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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


ESCOLA DE SERVIÇO SOCIAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL

ROBSON DE AGUIAR OLIVEIRA

AS FORÇAS DAS IDEIAS NA INSTITUCIONALIZAÇÃO


DAS POLÍTICAS PÚBLICAS RURAIS: PROCERA E PRONAF

RIO DE JANEIRO
2021
ROBSON DE AGUIAR OLIVEIRA

AS FORÇAS DAS IDEIAS NA INSTITUCIONALIZAÇÃO


DAS POLÍTICAS PÚBLICAS RURAIS: PROCERA E PRONAF

Qualificação de Mestrado apresentada ao


Programa de Pós-graduação em Serviço
Social, Escola de Serviço Social, Centro de
Filosofia e Ciências Humanas, Universidade
Federal do Rio de Janeiro.

Orientadora: Prof.ª Drª Verônica Cruz

Rio de Janeiro 2021


LISTA DE TABELAS

Tabela 01: Apresentação das condicionalidades do PROCERA e PRONAF .........34


LISTA DE SIGLAS.

AP – Ação Popular
BNDES – Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
CEPAL – Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe
CNBB – Confederação Nacional dos Bispos do Brasil
CNS – Conselho Nacional dos Seringueiros
CONTAG – Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura
CPDA – Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento,
Agricultura e Sociedade
CPT – Comissão Pastoral da Terra
CUT – Central Única dos Trabalhadores
DAP – Declaração de Aptidão ao PRONAF
EMBRAPA – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária
EMBRATER – Empresa Brasileira de Assistência Técnica e Extensão Rural
EUA – Estados Unidos da América
FAG – Frente Agrária Gaúcha
FETAEMG – Federação dos Trabalhadores da Agricultura do Estado de Minas Gerais
FETAG – Federação dos Trabalhadores da Agricultura
FETAGRI – Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Pará
FETRAF – Federação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar
FHC – Fernando Henrique Cardoso
IBASE – Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas
INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
IPEA – Instituto de Planejamento Econômico e Social
JUC – Juventude Universitária Católica
JEC – Juventude Estudantil Católica
MAB – Movimento dos Atingidos por Barragens
MAPA – Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento
MASTER – Movimento dos Agricultores Sem Terra
MDA – Ministério do Desenvolvimento Agrário
MDS – Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome
MEB - Movimento de Educação de Base
MEC – Ministério da Educação
MERCOSUL – Mercado Comum do Sul
MP – Medida Provisória
MPA – Movimento dos Pequenos Agricultores
MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
MSTR – Movimento Sindical de Trabalhadores Rurais
ONG – Organização Não-Governamental
OPEP – Organização dos Países Produtores de Petróleo
PCB – Partido Comunista Brasileiro
PNRA – Plano Nacional de Reforma Agrária
PROCERA – Programa de Crédito Especial para a Reforma Agrária
PRONAF – Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar
PROVAPE – Programa de Valorização da Pequena Produção Rural
PT – Partido dos Trabalhadores
PTB – Partido Trabalhista Brasileiro
SAF – Secretaria da Agricultura Familiar
SNCR – Sistema Nacional de Crédito Rural
SUDENE – Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste
UDR – União Democrática Ruralista
ULTAB – União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.............................................................................................................................................. 7

CAPÍTULO 1............................................................................................................................................... 10

1. A ABORDAGEM COGNITIVA: UMA INTRODUÇÃO A IMPORTÂNCIA DAS IDEIAS NAS


POLÍTICAS PÚBLICAS NO CONTEXTO DA AGRICULTURA FAMILIAR....................................................10
1.1 Políticas Públicas: alguns apontamentos sobre o desenvolvimento das análises das políticas públicas.. .10
1.2 A definição das Políticas Públicas...................................................................................................................19
1.3 A abordagem cognitiva em políticas públicas e a constituição das ideias..................................................22
1.4 A arquitetura dos fóruns e arenas e o disseminação das ideias.................................................................29

CAPÍTULO 2............................................................................................................................................... 34

1 OS FÓRUNS DE PRODUÇÃO DE IDEIAS E SEUS PRINCIPAIS ATORES...............................34

CAPÍTULO 3............................................................................................................................................... 35

2 O FÓRUM DA AGRICULTURA FAMILIAR: AS DISPUTAS DAS IDEIAS NA CRIAÇÃO DO


PROCERA E DO PRONAF..................................................................................................................................... 35
2.1 A consolidação do fórum da agricultura familiar........................................................................................35
2.2 A força das ideias na construção das políticas públicas para o agricultor rural: PROCERA e PRONAF.......36

QUADRO I................................................................................................................................................... 39

REFERÊNCIAS............................................................................................................................................ 40
INTRODUÇÃO

O objetivo deste trabalho é analisar, enquanto uma política pública, as


mudanças estabelecidas no Sistema Nacional de Crédito Rural a partir das duas
iniciativas de financiamento relacionadas ao setor da agricultura familiar, o Programa
de Crédito da Reforma Agrária - PROCERA e Programa Nacional de Fortalecimento
da Agricultura Familiar - PRONAF. O primeiro programa, constituído em 1985 e
extinto em 1999, foi desenvolvido exclusivamente para os assentados da reforma
agrária. Já o segundo programa, criado em 1996, é a primeira política pública rural
que reconhece a agricultura familiar e a diversidade que este conceito carrega como
sua base de atuação.
Após a extinção do PROCERA, os assentados da reforma agrária passam a
ser atendidos pelo PRONAF resultando, a nosso ver, em dois aspectos importantes
para o meio rural brasileiro. O primeiro é a constituição de uma política pública rural
que contribui para o reconhecimento e fortalecimento da categoria agricultura
familiar, estamos nos referindo ao PRONAF. Já o segundo aspecto diz respeito à
inserção “obrigatória” dos assentados da reforma agrária ao programa,
estabelecendo a dimensão econômica como principal caminho para o
desenvolvimento dos assentamentos rurais. Vale destacar que
A relevância deste estudo deve-se ao fato que a observação das
condicionalidades, bem como outros aspectos dos programas selecionados permitirá
verificar avanços ou retrocessos nas políticas destinadas à população rural. A
análise do processo de transição dos assentados da reforma agrária, já que o
PROCERA se destinava exclusivamente para os assentados da reforma agrária,
enquanto o PRONAF apresenta uma dimensão maior do público beneficiário e
contribuindo assim para a consolidação da agricultura familiar. Neste sentido,
podemos elencar algumas questões que vão orientar essa pesquisa. Quais são as
ideias que possibilitaram a construção das duas políticas públicas? Elas são
complementares, visto que o PROCERA é extinta e tem seu público-alvo
incorporado ao PRONAF?
Nesse sentido, este estudo apresentará uma análise comparativa dos
programas PROCERA e PRONAF, considerando as ideias centrais, interesses e
percepções envolvidas na concepção de cada um dos programas selecionados.
Valendo-se da abordagem cognitiva de análise de políticas públicas como o nosso
referencial teórico, centraremos nos esforços de pesquisa no papel das ideias nas
políticas públicas. A abordagem cognitiva apresenta um conjunto de interpretações
sobre a atribuição das ideias nas políticas públicas. Para fins deste estudo vamos
utilizar a noção de “fóruns e Arenas”. No Brasil, são poucos os trabalhos que utilizam
o papel das ideias na análise de política públicas rural, destaque para Grisa (2012)
que utiliza essa abordagem a partir da noção de “fóruns e arena” para analisar as
principais políticas públicas relacionada a agricultura familiar. Além desta autora
também abordaremos Grisa (2012); (MULLER; SUREL, 2004) e Fouilleux (2011),
que a nosso ver, são referências fundamentais para compreensão da abordagem
cognitiva.
A elaboração deste estudo contará com a pesquisa documental como recurso
metodológico, onde será analisado documentos de reivindicação de movimentos
sociais, avaliações relatório de pesquisa produzido por movimentos sociais, ONGs e
pelo governo. Também analisaremos estudos e pesquisas relacionadas ao tema da
agricultura familiar e assentados da reforma agrária.
No primeiro capítulo vamos abordar a nosso referencial teórico, a
abordagem cognitiva de análise de políticas públicas. A fim de proporcionar ao leitor
uma maior familiaridade com o tema de políticas públicas, serão apresentados
alguns conceitos e definições de políticas públicas. Dando continuidade,
abordaremos a análise cognitiva de políticas públicas e o seu itinerário de apreender
as políticas públicas como matrizes cognitivas e normativas, constituindo sistemas
de interpretação do real, no interior dos quais os diferentes atores públicos e
privados poderão inscrever sua ação. Ao destacar o papel das ideias, a abordagem
cognitiva reconhece que “crenças comuns” de um determinado grupo de atores,
sejam eles públicos ou privados, são capazes de identificar os problemas públicos e
apresentarem soluções e desta forma influenciar as políticas públicas. Este modelo
de abordagem está baseada no fato que a política pública se organiza a partir de
grande processo de leitura do mundo, que aos poucos uma visão do mundo se
afirma, sendo aceita. Ao ser aceita, a ideia torna-se reconhecida como “verdadeira”
pela maioria dos atores do setor, possibilitando que os mesmos compreendam as
transformações de seu contexto, municiando-lhes com um conjunto de relações e de
interpretações causais que lhes permitem decodificar, decifrar os acontecimentos
com os quais eles são confrontados (MULLER; SUREL, 2004).
No segundo capítulo
O terceiro capítulo tem como objetivo analisar a força das ideias nas
formulações das duas principais políticas públicas direcionada ao agricultor familiar.
Neste sentido vamos desenvolver uma análise sobre o fórum da agricultura familiar
a partir da atuação de dois atores, o MST e a CONTAG e a institucionalização do
PROCERA e do PRONAF enquanto uma política pública desenvolvida para o campo
brasileiro.

