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Coleção Agroecologia e políticas públicas:

subsídios para a incidência nos municípios

CADERNO 1

Estado e
Políticas
Públicas
A Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) estimula a livre circulação deste texto. Sempre que for necessá-
ria a sua reprodução total ou parcial, solicitamos que a coleção Agroecologia e políticas públicas: subsídios para
a incidência nos municípios. Caderno 1 - Estado e Políticas Públicas seja citada como fonte. A versão eletrônica
deste documento está disponível no site www.agroecologia.org.br, onde também se encontram materiais com-
plementares sobre a iniciativa Agroecologia nos Municípios.

Agroecologia e políticas públicas: subsídios para a incidência nos municípios


Caderno 1 - Estado e Políticas Públicas

Organização Coordenação editorial Revisão de texto


André Biazoti Flavia Londres Hugo Maciel
Emilia Jomalinis Viviane Brochardt
Flavia Londres Projeto gráfico,
Revisão técnica capa e diagramação
Helena Lopes
André Biazoti Raro de Oliveira
Marcelo Almeida
Flavia Londres Antonio Dias
Morgana Maselli
Sarah Moreira Helena Lopes
Ilustrações
Viviane Brochardt Islândia Bezerra
Fernando Siniscalchi
Laeticia Jalil
Pesquisa, Maria Emília Pacheco Tiragem
redação e edição Morgana Maselli 1.600 exemplares
Sarah Moreira Viviane Brochardt
Emilia Jomalinis
Marcelo Almeida

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Moreira, Sarah
Caderno 1 : Estado e políticas públicas / Sarah Moreira, Emilia Jomalinis, Marcelo
Almeida ; coordenação Flavia Londres, Viviane Brochardt ; ilustração Fernando Siniscalchi. --
Rio de Janeiro : AS-PTA Agricultura Familiar e Agroecologia, 2021. -- (Coleção agroecologia
e políticas públicas : subsídios para a incidência nos municípios ; 1)

Vários organizadores
Bibliografia
ISBN 978-65-89039-08-2

1. Agricultura familiar 2. Agroecologia 3. Articulação Nacional de Agroecologia (ANA)


4. Estado 5. Municípios - Assistência à população 6. Participação social 7. Políticas públicas
I. Jomalinis, Emilia. II. Almeida, Marcelo. III. Londres, Flavia. IV. Brochardt, Viviane. V.
Siniscalchi, Fernando. VI. Título. VII. Série.

21-91862 CDD-630

Índices para catálogo sistemático:


1. Articulação Nacional de Agroecologia : Agricultura familiar 630

Maria Alice Ferreira - Bibliotecária - CRB-8/7964


Coleção
Agroecologia e
políticas públicas:
subsídios para
a incidência nos
municípios

CADERNO 1

Estado e
Políticas
Públicas
Sumário
Apresentação .................................................................................................................. 5

1. Introdução: um pouco de teoria do Estado............................................ 6

2. O funcionamento do Estado: entes e Poderes....................................16

3. As políticas públicas................................................................................................19

4. O enfoque agroecológico nas políticas públicas...............................26

Referências .................................................................................................................... 30
Apresentação
Esta coleção foi elaborada no âmbito
da iniciativa Agroecologia nos Municí-
pios, realizada pela Articulação Nacional
de Agroecologia (ANA) com o objeti-
vo de promover, apoiar e sistematizar
processos de mobilização e incidência
política no nível municipal, visando à
criação e ao aprimoramento de políti-
cas públicas, programas, projetos, leis e
experiências municipais importantes de
apoio à agricultura familiar e à seguran-
ça alimentar e nutricional e de fortaleci-
mento da agroecologia.
Num contexto de retrocessos e desmontes de importantes políticas conquistadas para a cons-
trução de sistemas alimentares saudáveis e sustentáveis, a presente iniciativa nos provoca, en-
quanto movimento agroecológico, a incidir sobre as políticas municipais desde os territórios.
Nós, da Articulação Nacional de Agroecologia, acreditamos que a construção das alternativas
não virá de cima para baixo, mas, sim, da luta e da criatividade dos movimentos populares e da
sociedade civil organizada em redes locais nas diversas regiões do Brasil. Nossa força de trans-
formação está, e sempre esteve, nos territórios.
Nossa intenção é compartilhar neste material alguns conceitos, percepções, ideias e reflexões
sobre as políticas públicas construídas sob a perspectiva da agroecologia e dos sistemas alimen-
tares, buscando, com isso, apoiar as ações nos municípios. Assim, para contribuir com a reflexão
sobre a relevância da participação popular na construção de políticas com enfoque agroeco-
lógico, organizamos as informações e conteúdos em quatro cadernos. Neste volume, falamos
sobre a Estrutura do Estado e o conceito de políticas públicas. Os outros três cadernos abordam
A participação social e popular nos processos de construção e controle social das políticas públicas,
bem como os caminhos para dialogar com os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário; As possi-
bilidades de participação social na definição, monitoramento e execução do orçamento público; e
O direito à comunicação e ao acesso a informações públicas.

Boa leitura!
Articulação Nacional de Agroecologia

Agroecologia e políticas públicas: subsídios para a incidência nos municípios 5


1. Introdução: um
pouco de teoria do Estado

P ara incidir na construção de polí-


ticas públicas a partir da perspectiva
da agroecologia, consideramos que é muito
e LGBTQIAP+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais,
Trans, Queer, Intersexuais, Assexuais, Panse-
xuais e (+) outros). Vale lembrar que a socie-
importante trazer alguns elementos básicos dade impõe ainda uma série de preconceitos
que são determinantes para refletirmos sobre geracionais, com os adultos no centro do lu-
como nossa sociedade se organiza e, conse- gar de decisão e controle da vida.
quentemente, como o Estado se estrutura. Essas mesmas disputas e lógicas de orga-
Com isso, temos a intenção de apresen- nização da sociedade influenciam também a
tar algumas reflexões que apontam como configuração dos diferentes sistemas alimen-
as constantes disputas de ideologias, de va- tares. No Brasil, um sistema hegemônico que
lores, de saberes e de modos de viver pre- expressa os mais diferentes tipos de opressão,
sentes em nossa sociedade se expressam na violência e destruição (dos territórios, da na-
conformação dos três Poderes que organi- tureza e da saúde das pessoas) é o agronegó-
zam o Estado brasileiro – Executivo, Legis- cio.1 É esse sistema alimentar de produção in-
lativo e Judiciário. dustrial que determina os rumos das políticas
A construção social, política e econômica públicas e que domina também os processos
brasileira é profundamente marcada pela co- econômicos da agricultura atual. O agronegó-
lonização euro-cristã, especialmente a portu- cio é a “Casa Grande” dos dias atuais!
guesa, pela escravidão e pelo genocídio e et- Mas, se por um lado, temos a consolida-
nocídio dos povos indígenas e negros. Além ção do agronegócio enquanto modelo domi-
do colonialismo, os efeitos desses outros sis-
temas de opressão que operam de forma con-
jugada em nossa sociedade — o capitalismo, 1 Consideramos aqui o agronegócio como um “[…] sistema que articula
o latifúndio, as indústrias química, metalúrgica e de biotecnologia, o capi-
o patriarcado e o racismo — se expressam em tal financeiro e o mercado (Fernandes e Welch, 2008), com fortes bases
de apoio no aparato político-institucional e também no campo científico e
diferentes formas de subalternização de cor- tecnológico. Esse sistema ampliou a monocultura e aumentou a concentra-
ção de terras, de renda e de poder político dos grandes produtores. Elevou
pos e saberes, como na violência e exploração também a intensidade do trabalho, a migração campo–cidade e o desem-
prego rural. Por sua vez, a apropriação dos frutos dessa produtividade
imposta às mulheres e na discriminação con- reverteu no aumento dos lucros capitalistas para os grandes proprietários
rurais e para as multinacionais envolvidas.” (PORTO; MILANEZ, 2009 apud
tra as populações consideradas não brancas CALDART et al., 2012, p. 89).

