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Roberto Trilogia Familia Manganelli
Roberto Trilogia Familia Manganelli
Roberto
Janice Diniz
Capa: Licença de imagem concedida por © iStock – Getty
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Copyright© 2019 Janice Diniz
Reservados os direitos de propriedade desta edição e obra para Janice Diniz. É
proibida a distribuição ou cópia de qualquer parte desta obra sem o consentimento da
autora.
Roberto – Livro Um
Tudo aconteceu num verão muito distante. Um tempo que, para Zalon,
consumiu-se tão rápido quanto um cigarro descansando à borda do cinzeiro.
Dava para se dizer que foi uma época de inocência, em que os dias eram
divididos entre os quentes e secos e, no período das cheias, os quentes e
molhados. Poucas vezes sentiu frio em Santa Bárbara.
Mas teve uma vez que ela quase congelou.
O cheiro da infância (o povo falava disso de um jeito poético), para
ela, era o dos grãos de terra seca entrando no nariz, o da comida caseira da tia
Joaquina e o da morte trazida pelo vento. Porém, antes dos nove anos, apenas
um borrão, um rascunho de memória. Porque ela ainda vivia como uma
criança normal criada numa fazenda de gado leiteiro. Frequentava a escola,
segundo tia Joaquina lhe dissera, e brincava com as irmãs, Rafaela, de sete
anos, e Maitê, de 11, filha do primeiro casamento de Jerônimo Toledo. As
irmãs cavalgavam, jogavam futebol, subiam nas árvores e pulavam do galho
mais alto. Às vezes se machucavam. Tudo isso e mais um pouco, detalhes do
cotidiano que ela não se lembrava mais. Tia Joaquina estava lá, o tempo todo,
cozinheira e babá, a melhor amiga de Mariane Toledo, sua mãe. E, por estar
lá, contou para as Toledo como eram as suas vidas até dez anos atrás, quando
numa manhã o céu escureceu, e Rafa ganiu como um bicho dilacerado, um
ganido misturado ao grito de pavor rouco e profundo que lhe veio rasgando
toda, soltando-lhe a sanidade das correntes da razão, tornando-a quem ela era
agora.
Zalon se lembrava de sua vida somente a partir daquele dia. Correu até
a irmã, que pulava para alcançar os pés da mãe, suspensos no ar. Maitê
apareceu em seguida. Era a segunda mãe que ela perdia. A primeira morreu
durante o parto. E a atual, de acordo com a polícia, suicidou-se. Quanto a ela,
algo inexplicável lhe aconteceu. Zalon não gritou desesperada ao ver a mãe
pendurada no galho de um ipê-rosa. A longa camisola de algodão, os pés
descalços, os cabelos loiros escondendo-lhe o rosto, a cabeça pendendo para
baixo. Não, sentimento não. Mas a sensação de frio foi tão intensa que bateu
queixo, a pele se arrepiou. E, imediatamente, começou a gargalhar. Só parou
quando Maitê a esbofeteou.
Meses antes ― assim que Jerônimo abandonou a família, levando
consigo o dinheiro da venda da propriedade e a nova namorada, a filha de 20
anos de Joaquina e Alfredo, o capataz ―, um homem de terno bateu à porta
da casa-sede. A mãe atendeu, leu um papel e ficou pálida.
Jerônimo e Mariane se conheceram no Centro-Oeste, apaixonaram-se
e compraram um pedaço de terra em Santa Bárbara. Ele já tinha uma filha do
primeiro casamento, chamada Maitê. Como a meia-irmã não conheceu a
própria mãe, não lhe foi difícil afeiçoar-se à madrasta, que ainda não tinha
filhos.
O pai (preferia pensar nele apenas como Jerônimo) desapareceu da sua
vida dez anos atrás, poucos dias antes de tudo desmoronar. Se o odiava? Bem
menos que Maitê. Odiá-lo minava a energia que Zalon queria somente para si
e para ajudar suas irmãs e as tias postiças.
Paulina tinha 53 anos, era a irmã mais velha de Joaquina. Uma senhora
encorpada. Usava o cabelo escuro sempre puxado todo num coque baixo. Os
olhos argutos não deixavam nada escapar, ainda mais que era costureira
desde os 12 anos de idade. Morava num bairro pobre, afastado do centro
urbano e da região das fazendas, por não saber cobrar. Como vou arrancar
dinheiro de quem mal tem para comer? Era o seu argumento quando
questionada se valia a pena se debruçar sobre a máquina de costura ao longo
de 10, 11 horas por dia e receber uma mixaria das clientes.
Zalon ajudava-a na costura. Todos os ajustes de bainha, consertos de
roupas, em geral, rendiam-lhe um modesto salário. Pagava uma parte das
contas, somando com a grana de Maitê e das tias Paulina e Joaquina, e o resto
guardava dentro de um livro. Sabia que, mesmo se um dia invadissem a casa
para assaltar, os marginais não pensariam em abrir um livro nem sequer olhar
em direção à estante da pequena sala. O bairro onde tia Paulina morava era
uma espécie de vila ou comunidade, o lugar que as abrigara após o
soterramento de suas vidas.
Enquanto costurava, a mente voava para longe. Na maior parte das
vezes, para o passado...
Depois que o homem de terno entregou o papel que fez a sua mãe
empalidecer, aos poucos, os empregados foram embora. O que ele lhe
mostrou foi a assinatura de Jerônimo Toledo vendendo a propriedade. Tudo
que eles tinham e, embora precisasse da assinatura dela para concluir o
processo de venda, o sócio e marido de Mariane já tinha embolsado o
dinheiro da transação.
Tia Joaquina lhe dissera que o advogado representava a família
Manganelli, ou seja, os fundadores de Santa Bárbara. Por isso Jerônimo deu
como certo que a esposa assinaria a papelada. Havia uma cláusula que lhe
garantia certa quantia em dinheiro. O homem dos Manganelli, entretanto,
salientou que a ideia não partiu do seu marido e sim de ele próprio, a fim de
garantir por algum tempo o sustento das crianças pequenas até que ela,
Mariane, arranjasse emprego na cidade ou em outra fazenda. A cozinheira
notou que era uma mixaria de suborno.
Mariane bateu a porta na cara do advogado por duas vezes. Não houve
uma terceira.
O banco então cortou a linha de crédito da fazenda, as agropecuárias
fecharam as portas para quem contrariava a determinação dos Manganelli,
antigos fazendeiros do interior do Paraná. Francesco e Aquino vieram
estender o feudo no Mato Grosso do Sul, com incentivo governamental,
ganharam terras. Com o tempo, a ideia de que os fundadores estivessem por
trás do maquiavélico plano de cobiça das terras da sua mãe perdeu força para
outra teoria. Sim, o advogado era dos Manganelli. Mas os rumores pela
cidade davam conta de que as cobras ambiciosas e sedentas por mais poder (e
a compra da fazenda Toledo representava enfim o domínio de terras dos
Manganelli...ou seja, metade de Santa Bárbara nas mãos de uma única
família!) se chamavam Roberto, Ettore e Miguel. Os CEOs do agronegócio
obcecados pelo trabalho. Eles, os filhos dos irmãos Francesco e Aquino,
tinham interesse em fechar o número redondo dos cinquenta por cento de
posse legal do município fundado por seus antecessores.
Os irmãos Manganelli chegaram primeiro à Corumbá e, depois de se
tornarem um dos maiores pecuaristas do país, eles fundaram a própria cidade
na região pantaneira. O grupo Manganelli, ao longo dos anos, não apenas
expandiu a criação do gado nelore, como também se tornou proprietário de
uma companhia siderúrgica e de mineração.
Maitê acreditava piamente que Roberto e os primos, Miguel e Ettore,
estavam por trás da tragédia de sua família.
Apenas Alfredo, o capataz, resistiu. Mas o estresse da impotência em
relação ao que acontecia, sobretudo, assistir à debandada dos funcionários,
gente do tempo de Jerônimo Toledo, do início da fazenda, de quando cada
uma das meninas mais novas chegou da maternidade, tudo isso somado à
intenção dos comerciantes locais de darem as costas a uma mulher que
precisava sustentar três crianças pequenas, deixou-o doente, quase sem fôlego
para trabalhar, sufocado de angústia. Ele, que era todo coração. O caubói
altivo que merecia um pedaço de terra para si e a esposa. Mas, como Zalon
descobriu cedo demais, a vida era injusta para quem era bondoso e humano.
Aos 39 anos, o coração de Alfredo parou de bater. Tia Joaquina chorou sem
se curvar. Pegou a espingarda e se mudou para a casa principal. Sabia, no
fundo, que a culpa da morte do marido era dos Manganelli. E, quando a
patroa supostamente se matou, decidiu que ficaria com as meninas.
Toda vez que se dispunha a pensar na morte da mãe, revivia os
mesmos sentimentos de raiva e melancolia. O choque de vê-la morta, e de um
jeito tão violento e estúpido, inesperado também, bloqueou-lhe as
recordações, todas, até as boas. Assim não se lembrava do tempo vivido com
a mãe. O amor, entretanto, não precisava de imagens do passado. Ele não
morria. Quando verdadeiro, o amor resistia ao tempo, a distância, aos
problemas psicológicos e até a morte. Amou Mariane Toledo, porque
certamente se sentiu amada por ela desde que nasceu. Rafa, por sua vez,
reagiu à tragédia de outra forma. Negando a existência da mãe e do pai,
jogando-se numa vida que lhe também indicava um destino trágico. Quanto à
Maitê, parecia ainda presa ao vínculo emocional que criou com a madrasta.
Por mais que se lembrasse de tudo, de todos os dias em que viveu com quem
ela mais amou na vida, não falava a respeito. Guardava para si a maior parte
dos seus pensamentos. Às vezes, pegava-a olhando para o vazio. Sabia,
contudo, que a irmã também voltava ao passado, levando na viagem o
próprio coração. Era provável então que revisse a imagem da garotinha de
sete anos gritando, dobrando o corpo para frente como se tivesse sido
esfaqueada na barriga, perdendo a inocência e parte da razão, transformando-
se na adolescente problemática com tendência à delinquência. Talvez Maitê
tivesse sentido o cheiro não apenas da morte de quem a criou desde os seus
dois anos de idade e sim o odor fétido de um futuro sombrio para as três. Dez
anos depois, ela trabalhava como garçonete no salão country Garotas do
Campo, frequentado pela alta roda da cidade. Um lugar aos moldes dos
estabelecimentos norte-americanos, com ares do antigo seriado Dallas, ou
seja, esnobe, seletivo e sofisticado, mesmo sendo country, uma verdadeira
piada ― segundo o que ouvia da irmã. Ali, o cliente não era barrado em
razão dos preços exorbitantes das bebidas e petiscos. Havia uma lista de
frequentadores, e o seu nome precisava constar entre eles. Apenas os bem-
nascidos, a nata da oligarquia rural, faziam parte da tal lista. Os Manganelli
eram tão poderosos que eram os únicos a ter uma ala privilegiada, como um
grande camarote, com mesa e garçonetes exclusivas.
Maitê trabalhava lá havia dois anos e viu apenas um deles aparecer
sozinho e se instalar no reservado. Fez de tudo para não ser vista por Ettore
Manganelli. E conseguiu.
Ele chegou na sua camisa escura, o jeans preto e o Stetson da mesma
cor. Era um homem alto, os ombros largos de um corpo musculoso e ao
mesmo tempo elegante. Aparentava trinta e poucos anos. Às vezes era visto
com a barba por fazer; outras, o rosto escanhoado mostrava uma beleza
clássica, como se cada traço fora esculpido por um artista bastante talentoso,
sem pressa, de maneira meticulosa. Os olhos azuis, o nariz reto e os lábios
bem desenhados. O cabelo castanho era curto e ligeiramente revolto e a pele,
um dia clara, possuía um tom dourado de quem às vezes se expunha ao sol a
pino. A covinha no queixo se acentuava quando sorria. E, dizia-se por aí, que
ele sorria com facilidade.
Eram famosos os seus sorrisos falsos.
Ele bebeu o drinque, ouviu a apresentação do cantor country, fumou
um cigarro (ignorando a placa de não fume e sendo ignorado por quem pôs a
placa ali) e foi embora sem olhar para ninguém, apenas na direção acima da
cabeça das pessoas, o queixo erguido, as costas empertigadas, a postura de
um legítimo filho da puta endinheirado.
Maitê tinha planos para os três bandidos do agronegócio. Era assim
que a irmã se referia a Roberto, Ettore e Miguel.
Um dia ela voltou do trabalho e lhe disse:
―Pesquisa tudo que puder sobre os filhos dos fundadores de Santa
Bárbara.
― Vamos tentar seguir em frente. ― Zalon pediu, sabendo que era
impossível desobedecer às determinações da mais velha.
― Sério? Seguir em frente como se a nossa mãe não tivesse morrido?
Me irrita ouvi-la falar assim, tentando jogar areia na merda toda para
escondê-la e viver em paz.
― Duas pessoas morreram por causa daquela gente. ― ponderou. ―
O tio Alfredo também foi uma das vítimas.
― Mais um motivo para acabarmos com aqueles bandidos.
― O quê?
― Pensa bem no que vou dizer. ― Maitê a encarou firme nos olhos
antes de continuar: ― Acredita mesmo que a nossa mãe nos abandonaria?
Você tem a chance de seguir em frente, sim, porque teve a memória
reprimida por causa do trauma. Mas eu sei o que vivemos e com quem
vivemos. Tivemos uma mãe dedicada e amorosa, uma pessoa boa, gentil e
batalhadora. Ela jamais se mataria. A gente já tinha perdido o fulano, como
poderia considerar dar cabo da própria vida?
― A polícia falou em depressão.
― Todo mundo fala em depressão, virose e estresse. O trio que parece
a resposta para qualquer evento. ― rebateu, irritada.
― Mas ela estava estressada, Maitê. Imagino o quanto tenha sofrido
após ser abandonada pelo Jerônimo. Não pôde nem se recuperar direito e
ainda é ameaçada pelo advogado querendo a propriedade. Talvez ela tenha
planejado o que fez para nos dar a chance de um novo lar.
