neutralização das decisões judiciais que
concediam a expulsão.
Não há neste conflito indefesos. Nem dominados nem dominantes até o
momento. Ricos e pobres mobilizaram seus recursos de maneira hábil. Têm se
servido para tanto de eficientes canais de comunicação de seus interesses. Se a
judicialização do problema favoreceu até aqui aos ricos e a burocracia estatal
ambientalista favorável à remoção da comunidade, a politização do conflito tem se
mostrado eficaz para os moradores do Horto neutralizar essas investidas judiciais.
Veja-se, portanto, que a situação no estágio em que se encontra em muito
difere da concepção do pluralismo sobre a forma de participação política e atuação
do Estado. A vertente política do conflito ilustra um pouco a nossa crítica. Se, como
afirmam os pluralistas, o Estado se constitui como uma arena onde os indivíduos
organizados em grupos de interesse sociedade lutam para impor seus interesses,
permanecendo assim como uma espécie de simples guardião de regras legais e
impessoais, isso não é o que se vê no conflito em tela. Partidos políticos para
começo da avaliação não têm uma visão integrada e não se dispõe ao debate aberto
de suas intenções. A começar pelo partido do governo cindido em suas alas
ambientalistas e sociais. Não se acertam com respeito a uma ação concertada junto
ao Estado, mas procuram mobilizar entre as instituições estatais e seus objetivos
conflitantes recursos de poder que fortaleçam suas posições. Antes de adentrarem
em arenas de discussões racionais em busca do convencimento da razoabilidade de
seus interesses eles têm percorrido os corredores das burocracias estatais aliadas
171

de seus interesses particulares na questão.


Se as teorias clássicas das políticas públicas não são suficientes para explicar
de forma abrangente para o conflito envolvendo a comunidade do Horto é porque
desprezam um elemento fundamental da questão, qual seja a de que tomam
irrefletidamente os problemas públicos como problemas naturais, isto é, como fatos
de uma realidade que se afigura como igual para todos os observadores.
Não é verdade que problemas públicos coincidam ou sejam a mesma coisa que
problemas sociais. Daí que a dificuldade de chegar a uma política específica pra
resolução do conflito envolvendo a comunidade do Horto esteja na própria disputa
dos atores em torno da sua definição.
Temos no caso analisado todas as componentes que as teorias tradicionais
sobre políticas conseguem identificar: diferenciais de poder, imposição e disputa de
interesses, visões conflitantes e contraditórias do que deveria ser um mesmo
problema, mas que são definidos de múltiplas maneiras, indivíduos que se
mobilizam em organizações e apresentam-se em nome delas, instituições que
defendem princípios organizacionais contraditórios porque interpretados
diferentemente pelos titulares que se sucedem nas posições de comando. Atores
públicos e privados montam suas estratégias discursivas para fazer com que os
seus discursos tenham a hegemonia na criação, modelagem e solução do problema
público, conforme anteriormente destacado por Gusfield (1981).
Para a construção cognitiva do problema do Horto uma primeira observação é
primordial. Os problemas públicos tem história e mudam de acordo como são
definidos pelos envolvidos e de acordo com o poder de cada um em impor sua
definição. Na sua fundação o Jardim Botânico tinha uma clara concepção
estratégica de ser um centro de cultivo de espécies que pudessem servir à ocupação
agrícola da colônia. A plantação de chá por chineses imigrados pelo governo
monárquico e tantas outras experiências com cultivares obedeciam em princípio a
essa clara estratégia científica e econômica antes que lúdica ou ambientalista da sua
concepção atual. A perspectiva conservacionista e preservacionista da instituição só
aparece muito mais tarde, na segunda metade do século dezenove, acompanhando
os padrões europeus e norte americano de criação dos parques nacionais.
A noção de ambientalismo por seu turno é algo que só aparece como objeto de
políticas públicas muito recentemente, na segunda metade do século passado, e um
dos marcos decisivos dessa mudança é a Conferência Mundial de Estocolmo em
172