Capítulo I. A abordagem cognitiva: uma introdução a importância das


IDEIAS NAS POLÍTICAS PÚBLICAS no contexto da agricultura familiar.
Este capítulo tem como objetivo apresentar a relevância das ideias, como
mencionado anteriormente, nas políticas públicas e a análise sobre as mudanças
que essas políticas passam ao longo do tempo.
Na primeira seção deste capítulo, iniciaremos como uma descrição
panorâmica sobre o desenvolvimento e consolidação da análise das políticas
públicas. Na seção seguinte nos dedicaremos a desenvolver algumas das
abordagens cognitivas de políticas públicas, as coalizações de interesses, os
referenciais e os fóruns e arenas. Já na última seção, buscaremos evidenciar o
papel das ideias na construção do PROCERA e do PRONAF. Nosso objetivo é
evidenciar a força das ideias na elaboração destas políticas públicas. Em um
segundo momento observar se existe uma convergência entre elas, ou não.

1.1 Políticas Públicas: alguns apontamentos sobre o surgimento das


políticas públicas.
Como veremos a frente, a literatura sobre a política pública enquanto
disciplina é rica e complexa, são muitas as variações de interpretações, conceitos e
formulações possibilitando que o pesquisador faça sua opção, ou melhor, que
estabeleça a sua identificação intelectual. Dito isso, podemos seguir para os pontos
que convergem, em especial o processo e origem, mas sobretudo da ontologia da
política pública enquanto área do conhecimento.
Entre a origem e o desenvolvimento das políticas públicas vários podem ser
o recorte. Neste sentido, optamos por fazer menção a produção intelectual norte-
americana com objetivo de registrar o período em que a análise de políticas públicas
adquire o status de conhecimento e disciplina acadêmica. No entanto, nossa
referência para o desenvolvimento deste trabalho será a produção acadêmica
francesa. Vamos utilizar a literatura especifica destacando alguns autores como
Fouilleux (2011), Muller (2018). No campo nacional temos como referência a obra da
professora e pesquisadora Cátia Grisa que assim como os seus pares franceses,
que dentro das perspectivas de análise da abordagem cognitiva discutem o papel
das ideias como variável explicativa da mudança. Esta corrente de análise
compreende as políticas públicas como consequência de interações sociais que dão
lugar à produção de ideias, valores e representações.
Para (MULLER, 2018), é entre os séculos XVI e XIX que as sociedades
ocidentais experienciaram uma sucessão de mudanças que deram início uma nova
forma: o Estado. Porém é no século XIX que as novas configurações se efetivam e
contribuem para o surgimento das políticas públicas, e que pode ser considerado
como o modelo de governo das sociedades complexas. Neste sentido, o autor
destaca duas evoluções para o desenvolvimento das políticas públicas.

Do ponto de vista que nos interessa aqui, do surgimento das políticas


públicas, duas evoluções fundamentais devem ser destacadas. A primeira
assume a forma de um processo de monopolização em benefício do rei que
detém certo número de poderes relativos à fiscalização, à polícia ou a
guerra. Essas funções reais constituíram a base do Estado moderno ao
mesmo tempo que permitiram ao rei se firmar perante aos senhores feudais.
A segunda evolução é menos visível, mas igualmente importante. Trata-se
da constituição daquilo que, após Michel Foucault, chamamos de
“tecnologias” que possibilitaram ao Estado governar os territórios e as
populações. (MULLER,2018 p. 12).

Segundo o autor, essa “governamentalização” altera a relação entre o poder e


sociedade, já que de agora em diante o Estado passa a ter sua legitimidade admitida
através da sua capacidade de estabelecer a ordem valendo-se de novos atributos.
Para ilustrar essa afirmação, Muller (2018) cita o conhecimento elaborado sobre
uma população, um exemplo é a estatística e os dispositivos eficientes como a luta
contra uma epidemia. Outro aspecto destacado, é o questionamento do princípio da
territorialidade. Nas sociedades tradicionais era o território que conferia ao indivíduo
sua identidade, com a transição de uma sociedade agrária para uma sociedade
industrial são estabelecidos laços mais complexos, agora tendo o mercado como
referência.

Assim, enquanto as sociedades tradicionais repousam numa lógica territorial


e comunitária, as sociedades que emergem no fim do Antigo Regime são
sociedades fundadas no indivíduo e no setor. É esta passagem para uma
sociedade marcada pela complexidade das estruturas e das relações
sociais que explica o nascimento das políticas públicas. (MULLER, 2018 p.
13).

Para o autor francês, dois pontos merecem serem assinalados como parte do
processo da origem das políticas públicas. O primeiro, é que o surgimento das
políticas públicas nos países europeus, em especial a França e Inglaterra, está
relacionado aos efeitos do mercado e da industrialização acarretaram à sociedade.
Não sendo mais uma sociedade territorial, o problema dos pobres e excluídos não
podem mais serem tratados localmente, a partir de ações caritativas. Neste sentido,
as primeiras políticas públicas tiveram por objeto inicial “solucionar” a questão social.
Com a nova emergência dos assalariados, foi necessário o desenvolvimento de
outras formas de solidariedade, neste caso o Estado-providência. Para o autor, o
“social” se constrói, então como setor sujeito a políticas específicas. Já o segundo
destaque é em relação ao caráter setorial das políticas públicas.

Cada política pública se constitui como um setor de intervenção


correspondente a uma parcela da sociedade para qual a ação pública é
destinada. Por vezes, o setor precede à política. Ele surge, então, como
uma estruturação vertical dos papéis da sociedade(geralmente, de ordem
profissional) que define as regras de funcionamento, seleção das elites, de
elaboração de normas e valores, de delimitação de fronteiras etc. Outras
vezes, é a política que constitui, na verdade, um problema em setor de
intervenção. É o caso das políticas sociais Cada política pública se
desenvolve como um setor de ingerência equivalente a um setor da
sociedade para qual a ação pública é atribuída. Em alguns casos, o setor
antecede à política. Neste caso ele surge, então, como uma estruturação
vertical dos papéis da sociedade (geralmente, de ordem profissional) que
define as regras de funcionamento, de seleção das elites, de elaboração de
normas e valores, de delimitação de fronteiras etc. Outras vezes, é a política
que constitui na verdade, um problema em setor de intervenção. É o caso
das políticas sociais. (MULLER,2018 p. 13).

De acordo com o autor, um dos objetivos das políticas públicas é o de


controlar as desproporções derivadas do processo de setorização e, resultado da
complexidade das sociedades modernas. Neste sentido, cada setor busca definir os
seus objetivos setoriais como uma determinação, seu objetivo maior.
O conjunto de mediações com base no modelo setorial acaba por legitimar
um novo grupo de atores sociais, são os grupos de interesse ou de representação
profissional. Neste novo formato as sociedades atuais aumentaram a capacidade de
ações sobre elas mesmas. O surgimento das políticas públicas é um bom exemplo
deste novo período.

Resultado da divisão do trabalho, os diferentes conjuntos setoriais são, ao


mesmo tempo, dependente uns dos outros e antagonistas na obtenção de
recursos escassos. Assim como sociedade tradicional viu-se ameaçada pela
dispersão, a sociedade setorial está ameaçada pela desintegração se ela
não identificar em si mesma os meios de gerir os antagonismos
intersetoriais. Esses meios são as políticas públicas. (MULLER,2018 p. 15).

Para Muller (2018), com o surgimento das políticas públicas, verifica-se o


desenvolvimento de conhecimentos de governo cada vez mais especializados
(setoriais). Considerados essenciais, esses conhecimentos são fundamentais na
construção dos instrumentos que viabilizam que as políticas públicas surtam efeitos.
O autor também considera que estes conhecimentos acabam por criar uma
separação, já que através do aperfeiçoamento dos conhecimento surge o
especialista, o que acaba por excluir o público “inexperiente” do controle das
políticas públicas.
Por outro lado, o surgimento das políticas públicas representam a capacidade
de ação das sociedades sobre elas mesmas. Neste sentido, as sociedade
modernas, segundo Muller (2018), se veem diante de uma contradição.

As sociedades modernas se veem assim diante de um paradoxo: enquanto


as sociedades tradicionais, cuja a margem sobre o mundo é reduzida, são
muito dependente de acontecimentos exteriores, as sociedades modernas,
que dominam infinitamente melhor suas ações, veem aumentar sua
dependência com relação as suas próprias ferramentas. Hoje, a
insegurança máxima não é determinada por acontecimento exteriores, mas
pelo emprego de meios destinados a agir sobre o real: poluição, crises
econômicas, catástrofes ambientais, acidentes de trânsito...Isso significa
que numerosas políticas públicas não terão outro objetivo que não seja a
gestão dos desajustes induzidos por outras políticas setoriais: a sociedade
setorial em permanente desiquilíbrio, gera constantemente seus problemas,
que, por suas vez, deverão constituir objeto de novas políticas públicas.
(MULLER,2018 p. 16).

Dessa forma, as sociedades modernas converteram em sociedades


autorreferenciais, já que agora são responsáveis por reconhecer nelas mesmas o
sentido de sua ação sobre elas próprias.

1.2 As origens da análise de políticas públicas.


Segundo Grisa (2010) é no Estados Unidos a partir da segunda metade do
século XX que a análise de políticas públicas ganha relevância como área de
conhecimento e disciplina acadêmica. Os trabalhos desenvolvidos por estudiosos
americanos, não se dedicaram em analisar o Estado e suas instituições, mas sim em
enfatizar as ações dos governos.
Em sua contribuição sobre as origens das políticas públicas, Muller (2018)
também ressaltar a análise das políticas públicas teve sua origem nos Estados
Unidos, mas que na França traz várias características originais relacionadas às
circunstâncias específicas da sua concretização desde a década de 1980. São elas:
a importância do Estado e das administrações, a dimensão global da ação pública, a
preocupação em colocar em primeiro plano a dimensão cognitiva da ação pública, o
foco na observação cuidadosa do papel dos atores.
Colaborando com as duas perspectivas acima, Souza (2006) afirma que
o surgimento das políticas públicas, enquanto disciplina acadêmica, tem sua origem
nos Estados Unidos onde a análise das políticas, diferente da Europa, se
desenvolve sem constituir relações com o Estado.
A política pública enquanto área de conhecimento e disciplina acadêmica
nasce nos EUA, rompendo ou pulando etapas seguidas pela tradição
europeia de estudos e pesquisas nessa área, que se concentrava, então,
mais na análise sobre o Estado e de uma das mais importantes instituições
do Estado – o governo-, produtor, por excelência, de políticas públicas. Nos
EUA, ao contrário, a área surge no mundo acadêmico sem estabelecer
relações com bases teóricas sobre o papel do Estado, passando direto para
a ênfase nos estudos sobre a ação dos governos. (SOUZA,2006 p. 22).

