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FAMÍLIA MANGANELLI

Roberto
Janice Diniz
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Copyright© 2019 Janice Diniz
Reservados os direitos de propriedade desta edição e obra para Janice Diniz. É
proibida a distribuição ou cópia de qualquer parte desta obra sem o consentimento da
autora.
Roberto – Livro Um

Roberto Manganelli é filho de um dos fundadores de Santa Bárbara,


uma cidadezinha no Mato Grosso do Sul.
Aos 37 anos, ele é o diretor da Corporação Manganelli, que atua no
setor de minérios além de ter o maior rebanho de gado do país. O CEO do
agronegócio quer se tornar o sócio majoritário do grupo e, de quebra, tirar o
primo Miguel do Conselho Administrativo e se vingar de Ettore, que, anos
atrás, o traiu da pior forma possível.
A oportunidade aparece durante uma festa na sua mansão quando ele
desconfia de uma convidada. A garota aparentemente pobre, veste uma cópia
barata de uma roupa de grife. Ele então suspeita que ela é uma golpista e lhe
propõe um noivado de mentirinha para atrair a atenção de Ettore.
Mas o noivado de fachada explode em cenas de ciúme, possessividade,
paixão e sexo.
Sumário
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44
Epílogo
Sobre a Autora
Redes Sociais
Capítulo 1

Tudo aconteceu num verão muito distante. Um tempo que, para Zalon,
consumiu-se tão rápido quanto um cigarro descansando à borda do cinzeiro.
Dava para se dizer que foi uma época de inocência, em que os dias eram
divididos entre os quentes e secos e, no período das cheias, os quentes e
molhados. Poucas vezes sentiu frio em Santa Bárbara.
Mas teve uma vez que ela quase congelou.
O cheiro da infância (o povo falava disso de um jeito poético), para
ela, era o dos grãos de terra seca entrando no nariz, o da comida caseira da tia
Joaquina e o da morte trazida pelo vento. Porém, antes dos nove anos, apenas
um borrão, um rascunho de memória. Porque ela ainda vivia como uma
criança normal criada numa fazenda de gado leiteiro. Frequentava a escola,
segundo tia Joaquina lhe dissera, e brincava com as irmãs, Rafaela, de sete
anos, e Maitê, de 11, filha do primeiro casamento de Jerônimo Toledo. As
irmãs cavalgavam, jogavam futebol, subiam nas árvores e pulavam do galho
mais alto. Às vezes se machucavam. Tudo isso e mais um pouco, detalhes do
cotidiano que ela não se lembrava mais. Tia Joaquina estava lá, o tempo todo,
cozinheira e babá, a melhor amiga de Mariane Toledo, sua mãe. E, por estar
lá, contou para as Toledo como eram as suas vidas até dez anos atrás, quando
numa manhã o céu escureceu, e Rafa ganiu como um bicho dilacerado, um
ganido misturado ao grito de pavor rouco e profundo que lhe veio rasgando
toda, soltando-lhe a sanidade das correntes da razão, tornando-a quem ela era
agora.
Zalon se lembrava de sua vida somente a partir daquele dia. Correu até
a irmã, que pulava para alcançar os pés da mãe, suspensos no ar. Maitê
apareceu em seguida. Era a segunda mãe que ela perdia. A primeira morreu
durante o parto. E a atual, de acordo com a polícia, suicidou-se. Quanto a ela,
algo inexplicável lhe aconteceu. Zalon não gritou desesperada ao ver a mãe
pendurada no galho de um ipê-rosa. A longa camisola de algodão, os pés
descalços, os cabelos loiros escondendo-lhe o rosto, a cabeça pendendo para
baixo. Não, sentimento não. Mas a sensação de frio foi tão intensa que bateu
queixo, a pele se arrepiou. E, imediatamente, começou a gargalhar. Só parou
quando Maitê a esbofeteou.
Meses antes ― assim que Jerônimo abandonou a família, levando
consigo o dinheiro da venda da propriedade e a nova namorada, a filha de 20
anos de Joaquina e Alfredo, o capataz ―, um homem de terno bateu à porta
da casa-sede. A mãe atendeu, leu um papel e ficou pálida.
Jerônimo e Mariane se conheceram no Centro-Oeste, apaixonaram-se
e compraram um pedaço de terra em Santa Bárbara. Ele já tinha uma filha do
primeiro casamento, chamada Maitê. Como a meia-irmã não conheceu a
própria mãe, não lhe foi difícil afeiçoar-se à madrasta, que ainda não tinha
filhos.
O pai (preferia pensar nele apenas como Jerônimo) desapareceu da sua
vida dez anos atrás, poucos dias antes de tudo desmoronar. Se o odiava? Bem
menos que Maitê. Odiá-lo minava a energia que Zalon queria somente para si
e para ajudar suas irmãs e as tias postiças.
Paulina tinha 53 anos, era a irmã mais velha de Joaquina. Uma senhora
encorpada. Usava o cabelo escuro sempre puxado todo num coque baixo. Os
olhos argutos não deixavam nada escapar, ainda mais que era costureira
desde os 12 anos de idade. Morava num bairro pobre, afastado do centro
urbano e da região das fazendas, por não saber cobrar. Como vou arrancar
dinheiro de quem mal tem para comer? Era o seu argumento quando
questionada se valia a pena se debruçar sobre a máquina de costura ao longo
de 10, 11 horas por dia e receber uma mixaria das clientes.
Zalon ajudava-a na costura. Todos os ajustes de bainha, consertos de
roupas, em geral, rendiam-lhe um modesto salário. Pagava uma parte das
contas, somando com a grana de Maitê e das tias Paulina e Joaquina, e o resto
guardava dentro de um livro. Sabia que, mesmo se um dia invadissem a casa
para assaltar, os marginais não pensariam em abrir um livro nem sequer olhar
em direção à estante da pequena sala. O bairro onde tia Paulina morava era
uma espécie de vila ou comunidade, o lugar que as abrigara após o
soterramento de suas vidas.
Enquanto costurava, a mente voava para longe. Na maior parte das
vezes, para o passado...
Depois que o homem de terno entregou o papel que fez a sua mãe
empalidecer, aos poucos, os empregados foram embora. O que ele lhe
mostrou foi a assinatura de Jerônimo Toledo vendendo a propriedade. Tudo
que eles tinham e, embora precisasse da assinatura dela para concluir o
processo de venda, o sócio e marido de Mariane já tinha embolsado o
dinheiro da transação.
Tia Joaquina lhe dissera que o advogado representava a família
Manganelli, ou seja, os fundadores de Santa Bárbara. Por isso Jerônimo deu
como certo que a esposa assinaria a papelada. Havia uma cláusula que lhe
garantia certa quantia em dinheiro. O homem dos Manganelli, entretanto,
salientou que a ideia não partiu do seu marido e sim de ele próprio, a fim de
garantir por algum tempo o sustento das crianças pequenas até que ela,
Mariane, arranjasse emprego na cidade ou em outra fazenda. A cozinheira
notou que era uma mixaria de suborno.
Mariane bateu a porta na cara do advogado por duas vezes. Não houve
uma terceira.
O banco então cortou a linha de crédito da fazenda, as agropecuárias
fecharam as portas para quem contrariava a determinação dos Manganelli,
antigos fazendeiros do interior do Paraná. Francesco e Aquino vieram
estender o feudo no Mato Grosso do Sul, com incentivo governamental,
ganharam terras. Com o tempo, a ideia de que os fundadores estivessem por
trás do maquiavélico plano de cobiça das terras da sua mãe perdeu força para
outra teoria. Sim, o advogado era dos Manganelli. Mas os rumores pela
cidade davam conta de que as cobras ambiciosas e sedentas por mais poder (e
a compra da fazenda Toledo representava enfim o domínio de terras dos
Manganelli...ou seja, metade de Santa Bárbara nas mãos de uma única
família!) se chamavam Roberto, Ettore e Miguel. Os CEOs do agronegócio
obcecados pelo trabalho. Eles, os filhos dos irmãos Francesco e Aquino,
tinham interesse em fechar o número redondo dos cinquenta por cento de
posse legal do município fundado por seus antecessores.
Os irmãos Manganelli chegaram primeiro à Corumbá e, depois de se
tornarem um dos maiores pecuaristas do país, eles fundaram a própria cidade
na região pantaneira. O grupo Manganelli, ao longo dos anos, não apenas
expandiu a criação do gado nelore, como também se tornou proprietário de
uma companhia siderúrgica e de mineração.
Maitê acreditava piamente que Roberto e os primos, Miguel e Ettore,
estavam por trás da tragédia de sua família.
Apenas Alfredo, o capataz, resistiu. Mas o estresse da impotência em
relação ao que acontecia, sobretudo, assistir à debandada dos funcionários,
gente do tempo de Jerônimo Toledo, do início da fazenda, de quando cada
uma das meninas mais novas chegou da maternidade, tudo isso somado à
intenção dos comerciantes locais de darem as costas a uma mulher que
precisava sustentar três crianças pequenas, deixou-o doente, quase sem fôlego
para trabalhar, sufocado de angústia. Ele, que era todo coração. O caubói
altivo que merecia um pedaço de terra para si e a esposa. Mas, como Zalon
descobriu cedo demais, a vida era injusta para quem era bondoso e humano.
Aos 39 anos, o coração de Alfredo parou de bater. Tia Joaquina chorou sem
se curvar. Pegou a espingarda e se mudou para a casa principal. Sabia, no
fundo, que a culpa da morte do marido era dos Manganelli. E, quando a
patroa supostamente se matou, decidiu que ficaria com as meninas.
Toda vez que se dispunha a pensar na morte da mãe, revivia os
mesmos sentimentos de raiva e melancolia. O choque de vê-la morta, e de um
jeito tão violento e estúpido, inesperado também, bloqueou-lhe as
recordações, todas, até as boas. Assim não se lembrava do tempo vivido com
a mãe. O amor, entretanto, não precisava de imagens do passado. Ele não
morria. Quando verdadeiro, o amor resistia ao tempo, a distância, aos
problemas psicológicos e até a morte. Amou Mariane Toledo, porque
certamente se sentiu amada por ela desde que nasceu. Rafa, por sua vez,
reagiu à tragédia de outra forma. Negando a existência da mãe e do pai,
jogando-se numa vida que lhe também indicava um destino trágico. Quanto à
Maitê, parecia ainda presa ao vínculo emocional que criou com a madrasta.
Por mais que se lembrasse de tudo, de todos os dias em que viveu com quem
ela mais amou na vida, não falava a respeito. Guardava para si a maior parte
dos seus pensamentos. Às vezes, pegava-a olhando para o vazio. Sabia,
contudo, que a irmã também voltava ao passado, levando na viagem o
próprio coração. Era provável então que revisse a imagem da garotinha de
sete anos gritando, dobrando o corpo para frente como se tivesse sido
esfaqueada na barriga, perdendo a inocência e parte da razão, transformando-
se na adolescente problemática com tendência à delinquência. Talvez Maitê
tivesse sentido o cheiro não apenas da morte de quem a criou desde os seus
dois anos de idade e sim o odor fétido de um futuro sombrio para as três. Dez
anos depois, ela trabalhava como garçonete no salão country Garotas do
Campo, frequentado pela alta roda da cidade. Um lugar aos moldes dos
estabelecimentos norte-americanos, com ares do antigo seriado Dallas, ou
seja, esnobe, seletivo e sofisticado, mesmo sendo country, uma verdadeira
piada ― segundo o que ouvia da irmã. Ali, o cliente não era barrado em
razão dos preços exorbitantes das bebidas e petiscos. Havia uma lista de
frequentadores, e o seu nome precisava constar entre eles. Apenas os bem-
nascidos, a nata da oligarquia rural, faziam parte da tal lista. Os Manganelli
eram tão poderosos que eram os únicos a ter uma ala privilegiada, como um
grande camarote, com mesa e garçonetes exclusivas.
Maitê trabalhava lá havia dois anos e viu apenas um deles aparecer
sozinho e se instalar no reservado. Fez de tudo para não ser vista por Ettore
Manganelli. E conseguiu.
Ele chegou na sua camisa escura, o jeans preto e o Stetson da mesma
cor. Era um homem alto, os ombros largos de um corpo musculoso e ao
mesmo tempo elegante. Aparentava trinta e poucos anos. Às vezes era visto
com a barba por fazer; outras, o rosto escanhoado mostrava uma beleza
clássica, como se cada traço fora esculpido por um artista bastante talentoso,
sem pressa, de maneira meticulosa. Os olhos azuis, o nariz reto e os lábios
bem desenhados. O cabelo castanho era curto e ligeiramente revolto e a pele,
um dia clara, possuía um tom dourado de quem às vezes se expunha ao sol a
pino. A covinha no queixo se acentuava quando sorria. E, dizia-se por aí, que
ele sorria com facilidade.
Eram famosos os seus sorrisos falsos.
Ele bebeu o drinque, ouviu a apresentação do cantor country, fumou
um cigarro (ignorando a placa de não fume e sendo ignorado por quem pôs a
placa ali) e foi embora sem olhar para ninguém, apenas na direção acima da
cabeça das pessoas, o queixo erguido, as costas empertigadas, a postura de
um legítimo filho da puta endinheirado.
Maitê tinha planos para os três bandidos do agronegócio. Era assim
que a irmã se referia a Roberto, Ettore e Miguel.
Um dia ela voltou do trabalho e lhe disse:
―Pesquisa tudo que puder sobre os filhos dos fundadores de Santa
Bárbara.
― Vamos tentar seguir em frente. ― Zalon pediu, sabendo que era
impossível desobedecer às determinações da mais velha.
― Sério? Seguir em frente como se a nossa mãe não tivesse morrido?
Me irrita ouvi-la falar assim, tentando jogar areia na merda toda para
escondê-la e viver em paz.
― Duas pessoas morreram por causa daquela gente. ― ponderou. ―
O tio Alfredo também foi uma das vítimas.
― Mais um motivo para acabarmos com aqueles bandidos.
― O quê?
― Pensa bem no que vou dizer. ― Maitê a encarou firme nos olhos
antes de continuar: ― Acredita mesmo que a nossa mãe nos abandonaria?
Você tem a chance de seguir em frente, sim, porque teve a memória
reprimida por causa do trauma. Mas eu sei o que vivemos e com quem
vivemos. Tivemos uma mãe dedicada e amorosa, uma pessoa boa, gentil e
batalhadora. Ela jamais se mataria. A gente já tinha perdido o fulano, como
poderia considerar dar cabo da própria vida?
― A polícia falou em depressão.
― Todo mundo fala em depressão, virose e estresse. O trio que parece
a resposta para qualquer evento. ― rebateu, irritada.
― Mas ela estava estressada, Maitê. Imagino o quanto tenha sofrido
após ser abandonada pelo Jerônimo. Não pôde nem se recuperar direito e
ainda é ameaçada pelo advogado querendo a propriedade. Talvez ela tenha
planejado o que fez para nos dar a chance de um novo lar.
―Meu Deus, como pode se agarrar a tão pouco?
―Espera, não olha pra mim com essa cara, vou me explicar. ―
suspirou, profundamente. ― Uma vez vi na tevê um documentário de
investigação policial, e o cara simulou um homicídio para deixar o dinheiro
do seguro para a sua família. Ele estava endividado, num beco sem saída, e se
sacrificou para dar uma segunda chance à esposa e aos filhos. Aí contratou
um viciado em drogas, pagou para esfaqueá-lo até a morte e depois roubar os
seus pertences, assim iria parecer um roubo que não deu certo, sei lá, mas
jamais um suicídio.
― Se fosse suicídio, a família não receberia o dinheiro da apólice. ―
constatou Maitê, pensativa.
― Foi o que o detetive da tevê falou.
― Obrigada por fundamentar a minha teoria, querida irmã. ― disse
Maitê, mordaz.
― Como assim?
Por um momento, arrependeu-se de ter feito a pergunta. Talvez por
medo de saber a resposta. Maitê era jovem demais para ser tão dura, embora
tivesse motivos para isso. Por outro lado, ela era a líder no comando, até
mesmo em relação às tias postiças. Morena, estatura mediana, cabelo liso e
comprido até a altura dos ombros, ela podia se passar por uma índia. Tinha
traços delicados, olhos escuros, o rosto no formato de morango. Era magra,
aparentando fragilidade. O que enganava quem não a conhecia de fato. O
olhar de Chapeuzinho Vermelho, na verdade, era apenas o disfarce da fera
ferida.
― Eles a mataram.
― Quem? Eles, quem?
― Os Manganelli, os bandidos.
― A gente a viu enforcada. ― enfatizou.
― Vou lhe dizer de um jeito que me entenda. ― falou como se a
considerasse uma retardada (e isso não era a primeira vez). ― Eles
suicidaram a nossa mãe. Sacou?
Olhou-a desconfiada.
― Como no caso do programa policial, só que ao contrário?
―Exatamente. Simularam um suicídio, porque a mataram. Devem tê-
la forçado a assinar o contrato, talvez nos ameaçando de morte e depois a
enforcaram.
― Mas a polícia...
― A polícia é dos Manganelli, assim como a prefeitura, a câmara do
vereadores e os juízes, promotores, comerciantes, empresários, fazendeiros,
todo mundo! É uma máfia! Até italianos os desgraçados são! ― quase gritou,
parecendo à beira de um colapso nervoso.
― Eles são brasileiros mesmo, mas de origem italiana. ― balbuciou,
preocupada com a revelação da irmã.
― Ninguém vai querer investigar um caso encerrado dez anos atrás. ―
considerou ela, zanzando de um lado para o outro na sala. ― Se juntássemos
dinheiro e contratássemos um bom detetive, teríamos a chance de provar que
ela foi assassinada.
― Ou não. Ele poderia confirmar o suicídio. ― ponderou.
― Ela foi assassinada. ― garantiu, olhando-a ferozmente. ― Ela foi
obrigada a assinar o contrato. Ela foi arrancada de dentro de casa e levada
para o meio do mato. Ela foi suspensa no ar e colocaram a corda ao redor do
seu pescoço. Ela ficou pendurada no galho mais alto. Alguém a dopou ou a
nocauteou com um soco e a levou até o alto da árvore. Ela não subiu por livre
e espontânea vontade no maldito ipê. Ou, pelo menos, tinha uma arma
apontada em direção a cabeça dela. Ou nos ameaçaram...
― Eles? A sua teoria tá tomando uma proporção enorme. Máfia
italiana, mandantes, executores, armas, suicídio simulado... ― parou de falar,
sentindo-se arrasada. ― O cheiro da morte, não sente? Você começa a
revolver tudo isso e o cheiro volta. Por que não continuamos as nossas vidas?
Era o que a mãe ia querer, nos ver felizes, amadas, com um bom trabalho e
estudando...
― E foi isso que aconteceu? ― indagou, secamente. ― A mãe tá feliz
debaixo da terra te vendo costurar para um bando de pobre que não tem onde
cair morto? Feliz em me ver carregando bandeja em meio aos ricaços
nojentos que economizam na gorjeta e fingem que você é invisível? Feliz em
ver a Rafa roubando besteiras no comércio? Dezessete anos, e ela rouba
desodorante, leite condensado, bijuteria, cigarro. Bate a carteira dos caras.
Uma golpista pé de chinelo que, em breve, estará atrás das grades. E a
faculdade, hein? Quem aqui terminou o Ensino Médio? Os Manganelli
tiraram a vida de duas pessoas, acabaram com o casamento da tia Joaquina,
sobrecarregaram a tia Paulina conosco e limitaram o futuro de três garotas.
Onde estão os seus sonhos, Zalon? Você queria ser médica, cuidar de
crianças. E a Rafa ia ser cantora country. E eu... ― deu de ombros, derrotada.
―Eles acabaram com os meus sonhos. Mataram os meus sonhos. Enterraram
qualquer chance de felicidade, porque todos os dias eu vejo a expressão de
incredulidade do rosto morto da minha mãe. ― ela parou de falar, foi até a
janela, respirou fundo e firmou a voz trêmula ao se voltar. ― Sem detetive.
Sem investigação. Sem advogado. Sem leis. Só existe uma maneira de deixar
a nossa mãe feliz. A gente precisa ser superior a eles, aos bandidos.
― Então fodeu.
― Vingança. Eles vão sofrer tudo que a nossa mãe sofreu e mais um
pouco. A missão da minha vida será destruir aqueles três malditos!
― Impossível. Somos pobres, e eles são milionários. ― balançou a
cabeça em negativo.
― Sabe por que as vítimas são atacadas por bandidos? Existe um
trocinho chamado elemento surpresa. Os tais milionários não sabem o que a
gente sabe. Eles não fazem ideia de que serão atingidos...
― Por nós? Eu e você? ― bufou. ― Afff, é mais fácil eles serem
atingidos por um cometa.
― Eu, você e a Rafa.
― A Rafa? Ok, vai armar a doida? Ela vai atirar na cabeça dos três
sem piscar, depois vai retocar o batom, roubar tudo que puder, ser presa e
suicidada na cadeia. ― argumentou, pondo-se de pé.
― Nada disso acontecerá se vocês seguirem o meu plano.
― Não gosto quando levanta uma sobrancelha só, parece uma diaba.
Diaba de verdade, do demo, do coisa ruim, capirotona.
― Ninguém usará armas letais, a não ser o cérebro.
― Ainda bem que é você quem tá planejando a tal vingança, o meu
cérebro é tão letal quanto uma pistola d’água. ― fez piada.
― Que bom que vingar a morte da nossa mãe desperte a sua veia
humorística, Zalon. ― ironizou, com azedume.
― Não disse que participarei do seu plano. E, se quer saber, talvez eu
não permita que a Rafa entre nessa. Vingança é algo sombrio e, por vezes,
cruel e fatal. Não vou matar ninguém.
― E quem falou em matar? O meu sobrenome é Toledo, como o seu, e
não Manganelli. ― salientou, secamente. As narinas dilatadas denunciavam-
lhe o estado emocional.
― Você é o nosso ponto de equilíbrio. Por favor, não perca o juízo. ―
implorou. ― A Rafa é a doida de pedra, e eu sou a escrava Isaura, aceito
carga pesada e ainda canto alegremente por aí. Mas você é diferente, é mais
velha e mais forte. A gente precisa de você inteira.
― Tô inteira, mais do que nunca, tô inteira! ― Maitê foi ríspida. ― E
se você me atrapalhar, Zalon, me vingarei sozinha. Serei eu contra três
milionários assassinos. As chances de vitória se reduzem drasticamente, mas
me sentirei em paz por ter dedicado a minha vida à pessoa que me alimentou
de todas as formas. ― ela respirou fundo quando a voz falhou. ― O fulano
nunca prestou, sei de histórias dele, vivia em puteiro. Um demente que
enganou a nossa mãe, conquistou o coração de uma mulher solitária, linda,
mas que se sentia feia. Ela se olhava no espelho a procura de defeitos que
somente existiam na sua cabeça. Eu dizia: você é maravilhosa, perfeita, mãe.
Ela ria alto e me tirava para dançar uma valsa maluca... PORRA! VOU
FODER COM CADA MANGANELLI! ACABAR COM OS TRÊS, LEVAR
OS DESGRAÇADOS AO LIMITE! ELES PRECISAM SOFRER! ELES
PRECISAM! Precisam! ― ela caiu de joelhos e levou as mãos aos cabelos,
puxando-os com força. ― Senão vou atrás dela, da Mariane, e por conta
própria. Não consigo mais viver sem um propósito. Não quero mais viver
assim.
Zalon sentiu o ar faltar e todos os músculos do seu corpo se
endureceram. O pavor a atingiu como um raio, partindo-a ao meio. Viu-se
afundando, caindo, caindo, caindo sem ter onde se segurar.
Até que o vento trouxe a tempestade da rua e não o cheiro da morte.
Loira como um anjo, cabelos longos de princesa de um reino de sonhos
e o olhar mais desvairado entre todos os malucos. Vestido curto, botas de
vaqueira, meia dúzia de colares, Janis Joplin do hospício.
― Ouvi tudo atrás da porta. ― não se justificou, foi apenas um modo
de introduzir o que realmente lhe era importante informar. ― Topo, tô
dentro, vamos acabar com aqueles cretinos!
― Não, Rafa. ― enfim conseguiu falar quase num sussurro.
― Ok, você fica, nunca teve estômago para enfrentar a vida real. ―
continuou, sorrindo ao piscar o olho para ela e depois se voltar para Maitê. ―
E, aí? Tô a postos, comandante. ― bateu continência.
Capítulo 2