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nante de agricultura em nossa sociedade, por tintos segmentos sociais e, de forma muito
outro lado, vemos, em distintos territórios do expressiva, das juventudes.
país, a construção de propostas sustentáveis Nesses termos, é importante considerar
de sistemas alimentares, que trazem a agroe- qual o papel do Estado na reprodução e for-
cologia como estratégia de enfrentamento ao talecimento das desigualdades. Compreende-
ideário da agricultura capitalista. São inúme- mos o Estado como resultado de um processo
ras as iniciativas que compartilham valores e de construção social que expressa as diferen-
princípios baseados na solidariedade, na sus- tes desigualdades sociais e disputas políticas
tentabilidade, na justiça social, na democra- que existem na sociedade.
cia econômica e, sobretudo, no diálogo entre Segundo a concepção de Gramsci (1987),
saberes populares e acadêmicos, que por sua o Estado seria a soma da sociedade política
vez oportunizam a vez e a voz dos mais dis- — instância repressiva e coercitiva do Esta-

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do — com a sociedade civil — que luta por da sua atuação institucional e do seu aparato
inserção econômica, política (e político-ins- normativo e regulador, o Estado perpetua as
titucional) e cultural. A busca por hegemo- desigualdades e as iniquidades no país ao lon-
nia se dá através de uma luta constante entre go das décadas.
diferentes grupos sociais, onde quem tem Embora o Estado, em um regime demo-
poder consegue que seus problemas e ques- crático, se coloque em função de um grupo
tões sejam considerados como prioritários. social em detrimento de outros, essa estru-
Nessas disputas, vemos que os grupos subal- tura não é impenetrável. Ou seja, apresenta
ternizados e historicamente marginalizados fraturas, fissuras e brechas que possibilitam
da sociedade seguem sem ser ouvidos pelo a pressão social e a incidência popular. Uma
Estado no complexo processo de construir vez sendo possível a sociedade se inserir nos
e implementar políticas públicas. Podem-se processos de construção política, também é
citar como exemplos os povos originários possível atuar na criação, implementação e
(das mais diferentes etnias), quilombolas, regulamentação das políticas públicas e, as-
povos e comunidades tradicionais, pessoas sim, garantir e efetivar os direitos humanos.
que são consideradas pobres (conforme sua Nesse sentido, tanto o Estado como as po-
renda), agricultoras e agricultores, pessoas líticas públicas devem ser percebidos como
em condição de rua, mulheres (brancas e territórios em disputa. E, em se tratando de
não brancas, sendo as mulheres negras as sistemas alimentares, estamos do lado daque-
que menos participam), jovens (especial- las/es que estão a favor dos povos dos cam-
mente negras e negros) e outros segmentos pos, das florestas, das águas, das cidades e das
sociais. Ao serem considerados, estes grupos periferias urbanas, capazes de construir e/ou
são incluídos como “público-alvo” e são vis- fortalecer sistemas alimentares sustentáveis e
tos apenas como “beneficiários”, e não como saudáveis. Uma luta de resistência — para que
titulares de direitos e, menos ainda, como os direitos conquistados com muita pressão
sujeitos das políticas. popular não sejam perdidos. E uma luta de
Nessa perspectiva, é possível localizar esperança — para a construção de uma socie-
o Estado brasileiro como sendo um espaço dade justa, inclusiva e igualitária.
institucional que, desde a sua concepção,
atua na consolidação das lógicas capitalista,
colonial, patriarcal e racista, já que ao longo
dos anos atua de forma eficiente no fortale-
cimento das classes dominantes e na desor-
ganização das classes dominadas. Para isso, o
Estado lança mão dos instrumentos que es-
tão à sua disposição, que vão desde o uso da
força até a criação e implementação de leis,
decretos, normas e políticas públicas. A partir

8 Estado e Políticas Públicas


O que é
colonialidade?
Segundo Aníbal Quijano (1991), a colo-
nialidade pode ser pensada como um
fenômeno histórico e cultural que se
estrutura em relações de dominação, de
exploração e de conflito na disputa por
âmbitos básicos da existência humana.
A colonialidade impõe saberes, práticas,
formas de organização (de dominação
e de resistência) a partir de um padrão
capitalista eurocentrado e global.

Considerar a colonialidade do poder diz


respeito a perceber como as relações de
dominação, de exploração e de conflito
marcadas pelo gênero, pela raça e pela
classe são impostas pelos países do Nor-
te aos países do Sul global.

Em nosso cotidiano, isso se expressa,


por exemplo, por meio do ensino da
História e das Ciências, por meio de
referências a autores majoritariamen-
te homens, brancos, europeus ou dos
Estados Unidos, desconsiderando a
legitimidade dos conhecimentos e sa-
beres dos povos indígenas, negros e
quilombolas.

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O que é o racismo? impõe a elas tanto a hipersexua-
lização quanto a naturalização do
lugar da empregada doméstica,
“Podemos dizer que o racismo é uma forma siste-
colocando a mulher negra como
mática de discriminação que tem a raça como fun-
a grande excluída da moderniza-
damento, e que se manifesta por meio de práticas,
ção conservadora.
conscientes ou inconscientes, que culminam em
desvantagens ou privilégios para indivíduos, a de-
Tal racismo (e seu cruzamento
pender do grupo racial ao qual pertencem. Embora
com o machismo) foi explicita-
haja relação entre os conceitos, o racismo difere do
do pela pesquisa “Insegurança
preconceito racial e da discriminação racial. O pre-
Alimentar e Covid-19 no Bra-
conceito racial é o juízo baseado em estereótipos
sil”,2 realizada pela Rede Brasilei-
acerca de indivíduos que pertencem a um determi-
ra de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar
nado grupo racializado, e que pode ou não resultar
e Nutricional (Rede PENSSAN, 2021). Antes da inves-
em práticas discriminatórias. […] A discriminação
tigação feita pela Rede PENSSAN, a Pesquisa de Or-
racial, por sua vez, é a atribuição de tratamento di-
çamentos Familiares (POF), realizada pelo IBGE em
ferenciado a membros de grupos racialmente identi-
2017-2018, já indicava uma inflexão na redução da
ficados.” (ALMEIDA, 2019, p. 25)
fome e da insegurança alimentar, também mostran-
do a maior prevalência entre famílias chefiadas por
Olhando para a realidade do racismo no nosso país,
pessoas pretas e pardas ou por mulheres. Mais re-
Lélia Gonzalez (1983) o define como uma neurose
centemente, outra pesquisa reafirma que as famílias
cultural brasileira, que oculta conflitos e internaliza a
mais vulneráveis são as que têm como responsável
“superioridade” do colonizador, sendo reforçada com
pessoas de raça/cor da pele preta ou parda, ou mu-
a falsa ideia de que vivemos em uma “democracia
lheres, fator que, somado ao desemprego e à baixa
racial”, onde todas/os teriam as mesmas oportunida-
renda desses grupos, aumenta as chances de inse-
des e brancas/os e negras/os vivessem em harmonia.
gurança alimentar e fome (IBGE, 2020).

Silvio Almeida (2019) defende que o racismo é sem-


IMPORTANTE SABER!
pre estrutural, ou seja, é um elemento que integra
No Brasil, o racismo foi tipificado como crime ina-
a organização econômica e política da sociedade;
fiançável e imprescritível pela Lei n. 7.716, de 1989, ou
mesmo o racismo nas relações interpessoais ex-
seja, quem praticou pode ser punido independente-
pressa algo que está embrenhado profundamente
mente de quando cometeu o crime. O crime de ra-
na sociedade. E, por isso, seria impossível entender
cismo se configura, por exemplo, quando, por razões
nossa sociedade — e as desigualdades que existem
raciais, alguém recusa ou impede o acesso de uma
nela — sem levar em consideração os conceitos de
pessoa a estabelecimentos comerciais e ambientes
raça e racismo.
públicos, bem como o uso de entradas sociais, e tam-
bém quando nega um emprego ou uma promoção
Lélia Gonzalez (1983) e Sueli Carneiro (2011) denun-
no emprego, entre outras práticas.
ciam o sistema racista-patriarcal, mostrando que a
vivência do racismo é diferenciada na vida das mu-
lheres, que sentem ainda o peso do sexismo, que 2 http://olheparaafome.com.br/VIGISAN_Inseguranca_alimentar.pdf.