―Meu Deus, como pode se agarrar a tão pouco?
―Espera, não olha pra mim com essa cara, vou me explicar. ―
suspirou, profundamente. ― Uma vez vi na tevê um documentário de
investigação policial, e o cara simulou um homicídio para deixar o dinheiro
do seguro para a sua família. Ele estava endividado, num beco sem saída, e se
sacrificou para dar uma segunda chance à esposa e aos filhos. Aí contratou
um viciado em drogas, pagou para esfaqueá-lo até a morte e depois roubar os
seus pertences, assim iria parecer um roubo que não deu certo, sei lá, mas
jamais um suicídio.
― Se fosse suicídio, a família não receberia o dinheiro da apólice. ―
constatou Maitê, pensativa.
― Foi o que o detetive da tevê falou.
― Obrigada por fundamentar a minha teoria, querida irmã. ― disse
Maitê, mordaz.
― Como assim?
Por um momento, arrependeu-se de ter feito a pergunta. Talvez por
medo de saber a resposta. Maitê era jovem demais para ser tão dura, embora
tivesse motivos para isso. Por outro lado, ela era a líder no comando, até
mesmo em relação às tias postiças. Morena, estatura mediana, cabelo liso e
comprido até a altura dos ombros, ela podia se passar por uma índia. Tinha
traços delicados, olhos escuros, o rosto no formato de morango. Era magra,
aparentando fragilidade. O que enganava quem não a conhecia de fato. O
olhar de Chapeuzinho Vermelho, na verdade, era apenas o disfarce da fera
ferida.
― Eles a mataram.
― Quem? Eles, quem?
― Os Manganelli, os bandidos.
― A gente a viu enforcada. ― enfatizou.
― Vou lhe dizer de um jeito que me entenda. ― falou como se a
considerasse uma retardada (e isso não era a primeira vez). ― Eles
suicidaram a nossa mãe. Sacou?
Olhou-a desconfiada.
― Como no caso do programa policial, só que ao contrário?
―Exatamente. Simularam um suicídio, porque a mataram. Devem tê-
la forçado a assinar o contrato, talvez nos ameaçando de morte e depois a
enforcaram.
― Mas a polícia...
― A polícia é dos Manganelli, assim como a prefeitura, a câmara do
vereadores e os juízes, promotores, comerciantes, empresários, fazendeiros,
todo mundo! É uma máfia! Até italianos os desgraçados são! ― quase gritou,
parecendo à beira de um colapso nervoso.
― Eles são brasileiros mesmo, mas de origem italiana. ― balbuciou,
preocupada com a revelação da irmã.
― Ninguém vai querer investigar um caso encerrado dez anos atrás. ―
considerou ela, zanzando de um lado para o outro na sala. ― Se juntássemos
dinheiro e contratássemos um bom detetive, teríamos a chance de provar que
ela foi assassinada.
― Ou não. Ele poderia confirmar o suicídio. ― ponderou.
― Ela foi assassinada. ― garantiu, olhando-a ferozmente. ― Ela foi
obrigada a assinar o contrato. Ela foi arrancada de dentro de casa e levada
para o meio do mato. Ela foi suspensa no ar e colocaram a corda ao redor do
seu pescoço. Ela ficou pendurada no galho mais alto. Alguém a dopou ou a
nocauteou com um soco e a levou até o alto da árvore. Ela não subiu por livre
e espontânea vontade no maldito ipê. Ou, pelo menos, tinha uma arma
apontada em direção a cabeça dela. Ou nos ameaçaram...
― Eles? A sua teoria tá tomando uma proporção enorme. Máfia
italiana, mandantes, executores, armas, suicídio simulado... ― parou de falar,
sentindo-se arrasada. ― O cheiro da morte, não sente? Você começa a
revolver tudo isso e o cheiro volta. Por que não continuamos as nossas vidas?
Era o que a mãe ia querer, nos ver felizes, amadas, com um bom trabalho e
estudando...
― E foi isso que aconteceu? ― indagou, secamente. ― A mãe tá feliz
debaixo da terra te vendo costurar para um bando de pobre que não tem onde
cair morto? Feliz em me ver carregando bandeja em meio aos ricaços
nojentos que economizam na gorjeta e fingem que você é invisível? Feliz em
ver a Rafa roubando besteiras no comércio? Dezessete anos, e ela rouba
desodorante, leite condensado, bijuteria, cigarro. Bate a carteira dos caras.
Uma golpista pé de chinelo que, em breve, estará atrás das grades. E a
faculdade, hein? Quem aqui terminou o Ensino Médio? Os Manganelli
tiraram a vida de duas pessoas, acabaram com o casamento da tia Joaquina,
sobrecarregaram a tia Paulina conosco e limitaram o futuro de três garotas.
Onde estão os seus sonhos, Zalon? Você queria ser médica, cuidar de
crianças. E a Rafa ia ser cantora country. E eu... ― deu de ombros, derrotada.
―Eles acabaram com os meus sonhos. Mataram os meus sonhos. Enterraram
qualquer chance de felicidade, porque todos os dias eu vejo a expressão de
incredulidade do rosto morto da minha mãe. ― ela parou de falar, foi até a
janela, respirou fundo e firmou a voz trêmula ao se voltar. ― Sem detetive.
Sem investigação. Sem advogado. Sem leis. Só existe uma maneira de deixar
a nossa mãe feliz. A gente precisa ser superior a eles, aos bandidos.
― Então fodeu.
― Vingança. Eles vão sofrer tudo que a nossa mãe sofreu e mais um
pouco. A missão da minha vida será destruir aqueles três malditos!
― Impossível. Somos pobres, e eles são milionários. ― balançou a
cabeça em negativo.
― Sabe por que as vítimas são atacadas por bandidos? Existe um
trocinho chamado elemento surpresa. Os tais milionários não sabem o que a
gente sabe. Eles não fazem ideia de que serão atingidos...
― Por nós? Eu e você? ― bufou. ― Afff, é mais fácil eles serem
atingidos por um cometa.
― Eu, você e a Rafa.
― A Rafa? Ok, vai armar a doida? Ela vai atirar na cabeça dos três
sem piscar, depois vai retocar o batom, roubar tudo que puder, ser presa e
suicidada na cadeia. ― argumentou, pondo-se de pé.
― Nada disso acontecerá se vocês seguirem o meu plano.
― Não gosto quando levanta uma sobrancelha só, parece uma diaba.
Diaba de verdade, do demo, do coisa ruim, capirotona.
― Ninguém usará armas letais, a não ser o cérebro.
― Ainda bem que é você quem tá planejando a tal vingança, o meu
cérebro é tão letal quanto uma pistola d’água. ― fez piada.
― Que bom que vingar a morte da nossa mãe desperte a sua veia
humorística, Zalon. ― ironizou, com azedume.
― Não disse que participarei do seu plano. E, se quer saber, talvez eu
não permita que a Rafa entre nessa. Vingança é algo sombrio e, por vezes,
cruel e fatal. Não vou matar ninguém.
― E quem falou em matar? O meu sobrenome é Toledo, como o seu, e
não Manganelli. ― salientou, secamente. As narinas dilatadas denunciavam-
lhe o estado emocional.
― Você é o nosso ponto de equilíbrio. Por favor, não perca o juízo. ―
implorou. ― A Rafa é a doida de pedra, e eu sou a escrava Isaura, aceito
carga pesada e ainda canto alegremente por aí. Mas você é diferente, é mais
velha e mais forte. A gente precisa de você inteira.
― Tô inteira, mais do que nunca, tô inteira! ― Maitê foi ríspida. ― E
se você me atrapalhar, Zalon, me vingarei sozinha. Serei eu contra três
milionários assassinos. As chances de vitória se reduzem drasticamente, mas
me sentirei em paz por ter dedicado a minha vida à pessoa que me alimentou
de todas as formas. ― ela respirou fundo quando a voz falhou. ― O fulano
nunca prestou, sei de histórias dele, vivia em puteiro. Um demente que
enganou a nossa mãe, conquistou o coração de uma mulher solitária, linda,
mas que se sentia feia. Ela se olhava no espelho a procura de defeitos que
somente existiam na sua cabeça. Eu dizia: você é maravilhosa, perfeita, mãe.
Ela ria alto e me tirava para dançar uma valsa maluca... PORRA! VOU
FODER COM CADA MANGANELLI! ACABAR COM OS TRÊS, LEVAR
OS DESGRAÇADOS AO LIMITE! ELES PRECISAM SOFRER! ELES
PRECISAM! Precisam! ― ela caiu de joelhos e levou as mãos aos cabelos,
puxando-os com força. ― Senão vou atrás dela, da Mariane, e por conta
própria. Não consigo mais viver sem um propósito. Não quero mais viver
assim.
Zalon sentiu o ar faltar e todos os músculos do seu corpo se
endureceram. O pavor a atingiu como um raio, partindo-a ao meio. Viu-se
afundando, caindo, caindo, caindo sem ter onde se segurar.
Até que o vento trouxe a tempestade da rua e não o cheiro da morte.
Loira como um anjo, cabelos longos de princesa de um reino de sonhos
e o olhar mais desvairado entre todos os malucos. Vestido curto, botas de
vaqueira, meia dúzia de colares, Janis Joplin do hospício.
― Ouvi tudo atrás da porta. ― não se justificou, foi apenas um modo
de introduzir o que realmente lhe era importante informar. ― Topo, tô
dentro, vamos acabar com aqueles cretinos!
― Não, Rafa. ― enfim conseguiu falar quase num sussurro.
― Ok, você fica, nunca teve estômago para enfrentar a vida real. ―
continuou, sorrindo ao piscar o olho para ela e depois se voltar para Maitê. ―
E, aí? Tô a postos, comandante. ― bateu continência.
Capítulo 2
Tia Joaquina era como uma segunda mãe para elas. Zalon desconfiava
que o jeitão bruto dela era uma casca que encobria um docinho cremoso todo
derretido. Ainda trabalhava como cozinheira e faxineira. Mas, agora, na
cidade. Mais precisamente na cobertura da ex-mulher de um grande
fazendeiro da região. À noite, frequentava o curso técnico de enfermagem.
Aos 46 anos, mantinha a viuvez como algo sagrado, intocado, um altar de
amor ao marido. A irmã mais velha jamais casou, não se apegava a hômi
algum, dizia Tia Paulina... ou melhor, se apegava a vários ao mesmo tempo.
Joaquina, por outro lado, queria investir em si mesma, estudar, ganhar mais
dinheiro e, assim, poder pagar a faculdade das meninas. Mas as Toledo eram
irredutíveis e jamais aceitariam o dinheiro vindo de exploração capitalista.
Por aquelas bandas, empregados domésticos (fossem cozinheiras, copeiras ou
arrumadeiras) eram obrigados a aceitar modestos salários para ter garantido o
registro na carteira de trabalho. Maitê disse que era para Joaquina se sentir
livre para chutar a bunda da patroa ricaça quando bem quisesse. Afinal, as
garotas de Mariane precisavam exorcizar seus demônios antes de pensar no
futuro a longo prazo.
― Vingança? ― tia Joaquina fez uma careta.
― Acho que você e a tia Paulina tinham de ficar fora disso, ok? ―
Maitê foi taxativa.
Zalon acompanhou a conversa, sentada à mesa do jantar, comendo
torta de carne moída de segunda, arroz e salada de alface com dois tomates
cortados em rodelas finas. O tomate, de acordo com tia Paulina, estava com o
preço do quilo pela hora da morte.
E quando era a hora da morte?
E por que o preço de um alimento era comparado à hora de uma
morte?
A mãe morreu pela manhã.
Maitê sabia a hora exata.
― Errado. Tenho uma espingarda. ― rebateu tia Joaquina.
― Ninguém vai matar os caras. ― Zalon apressou-se em ressaltar, sem
deixar de buscar a confirmação no olhar da irmã.
― Merdas acontecem. ― O comentário casual partiu de Rafa, que
sorvia o refrigerante aos golinhos.
― Quero os seus amigos bandidos fora disso. ― foi taxativa.
― Não, Zalon. Vamos precisar da rede de suporte do submundo.
― Maitê... não deixa, por favor.
― Zalon, Zalon, medo de quê? ― Rafa a encarou com seus imensos
olhos verdes. ― Acha que eu arriscaria a vida dos meus amigos fichados por
vadiagem os pondo cara a cara com os verdadeiros criminosos?
― Até agora, tudo que sei é que eles compraram as terras. Fiz toda a
pesquisa. ― começou Zalon. ― Fucei na internet, li todas as reportagens
sobre o Grupo Manganelli. E, lá na biblioteca, tem um livro sobre a história
de Santa Bárbara. Olha só, acho que os tais Aquino e Francesco não tinham
necessidade alguma de comprar mais terras. Os dois ganharam vários
hectares do governo, isso nos anos 80. Por que então se preocupariam em
comprar uma miséria a mais só para fechar uma conta ridícula de cinquenta
por cento?
― Os velhos só se interessam pela siderurgia e a empresa de
mineração. ― interveio tia Joaquina. ― Sabe a faxina que faço, todas as
quintas e sábados? Bem, é na casa de uma grã-fina, amiga da Verônica
Manganelli...
― Diabos, a mulher do Aquino. ― disse Zalon.
― Segunda esposa, né? O que aconteceu com a primeira? Morreu de
desgosto depois de ter parido o Roberto? Ou ele suicidou a mãe pouco antes
da puberdade? ― Maitê falou, num tom de ironia.
― Foi-se apenas.
― Gosto tanto quando você nos dá respostas lacônicas, tia Joaquina.
― Que bom, Rafa. Assim eu tenho certeza de que tá prestando atenção
no que eu falo. ― devolveu no mesmo tom debochado. ― E você também
me escuta quando digo que uma garota menor de idade não pode passar a
noite fora sem dar satisfações?
― Meu problema auditivo é caso para estudos científicos. ― deu de
ombros. ― Penso que seja um tremendo tumor no cérebro.