Dois dias depois

Tia Joaquina era como uma segunda mãe para elas. Zalon desconfiava
que o jeitão bruto dela era uma casca que encobria um docinho cremoso todo
derretido. Ainda trabalhava como cozinheira e faxineira. Mas, agora, na
cidade. Mais precisamente na cobertura da ex-mulher de um grande
fazendeiro da região. À noite, frequentava o curso técnico de enfermagem.
Aos 46 anos, mantinha a viuvez como algo sagrado, intocado, um altar de
amor ao marido. A irmã mais velha jamais casou, não se apegava a hômi
algum, dizia Tia Paulina... ou melhor, se apegava a vários ao mesmo tempo.
Joaquina, por outro lado, queria investir em si mesma, estudar, ganhar mais
dinheiro e, assim, poder pagar a faculdade das meninas. Mas as Toledo eram
irredutíveis e jamais aceitariam o dinheiro vindo de exploração capitalista.
Por aquelas bandas, empregados domésticos (fossem cozinheiras, copeiras ou
arrumadeiras) eram obrigados a aceitar modestos salários para ter garantido o
registro na carteira de trabalho. Maitê disse que era para Joaquina se sentir
livre para chutar a bunda da patroa ricaça quando bem quisesse. Afinal, as
garotas de Mariane precisavam exorcizar seus demônios antes de pensar no
futuro a longo prazo.
― Vingança? ― tia Joaquina fez uma careta.
― Acho que você e a tia Paulina tinham de ficar fora disso, ok? ―
Maitê foi taxativa.
Zalon acompanhou a conversa, sentada à mesa do jantar, comendo
torta de carne moída de segunda, arroz e salada de alface com dois tomates
cortados em rodelas finas. O tomate, de acordo com tia Paulina, estava com o
preço do quilo pela hora da morte.
E quando era a hora da morte?
E por que o preço de um alimento era comparado à hora de uma
morte?
A mãe morreu pela manhã.
Maitê sabia a hora exata.
― Errado. Tenho uma espingarda. ― rebateu tia Joaquina.
― Ninguém vai matar os caras. ― Zalon apressou-se em ressaltar, sem
deixar de buscar a confirmação no olhar da irmã.
― Merdas acontecem. ― O comentário casual partiu de Rafa, que
sorvia o refrigerante aos golinhos.
― Quero os seus amigos bandidos fora disso. ― foi taxativa.
― Não, Zalon. Vamos precisar da rede de suporte do submundo.
― Maitê... não deixa, por favor.
― Zalon, Zalon, medo de quê? ― Rafa a encarou com seus imensos
olhos verdes. ― Acha que eu arriscaria a vida dos meus amigos fichados por
vadiagem os pondo cara a cara com os verdadeiros criminosos?
― Até agora, tudo que sei é que eles compraram as terras. Fiz toda a
pesquisa. ― começou Zalon. ― Fucei na internet, li todas as reportagens
sobre o Grupo Manganelli. E, lá na biblioteca, tem um livro sobre a história
de Santa Bárbara. Olha só, acho que os tais Aquino e Francesco não tinham
necessidade alguma de comprar mais terras. Os dois ganharam vários
hectares do governo, isso nos anos 80. Por que então se preocupariam em
comprar uma miséria a mais só para fechar uma conta ridícula de cinquenta
por cento?
― Os velhos só se interessam pela siderurgia e a empresa de
mineração. ― interveio tia Joaquina. ― Sabe a faxina que faço, todas as
quintas e sábados? Bem, é na casa de uma grã-fina, amiga da Verônica
Manganelli...
― Diabos, a mulher do Aquino. ― disse Zalon.
― Segunda esposa, né? O que aconteceu com a primeira? Morreu de
desgosto depois de ter parido o Roberto? Ou ele suicidou a mãe pouco antes
da puberdade? ― Maitê falou, num tom de ironia.
― Foi-se apenas.
― Gosto tanto quando você nos dá respostas lacônicas, tia Joaquina.
― Que bom, Rafa. Assim eu tenho certeza de que tá prestando atenção
no que eu falo. ― devolveu no mesmo tom debochado. ― E você também
me escuta quando digo que uma garota menor de idade não pode passar a
noite fora sem dar satisfações?
― Meu problema auditivo é caso para estudos científicos. ― deu de
ombros. ― Penso que seja um tremendo tumor no cérebro.
― Não te preocupa, que tumores cerebrais somente são perigosos em
cérebros sem água. ― provocou-a Zalon.
― Obrigada pelo consolo... que tirou da bunda. ― piscou os olhos
várias vezes feito uma bonequinha de desenho animado.
― Estamos perdendo o foco. ― reclamou Maitê, mal-humorada. ―
Tia Joaquina, pode guardar a espingarda. O meu plano é mais simples. A
gente simplesmente vai foder o psicológico deles.
Zalon ergueu a mão, pedindo a chance de falar.
― Nem todos tem psicólogo. Além disso, acho errado foder gente
inocente, psicólogos são como padres sem religião, não servem pra grande
coisa, mas já são algum alento.
― Presta a atenção! Me refiro à estrutura emocional dos monstros.
Isso, se eles não são psicopatas. ― enfatizou Maitê, olhando de uma irmã
para outra.
― A gente já viu os três.
― E daí, Rafa?
― Bem, é só fazer uma pequena análise. Eles se vestem bem, são
limpos, organizados, cheios de boas maneiras, diplomáticos...
― Menos o Miguel. ― interveio Maitê.
― Ok, então, acredito que todos sejam psicopatas. ― avaliou Rafa,
criticamente, a mão debaixo do queixo. ― Menos o Miguel. Gente grossa é
autêntica, mostra pra todo mundo a merda que é por dentro.
― Faz sentido. ― disse tia Paulina, soprando o pedaço de torta
equilibrado na ponta do garfo. ― Gente muito simpática é falsa.
― Um deles ou os três mandaram o advogado pressionar uma mulher
com três crianças cujo marido tinha dado no pé dois dias atrás. ― considerou
Maitê. ―Se são psicopatas ou não, isso não vem ao acaso. Precisamos
acessar os computadores da corporação e roubar todo dinheiro deles, desviar
para uma conta fantasma, sei lá, nas Bahamas.
― Ca-ce-te! É esse o seu plano? ― perguntou Zalon, incrédula. ―
Isso é ficção do pior tipo.
Rafa caiu na gargalhada.
― Angelina Jolie, você tá em Santa Bárbara e não em Hollywood.
― Maitê... ― começou Zalon, preocupada. ― Se esse realmente é o
seu plano de vingança, sinto muito, mas você não tem um plano.
― Rico só sente dor na conta bancária. ― argumentou Maitê.
― Ou dor de corno. ― emendou Rafa, mastigando de boca aberta a
mistura que fez do arroz, o pedaço de torta de carne esmagado no prato e a
folha de alface cortada em tiras. ― Dor de pau duro sem extravasar também.
Foi então que Zalon viu o brilho nos olhos da líder do trio... ou da
gangue, talvez quadrilha.
― É isso! Todos os três são solteiros...
― Sim, os mais cobiçados do país... Talvez da América Latina. ―
Zalon riu-se, nervosamente, esfregando as mãos debaixo da mesa. ―
Ninguém vai seduzir aqueles caras. Acha o quê? Tem um monte de mulher
que faz isso há anos, e eles continuam solteiros.
― E olha que são velhos pra caramba! ― ressaltou Rafa, empurrando
com a lateral do polegar a comida pra cima do garfo. ― Qual é a idade do
mais novo, Zalon?
Abriu o aplicativo que usava no celular como bloco de notas e leu sua
pesquisa. Rapidamente encontrou o nome e a idade dos envolvidos.
― O mais novo é o Ettore, tem 35 anos nas guampas. É o filho caçula
do Francesco Manganelli.
― Acho que uma pesquisa de campo será mais útil. ― considerou
Maitê.
― Agora moramos na cidade, o campo já era. ― refutou.
― Meu Deus, será que você também costurou os seus neurônios?
Parece que tô falando com uma...
― Retardada, Maitê? ― desafiou-a.
― Não, criança retardada de outro planeta. ― foi ferina, encarando-a.
― Epa, o outro planeta é a minha terra. Mais respeito, por favor. ―
levantou a mão Rafa.
―Então vão se vingar dos Manganelli? De todos os cinco? Eu soube
que o mais velho tá à beira da morte. ― a voz de tia Joaquina soou firme.
― Ótimo! Menos um para termos que foder com o psicológico. ―
disse Rafa, com ar debochado, escorando-se no encosto da cadeira. ― Se um
dos velhotes vai morrer logo e o outro ganhou terras do governo, a gente se
foca apenas nos filhinhos.
― Essa era a ideia desde o início.
― Maitê, eu não estava aqui desde o início.
― Você raramente tá aqui.
― Opa, chegou a parte do jantar de que mais gosto, a moça vai me
ensinar a viver.
― Chega disso. ― Zalon resolveu pôr fim no rumo daquela prosa que
mais as afastava do que as unia. ― Então a gente vai se infiltrar na família
Manganelli seduzindo os tiozões. É isso?
― Bem, o plano não era esse.
― Prefiro ser piranha a não me vingar desses cretinos. ― declarou
Rafa, voltando a comer. ― Traço os três e descubro quem matou a Mariane.
― Primeiro... ― começou tia Joaquina, com ar bem sério. ― ninguém
vai virar piranha. Segundo, você não vai traçar ninguém, é menor de idade, e
uma mocinha que precisa de amor e não de sexo. E, terceiro... até que se
prove o contrário, a mãe de vocês não foi assassinada. ― ela parou de falar,
respirou fundo e as encarou ao continuar: ― Mas acho válida a vingança,
porque os Manganelli a levaram a se matar. Indiretamente eles a mataram,
sim. Precisam sofrer, aprender a respeitar os seres humanos, rastejar pedindo
perdão...
― Então não importa como façamos isso. ― decidiu Maitê. ― Se eu
tivesse conhecimento de tecnologia, limpava a conta deles. Mas as armas que
temos são a juventude, a beleza e o ódio.
― Teoricamente... ― disse Zalon, encolhendo os ombros ― A gente é
bonitinha, mas eles são cercados de mulheres deslumbrantes, ricas e espertas,
loucas para laçar os milionários... Caramba, os caras se esquivam desse tipo,
muito experiente, por sinal, há anos... E nós somos apenas três garotas com
pouca instrução e nada de grana. Olha as nossas roupas! Tenho dois jeans e
cinco calcinhas!
― Tenho sete calcinhas e três jeans! ― ergueu a mão Rafa, sorrindo.
― Sou mais rica que você. Garanto que a Maitê vai dizer que tem 19
calcinhas e 34 jeans.
― Não, vou dizer é que isso não importa. A gente vai encarnar um
personagem, bancaremos as atrizes... Seremos filhas de um... milionário.
― Outro plano ridículo. ― garantiu Rafa, erguendo as sobrancelhas.
― Vou dizer o que faremos. Identidades falsas, roupas de gente montada na
grana e uma história triste de órfãs que não sabem o que fazer com a herança
recebida. Vi um filme assim. A golpista iludiu o ricaço, casou com ele e,
quando o idiota descobriu a verdade, já estava gamado, de quatro, e ela só
teve que montar e cavalgar em direção ao horizonte cor-de-rosa.
Um minuto de silêncio.
Tia Paulina foi a primeira a se manifestar.
― Todo plano criterioso tem chance de se foder por qualquer detalhe
besta. Mas um plano aloprado, se bem executado, pode dar certo.
― A parte criminosa deixa comigo. ― Rafa sorriu, expressando
prazer.
― Não.
― Maitê, ou a gente se vinga, ou a gente continua honesta e cheia de
autopiedade como você.
― Não sou assim, Ra-fa-e-la.
― É tudo ou nada. ― Zalon viu-se dizendo, sentindo o estômago
queimar.
Capítulo 3

Roberto avançou pela pradaria, ouvindo o barulho dos cascos do


cavalo escalvar o mato baixo que encobria a terra mole. A chuva do dia
anterior alimentou o solo e coloriu o amanhecer. Fazia pouco mais de meia
hora que o sol surgiu, impondo-se como o rei que era, sob a cabeça de todos.
Logo aqueceria tudo, e a umidade da terra subiria na forma de vapores
mormacentos.
Aspirou o cheiro que lhe era familiar desde que nascera, ali mesmo, em
um dos quartos do casarão de Aquino Manganelli.
Viajou pelo mundo inteiro, deixando o coração debaixo daquela terra,
sentia-se preso a ela como um dependente químico apaixonado por sua droga,
a mais letal. Jamais tentou se libertar.
O vento soprou o seu sorriso debaixo do Stetson preto e gasto, velho
amigo de cavalgadas e da lida com os vaqueiros, quando se entediava do
escritório e se juntava à peonada. Às vezes encontrava os primos conduzindo
o gado no período da cheia dos campos. E era somente nesses momentos,
quando deixavam de ser CEOs do agronegócio e voltavam à origem como
meros caubóis, que Roberto não pensava neles como rivais, pedras no meio
do caminho, pragas na lavoura, oponentes, pessoas postas no mundo para
foderem a sua existência. Em suma, frágeis fantoches do seu tio Francesco.
Apeou da montaria ao chegar próximo ao estábulo. Conduziu o cavalo
árabe pela rédea até entregá-lo ao cavalariço.
Tirou o chapéu e secou com o dorso da mão a testa suada. Olhou em
torno, satisfeito com a organização da fazenda. A grande construção do
estábulo se alinhava em perfeita harmonia com a do celeiro e a da clínica
veterinária, que dividia espaço com a farmácia particular da propriedade.
Todos os animais, quase 150 mil cabeças de gado ― o maior rebanho bovino
do país, de nelore puro e nelore cruzado com angus ― eram tratados com a
melhor equipe de veterinários.
Subiu a escadaria até chegar ao amplo avarandado que circundava a
mansão de três andares.
O seu pequeno reino incrustado na cidade que o pai e o tio fundaram
anos atrás. A principal fazenda do Grupo Manganelli se localizava numa
região distante do centro urbano, cercada por uma muralha de concreto, ao
contrário das cercas tradicionais. A ideia era de fato a de afastamento,
isolamento, ainda mais que as terras ocupavam parte do planalto que os
colocavam um ponto acima das demais construções.
O mordomo abriu a porta e pegou o chapéu que Roberto lhe estendeu.
À esquerda do hall de entrada, o corredor que levava a duas salas e, à direita,
ao amplo salão que se estendia até a base da escadaria de mármore para o
segundo andar, com a ala das dez suítes, sala de cinema com bar, a sauna e o
escritório.
Ele sempre morou sozinho.
Entrou na suíte e se despiu rapidamente. Encaminhou-se ao banheiro e
parou diante do espelho. Notou que o azul dos seus olhos brilhava como se
estivesse febril. O fogo da alma, era o que lhe disse uma amante, não
lembrava o nome dela. O fogo da sua alma atormentada é azul. Uma bela cor
para um tormento.
Postou-se debaixo da ducha, lavou o cabelo e o corpo, deixou que a
água o limpasse dos grãos de terra. Teria um longo dia pela frente. Com o pai
afastado, ele tinha de enfrentar o tio e os primos. Um desequilíbrio familiar,
por certo. Embora Miguel e Ettore jamais pudessem contar com a
solidariedade paterna.
Enrolou-se na toalha e voltou à suíte. A água do banho pingou no piso
frio. Foi até o closet e abriu a porta de correr. Varreu com os olhos os paletós
encobertos no plástico. Mais de cinquenta deles separados de acordo com
apenas os três tons que ele usava: cinza, azul marinho e preto. Optou por um
de dois botões, cinza chumbo, o caimento slim favorecia a saliência dos
ombros largos e o abdômen enxuto. A camisa branca era de seda italiana e a
calça combinava com o paletó e o sapato preto.
Sentou no banco grande e redondo no meio do closet. Calçou as meias
escuras enquanto se decidia entre as botas de vaqueiro e o Stetson da mesma
cor, ao estilo milionário do agronegócio, ou dispensava o lado rústico da
vestimenta e mantinha o sapato europeu e o cabelo loiro escuro, cortado mais
curto nas laterais, e assumia o papel de homem de negócios, qualquer que
fosse, não apenas o relacionado à pecuária, mas também ao de diretor
executivo das operações do Grupo Manganelli, que incluíam as empresas de
exploração de minérios e a de produção de ferro e aço.
Antes da reunião da semana com os demais acionistas, que eram os
primos e o tio Francesco, teria de ir ao hospital. Aos 70 anos, o pai estava
internado à beira da morte. Algum tempo atrás, Aquino adoeceu, e as ações
da corporação caíram drasticamente. Ele tinha uma cota de controle do grupo.
E, qualquer oscilação na sua saúde que também influenciasse a saúde
financeira das fazendas e empresas Manganelli, se refletia na bolsa de
valores. Ele se recuperou totalmente, e as especulações acerca de parte do
comando do grupo mudar de mãos, ou seja, passar para Roberto, seu único
filho, foram silenciadas pelo retorno de Aquino.
Ajeitou a gravata diante do espelho e se decidiu pelo estilo CEO-
comedor-de-fígados. Afinal, teria de enfrentar uma reunião de negócios que
sempre se mostrava tensa. Os alicerces dos Manganelli tremiam diante da
possibilidade de que um dos fundadores do grupo não resistisse à doença que
o prostrava dia após dia. Mas talvez o pai conseguisse vencer mais uma
batalha.
Ajustou o Cartier no pulso e aproveitou para dar uma olhada na hora.
Ainda tinha tempo para o desjejum antes de passar no hospital e depois para
o escritório num prédio comercial no centro da cidade.
Sentou-se à mesa e tomou apenas uma xícara de café preto. Ignorou os
brioches, biscoitos, pães caseiros, bolo, salada de fruta e mais um diabo de
coisas que não o atraíram. Sentiu o estômago se fechar ao pensamento de que
logo entraria no quarto particular onde o pai estava internado e seria obrigado
a vê-lo deitado no leito, vinte quilos mais magro, definhando, deixando de ser
quem um dia foi, perdendo a força, a lucidez e a dignidade.
Dirigiu a picape, considerando se o encontraria acordado, dormindo ou
em estado de coma. Quando criança, Roberto ficou em coma por dois dias. E,
para sua sorte, não sofreu sequela cerebral.
Abriu a porta do quarto do hospital e deu uma olhada para dentro como
se esperasse a explosão de dinamites. Contudo, queria apenas se certificar de
que o velho estaria sozinho. A madrasta não visitava o marido. Roberto
entendia que uma mulher que casava por status, cuja idade era a mesma do
enteado, realmente não se preocupava com a saúde da sua escada social. Ela
morava com Aquino na mansão que um dia também foi da sua mãe. O lugar
onde Roberto morou até os seus 17 anos.
Notou os olhos abertos. Parecia um cadáver vivo. Sim, uma bela
contradição. Mas não conseguiu pensar em algo diferente. O velho estava
pálido, as bochechas sulcadas, os maxilares proeminentes exibindo o
contorno do esqueleto facial. O soro pingava o medicamento direto na veia.
O aparelho junto à cama monitorava os batimentos cardíacos. Ainda assim,
ele não estava na unidade de terapia intensiva.
Manteve-se à janela, evitando se aproximar dele. A aura de poder
pairava sobre aquele corpo sem honra e brio. Mas antes da doença, a aura
estava dentro dele, de cada órgão daquele homem que um dia desbravou o
Centro-Oeste também comendo fígados, enterrando corpos de grileiros,
abrindo a terra no facão, na serra elétrica e depois distribuindo dinheiro.
Francesco representava o lado homem-da-terra-simplório-que-enriqueceu.
Ao passo que Aquino, o mais velho, sempre foi rude, sangue frio,
praticamente um ditador. Isso não significava que o primeiro não fosse um
canalha, tampouco que o segundo merecesse um lugar no céu.
Podia tocar a mão do pai e, se quisesse, beijá-la no dorso, pedir-lhe a
benção. Mas sabia que era uma péssima ideia, ele odiava demonstrações de
afeto, ainda mais entre homens.
A palidez do velho o comoveu, assim como a excessiva magreza. Dava
para notar que ele não era mais o homem dominador que andava pelos
corredores da empresa xingando todo mundo ou, na fazenda, dando ordens e
humilhando os empregados com sua voz de trovão e o corpo de um viking.
Capítulo 4

Quando era criança, Roberto tinha medo do pai. Sorte sua que
raramente o velho estava na fazenda.
Desde cedo, quando fundaram Santa Bárbara, Francesco e Aquino
decidiram construir a mansão de cada filho na mesma propriedade deles. E,
como a área de terras era imensa a ponto de utilizar metade da cidade de 30
mil habitantes, todos conseguiram manter a privacidade intacta. Quando
entravam nos seus 16 anos, começava a construção da mansão a qual seria
ocupada um ano depois. Miguel, portanto, foi o primeiro a sair do casarão
dos pais.
Antes de Roberto se mudar para a mansão que ocupava até hoje, vinte
e um anos depois, a mãe desenvolveu um câncer agressivo. Em menos de seis
meses, ela desabou. Durante o tratamento de quimioterapia, o pai arranjou
uma amante e pediu o divórcio. Ele falou à esposa o motivo da separação: a
doença dela. E ponto final. Uma resposta curta e grossa. Roberto viu a mãe
chorar e a ouviu desejar que o câncer a devorasse o mais rápido possível.
Nada como fazer pedidos ao universo. Ela morreu duas semanas depois. E,
duas semanas depois do seu enterro, Aquino apareceu com Verônica e a
instalou no casarão onde ele viveu com Matilda.
― Tá me velando?
A voz fraca do pai o tirou do torpor que sentia ao viajar mentalmente
para o passado.
Foi até ele, sentou na beirada do leito, encarou-o tentando sorrir. Não
conseguiu esticar a boca para os lados o suficiente para obter a expressão de
um sorriso. Desistiu de se impor um tipo de leveza de espírito que estava
longe de sentir.
― O senhor é um vencedor.
― Câncer no pâncreas em fase terminal, e é isso que você tem para me
dizer? ― ele, sim, conseguiu sorrir.
O sorriso mau que lhe acompanhou a vida inteira.
―Acredito em milagres.
―Claro que sim, é tão sentimental quanto à sua mãe.
― Não fala da minha mãe, por favor. ― pediu, baixinho, lançando um
rápido olhar para o monitor cardíaco.
―A Matilda o mimou, fez todas as suas vontades, e você se tornou o
demônio encarnado.
― Por isso os exorcismos, pai?
Roberto ficou em coma por dois dias. Aos sete anos de idade, Aquino
o espancou pela primeira vez. Era o esporte preferido do pai. Voltava da lida
na fazenda ou do escritório da empresa, bebia uísque até turvar a mente e
liberar a veia sádica. Depois o chamava para contar o seu dia na escola. No
início, Roberto acreditou nele, que queria de fato saber sobre as atividades, o
futebol, os colegas, o novo uniforme e o motorista particular que o levava às
aulas do colégio católico.
Tudo começou com uma bofetada. Sem motivo aparente, entre a
conversa sobre a aula de educação física e o silêncio da incredulidade. Doeu-
lhe a bochecha. Não chorou. O pai não o deixou voltar para o quarto e o
mandou ficar de pé, no canto da sala, por mais de quatro horas. Os joelhos
queimavam de dor, a coluna, o corpo inteiro. Fraquejou e ajoelhou-se. Um
chute nas costas o pôs de pé novamente.
― Você teve tudo que quis. ― disse o velho, a papada debaixo do
queixo balançou, mole, sem o enchimento da gordura. ― Não terá mais. ―
acrescentou, com um leve sorriso.
― Não se aborreça com esse assunto. ― falou, suavemente, lançando
novo olhar ao registro dos batimentos cardíacos dele.
A mãe nunca o protegeu, sempre doente, acamada. Uma hora era
enxaqueca; outra, a coluna. Na maior parte das vezes, a depressão.
Lembrava-se do quarto escuro, onde ela dormia sozinha. As cortinas sempre
fechadas. As flores que as empregadas levavam para enfeitar os vasos, as
flores vermelhas, brancas, murchavam em menos de 24 horas. Ele se sentia
oprimido ao vê-la. Sentava na beirada da cama, e ficavam se olhando. Nada
tinham para falar. Ela desejava se entregar, porque jamais fora amada por
alguém. Família sulista, de origem alemã, nada de afagos, toques de pele,
passionalidade latina e aconchego. E depois se casou com Aquino,
mulherengo, egoísta e agressivo. Acreditou então que se salvaria sendo
amada pelo homem que pôs no mundo. Roberto, contudo, jamais amou a
fraqueza, a debilidade e a submissão. Ele não era o cara que afastaria as
cortinas para o sol entrar, tampouco a pegaria no colo para tirá-la do inferno
onde se meteu por vontade própria. Ainda que, no fundo, a amasse como um
desesperado. Mas como defender quem nunca o defendeu? Proteger quem se
omitiu de protegê-lo, fechando-se em sua própria concha de sofrimento e
autopiedade?
Beijou-a na testa após a sua morte. O velório e o enterro aconteceram
em questão de horas. No dia seguinte, as empregadas esvaziaram a casa de
todos os pertences da falecida patroa. As cortinas foram arrancadas, os
móveis do quarto, doados. A porta, por fim, trancada. E Verônica, a vagaba
da elite pecuarista, adentrou a mansão de Aquino Manganelli já se
preparando para assinar a certidão de casamento. Aceitou o acordo pré-
nupcial. Pois, embora viesse de família rica, sabia que o futuro marido a
colocaria de alguma forma no seu testamento. Não era uma puta burra; afinal,
nascera em berço de ouro.
Foi somente quando viu o pai beijar a testa da madrasta, de forma terna
e até amorosa, compreendeu a profundidade do sofrimento da mãe. Ele
jamais sentiu falta do amor paterno. Jamais. Sentiu falta do amor dela, de
Matilda Manganelli, a louca reclusa do quarto escuro ― como era conhecida
na cidade. Tarde demais descobriu que devia tê-la amado sem esperar nada
em troca, amado o frágil passarinho de asas quebradas. E, aos 27 anos, quem
se partiu em mil pedaços foi ele.
O pai fechou os olhos como se tivesse pegado no sono. Era um
velhinho de 70 anos que aparentava 90, enrugado, murcho, prostrado. O tio
Francesco, três anos mais novo, demonstrava o famoso vigor italiano, embora
fosse brasileiro. Contudo, era um homem altivo como todos os Manganelli,
menos Aquino, que sempre se assemelhou a um mafioso grotesco.
Roberto fitou-o com menosprezo, disposto a dar o fora dali o quanto
antes. Por mais que parecesse que o pai estivesse adormecido, sabia que não.
Era cada vez mais frequente a sua perda de consciência e a confusão mental.
― Desperdicei a minha semente quando fiz você.
Ouviu-o balbuciar, as pálpebras entreabertas, os olhos vazios.
― Se preferir, não volto mais. ― disse, com serenidade. Custava-lhe
muito visitá-lo. Não sabia por que o fazia. Talvez pela esperança de chegar ao
hospital e ser interceptado pelo médico, comunicando a morte do pai. Tinha
curiosidade a respeito dos seus sentimentos. O que realmente sentiria?
Alívio? Felicidade? Temia sentir falta dos insultos, da voz grossa e áspera
dando-lhe ordens e de lhe ver a pálpebra que tremia. Sim, a pálpebra direita
sempre tremia quando confrontava o filho. Roberto mantinha a compostura e
serenidade ao rebater os xingamentos agressivos, não perdia o controle de
suas emoções, aguentava o tranco, respondia à altura sem perder a classe e a
empáfia de homem superior. Aquino sabia a essência da tal semente que viera
dele. E, mais do que isso, a combinação com o lado sombrio materno. O pai
sempre foi violento e filho da puta com ele, porque o temia.
Os olhos opacos o fitaram, não havia nada dentro deles.
― Volta. Quero ver a sua cara...
― Tá me vendo... pai. ― sorriu, levemente.
O velho tentou esboçar um sorriso, a força até mesmo para sorrir
estava por um fio. Lidar com Roberto o matava devagar, assim como o
câncer que se espalhou por todo o organismo.
― A minha parte... jamais herdará a minha parte do Grupo
Manganelli. ― ele parecia juntar um resto de energia para jogar as palavras
pra fora da boca como projéteis de uma arma antiga.
Fechou os olhos novamente, o semblante assumiu um ar sereno quase
divertido.
Roberto se pôs de pé e acendeu um cigarro. Imaginou que um alarme
de incêndio se acionaria automaticamente ao exalar a fumaça pela boca. Nada
aconteceu, a não ser a mudança no rumo dos seus pensamentos. Rapidamente
ele considerou a parte matemática da coisa. A administração do Grupo
Manganelli era formada apenas pelos membros masculinos da família,
embora só restassem a tia Andrea, com demência senil aos 65 anos, e a sua
madrasta cheia de amantes. Cinco homens no comando. E cada um deles com
vinte por cento das ações do grupo. Com a morte do pai, Roberto herdaria os
vinte por cento dele e, somados aos seus, se tornaria o acionista majoritário.
Obviamente se o tio se unisse aos filhos, Roberto tomaria no rabo. Francesco,
no entanto, era um legítimo Manganelli, ou seja, desprezava a própria prole.
Era impossível que aquela parte da família se unisse. Mais fácil seria se um
matasse o outro para tomar o controle das empresas e fazendas.
Aquino então acabava de lhe dizer que todo o sacrifício que fez de
aturá-lo a vida inteira não tinha valido para nada.
O velho tornou a abrir os olhos.
― Não pode... fumar.
Sorriu para ele.
―Posso tudo. ― falou, quase num sussurro.
― Semente ruim.
― Às vezes belos frutos nascem de sementes ruins. ― arqueou uma
sobrancelha sem deixar de sorrir.
― Mudei meu testamento... semente...ruim.
Desencostou-se da parede e sentou à beira do leito novamente. Abriu
os botões do terno e suspirou resignado.
― Sei que mês passado o senhor procurou a sua advogada para me
tirar do testamento e deixar as suas ações para a mamãe Verônica. ―
começou, com bastante calma, um didatismo regado a cinismo. ― Então ela
faria parte da diretoria e iria se aliar aos meus primos, evidentemente,
minando o meu poder no conselho administrativo. À beira da morte, o seu
amor paterno prevaleceu forte como um tronco de carvalho em meio a
tempestade de verão. ― riu-se, baixinho. ― O senhor sabe que preciso me
tornar o acionista majoritário para esmagar o Ettore e o Miguel. Sim, claro
que o senhor sempre soube.
―Semente...ruim.
Roberto apertou a boca e, com o gesto, o cigarro pendurado no canto
dela. Sentiu cada músculo do corpo se retesar e a adrenalina minar as veias de
energia, preparando-o para o ataque como um felino que perdeu tempo
demais cercando a presa antes do abate.
Mas não atacaria um moribundo.
Só lhe mostraria o quanto de ruim a semente dele tinha.
― Quero que veja isso. ― ele tirou o celular do bolso do terno e
acessou o vídeo que lhe interessava.
Apertou o play e o deixou rodar. A tela aumentada e o volume ao
máximo eram como um show particular para o velho. Viu-o empalidecer e o
suor porejar na testa. Logo após um curto intervalo entre gemidos abafados e
gritos esganiçados foi possível ouvir a voz feminina implorando: mete tudo,
mete fundo, Roberto! Tudo! Quero teu pau bem dentro de mim, seu gostoso!
GOSTOSO!
Roberto sabia a cena a que o pai assistia. Era ele fodendo uma mulher
de quatro na cama, a bunda grande, os peitos siliconados, o cabelo
desgrenhado e a maquiagem borrada. Uma foda espetacular.
― Pensou que fosse a Verônica? ― a pálpebra direita do velho
começou a tremer descontroladamente. ―Ela não grita quando fode; mia
como uma gata no cio, o senhor bem sabe. Mas eu não trepei com a minha
madrasta, e isso até por uma questão de respeito...ao meu pênis. Desde que o
senhor baixou hospital, ela leva o personal trainer para endurecer a
musculatura da vagina, segundo as empregadas da sua mansão... pai. ― deu-
lhe uma chance de absorver a informação. ― Carine Alves Castro. Sabe de
quem eu falo, não? Bem... ― cruzou os braços diante do corpo, assumindo
uma postura displicente de alguém que contaria uma história inspiradora.
―Um dia antes de o senhor votar contra a minha decisão de fechar a
mineradora por operar no vermelho tempo o suficiente para quase foder com
os nossos demais negócios e, com isso, se unir ao Ettore e ao Miguel contra
mim e o tio Francesco, imaginei que iria alterar o testamento. Ainda mais
com o câncer avançando rapidamente. Então comi a mulher que não alterou o
seu testamento como o senhor pediu... pessoalmente, sem gravação,
assinatura ou testemunha. A Carine, essa deliciosa boceta... digo, advogada,
não fez qualquer alteração. Ganhou vários orgasmos, uma BMW e uma bela
casa em Natal.
― É mentira.
Roberto estacou a meio caminho da porta. O velho ainda estava vivo,
claro. Precisava tomar certas precauções. Pediria ao médico, amigo seu, que o
mantivesse sedado até o suspiro (ou chiado) final. Dores agudas, preocupação
de filho, não quero que ele sofra, tampouco que o irmão o veja delirar, falar
besteiras, meu pai não pode perder a dignidade nos últimos momentos de
vida, é um dos fundadores de Santa Bárbara, e eu ponho dinheiro na porra
desse hospital, poupa o meu pai mesmo que ele seja um canalha.
A ideia de um coma induzido parecia fascinante.
― Sicuro come la morte, chiaro come due piú due fa quattro.
Certo como a morte, como dois mais dois são quatro, foi o que disse
ao pai, com a serenidade da semente ruim que vingou em solo fértil.
Capítulo 5