10 Estado e Políticas Públicas


O que é patriarcado? à comercialização, de autonomia na decisão sobre a
produção nas casas, nos agrossistemas, nas proprie-
dades, nas comunidades e nos territórios, pois ain-
O patriarcado é uma estrutura da sociedade em que
da há quem considere que isso é “coisa de homem”.
os homens detêm o poder, podendo ser visto como
No entanto, vale ressaltar que a luta das mulheres
sinônimo de “dominação masculina” ou de opres-
tem imposto algumas fissuras nessa estrutura, com
são das mulheres. Antes se falava dessa dominação
a criação de programas como a documentação das
como “subordinação” ou “sujeição” das mulheres
trabalhadoras rurais e o apoio e fomento à organi-
(DELPHY, 2009, p. 173).
zação produtiva das mulheres; a garantia de per-
centuais mínimos de compras de mulheres, como
Vale citar uma reflexão de Vandana Shiva (1998),
no Programa de Aquisição de Alimentos (PAA); e os
que afirma que: “O mundo patriarcal considera o ho-
programas de enfrentamento à violência contra as
mem como a medida de todo o valor e não admite
mulheres do campo, das águas e das florestas, com
a diversidade, só a hierarquia. Trata a mulher como
ações como as Unidades Móveis para atendimento
desigual e inferior porque é diferente. Não considera
a mulheres em situação de violência. No entanto, o
intrinsecamente valiosa a diversidade e a natureza
contexto de extinção de tais conquistas nos mostra,
em si mesma, só sua exploração comercial em bus-
como diz Simone de Beauvoir: “Nunca se esqueça
ca de um benefício econômico, e assim lhe confere
que basta uma crise econômica ou religiosa para
valor. […] a destruição da diversidade e a criação de
que os direitos das mulheres sejam questionados.
monocultivos se convertem em um imperativo para
Esses direitos não são permanentes. Você terá que
o patriarcado capitalista”.3
manter-se vigilante por toda a sua vida”.

Uma das formas pelas quais o patriarcado se ex-


pressa no nosso dia a dia é na injusta divisão sexual
do trabalho. As mulheres são excluídas dos espa-
ços de representação política, pois é imposto a
elas o lugar do privado, da casa, dos cuidados com
as/os filhas/os (como se isso fosse responsabilida-
de apenas delas!). Sendo assim, as políticas públicas
são pensadas a partir da lógica masculina, branca,
enquanto questões relevantes para as mulheres
não são consideradas. A violência patriarcal tam-
bém é sentida na falta de crédito, de acesso à terra e 3 Tradução livre.

Agroecologia e políticas públicas: subsídios para a incidência nos municípios 11


Por que afirmamos que
“sem feminismo, não há agroecologia”?
Feminismo é teoria, movimento e prática política que rania e segurança alimentar e nutricional (SSAN) e a
reflete e luta por igualdade entre homens e mulheres, conservação da agrobiodiversidade. Nessa perspec-
que questiona as desigualdades que comprometem as tiva, deve-se reconhecer ainda o papel das mulheres
liberdades e autonomias através da limitação dos “pa- como construtoras de conhecimentos e portadoras
péis” e dos trabalhos das mulheres aos espaços domés- de saberes e como sujeitos que desenvolvem traba-
ticos e às tarefas reprodutivas, dos cuidados, fazendo lhos fundamentais para a reprodução da agroecologia
com que lugares como a política sejam considerados e da sustentabilidade da vida.
apenas masculinos.
A partir dos acúmulos e lutas do movimento femi-
O feminismo é um movimento social, um vir a ser pon- nista e do Grupo de Trabalho (GT) Mulheres da ANA,
to de encontro de diferentes vertentes. No movimento afirmamos que o mundo pelo qual o feminismo e a
agroecológico estão presentes os feminismos negros, agroecologia lutam só será possível com a autonomia
os ecofeminismos, os feminismos lésbicos, o feminismo das mulheres sobre suas vidas, seus corpos, seu tra-
camponês popular, o feminismo comunitário, o femi- balho, sem ameaças cotidianas de violência nas casas,
nismo socialista. Estes feminismos são processos de or- nas ruas, nos roçados, nas redes e nos movimentos.
ganização, reflexão e ação política; movimentos sociais As mulheres estão ressignificando a agroecologia, pois
que, ao mesmo tempo que se constituem como teoria trazem não só os sentidos da igualdade na dimensão
crítica da sociedade, se posicionam no questionamento social da agroecologia, mas ampliam os sentidos da
e enfrentamento ao patriarcado, à injusta divisão sexual economia com as categorias da economia feminista.
do trabalho, ao racismo, à LGBTQIAP+fobia, na cons- A luta feminista na construção da agroecologia traz a
trução de uma sociedade justa e igualitária, como nos potência das lutas emancipatórias!
mostra Celia Amorós (2000).
Reforçamos que as práticas agroecológicas desenvol-
Os feminismos são as lutas das mulheres para que todas vidas pelas mulheres, com a transmissão ancestral dos
as pessoas sejam reconhecidas como sujeitos plenos de conhecimentos, são hoje a grande potência questio-
direitos e que possam ser livres para viver como dese- nadora e transformadora do sistema, pois guardam
jam, possam ser autônomas, fazer suas escolhas, tomar em si as chaves para a reprodução da vida no sentido
suas decisões sobre suas vidas e seus corpos, sem se- pleno: no cuidado com as sementes, com os peque-
rem julgadas, coagidas ou agredidas por ninguém. nos animais, com o manejo e preservação das espé-
cies, com a reprodução e cuidado da natureza. E enfa-
A Articulação Nacional de Agroecologia acredita que tizamos: a economia do cuidado é incompatível com a
o feminismo e a agroecologia fazem parte da cons- economia capitalista!
trução de um mesmo projeto de transformação da
sociedade. Um projeto que garanta a soberania dos Portanto, as mulheres precisam ser reconhecidas como
povos sobre seus territórios e promova a produção e centrais na construção da agroecologia: é fundamen-
o consumo de alimentos saudáveis, a partir do uso e tal que suas realidades, anseios, concepções e contri-
manejo sustentável dos agroecossistemas, ao mesmo buições sejam consideradas. Por isso, as mulheres da
tempo que reconheça o conhecimento, o trabalho e a agroecologia afirmam “Somos parte fundamental dessa
contribuição das mulheres para a economia, a sobe- História e dessa Memória!”.

12 Estado e Políticas Públicas


O que é o movimento LGBTQIAP+?