― Não te preocupa, que tumores cerebrais somente são perigosos em
cérebros sem água. ― provocou-a Zalon.
― Obrigada pelo consolo... que tirou da bunda. ― piscou os olhos
várias vezes feito uma bonequinha de desenho animado.
― Estamos perdendo o foco. ― reclamou Maitê, mal-humorada. ―
Tia Joaquina, pode guardar a espingarda. O meu plano é mais simples. A
gente simplesmente vai foder o psicológico deles.
Zalon ergueu a mão, pedindo a chance de falar.
― Nem todos tem psicólogo. Além disso, acho errado foder gente
inocente, psicólogos são como padres sem religião, não servem pra grande
coisa, mas já são algum alento.
― Presta a atenção! Me refiro à estrutura emocional dos monstros.
Isso, se eles não são psicopatas. ― enfatizou Maitê, olhando de uma irmã
para outra.
― A gente já viu os três.
― E daí, Rafa?
― Bem, é só fazer uma pequena análise. Eles se vestem bem, são
limpos, organizados, cheios de boas maneiras, diplomáticos...
― Menos o Miguel. ― interveio Maitê.
― Ok, então, acredito que todos sejam psicopatas. ― avaliou Rafa,
criticamente, a mão debaixo do queixo. ― Menos o Miguel. Gente grossa é
autêntica, mostra pra todo mundo a merda que é por dentro.
― Faz sentido. ― disse tia Paulina, soprando o pedaço de torta
equilibrado na ponta do garfo. ― Gente muito simpática é falsa.
― Um deles ou os três mandaram o advogado pressionar uma mulher
com três crianças cujo marido tinha dado no pé dois dias atrás. ― considerou
Maitê. ―Se são psicopatas ou não, isso não vem ao acaso. Precisamos
acessar os computadores da corporação e roubar todo dinheiro deles, desviar
para uma conta fantasma, sei lá, nas Bahamas.
― Ca-ce-te! É esse o seu plano? ― perguntou Zalon, incrédula. ―
Isso é ficção do pior tipo.
Rafa caiu na gargalhada.
― Angelina Jolie, você tá em Santa Bárbara e não em Hollywood.
― Maitê... ― começou Zalon, preocupada. ― Se esse realmente é o
seu plano de vingança, sinto muito, mas você não tem um plano.
― Rico só sente dor na conta bancária. ― argumentou Maitê.
― Ou dor de corno. ― emendou Rafa, mastigando de boca aberta a
mistura que fez do arroz, o pedaço de torta de carne esmagado no prato e a
folha de alface cortada em tiras. ― Dor de pau duro sem extravasar também.
Foi então que Zalon viu o brilho nos olhos da líder do trio... ou da
gangue, talvez quadrilha.
― É isso! Todos os três são solteiros...
― Sim, os mais cobiçados do país... Talvez da América Latina. ―
Zalon riu-se, nervosamente, esfregando as mãos debaixo da mesa. ―
Ninguém vai seduzir aqueles caras. Acha o quê? Tem um monte de mulher
que faz isso há anos, e eles continuam solteiros.
― E olha que são velhos pra caramba! ― ressaltou Rafa, empurrando
com a lateral do polegar a comida pra cima do garfo. ― Qual é a idade do
mais novo, Zalon?
Abriu o aplicativo que usava no celular como bloco de notas e leu sua
pesquisa. Rapidamente encontrou o nome e a idade dos envolvidos.
― O mais novo é o Ettore, tem 35 anos nas guampas. É o filho caçula
do Francesco Manganelli.
― Acho que uma pesquisa de campo será mais útil. ― considerou
Maitê.
― Agora moramos na cidade, o campo já era. ― refutou.
― Meu Deus, será que você também costurou os seus neurônios?
Parece que tô falando com uma...
― Retardada, Maitê? ― desafiou-a.
― Não, criança retardada de outro planeta. ― foi ferina, encarando-a.
― Epa, o outro planeta é a minha terra. Mais respeito, por favor. ―
levantou a mão Rafa.
―Então vão se vingar dos Manganelli? De todos os cinco? Eu soube
que o mais velho tá à beira da morte. ― a voz de tia Joaquina soou firme.
― Ótimo! Menos um para termos que foder com o psicológico. ―
disse Rafa, com ar debochado, escorando-se no encosto da cadeira. ― Se um
dos velhotes vai morrer logo e o outro ganhou terras do governo, a gente se
foca apenas nos filhinhos.
― Essa era a ideia desde o início.
― Maitê, eu não estava aqui desde o início.
― Você raramente tá aqui.
― Opa, chegou a parte do jantar de que mais gosto, a moça vai me
ensinar a viver.
― Chega disso. ― Zalon resolveu pôr fim no rumo daquela prosa que
mais as afastava do que as unia. ― Então a gente vai se infiltrar na família
Manganelli seduzindo os tiozões. É isso?
― Bem, o plano não era esse.
― Prefiro ser piranha a não me vingar desses cretinos. ― declarou
Rafa, voltando a comer. ― Traço os três e descubro quem matou a Mariane.
― Primeiro... ― começou tia Joaquina, com ar bem sério. ― ninguém
vai virar piranha. Segundo, você não vai traçar ninguém, é menor de idade, e
uma mocinha que precisa de amor e não de sexo. E, terceiro... até que se
prove o contrário, a mãe de vocês não foi assassinada. ― ela parou de falar,
respirou fundo e as encarou ao continuar: ― Mas acho válida a vingança,
porque os Manganelli a levaram a se matar. Indiretamente eles a mataram,
sim. Precisam sofrer, aprender a respeitar os seres humanos, rastejar pedindo
perdão...
― Então não importa como façamos isso. ― decidiu Maitê. ― Se eu
tivesse conhecimento de tecnologia, limpava a conta deles. Mas as armas que
temos são a juventude, a beleza e o ódio.
― Teoricamente... ― disse Zalon, encolhendo os ombros ― A gente é
bonitinha, mas eles são cercados de mulheres deslumbrantes, ricas e espertas,
loucas para laçar os milionários... Caramba, os caras se esquivam desse tipo,
muito experiente, por sinal, há anos... E nós somos apenas três garotas com
pouca instrução e nada de grana. Olha as nossas roupas! Tenho dois jeans e
cinco calcinhas!
― Tenho sete calcinhas e três jeans! ― ergueu a mão Rafa, sorrindo.
― Sou mais rica que você. Garanto que a Maitê vai dizer que tem 19
calcinhas e 34 jeans.
― Não, vou dizer é que isso não importa. A gente vai encarnar um
personagem, bancaremos as atrizes... Seremos filhas de um... milionário.
― Outro plano ridículo. ― garantiu Rafa, erguendo as sobrancelhas.
― Vou dizer o que faremos. Identidades falsas, roupas de gente montada na
grana e uma história triste de órfãs que não sabem o que fazer com a herança
recebida. Vi um filme assim. A golpista iludiu o ricaço, casou com ele e,
quando o idiota descobriu a verdade, já estava gamado, de quatro, e ela só
teve que montar e cavalgar em direção ao horizonte cor-de-rosa.
Um minuto de silêncio.
Tia Paulina foi a primeira a se manifestar.
― Todo plano criterioso tem chance de se foder por qualquer detalhe
besta. Mas um plano aloprado, se bem executado, pode dar certo.
― A parte criminosa deixa comigo. ― Rafa sorriu, expressando
prazer.
― Não.
― Maitê, ou a gente se vinga, ou a gente continua honesta e cheia de
autopiedade como você.
― Não sou assim, Ra-fa-e-la.
― É tudo ou nada. ― Zalon viu-se dizendo, sentindo o estômago
queimar.
Capítulo 3
Quando era criança, Roberto tinha medo do pai. Sorte sua que
raramente o velho estava na fazenda.
Desde cedo, quando fundaram Santa Bárbara, Francesco e Aquino
decidiram construir a mansão de cada filho na mesma propriedade deles. E,
como a área de terras era imensa a ponto de utilizar metade da cidade de 30
mil habitantes, todos conseguiram manter a privacidade intacta. Quando
entravam nos seus 16 anos, começava a construção da mansão a qual seria
ocupada um ano depois. Miguel, portanto, foi o primeiro a sair do casarão
dos pais.
Antes de Roberto se mudar para a mansão que ocupava até hoje, vinte
e um anos depois, a mãe desenvolveu um câncer agressivo. Em menos de seis
meses, ela desabou. Durante o tratamento de quimioterapia, o pai arranjou
uma amante e pediu o divórcio. Ele falou à esposa o motivo da separação: a
doença dela. E ponto final. Uma resposta curta e grossa. Roberto viu a mãe
chorar e a ouviu desejar que o câncer a devorasse o mais rápido possível.
Nada como fazer pedidos ao universo. Ela morreu duas semanas depois. E,
duas semanas depois do seu enterro, Aquino apareceu com Verônica e a
instalou no casarão onde ele viveu com Matilda.
― Tá me velando?
A voz fraca do pai o tirou do torpor que sentia ao viajar mentalmente
para o passado.
Foi até ele, sentou na beirada do leito, encarou-o tentando sorrir. Não
conseguiu esticar a boca para os lados o suficiente para obter a expressão de
um sorriso. Desistiu de se impor um tipo de leveza de espírito que estava
longe de sentir.
― O senhor é um vencedor.
― Câncer no pâncreas em fase terminal, e é isso que você tem para me
dizer? ― ele, sim, conseguiu sorrir.
O sorriso mau que lhe acompanhou a vida inteira.
―Acredito em milagres.
―Claro que sim, é tão sentimental quanto à sua mãe.
― Não fala da minha mãe, por favor. ― pediu, baixinho, lançando um
rápido olhar para o monitor cardíaco.
―A Matilda o mimou, fez todas as suas vontades, e você se tornou o
demônio encarnado.
― Por isso os exorcismos, pai?
Roberto ficou em coma por dois dias. Aos sete anos de idade, Aquino
o espancou pela primeira vez. Era o esporte preferido do pai. Voltava da lida
na fazenda ou do escritório da empresa, bebia uísque até turvar a mente e
liberar a veia sádica. Depois o chamava para contar o seu dia na escola. No
início, Roberto acreditou nele, que queria de fato saber sobre as atividades, o
futebol, os colegas, o novo uniforme e o motorista particular que o levava às
aulas do colégio católico.
Tudo começou com uma bofetada. Sem motivo aparente, entre a
conversa sobre a aula de educação física e o silêncio da incredulidade. Doeu-
lhe a bochecha. Não chorou. O pai não o deixou voltar para o quarto e o
mandou ficar de pé, no canto da sala, por mais de quatro horas. Os joelhos
queimavam de dor, a coluna, o corpo inteiro. Fraquejou e ajoelhou-se. Um
chute nas costas o pôs de pé novamente.
― Você teve tudo que quis. ― disse o velho, a papada debaixo do
queixo balançou, mole, sem o enchimento da gordura. ― Não terá mais. ―
acrescentou, com um leve sorriso.
― Não se aborreça com esse assunto. ― falou, suavemente, lançando
novo olhar ao registro dos batimentos cardíacos dele.
A mãe nunca o protegeu, sempre doente, acamada. Uma hora era
enxaqueca; outra, a coluna. Na maior parte das vezes, a depressão.
Lembrava-se do quarto escuro, onde ela dormia sozinha. As cortinas sempre
fechadas. As flores que as empregadas levavam para enfeitar os vasos, as
flores vermelhas, brancas, murchavam em menos de 24 horas. Ele se sentia
oprimido ao vê-la. Sentava na beirada da cama, e ficavam se olhando. Nada
tinham para falar. Ela desejava se entregar, porque jamais fora amada por
alguém. Família sulista, de origem alemã, nada de afagos, toques de pele,
passionalidade latina e aconchego. E depois se casou com Aquino,
mulherengo, egoísta e agressivo. Acreditou então que se salvaria sendo
amada pelo homem que pôs no mundo. Roberto, contudo, jamais amou a
fraqueza, a debilidade e a submissão. Ele não era o cara que afastaria as
cortinas para o sol entrar, tampouco a pegaria no colo para tirá-la do inferno
onde se meteu por vontade própria. Ainda que, no fundo, a amasse como um
desesperado. Mas como defender quem nunca o defendeu? Proteger quem se
omitiu de protegê-lo, fechando-se em sua própria concha de sofrimento e
autopiedade?
Beijou-a na testa após a sua morte. O velório e o enterro aconteceram
em questão de horas. No dia seguinte, as empregadas esvaziaram a casa de
todos os pertences da falecida patroa. As cortinas foram arrancadas, os
móveis do quarto, doados. A porta, por fim, trancada. E Verônica, a vagaba
da elite pecuarista, adentrou a mansão de Aquino Manganelli já se
preparando para assinar a certidão de casamento. Aceitou o acordo pré-
nupcial. Pois, embora viesse de família rica, sabia que o futuro marido a
colocaria de alguma forma no seu testamento. Não era uma puta burra; afinal,
nascera em berço de ouro.
Foi somente quando viu o pai beijar a testa da madrasta, de forma terna
e até amorosa, compreendeu a profundidade do sofrimento da mãe. Ele
jamais sentiu falta do amor paterno. Jamais. Sentiu falta do amor dela, de
Matilda Manganelli, a louca reclusa do quarto escuro ― como era conhecida
na cidade. Tarde demais descobriu que devia tê-la amado sem esperar nada
em troca, amado o frágil passarinho de asas quebradas. E, aos 27 anos, quem
se partiu em mil pedaços foi ele.
O pai fechou os olhos como se tivesse pegado no sono. Era um
velhinho de 70 anos que aparentava 90, enrugado, murcho, prostrado. O tio
Francesco, três anos mais novo, demonstrava o famoso vigor italiano, embora
fosse brasileiro. Contudo, era um homem altivo como todos os Manganelli,
menos Aquino, que sempre se assemelhou a um mafioso grotesco.
Roberto fitou-o com menosprezo, disposto a dar o fora dali o quanto
antes. Por mais que parecesse que o pai estivesse adormecido, sabia que não.
Era cada vez mais frequente a sua perda de consciência e a confusão mental.