― Diavolo? Não acredito! Além de andar com gente que faz


documento falso, ainda escolhe esse sobrenome... claramente falso! ― era
nítida a irritação misturada à incredulidade de Maitê.
Olhou para a sua nova carteira de identidade e leu: Zalon Diavolo.
Segurou-se para não rir. A irmã tinha razão para se zangar com Rafa. Quem
acreditaria que existia uma família Diavolo em Minas Gerais, dona de uma
rede de lojas de móveis por toda a região Sudoeste. Bem, era essa a história
que venderiam aos Manganelli.
― A Maitê tem razão. ― teve de intervir, depois de respirar fundo
para controlar a risada. ― Por que não escolheu Silva ou Ramos, talvez
Albuquerque? Albuquerque é sobrenome de gente rica, não?
Rafa deu de ombros, abriu a bolsa, pegou um cartão e o jogou na mesa.
― Gostei de Rafaela Diavolo, me senti uma diva, uma drag queen
poderosa. ― encarou a meia-irmã com ar desafiador. ― De qualquer forma,
eles terão dificuldade para achar a nossa família na internet.
― Claro, ninguém é Diavolo no Brasil. ― irritou-se Maitê.
― Silva é nome de pobre.
― Certo, Ayrton Senna era pobre, meu bem?
― Vixe, que merda é essa, o cara nem Silva era.
― Ayrton Senna da Silva, rico pra cacete! E se os bandidos italianos
forem nos pesquisar na internet, encontrarão 800 mil Silvas, o que dificultará
a busca.
― Maitê, só um minuto. ― interveio Zalon. ― Família Silva, de Belo
Horizonte, dona da rede de lojas Takomóvel... Bem, não encontrarão nada,
isso também parecerá suspeito.
― Tako... o quê? ― tia Paulina aportou à cozinha, vinda da sala de
costura, e continuou: ― É esse o nome das lojas de vocês, é?
― Dos nossos pais. ― corrigiu-a Rafa. ― Ai, que saco, achei legal. É
tipo Takomóvel-na-cabeça, Takomóvel-na-parede, Takomóvel-onde-eu-
quiser. Entenderam agora?
― Uma bosta.
― Tia Paulina, os meus pais são originais. Vamos usar esse nome,
galera.
― Sei que tá se divertindo, Rafa. ― disse Maitê, olhando-a
criticamente. ― Mas estamos prestes a nos infiltrar na família que matou a
nossa mãe e destruiu tudo que tínhamos. Eles podem nos matar também, ou
nos mandar pra cadeia. Afinal, já começamos a cometer crimes. Essas
carteiras de identidade falsificadas nos enquadram, por exemplo, como...
bandidas.
― Ah, quando você disse como... pensei que fosse citar o código
penal, mas a sua moral se reduz ao medo que tem de ser presa e não ao de
infligir a lei. ― declarou, mordaz.
― Acho que é infringir. ― corrigiu-a Zalon.
― Mesma porra. ― apontou para o cartão de crédito na mesa e disse:
― É clonado de um ricaço de São Paulo. O Gui comprou do Fuinha, que tem
um lance com o Manga Grande. Devo 150 paus.
― Vou receber dia cinco.
― Falei pra ele, Maitê. Mas tem uma coisa, é melhor a gente arrombar
logo o cartão do cabra, porque ele será bloqueado.
― Meu Deus, a que ponto chegamos! ― foi a vez de tia Joaquina
aparecer para dar a sua opinião. ― Coisa feia clonar o cartão das pessoas.
Isso é crime, e é feio.
― Tá se repetindo, tia.
― Rafa, não importa se o cartão é de rico ou de pobre...
― O banco vai cuidar do cliente. ― disse Maitê. ― Infelizmente
teremos que usar o cartão.
― Uhuuu, vamos então às compras!
Zalon prestou a atenção na conversa das irmãs, algo a incomodava.
― A gente vai se vingar de homens experientes e bem-sucedidos que
não conhecemos direito? Pensaram nisso? Eles são adultos. ― enfatizou.
― Por que veio com essa agora? ― perguntou Maitê, desconfiada. ―
Não arranja motivo pra cair fora, ok? Antes de tudo, a gente vai conquistar os
safados e depois sim nos vingarmos. Portanto, são duas etapas bem definidas
e estruturadas.
― Vejo falta de estrutura aí. ― tia Paulina apertou o canto dos lábios,
demonstrando preocupação. ―A Rafa tá se metendo com gente que frauda
cartões e documentos, o submundo. A ideia, pelo que entendi, é comprar
roupa, parecerem ricas e partir para cima dos Manganelli. Conquistar, como a
Maitê falou. Ou seja, todo santo dia meia dúzia de ricaças faz o mesmo que
vocês, tirando, claro, a parte da contravenção.
― Aonde quer chegar, tia? ― perguntou Maitê, na defensiva.
― Quem é a sua mãe e o seu pai? Vocês nasceram em qual hospital?
Por que vieram para o Mato Grosso do Sul e, em especial, Santa Bárbara? De
férias? Para visitar uma tia doente? Vocês estudam? Trabalham? Tão bonitas
e sem namorados? Vocês gostam de ler, ir ao cinema... qual a cultura das
três? Se conseguirem um momento a sós com um dos Manganelli, sobre o
que falarão? Três alvos para três garotas, como farão com isso? Deixarão que
eles as escolham? E por que as escolheriam com tantas opções no mercado?
Sim, vocês são lindas... mas são brutas. ― voltou-se para Zalon e disse: ―
Menos você, que é mansa feito um cordeirinho...
― Porque é sonsa. ― interrompeu-a Rafa.
― Não, ela teve a sorte de perder a memória. ― disse Maitê,
afundando na cadeira. ― Do jeito que a senhora fala parece que não temos
um bom plano.
― Vai desanimar, espartana? ― tia Joaquina sacudiu as ancas, e todas
riram. ― Gostei do sobrenome, é chique e extravagante. A outra parte, a
criminosa, a gente depois se acerta com Deus... ou com o delegado, quem
sabe. O importante agora é usar a informação que acabei de receber.
― De Deus ou do delegado?
― Não resiste às suas piadinha infames, não é, Rafaela? ― A caçula
franziu o nariz num gesto infantil, um charme que amolecia o coração das
tias. A bem da verdade, de todas as mulheres da casa. ― O Francesco vai
comemorar o aniversário dele em alto estilo, será na propriedade de Santa
Bárbara, já que o irmão ainda tá internado no hospital daqui. Uma cliente
minha disse que vai ser uma festa daquelas, para mais de 100 convidados,
tudo do bom e do melhor.
― Meu pai do céu, o irmão morrendo de câncer, e o cabra dando festa.
― tia Paulina se benzeu.
― Festa de rico, querida, só rola conversa de negócios. É importante
pra eles, pouco importa o moribundo. ― rebateu tia Joaquina, com sarcasmo.
― Se a gente conseguisse entrar na festa, poderíamos ter acesso aos
bandidos. ― conjecturou Maitê.
―É isso que tô tentando dizer. Há uma lista de convidados, e essa
minha cliente e mais as três filhas adultas estão incluídas.
― Bom pra elas. ― Zalon desanimou, ainda que estivesse torcendo
para não ter chance alguma de ir a tal festa.
― Bom é pra vocês.
Oh, não, a cara da tia é a de quem conseguiu burlar o sistema
capitalista de castas.
Maitê se pôs de pé, os olhos brilhavam, as bochechas coraram de
expectativa. Zalon considerou que aquela ali não se divertia com o plano de
vingança como Rafa, tampouco se borrava de medo como ela própria. A
meia-irmã demonstrava uma necessidade urgente de agir, de lutar, de derrotar
o inimigo, e era como se a batalha fosse entre eles, os Manganelli, e ela. Uma
questão de vida ou morte.
― O que quer dizer?
― Fala logo antes que a Maitê tenha uma convulsão. ― provocou-a.
― Vocês estão na festa. ― disse, bem devagar, fazendo suspense. Em
seguida, tirou da bolsa os três convites impressos em letras douradas, o
brasão da família e o envelope timbrado. Sacudiu-os no ar, diante do rosto de
Maitê e Rafa.
― Mas como conseguiu?
― Deixa pra lá, não importa. Os convites têm o nome das Siqueira de
Almeida, mas não tem problema, é só pra bater com o nome que o segurança
consultar na lista à entrada. Depois, já na festa, vocês voltam a ser as
Diavolo.
― Certo, tia. ― Maitê pôs as mãos nos ombros da mulher que a criou
desde os seus 11 anos de idade e, preocupada, falou: ― Mas não quero que se
meta em encrencas por minha causa. Imagino que tenha roubado os convites
de uma de suas clientes. Por favor, devolve.
― Devolve nada, tia. Tudo puta.
― Rafa, não te mete nisso. ― censurou-a. ― A Maitê tem razão. As
tias estão proibidas de se meterem na nossa vingança.
― A Joaquina faz o que quiser. ― rebateu tia Paulina. ― A gente quer
se sentir útil. E, de minha parte, farei o que for preciso para foder os canalhas
que se acham donos do mundo! ― cuspiu no chão. ― Ô, merda, vou buscar
o pano da casa pra secar esse monte de saliva. ― ficou sem jeito.
― Sério, tia. Devolve, tá?
― Maitê, meu bebezinho, eu também tenho os meus truques. ―
rebateu a tia, sorrindo. ― Nem precisei roubar, eles simplesmente me foram
doados. ― a voz num tom de deboche.
― Como assim? ― Zalon não acreditou, mas a tia jamais mentiu para
elas.
―Peguei a minha patroa, de quatro, chupando o... ― ela parou de falar
e apontou para a mais nova no recinto. ― Fecha os ouvidos, Rafaela Toledo.
― Diavolo. E sei o que ela chupou. ― Todas se voltaram para a
loirinha, que sorriu com doçura. ― Como acham que consegui os
documentos falsos?
― Por favor, não.
― Tô brincando, Maitê. A gente vai ter que pagar por eles também. ―
falou, séria. ― Mas eu gostaria de saber que tipo de bazuca vale três
maravilhosos convites para o inferno.
― A do cunhado.
― Ô patroa safada, sô! Óia, já tô pegando sotaque mineiro! ― Rafa
riu alto.
Zalon sentiu que havia uma boa chance de Rafaela pôr em risco o
sucesso da vingança.
Capítulo 6

A vizinha das tias tinha uma piscina de plástico no quintal dos fundos
de casa.
O dia estava mais quente do que nunca, e era um sábado. Maitê pegaria
no trabalho apenas à noite, e Zalon precisava descansar a coluna até continuar
com a costura. Rafa, por sua vez, terminava de escrever a biografia de cada
alvo numa folha de caderno, juntando as informações que Maitê lhe
repassara, mais as pesquisadas da internet por Zalon e as ouvidas por aí pelas
tias.
Ainda assim, tia Joaquina falou:
― Usem a festa para avaliar os alvos e, se puderem, se aproximar de
um deles. Cada uma começa a fazer o cerco discretamente.
Rafa parecia incomodada com o calor, o quintal de piso de cimento, o
muro alto, o sol que se infiltrava pelos buracos do toldo mofado, as moscas, o
cheiro da comida da vizinha, isso aliado à sua irritação natural, de berço,
podia-se dizer.
―Posso tirar a parte de cima do biquíni?
― Não, Rafa.
― Então me alcança o copo de caipirinha.
― Não, Rafa.
Zalon precisava manter a mais nova nos trilhos. Uma tarefa cada vez
mais emocionalmente exaustiva.
― Maconha?
― Sem drogas na minha casa! ― disse a vizinha, cabelo branco quase
da cor da pele. Sentou na espreguiçadeira, enfiada num maiô antigo, a
magreza do corpo mignon. ― Meu filho vendia tóchico. Um dia foi preso e,
quando voltou, quebrei a vassoura nas costas dele. Parou de vender essas
merdas, e agora vende pamonha na feira. Tem dinheiro e família. Me deu
essa piscina. ― olhou para Rafa e foi taxativa: ― Não pode mijar nela.
― Uai, sô! Mijo onde quiser.
― Para com esse sotaque ridículo.
―Por acaso, já falei que entrou um filmão em cartaz no cinema?
“Maitê: a pentelho encravado”. É proibido para menores de 80 anos, o resto
pode ver porque tá quase lá, depois da curva.
― Menina, eu tenho 81 anos e sou mais forte que você. ― disse a
vizinha.
― Só de se sentir obrigada a falar isso mostra que é fraca. ―
debochou.
―Por que não começa ler as fichas dos bandidos para nós, hein, ô
Rafaela? ― Zalon tentou ser diplomática.
― Tô falando com a velha.
― Rafa, por favor! ― Maitê sentou ao lado da irmã, à mesa debaixo
do guarda-sol.
― Vou ler na frente da velha?
― Cadê o respeito, Rafaela? ― perguntou a vizinha, baixando os
óculos escuros para fitá-la. ― Acha que tá entre seus amigos de gangue, é?
Maitê se pôs de pé, as mãos na cintura, o olhar cravado na senhorinha.
― A gente não precisa ouvir isso só por causa de uma piscina de
plástico. Saí daí, Zalon!
― Aiiii, mas tá tão calor! ― lamentou, deitando para trás na água, que,
se ela estivesse de pé, lhe alcançaria pouco abaixo dos joelhos. Afinal, era
uma piscina com a capacidade de mil litros.
Tia Paulina fez sinal para Maitê, e as duas se aproximaram da piscina,
assim Zalon pôde ouvir a conversa delas.
― A vizinha sofreu um AVC anos atrás, ficou meio lelé, não liguem
para ela.
― Dane-se, ela ofendeu a Rafa.
― Acha mesmo? Olha lá a sua irmã, rindo pra tela do celular, deve tá
vendo aqueles vídeos doidos dos iotôberes.
― Youtubers, tia. ― Maitê aparentemente se acalmou. Mesmo assim
não parecia convencida de permanecer ali: ―Não acho sensato comentarmos
sobre os Manganelli na frente da dona Mafalda.
― Acha que ela fará o quê? Vai telefonar para eles? Aquela ali vive no
próprio mundo faz tempo. O filho nunca foi traficante nem vende pamonha.
― O que ele faz então?
― Nada.
― Vixe.
― Não faz nada, porque não nasceu. A Mafalda é virgem, virgem raiz,
nem a bunda deu.
Zalon caiu na gargalhada.
Capítulo 7

Maitê era teimosa e mandona. Tudo saía como ela determinava, isso
desde quando eram crianças. Por isso Zalon ficou sem a piscina meia boca, e
agora elas estavam no centro da cidade, descendo do ônibus para entrar na
sorveteria a quilo.
Rafa vestia o biquíni por baixo da microssaia e a regata. Usava chapéu
de vaqueira. Ao passo que Zalon seguia a moda da irmã mais velha, jeans e
camiseta.
― É quilo de sorvete ou de ouro? ― apontou para a placa na parede do
estabelecimento.
― Vou pagar, Zalon.
― Ótimo, Maitê, pois pretendo comer até explodir. ― disse Rafa,
pegando um pote plástico de meio quilo.
Já sentadas à mesa, na calçada protegida por um longo toldo que não
estava mofado nem furado, Rafa começou:
― Vamos ao perfil de cada traste. ― encheu a boca de sorvete e
escolheu uma das fichas de cartolina para ler. ― Como o Miguel e o Ettore
são irmãos, acho mais organizado começar por eles.
― “Organizado”, parece vocabulário da Maitê.
Recebeu em resposta uma careta divertida da irmã.
― Depois temos que escolher os vestidos para o baile das Cinderelas
golpistas.
― Combinado, comandante. ― Rafa arqueou as sobrancelhas antes de
ler a ficha de Ettore: ― Como as gatas borralheiras sabem, o Ettore é o filho
mais novo do Francesco. Ele é um dos CEOs do grupo, faz parte do conselho
administrativo desde os seus 23 anos, quando começou a trabalhar lá depois
de se formar nos Estados Unidos. Bem, isso foi o que a Zalon encontrou na
internet. Agora vou ler o que o povo fala por aí: trata mulher como copo
descartável, usa e joga no lixo. Sacaram que amor? Porém, dizem que é
educado, tipo, não humilha ninguém... além das mulheres que se apaixonam
por ele. Olha, o cabra é sexy e bonitão, tá bem conservado para os seus 35
anos... Ok, Maitê, não me olha assim, sei que a minha opinião estética não
interessa. Bem, ele gosta de cavalgar e inclusive tem um haras particular e,
como os outros, vive para o trabalho e se isola na propriedade da família.
Viaja seguidamente pelo país e exterior e, novamente, diz o povo por aí, leva
consigo uma assistente executiva diferente em cada viagem, ou seja... puta de
programa. Alguma dúvida sobre Ettore Manganelli? Posso passar para o
irmão dele?
― Vazio. Ele é vazio.
― Milionário, né? Queria que fosse cheio de quê, Maitê? De
sofrimento por não ter um pônei? ― indagou Zalon à irmã mais velha.
― Ele tem um haras, deve ter um pônei.
― É, cavalo é o que não falta por lá. Vamos ao cavalão do mais velho,
o coroa, o caindo aos pedaços, o coroa-bom-de-bola, o...
― Chega, Rafa. Lê logo a ficha do Miguel.
― Calma, sô. Tá estressada? Vai pescar, vacona.
Zalon meteu uma boa colherada de sorvete na boca, assim gelava a
língua e acalmava a vontade de rir da irmã caçula. Ô danada de peste!
― O Ettore é o menos perigoso. Hômi mulherengo é alvo fácil.
Portanto, será ele quem você vai atacar... Zalon.
Cuspiu o sorvete na mesa. Mas antes engoliu um pouco dele, que
entrou pelo lugar errado. Engasgou-se e, em seguida, sentiu vários tapas nas
costas. Eram suas irmãs querendo lhe deixar tetraplégica, só podia.
― Deu, tô bem, pelo amor de Deus! ― pediu, erguendo os braços.
― Pensei que fosse morrer. ― disse Maitê, olhando-a criticamente ao
voltar a se sentar. ― Você é a parte mais frágil do trio. Não me refiro à
personalidade, ok? E sim ao fato de que não tem o mesmo ódio no peito
como eu, nem é fora da casinha como a Rafa...
― Obrigada, de nada. ― Rafa sorriu e, num gesto peculiar todo seu,
inclinou a cabeça e piscou os olhos várias vezes.
― O Ettore então também é o mais frágil do trio? ― tentou ocultar o
sarcasmo, mas não conseguiu. ― Não sou fraca nem ingênua, posso lidar
com qualquer um.
― Não, o Ettore deve pensar com o pau. Mas o pior deles vai ficar pra
mim. ― determinou Maitê, taxativa, mal deslocando os maxilares para falar.
― Não preciso das suas fichas, Rafa. O cara que é filho único de um tirano
fascista, criado por ele como um reizinho, mimado, o filhinho do papai,
adulado, só falta a coroa e o pedestal... Vocês sabem, aliás, todo mundo na
cidade sabe que esse Manganelli é cruel, arrogante e, provavelmente, o
mentor do plano de assassinato da nossa mãe. Ele deu a ideia aos primos!
Esse desgraçado é o MEU alvo.
― Roberto Manganelli. ― balbuciou Rafa.
― As tias também acham que era ele quem queria as nossas terras.
Parece que é o mais ambicioso dos três, e dizem que o pai dele matou gente
logo que chegou ao Centro-Oeste, mas tudo foi encoberto, porque ele já era
rico na época, os pais tinham terras no Sul do país. ― concluiu Zalon.
― Merda, me sobrou o Matusalém. ― bufou a caçula. ― Pelo que li
aqui nessa porra de ficha, o tal Miguel é outro tinhoso. Não tem mulher que
fique muito tempo com ele. Tem 38 anos... diabos, quase 40. ― bufou de
novo. ― A parte do e o povo diz é péssima, parece que ele joga coisas longe
durante as reuniões do alto escalão, é antissocial e vive enfiado no meio dos
bichos da fazenda. Não estudou fora, como o irmão, e o povo diz que o
Francesco não o queria como CEO da corporação, ele só tá por insistência do
Aquino. Pensem bem, o pai do bicho não queria ele na empresa! Mas o pai do
Roberto apoia o filhinho! Tem alguma coisa errada aí. Maitê, você tá me
dando o velho esclerosado só porque tá de olho no bonitão com cara de mau!
― Por acaso, você já viu a aparência do tal velho esclerosado?
― Ui, não precisa se irritar! ― gargalhou. ― A minha vida é do outro
lado da estrada, lá onde a gente mora, com a minha galera. Talvez eu já tenha
visto o velhote, talvez, não. Mas é como tá na ficha, o bicho não sai do
estábulo. ― deu de ombros, resignada.
― Ele é lindo.
― Lindo, Zalon? Um dos caras que destruiu a nossa família? ― Maitê
foi mordaz.
― Não seja radical. Os três são bonitos e sensuais, têm aquela coisa de
virilidade rústica de caubói com a sofisticação sacana de milionário. Não sou
cega nem burra. Sei que não prestam, a embalagem é maravilhosa, mas o
conteúdo é podre. Se você fizer cara de nojo ou de raiva toda vez que se
referir a eles, não vai conseguir se vingar, essa é a verdade.
― Concordo com a Zalon. Agora me mostra a foto do cavalo velho.
Zalon sabia exatamente como era cada um dos Manganelli. Por mais
que vivesse enfiada em casa, costurando com a tia, às vezes, dava as suas
voltas na cidade. Os fundadores de Santa Bárbara, desde o início, sabiam que
o novo município atrairia tudo que era tipo de gente e não apenas os
fazendeiros ricos do Sul, como eles próprios o eram. Assim como em
qualquer lugar, pensaram num modo de não misturar as classes sociais. Quem
se ferrou ou quem trabalhava para os bem-sucedidos vivia do outro lado da
estrada que cortava a cidade, logo após o portal de entrada. O bairro operário
era de fato de gente trabalhadora, que pegava ônibus depois de oito ou dez
horas de trabalho no comércio e nas poucas indústrias. Voltavam para casa
em questão de minutos, contudo, a paisagem ao redor mudava sobremaneira.
Chão batido, casas simples e vários mercadinhos informais. A energia
elétrica, esgoto e água eram regularizados. Mas quando chovia, tudo virava
um lamaçal dos infernos. Tinham um posto de saúde, mas os casos mais
graves eram atendidos no hospital público, do outro lado da estrada. Os
inviáveis, embora necessários. Os excluídos, embora vitais para o
funcionamento da cidade. Afinal, quem vivia, por exemplo, sem os lixeiros?
Uma cidade bonita, arborizada, planejada não podia dividir espaço com a
feiura estética da pobreza. Por isso a segregação. Rafa apelidou o lugar onde
moravam de zumbilândia.
― É o que o povo da cidade acha que somos, ora. Zumbis.
E foi ela mesma quem soltou uma exclamação esganiçada:
―PUTA QUE PARIU! Quero ser a cuidadora desse coroa!
Sim, acabava de ver a foto de Miguel Manganelli.
― Trinta e oito anos, por favor, não é um coroa. ― censurou-a.
― Ele tem 21 anos a mais que a Rafa, podia ser pai dela. Portanto, é
um coroa. ― disse Maitê, com rispidez, pegando da mão da irmã o seu
celular de volta.
Pronto, anotação mental: não posso falar pra Maitê nada, nadinha
positivo dos bandidos italianos.
― Então, resumidamente, eu conquisto o Miguel, e a Zalon fica com o
Ettore. Você, Maitê, pega o Roberto. E depois? Cortamos a garganta deles na
primeira transa?
― Ninguém vai fazer sexo com esses canalhas. ― disse Maitê.
― Ah, entendi, vamos conquistar só com beijinhos, tipo...como se faz
na quarta série.
― Rafa, a ideia é descobrir quem mandou o advogado atrás da mãe, ou
melhor, quem mandou o advogado primeiro atrás do fulano. Sem a assinatura
do infeliz, ela não teria se sentido pressionada a assinar o maldito papel.
― Maitê, por que a gente não procura o fulano e pergunta pra ele? ―
sugeriu Zalon.
―Me passa o endereço, que eu pego a espingarda da tia e vou
interrogá-lo. ― respondeu, com azedume. ― Se eu soubesse onde ele tá, com
certeza, a empreitada seria mais fácil. Olha só, a gente vai jogar com os caras,
entenderam? Seduzi-los até arrancar a verdade. Eles nunca nos viram, somos
invisíveis pra esse tipo de pessoa. O Ettore tem um ponto bastante fraco que é
a mulherada, e você, Zalon, é novinha, loirinha e com cara de inocente. E o
fato de não fazer sexo com um cara que se acha, um mulherengo disputado a
tapas no mercado, o colocará na palma da sua mão. E caso não aconteça o
esperado, pelo menos estaremos dentro da casa de cada um deles e
poderemos investigar o interior para encontrarmos o contrato de compra e
venda da nossa fazenda. Quem o tiver, foi o cretino que mandou o advogado
pressionar a mãe e, se não foi o mandante, ainda assim foi o responsável pela
morte dela.
― E o que faremos quando descobrirmos o dono das nossas terras?
Zalon notou que Rafa largou o sorvete de lado para também concentrar
seus olhos em Maitê.
―O que aconteceu a nossa mãe?
Rafa antecipou-se ao responder antes dela, e Zalon temeu o sorriso
cruel da irmã mais nova que combinava com o mesmo tipo de olhar da irmã
mais velha.
― A gente vai suicidar o Manganelli.
De repente ela se sentiu tonta e sem ar. Fingiu que estava tudo bem,
não demonstraria o medo que a comia viva. Não era a pessoa mais frágil do
trio, Maitê estava enganada. Talvez ela fosse a única a pensar nas
consequências de uma vingança.
Nunca eram boas.
Capítulo 8