Uma das lutas dos movimentos LGBTQIAP+ tem que foram designadas como do sexo masculino e que
sido o questionamento à imposição da heteronor- adotam formas de expressão de gênero feminino,
matividade (a ideia de que todo mundo só pode sem necessariamente o desejo de mudar suas carac-
amar e se relacionar com uma pessoa do “sexo terísticas do sexo atribuído em seu nascimento)
oposto”) e como isso tem invisibilizado e violentado
tantas pessoas que não se reconhecem nesse lugar, Q = QUEER (todas as orientações sexuais; tem rela-
que não são felizes por não poderem expressar seus ção com todo o coletivo de diversidades)
sentimentos e desejos e ao mesmo tempo sofrem
diferentes tipos de violência e discriminação. I = INTERSEX (se autodefinem dessa forma pessoas
que apresentam características sexuais que não se
Acreditamos que a agroecologia enquanto modo de encaixam nas noções socialmente estabelecidas de
vida, que deseja um mundo com respeito, igualdade sexo feminino e masculino, seja por não desenvolve-
e justiça, precisa se somar a essa luta e afirmar coleti- rem nenhuma das duas características, seja por ma-
vamente que “toda forma de amor vale a pena”. nifestarem uma combinação de ambas)

VOCÊ SABE O QUE SIGNIFICA A = ASSEXUAL (não sentem atração sexual por qual-
A SIGLA LGBTQIAP+ ? quer pessoa)

L = LÉSBICA (mulheres que sentem atração afetiva/ P = PANSEXUAL (pessoas que sentem atração afeti-
sexual pelo mesmo gênero, ou seja, outras mulheres) va/sexual por homens e
por mulheres cisgênero
G = GAY (homens que sentem atração afetiva/sexual e transgênero, não-bi-
pelo mesmo gênero, ou seja, outros homens) nárias)
+ = abarca todas aque-
B = BISSEXUAL (pessoas que sentem atração afeti- las identidades de gê-
va/sexual por mulheres e por homens) nero que não estão
contempladas nas ou-
T = TRANS/TRANSGÊNERO e TRAVESTI (“transgêne- tras letras da sigla
ro” é um termo mais amplo que se refere à identidade
de gênero daquelas pessoas que não se identificam, 4 A cisgeneridade é a con-
em diferentes graus, com o gênero com o qual foram dição da pessoa cuja identida-
de de gênero corresponde ao
designadas ao nascer. Também pode ser uma pessoa gênero que lhe foi atribuído
não-binária, que se compreende além da divisão “ho- no nascimento, a exemplo de
alguém que se identifica como
mem e mulher” e seria o oposto da cisgeneridade.4 Já mulher e assim foi designada
“travesti” é uma identidade feminina ou de um terceiro quando nasceu. O termo “cis-
gênero” seria o oposto da pala-
gênero, usado na América Latina para aquelas pessoas vra “transgênero”.

Agroecologia e políticas públicas: subsídios para a incidência nos municípios 13


O que são as questões geracionais?

Questões geracionais estão vinculadas aos dife- reconhecem os desejos das/os filhas/os, projetando
rentes períodos da vida e aos sujeitos (crianças, suas vidas para sair do campo, criando obstáculos
jovens, adultas/os, idosas/os), e marcam situações para que estas/es tenham seus espaços de criação,
de desigualdades, em que adultas/os são consi- produção e experimentação próprios.
deradas/os ativas/os e tomadoras/es de decisões,
enquanto crianças, jovens e idosas/os são vistas/os A sucessão geracional no campo tem sido uma
como dependentes e incapazes de tomarem decisões grande preocupação, pois o meio rural está enve-
ou de se posicionarem. “Geração” é um conceito que lhecendo e as juventudes estão deixando o cam-
está, então, relacionado às idades e às diferentes vi- po para estudar e trabalhar nas cidades. É preciso
vências que se tem em cada um dos períodos da vida. dar condições de vida com qualidade no campo
para que as juventudes, em toda sua diversidade,
A vida das juventudes no campo é de grandes desa- tenham acesso à terra e às políticas públicas e pos-
fios e enfrentamentos, pois há uma relação autoritá- sam seguir trabalhando, produzindo alimentos sau-
ria de dominação dos mais velhos sobre as/os jovens. dáveis, gerando renda e vivendo bem junto às/aos
Muitas vezes, os pais e as mães, e a comunidade, não suas/seus amigas/os e familiares.

A partir do IV Encontro
Nacional de Agroecologia (IV ENA),
a ANA tem afirmado que:

SEM JUVENTUDES,
NÃO HÁ
AGROECOLOGIA

SE TEM
SE TEM
RACISMO, NÃO TEM
LGBTQIAP+FOBIA,
AGROECOLOGIA NÃO TEM
AGROECOLOGIA

14 Estado e Políticas Públicas


Para aprofundar essas discussões:
SOBRE ESTADO E SOCIEDADE SOBRE PATRIARCADO:
CARNEIRO, Sueli. A mulher negra na sociedade DELPHY, Christine. Patriarcado (teorias do). In: HIRATA,
brasileira: o papel do movimento feminista na luta anti- Helena (org.). Dicionário crítico do feminismo.
racista. Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2003. Tradução Francisco Ribeiro Silva Júnior. São Paulo: Unesp,
2009.
GRAMSCI, A. Maquiavel: a política e o Estado moderno.
Tradução Luiz Mário Gazzaneo. Rio de Janeiro: Civilização SHIVA, Vandana. La práxis del ecofeminismo.
Brasileira, 1968. Barcelona: Ed. Içaria,1998.
GRAMSCI, A. Os intelectuais e a organização da SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero, patriarcado,
cultura. 8. ed. Tradução Carlos Nelson Coutinho. Rio de violência. 1. ed. São Paulo: Fundação Perseu Abramo,
Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. 2004.
POULANTZAS, Nicos. O Estado, o poder, o
socialismo. 2. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985.
SOBRE FEMINISMO:
SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. Gênero, patriarcado,
ARTICULAÇÃO NACIONAL DE AGROECOLOGIA (ANA).
violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004.
GT Mulheres. Sem feminismo, não há agroecologia.
Disponível em: https://agroecologia.org.br/2018/09/05/
sem-feminismo-nao-ha-agroecologia-2.
SOBRE COLONIALISMO E COLONIALIDADE:
CABNAL, Lorena. Feminismos diversos: el feminismo
GALINDO, María. No se puede descolonizar
comunitário. ACSUR, Las Segovias: 2010.
sin despatriarcalizar: teoría y propuesta de la
despatriarcalización. La Paz: Mujeres Creando, 2013. CARNEIRO, Sueli. A mulher negra na sociedade
brasileira: o papel do movimento feminista na luta anti-
LUGONES, María. Colonialidad y género. Tabula Rasa.
racista. Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2003.
Bogotá, n. 9, p. 75-101, jul./dez. 2008.
CURIEL, Ochy. Crítica poscolonial desde las prácticas
LUGONES, María. Rumo a um feminismo descolonial.
políticas del feminismo antirracista. Revista
Estudos Feministas. Florianópolis, v. 22, n. 3, set./dez.
NOMADAS. Bogotá: Instituto de Estudios Sociales
2014.
Contemporáneos, n. 26, 2007.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidad y modernidad/
DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Tradução Heci
racionalidad. Lima: Ed. Indígena, 1991.
Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2016.
DE MIGUEL, Ana. Feminismos. In: AMORÓS, Celia (org.).
SOBRE RACISMO: 10 palabras claves sobre mujer. Navarra: Verbo
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ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural?
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Agroecologia e políticas públicas: subsídios para a incidência nos municípios 15


2. O funcionamento do
Estado: entes e Poderes

É importante compreendermos que há


uma diferença central entre Estado e
governo. Como nos diz Souza (2006), o go-
verno é uma das mais importantes institui-
no comando de um Estado, em determinado
período. O Estado possui as funções legislati-
va, executiva e judiciária. Já o governo, como
parte da função executiva, é responsável pela
ções do Estado, produtor, por excelência, de gestão dos interesses sociais e econômicos
políticas públicas. O Estado é toda a socieda- da sociedade, que define suas prioridades de
de política, incluindo o governo. O governo ação frente à responsabilidade que tem com
é identificado pelo grupo político que está o coletivo.