Em relação aos pressupostos analíticos que pautaram o surgimento das


políticas públicas, Souza (2006) sustenta que tudo aquilo que o governo faz ou deixa
de fazer é passível de duas ações; ser formulado cientificamente e analisado por
pesquisadores independentes, no entanto a autora condiciona essas ações aos
regimes onde a democracia é estável. Souza (2006) identifica a contribuição de
quatro autores, H. Lasswell, H. Simon, C. Lindblom e D. Easton.
Na busca por conciliar conhecimento científico produzido na academia com a
produção desenvolvida nos governos e também como forma de estabelecer o
diálogo entre cientistas sociais, grupos de interesse e governo, Lasswell (1936)
introduz a expressão policy analysis (análise de política pública). Preocupado com o
fato da racionalidade dos decisores públicos é sempre limitada por problemas como
o autointeresse dos decisores, o tempo limitado para tomada de decisão, informação
incompleta ou com erros, etc... Para Marques (2013), Lasswell sustentava uma
leitura elitista da política, já que os seus estudos estavam baseados na forma pela
qual as massas seguiam as lideranças. Em seus estudos, Lasswell pesquisou a
conexão psicologia e questão da liderança política.

Partindo da ideia de que a política referia-se a “ quem obtém o que, quando


e como”, a análise de Lasswell (1936) se situava inteiramente no interior do
Behaviorismo, considerando os elementos importantes a serem analisados
se baseavam no comportamento dos indivíduos. No bojo dessa concepção,
o autor defendeu a constituição de uma análise cientifica do governou que
denominou de policy analysis, de forma dispersa ao longo de suas obras
publicadas nos anos 1940. No centro da formulação de tal “ciência de
governo” estava a busca de compreensão dos efeitos dos contextos sociais
e políticos que cercam as políticas, assim como a centralidade nos
processos de decisão. (MARQUES, 2013 p. 26)

Ainda segundo Marques (2013), a obra de Lasswell sustenta que a


racionalidade presente nas políticas tinha uma caráter sinóptico, ou seja, possibilita
o acesso ao todo de forma resumida, porém abrangente.
Outra contribuição fundadora, e que desenvolveu de forma paralela à
produção de Lasswell, diz respeito a obra de Hebert Simon (1957). Simon foi um
dos percussores em diferentes áreas como, a aplicação da psicologia experimental à
economia e a compreensão de estruturas organizacionais como também sua
contribuição no desenvolvimento da inteligência artificial. Neste sentido, Simon
desenvolve o conceito de racionalidade limitada dos decisores públicos (policy
makers). Para o autor norte-americano, essa limitação pode ser contornada pelo
conhecimento racional através da elaboração de sistemas que tenha regras e
incentivos que delimite a atuação dos atores (conjunto de regras e incentivos) que
enquadre o comportamento dos atores e forje esse comportamento na direção de
resultados desejados.

Segundo essa perspectiva, a racionalidade dos indivíduos seria limitada


pela informação disponível, por suas características ( e restrições)
cognitivas e pelo tempo e recursos limitados de quem dispõem para decidir.
Essa interpretação se afasta da ideia que decidir significa otimizar, ou de
seria possível planejar ou mesmo escolher de forma sinóptica, considerando
todas as alternativas em todos os cenários, visto que todo o processo é
influenciado pelas limitações da cognição humana, assim como pelas
condições organizacionais que cercam a decisão, denominadas de
“estrutura do ambiente da decisão” por Simon (1945). (MARQUES, 2013 p.
26).

Neste sentido, a existência dessas limitações determinaria a racionalidade na


decisão, no entanto sem torná-la irracional. De acordo com essa ideia, Simon
afirmava ser possível a construção de conhecimento sistemático sobre o
“comportamento administrativo”, levando à compreensão do decisor e,
consequentemente, das políticas por ele decididas.
Já a contribuição de David Easton (1965), está relacionada a construção de
uma interpretação da vida política como uma “alocação autárquica de valores na
sociedade”. Neste sentido, as políticas públicas ganhariam um destaque especial
em suas pesquisas, já que elas poderiam ser esclarecidas pelas relações entre o
sistema de políticas, neste caso o sistema político e os demais sistemas, durante o
processo das diferentes ciclos da produção de políticas. Segundo Marques(2013),
Easton defendia a teoria que o ciclo estava associada à explicação da dinâmica das
políticas, assim como na inserção dessas no funcionamento mais amplo de outros
sistemas sociais.

O subsistema das políticas seria impactado por inputs (entradas) oriundos


de outros sistemas, em especial pela reivindicações e apoios de grupos de
interesses, assim como de dentro do próprio sistema – os withinputs. O
sistema geraria outputs para os demais sistemas e para si mesmo, gerando
feedback. De uma forma geral, entretanto as políticas eram entendidas
como respostas do sistema a impulsos de fora, sendo o Estado pensado
como alocador automático e técnico que responderia a conflitos e disputas
externas a ele. (MARQUES, 2013 p.28).
A partir desta afirmação, podemos concluir o processo de decisão em si
permanecia como uma ação racional, assim o objeto principal das políticas que
deveria ser esclarecido é o processo da tomada de decisão sobre as políticas.
Para Charles Lindblom (1959; 1979), as políticas públicas precisariam
acrescentar outros elementos além do “racionalismo” formulado pelos autores
descritos acima.

Ao contrário do considerado até o momento, Lindblom sugeriu que meios e


fins seriam escolhidos muitas vezes de forma simultânea e o processo de
decisão em políticas seria “incremental”, estabelecendo pequenas decisões
subsequentes que poderiam ser revertidas com custos relativamente baixos,
processo designado pelo autor de “ comparações limitadas sucessivas”
entre alternativas. (MARQUES, 2013 p. 29).

Ainda segundo Marques (2013), a partir da ampliação deste conceito de


“comparações limitadas sucessivas, Lindblom pode avançar na resolução do
problema da interpendência e da coordenação em políticas, visto que permitiria que
cada decisor definisse suas escolhas a partir dos movimentos incrementais dos
demais.
Ao discutir as origens das políticas públicas, Muller (2018) também confere o
lugar de destaque para Estados Unidos e alguns autores já mencionados por Souza
(2006) e Marques (2013). No entanto, Muller (2018) enfatiza que para entender a
gênese da análise das políticas e a elaboração do ambiente intelectual atual, é
necessário reexaminar três grandes formulações que constituem a base intelectual
das políticas públicas. O autor refere-se as considerações sobre a burocracia, a
teoria das organizações e da teoria da administração pública. Para o autor, as
transformações que a revolução industrial impôs às sociedades industriais
acrescidas dos impactos da ascensão do Estado soviético e dos fascismos levaram
a impressão de uma possível vitória das burocracias totalitárias em relação as
democracias liberais. Neste sentido, o autor enfatiza uma questão, o
desenvolvimento do Estado Burocrático não vai asfixiar as sociedades modernas? A
fim de ultrapassar a conotação negativa que hoje conferimos a burocracia, o autor
francês apresenta de forma sucinta as formulações sobre o Estado e papel da
burocracia nas obras de Hegel, Marx e Weber. Assim, Hegel evoca o
desenvolvimento do Estado burocrático como o único capaz de transcender os
interesses particulares e se elevar ao nível do interesse geral. É o Estado que dá
sentido à sociedade civil, ou seja, é a forma burocrática do Estado que imprime a
sociedade atual o status de modernidade em contraponto as sociedades arcaicas.
Para Marx, é somente pela luta de classe que a sociedade dá significado ao Estado
e que a burocracia é uma perversão do Estado e o instrumento utilizado pela classe
dominante para assistir aos seus interesses.

Embora pareça bastante anacrônica, essa crítica a Hegel é digna de um


problema incrivelmente atual: em que medida o desenvolvimento do Estado
– e, portanto, das políticas públicas – é o resultado inevitável das
sociedades industriais? Resumindo: as sociedades industriais podem abrir
mão do Estado? Não, responde Max Weber. Sociólogo alemão do começo
do século XX, reputado especialista da burocracia, Weber exerceu grande
influência na Europa e nos Estados Unidos, pois sua obra é uma espécie de
passarela entre as reflexões europeias sobre burocratização do mundo e os
trabalhos de origem americana sobre funcionamento das organizações.
(MULLER, 2018 p.18).

Em sua análise sobre a obra de Max Weber, Muller (2018) destaca que o
autor Alemão considerava a burocracia como uma forma social fundada na
organização racional. Neste sentido, o desempenho administrativo (da máquina do
Estado) é desenvolvido sem as imprecisões do caráter humano. Assim é possível
prever que uma decisão na cúpula será executada pela base “ sem ódio ou nem
paixão” e principalmente sem a necessidade de negociar toda vez o conjunto do
sistema decisório. Mas o autor nos alerta para os aspectos negativos da burocracia.

Esse caráter, entretanto, também apresenta contrapartidas. O formalismo


regulamentar e a impessoalidade da burocracia carregam em si a negação
da sua eficácia. A partir da concepção weberiana da burocracia como
racionalização do mundo se juntam, por outros caminhos, as preocupações
dos filósofos da modernidade. A teoria das organizações se propõem
responder a essas perguntas. (MULLER, 2018 p.19).