― Sabe quanto dá um Uber Black até a Fazenda Manganelli? Pois


bem, eu te digo, dois meses de costura de bainha de calça.
Zalon estava realmente preocupada.
Rafa olhou mais uma vez para o relógio do celular.
― Acho que a Maitê não conseguiu a folga no trabalho. Vou ter que
ligar para ela confirmando se a gente vai ou não à festa dos alvos.
Voltou-se para a irmã e teve de convir que ela parecia uma ricaça. O
longo em crepe que ela usava tinha o caimento perfeito para o seu corpo bem
torneado. Os ombros de fora e o decote em duas camadas alcançavam a linha
da cintura marcada cuja saia se ajustava ao corpo. A fenda frontal dava um ar
sexy ao modelo na cor branca e combinava com a sandália de salto alto. Rafa
deixou o cabelo loiro e comprido solto e usava maquiagem de festa, que
incluía muito rímel e sombra escura nas pálpebras que lhe toldavam os olhos
claros.
Olhou para si mesma e se sentiu estranha no vestido rendado com
pedrarias, na cor azul oceano. O decote avançava até quase metade da barriga
e, como ela tinha seios pequenos, não revelava mais do que o interessante
para estimular a imaginação masculina. As mangas alcançavam os cotovelos
vindas dos ombros articulados. A parte de trás era semelhante à da frente,
uma sugestão de nudez recortada no desenho de um estreito triângulo
invertido. Os pés protegidos pela sandália da mesma cor, o salto meia pata de
10 cm.
A verdade era que estava acostumada ao jeans e aos vestidos curtos
comprados nos balaios que ficavam nas calçadas das lojas populares. Sabia,
no entanto, que as roupas usadas por elas para a festa de aniversário do
Manganelli até podia não caber no orçamento das duas, mas também não foi
comprada na butique careira onde pretendiam usar o cartão clonado. Na
última hora, Maitê considerou perigoso usá-lo em um estabelecimento chique
como aquele. Optou então para que comprassem as réplicas menos caras das
roupas de grife em uma loja menos famosa, mas também acima das
possibilidades de uma aprendiz de costureira, uma garçonete e uma
desocupada de plantão. O lugar também era uma butique e se localizava na
zona nobre do centro comercial. Contudo, era frequentado pelo pessoal da
classe média que pensava como milionário, mas tinha o poder aquisitivo de
classe média mesmo. Assim, o que se vendia por lá eram cópias de modelos
famosos de roupa. A loja tinha a sua estilista própria e, por um momento,
Zalon quase ofereceu o seu trabalho de costureira para a proprietária. Não
queria deixar a tia na mão; apenas ganhar um dinheiro extra. Somente não se
aventurou em arranjar um segundo emprego em razão da dona da butique
estar fora e a estilista também. Apenas a gerente e as vendedoras estavam por
lá.
Maitê escolheu um longo em crepe também. Um modelo vermelho,
muito sexy, com uma fenda profunda na frente deixando os ombros à mostra
além da divisão entre os seios. As sandálias encobertas pelo tecido que se
ajustou ao seu corpo esguio.
Quando a irmã foi pagar os vestidos, Zalon notou que a soma não
alcançou os mil reais e tampouco a atendente que recebeu o cartão de crédito
percebeu que ele era clonado. Prometeu intimamente que devolveria o
dinheiro roubado do cliente. Anotou o nome do cara para, depois, procurá-lo
na internet. Sabia, no entanto, que o camarada não ficaria no prejuízo, pois os
bancos eram obrigados a proteger os dados bancários do cliente e, no caso de
clonagem, ressarci-lo. Ha, ha, ha, Zalon era a favor de sacanear os bancos.
Acontecia apenas que a irmã não estava vestida nem em casa na hora
combinada para pegarem o Uber e descerem diante da guarita da fazenda.
― Vacona, tá presa no curral?
― Ferrou, Rafa, não consegui a dispensa. Abortem a missão, ok?
― Abortar quem?
― Me dá o celular que eu falo com ela. ― Zalon interveio ao ver a
careta da irmã. ― O que aconteceu?
― Troquei o meu horário com a Virgínia, tava tudo certo, mas o chefe
não aceitou por que ele não foi avisado antes. É uma merda isso! Deixem a
festa de lado, fiquem em casa, a gente vê outro jeito de se aproximar dos
alvos.
― Nada disso, vou com a Rafa.
― Vocês não podem enfrentar os bandidos sozinhas ...
― A gente sabe se cuidar.
― Zalon, não me faça perder o emprego, por favor. Precisamos do
meu salário para viver. Mas se você insistir em ir a essa festa sem mim, eu
vou sair daqui para te esganar.
― Ninguém vai nos matar ou estuprar no meio da multidão. É mais
fácil a gente não conseguir nem chegar perto da realeza. ― debochou. ―
Será que você consegue me dar um voto de confiança? Uma vez só na vida,
poxa. A gente só tem dois anos de diferença, e você se comporta como se
fosse a minha mãe. ― declarou, magoada. ― Parece tanto com a mãe que até
falou em se matar.
Ouviu um suspiro do outro lado da ligação.
― Sou responsável por vocês.
― Só a Rafa é menor de idade. ― salientou.
― Certo. Então vou dizer de outra forma. ― ouviu-a novamente
suspirar: ― Amo vocês duas e não posso correr o risco de perdê-las também.
Zalon sentiu as lágrimas brotarem nos olhos, uma água que ardia e
insistia em escorrer pelo rosto maquiado. Talvez excessivamente maquiado,
precisava se esconder atrás de uma suposta e frágil máscara. Ao erguer a
cabeça, deu de cara com o olhar curioso da irmã.
― Também te amo. ― antes que ela tentasse convencê-las de desistir
da festa, emendou: ― O nosso Uber chegou. Vamos manter contato com
você, ok?
― Se cuidem... e não saiam do personagem. ― alertou-a.
Encerrou a ligação, sentindo-se péssima. Queria ter Maitê por perto, lá
na festa, em meio aos figurões e às ricaças. Adentrariam um mundo
desconhecido, poderoso e hostil. Temia ser descoberta e humilhada. Na maior
parte das vezes temia tudo, mas precisava fingir que era forte para não
decepcionar as irmãs.
― O que ela disse?
― Pra gente não se aproximar dos caras, só os analisar de longe. ―
mentiu.
Rafa assentiu com a cabeça, sem parecer se importar com a
determinação da líder da vingança.
― Até parece que tô saltitando de alegria para seduzir o coroa... ―
sorriu, sem graça, antes de acrescentar: ― Embora seja tesudo pra cacete.
― Olha lá, vê se é o Uber... ― Zalon apertou os olhos e esperou a irmã
confirmar a identificação da placa.
― Milagre o cabra ter aceitado a viagem para a zumbilândia.
―Rafa Diavolo, não se esqueça de que a gente tá hospedada no Hotel
Kentucky até o mês que vem, hein? A Maitê reservou um quarto para nós,
caso os cretinos peçam informação a nosso respeito. Outra coisa... não sai do
personagem e nada de bebida.
― Festa sem birita não é festa. ― provocou-a, sorrindo no seu vestido
tão feminino e sedutor.
― Você vai deixar muito hômi doido. ― elogiou a garota.
― E você também, gata. Vê se relaxa um pouco, tá? A gente é rica e
filha de empresários.
― Sim, a partir de hoje, nada mais será como antes. ― profetizou,
sentindo que teria a rota de sua vida completamente alterada.
Capítulo 9

Assim que o Uber parou diante da guarita fechada, pouco antes do


portal em arco onde se lia Fazenda Manganelli, Zalon se deu conta de que o
sobrenome Diavolo não constaria na lista de convidados. Torcia então que
não lhes pedissem as carteiras de identidade (falsificadas).
Rafa baixou o vidro à chegada do vaqueiro vestido de terno e chapéu.
― Boa noite! O seu nome, por favor?
Loiro, alto, rosto escanhoado, belos olhos verdes, aparência gentil.
Porém, parecia o tipo altamente profissional.
― Vulvita.
Zalon sentiu ao ar faltar. Diabos, por que a louca tinha bancado à
louca? Notou rapidamente que o rosto do jovem segurança ficou vermelho.
Ele esboçou um sorriso sem graça, mas Rafa mal lhe deu chance de reagir e,
sorrindo, falou:
― Hahaha, desculpa a brincadeira cheia de graça. Pode ver aí na lista,
somos as Siqueira de Almeida. Falta uma, mas ela tá com caganeira.
O outro pareceu ainda mais constrangido, lançou um rápido olhar para
a lista de convidados e, assentindo com a cabeça, autorizou a entrada do
Corolla preto. Que ele imaginou que fosse do motorista particular da família.
― Por que falou palavrão? Ele vai notar que não somos da elite de
merda. ― sussurrou.
―Uai, sô, vulvita não é palavrão. ― disse Rafa, toda cheia de si. ― E,
se quer meeeesmo saber, isso é uma técnica de desconcentração. Eu precisava
distraí-lo na hora de checar os nomes e pedir os documentos. Viu como quase
o matei de vergonha, ele mal olhou pra mim.
O carro atravessou o portão alto de ferro sustentado por duas
imponentes colunas de pedra angular, oferecendo um aspecto medieval que
acompanhava o resto da suntuosa muralha. Em seguida, o veículo avançou
pela longa alameda coberta de pedriscos, ladeada por uma fileira de palmeira-
imperial.
Zalon considerou que, a qualquer momento, um guerreiro de armadura
saltaria na frente do veículo.
― Que lugar sombrio. ― disse, olhando ao redor as delicadas luzinhas
brancas e brilhantes nas árvores que acompanhavam a estradinha até pouco
antes da mansão cinzenta e austera. ― É imenso e sombrio.
― Fofoqueiros de plantão disseram que o Roberto ofereceu a festa de
aniversário do tio na sua própria casa, ou seja, entraremos no castelo do
Conde Drácula.
― O aniversariante deve tá escondendo a mulher doente.
― Bom, quem quer alguém rasgando as próprias roupas e andando
pelada entre os convidados?
― Vixe, Rafa, é isso que o povo diz?
― O povo chamado Maitê, sister. A enfermeira da esposa do
Francesco frequenta o salão country, tá louca pra laçar um caubói, mas
normalmente laça dois.
― Uau, deve ser aquele tipo de enfermeira gostosa que vemos nos
filmes.
― Não, é que ela é vesga. Vê tudo duplicado e aí paquera dois por vez.
― deu de ombros, displicente.
― Olha quanta estrada temos pela frente! Não é à-toa que partiram
para cima das nossas terras. ― resmungou, irritada.
― Quinze minutos da porteira até o ponto final. ― comentou o
motorista do Uber.
― Você traz muita gente aqui, Reginaldo? ― Rafa olhava ao redor,
parecendo impressionada com a sofisticação austera refletida pelas luminárias
pesadas e antigas.
―Só acompanhantes de luxo.
Zalon olhou para Rafa e a fuzilou com o olhar. Por que interagir com o
estranho que a fez se sentir uma vagaba? Aliás, pra que chamar a atenção de
um estranho para elas próprias, que se passavam por outras pessoas.
― Que legal! A gente também é puta.
― Não somos, não. ― Zalon se viu obrigada a dar um tapão na perna
da irmã.
― Viemos caçar uns ricaços.
Merda, cadê a Maitê numa hora dessas?
O motorista riu baixinho, reduziu a velocidade ao chegar à área do
estacionamento. Porém, antes disso, ele teve que parar na fila, onde os
clientes desciam dos automóveis e picapes de luxo e entregavam as chaves
aos diversos manobristas uniformizados.
― Bem, ficamos por aqui. ― disse Rafa, abrindo a porta. ― É certo
que você não dará a chave do seu Uber, não é, Reginaldo? ― brincou.
― De jeito nenhum, moça. Boa festa! Tentem se divertir.
― Por que falou isso? ― Zalon estava para sair quando se voltou ao
ouvir a sinistra declaração. ― O senhor sabe de alguma coisa?
O motorista se virou para trás, ainda sorrindo, ao responder:
― Vocês parecem moças simples que vão cair na cova dos leões.
Apenas tenham cuidado e tentem se divertir.
― Ô bosta, a gente tem cara de pobre.
Ele riu alto.
― Não, nada disso. Mas sei de onde as busquei. ― piscou o olho,
camarada.
No instante seguinte, Rafa meteu a cabeça através da janela aberta do
motorista e deu para ouvir claramente o tom grosso e baixo da ameaça.
― Se falar sobre nós para alguém, vou arrancar as tuas bolas com o
meu canivete. ― Para provar o que falava, afastou a fenda do vestido e
mostrou a arma branca enfiada na barra rendada da meia sete oitavos.
Zalon a pegou pela mão, levando-a para longe do automóvel.
― Quer matar o cara de susto ou de tesão?
Capítulo 10

O plano era telefonar para Maitê assim que chegassem no território do


inimigo.
― Ela não pode mexer no celular quando tá trabalhando. ― lembrou
Rafa, consultando o seu próprio. ― Cacete-de-puta-loca, meus créditos
acabaram! Vou pedir para um convidado a senha do Wi-fi.
― Acha que rico precisa do Wi-fi dos outros, é? Poxa vida, carreguei
13 reais faz duas semanas e também já acabaram!
― Essas operadoras comem os nossos créditos! O fuinha disse que
agem igual ao pessoal que cria antivírus pra computador. São eles próprios
que colocam os vírus nas máquinas.
― Imagino que sim, com uma seringa obviamente.
― Afff, nunca falo sério e quando me esforço pra ser madura, você
debocha. ― bufou. ― E, agora, como vamos avisar a Maitê?
― Vou ligar a cobrar.
― Mas ela não vai atender, sonsa.
― Pois é. ― mordeu o lábio inferior, pensativa. ― Vou ligar a cobrar
pra tia Paulina, bem rapidinho. ― E foi o que fez, avisando-a de que estavam
na propriedade dos Manganelli e que a festa era na mansão do Roberto.
Zalon se sentiu um peixe fora d’água em meio a tanta gente
glamourosa e, de certo modo, exageradamente bem-vestida. Afinal, por mais
que fossem ricos, ali nada mais era que uma fazenda e não um palácio na
França. Mas parecia que a mulherada queria mesmo era gastar fortunas em
roupas que despertassem a inveja uma das outras, como uma competição
entre quem tinha mais dinheiro. Os homens se assemelhavam a um bando de
urubus, tudo de preto.
― Onde será que ficam os estábulos?
― Rafa, vamos nos enfiar por entre o povo até encontrar o Ettore e o
Miguel. ― sugeriu, pondo-se em ação.
― E não é lá que o Miguel dorme, sô?
― Chega desse sotaque tosco! ― advertiu-a.
―A gente é de Minas, não podemos perder o sotaque em poucos dias
no Mato Grosso do Sul, ô bobajada!
― De onde você aprende essas palavras, maluca? ― riu-se. E esse era
o seu problema de autoridade com a mais nova, acabava sempre rindo e se
divertindo com as doideiras dela. Ao passo que Maitê, não, era linha dura.
―Interneta.
― Mineiro não fala interneta.
― Quem disse que eles falam interneta?
― Você, ora.
―Ah, sim, eu falo interneta.
―Ok, minha conexão de paciência com você acabou de cair. ―
puxou-a para perto e cochichou: ― Pega uma taça de champanhe e se
mistura, sorri pra todo mundo, finge que é fina e vê se encontra o Miguel.
Não se aproxima dele, ok? Só fica de olho no bicho, avaliando a presa.
― Vô dá nocê, subcomandante, muito mandona. ― sorriu, como um
anjo com as asas roubadas de uma mariposa sorriria.
Mal a irmã lhe deu as costas e Zalon quase teve um derrame cerebral.
Ettore Manganelli descia serena e altivamente a escadaria da mansão em
direção ao jardim à francesa, visível dos salões no alto da escadaria do
avarandado, composto também por um espelho de água central rodeado por
um conjunto de palmeiras. Ao fundo, o monumental chafariz que disparava a
cada vinte minutos jatos d’água ao som de diferentes trechos de música
clássica.
Deu as costas à beleza do jardim nunca antes vista por ela, parecia
mais coisa de filme antigo ou de comédia romântica, aquelas bem chatas que
ninguém ria, mas que valia ser vista pelo cenário paradisíaco.
Como Santa Bárbara podia ser tão bela e ao mesmo tempo tão feia?
Lembrou-se rapidamente da piscina de plástico sobre a laje quente da sua
vizinha.
Agora não era momento para reflexão social e sim para seguir a figura
aristocrática que chegou ao pé da escada. Ettore usava um smoking cinza
chumbo que destacava as costas largas dos seus mais de 1,95m. Camisa
branca e gravata borboleta um tom mais claro que o do traje. Tinha a
estrutura física de um lenhador, mas a elegância de um príncipe dinamarquês.
Seguiu-o com o olhar, notando que aos poucos ele foi cercado por
meia dúzia de mulheres. Ainda que não sorrisse nem parecesse o tipo
simpático (afinal, era um maldito Manganelli), parou e deu atenção a todas.
Uma, em especial, pareceu ter-lhe despertado interesse. Infelizmente, não era
Rafaela. O que lhe facilitaria a vida. Se a irmã lhe chamasse a atenção, Zalon
podia simplesmente aproveitar os coquetéis e canapés, encher a barriga do
bom e do melhor, e depois dizer a Maitê: não tive culpa, você sabe, sou sem
graça, o cara preferiu a doidinha. Evidentemente a irmã mais velha ficaria
irritada e a perguntaria por que, diabos, então não partiu pra cima de Miguel.
Boa pergunta. Cadê Miguel?
Ergueu o pescoço, varrendo com o olhar o mundaréu de gente no
jardim, no avarandado e no interior do salão de festas. Ela estava à porta
dupla, quase escondida, encolhida nos seus 1,60m e, assim como viu Ettore
descer a escadaria, a qualquer momento talvez esbarrasse com o mais velho
do trio.
Lá do jardim, a orquestra começou a tocar River. A cantora segurou
bem o timbre sexy e agressivo de Bishop Briggs. Zalon sentiu a música
pulsar dentro dela. Tinha uma sensibilidade extrema que, às vezes, deixava-a
em maus lençóis. Pois facilmente chorava em público. Ninguém gostava de
andar com uma pessoa que despejava suas emoções na calçada diante de
todos. E ela não sabia guardá-las no bolso. O máximo que conseguia fazer era
correr para o primeiro banheiro que encontrasse, baixar a tampa da privada,
enterrar o nariz num punhado de papel higiênico e chorar em silêncio. O
desespero a atingia com a força de um míssil que não explodia; a dor do
impacto seco, entretanto, empurrava-a contra a parede. Mas também era
capaz de chorar de emoção, como ao ver filmes com cachorros, cavalos e
vacas. Bichos que se superavam, venciam na vida, davam a volta por cima e
o final era feliz.
Agora, por exemplo, a voz dolorosamente raivosa da cantora em meio
àquela multidão de gente vestida ostensivamente bem, a superficialidade
ganhando ares de sufocamento, encheu-lhe os olhos de lágrimas. Aquilo tudo
era falso. Ela era falsa. Um jogo. Uma vingança. Desde quando era esse o seu
projeto de vida?
Quando realmente pensou a respeito da própria vida? Os dias vinham e
iam. O sol nascia e morria. Tudo de novo e sempre o mesmo. Deus no
controle, dizia tia Paulina. Deus não existe, dizia tia Joaquina. Todos somos
fantoches, a vizinha da piscina de plástico dizia. Fantoches de quem? E a
velha respondia: de quem segura as cordas nos manipulando, sua tonta.
De repente se cansou de olhar para o deus grego. Queria outra bebida e
para isso precisava encontrar um garçom. A pouca estatura a ajudaria a
encontrar anões com bandejas e não gente de altura mediana. Subiu os
primeiros degraus da escadaria e olhou ao redor, o povo se produziu tanto
que mil fragrâncias caríssimas pairavam no ar. Ótimo para quem sofria de
rinite.
Pegou o champanhe da bandeja repleta de taças que passou por ela
como se pairasse no ar, mas era equilibrada na palma da mão do garçom.
Bebeu o líquido borbulhante numa golada só. Segurou um arroto. Aproveitou
para ver se encontrava a irmã zanzando pelo saguão atrás do bandido número
um ― alvo um, melhor dizendo, já que foram divididos pela categoria idade
e Ettore era o mais novo entre os três.
Rafa estava fora do seu perímetro de visão, e a próxima taça de
champanhe desceu rapidinho. Dessa vez, o garçom lhe entregou como se ela
fosse uma pessoa importante. Agradeceu-lhe sem o fitar, temendo que lesse
zumbilândia no fundo dos seus olhos.
Subiu mais um degrau e, por um momento, pensou em
disfarçadamente se enfiar no segundo andar. Não sabia a localização do
quarto do tal Roberto nem se tinha escritório ou biblioteca na mansão, mas
sentiu-se compelida a investigar o local.
Deu mais uma olhada no seu alvo em questão, e ele parecia entretido
com uma loirinha peituda, sorridente, sardenta e sexy.
Bem, ela também era uma loirinha... despeitada, sem o mínimo de
vontade de sorrir, nada de sardas (usava protetor solar fator 60) e... sexy? Se
gente magra de perna torta era sexy...Não gostava de se olhar no espelho, mas
fazia várias selfies e postava no Instagram. Usava um monte de filtros,
retocava tudo que podia. A maior parte das vezes não gostava do que via,
excluía as imagens, postava outras. Não era nenhum fenômeno, mas recebia
algumas curtidas. Principalmente as fotos em que ela fazia cara de menina
inocente. Era difícil fingir-se de inocente, aos 19 anos, trabalhando quase 12
horas por dia diante da máquina de costura, juntando dinheiro para pagar
parte das contas, comprar comida, maquiagem e perfume baratos. Além dessa
maldita sensibilidade exagerada e a vontade de chorar sem motivo aparente, o
eterno nó na garganta.
Era certo que Ettore acabava de acertar a transa da noite. Sentiu-se
aliviada, mas também decepcionada, pois não tivera nem chance de ser vista
por ele. Bom, ela era novinha, loirinha e com cara de sonsa... talvez ele se
interessasse sexualmente.
Maitê acreditou que, em meio a tanta gente, ela e Rafa seriam notadas
como Cinderelas no baile da realeza? Quem era a mais ingênua entre as três,
afinal? Zalon pelo menos sabia de suas limitações.
Notou que era observada. Bebericou o champanhe sem deixar de olhar
para quem a analisava do outro lado do salão. Alto, elegante no terno preto
aberto mostrando o colete, gravata e camisa da mesma cor. A pele clara, o
cabelo loiro da cor do trigo, cortado como o de um bom menino, mais rente
ao couro cabeludo nas laterais. À medida que ele se aproximava, ignorando
as pessoas que insistiam em lhe chamar a atenção, sorvia o copo que parecia
conter uísque sem gelo. E ele as ignorava, porque se encaminhava em direção
à escadaria. Olhava para ela e, assim que se achegou a poucos centímetros,
dois degraus abaixo do seu e, com isso, ficaram na mesma altura, Zalon
mergulhou no azul dos olhos brilhantes. Não pôde deixar de pensar que ele
tinha olhos cor de chuva.
Antes que ela reagisse a sua presença altiva e silenciosa, ele foi
interceptado por uma ruiva espetacular, o cabelo longo e encaracolado lhe
descia pelas costas nuas no vestido justo. Ela lhe falou algo ao ouvido, a mão
encostada no peito masculino sugerindo intimidade. Ele se afastou
ligeiramente, olhou-a nos olhos e sorriu. O sorriso tinha todos os tons do
cinismo. No instante seguinte, ele a pegou debaixo do queixo, baixou a
cabeça e quase a beijou. A manobra repentinamente mudou, e a boca
masculina roçou na orelha da mulher. Ele deve ter-lhe sussurrado algo ruim,
embora o sorriso se mantivesse intacto na face escanhoada. Porém, no
instante seguinte, a mulher recuou, levou a mão à boca, balançou a cabeça e
os cabelos parecendo ofendida e deu o fora dali sem olhar para trás.
Ele então a fitou outra vez. Agora, parecia ainda mais ameaçador,
embora houvesse um ar de divertimento no canto dos olhos. Zalon olhou para
trás, talvez estivesse se confundindo e ele encarava outra pessoa. Não havia
ninguém... Na verdade, ela estava a poucos metros de Ettore e, se fosse mais
corajosa, dava um jeito de tropeçar num degrau para ser pega por ele.
― Ela é uma antiga amante do meu primo. ― disse o alvo dois,
apontando para o casal.
A voz masculina grave e baixa chegou aos seus ouvidos como a
maciez de um veludo. O esboço de um sorriso no canto dos lábios sardônicos,
a sobrancelha arqueada, o olhar hipnotizante. Foi como se duas mãos a
puxassem para dentro do oceano.
Desligou-se de tudo, da música, do som das conversas e se concentrou
nos seus batimentos cardíacos acelerados. Podia ouvi-los como tambores
selvagens. O cheiro que se desprendia daquele homem era narcotizante. Mais
do que isso, tinha um quê de erotismo. A fragrância amadeirada com notas
cítricas e frutais e essência de plantas e flores. Um odor prazeroso. A
combinação perfeita para a elegância do homem sofisticado que a olhava de
cima a baixo sem esconder o interesse pelo seu corpo. E, depois, por seus
lábios. Instintivamente, umedeceu-os com a língua sem deixar de nadar e
mergulhar no azul dos olhos dele que, agora, cravaram-se nos seus.
― Sou... sou apenas uma convidada. ― balbuciou, trêmula, excitada,
quase em pânico por estar diante do alvo de Maitê.
O mais perigoso, o forte candidato a líder dos assassinos, o único
herdeiro de Aquino, o temido Roberto Manganelli.
Deus, ele era simplesmente irresistível.
― Posso apresentá-la ao Ettore. ― sugeriu, cúmplice.
― Eu... ― não preciso de sua ajuda, gostoso, bandido, cheiroso,
assassino. ― Na verdade, eu estava à procura do banheiro.
Ele estreitou as pálpebras demonstrando desconfiança. Por um
momento, ela pensou que fosse ser arrancada da mansão a pontapés. A mão
masculina, contudo, afastou-lhe uma mecha de cabelo do rosto, ajeitando-a
atrás da orelha.
―Tá sozinha, pobre lebre assustada?
A suavidade daquela voz lhe arrepiou os pelos dos braços.
Capítulo 11

Quem eram os predadores da lebre?