1972.
A perspectiva de proteção do patrimônio histórico é algo que evidentemente
não estava na origem da fundação do Jardim Botânico e todas as edificações ali
encravadas o foram com o objetivo de prover o local com instalações funcionais para
manutenção das atividades fins da instituição.
Eis que, portanto, o Jardim Botânico do Rio de Janeiro durante cerca de 200
anos conviveu com a comunidade em seu torno e alhures como um lugar de
preservação de espécies e de pesquisas muito irregulares em botânica e cultivares.
De início, com vistas à sua manutenção e também como forma de estimular e
estabilizar seu corpo de funcionários foram construídas moradias destinadas a eles e
seus familiares. As primeiras construções de moradias de funcionários datam de
dezenas de décadas atrás. O bairro conviveu ainda, longamente, com plantações de
cana de açúcar e café ao seu redor. Posteriormente foi a indústria que floresceu no
local e o casario se adensou com a construção de vilas operárias para seus
trabalhadores.
Não era ainda, portanto, nem de longe, o bairro e seu entorno, o que
representa hoje para a cidade, uma valorizada região residencial cujo valor para
seus moradores de classe média alta está no convívio integrado com a natureza e
sua fauna nativa. Assim, o que é hoje valorizado como patrimônio histórico e
ambiental conviveu com a vizinhança proletária de suas origens, a mata e as ruínas
durante dezenas de anos.
Essas informações são importantes para observarmos aquilo que Gusfield
(1981) chama de dimensão cognitiva dos problemas públicos. Naturalmente, há
cinquenta anos não havia problema ambiental na ocupação humana do local porque
“problemas ambientais” não existiam. Não havia, então, Ministério do Meio
Ambiente, institutos ou secretarias de proteção ambiental, porque as próprias
noções do ambientalismo contemporâneo eram inexistentes. Não havia também o
problema habitacional. As Vilas Operárias e as moradias dos funcionários não
representavam qualquer tipo de preocupação para a população de classe média
moradora dos bairros nobres distantes dali e mais colados ao centro econômico de
então: Catete, Flamengo, Santa Tereza, Rio Comprido, e outros. Para o poder
público, igualmente, qualquer dos problemas atuais da comunidade do Horto não
eram públicos nesse sentido atual.
A análise dos vinte e quatro volumes do processo de regularização fundiária
173

que envolve o conflito em torno da ocupação das terras do entorno do Jardim


Botânico ilustram com muita precisão os complicadores da construção cognitiva do
problema atual: moradia, conservação e pesquisa ambiental, preservação do
patrimônio histórico, propriedade do solo, degradação e risco, ocupação irregular
todos esses conceitos aparecem no processo constituindo uma babel de definições
sobre o que representa a situação atual. A observação desse imbróglio envolvendo a
comunidade de moradores e suas associações, a instituição de pesquisa do Jardim
Botânico, a Justiça, a prefeitura da cidade, os institutos de proteção do patrimônio
histórico, a Secretaria de Patrimônio da União, o Tribunal de Contas da União, a
Justiça Federal exemplificam as muitas faces de um problema que embora tenha um
caráter eminentemente social não emergiu ainda como um problema público
enquanto tal, isto é, enquanto um problema cuja definição permita a distribuição de
autoridade e responsabilidades para sua resolução. Falta um conceito admitido por
todos os envolvidos e que sirva de base para as ações concertadas das autoridades
estatais.
Para qualquer analista que se debruce sobre o processo legal constituído para
lidar com o problema fundiário do entorno do Jardim Botânico uma primeira
observação é inescapável. Não existe um consenso sequer sobre do que se trata a
questão ou qual é o problema. São vários problemas, na verdade, conforme o
agente que tenha voz no processo. A própria nomenclatura utilizada pelos agentes
ilustra a dissensão. Assim, para a Secretaria do Patrimônio da União, a SPU, o
problema é chamado de problema habitacional da vila dos moradores do Horto. Para
o Tribunal de Contas da União o problema é de patrimônio da União passível de
extração de rendas. A Associação de Moradores e Amigos do Horto trata a questão
como direito fundamental à moradia enquanto que para a Associação de Moradores
e Amigos do Jardim Botânico o problema é de natureza ambiental.

A luta pelo poder: quem deve se responsabilizar pelo problema


O caso analisado da regularização fundiária da Comunidade do Horto nos
fornece um interessante exemplo do atual estágio dos conflitos fundiários urbanos
no Brasil. Em que pese os avanços obtidos no plano legislativo desde a Constituição
de 1988 e de seus reflexos positivos nas ações do Poder Executivo, especialmente
a partir da promulgação do Estatuto da Cidade, vemos que as instituições jurídicas
174

ainda resistem em adotar princípios jurídicos mais responsivos e consentâneos com