A teoria das organizações surgiu nos Estados Unidos na década de 1920,


como uma resposta ao modelo Taylorista. Para Muller (2018) a teoria das
organizações, de forma imediata, produziu inúmeras pesquisas, as primeiras ainda
centradas em pequenos grupos de trabalho para logo depois serem ampliadas para
um campo de investigação maior e mais plural. Como resultado direto dessas
pesquisas, foram identificados alguns conceitos: o conceito de ator que reconhece
que cada agente de uma organização desempenha uma ação e que o seu lugar
dentro da organização é diretamente relacionado a partir de suas ações; o conceito
de estratégia que define que ações devem se basear em regras formais e informais
da organização; o conceito de sistema organizado significa que uma organização se
encontra acima do somatório das ações dos seus atores ela na verdade constitui um
sistema de ação concreto cuja as regras de funcionamento sem impõem de forma
única para os diferentes atores e por fim o conceito de poder que dispõem sobre a
utilização dos recursos ( qualificação, conhecimento, gestão da interface entre a
organização e seu meio etc.) pelos atores determina situação de troca entre eles,
fundada na relação de poder. Para o autor, a teoria das organizações demonstra o
universo das regras e normas presentes nas administrações.

Comparada às teorias da burocracia, a sociologia das organizações põe em


evidência a complexidade das regras (frequentemente informais) que
governam as administrações, mas também a autonomia dos atores das
políticas públicas. Adicionamos ainda, uma terceira fonte intelectual da
análise das políticas: a administração pública.

A abordagem gerencial é organizada tendo como incumbência o


desempenho, o que para Muller (2018) é uma característica que a distingue da
análise das políticas públicas. Já que o gerenciamento público tem como premissa
melhorar o “desempenho público” e assim possibilitando que a administração
alcance as finalidades que lhe foram incumbidas pelo menor custo possível.
Para Souza (2006), vários governos, influenciados pelo “novo gerencialismo
público” e da política fiscal restritiva de gastos, introduziram novos mecanismos nas
políticas públicas, todos voltados para a eficiência. Para a autora, a ênfase na
eficiência é resultado do argumento que as políticas públicas e suas instituições
encontravam-se tomadas por visões distributivas ou redistributivas sem fazer
referência a eficiência.

1.3 Políticas Públicas e a busca por uma definição.


São inúmeras as definições sobre políticas na literatura especializada o que
estabelece um amplo painel sobre o tema, para Muller (2018) são Yves Mény e
Jean-Claude Thoenig que fornecem cinco noções que podem servir de fundamento
à existência de uma política pública. Colaborando com o entendimento que não
existe uma única definição sobre o que seja política pública, Souza (2006) cita
algumas formulações, de diferentes autores, que buscam caracterizar a política
pública como ação de governo.

Mead (1995) a define como um campo dentro do estudo da política que


analisa o governo à luz de grandes questões públicas e Lynn (1980), como
um conjunto de ações do governo que irão produzir efeitos específicos.
Peters (1986) segue o mesmo veio: política pública é a soma das atividades
dos governos, que agem diretamente ou através de delegação, e que
influenciam a vida dos cidadãos. Dye (1984) sintetiza a definição de política
pública como “o que o governo escolhe fazer ou não fazer”. A definição
mais conhecida continua sendo a de Lasswell, ou seja, decisões e análises
sobre política pública implicam responder às seguintes questões: quem
ganha o quê, por quê e que diferença faz. (SOUZA, 2006 p.24).

Já outras definições sobre políticas relacionam a função da política pública


como resposta à um problema. Souza (2006), constata que o fato dessas definições
supervalorizarem os enfoques racionais e procedimentais das políticas públicas, são
passiveis de críticas e questionamentos. Um dos principais argumentos, é que estas
definições não reconhecem a disputa de ideias e interesses, que segundo os críticos
são a essência da política pública. Outra questão apontada pela autora é que ao
centralizarem o foco nas atividades dos governos, essas definições não
desenvolvem a dimensão do conflito e limites presentes nas decisões dos governos.
Porém, boa parte das definições de políticas públicas nos direcionam para os
governos, cenários onde ocorrem as disputas em torno de interesses, prioridades e
ideias. Neste sentido, as diferentes abordagens em torno das definições de políticas
públicas assumem, em geral, uma visão holística do tema, uma perspectiva de que o
todo é mais importante do que a soma das partes e que indivíduos, instituições,
interações, ideologia e interesses contam, mesmo que existam diferenças sobre a
importância relativa desses fatores Souza (2006). No entanto, Muller (2018) aponta
uma outra dimensão sobre a política pública, a de que ela não é um dado, mas sim,
uma construção de pesquisa. Já que o sentido de uma política pública nem sempre
aquilo que foi determinado pelo seu decisor, pois certas políticas podem ter uma
intenção explicita e um sentido latente.

Uma política pode, igualmente, assumir a forma de uma “não decisão”: não
apoiar o valor de uma moeda ou de aplicar uma diretriz europeia. Por fim,
apesar de frequentemente assimilarmos a existência e medirmos o impacto
de uma política de amplitude de seus benefícios, o custo de certas políticas
é incomparável ao seu impacto. É o caso, por exemplo, das políticas
regulamentadoras ou das políticas institucionais. (MULLER, 2018 p. 24).

Para Grisa (2012), a definição do que é uma política pública é uma questão
que ainda suscita uma diversidade de interpretações e debates. E na maioria das
vezes são apresentadas definições genéricas e de difícil entendimento. Neste
sentido, algumas definições apontam que as políticas públicas podem ser
classificadas como todas as ações dos governos.

Esta é uma questão sobre a qual já se debruçaram diversos autores e, cuja


resposta, no entanto, continua sendo objeto debates (Secchi, 2010;
Lascoumes e Le Galès, 2009; Muller, 2008; Souza, 2006; Muller e Surel,
2004). Conforme Muller e Surel (2004), não raro, as definições são
genéricas e de difícil apreensão como, por exemplo, “política pública é tudo
o que o governo decide fazer ou não fazer”, ou ainda, “uma política pública
se apresenta como um programa de ação governamental num setor da
sociedade ou num espaço geográfico” (GRISA, 2012 p. 30).

Ao compreender que a política pública em geral e a política social em


especial, do ponto de vista teórico-conceitual, são campos multidisciplinares, Souza
(2006) não apenas concorda como acrescenta que o foco está nas explicações
sobre a natureza da política pública e seus processos. Para a autora, uma teoria
geral da política pública resulta numa procura por combinar teorias desenvolvidas
em diferentes campos, como o da sociologia, da ciência política e da economia.
Para Faria (2003), é a partir da década de 1950, que as políticas públicas se
tornam unidade de análise e aos poucos conferindo destaque aos pontos dinâmicos
do chamado policy process e aos mais variados atores, neste caso, estatais e não
estatais frequentemente envolvidos. No entanto, o autor afirma um movimento de
reformulação vem ocorrendo, nas últimas duas décadas, em relação aos estudos
que se dedicam a interação entre os atores estatais e privados no processo de
políticas públicas.

Nas duas últimas décadas, porém, os estudos acerca da interação entre os


atores estatais e privados no processo de produção das políticas públicas
têm sofrido significativas reformulações. Uma grande variedade de
pesquisas empíricas e de ensaios de natureza teórico-conceitual tem
demonstrado a incapacidade dos modelos tradicionais de interpretação dos
mecanismos de intermediação de interesses, como o pluralismo, o
corporativismo, o marxismo, em suas várias derivações, de dar conta da
diversificação e da complexificação desses processos, muitas vezes
marcados por interações não hierárquicas e por um baixo grau de
formalização no intercâmbio de recursos e informações, bem como pela
participação de novos atores, como, por exemplo, organizações não-
governamentais de atuação transnacional e redes de especialistas. (FARIA,
2003 p. 10).

No caminho por uma definição de políticas públicas, Flexor (2010)


desenvolve a sua elaboração a partir de questões que remetem sobre os
procedimentos e metodologia do Estado; os interesses e a influência dos atores nos
processos de elaboração das políticas e as formas de solucionar problemas de
ordem institucional e comportamental que afetam a qualidade dos programas e
projetos públicos. Em suas respostas a estes questionamentos o autor apresenta a
origem e o sentido de análises das políticas públicas.
É para responder a essas questões que a análise das políticas públicas
(policy analysis) se desenvolveu como disciplina acadêmica nos anos 1960,
estimulada intelectual e financeiramente pelo crescimento do escopo de
atuação das atividades governamentais decorrente do avanço do Estado de
Bem Estar nos países industrializados ou dos projetos desenvolvimentistas
em diversos países em desenvolvimento. (FLEXOR, 2010 p. 26).

Segundo o autor, já no surgimento da disciplina é observada a orientação


multidisciplinar, tornando-se um atributo permanente no desenvolvimento da análise
das políticas públicas como disciplina acadêmica e explicam tanto seu crescimento
como sua importante diversidade teórica e metodológica. Neste sentido, a
diversidade e a heterogeneidade científica são seguramente inerentes a
complexidade do processo de formulação de política.
Para Souza (2006), o fato de as políticas públicas incidirem em diferentes
campos como as sociedades e a economia, implicam na condição que toda política
pública também necessita explicar as inter-relações entre Estado, política, economia
e sociedade. Esta condição das políticas públicas acaba por desenvolver um
interesse comum de pesquisadores das mais variadas disciplinas como serviço
social, economia, ciência política, sociologia, antropologia, geografia, planejamento,
gestão e ciências sociais aplicadas, o que sem sobra de dúvida vem contribuindo
para avanços teóricos e empíricos.
A compreensão que as políticas públicas são áreas que situa variadas
unidades em totalidades estruturadas permite o reconhecimento que a política
pública é um campo holístico. Segundo Souza (2006), essa constatação apresenta
duas implicações. A primeira, já mencionado acima, a área torna-se um espaço de
aplicação de várias disciplinas, teorias e modelos analíticos. Dessa forma, a política
pública oficialmente vinculada a uma divisão da ciência política, não se limita apenas
a esse campo tornando-se objeto analítico de outras áreas do conhecimento com
destaque para a econometria e a crescente influência de técnicas quantitativas. Já a
segunda é sobre o caráter holístico deste campo de conhecimento. A autora afirma
que essa característica não significa que ela careça de coerência metodológica, mas
que ao contrário, abriga vários “olhares”.
Outra elaboração sobre políticas públicas que merece registro são de Muller e
Surel (2002). Contrários às formulações genéricas que definem a política pública
como, por exemplo, “política pública é tudo que governo decide fazer ou não fazer”,
os autores formulam um questionamento a respeito do caráter de totalidade da ação
pública a fim de colaborar numa definição de políticas públicas.
Ainda segundo os autores existem elementos que possibilitam uma maior
especificação do entendimento sobre a noção de política pública. A originalidade dos
autores está em classificar esses elementos sobre três grandes chaves, uma política
pública constitui: um quadro normativo de ação; combina elementos de força pública
e elementos de competência [expertise] e tende a constituir uma ordem local.
Como podemos observar a busca por uma definição de política pública
demonstrou ser terreno complexo, não sendo possível uma única, ou melhor,
definição. Por outro lado, observamos que por ser um campo de conhecimento
multidisciplinar possibilita um compartilhamento comum por diferentes disciplinas e
que vem contribuindo para avanços teóricos e empíricos.