― Desperdicei a minha semente quando fiz você.
Ouviu-o balbuciar, as pálpebras entreabertas, os olhos vazios.
― Se preferir, não volto mais. ― disse, com serenidade. Custava-lhe
muito visitá-lo. Não sabia por que o fazia. Talvez pela esperança de chegar ao
hospital e ser interceptado pelo médico, comunicando a morte do pai. Tinha
curiosidade a respeito dos seus sentimentos. O que realmente sentiria?
Alívio? Felicidade? Temia sentir falta dos insultos, da voz grossa e áspera
dando-lhe ordens e de lhe ver a pálpebra que tremia. Sim, a pálpebra direita
sempre tremia quando confrontava o filho. Roberto mantinha a compostura e
serenidade ao rebater os xingamentos agressivos, não perdia o controle de
suas emoções, aguentava o tranco, respondia à altura sem perder a classe e a
empáfia de homem superior. Aquino sabia a essência da tal semente que viera
dele. E, mais do que isso, a combinação com o lado sombrio materno. O pai
sempre foi violento e filho da puta com ele, porque o temia.
Os olhos opacos o fitaram, não havia nada dentro deles.
― Volta. Quero ver a sua cara...
― Tá me vendo... pai. ― sorriu, levemente.
O velho tentou esboçar um sorriso, a força até mesmo para sorrir
estava por um fio. Lidar com Roberto o matava devagar, assim como o
câncer que se espalhou por todo o organismo.
― A minha parte... jamais herdará a minha parte do Grupo
Manganelli. ― ele parecia juntar um resto de energia para jogar as palavras
pra fora da boca como projéteis de uma arma antiga.
Fechou os olhos novamente, o semblante assumiu um ar sereno quase
divertido.
Roberto se pôs de pé e acendeu um cigarro. Imaginou que um alarme
de incêndio se acionaria automaticamente ao exalar a fumaça pela boca. Nada
aconteceu, a não ser a mudança no rumo dos seus pensamentos. Rapidamente
ele considerou a parte matemática da coisa. A administração do Grupo
Manganelli era formada apenas pelos membros masculinos da família,
embora só restassem a tia Andrea, com demência senil aos 65 anos, e a sua
madrasta cheia de amantes. Cinco homens no comando. E cada um deles com
vinte por cento das ações do grupo. Com a morte do pai, Roberto herdaria os
vinte por cento dele e, somados aos seus, se tornaria o acionista majoritário.
Obviamente se o tio se unisse aos filhos, Roberto tomaria no rabo. Francesco,
no entanto, era um legítimo Manganelli, ou seja, desprezava a própria prole.
Era impossível que aquela parte da família se unisse. Mais fácil seria se um
matasse o outro para tomar o controle das empresas e fazendas.
Aquino então acabava de lhe dizer que todo o sacrifício que fez de
aturá-lo a vida inteira não tinha valido para nada.
O velho tornou a abrir os olhos.
― Não pode... fumar.
Sorriu para ele.
―Posso tudo. ― falou, quase num sussurro.
― Semente ruim.
― Às vezes belos frutos nascem de sementes ruins. ― arqueou uma
sobrancelha sem deixar de sorrir.
― Mudei meu testamento... semente...ruim.
Desencostou-se da parede e sentou à beira do leito novamente. Abriu
os botões do terno e suspirou resignado.
― Sei que mês passado o senhor procurou a sua advogada para me
tirar do testamento e deixar as suas ações para a mamãe Verônica. ―
começou, com bastante calma, um didatismo regado a cinismo. ― Então ela
faria parte da diretoria e iria se aliar aos meus primos, evidentemente,
minando o meu poder no conselho administrativo. À beira da morte, o seu
amor paterno prevaleceu forte como um tronco de carvalho em meio a
tempestade de verão. ― riu-se, baixinho. ― O senhor sabe que preciso me
tornar o acionista majoritário para esmagar o Ettore e o Miguel. Sim, claro
que o senhor sempre soube.
―Semente...ruim.
Roberto apertou a boca e, com o gesto, o cigarro pendurado no canto
dela. Sentiu cada músculo do corpo se retesar e a adrenalina minar as veias de
energia, preparando-o para o ataque como um felino que perdeu tempo
demais cercando a presa antes do abate.
Mas não atacaria um moribundo.
Só lhe mostraria o quanto de ruim a semente dele tinha.
― Quero que veja isso. ― ele tirou o celular do bolso do terno e
acessou o vídeo que lhe interessava.
Apertou o play e o deixou rodar. A tela aumentada e o volume ao
máximo eram como um show particular para o velho. Viu-o empalidecer e o
suor porejar na testa. Logo após um curto intervalo entre gemidos abafados e
gritos esganiçados foi possível ouvir a voz feminina implorando: mete tudo,
mete fundo, Roberto! Tudo! Quero teu pau bem dentro de mim, seu gostoso!
GOSTOSO!
Roberto sabia a cena a que o pai assistia. Era ele fodendo uma mulher
de quatro na cama, a bunda grande, os peitos siliconados, o cabelo
desgrenhado e a maquiagem borrada. Uma foda espetacular.
― Pensou que fosse a Verônica? ― a pálpebra direita do velho
começou a tremer descontroladamente. ―Ela não grita quando fode; mia
como uma gata no cio, o senhor bem sabe. Mas eu não trepei com a minha
madrasta, e isso até por uma questão de respeito...ao meu pênis. Desde que o
senhor baixou hospital, ela leva o personal trainer para endurecer a
musculatura da vagina, segundo as empregadas da sua mansão... pai. ― deu-
lhe uma chance de absorver a informação. ― Carine Alves Castro. Sabe de
quem eu falo, não? Bem... ― cruzou os braços diante do corpo, assumindo
uma postura displicente de alguém que contaria uma história inspiradora.
―Um dia antes de o senhor votar contra a minha decisão de fechar a
mineradora por operar no vermelho tempo o suficiente para quase foder com
os nossos demais negócios e, com isso, se unir ao Ettore e ao Miguel contra
mim e o tio Francesco, imaginei que iria alterar o testamento. Ainda mais
com o câncer avançando rapidamente. Então comi a mulher que não alterou o
seu testamento como o senhor pediu... pessoalmente, sem gravação,
assinatura ou testemunha. A Carine, essa deliciosa boceta... digo, advogada,
não fez qualquer alteração. Ganhou vários orgasmos, uma BMW e uma bela
casa em Natal.
― É mentira.
Roberto estacou a meio caminho da porta. O velho ainda estava vivo,
claro. Precisava tomar certas precauções. Pediria ao médico, amigo seu, que o
mantivesse sedado até o suspiro (ou chiado) final. Dores agudas, preocupação
de filho, não quero que ele sofra, tampouco que o irmão o veja delirar, falar
besteiras, meu pai não pode perder a dignidade nos últimos momentos de
vida, é um dos fundadores de Santa Bárbara, e eu ponho dinheiro na porra
desse hospital, poupa o meu pai mesmo que ele seja um canalha.
A ideia de um coma induzido parecia fascinante.
― Sicuro come la morte, chiaro come due piú due fa quattro.
Certo como a morte, como dois mais dois são quatro, foi o que disse
ao pai, com a serenidade da semente ruim que vingou em solo fértil.
Capítulo 5
A vizinha das tias tinha uma piscina de plástico no quintal dos fundos
de casa.
O dia estava mais quente do que nunca, e era um sábado. Maitê pegaria
no trabalho apenas à noite, e Zalon precisava descansar a coluna até continuar
com a costura. Rafa, por sua vez, terminava de escrever a biografia de cada
alvo numa folha de caderno, juntando as informações que Maitê lhe
repassara, mais as pesquisadas da internet por Zalon e as ouvidas por aí pelas
tias.
Ainda assim, tia Joaquina falou:
― Usem a festa para avaliar os alvos e, se puderem, se aproximar de
um deles. Cada uma começa a fazer o cerco discretamente.
Rafa parecia incomodada com o calor, o quintal de piso de cimento, o
muro alto, o sol que se infiltrava pelos buracos do toldo mofado, as moscas, o
cheiro da comida da vizinha, isso aliado à sua irritação natural, de berço,
podia-se dizer.
―Posso tirar a parte de cima do biquíni?
― Não, Rafa.
― Então me alcança o copo de caipirinha.
― Não, Rafa.
Zalon precisava manter a mais nova nos trilhos. Uma tarefa cada vez
mais emocionalmente exaustiva.
― Maconha?
― Sem drogas na minha casa! ― disse a vizinha, cabelo branco quase
da cor da pele. Sentou na espreguiçadeira, enfiada num maiô antigo, a
magreza do corpo mignon. ― Meu filho vendia tóchico. Um dia foi preso e,
quando voltou, quebrei a vassoura nas costas dele. Parou de vender essas
merdas, e agora vende pamonha na feira. Tem dinheiro e família. Me deu
essa piscina. ― olhou para Rafa e foi taxativa: ― Não pode mijar nela.
― Uai, sô! Mijo onde quiser.
― Para com esse sotaque ridículo.
―Por acaso, já falei que entrou um filmão em cartaz no cinema?
“Maitê: a pentelho encravado”. É proibido para menores de 80 anos, o resto
pode ver porque tá quase lá, depois da curva.
― Menina, eu tenho 81 anos e sou mais forte que você. ― disse a
vizinha.
― Só de se sentir obrigada a falar isso mostra que é fraca. ―
debochou.
―Por que não começa ler as fichas dos bandidos para nós, hein, ô
Rafaela? ― Zalon tentou ser diplomática.
― Tô falando com a velha.
― Rafa, por favor! ― Maitê sentou ao lado da irmã, à mesa debaixo
do guarda-sol.
― Vou ler na frente da velha?
― Cadê o respeito, Rafaela? ― perguntou a vizinha, baixando os
óculos escuros para fitá-la. ― Acha que tá entre seus amigos de gangue, é?
Maitê se pôs de pé, as mãos na cintura, o olhar cravado na senhorinha.
― A gente não precisa ouvir isso só por causa de uma piscina de
plástico. Saí daí, Zalon!
― Aiiii, mas tá tão calor! ― lamentou, deitando para trás na água, que,
se ela estivesse de pé, lhe alcançaria pouco abaixo dos joelhos. Afinal, era
uma piscina com a capacidade de mil litros.
Tia Paulina fez sinal para Maitê, e as duas se aproximaram da piscina,
assim Zalon pôde ouvir a conversa delas.
― A vizinha sofreu um AVC anos atrás, ficou meio lelé, não liguem
para ela.
― Dane-se, ela ofendeu a Rafa.
― Acha mesmo? Olha lá a sua irmã, rindo pra tela do celular, deve tá
vendo aqueles vídeos doidos dos iotôberes.
― Youtubers, tia. ― Maitê aparentemente se acalmou. Mesmo assim
não parecia convencida de permanecer ali: ―Não acho sensato comentarmos
sobre os Manganelli na frente da dona Mafalda.
― Acha que ela fará o quê? Vai telefonar para eles? Aquela ali vive no
próprio mundo faz tempo. O filho nunca foi traficante nem vende pamonha.
― O que ele faz então?
― Nada.
― Vixe.
― Não faz nada, porque não nasceu. A Mafalda é virgem, virgem raiz,
nem a bunda deu.
Zalon caiu na gargalhada.
Capítulo 7
Maitê era teimosa e mandona. Tudo saía como ela determinava, isso
desde quando eram crianças. Por isso Zalon ficou sem a piscina meia boca, e
agora elas estavam no centro da cidade, descendo do ônibus para entrar na
sorveteria a quilo.
Rafa vestia o biquíni por baixo da microssaia e a regata. Usava chapéu
de vaqueira. Ao passo que Zalon seguia a moda da irmã mais velha, jeans e
camiseta.
― É quilo de sorvete ou de ouro? ― apontou para a placa na parede do
estabelecimento.
― Vou pagar, Zalon.
― Ótimo, Maitê, pois pretendo comer até explodir. ― disse Rafa,
pegando um pote plástico de meio quilo.
Já sentadas à mesa, na calçada protegida por um longo toldo que não
estava mofado nem furado, Rafa começou:
― Vamos ao perfil de cada traste. ― encheu a boca de sorvete e
escolheu uma das fichas de cartolina para ler. ― Como o Miguel e o Ettore
são irmãos, acho mais organizado começar por eles.
― “Organizado”, parece vocabulário da Maitê.
Recebeu em resposta uma careta divertida da irmã.
― Depois temos que escolher os vestidos para o baile das Cinderelas
golpistas.
― Combinado, comandante. ― Rafa arqueou as sobrancelhas antes de
ler a ficha de Ettore: ― Como as gatas borralheiras sabem, o Ettore é o filho
mais novo do Francesco. Ele é um dos CEOs do grupo, faz parte do conselho
administrativo desde os seus 23 anos, quando começou a trabalhar lá depois
de se formar nos Estados Unidos. Bem, isso foi o que a Zalon encontrou na
internet. Agora vou ler o que o povo fala por aí: trata mulher como copo
descartável, usa e joga no lixo. Sacaram que amor? Porém, dizem que é
educado, tipo, não humilha ninguém... além das mulheres que se apaixonam
por ele. Olha, o cabra é sexy e bonitão, tá bem conservado para os seus 35
anos... Ok, Maitê, não me olha assim, sei que a minha opinião estética não
interessa. Bem, ele gosta de cavalgar e inclusive tem um haras particular e,
como os outros, vive para o trabalho e se isola na propriedade da família.
Viaja seguidamente pelo país e exterior e, novamente, diz o povo por aí, leva
consigo uma assistente executiva diferente em cada viagem, ou seja... puta de
programa. Alguma dúvida sobre Ettore Manganelli? Posso passar para o
irmão dele?
― Vazio. Ele é vazio.
― Milionário, né? Queria que fosse cheio de quê, Maitê? De
sofrimento por não ter um pônei? ― indagou Zalon à irmã mais velha.
― Ele tem um haras, deve ter um pônei.