16 Estado e Políticas Públicas


Cada uma das funções do Estado é de- ministrativa e financeira garantidas pela
sempenhada por um dos três Poderes que Constituição Federal. Segundo o art. 92 da
formam o Estado. Uma das prerrogativas Constituição, os órgãos do Poder Judiciá-
centrais está na autonomia dos Poderes, que rio são: I - o Supremo Tribunal Federal e
devem trabalhar em sincronia. o Conselho Nacional de Justiça; II - o Su-
O Poder Legislativo é a instância res- perior Tribunal de Justiça; III - os Tribu-
ponsável por elaborar e revisar o conjunto nais Regionais Federais e Juízes Federais;
de leis que regem a sociedade e por fisca- IV - os Tribunais e Juízes do Trabalho; V
lizar o funcionamento e os atos do Estado. - os Tribunais e Juízes Eleitorais; VI - os
O Poder Legislativo, segundo o art. 44 da Tribunais e Juízes Militares; VII - os Tri-
Constituição Federal de 1988, é exercido bunais e Juízes dos Estados e do Distrito
pelo Congresso Nacional, que se compõe Federal e Territórios. O Supremo Tribunal
da Câmara dos Deputados (integrada por Federal, o Conselho Nacional de Justiça e
513 deputadas/os federais, que represen- os Tribunais Superiores têm sede na Capi-
tam o povo) e do Senado Federal (integra- tal Federal e o Supremo Tribunal Federal e
do por 81 senadoras/es, que representam os Tribunais Superiores têm jurisdição em
as 27 unidades federativas (os 26 estados todo o território nacional.
e o Distrito Federal) e conta com o apoio O Poder Executivo tem o papel de go-
do Tribunal de Contas da União. No ní- vernar segundo a relevância pública e
vel estadual, esse poder é representado administrar os interesses da população a
pela Assembleia Legislativa (onde atuam partir da execução de políticas públicas,
deputadas/es estaduais) e, no nível muni- seguindo as leis e a Constituição. O Poder
cipal, pela Câmara Municipal (onde tra- Executivo também pode apresentar propo-
balham vereadoras/es), as/os quais atual- sições, tais como projetos de lei, decretos
mente possuem mandatos de quatro anos. e medidas provisórias. É composto tanto
Todas/os essas/es parlamentares, tanto pelo governo, responsável pela direção
federais como estaduais e municipais, são política do Estado, quanto pela adminis-
eleitas/os pelo povo. tração, que executa as decisões do gover-
O Poder Judiciário é exercido por juí- no e é composta pelo conjunto técnico e
zes com a capacidade e a prerrogativa de burocrático, tornando possível o funcio-
julgar, de acordo com as regras constitu- namento da chamada “máquina pública”.
cionais e as leis criadas pelo Legislativo. Nos municípios, o Poder Executivo é re-
Deve garantir os direitos individuais, co- presentado pela prefeitura municipal. No
letivos e sociais e resolver conflitos entre âmbito estadual, o governo do estado é o
cidadãs/ãos, entidades e Estado, através representante do Poder Executivo. Nacio-
da apuração, julgamento e punição. Para nalmente, o Executivo está na Presidência
que isso seja possível, tem autonomia ad- da República.

Agroecologia e políticas públicas: subsídios para a incidência nos municípios 17


No Brasil, desde a Proclamação da Re-
pública, a forma de governo definida foi o Ministério Público
federalismo, que é centralizada (ou seja, a O Ministério Público é um órgão essencial para a
coordenação das ações ocorre no âmbito fe- fiscalização das políticas públicas e é parceiro dos
deral), mas que prevê a distribuição de po- movimentos agroecológicos em diversas instân-
der, de forma descentralizada e autônoma, cias. É autônomo e independente, não perten-
cendo à estrutura de nenhum dos três Poderes.
com os governos estaduais e municipais. O
regime de governo vigente no Brasil é o pre-
sidencialismo, em que a representação máxi- definição de quais políticas públicas serão prio-
ma do país está na Presidência da República, rizadas ou receberão recursos e apoio. E quando
eleita a cada quatro anos pelo voto popular o assunto é agricultura, sabemos que a disputa
em eleições diretas, desde 1989. a respeito de qual modelo deve ser priorizado
Quando olhamos para o Estado e suas es- no país tem se dado, ao longo dos últimos anos,
truturas, percebemos como as disputas econô- em dois grandes polos: o agronegócio e a agri-
micas e políticas presentes na sociedade se ex- cultura familiar e camponesa, sendo o primeiro
pressam na composição dos três Poderes e na amplamente favorecido pelo Estado.

18 Estado e Políticas Públicas


3. As políticas públicas

M as o que são as políticas públi-


cas? São respostas a problemas
sociais, políticos, econômicos,
ambientais e/ou culturais que
são considerados questões públicas. Um pro-
concreto e do conteúdo simbólico de de-
cisões políticas e do processo de constru-
ção e atuação dessas decisões”. As políticas
públicas podem ser interpretadas como o
principal instrumento da ação do Estado: é
blema torna-se uma questão pública quando o Estado em ação. Como nos lembra Souza
é reconhecido como tal na agenda e na pauta (2006, p. 25-26), “a formulação de políti-
dos agentes políticos (governos, organizações cas públicas constitui-se no estágio em que
da sociedade civil e opinião pública). Sabemos os governos democráticos traduzem seus
que muitos são os problemas públicos relevan- propósitos e plataformas eleitorais em pro-
tes, mas geralmente eles se tornam importantes gramas e ações que produzirão resultados
para a construção de políticas públicas a partir ou mudanças no mundo real”. Para outros,
das relações de diálogos, propostas, protestos, porém, essa visão é muito estática, sendo
confrontos entre os diferentes setores da socie- mais adequado interpretar as políticas pú-
dade. São essas disputas políticas por hegemo- blicas como um resultado da interação en-
nia que definem as agendas públicas centrais. tre Estado e sociedade, ou seja, são políticas
Nesse processo de buscar incidir sobre a fissura coproduzidas (MOLINA et al., 2020). São
do Estado, a mídia cumpre um importante pa- instrumentos de governabilidade do Esta-
pel de construir a narrativa do que é um pro- do, elaboradas segundo as orientações do
blema público, assim como a pressão popular governo vigente, ao mesmo tempo que são
para o debate não apenas com os setores orga- instrumentos de governança de questões ou
nizados, mas com toda a sociedade. problemas públicos.
As políticas públicas são a maneira pela Em um Estado considerado democrá-
qual o governo atua para gerir o Estado, tico, em que de fato o povo tem sobera-
dialogando e se posicionando entre os dife- nia e todas/os as/os cidadãs/ãos participam
rentes conflitos de interesse, e para garantir igualmente, os indivíduos ou grupos podem
qualidade de vida para a população ou a so- contribuir na gestão do governo, por exem-
ciedade civil. Secchi (2013, p. 1) conceitua plo, participando de diferentes momentos do
que: “Políticas públicas tratam do conteúdo chamado ciclo de políticas públicas — defi-

Agroecologia e políticas públicas: subsídios para a incidência nos municípios 19


nição da agenda política, elaboração ou for- nos questionar o quanto enraizamos de fato
mulação, implementação e avaliação —, que a democracia nas práticas sociais, políticas e
consideramos em nossa análise como não econômicas. Esse questionamento se cristali-
necessariamente sequencial ou linear (LAS- za no Brasil atual, visto que, por exemplo, os
SWELL, 1971; SECCHI, 2013). Num país principais espaços de participação social em
de profundas desigualdades e violências de nível nacional, sobretudo para a soberania e
classe, raça e gênero, como o Brasil, podemos segurança alimentar, foram extintos.