1.4 A abordagem cognitiva em políticas públicas e a constituição das


ideias.
Em sua apresentação sobre o campo das políticas públicas, Capela (2015)
destaca que a partir dos anos de 1990 diferentes autores vem apontando os limites
e contradições da análise tecnocrática e racionalista. De outro lado, uma produção
crescente procuram demonstrar que as políticas públicas são feitas de ideias.

Considerando as ideias como crenças, valores, visões de mundo ou


entendimentos compartilhados, a literatura especializada aponta que a
disputa sobre as ideias está no centro do processo de produção políticas
públicas. Os autores que destacam o papel das ideias enfatizam a
centralidade do discurso, da interpretação, da representação simbólica,
entendendo que a produção de políticas se aproxima mais do processo de
argumentação do que de técnicas formais de solução de problemas.
(CAPELA, 2015 p.16).

Para Massardier (2011), que compartilha em parte da crítica de Capela, as


análises “clássicas” de análise de políticas públicas desenvolvem seus referenciais
sem levar em conta o fato cognitivo. Ao utilizar o termo “clássica” o autor está se
referindo a três elaborações intelectuais de análises públicas, a tradição burocrática
weberiana, a economia de bens públicos e a análise sequencial que compartilham
em comum, que sua aplicabilidade e eficácia se fundamenta sobre uma
funcionalidade redutora das possibilidades. Neste caso, a capacidade funcional
oculta a cognição, pois sua leitura de mundo “constatam” uma organização do
mundo que não sofrerá nenhuma interferência, pois o “ mundo deve se conformar”.

A questão não é tanto que as análises clássicas não levam em conta o


papel do conhecimento. De fato, é possível encontrar nelas inferências em
relação às ideias, mas amplamente implícitas. Os modelos clássicos
inferem, na realidade, que uma única ideia submetida à racionalidade
burocrática e técnica conduz a política públicas. Sem dúvida, esses
esquemas são conhecimentos em atos. Porém, nas análises clássicas de
políticas públicas, essa vertente não é assumida: apenas a funcionalidade
do esquema vale como evidência. (MASSARDIER, 2018, P. 70).

De outro lado, as análises cognitivas de políticas públicas não


reconhecem essa forma de uma ação fundamentada na pura razão técnica,
econômica ou burocráticas. Ao afirmar que a racionalidade dos atores sociais não
pode ser abreviada ou sistematizada pela burocracia, o mercado e a técnica a
análise cognitiva expande as políticas públicas a outras opções, como equidade,
justiça, emoções e etc. Com algumas distinções, essas investigações acentuam o
valor e importância das ideias, dos princípios e das representações sobre o
desenvolvimento social, estabelecendo um ponto comum. Para Muller e Surel
(2002), esse ponto comum é o estabelecimento das dinâmicas de construção social
da realidade na determinação dos quadros e das práticas socialmente legítimas num
instante preciso.
Tendo como referência França, Estados Unidos e Inglaterra a abordagem
cognitiva vem se desenvolvendo nos últimos anos através de estudos e pesquisas.
É a partir da década de 1980 que uma corrente de estudos das ciências sociais
passou a dar maior importância a função das ideias, das crenças e das
aprendizagens nas políticas públicas Grisa (2012). No Brasil ainda são poucos os
estudos que incorporam o papel das ideias nas políticas públicas, porém a autora
atesta que este quadro vem mudando paulatinamente. No entanto, na abordagem
cognitiva as ideias ocupam uma dimensão central na análise, mesmo que não seja
exclusivo. Neste sentido, a abordagem cognitiva apresenta distintas interpretações
sobre a função das ideias nas políticas públicas.

Longe de ser homogênea e unificada, a abordagem cognitiva apresenta


diferentes interpretações sobre o papel das ideias nas políticas públicas,
sendo os principais quadros de análise aqueles que se debruçam sobre as
noções de “referencial”, “fóruns e arena”, “coalizões de interesses”,
“paradigmas”, “narrativas” e “discursos” (GRISA, 2012 p. 34).

Para Muller e Surel (2002), a abordagem cognitiva busca apreender as


políticas públicas como matrizes cognitivas e normativas, constituindo sistemas de
interpretação do real, no interior dos quais os diferentes atores públicos e privados
poderão inscrever sua ação. Mesmo reconhecendo de que existem certas
diferenças, tais pesquisas, possuem um ponto comum, que neste caso, é o de
estabelecer a relevâncias dos processos de construção social da realidade
delimitação dos ambientes de práticas socialmente originais num instante preciso.

Com efeito, os três modelos repousam, fundamentalmente, sobre o papel


essencial desempenhado por aquilo que se qualificará aqui como matrizes
cognitivas e normativas, expressão genérica que integra os paradigmas
(Hall), os sistemas de crenças (Sabatier) e os referenciais (Jobert, Muller).
As três noções recobrem elementos análogos, ainda que eles se prestem a
diferentes recortes. (MULLER; SUREL, 2002 p. 45).

Ancorada na certeza que existem valores e princípios que apontam para a


constatação, que Muller e Surel (2002) identificaram como uma visão de mundo
particular, essa corrente de análise, parte do pressuposto que a hierarquização de
um certo conjunto de dinâmicas sociais, é oriundo de princípios abstratos. São esses
princípios abstratos que definem, segundo os autores, o campo dos possíveis e do
dizível numa sociedade dada, e assim identificando e também comprovando a
presença de diferenças ou grupos e por consequência estabelecendo uma
classificação.

No seu estudo de políticas macroeconômicas, desenvolvidas na Inglaterra


nos anos 1970 e 1980, Peter Hall tinha assim identificado uma oscilação
entre princípios de inspiração keynesiana e princípios qualificados de
“monetaristas”. De maneira implícita, pode-se considerar que funcionava em
plano de fundo uma visão de mundo cada vez diferente, colocando o
indivíduo racional e responsável em primeiro plano no segundo modelo,
associado a uma forma de darwinismo social simplista (“os melhores
vencerão pelo efeito benéfico do mercado e realizarão, assim, a
prosperidade da comunidade inteira”), reconhecendo, ao contrário, o
paradigma keynesiano, o dever da coletividade na correção dos males
inerentes às sociedades modernas, a partir de uma visão das dinâmicas
econômicas, recusando o caráter necessário e benéfico dos livres
ajustamentos do mercado. (MULLER e SUREL, 2002 p. 46).

Neste sentido, a definição dos valores e objetivos passam pelos métodos


e meios desenvolvido pelo conjunto dos elementos cognitivos e normativos. No
entanto, os autores ressaltam, que as técnicas utilizadas mudam de acordo com o
paradigma adotado, ou seja, a escolha por certo número de instrumentos não se
realiza, de maneira neutra, pois segundo Muller e Surel (2002), responde a certos
imperativos normativos e práticos desenhados/definidos pelos elementos
precedentes.

Portanto, numa palavra, é o conjunto dos elementos que fazem sistema,


que levanta assim mapas mentais particulares. O interesse heurístico de
distinguir estes diferentes componentes repousa, essencialmente, sobre o
fato de que eles permitem isolar, analiticamente, os processos pelos quais
são produzidas e legitimadas as representações, as crenças, os
comportamentos, principalmente sob a forma de políticas públicas
particulares no caso do Estado. (MULLER e SUREL, 2002 p. 47).

A matriz cognitiva e normativa tem como fundamento a construção ou


produção de um sentimento subjetivo de pertencimento responsável, na maioria das
vezes, por produzir uma identidade e de alimentar uma consciência coletiva quando
partilhada por um conjunto de atores.

A existência de uma matriz cognitiva e normativa é, por isso mesmo, fonte


de fronteiras, que constituem um grupo e/ou uma organização e/ou um
subsistema em si, mas ela está igualmente na origem dos modos de
articulação e de passagem destas “clausuras”, que permitem aos
defensores do paradigma ou do referencial pensar em relação a um
conjunto mais vasto. (MULLER e SUREL, 2002 p. 48).