― É, cavalo é o que não falta por lá. Vamos ao cavalão do mais velho,
o coroa, o caindo aos pedaços, o coroa-bom-de-bola, o...
― Chega, Rafa. Lê logo a ficha do Miguel.
― Calma, sô. Tá estressada? Vai pescar, vacona.
Zalon meteu uma boa colherada de sorvete na boca, assim gelava a
língua e acalmava a vontade de rir da irmã caçula. Ô danada de peste!
― O Ettore é o menos perigoso. Hômi mulherengo é alvo fácil.
Portanto, será ele quem você vai atacar... Zalon.
Cuspiu o sorvete na mesa. Mas antes engoliu um pouco dele, que
entrou pelo lugar errado. Engasgou-se e, em seguida, sentiu vários tapas nas
costas. Eram suas irmãs querendo lhe deixar tetraplégica, só podia.
― Deu, tô bem, pelo amor de Deus! ― pediu, erguendo os braços.
― Pensei que fosse morrer. ― disse Maitê, olhando-a criticamente ao
voltar a se sentar. ― Você é a parte mais frágil do trio. Não me refiro à
personalidade, ok? E sim ao fato de que não tem o mesmo ódio no peito
como eu, nem é fora da casinha como a Rafa...
― Obrigada, de nada. ― Rafa sorriu e, num gesto peculiar todo seu,
inclinou a cabeça e piscou os olhos várias vezes.
― O Ettore então também é o mais frágil do trio? ― tentou ocultar o
sarcasmo, mas não conseguiu. ― Não sou fraca nem ingênua, posso lidar
com qualquer um.
― Não, o Ettore deve pensar com o pau. Mas o pior deles vai ficar pra
mim. ― determinou Maitê, taxativa, mal deslocando os maxilares para falar.
― Não preciso das suas fichas, Rafa. O cara que é filho único de um tirano
fascista, criado por ele como um reizinho, mimado, o filhinho do papai,
adulado, só falta a coroa e o pedestal... Vocês sabem, aliás, todo mundo na
cidade sabe que esse Manganelli é cruel, arrogante e, provavelmente, o
mentor do plano de assassinato da nossa mãe. Ele deu a ideia aos primos!
Esse desgraçado é o MEU alvo.
― Roberto Manganelli. ― balbuciou Rafa.
― As tias também acham que era ele quem queria as nossas terras.
Parece que é o mais ambicioso dos três, e dizem que o pai dele matou gente
logo que chegou ao Centro-Oeste, mas tudo foi encoberto, porque ele já era
rico na época, os pais tinham terras no Sul do país. ― concluiu Zalon.
― Merda, me sobrou o Matusalém. ― bufou a caçula. ― Pelo que li
aqui nessa porra de ficha, o tal Miguel é outro tinhoso. Não tem mulher que
fique muito tempo com ele. Tem 38 anos... diabos, quase 40. ― bufou de
novo. ― A parte do e o povo diz é péssima, parece que ele joga coisas longe
durante as reuniões do alto escalão, é antissocial e vive enfiado no meio dos
bichos da fazenda. Não estudou fora, como o irmão, e o povo diz que o
Francesco não o queria como CEO da corporação, ele só tá por insistência do
Aquino. Pensem bem, o pai do bicho não queria ele na empresa! Mas o pai do
Roberto apoia o filhinho! Tem alguma coisa errada aí. Maitê, você tá me
dando o velho esclerosado só porque tá de olho no bonitão com cara de mau!
― Por acaso, você já viu a aparência do tal velho esclerosado?
― Ui, não precisa se irritar! ― gargalhou. ― A minha vida é do outro
lado da estrada, lá onde a gente mora, com a minha galera. Talvez eu já tenha
visto o velhote, talvez, não. Mas é como tá na ficha, o bicho não sai do
estábulo. ― deu de ombros, resignada.
― Ele é lindo.
― Lindo, Zalon? Um dos caras que destruiu a nossa família? ― Maitê
foi mordaz.
― Não seja radical. Os três são bonitos e sensuais, têm aquela coisa de
virilidade rústica de caubói com a sofisticação sacana de milionário. Não sou
cega nem burra. Sei que não prestam, a embalagem é maravilhosa, mas o
conteúdo é podre. Se você fizer cara de nojo ou de raiva toda vez que se
referir a eles, não vai conseguir se vingar, essa é a verdade.
― Concordo com a Zalon. Agora me mostra a foto do cavalo velho.
Zalon sabia exatamente como era cada um dos Manganelli. Por mais
que vivesse enfiada em casa, costurando com a tia, às vezes, dava as suas
voltas na cidade. Os fundadores de Santa Bárbara, desde o início, sabiam que
o novo município atrairia tudo que era tipo de gente e não apenas os
fazendeiros ricos do Sul, como eles próprios o eram. Assim como em
qualquer lugar, pensaram num modo de não misturar as classes sociais. Quem
se ferrou ou quem trabalhava para os bem-sucedidos vivia do outro lado da
estrada que cortava a cidade, logo após o portal de entrada. O bairro operário
era de fato de gente trabalhadora, que pegava ônibus depois de oito ou dez
horas de trabalho no comércio e nas poucas indústrias. Voltavam para casa
em questão de minutos, contudo, a paisagem ao redor mudava sobremaneira.
Chão batido, casas simples e vários mercadinhos informais. A energia
elétrica, esgoto e água eram regularizados. Mas quando chovia, tudo virava
um lamaçal dos infernos. Tinham um posto de saúde, mas os casos mais
graves eram atendidos no hospital público, do outro lado da estrada. Os
inviáveis, embora necessários. Os excluídos, embora vitais para o
funcionamento da cidade. Afinal, quem vivia, por exemplo, sem os lixeiros?
Uma cidade bonita, arborizada, planejada não podia dividir espaço com a
feiura estética da pobreza. Por isso a segregação. Rafa apelidou o lugar onde
moravam de zumbilândia.
― É o que o povo da cidade acha que somos, ora. Zumbis.
E foi ela mesma quem soltou uma exclamação esganiçada:
―PUTA QUE PARIU! Quero ser a cuidadora desse coroa!
Sim, acabava de ver a foto de Miguel Manganelli.
― Trinta e oito anos, por favor, não é um coroa. ― censurou-a.
― Ele tem 21 anos a mais que a Rafa, podia ser pai dela. Portanto, é
um coroa. ― disse Maitê, com rispidez, pegando da mão da irmã o seu
celular de volta.
Pronto, anotação mental: não posso falar pra Maitê nada, nadinha
positivo dos bandidos italianos.
― Então, resumidamente, eu conquisto o Miguel, e a Zalon fica com o
Ettore. Você, Maitê, pega o Roberto. E depois? Cortamos a garganta deles na
primeira transa?
― Ninguém vai fazer sexo com esses canalhas. ― disse Maitê.
― Ah, entendi, vamos conquistar só com beijinhos, tipo...como se faz
na quarta série.
― Rafa, a ideia é descobrir quem mandou o advogado atrás da mãe, ou
melhor, quem mandou o advogado primeiro atrás do fulano. Sem a assinatura
do infeliz, ela não teria se sentido pressionada a assinar o maldito papel.
― Maitê, por que a gente não procura o fulano e pergunta pra ele? ―
sugeriu Zalon.
―Me passa o endereço, que eu pego a espingarda da tia e vou
interrogá-lo. ― respondeu, com azedume. ― Se eu soubesse onde ele tá, com
certeza, a empreitada seria mais fácil. Olha só, a gente vai jogar com os caras,
entenderam? Seduzi-los até arrancar a verdade. Eles nunca nos viram, somos
invisíveis pra esse tipo de pessoa. O Ettore tem um ponto bastante fraco que é
a mulherada, e você, Zalon, é novinha, loirinha e com cara de inocente. E o
fato de não fazer sexo com um cara que se acha, um mulherengo disputado a
tapas no mercado, o colocará na palma da sua mão. E caso não aconteça o
esperado, pelo menos estaremos dentro da casa de cada um deles e
poderemos investigar o interior para encontrarmos o contrato de compra e
venda da nossa fazenda. Quem o tiver, foi o cretino que mandou o advogado
pressionar a mãe e, se não foi o mandante, ainda assim foi o responsável pela
morte dela.
― E o que faremos quando descobrirmos o dono das nossas terras?
Zalon notou que Rafa largou o sorvete de lado para também concentrar
seus olhos em Maitê.
―O que aconteceu a nossa mãe?
Rafa antecipou-se ao responder antes dela, e Zalon temeu o sorriso
cruel da irmã mais nova que combinava com o mesmo tipo de olhar da irmã
mais velha.
― A gente vai suicidar o Manganelli.
De repente ela se sentiu tonta e sem ar. Fingiu que estava tudo bem,
não demonstraria o medo que a comia viva. Não era a pessoa mais frágil do
trio, Maitê estava enganada. Talvez ela fosse a única a pensar nas
consequências de uma vingança.
Nunca eram boas.
Capítulo 8
*Cabelo marcado para às 21h, salão exclusivo, fechado. Não se atrase, meu
motorista irá buscá-la. Até mais, Diavolo*
*Não posso ser vista na sua picape de luxo com motorista. O povo é
fofoqueiro, vai chegar aos ouvidos do Ettore*
*Faça como quiser. Se chegar atrasada, arranjo outra quenga pra treinar*
― O que é isso?
― O lugar onde eu estava dez anos atrás, como queria saber. ―
respondeu, com naturalidade. ― Não tá vendo a data abaixo do carimbo. O
nome do lugar é em homenagem ao dono de uma a cidade no interior do
Mato Grosso. Ele também é proprietário do sanatório que só atende pelo SUS
e convênio de pobre. Mas fez uma concessão aos Manganelli, acolhendo um
workaholic com problemas mentais. ― disse, com ar divertido.
Ela precisou sentar no imenso pufe no meio do closet.
― Foi internado numa clínica psiquiátrica?
― Sim, aos 27 anos.
― Ficou internado por... ― leu a ficha cadastral dele, como paciente
― dois meses.
― Pois é, então não tive como fazer nada contra a sua mãe. Na
verdade... ― ele sentou ao lado dela para calçar as meias e os tênis e
comentou com naturalidade: ― Meu pai me internou depois de quase ser
morto por mim. Tentei esfaqueá-lo enquanto ele dormia. Por um segundo
rocei a lâmina no pescoço dele, naquela veia mais saliente, a cheia de sangue,
sabe? Imaginei então que certamente descobririam que eu era o assassino e a
minha carreira na empresa iria se foder. Preferi então não o matar. Mas ele
acordou e me viu com a faca na mão. Tio Francesco acredita que surtei de
tanto trabalhar. Miguel não queria a minha internação, ele pareceu até
inclinado a me apoiar, mas não se meteu no assunto. Ettore me abraçou e
sussurrou: você precisa descansar, meu primo. Ele pareceu sincero, mas
depois, já na ambulância meio grogue de sedativos, notei que sorria com ar
superior. Passei duas semanas dopado e o resto pensando em como destruir
os Manganelli, cada filho da puta que me mandou para o hospício.
Inesperadamente Zalon o abraçou e o beijou na testa como se fosse a
sua melhor amiga.
Capítulo 29
Ela acordou e soube que era dia quando notou a claridade do quarto ao
abrir os olhos. Fechou-os novamente, espichando o corpo sentindo aquela
sensação gostosa de plenitude, de ter dormido bem e, quando os abriu
novamente, viu duas gotas do oceano a fitando.
Ficaram se olhando por muito tempo. O rosto de Roberto expressava
serenidade, embora os olhos pareciam a inspecionar por dentro. Era estranho
esse pensamento, mas a impressão que tinha era a de que ele tentava ler a sua
alma. Ou talvez ainda estivesse dormindo, mas de olhos abertos.
― Bom dia. ― disse, baixinho, testando o sonambulismo dele.
Nada mudou. Ele continuou a encará-la, deitado de lado, um braço ao
redor da cintura dela.
O celular tocou e era o início de uma música clássica famosa. Portanto,
a ligação não vinha do aparelho dela. Mas Roberto a ignorou.
Até que suspirou profundamente e falou numa voz rouca e sonolenta,
sem abandonar o seu típico arzinho irreverente:
― Bom dia, minha adorada noiva. Sonhou comigo?
― Não, sonhei com o Thor. ― brincou, vendo-o fazer uma careta de
descontentamento.
Ela tentou sair da cama, mas foi pega pelo pulso e puxada para cima do
corpo dele.
― Aonde pensa que vai sem a minha autorização? ― ele parecia falar
sério, embora houvesse um tom de perversão no modo como olhava para os
lábios dela.
Zalon não se fez de rogada. Ela tinha debaixo de si um homem tesudo,
cheiroso e com ar sacana. Ergueu-se ligeiramente sobre ele, pegou na mão o
pau já ereto e sentou bem devagar nele, deitando a cabeça para trás ao senti-
lo a penetrar, deslizando com dureza, pois ainda não estava lubrificada.
― Tá doendo, não? ― ele gemeu, observando-a franzir o cenho.
― É assim que gosto.
― Sem preliminares?
― Assim que gosto de fazer com você, quis dizer...
Não conseguiu completar a frase, pois ele levantou meio corpo e,
agarrando-a na nuca, beijou-a. No meio do beijo, mordiscou-lhe o lábio
inferior e depois sugou a língua dela como fazia quando a chupava no sexo.
Ela o cavalgou com força, segurando-se nos ombros dele, os seios
sacudiam ainda que fossem pequenos, o suor pingava dos bicos duros.
― Tô viciada em você! ― arfou, a voz saiu grossa e pesada.
Ele a girou para debaixo de si mesmo e, sem se retirar de dentro dela,
fincou os joelhos na cama, arreganhou-lhe as pernas e deslizou o pênis de
modo a friccionar o clitóris a cada arremetida na boceta agora molhada de
tesão.
― Minha garota.
Mal ouviu o que ele falou, o zumbido alto e grave do orgasmo a
ensurdeceu. Parou de respirar ao ser atingida pela onda quente de prazer.
Sentiu-o estremecer e viu a feição máscula se modificar. Ele apertou os olhos
e entreabriu os lábios em busca de ar.