Ciclo de Políticas Públicas

Elaboração a partir de Secchi (2013)

20 Estado e Políticas Públicas


Que tipos de políticas existem? Alguns es- história de organização política dos povos do
tudos dividem as políticas públicas em cate- campo, das águas e das florestas é imprescin-
gorias, organizando-as a partir do seu caráter dível para compreender a recente experiência
e objetivo. Como exemplo, podemos citar a de fortalecimento do enfoque agroecológico
proposta de Theodor Lowi (1964), que as di- na construção de políticas públicas.
vide em políticas distributivas, redistributi- Identificamos, no Brasil, que a incorpora-
vas, constitutivas e regulatórias: ção da agroecologia como uma questão pú-
blica se deu através de diferentes campos de
POLÍTICAS DISTRIBUTIVAS: são organização, atuação e elaboração de políticas
as decisões tomadas pelo governo ao públicas, que passaram a pautar, especial-
distribuir ações e políticas para alguns mente a partir de 2003, ações e proposições
grupos, priorizando certos grupos so- em diversos setores. Por exemplo, na área da
ciais ou regiões em função da limitação Assistência Técnica e Extensão Rural (Ater),
dos recursos. a agroecologia aparece refletida na Políti-
POLÍTICAS REDISTRIBUTIVAS: são ca Nacional de Ater (Pnater),5 elaborada a
aquelas denominadas como políticas partir do envolvimento da rede pública de
sociais “universais”, a exemplo do siste- assessoria técnica — a exemplo das Empre-
ma tributário, o sistema previdenciário sas de Assistência Técnica e Extensão Rural
e a reforma agrária. (Emater) — e das redes e organizações da so-
POLÍTICAS CONSTITUTIVAS: essas ciedade civil executoras de Ater. Na questão
políticas se referem a ações relaciona- da soberania e segurança alimentar e nutri-
das a procedimentos, que definem com- cional, a inclusão do direito à alimentação na
petências, regras de disputa política e Constituição, em 2010, e a criação do Sistema
da elaboração de políticas públicas. Nacional de Segurança Alimentar e Nutricio-
POLÍTICAS REGULATÓRIAS: regu- nal (Sisan), em 2006 (Lei n. 11.346/2006), e da
lam padrões de comportamento, ser- Política Nacional de SAN, em 2010 (Decreto
viços ou produtos para determinados n. 7.272/2010), também foram fundamentais
grupos sociais. para a promoção de sistemas sustentáveis de
base agroecológica. Já em 2012, foi criada a
As lutas pela reforma agrária, pela demo- Política Nacional de Agroecologia e Produção
cratização do acesso à terra e ao território, as- Orgânica, a Pnapo (Decreto n. 7.794/20126),
sim como pelo acesso à água, têm sido histo- instrumento legal que se desdobrou em dois
ricamente pautas dos movimentos sociais do Planos Nacionais de Agroecologia e Produ-
campo, desde as Ligas Camponesas, passando ção Orgânica (Planapos).
pelos sindicatos de trabalhadoras e trabalha-
dores rurais e pelos movimentos de luta pela
5 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/
terra — e são pautas centrais também para o l12188.htm.
6 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/decreto/
movimento agroecológico. Compreender essa d7794.htm.

Agroecologia e políticas públicas: subsídios para a incidência nos municípios 21


A Política Nacional de
Agroecologia e Produção Orgânica (Pnapo)
Instituída pelo Decreto n. 7.794/2012, a Política Na- VII - contribuição na redução das desigualdades
cional de Agroecologia e Produção Orgânica foi uma de gênero, por meio de ações e programas que
conquista do movimento agroecológico. O decreto promovam a autonomia econômica das mulheres.
define as bases institucionais da Política, estabele-
cendo suas diretrizes, seus instrumentos de imple- As contribuições da ANA para a construção da
mentação e suas instâncias de gestão. Segundo seu Pnapo foram construídas a partir de um intenso pro-
art. 3º, suas diretrizes são: cesso de discussão que contou com cinco seminários
regionais e um seminário nacional. As contribuições
I - promoção da soberania e segurança alimentar foram reunidas em um documento publicado pela
e nutricional e do direito humano à alimentação Articulação em 2012, intitulado “Propostas da Articu-
adequada e saudável, por meio da oferta de pro- lação Nacional de Agroecologia – ANA para a ‘Política
dutos orgânicos e de base agroecológica isentos Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica’”.
de contaminantes que ponham em risco a saúde;
II - promoção do uso sustentável dos recursos Resultado da política, o I Plano Nacional de
naturais, observadas as disposições que regulem Agroecologia e Produção Orgânica (Planapo)
as relações de trabalho e favoreçam o bem-estar 2013-2015 foi elaborado pela Câmara Interministerial
de proprietários e trabalhadores; de Agroecologia e Produção Orgânica (CIAPO), com
III - conservação dos ecossistemas naturais e ampla participação da sociedade representada na
recomposição dos ecossistemas modificados, Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Or-
por meio de sistemas de produção agrícola e de gânica (Cnapo), ambos espaços previstos na Pnapo.
extrativismo florestal baseados em recursos re- O II Plano Nacional de Agroecologia e Produ-
nováveis, com a adoção de métodos e práticas ção Orgânica (2016-2019) foi elaborado; porém,
culturais, biológicas e mecânicas, que reduzam sua execução foi significativamente prejudicada de-
resíduos poluentes e a dependência de insumos vido ao contexto de recrudescimento de tensões
externos para a produção; políticas, com o golpe parlamentar em 2016 e o des-
IV - promoção de sistemas justos e sustentáveis monte de muitas políticas públicas importantes para
de produção, distribuição e consumo de alimen- o fortalecimento da agroecologia.
tos, que aperfeiçoem as funções econômica, so-
cial e ambiental da agricultura e do extrativismo A construção da política nacional tem sido referên-
florestal, e priorizem o apoio institucional aos be- cia para animar processos semelhantes nos estados
neficiários da Lei n. 11.326, de 2006; e municípios. A publicação “Construção de políticas
V - valorização da agrobiodiversidade e dos pro- estaduais de agroecologia e produção orgânica no
dutos da sociobiodiversidade e estímulo às expe- Brasil: avanços, obstáculos e efeitos das dinâmicas
riências locais de uso e conservação dos recursos subnacionais”, organizada por Eric Sabourin, Sté-
genéticos vegetais e animais, especialmente phane Guéneau, Julianna Colonna e Luiz Raimundo
àquelas que envolvam o manejo de raças e varie- Tadeu da Silva, sistematiza experiências estaduais de
dades locais, tradicionais ou crioulas; construção de políticas no campo da agroecologia,
VI - ampliação da participação da juventude rural trazendo ensinamentos teóricos e metodológicos
na produção orgânica e de base agroecológica; e importantes.

22 Estado e Políticas Públicas


Outro elemento importante é o debate (e A PRIMEIRA esteve centrada em um
ação) no campo da construção do conheci- viés agrícola e agrário para as/os pe-
mento relacionado ao tripé “ensino, pesquisa quenas/os agricultoras/es familiares
e extensão”, que envolve desde as universida- (nesse período, as mulheres ainda lu-
des públicas e os institutos federais até cen- tavam para serem reconhecidas como
tros de pesquisa, como a Empresa Brasileira trabalhadoras rurais), momento que
de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e a Fun- teve como marco a criação, em 1995, do
dação Oswaldo Cruz (Fiocruz), e associações Programa Nacional de Fortalecimento
acadêmicas, como a Associação Brasileira de da Agricultura Familiar (Pronaf);
Agroecologia (ABA), a Associação Brasileira A SEGUNDA geração teve foco em po-
de Saúde Coletiva (Abrasco), entre outras. líticas sociais e assistenciais, tendo iní-
Estudos e pesquisas das mais distintas áreas cio com o Programa Comunidade Soli-
do conhecimento, como as ciências humanas, dária (1994-1998), e se consolidando no
sociais, agrárias e da saúde, têm sido funda- ano de 2003, através da Estratégia Fome
mentais na defesa da agroecologia. Zero (em que a política de transferência
Além disso, aliam-se também a esta pau- de renda, nominada como Programa
ta os movimentos sociais e as organizações Bolsa Família, é um dos destaques);
da sociedade civil que, ao longo das últimas A TERCEIRA geração foi pautada pela
décadas, vêm apoiando a construção de po- construção social dos mercados com uma
líticas públicas para o Direito Humano à Ali- relativa ênfase para a Segurança Alimen-
mentação Adequada (DHAA) e a Soberania tar e Nutricional, tendo a sustentabilidade
e Segurança Alimentar e Nutricional (SSAN), ambiental também como pauta. Possibi-
em diálogo com políticas em curso no país litou a inserção do tema da agroecologia
desde 2003, como o Programa de Aquisição no bojo das discussões, programas e/ou
de Alimentos (PAA) e a valorização das se- políticas — como o PAA e o PNAE — e
mentes crioulas, o Programa Nacional de se desenvolveu de forma expressiva em
Alimentação Escolar (Pnae) e o Programa de diferentes territórios do país.
Garantia de Preços Mínimos para Produtos
da Sociobiodiversidade (PGPM-Bio). Res- Vale salientar ainda que esses ciclos não
salta-se ainda que todas essas pautas também são lineares nem se encerram em si mesmos,
têm tido uma análise e um olhar próprio por coexistindo em muitos momentos e em di-
parte das lutas históricas das mulheres rurais, ferentes contextos, gerando assim tensões
das mulheres das águas, das cidades e das flo- e conflitos em algumas circunstâncias, mas
restas, das negras, indígenas e quilombolas. também potencializando — em outras — as
Segundo Grisa e Schneider (2015), ao iniciativas de agricultoras e agricultores que
olhar para trás, podemos identificar três “ge- praticam a agroecologia no seu cotidiano.
rações” de políticas públicas para a agricul- Nesse percurso, muita pressão foi feita
tura familiar: para possibilitar que o governo incorporasse