Ao afirmar que as análises cognitivas rompem com as chamadas “razões para


agir”, razão econômica, razão técnica e razão burocrática, Massardier (2018),
apresenta três argumentos sobre viabilidade da força das ideias. No primeiro aponta
que os atores não são apenas agentes econômicos, ou seja, os ajustamentos entre
atores não conseguem ser corrigidos apenas mercado ou as condições dos preços.
Em segundo, a análise cognitiva permiti uma competição entre as representações de
mundo ao possibilitar que existem outros argumentos que fundamentam a “razão de
agir” dos atores sociais. As abordagens cognitivas demonstram que toda ideia é
uma construção social não concebida a priori. Tendo as ideias como ponto central de
análise é possível identificar diferentes noções, “referencial”, “fóruns e arenas”,
“coalização de causas”, “paradigma”, “narrativas” e “discurso”. Nos dedicaremos a
apresentar e discutir apenas as duas primeiras, “referencial” e “fóruns e arenas”.
O referencial confere, em primeiro lugar, a uma certa visão do lugar e do
papel do setor envolvido na sociedade. Segundo Muller (2018) a construção de uma
política pública significa, primeiramente, elaborar uma representação, que neste
caso, será uma imagem da realidade sobre a qual se quer intervir. Tendo como
referência está imagem cognitiva os atores constituem sua compreensão do
problema, confrontam suas soluções e assim conseguem definir suas propostas de
ações.
A perspectivas dos “referenciais”, declara Grisa (2010), examina as políticas
públicas como procedimentos pelos quais são construídas representações que uma
sociedade se faz para compreender e agir sobre o real. Neste caso, é possível
afirmar que o processo de construção de uma política pública segue alguns
procedimentos, o primeiro é a elaboração de um quadro sobre a realidade que se
pretende mudar. É a partir deste quadro que é feita a “leitura” do problema e as
possíveis ações em busca de soluções.
Essa “leitura “ de mundo, a partir das análises cognitivas, é denominado de
referencial de políticas públicas. Este processo de elaboração de um referencial, de
acordo com grisa (2010) existe um duplo mecanismo permanente de construção de
uma referencial, no primeiro momento é desvendar o obscurantismo da realidade a
partir de um processo de decodificação para em seguida iniciar uma operação de
recodificação para definir um programa de ação pública. Formado por um conjunto
de prescrições, o referencial de política pública, determina critérios de escolha e a
forma de designação de objetivos. Desse modo, o processo cognitivo possibilita
compreender a realidade de forma a condensar sua complexidade permitindo agir
sobre o plano real.

Outro exemplo: a definição de uma política de defesa nacional depende


estritamente da percepção de perigo e do lugar que pretendemos atribuir às
Forças Armadas no Estado. Considerando que se trata de defender as
fronteiras do país, de assumir uma determinada função nas negociações
mundiais ou de propagar uma mensagem revolucionária, a representação
do papel das forças armadas pode variar, e assim, o referencial de política
de defesa também. (MULLER, 2018 p. 55).

O referencial, enquanto um suporte repleto de significação, desenvolve quatro


pontos de compreensão do mundo que são distintos e, no entanto, mantém
relações: valores, normas, algoritmos e imagens.
Para Muller (2018), os valores são concepções elementares que se encontra
bem ou mal, o que é ambicionado e aquilo que deve ser recusado. Os valores são
responsáveis por desenvolverem um quadro da ação pública. O Autor cita como
exemplo o debate em torno dos temas sustentabilidade versus equidade. Para o
autor está presente a discussão em torno do “crescimento”, a preservação do meio
ambiente ou a “família”. As normas indicam as diferenças entre a realidade
percebida e a realidade pretendida. Neste caso, elas indicam os fundamentos da
ação para além dos valores. Já os algoritmos são as chamadas associações casuais
que permitem explicitar um conceito da ação. Neste caso, eles podem ser
apresentados sob a forma de “ se ... então. Um exemplo, “ se houver uma política
pública de fortalecimento da agricultura familiar aumentaremos a oferta de alimentos
no país”. As imagens são transmissoras tácitos nos valores, de normas ou de
algoritmos. São considerados atalhos cognitivos que expressam sentido de forma
imediata.
Dessa forma, a interpretação do lugar, em que se encontra, e o papel de uma
determinada sociedade (aqui também recortada por época), é denominado de
referencial de política pública. O referencial de política pública, segundo Muller
(2018) é decomposto em duas partes: referencial global e referencial setorial. A
relação entre os dos modos é identificada como relação global-setorial (RGS).
O referencial global, refere-se a um quadro geral de interpretação do mundo
da qual diferentes representações setoriais irão se alinhar e construir uma forma de
classificação que garanta uma hierarquização. Assim, o referencial global é formado
por um conjunto de valores fundamentais que sustentam as convicções básicas das
sociedades e das normas que estruturam a função do Estado e das políticas
públicas. Neste sentido, o referencial global estabelece a forma como uma
sociedade faz de sua relação com o mundo e de sua condição de agir sobre si
mesma através da ação pública. Por outro lado, é importante destacar que o
referencial global não expressa uma visão precisa do mundo, segundo Muller (2018)
ao contrário do que se poderia acreditar a partir de uma definição superficial, já que
os valores o integram são passiveis de questionamentos e conflitos.

O referencial global não é um consenso, mas ele baliza o campo intelectual


no qual se organiza os conflitos sociais. O conjunto dos valores e das
normas do referencial global forma um sistema hierarquizado, significando
que, em determinada época, certas normas serão priorizadas, em
detrimento a outras. Assim, o decorrer do século XX. (MULLER, 2018 P.
57).

O referencial setorial é uma representação do setor, da matéria ou profissão.


Sua primeira ação é demarcar os limites do setor em questão. Neste sentido, a
posição de um setor é o resultado do lugar que ocupa dentro da sociedade.
Segundo Grisa (2011), os referenciais de políticas públicas abrangem três
dimensões: a dimensão cognitiva, na qual os referenciais fornecem elementos de
interpretação casual dos problemas; a dimensão normativa, na medida que os
referenciais definem os valores que são necessários respeitar para o tratamento dos
problemas; e a dimensão instrumental, quando definem os princípios da ação. Neste
sentido, os referenciais podem se decompor em dois elementos, referencial global e
referencial setorial.
O referencial global relaciona-se a uma imagem geral de interpretação do
mundo, e assim ultrapassando os marcos de um domínio, de um setor e de uma
política. Ou seja, podemos identificar o referencial global como uma interpretação
que a sociedade faz do mundo em determinado período. É a partir desta
representação única que serão niveladas as diversas representações setoriais. Cabe
destacar que este processo não ocorre de forma determinista e mecânica, o
referencial global não deve ser considerado um sistema cognitivo e normativo único.
Na realidade podemos considerar o referencial global como um “sistema hierárquico
em permanente conflito” e sendo direcionado pelas ideias hegemônicas. Já o
referencial setorial da conta de um setor que pode ser descrito como um grupo de
problemas relacionados de forma mais ou menos institucional junto a certas
populações. Ao desenvolver uma visão de mundo, do lugar e sua função na
sociedade o referencial setorial possibilita um reconhecimento identitário para o
grupo. O referencial global e o referencial setorial, permanecem vinculados e ao
mesmo tempo tensionados por meio de atores, aqui denominados de mediadores.

1.5 A arquitetura dos fóruns e arenas e a disseminação das ideias.

Para Luiz (2018), a análise cognitiva política pública busca identificar os


atores presentes, seus fundamentos na ação coletiva, as estratégias e seus
resultados e, no âmbito das instituições, também identifica a influência das regras e
quadros mentais institucionais no comportamento dos atores envolvidos. No entanto,
essa construção analítica baseada de Jobert e Muller passou a receber diversas
críticas, em especial em relação ao mecanismo entre os dois níveis de referenciais,
global e setorial. Neste sentido, uma primeira contribuição vem de Jobert (1992) que
insere os conceitos de fóruns e arenas de política pública, e dessa forma dividindo
espacialmente as diferentes etapas do processo de produção de ideias.
Segundo Fouilleux (2011), a relação global/setorial (RGS) é passível de
suscitar uma abordagem excessivamente mecânica da mudança, com uma relação
casual circular, já que se a relação global/setorial muda, a política também se
modifica, mas se a política muda, a relação global/setorial acompanha tal mudança.
Neste sentido, argumenta a autora, que a relação global/setorial não contribui, de
forma satisfatória, para o processo de análise.

Para responder a essas críticas e compreender como se forma e evolui o


referencial global, Bruno Jobert (1992; 1994; 2004) desenvolveu uma
abordagem mais fina, fundada na noção de fóruns (e de arenas) das
políticas públicas, notadamente na obra intitulada Le tournant néolibéral (A
reorientação neoliberal), que coordenou em 1994.(FOUILLEUX, 2011 p.90).

Ao reconhecer os fóruns como espaços ou cenas de argumentação, onde as


diferentes representações em torno de uma política pública são anunciadas e
debatidas, Fouilleux (2011) também reconhece que essas representações são
acompanhadas por modelos e instrumentos capazes de analisa-las e avaliá-las. Já
as arenas, são ambientes institucionalizados onde se realizam as negociações
formais e se tomam as decisões de elaboração das políticas públicas. Ainda
segundo a autora, ao estabelecer essa distinção entre fórum e arena é possível
considerar o argumento de que os elementos centrais, em especial a distinção
gradativa de soluções “aceitáveis” para as políticas pública, não se praticam apenas
no momento do da negociação entre os atores “diretos” das políticas públicas, mas
também utilizam outros espaços distintos.
Dessa forma, os fóruns são considerados espaços por onde as ideias podem
ser produzidas, para isso é necessário a constituição de fóruns especializados. É
importante relembrar, que o conceito de fórum utilizado aqui denomina uma
coletividade mais ou menos homogênea de atores atuando no mesmo campo de
atividade. Como já mencionado anteriormente os fóruns pode ser divididos em duas
categorias; o fóruns responsáveis pela produção de ideias e o fórum de comunidade
de política pública, que tem como função a institucionalização de tais ideias.
Segundo Fouilleux (2011), é no ambiente do fórum de comunidade política pública
onde a política pública é concretamente concebida.

A fim de estudar a política setorial, vários fóruns de produção de ideias


devem ser identificados. Em primeiro lugar, alguns fóruns científicos que
reúnem pessoas do mundo acadêmico, usualmente agindo e interagindo
dentro dos limites disciplinares (economia, matemáticas, biologia, genética
etc.).Em segundo lugar, um fórum profissional setorial reúne os beneficiários
da política (por exemplo: agricultores para políticas agrícolas; maquinistas
de trem para políticas ferroviárias; famílias para políticas familiares e assim
por diante). Em terceiro lugar, outros fóruns especializados podem também
estar isolados, como o fórum ambiental/ ecológico. Este último pode
impulsionar questões ambientais para serem tratadas no debate da política
setorial. Em quarto lugar, o último tipo de fórum é aquele eleitoral (o fórum
político). Este aqui é um produtor de discurso com muita importância na
base das ideias, que podem ser elaboradas endogenamente ou importadas
de outros fóruns; o fio condutor da argumentação neste fórum é a conquista
do poder (FOUILLEUX, 2011 p.95).