Lobos e aves de rapina. E, como esporte, o homem.
O principal alvo da caça, portanto, determinou o seu lugar na caçada.
Zalon não tinha certeza de que podia enfrentá-lo, não depois de ter sentido o
efeito que ele lhe causou no corpo.
O certo, nesses casos em que se via encurralada, era buscar uma saída,
preferencialmente, discreta.
―Quero aproveitar a oportunidade para parabenizá-lo pelo aniversário
do seu tio. ― tentou ser sensata, controlando o tremor da voz.
― Obrigado. ― Roberto esboçou um sorriso cínico. Subiu os degraus
que os separavam, e ela notou que ele era muito mais alto do que aparentava.
― Dê os parabéns ao filho dele. ― dito isso, virou-se e fez um sinal com o
indicador em gancho a Ettore: ― Minha amiga quer felicitar o tio. Sabe onde
ele tá?
O olhar que recebeu de Ettore foi o da mais fria indiferença. Por certo,
incomodou-se de ser interrompido na conversa com a antiga amante.
Aproximou-se, trazendo-a pela mão, o que deixava claro a intenção de
permanecer com ela durante a festa e depois também.
― O pai foi se deitar, disse que estava cansado, mas acredito que se
aborreceu pela proporção que o evento tomou. ― disse, num tom de enfado.
― Como vai? ― Zalon se adiantou para cumprimentá-lo. ― Meus
pais são de Minas, tô passando as férias em Santa Bárbara, fui convidada
pelas Silveira Almeida, é tudo maravilhoso, o pantanal, a festa, a fazenda de
vocês, o champanhe então... ― falou tudo num fôlego só, pensando se por
acaso não tinha errado o sobrenome da patroa da tia.
― Parece-me inclusive que bebeu demais. ― o comentário de Ettore
poderia ter soado divertido se ele não tivesse um arzinho pedante.
― A garota tá feliz, primo. ― interveio Roberto, sorrindo, pouco antes
de sorver todo o uísque.
― Imagino que sim. ― apertou a boca, salientando a covinha no
queixo, o que não disfarçou o olhar de rapina. Depois se voltou para ela e
inclinou a cabeça numa reverência solene ao falar: ― Foi um prazer conhecê-
la, srta...
― Diavolo.
― Diavolo? ― uma das sobrancelhas de Ettore se arqueou, o ar de
surpresa todo ali.
―Zalon Diavolo. ― repetiu, agora, orgulhosa do sobrenome fictício.
―Você é de onde mesmo? ― ele estreitou as sobrancelhas, sondando-
a.
― Minas Gerais, Santa Luzia. ― Cadê a Rafa, sô? ― Meus pais são
donos de uma cadeia de lojas e já vieram várias vezes pescar no pantanal.
Pois é, sou a herdeira de um império de riqueza, muita riqueza.
―Deve ser realmente rica mesmo. ― a mulher com Ettore se
manifestou, lançando-lhe um olhar de serpente.
É, sim, tô de olho no seu hômi. Quero destrinchá-lo feito frango pra
galinhada de domingo.
― Não sei de Diavolo de Minas... Aliás, de nenhuma parte do país.
Você conhece? ― ele se virou para a amante, o rosto exibia uma expressão
zombeteira.
― Não seria o perfume Diavolo? ― ela riu, sarcástica.
―Hum, isso mesmo, Gracie, do Antonio Banderas. ― rebateu ele,
exibindo o alinhamento perfeito dos dentes brancos num sorriso soberbo.
Eles estavam zoando com a cara dela!
― Conheci a família Diavolo num leilão de cavalos, anos atrás. ―
disse Roberto, encarando-a, impassível. ― O seu pai é um excelente
negociante, me passou a perna e comprou o puro sangue árabe que eu queria.
Lutamos lance a lance como cavalheiros que somos. Porém, num dado
momento, tive vontade de puxar o meu relho e o chicotear na cara. ― riu-se,
baixando a cabeça, e novamente a fitou: ― Ele venceu. E, realmente, como o
sr. Diavolo comentou na época, ele tem uma filha tímida, sem traquejo social
e um tanto atrapalhada. Isso porque só quer saber de estudar... Ao contrário
das piranhas da alta roda ruralista de Santa Bárbara. ― acrescentou,
esboçando um sorriso diabolicamente sedutor, fitando agora a amante do
primo.
Zalon estava pasma.
Tão pasma que suava frio.
― É verdade então? ― Ettore não perdeu a empáfia mesmo diante de
uma possível gafe. ― É bom saber que o seu pai venceu o meu primo, mande
lembranças a ele, lhe serei grato para sempre.
Viu a mão grande estendida na sua direção, mas a ignorou, deixando o
milionário no vácuo. Ouviu a risada baixinha de Roberto, ao seu lado, e o
discreto e forçado pigarro do outro ao ser ignorado.
Ettore conduziu a amante para o jardim através dos convidados que o
paravam para cumprimentá-lo pelo aniversário do pai.
Não gostou dele nem um pouco. Mas a intenção de uma vingança era
essa mesma: a de destruir quem se odiava, esmagar o inimigo sem dó nem
piedade. No caso de Ettore, Zalon mais do que nunca torcia para que fosse
ele o principal responsável pela tragédia das Toledo. A postura arrogante,
antipática e desprezível encheu o seu coração de fúria. Queria enfiar o salto
da sua sandália no pescoço do pedante. Não via mais beleza em alguém que a
humilhou, tendo como amante uma cretina com preenchimento labial... nem
boca direito a idiota tinha!
Porém, agora, um conflito se instalou na sua mente.
Voltou-se para Roberto, mas não teve chance de perguntar o motivo de
toda aquela mentirada que ele havia inventado.
― Quero dançar com você. ― ouviu-o dizer, já tendo a sua mão presa
a dele. ― Espero que dance melhor do que mente. ― acrescentou, por cima
do ombro, enquanto a conduzia para a pista de dança no jardim.
Capítulo 12

A vocalista da orquestra sorveu um bom gole de água da garrafinha de


500 ml, que deixou no chão junto ao pedestal do microfone enquanto se
apresentava. Ela usava um vestido estilo tubinho e botas até pouco acima dos
joelhos. A faixa grossa do delineador preto pintava as pálpebras superiores
dando-lhe aparência de “olhos de gata”.
Quando Roberto disse quero dançar com você, ela não imaginou o que
a aguardaria.
Ele foi até a tablado e cochichou ao ouvido da cantora, que assentiu e
repassou o pedido aos demais músicos atrás de si. Depois voltou até Zalon e,
ao seu lado e a encarando com ar sacana, começou a balançar os quadris sem
sair do lugar, os braços dobrados acompanhavam o ritmo pra frente e para
trás. Isso logo nos primeiros acordes de Starships, de Nicki Minaj, cantado
pela vocalista que parecia vinda dos anos de 1980.
Roberto tinha um sex appeal de matar, de oxigenar pulmões de
asmáticos, dar vida aos mortos, derreter bonecas de neve, excitar vaginas
vingativas. O sorriso aberto e cativante arrancava a atenção do público e não
era apenas o feminino. O pessoal simplesmente batia palmas, vibrando com o
seu desembaraço no piso preparado para fazer as vezes de pista de dança.
Ele abriu os dois botões do paletó, precisava de liberdade para os seus
gestos, e mandou ver na dança de troca de pernas, paradinha para uma
rebolada sexy e bem masculina, uma esticada de braço a la John Travolta,
um giro no próprio eixo, uma corridinha no mesmo lugar sem perder a
cadência da batida, outro giro e uma reboladinha. Os convidados pareciam
em chamas, gritando e aplaudindo. Ele era o centro das atenções. Zalon
percebeu a multidão que se formava ao redor para presenciar o show de
Roberto Manganelli.
Repentinamente ele a puxou para si e a girou, colocando-se atrás dela,
o braço lhe rodeou a cintura e a mão se espalmou sobre a sua barriga
imprimindo uma suave pressão que a trouxe para junto do corpo dele. Sentiu-
o deslocar os quadris sutilmente a acompanhando. Ela pôs a mão sobre o
dorso da mão dele e se deixou ser conduzida. Tudo que tinha de fazer era
mover a cintura bem devagar. E, como ele também flexionou ligeiramente os
joelhos a fim de nivelar sua altura à dela, Zalon praticamente esfregava as
nádegas no pênis que, sem querer, notou que era avantajado.
Roberto se afastou novamente para puxá-la para si. Olharam-se nos
olhos ao mesmo tempo que ele a enlaçava na cintura com um braço, a coxa
entre as pernas femininas, a languidez do movimento que parecia em câmera
lenta, quebrando o ritmo frenético da música. Era como se estivessem em
outro mundo, um tipo de alucinação que desacelerava tudo ao redor, os
recortava do fundo do cenário que era o jardim tomado pelos convidados
sofisticados, as plantas exóticas, o lago ao estilo dos grandes castelos
europeus. Era também como uma viagem ao mundo dos sentidos. Seus sexos
se tocavam, os olhos se encontravam, a mão no corpo dela, os seios
esmagados contra o tórax dele.
Roberto sorria um sorriso de prazer sem culpa.
Quando a música acabou, todos aplaudiram. Alguns, mais
entusiasmados, assobiaram.
― Pena que Ettore não nos viu. ― Roberto falou, fitando-a com
atenção.
― Não sei por que tá dizendo isso.
Ele então fez o mesmo movimento de antes, ao quase beijar a mulher
que lhe atravessou o caminho e depois saiu zangada, baixou a cabeça para
beijá-la, mas não o fez. Sorriu de novo para ela, os olhos pareciam dizer que
havia decifrado um enigma e tencionava lhe contar.
Tocou-a na bochecha com o dorso da mão, um gesto carinhoso e
calculado, como Zalon pôde perceber depois.
― Você é uma golpista amadora. ― afirmou, o olhar maligno e o
sorriso de troça. ― Sinto compaixão por gente da sua laia, normalmente até
me divirto um pouco, dou presentes caros, levo para viajar e finjo que tô
apaixonado. Sei lidar com golpista desde a minha adolescência, loirinha.
Ao soltá-la de si, Zalon perdeu o equilíbrio e quase caiu. Conseguiu se
recompor a tempo, mas não se sentia segura sobre as pernas, já que tremia
feito vara verde.
― Não sou uma golpista. ― disse, mal conseguindo articular palavra.
― Você sabe que é.
― Desde Minas, acompanho a carreira do Ettore, eu o admiro e me
sinto realmente atraída por ele. Sou rica, menos que vocês, mas não preciso
do dinheiro da sua família. ― olhou nos olhos.
―Diavolo. ― pronunciou, como se a palavra lhe causasse prazer ao
ser dita. ― Que imaginação fértil. Mas combina mais comigo, não acha?
Roberto Diavolo.
― Tem razão. Talvez eu tenha nascido mesmo é para ser uma
Manganelli. ― provocou-o.
Viu-o erguer uma sobrancelha expressando surpresa.
― É mesmo? Hum, ambiciosa... e burra. ― sorriu, olhando-a agora de
cima a baixo com menosprezo.
Ele deu-lhe as costas e saiu por entre as pessoas que voltaram a ocupar
a pista. Agora a orquestra tocava Dusty Springfield.
Aquele desgraçado ia estragar todo o plano delas. Era certo que falaria
ao primo sobre suas suspeitas. Mais uma vagabunda tentando obter vantagem
dos Manganelli. Os três na faixa dos trinta, solteiros e experientes na arte de
fugir de ciladas planejadas por mulheres interessadas na fortuna e prestígio da
família, ainda que os caras fossem atraentes.
Deus, como pude foder tudo na primeira hora da vingança?
Correu atrás de Roberto, segurando a barra do vestido e, ainda assim,
parecia uma jeca idiota. E foi isso que ele viu nela: a jeca idiota tentando
bancar a ricaça de Minas.
Era Maitê quem devia ter enfrentado o pior dos três. Ela sabia o que
dizia quando o escolheu como alvo. A mais experiente, com sangue nos
olhos, a chefona cheia de ódio no coração, articulada e inteligente jamais se
deixaria ser descoberta.
O pior dos Manganelli subiu a escadaria em direção ao segundo andar.
Zalon o seguiu até vê-lo entrar por uma porta e não a fechar.
Estacou à porta e o observou sentado na beirada de uma escrivaninha
de aço e vidro. Ele acendeu um cigarro e lhe devolveu o olhar, avaliando-a
em silêncio por um momento. Exalou a fumaça pelo nariz sem expressar
emoção. O sorriso desapareceu. A descontração na pista de dança já era.
Todo de preto na roupa que lhe caía impecavelmente no corpo esguio que
nasceu para usá-la. Parecia até um manequim de passarela. A aparência exata
de quem ele era: um CEO do agronegócio. A frieza no olhar lembrou-lhe
desse detalhe.
― Se não fosse uma golpista ordinária, teria se ofendido e caído fora
da festa.
― Não sou uma golpista.
― Eu podia chamar os meus seguranças, e eles a jogariam dentro do
carro popular que a trouxe. Deixou-o no acostamento da estrada? Ou alugou
um automóvel de luxo para dar credibilidade ao disfarce? ― foi sarcástico.
Ele era uma naja.
Precisava procurar por Rafa e dar o fora dali. Imediatamente!
― Não sou uma golpista. ― repetiu, tremendo até o queixo.
― Você é uma golpista que veio me procurar para tentar me convencer
de que não é uma golpista.
Corre!
― Tá com raiva por eu considerar o seu primo atraente? Sinto muito
por você não ser o meu tipo. É velho. ― viu-se falando sem o mínimo de
firmeza e convicção.
Ô, bosta!
― Ninfetinha abusada. ― arrastou a voz como se estivessem na cama
fazendo sexo. ― Você tem potencial pra arranjar um ricaço. Velho trouxa é o
que não falta em Santa Bárbara.
Ela ergueu o nariz, disposta a se defender dele, a dizer novamente que
não era uma golpista. Na verdade, queria mesmo era lhe jogar na cara o seu
sobrenome e o que os Manganelli tinham feito à sua família.
Mas não teve tempo de piorar mais a situação.
Roberto foi até ela e parou bem perto, o suficiente para beijá-la ou
esbofeteá-la.
― Sei como você pode seduzir o Ettore. ― sorriu levemente.
― O quê?
― Simples, muito simples. Você quer dar o golpe do baú no meu
primo, e eu vou ajudá-la. ― respondeu, com displicência.
― Não quero...
― Chega desse papo que não convence nem a si mesma.
Ela engoliu em seco, admitindo a derrota.
― E por que me ajudaria?
― Ótimo, agora podemos falar de negócios. ― disse ele, com frieza,
voltando a se sentar na beirada da escrivaninha. Indicou-lhe a cadeira à sua
frente e prosseguiu: ― Você me viu lá na pista, dançando, não é?
― Sim.
― Então é isso.
― O quê?
― Diversão, Diavolo. Pura diversão.
― Não entendi.
― Quero que o Ettore se apaixone por você de modo a torná-la uma
Manganelli. Depois irá se divorciar do meu adorável primo e arrancar tudo
que puder dele. ― os olhos brilhavam irradiando vida. ― Daremos um jeito
de ele não cogitar um acordo pré-nupcial. Bom, é só você usar os seus
atributos femininos, não é mesmo?
― Aham.
― Obviamente irei orientá-la em todas as etapas.
― Como?
― Conheço o Ettore desde que ele nasceu, sei que tipo de mulher o faz
perder a cabeça... as loucas, claro. Então eu serei o seu mentor... Como é
mesmo o seu nome?
― Zalon.
― Digo, o de verdade, de batismo.
― Zalon, cacete. ― resmungou.
― Ah. Exótico.
― Pois é.
― E o sobrenome de verdade?
Merda!
― É Diavolo.
― Não é.
― É, sim.
― Se quer a minha ajuda, precisa ser honesta comigo. ― olhou-a
como um felino de grande porte avaliando a presa.
― Pensei que fossem unidos, digo, os Manganelli. ― tentou mudar o
rumo da conversa.
Ele examinou-lhe o rosto, exibindo um traço de ironia no olhar.
― Tem medo de mim?
― E quem não tem?
― Ettore e Miguel. ― respondeu, sorrindo.
― Por que vai me ajudar?
― Já lhe disse o motivo.
― Não acredito que se divirta com a ideia de ajudar uma estranha a
enganar alguém da sua família.
― Defina... família. ― falou, piscando o olho pra ela. ― Não se apoie
em conceitos criados antes de nós, menina.
― Preciso de um tempo para pensar. ― considerou, imaginando se
contaria ou não a Maitê sobre a proposta do principal alvo da vingança.
―Você não tá em situação de exigir nada. ― rebateu, serenamente.
― Desculpa, mas eu não tencionava uma sociedade nos negócios.
― Pois é, mas eu nunca perco uma oportunidade. Quero que o
enfeitice e o enlouqueça, desvie a atenção dele das empresas, domine-o com
o seu charme de Lolita... um pouco passada, é verdade, mas é o que temos
para hoje, fazer o quê.
― Pelo menos não tô perto, bem perto, da meia-idade.
―Aliás, quantos anos você tem?
― Dezenove.
― Excelente. Porém, medrosa. O que é péssimo para os negócios. ―
resmungou, aborrecido.
― Sou corajosa, cabra. Tô até te enfrentando. ― defendeu-se.
― Dá pra notar que tá no domínio da situação. O meu primo farejou
pobreza assim que a viu, e os seguranças somente a deixaram entrar porque
deve ter mostrado os peitos. ― ironizou.
― Sabe, não me parece que tá se divertindo. ― provocou-o,
controlando-se para não correr do escritório, ir para o lugar mais longe
possível do desgraçado. ― Para quem se propôs ajudar uma golpista só por
diversão não devia tá de cara amarrada tentando... repito, tentando me
ofender, uma legítima estranha.
― Você é dura na queda então, é? Seria um partidão para o Miguel. ―
deu de ombros com descaso. ― Contudo, tremendo desse jeito, vai desmaiar
ao primeiro rosnado dele.
― Ou seja, você quer é passar a perna nos primos, não importa quem
seja a vítima.
― Um lampejo de genialidade. Meus parabéns! ― ele manteve o
cigarro entre os lábios enquanto falava e batia palmas para ela. Depois pegou
o cigarro entre os dedos e comentou com acidez: ― É da natureza dos
Manganelli a vontade de destruir um ao outro.
Maitê precisa saber que eles não são unidos porra nenhuma.
― Como desconfiou de que eu não era filha de ricaços de Minas? ―
indagou, sentindo as bochechas queimarem.
― Inocência. O seu rosto mostra que ainda não se vendeu ao
desmanche das almas. ― pareceu se divertir com a pergunta feita.
―Foi a minha roupa, é?
― Uma cópia barata de um Versace, e uma bolsa Gucci falsificada.
Além da fragrância adocicada e enjoativa do seu perfume comprado em
farmácias. Bom, não posso deixar de mencionar o seu comportamento
bizarro, se deslumbrando com tudo que via, desde os lustres de cristais até os
brincos de pérola da orelha de dois metros de uma das convidadas. Você dá
muito na cara que é pobre, Zalon. Chega a ser tragicômico.
― Diz o homem que nasceu rico. ― comentou, com menosprezo.
― Não se iluda com isso, sou apenas uma semente ruim. ― esticou
um canto da boca num ensaio de sorriso amargo.
― Você é ruim mesmo? ― Mandou um advogado tomar as terras de
uma mulher jovem, abandonada pelo marido, com três crianças para criar?
Aproveitou a oportunidade também? Ou a obrigou a assinar o contrato e
depois mandou que a enforcassem?
― Sou pior do que imagina. ― respondeu ele, assinando, de certa
forma, o seu atestado de óbito.
Entregaria a Maitê o bandido e tudo que ele falou sobre as pessoas
pobres.
Talvez ela usasse a espingarda da tia Joaquina.
Talvez esse sempre tenha sido o plano da irmã: matar quem induziu a
mãe à morte.
Capítulo 13

― Esteja aqui a amanhã à noite, Diavolo. ― determinou ele,


conduzindo-a pelo antebraço até a porta do amplo escritório, de móveis
modernos, embora a arquitetura da casa datasse mais de vinte anos. ― Quero
também os números do seu celular para mantermos contato.
Quanto mais eu me envolver com esse cabra, mais vou me incomodar
com a Maitê e mais chance terei de foder o plano de vingança.
― Por que você não me dá o seu celular e eu entro em contato? ― foi
petulante, era verdade, mas a expressão cu na mão cabia bem à circunstância.
Ele arqueou levemente uma sobrancelha arrogante.
― Porque quem dá as ordens aqui sou eu. ― respondeu, serenamente.
Por outro lado, o desgraçado estava facilitando o acesso ao seu alvo.
Ettore parecia aquele tipo de cara inacessível, não apenas por ser milionário e
solteiro, mas também porque certamente se não fosse um CEO do
agronegócio, um pecuarista cheio da nota, seria um modelo fotográfico com a
cara e o corpo estampados nos principais painéis de Milão ou o diabo que
fosse. Ele jamais a enxergaria e notou isso quando foi obrigado, por Roberto,
a vê-la. Nada se refletiu nos olhos claros, ardor, interesse, tesão,
absolutamente nada!
― Tudo bem então. ― concordou, contrariada.
― Terá de mudar o visual, parecer mais descolada, sexy e maluca. ―
disse ele, sério, enquanto digitava os números dela no próprio celular.
E por falar em gente emocionalmente encrencada...
Foi até a janela ao ouvir o pequeno rebuliço. Deu de cara com Rafaela
tentando subir no palco improvisado para cantar com a cantora. O vestido
rasgado até as coxas, o que lhe dava um aspecto selvagem, mas também de
roupa barata que não aguentou os movimentos tresloucados da dona.
Descabelada, a maquiagem borrada e visivelmente entorpecida de
champanhe.
A rainha do escândalo acabava de baixar no corpinho de sua irmã
menor de idade.
Precisava cair fora daquele escritório o mais rápido possível antes que
Rafa pegasse o microfone e abrisse mais a boca do que ela própria já o fizera
com Roberto.
Maitê, se estivesse lá, teria tido dois enfartes, um AVC, cinco colapsos
nervosos, três crises histéricas e uma tentativa de suicídio. Bem típico dela, a
idealização romântica de se matar como a mãe morreu.
Se Rafa, por acaso, não cantasse e resolvesse chamar os Manganelli de
putos assassinos, gargalhando daquele jeito insano que fazia, como poderia
ajudá-la sem pôr o seu disfarce em jogo?
Tinha que se mandar dali e tirá-la daquela situação.
― Preciso ir embora.
Ele levantou a cabeça e a fitou com evidente interesse.
―Parece agitada. Viu Ettore com outra vadia? ― indagou, sério,
embora o canto dos olhos sugerisse ironia.
― Não. Não é o Ettore, sou eu.
― Antes de sair, quero acertar os detalhes da mudança do seu visual.
Vou providenciar um estilista e mandar a minha secretária marcar hora no
melhor salão de beleza. Depois visitará um manicômio.
― O quê?
Ele enumerou as tarefas, todas elas, com indiferença.
― Diavolo, você é uma atriz. Mas do tipo canastrona, de telenovela.
Vou transformá-la numa Meryl Streep convincente o bastante para que Ettore
fique cego de paixão. E ele curte mulher meio doida...muito doida, pra falar a
verdade.
― Acho que vai ser bem fácil. ― zombou.
Ouviu Rafa gritar:
― “VAMOS LIBERTAR A AMÉRICA LATINA”.
Ainda bem que a incoerência fazia parte do comportamento dela.
― Alguns milionários se internam para se desintoxicarem das drogas
ilícitas que ingerem em excesso, assim ganham outras drogas, as lícitas, para
impedir a dependência das primeiras e, depois, retornam ao spa... Ops, clínica
para uma nova rodada de medicamentos. Ficar internado é o mesmo que
sustentar uma boca de fumo.
― Eles machucam as pessoas?
― Chapados do jeito que ficam? Mal sabem que têm cinco dedos em
cada mão. ― deu de ombros. ― A última namorada do Ettore quase o laçou
de vez. Mas teve um surto psicótico e atirou no padrasto. Sorte que não o
matou, mas tá presa.
― Sou da paz.
― Foda-se, será do caos e da guerra. Maluca até o dedão do pé, o
deixará mal, passando vergonha, aprenderá a fazer escândalos sem perder o
charme de gostosinha. Entendeu?
― Não.
“A VIDA É UM COCÔ, ENTÃO QUE SEJA RÁPIDO, MAS ÀS VEZES
É MOLE. QUEM AMA A VIDA, AMA A MERDA”.
Senhorita, por favor, me dê o microfone!
Zalon viu a irmã dançando o cancã.
― Desculpa, amanhã a gente se vê! ― disse, atravessando correndo o
escritório.
Antes, porém, de cruzar a soleira da porta, ele falou num tom seco e
irritadiço:
― Ainda não a dispensei. O que tá acontecendo?
― Vou peidar no corredor. ― falou, por cima do ombro, sem deixar de
correr feito uma gazela a fim de salvar outra gazela que se estabacava colina
abaixo.
Vou peidar no corredor.
Será que não tinha algo melhor para dizer?, considerou ao puxar
Rafaela pelo cotovelo, arrastando-a para longe da mansão. Mas não se
distanciaram muito.
Notou que a irmã estava bêbada de champanhe. De champanhe? Céus,
quantas taças a safada ingeriu?
Teve que juntar coragem e telefonar para o bandidão.
― Não tenho como voltar pra casa.
― Volta como veio, Diavolo.
― Uber.
― O quê?
― E tô sem crédito no celular para chamar um motorista. Pode, por
favor, me dizer a senha do seu Wi-fi?
― Sim, claro. ― Ela aguardou a fim de digitar a senha quando, de
repente, ouviu: ― Você é mais fodida do que eu pensava. Espera perto da
orquestra, que mandarei o meu motorista levá-la para casa.
Não, o motorista não podia saber onde ela morava.
― Caralho, é só a maldita senha do Wi-fi! Ou pede o Uber pra mim,
ora essa! ― irritou-se.
― Vou descobrir onde você mora de qualquer jeito, acabei de entrar
em contato com um detetive particular, mocinha.
― Mas eu disse que ia cooperar com você!
― Ajuda mútua, somos cúmplices, não tá me fazendo favor. ― falou,
na maior calma. Imaginou-o inclusive sentado na cadeira com as pernas
esticadas sobre a escrivaninha. Que desgraçado!
― Seja como for, preciso voltar para casa. ― agora estava atônita.
Rafaela começou a vomitar.
― Faça o que falei.
Não posso chegar em casa numa picape de luxo. O que direi a Maitê?
Olha, o seu alvo me ajudou, porque a Rafa tomou um porre, não fez o
combinado e mandou a vingança pro beleléu.
― Prefiro ir a pé.
― Então, vá. Boa noite.
E encerrou a ligação.
― Olha ali, o camarão que engoli inteiro. ― disse Rafa, entre surpresa
e deslumbrada, apontando para o próprio vômito.
― Como vamos chamar o Uber?
Rafa limpou a boca com o dorso da mão.
―UBER! UBER! Ô UBEEERR!
― Cala a boca, pelo amor de Deus!
Zalon arrastou a irmã por entre os convidados. Uma tiazinha dura de
Botox na face, olhou-as como se fossem baratas voadoras pousadas no
gramado. Um senhor pançudo, cabelo grisalho, aparência de setenta e poucos
anos as encarou com olhar de tarado.
― Vamos chamar os meus manos, tudo tem moto...
― Vai gritar também?
― Ah, é mesmo. ― desanimou. ― Mas posso ligar a cobrar, depois eu
pago a ligação pra eles.
― Senão te matam, né? Traficantes.
― Pedreiros. Não tenho amigo bandido; só falsificadores de
documento.
― E vendedores de cartão de crédito roubado.
― Ou seja, empresários de pequeno porte. ― disse, convicta, pouco
antes de lançar novo jato de vômito. ― É por isso que não engordo! ―
gargalhou.
Elas caminharam os quinze minutos do trajeto entre a mansão de
Roberto e a porteira. No caminho, viram as mansões de Ettore e Miguel,
estilos mais modernos e menos extravagantes que a do primo.
― Falou com o Ettore?
― Sim, e ele me esnobou. E, você, encontrou o Miguel?
― Na fila do pastel.
― Sem brincadeira, poxa!
― O cavalo ficou na baia, foi o que me disseram.
― A Maitê não vai gostar do resultado da missão, tantos gastos, tantas
fraudes para nada.
― Pelo contrário, ela disse que não era pra gente se aproximar dos
alvos. E foi o que aconteceu.
Aham, sei, até dancei com um alvo. E ainda vou me encontrar com ele
e serei ajudada pelo inimigo como sua cúmplice.
Passaram pela guarita de alvenaria, e os seguranças abriram a porteira
de ferro. Se acharam estranho as duas não estarem no interior de um veículo,
não deu para perceber, pois nada comentaram.
Chegaram ao acostamento com a ideia de pedir carona.
― Droga, pena que o helicóptero dos Diavolo tá sem gasolina. ―
comentou Rafa, fazendo graça sem sorrir.
A estrada escura, o asfalto gasto, a iluminação precária dos postes
públicos, o bosque ao longo do acostamento. Cenário perfeito para um filme
de terror que envolvesse estupro e machadada na garganta.
Ligou a cobrar para Roberto.
Ele atendeu a ligação no terceiro toque.
― Fodida e com medo, Diavolo? ― era certo que ele se divertia com a
sua situação. Era um sádico, o filho da mãe!
― Manda o seu maldito motorista nos levar pra casa.
― E as palavrinhas mágicas?
Manda logo, filho da puta!
― Por favor.
― Pra quem tá ligando? ― Rafa perguntou, curiosa.
― Certo, garota. Até amanhã.
Desligou.
― Pedi ajuda para o chefe da segurança da fazenda. A mulher dele
ajustou uns vestidos comigo. ― mentiu.
― Nossa, só pobre que ajuda pobre, puta merda.
― É por isso que vamos acabar com esses milionários cretinos. ―
afirmou, entredentes.
Doía muito mentir para suas irmãs.
Ainda assim, mentia.
Capítulo 14

Aquino ainda estava vivo. Porém, inconsciente.