Agroecologia e políticas públicas: subsídios para a incidência nos municípios 23


a pauta da agroecologia e da produção orgâ- Agrário (MDA) no mesmo ano, todas as po-
nica, especialmente depois de 2003. Para for- líticas para o campo passaram a ser executa-
talecer a agricultura familiar e as políticas de das pelo Ministério da Agricultura, Pecuária
SAN — que tiveram como maior referência a e Abastecimento (MAPA), que seguiu priori-
Estratégia Fome Zero —, vimos a retomada zando e apoiando o agronegócio.
do Conselho Nacional de Segurança Alimen- A extinção de instâncias de controle so-
tar e Nutricional (Consea) e a criação da Câ- cial, fundamentais para a construção par-
mara Interministerial de Segurança Alimen- ticipativa das políticas públicas, como o
tar e Nutricional (Caisan). Conselho Nacional de Segurança Alimen-
A Marcha das Margaridas também teve tar e Nutricional (Consea) e a Comissão
uma contribuição fundamental para a agroe- Nacional de Agroecologia e Produção Or-
cologia no Brasil,7 e, com a força da ação das gânica (Cnapo), também fizeram parte des-
mulheres, apresentou e defendeu junto aos se processo de desmonte. Esses dois espaços
governos uma concepção de agroecologia e de participação tiveram atuação de destaque
um modelo de política agroecológica sistê- nos debates para a incorporação da agroeco-
mico, inclusivo, justo, ao mesmo tempo que logia nas ações públicas.
trouxe, desde sua primeira edição, em 2000, o Desde os anos 1980, o debate sobre a pro-
combate à fome como lema. dução de alimentos saudáveis se reuniu em
Esse debate estratégico para o Governo torno da agricultura alternativa/agroecológi-
Lula fortaleceu processos de participação ca, trazendo discussões sobre a necessidade
social e estruturação de políticas de apoio à de que o Estado, mediante a elaboração e
produção e de garantia do direito humano à execução de políticas públicas, investisse em
alimentação para o combate à fome. A cria- experiências de produção que fossem pau-
ção e/ou qualificação dos programas de com- tadas também na conservação ambiental e
pras governamentais, como o PAA e o PNAE, na justiça social, diálogo esse que foi funda-
foram centrais para contribuir para o debate mentado por meio da sistematização de ex-
sobre a produção (e o consumo) de alimentos periências em todo o Brasil. Esse espaço foi
saudáveis (MOURA, 2017). composto historicamente por agricultoras/es
No entanto, o que vemos agora é um pro- e camponesas/es, organizações não governa-
cesso de ameaça à democracia e desmante- mentais, movimentos sociais, profissionais,
lamento das políticas públicas para a agri- acadêmicas/os e pesquisadoras/es que pas-
cultura familiar, desde o golpe sofrido pela saram a se reunir, a partir de 2002, em tor-
Presidenta Dilma Rousseff, em 2016. Com a no da Articulação Nacional de Agroecologia
extinção do Ministério do Desenvolvimento (ANA) (GRISA, 2010).
A ANA é uma rede de redes. É um espaço
de troca de experiências, de convergência de
7 Ver a dissertação “A contribuição da Marcha das Margaridas na
construção das políticas públicas de agroecologia no Brasil”, de Sarah lutas de organizações e movimentos sociais
Luiza de Souza Moreira, disponível em: https://repositorio.unb.br/
handle/10482/37630. pela construção e defesa da agroecologia en-

24 Estado e Políticas Públicas


quanto ciência, movimento e prática. A ANA
é uma articulação que preza, sobretudo, pela
democracia, de modo que as políticas públi-
cas construídas possibilitem que tanto o Es-
tado como a sociedade civil contribuam para
que agricultoras e agricultores, camponesas
e camponeses, pescadoras e pescadores ar-
tesanais, extrativistas e outros segmentos
sociais que atuam na construção de sistemas
alimentares sustentáveis sejam capazes de
produzir, distribuir, comercializar e, tam-
bém, consumir alimentos saudáveis, demo-
cratizando, assim, o acesso à comida de ver-
dade para toda a população.
Nos últimos 20 anos, a ANA realizou
quatro encontros nacionais de agroecolo-
gia: o primeiro, em 2002, ocorreu no Rio
de Janeiro (RJ); o segundo, em 2006, em
Recife (PE); o terceiro, em 2014, em Jua-
zeiro (BA); e, por fim, o IV encontro foi ro de Soberania e Segurança Alimentar e
em Belo Horizonte (MG), no ano de 2018. Nutricional (FBSSAN), Grupo de Trabalho
Em 2011, a ANA organizou, em parceria de Saúde e Ambiente da Associação Brasi-
com outras redes, um importante evento: leira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva
o “Encontro Nacional de Diálogos e Con- (Abrasco), Rede Alerta contra o Deserto
vergências: Agroecologia, Saúde e Justiça Verde (RADV), Marcha Mundial das Mu-
Ambiental, Soberania Alimentar, Econo- lheres (MMM) e Articulação de Mulheres
mia Solidária e Feminismo”. Convocado Brasileiras (AMB).
pela ANA, o Encontro de Diálogos e Con- O princípio de diálogo e convergência jun-
vergências teve como objetivo confluir to a essas redes, numa perspectiva de rever-
campos e movimentos para a discussão e ter a fragmentação no campo democrático
construção de saídas para a crise civiliza- e popular, segue orientando a ação da ANA
tória, econômica, socioambiental, energé- em nível nacional e também nos territórios.
tica e alimentar, e envolveu as seguintes Vale destacar que a Articulação Semiárido
organizações, redes e movimentos: Asso- Brasileiro (ASA) tem se integrado e ajudado
ciação Brasileira de Agroecologia (ABA a construir a ANA desde o seu início, sendo
-Agroecologia), Fórum Brasileiro de Eco- fundamental para pautar a convivência com
nomia Solidária (FBES), Rede Brasileira de o semiárido como uma perspectiva central de
Justiça Ambiental (RBJA), Fórum Brasilei- desenvolvimento brasileiro.