O exercício de identificação dos tipos de fóruns de produção de ideias é o


primeiro passo para o desenvolvimento do nosso trabalho. Neste sentido, na seção
seguinte faremos o exercício de identificação dos fóruns de produção de ideias e
seus principais atores.
Cada fórum de produção de ideia tem como objetivo a definição de um
referencial cognitivo, para isso sua arquitetura interna é constituída por discussões e
debates. Este referencial cognitivo está relacionado ao ambiente de cada fórum.
Segundo Fouilleux (2011), cada fórum carrega sua característica de funcionamento.
Assim, no fórum cientifico o referencial cognitivo é um paradigma, já no fórum
profissional pode ser um modelo profissional/setorial exemplo o fórum da agricultura
familiar, no fórum político pode ser uma ideologia/plataforma. A autora também
destaca outras características.

Esses fóruns também diferem em muitas dimensões: continuidade versus


descontinuidade dos debates em jogo no fórum, ideias como subprodutos
diretos versus indiretos da dinâmica do fórum (diretos para cientistas, por
exemplo, cujo trabalho está dirigido à produção de ideias e esquemas
intelectuais, e indiretos para agricultores, que possuem certamente uma
ideia do que eles consideram seu interesse ou sua identidade, mas que
principalmente delegam a produção do discurso à sua elite intelectual — o
sindicato) (FOUILLEUX, 2011 p.95)

A partir de dinâmicas distintas cada fórum de produção de ideias constitui um


conjunto de ideias e representações hegemônicas no interior de seus respectivos
fóruns e dessa forma definindo os debates e garantindo uma estabilidade na relação
entre os seus membros. Dessa forma, cada fórum de produção de ideias elabora
representações dos seus membros e apresenta um referencial.

Assim, o fórum da agricultura familiar produz de forma permanente


representações sobre a própria categoria social e as políticas agrícolas e
apresenta um referencial que diz respeito a modelos de agricultura
(concepções sobre as práticas agrícolas e o agricultor familiar).
Similarmente, o fórum da segurança alimentar e nutricional produz de modo
constante representações sobre a fome e a segurança alimentar e
nutricional e apresenta um referencial concernente à questão alimentar e
nutricional. O fórum agroecológico também elabora de forma constante
representações sobre modelos de produção agrícola e agroecologia, e
apresenta um referencial concernente a modelos de desenvolvimento rural
alternativos ao convencional. O fórum científico produz suas ideias de modo
contínuo e organiza-se em torno de um referencial central do tipo
paradigmático. referenciais centrais. (GRISA, 2012 p. 60)
Em cada fórum, a busca pela definição do referencial cognitivo é expressa por
uma competição entre os seus membros, que segundo Fouilleux (2011) pode ser
analisado como um processo de tradução. Este processo de tradução é responsável
pela designação de um referencial cognitivo e de um porta-voz, que são
efetivamente reconhecidos pelos demais membros do fórum. Este reconhecimento é
dinâmico, já que é possivel que um referencial cognitivo e seu porta-voz possam
perde essa condição para outro referencial e porta-voz. No entanto, essa mudança é
realizada a partir de um processo de disputa, o que garante um mínimo de
estabilidade a dupla vencedora.

Entretanto, quando um referencial cognitivo é escolhido, os outros


consequentemente se tornam muito menos visíveis, o que por sua vez
diminui as chances de mudança no curto prazo. Um claro exemplo em
relação ao fórum profissional é o caso da agricultura orgânica. Por razões
filosóficas, econômicas, sociais e ambientais, este modelo de agricultura
recusa o uso de insumos químicos, mantém níveis baixos de animais por
hectare, usa um alto nível de trabalho humano etc. Tratando-se de um
modelo praticado por décadas por uma minoria dos agricultores, a
agricultura orgânica foi totalmente deixada de lado e silenciada pelo ideal
dominante da modernização intensiva da agricultura. Consequentemente,
os agricultores orgânicos não foram somente marginalizados pelos outros
membros do fórum agrícola, simplesmente foram ignorados pela vasta
maioria dos agricultores e pelos formuladores de políticas públicas (até um
período muito recente, nenhum formulador de políticas considerou a
agricultura orgânica como um modelo/objetivo possível para as políticas
agrícolas). (FOUILLEUX, 2011 p.96)

Para Grisa (2010) a consolidação de um referencial central não coíbe o


aparecimento de vozes divergentes que o recusam e desafiam. A disputa sempre
estará presente nos fóruns de produção de ideias, porém é possível a consolidação
de um porta voz e seu referencial.

A controvérsia é sempre presente nos fóruns de produção de ideias e ela


somente não ameaça a estabilidade do referencial quando os atores
dissidentes são marginais, frágeis na construção de aliados( internos e
externos ao fórum) e/ou não dispõem de recursos políticos, financeiros,
humanos e discursivos para colocar em questão o referencial dominante.
Um referencial central pode ser modificado ou substituído, por exemplo, no
momento de uma nova eleição ou surgimento de uma crise (econômica,
social, ambiental) no fórum de comunicação política; quando de uma eleição
sindical ou troca de direção no caso da agricultura familiar; ou de uma
“revolução cientifica” no fórum científico. (GRISA , 2010 p.89)

Podemos descrever que a definição do referencial e do porta-voz de um


fórum de produção de ideias é constituído por três etapas; a seleção, a aceitação e o
reconhecimento. A primeira, a seleção é o processo pelo qual os atores de um
determinado fórum admitem que os membros possuem condições de participar do
processo de escolha (seleção). Nesta etapa, a maioria dos atores de um fórum
devem aceitar que uma determinada dupla possa representá-los. Na terceira etapa,
é necessário que os atores de um fórum reconheçam o referencial cognitivo e o
porta-voz.

Por meio da construção de diferentes tipos de alianças, o processo


de tradução leva à designação de um referencial cognitivo e de um
porta-voz. No fim do processo, ambos são aceitos e reconhecidos pela
maioria dos membros do fórum. Eles podem perder seu lugar caso
outra dupla de referencial/porta-voz cognitivo apareça subitamente
como melhor adaptada, quando uma “revolução política” acontece no
fórum científico (KUHN, 1962) ou quando uma eleição ocorre no fórum
político, por exemplo.(FOUILLEUX, 2011 p.94).

Os fóruns são concebidos como espaços ou cenas de argumentação, onde as


representações em torno de uma política pública são anunciadas e debatidas.
Também são discutidos os modelos mais significativos para avaliar ou analisar essas
políticas públicas. Segundo Fouilleux (2011), esse modelo de divisão possibilita
insistir sobre a tese que os elementos importantes, em particular a seleção
progressiva de soluções “aceitáveis” para as políticas públicas, não se jogam
unicamente no momento da negociação entre atores “diretos” das políticas públicas,
mas bem a montante, em palcos bastante distintos. Dessa forma, é possível pensar
que o conteúdo das discussões anteriores e seus resultados condicionam também
as decisões tomadas.
Como podemos perceber, esta abordagem busca construir um sistema
analítico que seja capaz de estabelecer um vínculo entre ideias dinâmicas e
mudanças políticas. Para isso, compreende a política pública como um conjunto de
ideias institucionalizadas e que é possível reconstruir a trajetórias das ideias até a
sua transformação em política pública. Por outro lado, essa transformação também
pode ser vista como um momento de concretização das ideias.

Ao descrever o caminho das ideias desde o lócus de sua produção até a


sua institucionalização, o objetivo consiste em salientar que tal trajetória não
é apenas contínua, mas também corresponde a um processo específico de
seleção. Em todo este processo, as políticas públicas emergem, são
mantidas ou rejeitadas, apenas um pequeno número delas sendo finalmente
discutido nas mesas formais de negociação. (FOUILLEUX, 2011 p.93).

É importante destacar que o conceito de fórum utilizado pela autora tem o


sentido de denominar uma comunidade mais ou menos homogênea de atores
atuando a partir de regras e normas de funcionamento. Gerando assim forma de
interação interna, o que reflete diretamente nas condições em que as ideias serão
discutidas. Além do fórum de produção de ideias, já mencionado acima, é
necessário descrever o funcionamento do fórum de comunidade política. Segundo
Grisa (2012) o Fórum de comunidade de política pública é o espaço onde as ideias
são institucionalizadas tornando-se um instrumento de política pública. Esse
processo é realizado na medida em que as ideias dos diferentes fóruns de produção
de ideias chegam ao fórum de comunidades de política pública, estabelecendo o
trânsito das ideias entre os fóruns. Neste sentido, quando uma ideia é
institucionalizada no fórum de comunidades de políticas públicas ela reflete nos
fóruns de produção de ideias, influenciando e orientando o debate nesses espaços.
A composição do fórum de comunidade política é bem heterogênea, são os
representantes dos fóruns de produção de ideias além dos técnicos governamentais.
Segundo Grisa (2012), os técnicos governamentais exercem importantes ações no
interior do fórum de comunidade política pública, já que são responsáveis pela
importação, aglomeração, recombinação e adaptação das ideias que servem à
fabricação de políticas públicas, porém é importante destacar que eles são mais um
dos diferentes atores que compõem o fórum de comunidade política.
Por fim, voltamos ao conceito de arena, já mencionada anteriormente ela
pode ser descrita como o palco institucionalizado e com a competência de
elaboração de políticas públicas. De acordo com Grisa (2012), as regras do jogo
seguem basicamente na busca por uma forma de identificação da realidade social,
onde se possa estabelecer um “compromisso” entre as partes envolvidas nessa
política pública que venha a ser implementada. Esse compromisso é firmado entre o
fórum de comunidades de política pública e os respectivos fóruns de produção de
ideias. No entanto quando o compromisso é ameaçado ou quebrado, o fórum passa
por ajustes. O ambiente do fórum torna-se instável tendo como prioridade a
renegociação, esta fase é denominada de conjuntura crítica ou arena.