os padrões de justiça social expressos pela sociedade brasileira no âmbito político. A
despeito disso, não é despiciendo afirmar que desde a promulgação da Constituição
e a partir da legislação ordinária que lhe seguiu os movimentos sociais e de
cidadania ganharam mais poder e capacidade de obstar medidas autoritárias de
qualquer constituído que pretenda impor suas decisões isoladamente. Embora longe
de uma adesão a padrões democráticos mais densos no que respeita à participação
popular nas decisões de caráter público vimos, a partir da análise do caso em tela,
que se tornou mais difícil para os grupos econômicos mais poderosos imporem
unilateralmente sua vontade a partir de suas conexões diretas com as instituições
estatais, como era o padrão de suas ações no regime autoritário.
O caso da Comunidade do Horto começa a ganhar os contornos de um
problema público na metade da década de oitenta quando se iniciava um processo
de redemocratização da sociedade brasileira e que culminaria naquele período com
a promulgação da atual Constituição brasileira. Mesmo assim, notava-se pela
abordagem do problema o caráter mais repressivo e arbitrário que o então Instituto
Brasileiro de Desenvolvimento Florestal imprimia à alegada “necessidade” de
retirada dos moradores da Comunidade do Horto composta de funcionários do
Jardim Botânico e seus descendentes diretos. Interesses economicamente
poderosos ligados ao capital imobiliário e à importante rede de comunicações
instalada no entorno da área de preservação ambiental viram naquela situação uma
oportunidade de requalificação da área com propósitos de valorização de seus
investimentos.
A comunidade, em princípio, sem qualquer organização que a representasse
contava apenas com alguns representantes legislativos ao seu lado que,
timidamente, procuravam contrapor à visão ecológica e ambientalista estritamente
conservacionista e que à época ganhava força junto à opinião pública e servia de
mote às grandes empresas com interesses na região, uma concepção de interesse
público que contemplasse igualmente a questão social ligada ao direito à moradia.
Era o início de um longo e tortuoso processo onde os múltiplos interesses em
pugna, seus agentes e força organizativa procuravam impor sua visão do problema
e mostrar a importância de suas reivindicações no plano do direito público: ecologia,
pesquisa, história, legislação, moradia, risco ambiental, ocupação irregular,
patrimônio da União todos esses ingredientes e outros mais foram incorporados
175

progressivamente ao problema até o paroxismo que gerou a incapacidade de ação


de todos os setores envolvidos.
O conflito instaurado era de tal ordem que difícil mesmo era a própria definição
cognitiva do problema em questão. O próprio “governo federal” enquanto
representação legítima dos interesses estatais apresentava contradições e dilemas a
respeito de como interpretar os interesses na questão. Por um lado, por intermédio
da Secretaria do Patrimônio da União admitia a necessidade de ponderação da
questão habitacional e do direito das famílias residentes na Vila do Horto. De outro,
em seu braço de representação na Advocacia Geral da União reproduzindo decisões
da Justiça Federal propugnava o interesse patrimonial da União que segundo suas
ponderações não eram possíveis de compatibilização com interesses sociais de
qualquer natureza. O formalismo jurídico de uma parte e a sensibilidade social de
outra se constituíam em evidentes contradições da ação governamental e estatal
que foram rapidamente capitaneadas pelos atores posicionados em polos distintos
do conflito.
Com todos esses ingredientes o conflito regrediu ao seu elemento mais básico:
a própria definição cognitiva do problema público: direito habitacional, ecológico, ou
científico? A luta pela definição do problema público em questão era o início de uma
disputa cujo resultado teria um impacto significativo na forma de tratamento da
questão. Se problema social o conflito deveria caminhar para uma discussão política
onde representantes legislativos de um e outro lado da questão assumiriam posições
significativas de poder. Se problema de patrimônio da União, neste caso, as
instituições jurídicas, em especial a Justiça Federal era quem deveria assumir a
palavra final e definitiva da questão.
No caso da publicização do conflito pelo viés político e legislativo ganhava força
e poder decisório a Associação de Moradores do Horto (AMAHOR) e a Associação
dos Moradores do Jardim Botânico (AMAJB). A prevalência da visão formalista
favorecia a visão burocrática estatal. Evidente que, numa e noutra visão, a política e
a estatal se locomoviam e se agrupavam diversamente as associações de
moradores: à AMAHOR interessava claramente a politização, à AMAJB a
judicialização. A luta resvalava também para a disputa pela adesão da opinião difusa
da população que poderia ser decisiva para os rumos da definição do problema
público em questão.
176