Roberto se barbeou, pensando no pai, mergulhado na escuridão que o
levaria fatalmente à morte. Era uma questão de dias, semanas, talvez meses.
O pai era forte, um touro, por certo. Todavia, um touro velho e canceroso.
Vestiu-se rapidamente, a ideia era passar o dia no escritório do centro,
já que não suportava esbarrar na equipe de profissionais contratada para a
limpeza da mansão e do jardim. Ouviu por alto que encontraram roupas
íntimas no lago espelhado. Decidiu que seria a última vez que cedia o seu
espaço na propriedade para festas alheias. As dele, pelo menos, aconteciam
apenas no saguão inferior, preservando o seu majestoso jardim. Além disso, o
nível dos convidados era outro. Gente que só se importava em beber e fechar
negócios. Homens e mulheres conversando sobre o mercado financeiro, o
preço da arrouba do boi, quem faliu, quem fraudou, quem lucrou, quem
chupou o pau de um político ou foi chupado por ele. Putarias políticas e
econômicas regadas a uísque e, mais adiante, a um belo jogo de pôquer a
dinheiro.
Passou pela antessala, onde a secretária de sessenta e poucos anos o
guardava no seu terninho bege, o cabelo curto e branco. O rosto redondo e o
cenho franzido, que mostrava o eterno sulco profundo entre as sobrancelhas.
Era como se ela estivesse sempre zangada.
A maior parte do tempo ela realmente estava zangada.
Cumprimentou-a com um resmungo, odiava falar antes das nove da
manhã. Assim como odiava ouvir música ou encontrar pela frente gente bem-
humorada. A sua secretária era um poço de azedume. E que Deus a
conservasse assim até o último suspiro.
Ela o seguiu e fechou a porta atrás de si.
― Um detetive com cara de pepino murcho disse que tem hora
marcada com o senhor. Olhei na agenda, o cara tá mentindo. ― voz grossa,
quase masculina.
― Mande-o entrar.
― Já disse, ele tá mentindo.
Roberto sentou na poltrona de espaldar alto e deu uma rápida olhada
no laptop à sua frente.
― Marquei com ele ontem, sra. Gertrude.
― Então agora não precisa mais de secretária, é só falar diretamente
com o senhor. E o que eu tô fazendo aqui nesse escritório?
Sem tirar os olhos do computador, ele rebateu, impassível.
― Se um dos meus primos entrar na minha sala atirando para me
matar, a usarei como escudo.
― Humor ácido. Formidável! ― sorriu como uma garotinha.
Faltava pouco para Roberto demiti-la. Só não o havia feito, porque
acreditava que lhe era leal, pois trazia fofocas quentinhas dos demais
acionistas. De todos, por sinal. Ela se dava bem com as quatro secretárias
que, diferente das suas, eram profissionais e gentis, educadas e altamente
qualificadas.
Mas não eram espiãs, como a sra. Gertrude.
Preferia então a velhota azeda e rabugenta.
O detetive era um camarada que fazia uns servicinhos pra Roberto de
vez em quando. Algo como seguir e fotografar a madrasta com seus amantes
e juntar material para futuramente chantageá-la. O problema era que o pai
pouco se importava com os chifres, era obcecado pela mulher, comia na mão
dela, fazia-lhe as vontades. Pois até mesmo não ia alterar o testamento para
lhe dar os vinte por cento das ações do grupo? Torná-la um membro da
diretoria. Uma perua mimada cuja maior experiência que tinha era o
abaixamento de calcinha.
Bem, o detetive gorducho que fazia questão de usar roupa preta
debaixo de um sol de 35 graus parou diante dele à espera, possivelmente, de
uma autorização para se sentar. Um detalhe sobre esse profissional que o
irritava sobremaneira: a falta de personalidade ou, como isso era impossível
(todo mundo nascia com uma), a fraqueza dela. Ele tinha aquele aspecto
solícito, gentil e serviçal típico de gente que não prestava. Simpático demais
para quem fuxicava sobre a vida alheia por dinheiro, sem escrúpulo algum.
Indicou-lhe a cadeira à frente.
― Obrigado. Tá um calor de matar. Disseram que vem chuva por aí,
mas não muda muito a temperatura. A gente precisava mesmo era de uma
frente fria do Sul, como a do ano passado, que baixou a temperatura para 10
graus. ― disse, limpando a testa suada com um lenço de pano xadrez.
― Seja breve ao me relatar o que descobriu da tal Zalon.
O detetive se riu, parecendo desconcertado.
― O seu motorista me passou o endereço de onde elas moram, então
foi mais fácil do que eu pensava.
― Elas? ― estreitou os olhos, sondando-o, desconfiado.
― O senhor não sabia? Tinham duas delas na festa, duas irmãs, a
Zalon e a Rafaela. Mas são em três.
― Interessante. ― levou o dedo aos lábios, avaliando-o, pensativo. ―
Duas golpistas atacando ao mesmo tempo.
― Acho que não são golpistas, sr. Manganelli.
― Ah, é mesmo? É a sua intuição de ex-policial corrupto que lhe diz?
O homem baixou a cabeça, constrangido e talvez muito envergonhado.
― As três moram com duas mulheres mais velhas no bairro operário
depois da estrada.
― E duas delas estiveram na propriedade da minha família ontem.
Como entraram?
― Talvez tenham roubado os convites.
― Interessante. E quem é a outra vadiazinha?
― O seu motorista não soube me dizer. Sondei a vizinhança ao redor,
e todos se fizeram de cegos, surdos e mudos. É a lei do silêncio.
― Subornou-os?
― Não.
― A lei do dinheiro sempre passa por cima da lei do silêncio.
― Voltarei lá com alguma soma. Nesse tipo de lugar eles se
deslumbram até com cinquenta paus. ― riu-se.
Roberto permaneceu sério, analisando o gorducho e o que lhe havia
dito, mas também calculando se daria tempo de ele se levantar e mover o
braço com força na direção da cara do detetive.
― Qual o sobrenome dela, afinal?
― A única pessoa que abriu a boca foi a vizinha do lado. Ela me disse
que são as Toledo, menos as senhoras. Uma é costureira, e a outra é irmã
dela, parece que um dia foi babá das garotas.
― Continua o relato.
― Não consegui muita coisa, afinal, elas são bem jovens, não possuem
uma viiiida para se analisar.
― Incompetente. ― foi seco.
― Me desculpa, mas não tenho muita informação, preciso de um mês
para investigá-las a fundo.
― Um mês é muito tempo.
― Sr. Manganelli, o que sei por enquanto então é que são três irmãs
órfãs, criadas por estranhas numa vila pobre. A Zalon é costureira, ajuda uma
das senhoras.
― Quem são as outras irmãs? Quero nomes.
― Rafaela e Maitê.
― E isso é tudo que sabe?
― Sim, senhor.
Quando o outro saiu, Roberto teve dois pensamentos quase que
simultâneos. O primeiro se referia ao fato de dispensar o detetive
incompetente. Tais informações podiam ser facilmente conseguidas por ele
próprio, caso pedisse ao motorista para levá-lo à casa de Zalon. O segundo
pensamento era um tanto nebuloso. Na verdade, era como um embrião de
pensamento ainda não formado. Pegou-se imaginando o motivo que uma
costureira do bairro operário teria de invadir a sua propriedade durante uma
festa de gala. Ela estava visivelmente deslocada, parecia que fora obrigada a
fazê-lo, a entrar de penetra num ambiente muito diferente de sua realidade.
Ela era pobre demais para cogitar um golpe do baú. Talvez tivesse
chance com o dono de uma padaria ou açougue, um diretor de escola
cinquentão ou um bancário.
Modelos e executivas tentavam laçar os Manganelli. Garotas de
programa também, era verdade. Mas todas se preparavam para a empreitada,
quase colavam na testa a etiqueta sou a sua futura esposa. Em suma,
mulheres da classe média ambicionando ascensão social. E não candidatas ao
bolsa-família, como Zalon aparentava ser.
Recostou-se na cadeira, a mão debaixo do queixo, o olhar num ponto
vazio.
Anos atrás, o pai o levou para pescar em Albuquerque. A ideia partiu
da mãe, como sempre, atirada no sofá ou na cama, a cabeça explodindo de
dor, dizia ela.
Roberto tinha então 14 anos, espinha na cara, esquelético e corcunda
devido à altura acima da média, a autoestima também era curvada, pois não
se sentia à vontade a sós com o pai tirano. Mas ele aceitou passar dois dias
pescando com ele, a mãe pediu, repetia a si mesmo, o motivo então era: a
mãe pediu. Talvez assim ela se animasse e voltasse a viver, sorrir, gastar
dinheiro com roupas e joias como a tia Andrea.
Os tuiuiús voavam à margem do rio Paraguai, o dia estava quente, mas
não febril. Um rastro de nuvens se espalhava pelo céu, que debaixo dele,
recebia o primeiro iate de luxo dos Manganelli, comprado por Aquino. A
capacidade para oito pessoas, uma embarcação de 75 pés em
aproximadamente 300 m². Quatro suítes com ar-condicionado. Além da
espaçosa sala e cozinha no primeiro andar.
Aquino convidou potenciais clientes para a pescaria. Enganou a
esposa, não seria um programa entre pai e filho.
Roberto se fechou em uma das suítes. Trazia consigo A Arte da Guerra
e Clube da Luta. Um garoto feio precisava pelo menos ser culto, humilhar o
oponente com palavras. E como também era magro, os socos na cara
precisavam de substitutos como nocautes intelectuais. Tudo isso sempre
funcionou para ele.
Nunca teve amigos.
O pai, certa noite, entrou na suíte do iate sem bater. Pegou-o lendo o
capítulo onde tinha a frase que o definiu, no futuro, como homem: Você pode
ganhar quando ninguém pode entender, em nenhum momento, quais são as
suas intenções.
― Tá me envergonhando diante dos meus futuros clientes. Parece um
homossexual enfiado no quarto se masturbando com livros. ― afirmou, com
asco.
Roberto se sentou na cama imediatamente.
― Não entendo de peixe nem de pescaria.
― Finja então que entende, dê um espetáculo, ria dos idiotas, conte
piadas, beba cerveja e fale sobre vaginas. Mas, pelo amor de Deus, não deixa
tão aparente que é um maricas!
― Gosto de mulher, pai. ― argumentou.
― Da sua mãe?
― Mais do que você.
― Mãe não é mulher. Por acaso, já chupou uma boceta? ― Roberto
corou. E o velho fechou a cara, contrariado. ― O Francesco tem dois filhos
machos, e eu tenho uma boneca de porcelana espinhenta que gosta de ler
livros. Você cavalga mal, é péssimo em matemática, é um desastre como
atleta. Não presta. Vejo no seu olhar que não presta. Sei que um dia vai me
matar, maldito psicopata. Agora vem comigo para se juntar aos outros
rapazes. Inventa uma história que os faça admirá-lo enquanto eu fecho
negócio com os pais deles.
Roberto foi para o deck, bebeu todas e vomitou no rio. A pescaria
rolou normalmente. Os adultos riram, deram-lhe tapas nas costas. Mas ele
notou o olhar de fúria contida do pai, os olhos que prometiam coisas ruins
mais tarde. Pois era a segunda vez que o filho envergonhava o grande Aquino
Manganelli.
Todos dormiam quando Roberto mordeu o lenço. Um pedaço de pano
entre a língua e o céu da boca. Não se engasgou, o tecido não tocou na
garganta. Apertou os dentes com força no pano, mordendo-o como se tivesse
a carne arrancada dos ossos.
Mas era apenas o relho do pai rasgando a pele das suas costas. Dez
chicotadas. Um castigo ameno perto de tantos outros que suportou.
“Somente quando você perde tudo é que você é livre para agir”.
A vida era um clube da luta. E ele foi um adolescente fraco e
miserável. Ainda que rico, nascido em berço de ouro, como a Diavolo
mencionou. Jamais sentiu fome, sede, medo do futuro. Mas conviveu com a
sombra da morte sob a cabeça. Sabia que um dia seria espancado até a morte
quando o pai enfim perdesse o controle. Depois ele simularia um acidente.
Roberto era um garoto esquisito, tinha um olhar esquisito, parecia um
sociopata juvenil, era o que ouvia no colégio. Os primos o consideravam,
desde cedo, um potencial rival.
Pelo menos jamais o subestimaram.
Zalon e a sua miséria, os seus olhos desesperados e o medo. Ele
conhecia todos os tons do medo. Mas não a ajudaria por compaixão. Não
sentia compaixão por ninguém. Queria mesmo era o controle total do Grupo
Manganelli. O filho do espancador, o monstro com cicatrizes se tornaria o
sócio majoritário até adquirir as ações dos primos e do tio e chispá-los das
empresas.
Sim, isso era possível.
E Zalon e ele começariam os jogos.
Capítulo 15

O ônibus a deixou em frente a uma das praças do centro da cidade,


longe do salão country. Eram quase oito horas, e Roberto lhe avisara que
tinha agendado sua visita ao salão de beleza para mais tarde. Considerou que
as cabeleireiras fossem exploradas pelas patroas. Mas, pelo visto, ele mandou
fechar o estabelecimento apenas para atendê-la.
Havia posto créditos no celular, a recarga mínima, e assim pôde
chamar o Uber até a fazenda. Na mesma mensagem de texto que o
Manganelli lhe enviou, logo pela manhã, havia a sugestão que o seu
motorista a buscasse...

*Cabelo marcado para às 21h, salão exclusivo, fechado. Não se atrase, meu
motorista irá buscá-la. Até mais, Diavolo*

*Não posso ser vista na sua picape de luxo com motorista. O povo é
fofoqueiro, vai chegar aos ouvidos do Ettore*

*O meu primo não ouve o povo*

*Vou de Uber. É mais seguro*

*Faça como quiser. Se chegar atrasada, arranjo outra quenga pra treinar*

Vai me chamar de quenga quando eu encontrar provas de que


enforcou a minha mãe?
Mandou um emoji sofisticado, aquele mostrando o dedo médio.
Ele visualizou a resposta e a ignorou.
Hum, não é do seu nível?
Desceu do Uber diante da escadaria da mansão de Roberto. Subiu os
degraus, segurando firme a bolsa a tiracolo pendurada no ombro. Enquanto
avançava para o interior da luxuosa sala, lembrou-se do dia anterior, o relato
que teve de fazer a Maitê sobre a festa, excluindo as partes inoportunas que
eram a sua dança com o maldito e o acordo fechado entre ambos de
conquistar e enganar Ettore, além do porre e vômito de Rafa. No mais,
contou sobre a exibida pendurada no ombro de Ettore, a esnobada glacial que
ele lhe deu e a ausência de Miguel na festa. Ressaltou que Roberto se
manteve cercado por homens de negócios como ele, e o aniversariante não
deu as caras, irritado com o tamanho da festa. Ou seja, Roberto encheu a
mansão e os jardins da fazenda exclusivamente para irritar o tio. Bem, foi
essa a impressão que teve. E Maitê concordou com ela.
O mordomo abriu as portas duplas, cedendo-lhe passagem quase
curvando o corpo. Zalon sempre imaginou que esse tipo de funcionário só
existisse nos filmes, como no do Batman, o mordomo Alfred Pennyworth.
― Você cuida do Bruce Wayne do pantanal?
O mordomo idoso e altivo exibiu um sorriso profissional, aquele tipo
que parecia ser oferecido aos dementes.
Zalon ficou sem graça e resolveu seguir o senhor uniformizado no
terno escuro. O que não combinava em nada com o calor do Centro-Oeste.
Mas, por outro lado, no interior da mansão a temperatura era quase a de
outono. Uma beleza!
Roberto surgiu ao pé da escada, vestido num jeans escuro e a camisa
azul, da cor dos seus olhos, arremangada. Parecia saído do banho recente, o
cabelo loiro escuro despenteado, a barba feita. Ele era magnífico.
Mas também um cretino.
Antes de sair, ela disse à família que passaria a noite na casa de uma
amiga. Tia Paulina ergueu uma sobrancelha, dando a entender que
desconfiava de sua pessoa. Zalon fez-se de ofendida, vítima do destino,
testou todos os papéis possíveis até que elas caíram na seguinte conversa:
― A Gerusa Alberta tá fazendo curso de cabeleireira, no centro
comunitário, e precisa de cobaias para ter prática. Como meu cabelo tá virado
numa palha seca, me ofereci para uma hidratação e talvez cortar as pontas
duplas. Depois vamos comer churrasco e salada de maionese, os pais dela
completam 25 anos de casados, e me convidaram para passar a noite lá.
As tias acharam a ideia maravilhosa. Ela precisava se divertir depois de
tantas horas de trabalho. Rafa pediu para ir junto. Zalon disse que a amiga era
dela, só dela.
Maitê foi quem mais lhe exigiu criatividade na hora de mentir.
― Nunca ouvi falar dessa Gerusa.
― Amiga recente, a gente se conheceu no mercado.
― E só agora ela aparece e ainda pra você passar a noite fora?
― É bem isso. ― começou a se irritar.
― Ok, mas me passa o endereço dela.
― Você não é a minha mãe.
O silêncio recaiu sobre todas. A frase que poderia ser dita por qualquer
um sem um grande sentido, além do de desafio, naquela casa tinha um
sentido maior, profundo e dramático.
― É por uma questão de segurança. ― argumentou a irmã, mantendo a
firmeza típica de sua personalidade.
― Se eu precisar de ajuda, ligo para o 190.
― Uma cuida da outra, não foi sempre assim?
― Maitê, esse papel de adulta controladora a envelhece dez anos. ―
foi mordaz.
― E enche o saco pra caramba! ― completou Rafa, que lixava as
unhas roídas.
Era certo que Maitê ponderava a respeito, se insistia em manter o
controle sobre as irmãs mais novas ou lhes dava mais liberdade.
― Meninas, não fiquem zangadas com a Maitê. É normal que a irmã
mais velha seja mais protetora. Sofri muito nas mãos da Paulina, tinha vezes
que pedia até para a minha mãe me doar para outra família.
Era mentira, todas o sabiam. Mas, de certa forma, o que tia Joaquina
falou diminuiu a tensão no ambiente. Maitê baixou a guarda e disse apenas
para que ela se cuidasse e, caso se visse em perigo, fosse à janela e gritasse
FOGO!
Agora, prestes a ficar a sós com Roberto Manganelli se, por acaso, ele
fosse de fato o responsável pela morte da sua mãe, adiantaria ela gritar fogo?
― Guarde esse olhar cheio de desejo para o Ettore. ― disse ele,
descendo os degraus da escada encarando-a com olhar sarcástico.
― Costuma confundir repulsa com desejo?
― Tenho certeza de que a convivência comigo a tornará uma
especialista em réplicas sagazes. Mas, por enquanto, precisa ser mais contida
nos gestos, palavras e olhares.
Ele era um cínico debochado.
― Onde tá a sua namorada? O Ettore tá sempre cercado de mulheres, e
o cavalo na baia.
― Que cavalo? ― ele arqueou a sobrancelha, intrigado.
― O Miguel. ― ergueu o queixo em desafio.
Ah, que se danasse, vou dar nome aos bois!
Roberto tomou-lhe o rosto entre as mãos. Por um momento pensou que
fosse repetir o gesto de baixar a cabeça para disparar uma sentença cruel. Mas
nada disso aconteceu.
― Sim, ele é um animal indomável. O nosso plano não daria certo se
você o escolhesse como futuro marido.
Mas eu não escolhi ninguém, fui obrigada a participar de uma
vingança que só tem sentido para a minha irmã.
― E você, pelo visto, é imune ao charme das golpistas. ― debochou,
vendo-o sorrir abertamente.
―De jeito nenhum, acho até que valem algumas trepadas. ― ele a
pegou levemente pelo antebraço, conduzindo-a para fora da mansão. ―
Infelizmente, entre nós tudo ficará no plano profissional.
― Oh, obrigada por me avisar, assim não precisarei chutar o seu saco
quando tentar me estuprar.
Ele pareceu fingir que não ouviu o seu comentário, ignorou-a enquanto
caminhava ao seu lado. Notou o mordomo atrás deles, segurando uma mala
de rodinhas e uma pasta executiva. Afinal, para aonde eles iam?
O motorista abriu a porta detrás da picape luxuosa, a cabine dupla
cheirava à lavanda e ao couro do estofamento novo. Roberto sentou no banco
do passageiro, ao lado do motorista.
Dez minutos depois, o veículo parou diante de uma pista de voo. Um
jatinho particular, com todas as luzes acesas e uma escada acoplada à porta
aberta, parecia os aguardar.
Zalon pensou em gritar FOGO!
Capítulo 16

― Por que avião?


Não se mexeu do lugar, ainda que o motorista a aguardasse do lado de
fora depois de abrir a porta para ela sair.
Roberto seguiu em direção à escada que levava ao jatinho. Então a
pergunta foi feita para homem de chapéu de caubói.
― Não sei, sou apenas o motorista.
Saiu da picape e deu uma corridinha até alcançar o Manganelli que
estava prestes a subir o primeiro degrau. Puxou-o pelo antebraço.
― O que significa isso?
― Que vamos viajar.
― Pra onde? Por quê?
― O salão de beleza é na capital. Não quero nenhuma fofoqueira de
Santa Bárbara a par do nosso acordo.
― Não vou falar nada.
― Ótimo. ― deu-lhe as costas e subiu a escada sem olhar para trás.
Ouviu o ronco suave da picape se distanciar.
Merda!
―NÃO TEM SENTIDO PEGAR UM AVIÃO PRA CORTAR O
CABELO, CACETE! ― gritou, paralisada de medo.
Roberto estacou no alto da escada, onde uma moça uniformizada os
aguardava, e se voltou bem devagar para Zalon. O semblante sério, os
maxilares retesados, os olhos quase escuros. Não o conhecia o suficiente, mas
deu para perceber a aproximação de uma tempestade.
Mas ele nada falou, apenas ficou ali, parado, encarando-a como um
nobre superior e arrogante à espera que a plebeia se curvasse à sua silenciosa
ordem.
―NUNCA ANDEI DE AVIÃO. ― tentou obter um pouquinho de
compaixão.
― Por que tá gritando?
Sim, por que tô gritando se o piloto nem ligou o motor do busão com
asas? Motor, asas, flutuar no céu... Como um troço pesado ficava no meio do
nada, no ar, sem estrada firme debaixo dele? Ilógico, totalmente ilógico!
Mas eles caíam! Vários aviões já caíram!
Além disso, se Roberto fosse o psicopata que mandou matar a sua mãe,
encobrindo o assassinato através de um planejado suicídio, ele também
poderia tramar o seu desaparecimento usando a tal viagem para a capital
como desculpa.
Começou a tremer e a suar frio.
Se fosse Rafa, com certeza, teria um canivete ou uma chave de fenda
na bolsa. E, assim que fosse atacada por Roberto, a enfiaria no seu pescoço,
acertaria uma artéria, o sangue jorraria...
― Quero que volte linda pra caralho, Diavolo. Passaremos a noite em
Campo Grande, e amanhã você ganhará o que toda mulher sensata gosta
muito, um banho de loja. Vou cobri-la de ouro. ― a voz macia, as pálpebras
semicerradas, a ternura no olhar.
Tudo encenação.
― Ted Bundy. ― balbuciou, vendo-o se aproximar. ― O nome do
meio era Robert.
Ele chegou perto o suficiente para ela notar os pontos de barba, quase
ruiva, na pele dos maxilares e acima da boca.
―Sinto-me lisonjeado por me comparar a uma celebridade, embora
tenha sido um psicopata. Mas, acredite-me, não farei nada contra você. O
meu alvo, por enquanto, é o Ettore e, mais adiante, o Miguel.
Ele disse... alvo?
― Não sei se posso confiar em você.
― Não deve confiar em ninguém, apenas contabilize perdas e ganhos
se seguir viagem comigo. ― foi firme e claro, olhando-a nos olhos.
― Por favor, não tente me violentar. ― juntou as mãos num gesto de
súplica.
― Prometo me controlar. ― apertou a boca com força como se
controlasse uma risada.
Foi assim que ela teve a certeza de que Roberto a entregaria de bandeja
ao seu primo... ou seria o contrário?
Quando o diabo do avião embicou pra cima como se fosse furar o céu,
Zalon parou de respirar. Tinha a impressão de que ao chegar à altura limite, o
motor pararia de funcionar e o bicho despencaria com tudo do alto.
A mão de Roberto pousou sobre a sua. Abriu os olhos e viu-o na
poltrona diante dela. Ele não sorria nem parecia solidário, o gesto foi apenas
para lhe dizer:
― Pensei que tinha desmaiado.
― Jamais perderia a consciência na sua frente, seria como dar as
costas a um leão.
― Não sei quem a criou... Mas fez um péssimo trabalho. ― sorriu,
com ar cruel.
Zalon precisou desviar seus os olhos dos dele, as lágrimas brotaram à
beira das pálpebras e, se elas tivessem uma cor, seriam vermelhas. Respirou
fundo a fim de controlar a fúria. Jamais se permitiria esquecer que ele,
Roberto, também era um alvo, um maldito alvo de vingança. Ficaria muito
feliz ao ver o estrago que Maitê faria com o cretino.
― O medo nos torna vigilante. ― falou, baixinho, quase para si
mesma.
― Mas o excesso de medo nos torna neuróticos. ― ele rebateu,
bocejando.
― Se tá com sono, por que agendou hora num salão lá na puta que
pariu?
Ele balançou a cabeça, expressando desagrado.
― Precisa melhorar o vocabulário. Parece até que mora no bairro
operário.
O estômago gelou.
― Ah, o motorista fofoqueiro.
― Calma, isso não muda nada. Afinal, eu já sabia que você era dura de
pobre. ― comentou, com descaso. Depois se reclinou para lhe entregar uma
caixa. ― Um presentinho pra você. Usa o iPhone para se comunicar comigo
e atenda todas as minhas ligações. Entendeu?
― Não posso chegar em casa com um troço caro desses. ― olhou para
o telefone, sabendo que às vezes aparecia um desses pelo bairro. Diziam que
era resultado de roubo ou furto. Mas, a maior parte das vezes, a garotada
pagava parcelado e se fodia trabalhando para cumprir as obrigações mensais.
― Bom, o que fará então com as roupas e acessórios que ganhar? ―
ele parecia testá-la.
― Não sei.
― Deixa de bancar a sonsa comigo. É óbvio que as suas irmãs sabem
do seu plano de fisgar um Manganelli.
Zalon levou a mão ao peito.
― Sou filha única.
― Aham. Chega de mentiras, Diavolo. Falei que tinha posto um
detetive atrás de informações sobre você. Portanto... poupe o seu português.
Ok, vamos pensar aqui bem rapidinho: ele sabe onde eu moro e que
tenho duas irmãs. Provavelmente já sabe o nome delas. Mas deduziu que
queremos laçar ricaços e não os fazer sofrer até a morte ou bem perto disso.
― A Maitê não concorda com prostituição. Ela vai achar que o Ettore
tá pagando pra fazer sexo comigo.
― Hum, ela quer um casamentinho, não é? Garota esperta. Pelo visto é
a cafetina. Deixa as compras na minha casa, e usa o iPhone escondido. Quer
que eu pense mais alguma coisa por você?
― Quero, sim. Pensa em como mandar um ricaço besta tomar no cu
sem parecer uma ofensa pessoal.
― Você é sexy. ― disse, sério, examinando-lhe a feição perplexa. ―
Sexy em toda a plenitude de sua ingenuidade nata.
― Dispenso seus elogios, somos apenas sócios no golpe do baú.
― Ingenuidade é defeito, minha cara. ― afirmou ele, descansando a
cabeça no encosto da poltrona e fechando os olhos.
O diabo do hômi precisou de poucos minutos para pegar no sono.
Respirou profundamente ao dar uma espiada pela janelinha. Só
escuridão. Era a primeira vez que voava, a sensação de medo foi real, mas
não podia negar que a decolagem foi emocionante. Por mais que considerasse
a chance da queda e de uma explosão, sentia que estava preparada para
morrer.
E estranhamente foi quase como um silencioso pedido.
Capítulo 17