Inclinou a cabeça e viu a musculatura das coxas masculinas
trabalhando enquanto ele continuava a fodê-la sem parar, até levá-la ao
segundo orgasmo.
Depois de gozarem, o silêncio. Na verdade, dava para se ouvir o som
pesado da respiração de ambos.
Ela se virou para fitá-lo e, sem rodeios, falou:
―Quero mais.
― Eu também.
E Roberto a fodeu novamente.
Depois, exaustos, abraçaram-se. As pernas entrelaçadas, a cabeça de
Zalon descansando no peito largo e firme de Roberto. A calmaria latejante
após a tempestade sexual.
Acordaram perto das duas da tarde.
― Preciso voltar para casa. ― disse, sem a menor vontade de se
desvencilhar dos braços dele. ― Será que a Rafa ainda tá por aqui?
― Você não precisa voltar para casa, e a sua irmã não tem cinco anos
de idade. ― resmungou, a boca colada na testa dela.
― Hoje é dia de semana. O patrão trabalha se quer? ― provocou-o,
fazendo um carinho no cabelo loiro e desgrenhado dele.
― O patrão só faltou ao trabalho quando foi internado no clube dos
desajustados. ― brincou, rindo-se baixinho. ― Mas não penso em sair dessa
cama tão cedo.
― Tá acordado mesmo?
― Sim, bem acordado ao lado da minha leoa acuada.
― Sua voz tá tão sonolenta. ― provocou-o.
Ele baixou a cabeça e a beijou levemente nos lábios.
― Não é sonolência, meu anjo, é paz de espírito.
― Pensei que não soubesse que isso existe.
― Sei que o planeta Marte existe e nunca estive lá. ― disse, numa voz
divertida, beliscando-lhe a nádega. ― Mas a verdade é que nunca me senti
em paz como agora.
― Eu também não. ― sorriu, beijando-o a seguir no rosto.
― Deve ser a tal da química sexual, como se diz. ― gracejou, com
certo cinismo.
O tom que ele usou a fez recuar na intenção de lhe ser carinhosa.
Recolheu o sorriso do rosto e a vontade de continuar abraçada nele.
Conseguiu, enfim, se soltar e sair da cama.
― A porta tá trancada.
Foi o que ouviu, depois de vestir o robe dele para sair da suíte a fim de
procurar a irmã.
― É só destrancar. ― viu que a chave não estava na fechadura.
― Sim, claro. ― respondeu ele, com displicência, os braços cruzados
debaixo da cabeça. ― Quando eu quiser evidentemente.
Zalon escorregava de um lado para o outro na corda bamba dos
próprios sentimentos. De um lado, o vício de tê-lo consigo o tempo todo e, do
outro, a raiva por ele ser quem era.
― Cárcere privado?
― Não. ― respondeu, olhando-a seriamente. ― Vontade de ficar com
você.
― Certo, tudo bem, mas preciso te lembrar que o Ettore tem de nos ver
juntos?
― Outro dia, outra hora. ― ele esticou a mão, acrescentando um
sorriso charmoso ao pedido: ― Vamos apenas ficar juntos. Tirar férias do
mundo real, o que acha? Eu serei o seu Diazepam, e você será o meu... deixe-
me ver... Carbonato de Lítio. ― brincou, sorrindo abertamente.
Droga, preciso ser mais forte. Ele diz que o Ettore é um dom, um
cabra que domina a mulherada, mas é ele, Roberto, quem tá me dominando.
― Precisamos manter o foco.
Mesmo falando firme uma frase coerente e racional, aceitou a mão
estendida, os dedos que se entrelaçaram, os olhos nos olhos. E, quando deu
por si, deitou ao lado dele. Roberto a pegou debaixo do queixo para beijá-la e
depois declarou:
― O meu foco nesse momento é você.
Mais tarde ele interfonou para a cozinha e mandou que levassem o
almoço à suíte principal. Zalon ouviu indagar ao mordomo sobre o paradeiro
de Rafaela e, assim que encerrou a ligação, disse que a irmã ainda estava
dormindo.
― Ela se sente à vontade, isso é bom. Relaxa, Diavolo. ― a voz
macia e persuasiva. ― Agora vamos tomar um banho.
Debaixo da ducha, ele a puxou para um longo abraço. Ela fechou os
olhos, imaginou-se debaixo de uma cachoeira morna, o jato forte da água
batendo na sua nuca quando deitou a cabeça no peito dele.
Quando Roberto era terno, Zalon tinha vontade de chorar. Uma tristeza
antiga de uma vida não lembrada, soterrada num trauma, uma tristeza que
vinha à tona.
― Chora.
― Não quero. ― mentiu, levantando a cabeça para o encarar, mas a
água que pingava do cabelo dele a molhou nos olhos, e ela os fechou.
― Quer que eu a faça chorar?
― Não tem esse poder sobre mim.
― Eu sei que não. Talvez seja por isso que não consigo abrir a porta
do quarto e deixá-la partir.
― Não quero partir. ― admitiu, abraçando-o.
Zalon, mais tarde, soube que Rafaela voltou para casa à tarde, assim
que acordou, almoçou e tomou banho de piscina. O convite de Roberto foi
estendido para o resto da semana, caso ela o quisesse. Mas a garota preferiu
aceitar a carona para o bairro operário. Antes disso, porém, pediu para ele
fazer Zalon ligar o celular, queria lhe falar.
― Vocês não saíram do quarto o dia inteiro, os empregados estão
falando coisas sacanas sobre os dois. E o Ettore nem apareceu por aqui,
então não sei o motivo desse fingimento todo.
― A bateria do meu celular tá acabando...
― É só carregar, uai! Não tenta enganar a malandra aqui, cês tão é
fodendo, né? Ô cacete, essa vingança vai virar uma putaria só. ― reclamou,
mal-humorada.
― Bem, vou lhe dizer de outra forma: a bateria do meu celular tá
viciada.
Dito isso, desligou o aparelho.
Ela secou o corpo de Roberto com a toalha macia, e ele a carregou no
colo de volta para a cama. A mesa, no amplo terraço, já estava posta quando
chegaram.
O almoço delicioso não a satisfez. Aquela ânsia em comer até se
entupir como reflexo do medo de passar fome não existia mais. Provou um
pouco dos legumes, da carne e da massa tortei. Bebericou o vinho e saboreou
o pudim de leite. Não quis café preto.
O mordomo juntou rapidamente a louça usada e a pôs no carrinho de
inox e levou tudo para fora do quarto, arrastando-o nas rodinhas que, vez ou
outra, esbarravam na barra dos diversos tapetes espalhados pela suíte.
O robe que vestia era longo e largo, cabia no corpo de Roberto, mas,
para ela, ficava imenso. Prendeu o cabelo loiro num coque displicente, no
alto da cabeça, e se debruçou na amurada em torno do terraço, a altura
equivalente à de um prédio de três andares.
Observou os vaqueiros conduzindo os cavalos e, mais ao longe, o
rebanho de nelore. A planície verdejante, o arvoredo fazendo uma boa
sombra próximo à piscina logo abaixo. Admirou o belo jardim e lembrou o
quanto o dono daquela parte da propriedade era um entusiasta de jardins. E,
por um segundo ou dois, desejou viver o resto de sua vida ali, não na fazenda
do Grupo Manganelli. Queria viver era com Roberto. E, se ele de fato não era
o assassino de sua mãe nem o responsável pela coerção da compra das terras,
por que se impedir de amá-lo?
Foi como um raio. Não podia explicar a si mesma de outra forma a
resposta que lhe veio à mente ao desejo de aceitar que estava se apaixonando
por Roberto Manganelli. E, serpenteando com fúria, a resposta também a
atingiu feito um raio: não tenho material emocional para me apaixonar.
Foi o que Roberto declarou meio que a avisando para que também não
se apaixonasse.
Sentiu as mãos dele pousarem nos seus ombros e depois massageá-los.
― O médico, amigo meu, que trabalha na UTI onde tá o meu pai,
acabou de me ligar. ― Ele a abraçou por trás e falou junto à sua orelha: ― O
velho tá quase lá, e os demais Manganelli estão cercando a futura carniça.
― Vou com você.
― Claro que sim, irei apresentá-la como minha futura esposa.
Ela se virou de modo a encará-lo com seriedade ao afirmar convicta:
― Conta comigo, Roberto.
― Obrigado. Será uma honra tê-la ao meu lado em um momento tão
perfeito como esse, Diavolo.
Capítulo 30
Dali a poucos dias, ela estaria casada com Roberto. Tudo aconteceu tão
repentinamente que lhe custava absorver o teor da mudança e as
consequências disso.
Viu quando o noivo preencheu um cheque de valor vultoso ao dono do
cartório para que acelerasse o processo da papelada, e o outro lhe garantiu
que estariam casados no máximo em uma semana. Ou melhor, que os papéis
do casamento no civil estariam prontos para serem assinados.
De certo modo, estranhou a pressa em se casar. Tentou não pensar
besteira. Fez de tudo para distrair a mente, não a deixando entrar no terreno
da especulação sombria e pessimista. Acreditava que fora coincidência ele ter
resolvido casar assim que soube da herança. Porém, imaginou, por um
momento, que algo aconteceu no escritório. Mas não tinha como saber direito
o quê. Afinal, qual seria a ligação entre a leitura de um testamento e um
inesperado pedido de casamento? Mais do que isso, o que a intrigava era a
pressa do noivo em se casar.
Mas acreditou na sua declaração de amor. Embora não tenha lhe dito
que a amava e sim que estava apaixonado. E, a bem da verdade, Zalon não
sabia se havia ou não diferença entre as duas expressões. Talvez, para
Roberto, estar apaixonado significava amar alguém. Para ela, contudo, eram
sentimentos de níveis desiguais. A gente podia se apaixonar todos os meses
por um cara diferente, a questão da química física ou intelectual atraía um
para o outro. Mas isso não significava que a paixão iria se transformar em
amor. Em última análise, sentir amor era alcançar o máximo dos sentimentos,
o rei deles, o leão da floresta. Amar era se colocar no lugar do outro, planejar
uma vida inteira a dois, caminhar de mãos dadas como se ninguém fosse
capaz de os separar. O amor transcendia, aprofundava, preenchia e
transbordava. Enquanto a paixão explodia, intensa e louca, e depois se
apagava. Até chegar a próxima.
Ela tinha certeza de que amava Roberto.
Foi ele quem lhe abriu a porta da picape, saindo de trás do volante para
contorná-la e se postar ao seu lado.
― Virei buscá-la à noite.
― Tudo bem.
Ele a beijou de leve nos lábios.
Ao se afastarem, teve o rosto tomado pelas mãos grandes e masculinas
enquanto era avaliada detidamente por um par de olhos bastante sagaz.
― A Maitê não vai gostar do nosso casamento.
― Você também é rico. ― brincou, sem jeito.
― Rico e apaixonado por você. Evidentemente, sou o cara perfeito
para os planos dela. Mas, ainda assim, não sou o Ettore, e a sua irmã me
parece exercer o papel de líder do bando.
― Não somos um bando. ― falou, ressentida.
― Bando de garotas do campo, Zalon. Não quis ofendê-la.
Ela baixou a cabeça, incomodada com a intensidade daquele olhar.
Tinha a impressão de que era analisada e avaliada por ele o tempo todo.
― Minha irmã sabe o que é melhor para nós. ― disse apenas.
― Ela só tem 21 anos, não sabe nada da vida para ser considerada
como mentora ou modelo.
― Somos unidas.
― Até algo acontecer e as separar. ― foi amargo. ― Meus primos e
eu também éramos unidos até o início da adolescência. Para mim, o Ettore
era como um irmão mais novo, o caçula, e o Miguel, o mais velho, que sabia
mais sobre o gado e as terras. Mas o tempo passou e nós mudamos. Nossos
pais incentivaram a competição entre os rapazes da segunda geração da
família no Centro-Oeste, e as nossas mães caíam de cama, doentes, sem
poder intervir e mudar a porra do nosso destino.
― Acho que os seus primos gostariam de retomar a amizade.
― Oh, sim, em especial, o Ettore. ― zombou. ― O camarada me traiu
com a minha própria noiva, pelo amor de Deus.
― Ele quis chamar a sua atenção para o fato de ela não ser confiável. E
não era mesmo.
― Foi o que o idiota lhe disse? ― indagou, com rispidez.
― Sim, e acreditei nele. Parece que fez o mesmo com uma das
namoradas do Miguel, e a mulher o esbofeteou e contou para o namorado, no
caso, o irmão dele. Viu, essa aí tinha caráter, mas a sua noiva não. O Ettore
tem pavor da família perder tudo para uma vigarista.
― Eu sei o motivo. ― comentou, olhando-a fixamente. ― O meu pai
quase perdeu tudo para a Verônica. Isso só não aconteceu porque o tio
Francesco o obrigou a fazê-la assinar um acordo pré-nupcial. A vagabunda
era rica, mas dinheiro nunca é demais. ― e, olhando para o horizonte,
acrescentou: ― Assim como o poder nunca é demais.
― Dinheiro e poder. É por causa dessas merdas que famílias inteiras
são destruídas. ― comentou, controlando a irritação.
― Sim, as que passam fome, você quer dizer. ― brincou, beijando-a
na ponta do nariz. ― Tenho que ir, minha Diavolo. Nada irá mudar se
continuarmos a filosofar debaixo do sol.
Agora ela estava na cozinha, sentada à mesa, bebendo suco de laranja
artificial, aqueles com bastante corante.
Sentia-se tensa e receosa de enfrentar a ira de Maitê e das tias ao contar
que se casaria com um dos Manganelli. Sabia, por outro lado, que Rafa
entenderia a sua escolha. Talvez até a ajudasse a acalmar as outras feras.
― E acreditou? ― foi a primeira pergunta que recebeu da irmã velha.
― De uma hora pra outra, o Roberto se apaixonou por você?
― Bom, a gente já tava um tempo juntos...
― Fo-den-do. Só isso.