Agroecologia e políticas públicas: subsídios para a incidência nos municípios 25


4. O enfoque
agroecológico nas
políticas públicas

N esse percurso, percebemos que a


agroecologia entrou na agenda pú-
blica, no diálogo, incidindo sobre diferentes
por exemplo, as políticas públicas tendem
a engessar as mulheres ou a enquadrar suas
ações e práticas em um modelo que exclui
problemas e questões consideradas centrais seus saberes e formas de produção, que são,
no nosso país. A defesa de políticas públicas no fundo, o que sustenta a vida. Há que se
continua sendo um eixo central e necessário ressaltar, portanto, a valorosa ação e constru-
para a construção de um regime alimentar al- ção coletiva e auto-organizativa para além dos
ternativo ao que existe hoje, cuja marca cen- marcos da ação do Estado, protagonizada por
tral é o poder corporativo (MOLINA et al., movimentos e coletivos populares!
2020; IPES FOOD, 2016; IPES FOOD, 2017;
ETC GROUP, 2018). Assim, consideramos
que as políticas públicas são ferramentas es-
senciais que devem ser utilizadas pelo movi-
mento agroecológico para a transformação
do atual sistema alimentar.
O enfoque agroecológico de uma política
pública ocorre quando esta se direciona, por
meio da ação, para a superação de desafios
agrários, alimentares, ambientais, climáticos,
sociais, econômicos e sanitários. Mesmo en-
tendendo a ação do Estado como central para
a resolução de questões públicas, vale desta-
car suas limitações, uma vez que as políticas
são construídas no marco de um Estado ca-
pitalista, patriarcal e racista. Nesse sentido,

26 Estado e Políticas Públicas


Questão devastação dos biomas, da
problemática
da fome, da
Questão Ambiental sociobiodiversidade, da água
e dos solos; emissão de gases
desnutrição e da
má alimentação Alimentar e Climática de efeito estufa; destruição
das relações socioecológicas

Questão Questão
Agrária Social
concentração de
concentração renda, desigualdades
fundiária segue como estruturais de gênero,
impeditivo para de raça e de classe
resolver problemas
centrais no Brasil

Questão
Questão Econômica
Sanitária desemprego estrutural;
falta de apoio a crédito,
desafios nos organização produtiva
processos de e comercialização
beneficiamento e das/os agricultoras/es
comercialização familiares e
da produção Elaboração a partir de Petersen (2021) camponesas/es

A concentração de poder em grandes cor- da terra, da água e dos ecossistemas, à alta


porações do sistema alimentar leva muitos emissão de gases, à perda da diversidade,
autores a falar da existência de um Regime pois, mesmo acumulando recordes de safras,
Alimentar comandado por essas organiza- o agronegócio produz apenas commodities e
ções. Este sistema tem levado à degradação tem sido incapaz de alimentar o mundo. Na

Agroecologia e políticas públicas: subsídios para a incidência nos municípios 27


contramão desse sistema orquestrado pelas classe, gênero e geração. Um Sistema Ali-
corporações, é preciso que lutemos pela go- mentar Democrático deve resultar da intera-
vernança dos sistemas alimentares (MOLINA ção permanente entre os órgãos e instituições
et al., 2020). Nesse sentido, o enfoque agroe- do Estado e organizações da sociedade civil.
cológico contribui para a construção de sis- Vale destacar que as políticas públicas são co-
temas alimentares justos, democráticos, sus- produções do Estado e da sociedade civil; não
tentáveis e saudáveis. Ao mesmo tempo, para são, portanto, iniciativas exclusivas do Esta-
pensar a construção de políticas públicas pela do. A perspectiva agroecológica deve cons-
perspectiva agroecológica, é fundamental tra- truir políticas públicas orientadas por essas
balhar o enfoque da governança desses sis- concepções!
temas alimentares. O enfoque agroecológico Por fim, o enfoque agroecológico é aquele
deve estar atento e atuante a essas esferas. voltado para a construção de um Sistema Ali-
Um Sistema Alimentar Justo é aquele que mentar Sustentável e Saudável. Mas o que
enfrenta desigualdades estruturais de raça, isso significa?

28 Estado e Políticas Públicas


Sistema Alimentar
Sustentável e Saudável
Promover o acesso à alimentação saudável e ade-
quada à população, especialmente à parcela com
maior vulnerabilidade econômica, contribuindo,
por exemplo, para superar a exclusividade do con-
sumo de alimentos orgânicos e/ou agroecológicos
pelas parcelas de maior poder aquisitivo; Realizar compras públicas da produção alimentar
Promover o resgate e o fortalecimento das práticas local (alimentação escolar e outros mercados insti-
integrativas em saúde, com especial ênfase para o tucionais);
uso das plantas medicinais; Potencializar grupos auto-organizados de mulheres
Contribuir para a redução e a eliminação do uso de e de jovens;
agroquímicos nos sistemas de produção, em espe- Fomentar Sistemas Participativos de Garantia (SPG);
cial os agrotóxicos e transgênicos; Apoiar a criação e circulação de moedas locais;
Fomentar funções ecossistêmicas nas paisagens Implementar o Plano Nacional de Reforma Agrária
agrícolas (manutenção de remanescentes de vege- Popular e/ou de apoio aos assentamentos rurais;
tação natural, conservação de nascentes etc.); Garantir acesso à água, tanto para o consumo hu-
Restringir atividades econômicas geradoras de im- mano quanto para a produção;
pactos negativos para a saúde coletiva e para os Garantir os direitos territoriais dos povos indígenas,
direitos territoriais; comunidades quilombolas e comunidades tradicio-
Resgatar, conservar e valorizar a agrobiodiversida- nais;
de (sementes crioulas e raças adaptadas) e valori- Investir em ações para reciclagem e compostagem
zar os produtos da sociobiodiversidade; de resíduos sólidos;
Reduzir o consumo de energia fóssil e de insumos Realizar programas de Ater contextualizados à rea-
comerciais, fortalecendo ciclos ecológicos consti- lidade dos agroecossistemas, fomentando redes de
tuídos por recursos endógenos ao agroecossiste- inovação local baseadas no diálogo de saberes;
ma e na escala da paisagem, garantindo a defesa
Instituir programas de educação contextualizada;
dos bens comuns e o manejo adequado da biodi-
Criar e apoiar campanhas de fomento à alimenta-
versidade e da biomassa;
ção adequada e saudável e de valorização das cul-
Apoiar unidades familiares e comunitárias de bene-
turas alimentares;
ficiamento artesanal e fortalecer programas com o
Realizar campanhas pela valorização da produção local;
reconhecimento dos alimentos artesanais, confor-
Apoiar grupos de cultura e resgate de tradições bio-
me a Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) n. 49,
culturais e de memória das lutas sociais;
da Anvisa;
Investir e fortalecer iniciativas de comunicação po-
Criar sistemas municipais de Vigilância Sanitária
pular;
(VISA) e Serviços de Inspeção Sanitária (SIM);
Fomentar a produção e circulação de informações
Fomentar circuitos curtos de comercialização;
relacionadas aos impactos do agronegócio, da mine-
Apoiar empreendimentos cooperativos da agricul-
ração e dos grandes projetos, em contraposição aos
tura familiar e de povos e comunidades tradicionais;
efeitos das práticas sustentáveis de produção de ali-
Investir em infraestruturas para transporte e co-
mentos.
mercialização da produção local;
Fonte: Petersen (2021)

Agroecologia e políticas públicas: subsídios para a incidência nos municípios 29


Vale reforçar ainda uma bandeira de luta cracia. Todavia, como nos diz Boaventura de
que tem sido importante nos últimos anos: Sousa Santos (1998), é preciso democrati-
“Sem democracia, não há agroecologia”. zar, revolucionar a democracia, ampliando a
Consideramos aqui a democracia como o go- consciência política da população, buscando
verno de todas/os, onde as ações do Estado (e condições reais de participação, para além da
dos governos) sejam direcionadas para o bem lógica da representatividade, e considerando
comum, para o bem viver, e onde haja a par- toda a diversidade de sujeitos que compõem a
ticipação do povo na tomada de decisões, por sociedade, que precisa ser democratizada.
meio do voto (representatividade política) e/ Quando lutamos hoje em defesa de um Es-
ou da participação direta em diferentes espa- tado Democrático de Direito, reafirmamos a
ços constituídos para tal. importância de que o Estado atue com base em
Frente à crise da democracia, que vem sen- processos democráticos, de participação popu-
do utilizada pela direita para apresentar pro- lar, de transparência e inclusão social, ao mes-
postas ditatoriais como “alternativas”, somos mo tempo que garanta os direitos previstos na
chamadas/os a defender e a lutar pela demo- Constituição Federal, que vem sendo ameaçada.

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Anotações

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