― Jean Michel, faça milagre com essa moça. ― disse Roberto, os


braços cruzados diante do peito, o olhar cravado no rosto dela através do
espelho.
― Mas ela é linda, deslumbrante, não me dará trabalho algum!
O cabeleireiro era alto e atlético, usava barba bem aparada, o corpo
definido sem ser musculoso e muito bonito. Tinha olhos castanhos da mesma
cor do cabelo, raspado nas laterais com um topete alto caído para o lado. Um
latino moreno e gentil, até mesmo sensual. Diferente de outro tipo de
sensualidade, a de um branquelo com cara de CEO europeu da Gestapo,
parado atrás dela com um meio sorriso irônico.
― Dê um ar selvagem à mocinha para contrastar com a aparência
juvenil.
― Hum, você mudou os seus gostos, Roberto. Quer uma garotinha
sem parecer um pervertido?
Roberto sorriu o seu sorriso endemoniado.
― O brinquedo não é para mim, amigo.
― Brinquedo o teu cu. ― resmungou.
― Nossa. ― o cabeleireiro corou, levou a mão à boca e o rosto
congelou na expressão de assombro.
― Desbocada. ― foi o que Roberto lhe disse, piscando o olho pra ela
com charme.
Ok, o cabra é bipolar.
A equipe de auxiliares do cabeleireiro enrolou várias mechas de cabelo
com folhas de alumínio, e ela ficou parecida com um extraterrestre. Enquanto
isso, a poltrona foi deitada para trás e uma funcionária começou a lhe passar
no rosto creme após creme; um deles endureceu a sua pele e ela mal
conseguia mexer a boca. Duas mulheres faziam-lhe as unhas dos pés; outras
se concentraram nas mãos, uma de cada lado. E, como estava quase deitada,
só conseguiu ver o teto decorado com a pintura de homens se beijando. Muito
bonito, por sinal. Modernista? Impressionista? Bairrista? Veganista? Era uma
droga não entender de arte.
Roberto avisou que sairia para fumar e logo voltaria. Depois ambos
jantariam numa cantina italiana, de um chef bem conhecido. Ela fez que sim
com a cabeça, pois os músculos da face estavam duros. Sentiu na pele como
era ter uma sequela depois de um AVC. E não gostou.
O lugar era fascinante, embora também fosse intimidador. Uma moça
vestida como uma comissária de bordo, bem parecida com aquela do avião de
Roberto, apareceu ao seu lado e lhe ofereceu champanhe. Fez que não com a
cabeça, sentindo as bochechas pegarem fogo. Por que sempre champanhe? A
bem da verdade, tinha vontade mesmo era de tomar uma Coca gelada.
Quando a transformação terminou, ela reconheceu o efeito do dinheiro
na aparência de uma mulher. Ainda parecia ser ela mesma, não podia dizer
que mal se reconheceu. Mas o que reconheceu, poxa vida, foi uma beleza que
não sabia que possuía.
Se alguém diz que você é bonita, tudo bem, aceita o elogio com
educação e larga de mão, não dá importância. Mas quando você, VOCÊ, se
vê bonita, é uma sensação de poder e de orgulho que não cabe no peito. É
como um presente, uma graça divina recebida sem ao menos ter pedido.
O cabelo continuava longo até o meio das costas. A coloração tendia
agora para o loiro mais claro, os fios macios, as mechas brilhavam como as
das atrizes da televisão.
As sobrancelhas contornadas e levemente arqueadas. A maquiagem
suave ressaltava as maçãs do rosto e os seus olhos claros. O gloss de morango
dava-lhe de fato um aspecto juvenil.
Sorriu para o seu reflexo no espelho, vendo atrás de si, Jean Michel
parecendo satisfeito com a sua obra-prima.
― É uma princesinha!
Ela fitou as unhas curtas pintadas no esmalte clarinho e as dos pés
também. Imaginou o quanto às funcionárias deviam ter sofrido para lixar as
solas, duras de tanto ela caminhar descalça pela casa.
― Ele nunca cuidou de uma mulher, sabe? ― continuou o
cabeleireiro, baixinho, num tom cúmplice. ― Sei que são namorados. E tô
achando bastante estranho ele ter uma namorada, o sacana só quer saber de
farrear com mulher que lhe é útil nos negócios. Tá sempre por aqui pegando
dica sobre quem é esposa de político, investidor, só gente graúda. E agora
aparece com uma colegial. Acho lindo! Acho realmente lindo o amor!
Ô Cristo, o hômi tá mais fora da parada que um cachorro mijando na
perna de cego achando que é poste.
Antes que pudesse pensar em algo inteligente para lhe dizer, sentiu
duas mãos pousarem no seus ombros. Ergueu os olhos para o espelho e deu
de cara com o olhar enigmático de Roberto. Assim, não pôde captar se ele
aprovou ou não a sua transfusão de sangue... na verdade, não era bem isso.
Mas antes ela aparentava menos vida, esmaecida, a pele sem cor, o cabelo
seco e queimado, os olhos fundos.
Endereçou-lhe um sorriso, também através do reflexo do espelho,
mostrando o quanto se sentia segura, que a neura em relação à conquista de
Ettore ficou para trás, pois ela se sentia bela, muito bela.
― Pobre Ettore. ― Roberto sussurrou, parecendo incomodado. ―
Agora vamos jantar.
Ele girou nos calcanhares a fim de pagar o serviço no caixa. Não se
despediu do amigo Jean Michel. Simplesmente se virou e caiu fora.
― Gostou? ― parou ao seu lado, enquanto o via entregar o cartão do
banco à recepcionista.
― Sim, tá aprovada.
― É esse tipo de mulher de que ele gosta?
― Ele gosta de mulher e ponto final.
― Um promíscuo. ― reclamou, baixinho, adorando olhar para as
unhas dos seus pés nas rasteirinhas de couro.
― Exatamente. Portanto, caso resolvam foder exija preservativo. Ele
usa mais o pau que o cérebro. ― a voz saiu num tom ríspido e seco.
― Não vou fazer sexo com ele.
― E vai seduzi-lo como? Com o seu olhar de peixe morto?
― Não tenho olhar de peixe morto. ― defendeu-se, ofendida.
― Precisa olhar para ele como olhou para mim, na festa lá em casa,
com fome. ― falou, sério, analisando-a. ― Mas não pense muito no caso,
tenho planos para você.
― Mais planos?
― A vida é dinâmica, sempre terei mais planos para você. ―
reafirmou, de cara amarrada, guardando o cartão no bolso traseiro do jeans
escuro.
Deu-lhe as costas e se encaminhou para a saída do salão. Zalon se
virou e abanou para Jean Michel. Ele sorriu e juntou as mãos formando um
coraçãozinho, indicando com a cabeça o fazendeiro.
― Vamos, Diavolo. Fiz uma reserva na cantina de um inimigo.
― O quê? ― perguntou, incrédula, ao se voltar para ele.
― Diversão.
― Ah, entendi, a sua diversão sádica.
― Que meigo, tá começando a me conhecer.
Ele abriu a porta do automóvel de luxo que os aguardava no aeroporto
da capital. Tentou assimilar rapidamente o que acontecia e entendeu que os
Manganelli tinham um escritório na capital, e o motorista da empresa havia
levado para Roberto um dos automóveis do executivo. Pelo visto o ricaço não
andava de Uber nem o chique do Uber Black. Mas também não tinha uma
casa em Campo Grande, já que ele disse que passariam a noite num hotel. A
reserva feita por sua secretária era para dois quartos, completou, de maneira
significativa, como se ela quisesse aproveitar a situação para seduzi-lo.
É um convencido arrogante. Vou contar tudo pra Maitê, e esse aí vai
virar mingau.
Sentaram-se à mesa num canto onde se tinha uma boa visão do lugar.
Quando lhe disse cantina, imaginou um pequeno restaurante popular e
barulhento, com músicas italianas no volume máximo e gente falando alto.
Doce engano!
Sofisticação nos móveis de madeira escura e pesada, paredes de tijolo
sem reboco numa construção que se assemelhava ao de um castelo medieval.
Dava para ler na capa do cardápio, que a inauguração do estabelecimento
datava cinquenta anos. E, por mais que o salão fosse imenso, todas as mesas
estavam ocupadas. Quadros com paisagens da Itália, mas não a de hoje, a dos
anos de 1960, mostrando família com filhos, andando de mãos dadas nas
calçadas de um centro comercial. Havia um pôster em preto e branco do que
parecia ser um filme antigo.
― Diu cumê ti amo. ― leu em voz alta o título, apertando os olhos
para a imagem na parede do outro lado do salão.
Era um casal abraçado, a mulher usava um vestido azul com luvas até
o antebraço, e ele, um smoking preto. Havia um ar de proteção em como ele a
tocava, um braço em torno da cintura feminina, a outra mão nos cabelos dela.
Era um filme de amor que parecia sugerir entrega de sentimentos e ternura.
― Se pronuncia como se lê. ― corrigiu-a Roberto, fechando com um
suspiro de enfado o cardápio ao lado do prato. ― É diô... Põe a língua no céu
da boca, diferente da pronúncia de DIU, o dispositivo intrauterino, capisci?
― E qual é a tradução?
Ele a fitou como se visse um alienígena rastafári.
― Não vai me dizer que é: Deus, como te amo!
― Isso mesmo. ― ele fez sinal ao garçom que prontamente o atendeu.
― A carta de vinhos, por favor.
― Ah, e a de refrigerantes também.
O garçom pareceu confuso sobre a existência de um carta de refri, mas
Roberto prontamente interveio.
― Uma Coca-Cola com bastante gelo. ― ele lançou-lhe um olhar. ―
Certo? ― ela fez que sim e baixou a cabeça, envergonhada, ouvindo-o falar:
― Como tá o Giuseppe?
― Ele ficará feliz em saber que tá em nostra casa, signore Roberto. ―
respondeu o outro, de meia-idade: ― Vou avisá-lo de sua chegada.
― Não precisa, só diga que o mandei à merda. ― sorriu.
― Meu Deus. ― Zalon deixou escapar, num murmúrio.
Quando o garçom se afastou, um tanto constrangido, Roberto
esclareceu calmamente a situação:
― Giuseppe é um falso, sonegador de impostos, dono desse lugar
construído com dinheiro sujo. Mas a comida é legitimamente italiana.
― E você é italiano? ― perguntou, sabendo a resposta e vendo-o
analisar em torno, talvez a espera de encontrar um cabra de negócios como
ele.
― Não, minha adorável futura cunhada, sou tão brasileiro quanto você.
― exibiu um sorriso. ―Parlo um pouco italiano, mas é mais para irritar os
meus primos.
― Por que eles ficam irritados?
― Bem, o Miguel se irrita porque nasceu. Então se eu falar russo ou
chinês, nada muda. O Ettore, por sua vez, acredita que o meu restrito
vocabulário italiano seja uma forma de bajular o tio Francesco, que carrega
no peito o fato do seu pai ter nascido na terra do Mussolini.
― Então apenas os seus avós são europeus?
― Sim. Que decepção, não é mesmo? ― ironizou. ― Agora me fala
sobre você. Qual é o seu signo?
― Quer mesmo saber? ― arregalou os olhos, surpresa e animada.
― Claro que não. ― franziu o nariz com charme pra ela.
― Você é estranho. ― resmungou.
O garçom reapareceu sem interromper nada, pois Roberto parecia
disperso, fitando a textura macia do linho da toalha. Entregou a carta de
vinhos e o refrigerante, depois se afastou sem deixar de se manter de
prontidão por ali.
O fazendeiro escolheu o vinho, uma safra antiga, pelo que ela ouviu, e
o garçom foi buscar.
― Uma pobre que se passa por uma mulher rica. É do que se trata a
história. ― disse ele, inesperadamente, apontando para o cartaz do filme. ―
A família a ajuda com a empreitada, já que a tola se apaixonou pelo noivo
rico da sua melhor amiga.
― O filme é bom?
― A música é melhor.
― Oh, tem música? ― perguntou, espantada.
― Sim, podia aprendê-la para cantar no ouvido do Ettore...
― Pois é, seria romântico.
― Ele ficaria de pau duro por dois dias. ― disse depois de sorver o
vinho.
― Vou aprender a letra e cantar para ele como a Marilyn Monroe fez
para o presidente gringo.
― Aham, muito oportuno.
― Acha mesmo? Não quero parecer uma garota rica e vulgar.
Só quero ser uma garota pobre que finge ser rica para me vingar. Oh,
até rimou!
― Na verdade, pensei em outra estratégia. Mas agora vamos provar
esse maravilhoso vitello tonnato. ― E, vendo-a fazer careta para os pratos
que chegavam à mesa, acrescentou: ― É uma carne de vitela ao molho de
atum, e depois você irá provar a segunda entrada, polvo salteado com batatas
ao murro e salsicha.
― Oh, só entendi o atum, as batatas e a salsicha, mas já me sinto em
casa. ― gracejou.
Jantaram em silêncio. Roberto parecia absorto nos próprios
pensamentos que pareciam não ter nada a ver com ela. E Zalon, bem... estava
no seu habitat, comendo até se entupir, sabendo que pouco engordaria.
Depois da segunda entrada, chegou o prato principal, um tortelli de pecorino
toscano com tartufo di San Miniato. Uma massa fresca, preparada no
restaurante e recheada com trufa.
Zalon chegou a gemer baixinho na segunda e terceira garfadas.
― É assim que geme quando goza?
―Jamais saberá, você é narcisista demais para fazer uma mulher
gozar.
― Por ser narcisista me proponho sempre a dar o melhor de mim,
Diavolo, e não o pior. É uma questão de tesão por mim mesmo. ― piscou o
olho pra ela, com charme.
Viu-o voltar a comer, cortar a carne sem pressa, pinçá-la na ponta do
garfo, entreabrir os lábios e a degustar mal mexendo a boca, ainda que
marcasse os ossos dos maxilares devido à estrutura óssea máscula do rosto
bonito. Observou-o fitar a própria comida, deslizando a carne no molho,
concentrado no prazer de simplesmente se alimentar.
Seria assim que ele fazia sexo? Devagar, languidamente concentrado,
degustando cada parte do corpo feminino, oferecendo-se todo sem reservas
nem pudores e se entregando para exigir tudo da mulher?
Engasgou-se com o refrigerante ao imaginá-lo baixando o jeans e se
revelando todo para ela.
Levou a mão à boca, tentando se recompor, o gás do refrigerante saiu
pelo nariz. Tossiu feito uma vaca velha, sentindo o olhar atento de Roberto
sobre si, que não se moveu um centímetro da própria cadeira. Bem, se ela
morresse engasgada, tentando se vingar dos Manganelli à mesa de um deles,
poderia ser considerado como uma tentativa de homicídio?
Respirou pela boca, o instinto de sobrevivência era um negócio que
não te deixava na mão. Acontecia, porém, que ela tinha o instinto de
vingadora cagada de medo, ou seja, assim como não mataria ninguém (azar
de Maitê se pensava o contrário), também não tiraria a sua pobre e fodida
vida. Pois, por mais que tudo fosse cinzento, havia beleza em cada tom de
cinza, bastava olhar com atenção.
Roberto teve um lampejo de humanidade, pois se levantou e
calmamente se postou atrás dela.
Mandou-a ficar de pé enquanto murmurou algo como maldita epiglote.
Devia ser uma das inimigas dele, afff!! Em seguida, abraçou-a por trás
pressionando-lhe o abdômen com as duas mãos. E tal manobra quase a fez
vomitar o jantar. Contudo, recuperou-se rapidamente do engasgo, os olhos
rasos d’água, a respiração estabilizada. Por Deus, antes parecia prestes a
dormir pra sempre num caixão de madeira bem vagabundo.
Viu-o voltar à sua cadeira e terminar a refeição, nada de anormal havia
acontecido. Frio feito um iceberg. Por outro lado, ele a ajudou.
― Obrigada.
― Não precisa agradecer.
― É claro que preciso, quase vi o filme da minha vida passar diante
dos meus olhos.
― Sempre cuidei muito bem dos meus investimentos. Afinal, é o olho
do dono que engorda o gado. ― disse, arrogante.
― Não sou a sua vaca. ― emburrou-se.
― É um modo de falar, não sou ignorante como o Miguel, sei usar as
palavras para não ferir a sensibilidade alheia.
― Você é um cínico.
― Talvez.
― E o Ettore? Além de bonito, tesudo, bem-vestido, arrogante e
metido à besta, é o quê?
Roberto a fitou, mastigando bem devagar, e ela sentiu que era
analisada. Depois de limpar a boca no guardanapo de linho, respondeu:
― Manipulador e tão sujo quanto o pai dele. Anos atrás, o tio
Francesco mantinha peões em situação análoga à de escravidão. Ettore disse
que não sabia. Miguel descobriu e os irmãos saíram no braço no meio do
salão principal da empresa. Um belo espetáculo, dois engravatados se
soqueando. Miguel acredita que Ettore é pau-mandado de Francesco. No
entanto, o meu tio considera seus dois filhos uns inúteis. ― sorriu, parecendo
gostar da situação familiar.
― O Ettore é a favor de escravizar trabalhadores rurais?
― Acho que não, mas o Miguel queria um motivo pra meter a mão no
irmão mais novo. O lance de escravidão do Ettore é outro, sexual, se é que
me entende. ― sorriu um sorriso de canto.
Tráfico de mulheres? Ai, meu Deus, quero embora.
― Ele não vai me escravizar. ― foi categórica. ― Nenhum homem
manda em mim, tudo frouxo. Antes disso acontecer, arranho a cara dele.
Imagino que ficará traumatizado, já que se sente o hômi mais lindo do
universo.
― Quem a ouve acredita que é uma guerreira. ― comentou, sagaz. ―
Treme tanto que até a toalha tá balançando. ― indicou a mesa com o olhar de
zombaria.
―Síndrome das pernas nervosas. ― mentiu.
― Claro, e transtorno do medo patológico.
― Roberto... ― ela inclinou a cabeça para frente, sobre a mesa, como
se fosse contar um segredo. ― Tenha em mente que vou lhe dar o que quer,
mas jamais irei considerá-lo como aliado. Você fede à ambição desmedida,
além de ser cruel, sádico e frio. E sei que são características de um sociopata.
― Tá se tornando repetitiva. ― bocejou.
A orquestra começou os primeiros acordes de uma música que parecia
vinda de longe, do túnel do tempo.
― Não queria ouvir Dio, come ti amo? Pois então, aqui tá a sua
chance. Vem, vamos dançar um pouco. ― disse, levantando da cadeira e a
contornando, a mão estendida, o olhar fixo no dela mostrava que ele não
aceitaria uma negativa.
― Não.
― Vou ensiná-la a dançar de um jeito que o Ettore se curvará a você e,
assim, poderá pisá-lo com seu salto agulha de dois mil reais. ― rebateu,
atrevido, quase sorrindo.
― Acho que ele não gosta de dançar.
Usaria todos os argumentos para não o tocar novamente.
― Gosta e muito. Só que a dança dele é na vertical, Diavolo. ― voz
sacana.
Diabos, ela queria dançar com Roberto.
Mas não devia ceder tão fácil.
Cedeu.
Nel cielo passano le nuvole
Che vanno verso il mare
Sembrano fazzoletti bianchi
Che salutano il nostro amore

― Pelo visto, você é um pé de valsa. ― resmungou.


Ele a abraçou pela cintura e a puxou para si, as mãos se espalmaram
nas suas costas, e ela o envolveu no pescoço com os braços, afastando-se
levemente. Mas o seu par não facilitou o gesto de afastamento, pegando-a
com força na cintura, literalmente, agarrando-a
― Qual é a graça de dançar se não podemos fingir que fodemos sem
foder?
Ela sentiu a musculatura se retesar.
― Relaxa, Diavolo. Você precisa se livrar de certas amarras. ―
sussurrou-lhe junto à orelha.

Dio, come ti amo


Non è possibile
Avere tra le braccia
Tanta felicità

― O que significa essa parte da música? ― tentou mudar de assunto,


já que as pernas tinham virado gelatina de carne e as panturrilhas queimavam
como os chifres do belzebu.
― Quer mesmo saber?
― Não, tô de gracinha. ― foi mal-humorada, porque sentia o que não
devia sentir pelo alvo de Maitê, o mal encarnado, o filho de Aquino e talvez
assassino de Mariane.
― Deus, como te amo. Não é possível ter entre os braços tanta
felicidade. ― afastou-se para fitá-la.
― Seu louco, você mal me conhece, como pode mentir que tá feliz por
me abraçar? ― o cara era mais psicopata do que ela pensava.
― Essa é a tradução da música, Zalon. ― foi seco.
Alguém aí tem um buraco pra eu me finar, por favor?
― Ah, tá. Letra bem brega, por sinal. ― comentou, com estudado
descaso.
―É uma bela canção que fala de um belo sentimento. ― afirmou,
sério.
― Vindo de você, parece deboche.
― Sou um ser humano. ― rebateu, sério, puxando-a novamente para si
antes de quase sussurrar. ― E não um alvo de dardos envenenados.
― O que disse?
Ele a apertou entre os braços, enterrando o nariz nos cabelos dela,
cheirando-os até desviar o rosto para a curva do seu pescoço e o contornar
suavemente com a ponta do nariz.
― Gosto do seu cheiro.
― Você comprou esse cheiro pra mim.
― E vou comprar muito mais coisas para você. ― prometeu, numa
voz que lhe chegou aos ouvidos rouca e arrastada.
Então ela pisou no pé dele.
Capítulo 18