― Nossa, Maitê, que boca suja. ― reclamou tia Paulina.
― Sujeira é o que a Zalon tá fazendo ao se casar com um daquela
família nojenta.
― Ele não tem nada a ver com o que aconteceu a nossa mãe. ―
argumentou.
― Mas faz parte da família, tudo igual.
― A Maitê tem razão. ― tia Paulina novamente interveio, agora
sentando à mesa, dando a entender que participaria da conversa. ― É uma
questão de índole, um fruto nunca cai tão longe do pé.
― Ele odeia o pai, foi maltratado quando era criança.
― Mas é um cabra ambicioso demais, como uma maldito Manganelli
que é.
― Maitê, eles não se suportam e isso mostra o quanto são diferentes.
― É você quem tá vendo diferença entre eles. ― reagiu a irmã. ― E
sabe por quê? Amor, o amor nos cega. É clichê? Sim, um clichezão da porra,
mas também a mais pura verdade.
― Me desculpa, mas você não convive com o Roberto como eu.
― Não queria me meter... ― disse Rafa, pulando do peitoril da janela
de onde estava sentada. ― Mas acho que a Zalon tem razão, o cabra é gente
boa. Por mais que seja mandão e quadrado, do tipo de dar ordens e tal, não
me pareceu igual aos outros. Pelo contrário, ninguém gosta dele. ― riu-se. ―
Olha a fama do cabra. Nem a família gosta dele!
― Acontece que você entrou naquela fazenda para uma vingança e não
pra viver uma história de amor. ― afirmou a irmã mais velha, decepcionada.
― Ainda tem o Ettore e o Miguel, não afunda na cadeira, não. ―
comentou Rafa, despreocupadamente.
―Esse casamento vai estragar tudo.
― Não, pelo contrário, estarei lá dentro e assim vou fuxicar em tudo
até encontrar o maldito contrato de compra das nossas terras.
― Viu, Maitê, a Zalon tá apaixonada, mas ainda tem tutano.
― Já se perguntou o motivo de ele sair do escritório da advogada que
acabou de ler o testamento do seu pai e, em seguida, lhe pedir em casamento?
Tem coisa aí, uma coisa muito da graúda que o fez mudar de ideia quanto a
ele se vingar do primo. É estranho que agora ele largue de mão o
ressentimento e só queira viver de amor com você. Ele, o mais inescrupuloso.
Zalon se pôs de pé com tanta rapidez que mal notou a tremedeira no
corpo. Era raiva. Sentiu uma tremenda raiva de Maitê.
― O inescrupuloso, como você diz, estava internado numa clínica
psiquiátrica por causa do próprio pai. O inescrupuloso tem cicatrizes nas
costas de espancamento quando era criança. O inescrupuloso tem pesadelos
com a mãe morta, porque nunca lhe disse que a amava. É esse mesmo
inescrupuloso que tira dos meus ombros a carga pesada da vingança que
você, somente você, inventou.
O assunto, para ela, acabou ali.
Juntou suas roupas e as colocou na mochila. Foi para a parte da frente
da casa à espera de Roberto, que voltaria para pegá-la.
Não pôde deixar de notar o olhar curioso dos vizinhos fuxiqueiros de
trás das suas cortinas ordinárias.
Minutos depois, a picape parou junto ao meio-fio da calçada. Ela se
levantou quando o viu sair do veículo. Ele a encarou com um esboço de
sorriso estampando a feição suave e relaxada e depois abriu os braços. Zalon
correu para Roberto, que a levantou no colo, abraçando-a por um bom tempo.
Ninguém o amou, ele disse.
Ela o amaria por todos.
Capítulo 36
Era a primeira vez que Roberto voltava a pôr os pés na casa dos pais. A
última fora por conta de um jantar que Aquino e Verônica ofereceram à
comunidade de fazendeiros abastados. Ele se obrigou a ir. Evidentemente
aproveitou para interagir e fechar negócios. A todo instante, porém, sentia os
olhos da mãe plantados nas suas costas e a palavra traidor lhe chegava aos
ouvidos num sussurro.
Ao adentrar a ampla sala de piso frio e móveis claros e modernos, o
ambiente quase praiano idealizado por Verônica, foi tomado por uma extrema
melancolia. Já não havia mais vestígios da existência de sua mãe, rastros de
sua vida em algum canto ou cômodo, um porta-retratos sobre o piano ou uma
tapeçaria sua, uma pintura comprada antes de adoecer. Nada. Era como se
Aquino tivesse, desde sempre, ter sido casado apenas com Verônica.
Mas agora nem ela estava mais lá. Voltou pra sua terra, tinha o teto do
pai pecuarista para a abrigar. E, em breve, miraria os peitos duros de silicone
em algum velho rico e moribundo e aplicaria novo golpe.
Seria essa a vida de Zalon? Pular de fazendeiro para fazendeiro até se
acertar com um?
Conhecia-a o suficiente para saber que o dinheiro não a movia, assim
como também não movia Verônica. A sua madrasta era um fantoche da
própria necessidade de status. Mas Zalon era manipulada por algo sombrio e
profundo, a raiva, aquela raiva que lhe chegava aos olhos e parecia contar
tudo sobre o seu passado.
Um fazendeiro rico comprou as terras da família Toledo. Fez o negócio
primeiro com o pai que as abandonou e depois conseguiu a assinatura no
contrato de compra e venda junto à mãe, que, em seguida, se matou. Zalon
atribuiu então a tragédia à manobra do fazendeiro ao persuadir à sua mãe a
vender o único patrimônio que tinham e, pelo visto, também ganha-pão.
Roberto farejou algo no ar, mais precisamente na raiva demonstrada
por Zalon, bem como na ideia de sua irmã a respeito de aplicar o golpe do
baú em Ettore. Afinal, por que Ettore? E por que não outro fazendeiro? Eles
não eram os únicos.
Ao lembrar da conversa que tiveram, percebeu somente agora que
Zalon quis contar mais ou sondá-lo a fim de obter informações. Ele teve essa
impressão antes e, mais do que nunca, estava certo de que a noiva não
escolheu Ettore apenas por ser um milionário solteiro e sim por que
suspeitavam que ele era o tal fazendeiro que acabou com a família das irmãs.
Ele saberia onde estava a verdade. Era apenas uma questão de
encontrar a escritura e ver a assinatura do comprador.
Zalon, sem saber, lhe deu TUDO, simplesmente tudo que ele mais quis
na porra da vida, que era o controle majoritário do Grupo Manganelli.
Agora, era a sua vez de retribuir o favor.
Subiu ao escritório do pai, olhou em torno tentando lembrar aonde ele
deixava a combinação do cofre. O velho era velho. Portanto, esquecido. Tio
Francesco sugerira ao irmão que escrevesse os números que abriam o seu
cofre num papel e o escondesse. E foi o que Aquino fez. Assim não precisaria
decorá-los, bastava pegar o tal papel.
Um detalhe da personalidade do pai era bastante conhecido. Ele se
apegava aos detalhes, raciocinava com afinco para chegar a uma conclusão
sempre óbvia.
Roberto apenas baixou os olhos para as gavetas da escrivaninha e,
sorrindo levemente, retirou-as do lugar. Em meio ao caos de canetas,
elásticos, pregos, moedas antigas e outras tralhas, considerou que não
houvesse papel por ali, apenas entulho de objetos.
A última gaveta estava trancada.
Deu uma olhada em torno em busca da chave e não a encontrou.
Chutou a gaveta até quebrar no lugar onde ficava a fechadura. Abriu-a, a
madeira cedeu e espalhou farpas no piso.
Pegou um papel enrolado no formato de um cone longo, guardado
junto à lateral interna da gaveta. Era o mapa de Santa Bárbara. A demarcação
das terras dos Manganelli aparecia nos círculos vermelhos feitos de caneta
esferográfica.
Franziu o cenho, reconhecendo a parte que cabia à família como donos
legais do município. Não havia, portanto, fazendeiro que tivesse terras em
seu nome, pois apenas o centro comercial e o bairro operário ― o maior da
cidade, com quase o total de área de fazendas, estavam fora da demarcação
feita no mapa. Cada círculo possuía no seu interior a letra “M”. E isso só
podia significar a marcação do domínio dos Manganelli. Havia, entretanto,
uma parte de terra, vizinha a deles, cuja marcação era em amarelo, uma seta
apontada e um “T” enorme escrito no mapa.
Precisou de poucos minutos para assimilar que aquele mapa era a
prova da apropriação das terras das Toledo por parte dos Manganelli. O que
anos atrás foi o lar de Zalon, das suas irmãs e pais, hoje nada mais era que a
pastagem do gado. O rebanho se expandiu e precisaram de novas áreas para o
rodízio do pasto.
As novas áreas foram negociadas com o homem que abandonou a
mulher e as filhas. Um porco. Um sujo. Um monstro igual ao seu próprio pai.
Sentou na cadeira e enterrou o rosto entre as mãos.
Quem tirou vantagem da falta de caráter do pai de Zalon? Elas sabiam
que fora alguém da sua família, por isso mesmo a troca do sobrenome.
Acreditavam pelo visto que o filho da puta fizesse parte da geração mais
jovem dos Manganelli.
Mas estavam enganadas.
Por mais que não suportasse os seus primos, a obsessão pela posse de
terras era uma característica da primeira geração dos Manganelli em Santa
Bárbara.
Afastou as mãos do rosto e somente assim viu a ponta de um envelope
escapando da gaveta recém-aberta. Leu o papel que puxou do seu interior, era
o contrato de compra e venda das terras de Jerônimo e Mariane Toledo.
Passou a ponta dos dedos pela assinatura, com a caneta esferográfica azul, do
nome de quem podia ter sido a sua sogra. A letra bonita parecia tremida e
havia uma falha da tinta na última sílaba.
Ao lado da assinatura dos alienantes da propriedade, o nome do único
comprador.
E a certeza de que se casaria com alguém decidida a se vingar.
Capítulo 37
Zalon desviou o rosto e teve a nuca presa por uma das mãos de Ettore,
firmando o beijo e o aprofundando.
O único gesto que lhe restou para tentar escapar do cerco, foi levantar
o joelho para acertá-lo entre as pernas. Entretanto, no mesmo instante que
tentou fazê-lo, ele a empurrou contra a parede, imprensando-a com o próprio
corpo.
― Não! ― gritou, assim que teve a chance de se apartar do beijo.
― Você é noiva do Roberto, um canalha, então é certo que também
não presta. ― afirmou, pegando em cheio um dos seios. ― E é assim que eu
trato quem não presta. ― disse, entredentes.
Quando a beijou novamente, Zalon o mordeu no lábio inferior. Sentiu
o gosto do sangue na boca e ouviu o som de um trovão no meio do corredor:
― Larga a minha mulher, seu desgraçado!
Por um instante não reconheceu a voz de Roberto. O tom cínico e
sarcástico foi substituído por um rosnado de fera, grave, rouco e ameaçador.
Ettore esboçou um sorriso superior e era como mostrasse ao primo que
mais uma vez ele foi traído.
― O que posso fazer se elas têm a mesma índole que a sua? ―
declarou, com cinismo.
Zalon o esbofeteou. E não foi apenas uma vez. Deu-lhe uma bofetada
em cada bochecha, daquelas bem dada, de estalar alto. E, no minuto seguinte,
Roberto a puxou para si, abraçando-a.
― Vem pra mim. ― apertou-a em seus braços, beijando-a no topo da
cabeça.
― Acha mesmo que ela o ama? Se quer saber, fiz uma pesquisa rápida
na internet e não existe família Diavolo. Mais uma vez tá sendo enganado,
seu idiota.
Roberto a encarou.
― Minha Diavolo, amore mio, o que veio fazer aqui?
― Você não se despediu de mim hoje pela manhã. ― respondeu, com
simplicidade.
― É verdade, me perdoa. ― beijou-a na testa e depois levemente nos
lábios. ― Veio me ver?
― Sim, me senti incomodada e insegura. ― admitiu, baixando o olhar.
― Queria ver se tinha muita mulher bonita na sua empresa.
― Oh, que dengo, tão pura e inocente a farsante. ― Ettore ironizou,
agora, sem usar a máscara de bom-moço.
Era esse homem que Roberto enfrentava todos os dias.
― A minha sala é a última, indo reto pelo corredor, ok? Vá e me
espera que já lhe dou atenção. ― declarou, com ternura.
Assim que ela se afastou, ouviu o barulho seco de um soco. Virou-se
para trás e dois CEOs bem-vestidos se soqueavam feito pugilistas numa
arena. Roberto acertou o queixo de Ettore, que balançou a cabeça para trás e,
após um segundo se recompôs, desferindo-lhe um golpe que o acertou
debaixo do queixo. Não precisou muito para que os dois se atirassem no chão
e se esmurrassem como nas lutas do UFC.
Levou a mão à boca, petrificada de medo.
Uma das portas se abriu, e Miguel apareceu com sua eterna carranca de
mau humor. Pegou o irmão, por trás, pela gola do terno e o ergueu do chão,
empurrando-o contra a parede e se pondo entre ambos.
― Já se aqueceram, agora chega disso.
O noivo ainda estava no chão quando falou com rispidez:
― Se tocar na minha mulher de novo, eu vou te matar. Entendeu,
Ettore?
― Pouco me importa a sua Verônica. Quero mais que tome bem no
meio do rabo. ― disse, limpando o sangue do nariz.
― Certo, já desabafou. ― interveio Miguel, largando o irmão. ― O
pessoal da segurança viu o espetáculo e tá subindo aqui pra acalmar os
ânimos. Depois a gente vira meme interno que o pessoal criativo do TI faz e
não gostamos. Chega de barraco, porra! Sorte de vocês que o pai tá na
fazenda, senão ele ia te dar uma dura, Ettore. ― Miguel se voltou para
Roberto e falou: ― Sabe muito bem que o nosso velho te idolatra, mas você
ainda não tem os quarenta por cento pra cagar moral pra cima de nós.
― Vou esmagar os dois com a ajuda do paizinho de vocês, bando de
escrotos. ― a voz era perigosamente baixa e rascante.