Cenários possíveis
Partindo-se do caso objeto de estudo, conclui-se que ainda que diante de uma
nova ordem jurídico-urbanística, a efetividade do Estatuto da Cidade para a
regularização de terras públicas não é algo que seja fácil de ser atingido,
principalmente considerando a localização do solo e os atores envolvidos na
questão.
Destacamos que ainda que estejamos diante de uma nova ordem jurídico-
urbanística, o paradigma formal legalista ainda se aplica de maneira forte, pois um
emaranhado de legislações complexas e herméticas, não nos permite compreender
com exatidão os caminhos para o exercício de direitos, o que implica em verdadeiro
comprometimento da cidadania.
O processo de regularização fundiária da Comunidade do Horto, onde o
Governo Federal, através da Secretaria do Patrimônio da União já havia empregado
mais de R$ 3000.000,00 (trezentos mil reais) para contratação de apoio técnico para
elaboração de cadastros e estudos, não avançou por interpretações legais que
camuflam todo tipo de interesses.
No Caso da Comunidade do Horto, a regularização fundiária está
absolutamente em aberto, pois pende de julgamento na mais alta Corte do Poder
Judiciário brasileiro uma demanda formulada pelos moradores, através da AMAHOR,
que caso venha a ser acolhida, poderá desconstituir tudo aquilo que foi decidido pelo
Tribunal de Contas da União, que sabidamente não é um órgão vocacionado para
criar ou extinguir políticas públicas relativas à regularização fundiária.
Por outro lado, existem cenários ainda possíveis para além da manifestação do
STF, sendo o primeiro de viés conservador, através do simples cumprimento da
decisão proferida pelo TCU e aceitação da delimitação do perímetro do Jardim
Botânico na forma apresentada pelo MMA, JBRJ e MPOG.
Neste cenário, prevalecerá o discurso ambientalista, encampado
oportunamente por todos aqueles a quem não interessa ter como vizinhos na área
do Jardim Botânico, um contingente de moradores desprovidos de recursos
financeiros.
Um cenário intermediário seria a revisão da delimitação do perímetro do Jardim
Botânico na forma apresentada pelo MMA, JBRJ e MPOG, permitindo que seja
autorizada a permanência de um maior número de famílias nas áreas que ocupam
177

atualmente. A solução seria negociada com concessões recíprocas. Se por um lado


não prevaleceria a proposta de regularização defendida inicialmente pela SPU com
base nos estudos elaborados pela UFRJ, por outro, não seria simplesmente imposta
a delimitação de perímetro do Jardim Botânico atualmente em vigor.
Tal situação não representaria o cenário ideal para nenhuma das partes em
conflito, mas teríamos a construção de um cenário possível para evitar a prevalência
absoluta do paradigma formal legalista adotada pelo Poder Judiciário e pela Corte de
Contas.
Caso mantida a delimitação do perímetro do Jardim Botânico na forma
apresentada pelo MMA, JBRJ e MPOG, um cenário que se apresenta é a
permanência dos moradores, até que sejam disponibilizadas novos imóveis para
realocação dos mesmos nas proximidades da Comunidade do Horto.
Um outro cenário possível seria uma posição do Governo Federal compreender
o estabelecimento de uma nova ordem jurídico-institucional criada após a
Constituição Federal de 1988, na qual devem ser observadas as funções
socioambiental da propriedade e da cidade, bem como dar efetividade ao Estatuto
da Cidade e acima de tudo perceber que é necessário atentar para a função social
da propriedade pública.
Neste cenário, far-se-ia necessário estabelecer uma ação integrada entre o
MMA, responsável pela política ambiental, entre o MPGO, via SPU, responsável pela
gestão do patrimônio da União e finalmente o Ministério das Cidades, responsável
pela elaboração de políticas públicas no campo da regularização fundiária.
Este cenário não prevê que o Jardim Botânico do Rio de Janeiro seja
transformado em um grande loteamento, mas sim que lá permaneçam nas áreas
passíveis de regularização, os moradores que já estão integrados há várias
décadas.
Os cenários acima não tem a pretensão de esgotar universo de soluções
possíveis para a questão, mas são traçados à luz dos elementos analisados na
pesquisa, principalmente considerando a atuação dos múltiplos atores.
A regularização fundiária envolvendo a Comunidade do Horto denota que o
processo está permeado por contradições, disputas, alianças e conflitos, mas uma
coisa é certa, não há como neste momento prever o fim da história.
178

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