A vida de um fórum de comunidades de política pública é, assim, ritmada


pela alternância de fases de estabilidade e de conjunturas críticas,
constituindo dois tipos de dinâmicas das ideias: a) uma configuração
“fórum”, onde a controvérsia é colocada em latência e há a produção
rotineira da política pública, com mudanças marginais e incrementais: novas
ideias são institucionalizadas, mas não questionam a economia geral do
compromisso e; b) uma configuração “arena” (conjuntura crítica do fórum),
em que o compromisso é colocado “em xeque” e as controvérsias emergem
e ficam expostas. A instabilidade institucional pode traduzir-se em
mudanças de magnitudes maiores ou a criação de uma nova política. A
estabilidade é retomada quando há a renovação ou a criação de um novo
compromisso. (GRISA , 2010 p.92)
Para Grisa(2010), a crise em um fórum de comunidade política pode ter
inúmeras origens, a quebra de um compromisso por parte de um ator coletivo na
busca por crescer o seu poder; o ato de um ator de modificar o compromisso para
garantir a sua legitimidade; ou ainda com a chegada de um novo ator que passa a
reivindicar o direito de atuar na elaboração da política pública.

Capítulo II. O Pequeno Produtor Rural e o Sistema de Nacional de


Crédito Rural: Do medo ao endividamento.

2.1 Um breve histórico do Sistema Nacional de Crédito

1.
1 Os fóruns de produção de ideias e seus principais atores.

Neste capítulo apresentaremos os fóruns de produção de ideias e seus


principais membros, o nosso objetivo é analisar a dinâmica de funcionamento e suas
contribuições na constituição de políticas públicas para o setor da agricultura
familiar. É importante relembrar, que os fóruns de produção de ideias são espaços
onde os seus membros competem entre si na busca por ter seu referencial
reconhecido pelos demais pares e consequentemente se legitimado como porta-voz
do fórum em questão.
A seguir faremos uma descrição

o reconhecimentos de . Neste sentido a disputa se encerra quando a maioria


dos membros do fórum reconhecem a designação de um referencial cognitivo por
parte de um determinado membro do fórum. Nesse caso, este membro expressa o
“discurso” do fórum e consequentemente torna-se também o seu porta-voz. Outra
característica é a participação de um mesmo ator em dois ou mais fóruns de
produção de ideias. Segundo Grisa (2012), a participação em mais de um fórum de
produção de ideias, permite que este membro tenha suas ideias em diferentes
espaços.

É importante ressaltar que muitos atores sociais podem participar


concomitantemente de mais de um fórum de produção de ideias. Assim por
exemplo, um membro do fórum da agricultura familiar pode participar do
fórum de comunicação política, ou, um membro do fórum científico pode
participar do fórum de segurança alimentar e nutricional.(GRISA, 2012
p.60).

Capítulo 3
2 O FÓRUM DA AGRICULTURA FAMILIAR: AS DISPUTAS DAS ideias NA
CRIAÇÃO DO PROCERA E DO PRONAF.

Nesta primeira parte deste capítulo faremos uma rápida introdução dos dois
programas de crédito rural, O Programa de Crédito Especial para Reforma Agrária
(PROCERA) e o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar
(PRONAF).

2.1 A consolidação do fórum da agricultura familiar

O fim do modelo adotado pela ditadura militar para agricultura veio


acompanhado de uma constatação por parte dos diferentes atores presentes no
campo brasileiro, à necessidade de políticas públicas direcionadas aos
trabalhadores rurais. Empenhados em garantir conquistas reais para as suas bases
sociais, as organizações do campo ampliaram a dimensão das suas ações atuando
em diferentes frentes. Um exemplo importante desta ampliação da luta foi a
participação de movimentos sociais, sindicatos e Ongs na Constituição Federal de
1988, inclusive com lideranças dessas organizações atuando como deputados
constituintes.
Os anos de 1980 apresentaram uma nova etapa do capitalismo mundial, o
esgotamento dos projetos desenvolvimentistas dos países periféricos. As nações
avançadas chegaram ao fim do ciclo virtuoso com o declínio das taxas de
crescimento. A Organização dos Países Produtores de Petróleo (OPEP) interviram
no mercado internacional de combustível realizando alterações de preços,
impactando negativamente os países importadores de petróleo como o Brasil.
Legitimados pelas nações centrais, em especial os EUA, os organismos financeiros
multilaterais impuseram medidas de abertura de mercados e de desregulamentação
econômica ao redor do globo, fragilizando ainda mais as economias dos países
periféricos. Neste sentido, o referencial global se apresentou como consolidação de
uma ordem internacional onde a condição periférica do Brasil e as novas diretrizes
dos organismos financeiros multilaterais impuseram o fim do Estado
desenvolvimentista e a abertura do mercado nacional, inclusive o da agricultura. O
referencial setorial apresentou a reorganização dos trabalhadores rurais a partir do
processo de redemocratização do país e da grave crise econômica vivida pela
população do campo.
2.2 A força das ideias na construção das políticas públicas para o agricultor
rural: PROCERA e PRONAF

O Programa de Crédito Especial para Reforma Agrária (PROCERA) foi criado


pelo Conselho Monetário Nacional em 1985, através do decreto 91.766 (10.10.1985)
e ganhou dotação orçamentária e os marcos regulatórios no ano de 1987. Neste
mesmo ano, o Banco Nacional de Desenvolvimento Social e Econômico (BNDES)
criou as comissões gestoras nos estados, instituições responsáveis pela
implementação do programa. Coube ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária (INCRA) a coordenação do programa e indicar quais os projetos de
assentamento que receberiam o crédito do PROCERA. Com a mudança de
Governo, foi eleito Fernando Collor de Melo, com um governo marcado pela
tentativa de implementação da agenda neoliberal e por casos de corrupção. Durante
o Governo Collor houve um aumento da repressão aos movimentos sociais, em
especial, o MST. A relação entre MST e os diferentes governos durante o período de
vigência do Procera será analisado mais a frente.
O Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) foi
criado em 1996, cuja institucionalização ocorreu através do Decreto Presidencial nº
1.946, de 28 de agoste de 1996. O programa surgiu com o objetivo de apoiar os
agricultores familiares, desde então vem ocupando a condição de principal política
pública para agricultura familiar. O Pronaf foi implementado em sua totalidade a
partir de 1997, período em que as ações relativas ao crédito de custeio foram
implementadas e com a ampliação do programa para as áreas de investimentos,
infraestrutura e serviços municipais, capacitação e pesquisa. Com mais de duas
décadas de existência, o programa passou por mudanças que tinham como objetivo
alcançar a maior quantidade de segmentos que compõem a diversidade que
representa a categoria da agricultura familiar.
O primeiro governo civil, pós-ditadura militar, eleito de forma indireta, foi
responsável pela apresentação do Plano Nacional de Reforma Agrária. O governo
José Sarney (1985-1990) marcado pela grave crise econômica, inflação dos preços
e a defasagem dos salários, foi palco de grandes mobilizações populares. Em
relação ao campo, os novos movimentos sociais e o sindicalismo rural avançaram
na construção de jornadas de lutas unificadas. O anúncio do plano nacional de
reforma agrária gerou uma grande inquietação, de um lado latifundiários e grandes
produtores rurais contrários ao plano, e de outro, a avaliação por parte dos
movimentos sociais, em especial o MST, que o plano continha metas inatingíveis.
Integrante do fórum da agricultura familiar, o MST potencializou as ocupações
de terra a partir de um calendário unificado. Mobilizando milhares de famílias, essas
ocupações simultâneas ganharam uma ampla cobertura pela imprensa fortalecendo
a dimensão nacional deste movimento e assim ganhando legitimidade para
representar os trabalhadores rurais sem terra. Enquanto a CONTAG passava por
uma mudança em relação sua forma de se relacionar com o Estado, como veremos
mais a frente, o MST - desde a sua criação - estabeleceu como um princípio
organizativo a reivindicação direta através de mobilizações e enfrentamentos
estabelecendo canais de negociação com as autoridades governamentais. Com o
aumento dos assentamentos rurais, resultado direto da pressão das organizações
do campo, o MST passa a incorporar a “pauta dos assentados”, ou seja, garantir as
condições para que o assentado tivesse as condições para produzir. Legitimado
pelas grandes marchas e ocupações de prédios públicos e contando com apoio
popular, o MST passou a hegemonizar o fórum da agricultura familiar ao trazer um
tema comum a boa parte dos seus integrantes, o crédito agrícola. No próximo
capítulo iremos analisar a participação do MST e da CONTAG no fórum da
agricultura e o debate em torno do crédito agrícola como uma ideia.

Quadro I
Comparativo dos programas PROCERA e PRONA F
PROCERA PRONAF
Ano de criação 30/01/1986 28/06/1996
Agricultores
Público-alvo Assentados da reforma definidos nos grupos de
Prioritário agrária financiamento.

Aumentar a produção e a Financiamento;


produtividade agrícolas dos custeio da safra e da
assentados da reforma agrária. atividade pecuária ou a
Objetivos investimentos: compra de
estabelecidos na máquinas, equipamentos
política pública agrícolas, bens de
produção.

Assentados da reforma CONTAG


Atores e agrária, MST e demais movimento
influências sociais de luta pela terra.
Cadastro da
Declaração de Aptidão
(DAP) ao Programa
Ser assentado da reforma Nacional de
agrária e aprovado pelo INCRA. Fortalecimento da
Principais Agricultura Familiar
condicionalidades (Pronaf). Os
dos programas financiamentos estão
vinculados à capacidade
produtiva de cada
segmento.

Ideias e Crédito subsidiado para a Financiamento da


influências que produção dos assentados. produção para inserção
orientaram a no mercado
formulação do
programa
Fonte: (VERGES, 2011); (SILVA, SOUSA, 2012)

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