Miguel empurrou o irmão para o interior da primeira sala que viu e
fechou a porta atrás de si.
― Eu não quis beijá-lo.
― Não mesmo? ― ele a encarou, sério. ― Sei que tá jogando comigo,
Zalon. Topei entrar no seu jogo inclusive. Mas agora acabou a malandragem,
entendeu? Vamos casar de verdade e não a quero perto do Ettore.
― Foi pura coincidência.
― Vou arrebentar a cara daquele cafajeste.
Dito isso, ele se encaminhou em direção a porta fechada por Miguel.
― Amo você. Por favor, não seja bobo de continuar brigando com o
Ettore. Eu o recusei, ele veio pra cima... Amo muito você, Roberto, e jamais
deixaria outro homem me beijar. ― abriu o seu coração.
Ele a avaliou longamente.
― Merda de vida! ― fechou os olhos e depois os abriu para fitá-la. ―
Quer me deixar louco, não é?
― Não.
Ele balançou a cabeça como que relutando a aceitar o que sentia. Pelo
menos foi isso que lhe pareceu. Os olhos molhados, os maxilares trincados, a
expressão de dor.
― Não posso permitir que... Não vou deixar que se interesse pelo meu
primo. Você não.
― Claro que não. ― tomou-lhe o rosto entre as mãos. ― Somos nós
dois contra o resto, lembra?
Ele respirou fundo e a beijou nas mãos.
― Sim, somente nós dois.
Capítulo 39
Zalon tentou dormir, rolou na cama, ouviu música nos fones, mas nada
apagava a imagem de Roberto, ali, na sua casa, a voz quase sumida e
emocionada dizendo: você é o amor da minha vida.
O fato de amar aquele homem não podia cegá-la. Ele era um poço de
ambição e lhe faltava apenas um detalhe para ter todo o poder que ansiava
havia anos. De certo modo, tal poder era como uma vingança contra o próprio
pai. Pensando assim, era compelida não apenas a recebê-lo de volta, como
também a ajudá-lo a atingir os seus objetivos. Mas lhe era difícil aceitar que
talvez os sentimentos dele não fossem verdadeiros e sim um mero jogo para a
manipular.
Fato era que o seu coração acreditou nele. No olhar cheio de amor e
angústia, no apelo dos seus gestos e no desespero ao ser rejeitado.
Viu diante dos seus olhos um homem forte desmoronar.
Sentia, no fundo, que ele a amava. Todos os gestos e atitudes durante o
noivado de mentirinha lhe pareceram reais. O carinho, a ternura, a proteção e
o ardor sexual não foram de mentirinha. Tampouco as longas conversas, as
risadas, as provocações. Ela viveu um sonho de amor. E, se ele não tivesse
uma personalidade forte e a fama de manipulador, jamais teria acreditado em
Verônica. Jamais! Mas Roberto tinha péssimos antecedentes morais.
Vestiu o jeans e a regata. Calçou os tênis e saiu do quarto. Fez um café
forte e o despejou na caneca, que levou consigo para fora da casa.
Sentou no degrau diante da porta aberta, assoprou o líquido fumegante
e o bebeu aos golinhos. Observou a rua vazia debaixo do céu que amanhecia
aos poucos, preguiçosamente, mudando as suas cores num degradê que
sugeria um dia ensolarado.
A melancolia também tinha cor. Dizia-se por aí que era azul. Ela então
vestia azul por dentro e mal fazia ideia de como aguentaria o resto do dia, de
todos os demais dias da sua vida longe de Roberto.
Mas sabia que era forte o bastante para não cair.
Reconheceu de imediato a picape que parou diante da casa. Esperou
inclusive que Jonas descesse para buscá-la... Por que ele a buscaria? Era a
força do hábito. O motorista chegava, ela entrava na picape e seguia para
encontrar o noivo ou fazer compras.
Quem abriu o portãozinho não foi Jonas e sim o patrão dele. A camisa
social por cima da calça, aberta nos dois primeiros botões, sem a gravata de
seda. O semblante sério, as olheiras de quem não havia pregado o olho, os
ombros encurvados no lugar da postura altiva.
Ele trazia na mão um envelope grande e retangular.
― Tudo de que precisa saber tá aqui.
― O que tem para me mostrar? ― depositou a caneca no chão para
pegar o envelope, mas não o abriu.
― Talvez o meu destino. ― disse ele, vasculhando-lhe a expressão
facial. ― O nosso destino.
― Aquilo que falei antes, sobre ter me vingado de você, é mentira. ―
admitiu.
― Eu sei.
― A sua internação na clínica o livrou de ser o meu alvo, e eu jamais
machucaria um inocente.
― Eu também sei. ― disse, os olhos ternos pousados nela. Depois se
agachou à sua frente. ― Mas não me libera da culpa, sou o filho de quem
mandou matar a sua mãe.
Ela sentiu o chão se abrir debaixo dos seus pés e uma força a puxou
para cair. Por mais que fosse forte, agora sabia que podia sim cair, despencar,
se arrebentar toda.
O choro saiu num soluço alto e, no instante seguinte, Roberto a
amparou, abraçando-a. Afagou-lhe o cabelo, trazendo o rosto dela para o seu
ombro.
― Eu o odiava, você bem sabe. Aquele homem nunca devia ter
nascido. ― beijou-a no topo da cabeça e a aconchegou junto ao peito como
se ela fosse uma criança. ― Tenho uma dívida imensa para com você e as
suas irmãs. Prometo cuidar e proteger vocês mesmo de longe.
― Por quê? Por que ele a matou? ― perguntou, chorando.
― Era um desgraçado. Ele praticamente matou a minha mãe também.
Tem gente que nasce para fazer o mal, se alimenta disso, se fortalece
destruindo. E o Aquino acabou com uma família para ter mais área de pasto
para o seu rebanho, um motivo fútil.
― Ele aproveitou que você tava internado para fazer isso. ―
considerou, limpando as lágrimas do rosto. ― Acha que foi coincidência?
― Você sabe que o motivo da minha internação foi em razão de eu ter
tentado matá-lo. Nunca tive problemas psiquiátricos; só ódio mesmo. Ódio de
quem me espancou a infância e adolescência inteiras. Portanto, um ódio
justificado. ― ele afagou-lhe a bochecha com o dorso da mão. ― Mas eu
ainda não tinha pensado nessa hipótese, talvez aja um fundamento nela. Por
mais que ele fosse o abusador, no fundo, parecia me temer. Era como se
soubesse que um dia eu daria o bote, não sei como explicar... ― puxou-a para
um novo abraço.
― Minhas irmãs continuarão a odiar os Manganelli. ― foi honesta. ―
Não importa que o assassino esteja morto. Estamos condicionadas a odiar
vocês.
Ele se afastou para encará-la.
― Não me odeie, não você. ― pediu.
― Eu não o odeio.
― A gente pode consertar o nosso relacionamento. E o primeiro passo
é o de indenizá-las pela perda financeira, já que não posso trazer a sua mãe de
volta. ― ela baixou a cabeça, mas ele lhe tomou o rosto entre as mãos e
falou: ― Fiz os cálculos para atualizar o valor das terras da sua mãe e
acrescentei mais meio milhão e a mansão do Aquino pelo dano emocional
causado. Amanhã irei ao cartório para fazer a transferência da propriedade do
imóvel para vocês três e a escritura. É o mínimo que a família Manganelli
deve as Toledo.
― Acho justo. Mas os seus primos concordam?
― Sou eu quem tá as indenizando, o dinheiro é meu e não deles.
― Não sei o que dizer.
― É a minha obrigação, o meu pai tirou tudo de vocês.
― Mas o seu tio sabia e ficou quieto. ― desferiu, secamente. ―
Deixou a polícia encobrir o caso.
― Exatamente. ― contraiu os maxilares. ― Ele pensa que se safou.
― E será que nunca, nunca mesmo, comentou nada com os filhos?
Roberto pareceu ponderar a respeito de algo que lhe havia escapado,
estreitou as pálpebras, e depois a fitou de modo avaliativo.
― Bem, a atuação de ambos foi excelente.
― Como a nossa, quando fingíamos que nos amávamos no noivado de
mentira.
― Eu não fingi. ― foi categórico. ― Me apaixonei por você desde
que descobri que era do bairro operário. Uma garota espontânea e safada,
mentirosa e linda, tão menina e tão... ― ele parou de falar, apertou a boca e
os maxilares se projetaram debaixo da pele com pontos de barba. ― Eu não
vou casar com ninguém se não for com você.
― Perderá o posição de fodão da empresa, e o seu tio será o chefão do
grupo.
― Isso significa que não voltará pra mim?
―Tô lhe dando a chance de conseguir o que mais quer na vida, que é o
controle acionário. Tirei o meu time de campo, deixando-o livre para se casar
com um de seus contatos. Talvez o nosso destino seja cada um viver a sua
vida como acredita.
― Em que você acredita?
― No amor que sinto por você.
― Mas não acredita em mim nem no meu amor por você, não é
mesmo? ― o olhar que lhe endereçou era de dor.
De repente ele se ajoelhou diante dela.
― Não posso voltar para casa sozinho, porque é você a minha casa.
Por que me ensinou a amar se agora quer me abandonar? Me deixasse
estragado como eu era, a semente ruim, o desalmado sem coração. ―
implorou.
― Desalmado? Nunca. Você ouve tanta merda da sua família que
acaba acreditando e fazendo disso um marketing pessoal bem negativo, por
sinal. ― irritou-se. ― Eu jamais amaria um homem mau, mas não posso
ceder sem ter a certeza de que também sou amada. E você até agora não
provou isso.
Levantou-se e o viu ainda ajoelhado, olhando agora para o chão, numa
atitude de derrota.
Fechou a porta atrás de si, temendo estender-lhe a mão e não a soltar
nunca mais.
Capítulo 44
Vítor Hugo fez o carreto para as irmãs Toledo. Cobrou trezentos paus,
levou dois ajudantes, o Gordo e o Magro. Encheram uma Kombi velha
apenas com malas de roupas, caixas de papelão com documentos, objetos aos
quais eram apegadas e os calçados, além das máquinas de costura e todas as
lâmpadas da casa alugada. Elas sabiam que lâmpadas queimavam. A mansão
devia ter lâmpadas, mas elas iam queimar também. As tias não queriam
gastar com lâmpadas. Uma tarde inteira discutindo sobre lâmpada até
gastarem a palavra. Zalon não aguentava mais ouvir o mesmo papo.
Maitê então disse:
― A gente tem uma nota preta no banco, tia Paulina. Pra que pensar
em lâmpada?
― Lâm-pa-da. ― soletrou Rafa, sentada no piso da sala sem móveis,
uma vez que tia Joaquina os tinha doado à vizinhança. Foi uma festa
daquelas, rolou até churrascada. ― Sei não, mas acho que é uma
proparoxítona.
― Só por que vocês estão ricas não precisamos desperdiçar dinheiro.
― Vocês, uma ova. A grana é nossa. ― rebateu a Toledo mais velha.
― Li que mesquinhez não atrai a abundância.
― Mas eu não li nada disso, vou pegar essas lâmpadas que comprei
com o suor do meu trabalho, cada uma custa quinze reais, minha filha.
Zalon puxou a irmã para o lado e comentou num sussurro:
― Ela tá nervosa com a mudança, deixa levar o que quiser.
― Nervosa? Nunca vi essas duas mais tensas, parece que morrem de
medo de ter uma vida melhor, eu, hein!
― Você passa anos vivendo no mesmo lugar, sendo bom ou ruim,
acaba se acostumando. O que elas têm medo mesmo é do novo, de uma vida
diferente.
― Nossa, a minha medrosa favorita tá cada dia mais sensata. ― Maitê
sorriu, dava para perceber o tom de orgulho.
― Que nada, ainda sou medrosa e infantiloide. Ontem mesmo tive
uma crise de risos e quase fiz xixi na calça, porque o Roberto me contou que
o Miguel se irritou na reunião, deu um soco na parede e acabou quebrando
dois dedos. Tá com o braço engessado até o cotovelo. Imagina a figura, ogro
que só, com a pata machucada. ― riu alto.
― Realmente você é team Roberto, né?
― Claro que sim, é o meu marido, uai.
― Eta, que o seu casamento foi um luxo só, saiu até no jornal de
Campo Grande, pode isso?
― Era para ser uma cerimônia para os mais íntimos, mas o meu amor
disse que íntimo mesmo só os sentimentos, o resto tem que mostrar pra dar
motivo para invejá-lo. ― sentiu o peito estufar de felicidade.
― Tá feliz?
― Muito, Maitê.
― Que bom, porque pretendo infernizar a vida do Miguel. Agora, que
seremos vizinhos, ele vai pagar por ter me humilhado no salão country e,
claro, por ter nascido um Manganelli. ― afirmou, com obstinação.
Zalon não teve tempo de lhe dizer que concordava com a sua decisão e
que, agora, teriam Roberto como aliado. Rafa achegou-se e, ajeitando o
cabelo longo num rabo de cavalo, disse:
― Minhas amizades não mudarão, e elas estão aqui. Vou morar na
fazenda dos italianos do Paraguai, mas continuarei visitando o povo do meu
bairro. E, mais, já aviso que no próximo fim de semana, vai rolar um pagode
lá na mansão. Quero levar os meus amigos pra piscina.
Maitê e Zalon se entreolharam.
― Será que os Manganelli se irritarão ao ver um bando de pagodeiros
entrarem na sua propriedade de luxo? ― a irmã mais velha perguntou,
sorrindo de modo travesso.
― Bem... ― começou Zalon. ― Roberto estará na cama comigo,
porque passamos a maior parte do tempo assim. Ettore e Francesco vão odiar,
são bestas, se acham os superiores. O Miguel vai fechar a cara e, se o barulho
chegar à mansão dele, com certeza berrará com os seus amigos até arranjar
uma briga daquelas. Portanto...
― VAI TER PAGODÃO NA FAZENDA DOS MANGANELLI!
As três gritaram juntas e depois caíram na
gargalhada.
FIM
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