― Me perdoa, senhor, machuquei a sua patinha? ― ela o fitou,


imitando Rafa, quando simulava um sorriso de princesa levemente dopada.
― Você tem pés de anjo, garota, não se preocupa com isso. ― ele lhe
tomou a face entre as mãos e falou quase sorrindo: ― Sou indestrutível. Fui
criado por um tirano que me blindou contra o resto do mundo.
― Até o dia que cair de amores por alguém. ― ousou.
Ele sorriu ainda mais e a encarou como se ela tivesse acabado de falar
uma besteira.
― Anos atrás, caí de amores por uma mulher. Me apaixonei, fiquei
cego, trabalhei menos, desmarquei viagens e reuniões para poder participar
da vida dela. Não queria ser esses caras que não se comprometem com a
pessoa que ama.
― Acho que essa história não vai acabar bem. ― tentou escapar das
mãos dele, pois os olhos azuis estavam escuros novamente, ainda que ele
continuasse sorrindo.
― Dei todo o meu maldito amor àquela mulher.
― E depois a enforcou numa árvore quando ela não quis lhe vender as
terras?
O que tava fazendo? O que a mulher que ele amou tinha a ver com a
sua mãe? Por que o cutucar com provocações que não podia sustentar nem
explicar?
― Talvez eu devesse ter feito isso. ― cogitou, largando-a no meio do
salão.
Encontrou-o sentado à mesa. Ele acabava de pedir a conta ao garçom.
― O que aconteceu ao amor da sua vida? ― queria de fato saber.
― Não importa. Vamos voltar ao hotel, quero dormir.
― Desculpa, quero mesmo saber.
Roberto a encarou e havia dor e ódio no fundo dos seus olhos.
― Ela era minha noiva.
― Nossa, você chegou bem perto de ser fisgado.
― Pois é, mas não foi por uma golpista, Diavolo. ― disse, com
azedume. ― Ela trabalhava na nossa empresa, uma CEO brilhante à frente
do seu tempo. Bem, eu desconfiei que o Ettore a cercava demais, e ela não
fazia questão de afastá-lo. Isso me irritou, pedi um tempo no nosso
relacionamento para arejar a cabeça. Quando voltei de viagem, os dois
estavam trepando no estábulo como bichos no cio.
― Que filhos da puta. ― falou, baixinho, estranhamente triste por
Roberto.
Mas devia estar feliz por ele ter levado chifre.
― Dói ser corno? ― não se aguentou.
Ele a fitou como se quisesse fazer dois anéis redondos, um com cada
olho dela.
― Um dia saberá se dói ou não. ― rebateu, friamente.
O garçom voltou e disse que, se o chef não estivesse defasado de
funcionários, viria pessoalmente cumprimentá-lo. E acrescentou que o jantar
era cortesia da casa.
Roberto fez que sim com a cabeça e falou que voltaria para conversar
outra hora com chef, mas não agradeceu o presente. Levantou-se e a deixou
para trás. Novamente deu uma corridinha atrás dele, até vê-lo entrar no
automóvel.
O silêncio pesado formou uma muralha entre ambos. Pareceu-lhe que
ele abriu o seu coração, e Zalon riu de suas dores. Sentiu-se um pouco mal.
Bem pouquinho.
Eles chegaram ao hall de entrada do hotel fabuloso. Zalon filmou com
a câmera do celular a fachada do lugar, toda de vidro, as esquadrias das
portas duplas em dourado, podia até ser folhada a ouro de tão brilhosa que
era.
A recepção era um longo balcão de mármore escuro com
recepcionistas vestidos de blazer e gravata. Todos de cabelo curto e sem
barba. Era um ambiente refinado onde se podia ouvir uma música baixinha
bem agradável e, mais ao longe, o conjunto de salas com sofás e poltronas
largas e aparentemente confortáveis.
― Como assim, as suítes imperiais estão ocupadas? ― Zalon ouviu a
voz baixa e zangada e se voltou para Roberto, que fitava o recepcionista com
lâminas de faca no olhar. ― Veja novamente no sistema. Eu me hospedo
nessa porra faz anos, e vocês ousam dificultar o meu check-in.
― Sinto muito, senhor.
― Vou sentar ali na poltrona, ok? ― ela o avisou.
―Faz o que quiser, só me deixa em paz. ― foi rude, voltando-se para
o recepcionista. ― Sou Roberto Manganelli.
― Sei quem o senhor é, mas vejo aqui, no sistema, que foi feita uma
reserva para a suíte Golden, e apenas uma.
― Secretária maluca. ― ouviu-o resmungar e depois acrescentar num
tom taxativo: ― Mas é só mudar para a imperial, meu caro.
― Os últimos andares estão reservados para a comitiva do presidente.
Zalon ouviu o que o rapaz falou e teve vontade de rir da cara do
magnata do agronegócio.
― Quer conhecer o presidente, Zalon? ― a pergunta veio com ares de
zombaria.
― Não, só se fosse o presidente do meu time de futebol. ― debochou.
― Por acaso, sabe quem é o nosso atual presidente?
― Claro que sim, acha que sou imbecil, é?
― De jeito nenhum.
― É o Pedro Álvares Cabral. Até votei nele, mas me arrependi. ―
brincou, sem sorrir. A vontade era a de tirar Roberto do sério.
― Interessante a sua piada sem graça. Agora vamos pegar o elevador e
subir. Tô pregado de sono.
O elevador era panorâmico e, à medida que se elevava do solo, ela via
os telhados das casas e do comércio, a imensidão de luzes artificiais, os
painéis coloridos com propagandas de tudo, até de shows, filmes em cartaz
no cinema, peças de teatro e jogos de futebol. Só não se via o brilho das
estrelas.
Ele passou o cartão e abriu a porta. As luzes se acenderam, e Zalon
segurou um uau dentro da boca. Não queria repetir o deslumbramento que já
havia chamado a atenção do milionário. Mas aquilo lá não era apenas uma
suíte com banheiro e sim um pequeno apart-hotel. O balcão americano
dividia a sala da cozinha, com frigobar, micro-ondas e pia, além de uma
pequena adega de vinhos. Do outro lado, a sala com um sofá grande e largo e
uma mesa baixa e retangular sobre o tapete felpudo num tom cinza que
combinava com a excessiva brancura do ambiente.
Sentou no móvel e se recostou, esticando as pernas, e bocejando.
Inclinou a cabeça para ver a cama imensa, quatro travesseiros, o lençol
branco e uma manta enrolada, aos pés, feito um rocambole. As mesinhas em
cada lateral e, do outro lado, possivelmente uma escrivaninha e a cadeira,
uma vez que ele se dirigiu para aquele lado da suíte a fim de deixar o celular
e a carteira.
Dois minutos depois, um rapaz apareceu com uma mala escura de
rodinhas e a mochila surrada, que haviam deixado no automóvel.
Roberto deu-lhe cem reais, o rapaz sorriu, guardou o dinheiro no bolso
e lhes desejou uma boa-noite.
Cem reais!
Ele simplesmente tirou da carteira a cédula que pagava a conta mensal
de energia elétrica da sua casa.
― Você é generoso em relação a dinheiro. ― comentou, com ar de
zombaria. ― O que só acontece a quem nunca precisou economizar na vida.
― O azar é seu que não nasceu numa família rica. ― rebateu, com
mau humor. ― Se ficar me incomodando com seu amargor de pobre, vou
deixá-la aqui na capital. Poderá rodar bolsinha para conseguir voltar para
Santa Bárbara.
― Rodo a bolsinha é na sua cara, isso sim. ― se pôs de pé, dando a
entender que estava muito a fim de uma briga.
Mas algo lhe chamou a atenção. O janelão aberto a poucos passos da
cama. Foi até lá e viu que era uma sacada. Debruçou-se no parapeito e
admirou os quinze andares abaixo, a avenida do bairro elegante, os carrões e
o cheiro de Campo Grande. Sim, cada cidade tinha o seu próprio odor e
magnetismo. Lera isso num livro de ficção, a garota viajou pelo mundo
inteiro até um dia conhecer um sultão pelo qual se apaixonou. O amor durou
alguns dias. Mas a parte que ficou entranhada na alma de Zalon foi a
descrição da mocinha sobre os lugares por onde passou, dormiu e acordou.
Cada cidade tinha o seu próprio odor que, com o tempo, o morador local não
se dava mais conta. Mas quem vinha de fora o sentia em toda sua essência.
― A vida é muito maior do que pensamos. ― suspirou, deslumbrada
com a beleza da metrópole, considerando o quanto Santa Bárbara era pequena
e a sua própria vida também.
― Maior é a suíte que mandei a secretária que será demitida reservar.
― ele se achegou, com uma carranca dos infernos.
― Já aviso que não vou dormir com você.
― Carne de segunda nunca me apeteceu o paladar.
― Bom, pelo menos temos algo em comum. Embora, no seu caso, é de
segunda e de boi velho. ― manteve seus olhos na paisagem noturna, mas
todo o corpo parecia ligado numa corrente de 220 volts.
― Ponto pra você. ― ele admitiu, escorando os cotovelos na grade da
sacada.
― Vou dormir na cama, e você no sofá.
― Sou um cavalheiro.
― É nada.
Ele enfim conseguiu sorrir.
― Então acha que já me conhece?
― Não, a gente nunca conhece alguém de verdade.
― Menti pra você. ― ela o encarou ao ouvir a sentença dita numa voz
séria. ― Nunca dei atenção à minha noiva. O Ettore a seduziu, porque me
foquei na auditoria feita na mineradora e nos leilões de gado pelo país. Eu
não tinha cabeça para romance mesmo apaixonado. É estranho, mas sou
assim. Mas eles tiveram um caso, isso é verdade. O meu primo me sacaneou
e a minha noiva também. Rompi o noivado, e ela correu para os braços do
amante. Mas o Ettore perdeu o interesse pela amada, já que ela não mais
pertencia a mim. Então ele a chutou fora. ― sorriu um sorriso amargo.
― Mas se ela também tinha uma carreira, devia entender o momento
pelo qual você passava.
― E eu devia entender que ela precisava da minha atenção.
O alarme estridente de um automóvel quebrou o momento de silêncio.
― É assim que o Ettore age com as mulheres?
― Na maior parte das vezes, sim.
― Como pode ter certeza de que conseguirei me casar com esse
canalha?
Ele a encarou muito sério e, por um momento, pareceu que a analisava.
― A estratégia de seduzi-lo não vai funcionar.
― Oh, não diga! Tô falando pra você faz tempo, né? ― estalou os
dedos, balançando os cabelos num gesto de pesar com a cabeça.
― Espera. ― disse ele e, quando ela o fitou, viu-o pegar um punhado
de mechas dos cabelos dela e as levar ao nariz. ― Que cheiro delicioso.
― Talvez você tenha vocação para cabeleireiro. ― provocou-o.
― É outra coisa.
― O quê?
― Você tá realmente linda. ― respondeu, sério. ― Ainda assim, não
fará diferença alguma para o meu primo. Mulher bonita nos rodeando é o que
não falta, chega a ser entediante.
― Nossa, como você é convencido. Sabe que é por causa da grana e da
boa aparência, né? Porque se fosse pobre e desdentado, ninguém ia te querer,
ainda mais com essa personalidade bipolar.
Ele riu alto, parecendo se divertir com a observação ácida.
―Acho que uma mulher que se sente atraída por um pobre desdentado
não é grande coisa também. ― rebateu, espirituoso. Depois ele tirou um
cigarro da carteira e o acendeu com o isqueiro dourado, que ela supôs que
fosse de ouro. ― A estratégia mais eficiente para você fisgar o Ettore é a da
vingança.
Zalon sentiu um fio elétrico percorrer todos os terminais nervosos do
seu corpo.
― Co-como assim?
Tudo certo, não tem como ele saber da SUA vingança! Afinal, todo
mundo tem uma vingancinha pendente por aí na praça.
― A tal diversão, Diavolo. Eu me divertiria muito me vingando do
cretino.
― Pensei que quisesse apenas se divertir, não existe leveza nem
diversão em uma vingança.
Sei por experiência própria, tô aqui me borrando de medo, fingindo
que sou corajosa e cheia de respostas pra tudo.
― Destruir é divertido. E, pra isso, para ele se interessar realmente por
você a ponto de perder a cabeça e se apaixonar, como eu disse, teremos que
usar uma estratégia mais sofisticada.
― Sofisticação não é a minha praia.
Ele a olhou fixamente.
― O Ettore também se diverte tentando me destruir, é coisa da nossa
família, não entenderia.
― Não mesmo.
― Se você for minha, ele a desejará imediatamente e fará de tudo para
conquistá-la. O que será meio caminho andado para o seu sucesso, minha
cara.
Zalon sentiu a garganta se fechar.
― Como é isso de... eu ser sua?
― Você voltará a Santa Bárbara na condição de minha namorada. ―
afirmou, resoluto, fitando-a como um homem de negócios que não admitia
objeção.
Meu Deus.
― A gente vai fingir, não é?
― É óbvio que sim, não tenho tempo para romances. ― foi seco.
― Pensei que fosse dizer que não sou o seu tipo. ― implicou,
empinando o nariz em desafio.
No instante seguinte Roberto a puxou para si pela cintura, firmou-lhe a
nuca com a mão em garra e meteu os olhos azuis nos dela.
― Não podemos perder o foco, Diavolo.
Largou-a como se tivesse levado um choque ou se punisse por ter
quase a beijado.
Viu-o sair da sacada e se enfiar no banheiro. Ouviu o barulho da ducha
e dos socos que o seu coração dava nas costelas.
Santa Bárbara inteira saberia que ela estava namorando Roberto
Manganelli. Ainda que fosse um disfarce, um namoro de fachada, uma
mentira.
Mas havia Maitê.
Diabos, Roberto é o alvo da Maitê!
Como seria “tô fodida” em italiano?
Capítulo 19

O som abafado da voz rouca vinha de longe, assemelhando-se a um


lamento. E, como Zalon tinha o sono leve, foi por isso que acordou no meio
da madrugada.
Ela não era o tipo que despertava atordoada sem saber onde estava, não
reconhecendo o ambiente. Pelo contrário, já acordava em alerta como se o
lugar estivesse em chamas.
Sentou na cama, o cabelo no rosto, as orelhas feito antenas parabólicas
captando a origem da voz. Mas só podia ser uma, a de Roberto.
Como não havia divisória entre o quarto e a sala, espichou o pescoço
para confirmar a sua suspeita. Não queria aparecer diante dele vestida no seu
pijama de regata e short azul clarinho, de algodão desbotado, e o fazendeiro
pensar que ela queria seduzi-lo, como ele próprio insinuou anteriormente.
Ouviu-o novamente e teve a certeza de que era um gemido.
Saiu da cama e foi até o sofá. Abaixou-se até ficar rente aos seus olhos
e os viu fechados, as pálpebras tremiam e era evidente a expressão de
tormento e desespero na feição adormecida.
Ele estava tendo um pesadelo.
Sacudiu-o levemente no ombro, e ele apertou forte os olhos como se
sentisse dor.
― Roberto, precisa acordar. ― sussurrou.
― Para... de me... perseguir... ― ele gemeu, num tom de lamento que
vinha do fundo da garganta.
― Acorda. ― pediu, baixinho.
Endereçou o olhar para a cozinha, imaginando encher um copo com
água e jogar-lhe na cara.
― Não amo você... Amo você.
Epa, agora a conversa ficou interessante, melhor deixá-lo curtir um
pesadelozinho. Maitê, com certeza, ia gostar da sua atitude.
― Quem você ama, Roberto?
Notou as gotas de suor na testa dele. Pobre diabo, devia estar
mergulhado num filme de terror da própria imaginação.
― Mãe... Por quê?
Aquilo calou fundo nela.
Foi como se tivesse levado um soco na barriga, doeu até nos ossos. E
essa dor seca, de tão antiga e entranhada, venenosa e profunda, a fez agir por
impulso. Sacudiu-o nos ombros até vê-lo abrir os olhos congestionados, as
órbitas com delicados derrames vermelhos, o olhar turvo, perdido, fixo nela.
― Pesadelo. ― disse-lhe à indagação muda.
Ele fitou o teto, impassível. E ela considerou que talvez ainda estivesse
dormindo.
― Bem, voltarei para a cama.
A mão masculina a tomou no pulso.
― Tem pesadelos, Diavolo?
― Sim, quando abro os olhos.
Ele a fitou por entre as pálpebras semicerradas.
― Não fala assim, é jovem demais.
― O que não significa que minha vida seja feita de sonhos bons.
Ele suspirou, profundamente, escorou-se contra o travesseiro no braço
do sofá e arou o cabelo curto com a mão.
Ficou um tempo olhando para um ponto vago, como se remoesse algo,
um pensamento, uma recordação, um mundaréu de palavras que traduzisse a
melancolia do momento.
― Estamos num quarto chique de um hotel de luxo, e você ainda tem
pesadelo. ― ela brincou, sem sorrir.
― Sonhar com gente morta não é legal. ― sentou na cama e esfregou
as têmporas.
―Pessoas com a consciência pesada costumam ter pesadelos. ―
comentou, não o poupando do cinismo.
Ele bocejou sem classe, abrindo bem a boca, demonstrando que diante
dela, de alguém sem berço, não precisava ser educado nem polido.
― Tem razão. Se a intenção foi me provocar, garota, o tiro saiu pela
culatra. ― rebateu, serenamente, voltando a se escorar nos travesseiros,
olhando para ela. ― Minha mãe morreu de câncer, a coisa comeu a pobre
coitada aos poucos, uma dentada por vez, sabe como é? Quando o médico me
avisou de que ela teria poucas horas de vida, fui vê-la no hospital. Torci para
que estivesse em coma. Mas ela me viu e tentou sorrir, a boca seca, os olhos
fundos, acabada. ― inesperadamente ele parou de falar sem deixar de fitá-la.
― Você tá descabelada e sem maquiagem, os olhos sonolentos... E é incrível
como tá mais bonita do que toda produzida. ― considerou, sem entonação
especial na voz.
― Tá me paquerando?
― Não.
― Acho bom mesmo. Você me acordou bem no meio de um sonho
erótico com o Tom Hiddleston. Pelo amor de Deus, eu devia processá-lo por
isso. ― provocou-o, procurando distraí-lo de suas reservas para saber mais
sobre a mãe dele, a morte dela, evidentemente.
Até agora aprendera que Roberto tinha momentos em que se abria com
naturalidade para, em seguida, fechar-se em concha.
― Coisa bem de adolescente essa, a de sonhar com ator.
― Sou uma adolescente. ― rebateu. ― Mas, me diz, sente falta da sua
mãe?
― Não.
― Acho que no fundo sente sim.
― Ah, claro, porque sonhei com o cadáver dela rastejando atrás de
mim, implorando amor.
― Nossa.
― Pois é, um sonho bem nojento. ― reclamou. Depois, respirou fundo
e continuou: ― Pouco antes de morrer ela me pediu um beijo, porque não
sabia o que me dizer... as tais últimas palavras... ― deu de ombros,
demonstrando descaso. ― Até mesmo nesse momento não tínhamos o que
dizer um ao outro.
― Acho que você tinha o que dizer a ela.
― É mesmo? ― arqueou a sobrancelha com ar arrogante. ― O que
seria, terapeuta da periferia?
― Eu odeio te amar, mãe. ― foi direta, encarando-o com firmeza. ―
Era isso que você queria ter dito.
Viu-o retesar os maxilares, os ossos marcaram a pele com pontos de
barba por fazer.
― Menina ingênua. Acha que sou como sou porque amei uma mulher
que não amava nem a si mesma? ― falou, semicerrando as pálpebras.
― Não acho nada, um desgraçado me tirou a chance de continuar
recebendo o amor da minha mãe. E, ao contrário da sua, não tive um pedido
de beijo nem suas últimas palavras, já a encontrei morta.
A expressão facial de Roberto se anuviou.
―Sinto muito pela sua perda. ― pareceu sincero.
Chegou a hora, ela precisava cercá-lo.
― Morreu enforcada. ― esperou ver algum sinal na feição impassível
que a fitava sem desviar. ― O meu pai nos abandonou e depois um
fazendeiro rico exigiu que ela assinasse o contrato que vendia as nossas terras
para ele. ― parou de falar, respirou fundo, encarando-o a fim de não perder
nenhum detalhe que o delatasse como o responsável pela tragédia. ― Ela não
queria assinar, era tudo que tínhamos. Mas dias depois apareceu morta.
Viu-o engolir em seco. Rapidamente o cérebro girou em busca de uma
interpretação coerente para o gesto. Até que Roberto falou sem emoção na
voz:
― Elas nos põem num mundo hostil e venenoso e depois vão embora
como se não valêssemos nada.
― Minha mãe se matou, porque foi pressionada por um cretino...
― Uma fraca. Tinha três filhas, não é mesmo? Que lutasse por vocês!
Tarde demais notou que o havia esbofeteado.
E, tarde demais também, deixou-se levar pela avalanche de
sentimentos, raiva, medo, tristeza, desespero, injustiça, tudo acumulado para
explodir numa crise de choro.
Deitou a cabeça sobre o braços, o rosto esmagado nas coxas, as
lágrimas jorrando como o sangue que escapa de uma artéria importante.
O barulho de sua dor saiu alto e grosso, mil demônios escapando da
jaula, mas eles voltariam quando ela se acalmasse. Eles sempre voltavam.
Roberto a puxou pelos ombros e a abraçou por trás. Fez do próprio
corpo um abrigo, a bochecha colada à dela, os braços em torno do corpo
miúdo que sacudia em espasmos.
Chorava por alguém que mal lembrava o rosto. E a única imagem que
lhe restava na memória era o tom azulado da pele da mãe. Depois que a
retiraram do alto da árvore e soltaram a corda em torno do pescoço, viu a
marca avermelhada e profunda. O pescoço quebrou, ainda assim segurou o
corpo inteiro, não se soltou, manteve o organismo unido. Era incrível. Era
poético. O pescoço quebrou e podia ter se separado do resto, aí se teria
apenas a cabeça na forca. E o resto no chão.
Agora o possível assassino a abraçava em silêncio. Ele podia lhe
aplicar um golpe de gravata e a estrangular. Queria que o fizesse. Na verdade,
queria incitá-lo a isso.
― O fazendeiro mandou matá-la e depois simulou o suicídio dela. ―
falou, entre um soluço e outro, recuperando-se da crise.
Mas ele não podia saber que ela se regenerava das crises emocionais
como a pele de um vampiro a um ferimento físico.
― Por que tá me dizendo isso?
Ele não devia perguntar: como sabe? Por que acredita nisso? Quem
lhe disse?
Porque você é um dos suspeitos.
― Não sei.
― Já disse que não deve confiar em ninguém. ― censurou-a, com
brandura. ― Mal me conhece e já abre o seu coração.
― Sinto que você é confiável. ― mentiu, a voz de anjo, olhando-o nos
olhos ao se virar para trás.
Ele endereçou-lhe um sorriso de canto de boca tão charmoso, tão
incrivelmente charmoso que ela se odiou por achá-lo atraente.
― Sou uma maldita semente ruim, Diavolo. Jamais esqueça isso. ―
afirmou, numa voz que a fez sentir calafrios.
― Mas você também se abre comigo, contou da sua mãe... ― falou,
sustentando-lhe o intenso olhar. ― Penso que um homem como você,
machucado desse jeito, jamais mandaria matar uma mãe de família para obter
as suas terras.
Falou num fôlego só. E depois segurou o ar nos pulmões.
― O que quer ouvir de mim? Acha que nasci ontem? Tá me sondando
para descobrir o quê?
O suor porejou frio na sua testa.
― O seu caráter. ― pensou rápido. ― Você também é um fazendeiro,
o tipo de gente que desprezo.
― Interessante. Mas quer se casar com um da minha laia. ― ironizou.
― Claro, a minha intenção não é fazer o Ettore feliz.
― Diga-me, o que aconteceu ao fazendeiro que comprou as terras da
sua família?
Agora é ele que tá me analisando. Diabos!
― Morreu.
― Qual era o sobrenome dele? Conheço a maioria dos fazendeiros do
país.
― Eu era criança, tinha nove anos, como ia saber?
― Suas tias sabem?
― Uma delas era apenas a empregada da casa... Aliás, como é que
sabe das minhas tias? Ah, bosta, o idiota do detetive.
― Se acredita que a sua mãe foi assassinada depois de ter perdido a
fazenda, deve trazer muito ódio no seu coraçãozinho de princesa. ―
considerou, friamente. ― E talvez o tal golpe do baú seja mera vingança.
Jesus, o que são esses pontinhos ao redor da minha cabeça?
― Como assim?
―Quer enriquecer, se tornar mulher de fazendeiro para ter o mesmo
poder que ele tinha, não é?
― Não. Eu quero mesmo é saber se o Ettore é tão bom de cama como
dizem. ― irritou-se e, irritada, falava a primeira merda que lhe vinha à
cabeça. ― Para de me analisar, não sou o seu ratinho de laboratório, a sua
pobre desgraçada de estimação, o brinquedinho do ricaço.
― Hum, toquei num ponto sensível?
― Só se apertou o calo do meu dedão esquerdo.
― Linda. ― disse, com verdadeiro ar de admiração. ― Zangada, mal-
humorada, grossa feito uma égua... e linda. ― constatou, sem sorrir.
―Pois é, fui feita sob medida para o seu primo.
― É verdade. ― ele bocejou antes de continuar: ― Agora volta para
cama, já disse que não vai rolar nada sexual entre nós e a desculpa de se
preocupar com o meu pesadelo não colou.
― Não acredito que esteja falando sério. ― pôs-se de pé, as mãos na
cintura, fitando-o de cara amarrada.
― Vou beber uma água gelada, essa conversa me deu sede. ― afastou
o lençol e se levantou, exibindo com naturalidade um nu frontal que a fez
perder o rebolado. ― Aceita?
― Muito grande. ― balbuciou, atordoada, sem notar que olhava
diretamente para o pênis dele.
― Falei da água. ― exibiu um sorrisinho. ― Pois é, isso que não tô
excitado. ― falou, na maior calma do mundo, desviando os olhos do pau para
os olhos dela. ― Infelizmente pra você, o do Ettore não é grande coisa. ―
Ele se encaminhou para a cozinha enquanto falava: ― Tomávamos banho de
rio juntos, os três, quando éramos crianças e ainda não nos odiávamos.
Zalon ainda pensava no pau de Roberto, os pelos castanhos escuros em
torno do membro avantajado e semiereto. A cintura era estreita, o abdômen
definido, o tórax largo e ligeiramente musculoso, sem pelos, os ombros
largos de ossos salientes que lhe denunciavam a firmeza de personalidade.
Mas notou também as cicatrizes nas costas dele. Preferiu não mencionar o
fato.
― Não trouxe pijama, é? ― reclamou, sem se voltar, pois ainda estava
vermelha e constrangida por se importar com o simples fato de ter visto um
pênis.
― Não uso pijama.
Voltou-se e o viu abrir o frigobar para retirar a garrafa de água cuja
embalagem parecia a de um perfume.
― Ah, então esqueceu a sua camisola?
― Que graça você é. ― ele sorveu um gole da água e continuou: ―
Durmo pelado, Diavolo. Você devia experimentar também.
― Se quer saber, também durmo pelada... mas na minha cama e não
num quarto de hotel com um desconhecido.
― Mas você me conhece, sou o seu namorado. ― o sarcasmo estava
todo ali, no sorriso e no olhar.
Ele saiu detrás do balcão americano para voltar ao sofá, e Zalon fechou
os olhos disposta a não fazer feliz o exibicionista. Ao passar por ela, deu-lhe
um tapa no traseiro e disse:
― Vá dormir, criança, quero ver se vai sonhar com um atorzinho
bunda mole ou com o meu pau bruto e sistemático. Boa noite.
Voltou-se para vê-lo com aquele seu arzinho de autoconfiança que às
vezes a irritava.
Mas, na maior parte do tempo, a excitava.
― Pervertido. ― resmungou, incomodada, vendo-o deitar de bruços
no sofá, o traseiro pequeno e durinho à mostra, as coxas musculosas, as
costas largas, a nuca exposta e, um pouco acima, o cabelo loiro bagunçado.
Droga! Como se dizia tô com tesão em italiano?
Capítulo 20

― Aproveitem, senhores, que tô de bom humor. Acordei ao lado de


uma loira espetacular. Podem torrar o meu saco à vontade que não irão me
tirar do sério.
Essa foi a entrada teatral de Roberto Manganelli à ampla sala de
reuniões da empresa.
Francesco o recebeu com um sorriso nos lábios, puxou-o para um
abraço, dando-lhe tapinhas amistosos que ressoaram no ambiente refrigerado,
as paredes de vidro, a mesa retangular para vinte lugares e um segundo
ambiente com um conjunto de sofás e um bar espetaculares.
― Tá certo, precisa relaxar da pressão de ter o pai no hospital.
Se o comentário tivesse partido de Ettore, por exemplo, seria como
uma indireta cínica, mas o tio realmente se importava com ele, com o seu
bem-estar emocional. Era uma pena que Roberto o desprezava na mesma
medida que aos filhos do velho. Afinal, Aquino era irmão de Francesco,
portanto, mesma porcaria de genes.
― Sugiro que expresse menos contentamento por ver o seu pai à beira
da morte. ― foi a vez de Ettore se manifestar, assim que se levantou do sofá,
encaminhando-se na sua direção.
Roberto avaliou o ambiente, tenso, como sempre. Ettore, vestido no
blazer cinza de verão, parecia disposto a um confronto. Aquele lá nunca
relaxava. Talvez porque soubesse que jamais se tornaria o sócio majoritário
do grupo enquanto o filho de Aquino continuasse respirando.
― Não seja injusto, tô ferido por dentro, mas a vida urge, caro primo.
― sentou à cabeceira da mesa.
― Esse é o lugar do tio.
― Que tá em coma, Ettore. ― forçou-se a responder.
Francesco vestia uma camisa polo sem estampa e a calça social escura,
a roupa que usava para, depois da reunião, ir ao clube de golfe. Com Aquino
definhando num leito de hospital, o irmão apenas ia à empresa para assinar
papéis e dizer sim ou não nas reuniões da diretoria.
Como era de praxe, Miguel chegou atrasado. E, mais comum ainda, era
o modo displicente de que tratava os negócios que não diziam respeito às
fazendas. Por mais que fosse tão competitivo quanto Roberto e o irmão mais
novo, tinha certeza de que ele pouco se importava com a corporação. O
vínculo que tinha era com a terra, o gado e os cavalos. Prova disso era a sua
má vontade em comparecer às reuniões da diretoria. Enfiava-se no terno
escuro, amarrava a cara e nem disfarçava o quanto de vaqueiro rude tinha no
sangue de CEO.
― Rápido com a conversa, tenho coisas mais importantes para fazer na
fazenda. ― disse ele, na sua gravata torta.
Era certo que mais uma vez dormira sozinho. Pois, caso tivesse uma
amante, ela o teria ajeitado a gravata. Havia um aspecto em Miguel que
irritava Roberto sobremaneira: parte da personalidade de Aquino parecia
entranhada no primo, o lado rústico, mal-educado e hostil. Não havia um
pingo de diplomacia naquele animal que vestia Prada com a elegância de um
Manganelli, mas com o espírito de um selvagem.
Miguel ocupou o seu lugar ao lado de quem encabeçava a ponta oposta
da mesa, Francesco. E, quem o visse na sua aparência sofisticada de homem
de negócios, não fazia ideia da personalidade arredia e instável. Tratar com
ele era como pisar num campo minado. Ao passo que, com Ettore, era como
um jogo de pôquer. Tio Francesco, por outro lado, apenas o entediava com
sua enervante e inútil demonstração de afeto.
― Muito bem... ― Roberto começou a falar, desabotoando os botões
do terno ao se recostar na poltrona de espaldar alto. ― A pauta de hoje é a
venda da mineradora Manganelli. ― fez uma pausa antes de continuar: ―
Antes, porém, quero avisá-los de que tomei a liberdade de instalar câmeras na
sala. Acho importante que tenhamos as reuniões devidamente registradas.
―Mas somos uma família, nunca precisamos de formalidades. ―
rebateu o tio, sorrindo de um jeito bonachão, gesticulando com as mãos a fim
de salientar a declaração feita.
― Onde estão as câmeras? ― perguntou Miguel, na sua voz grossa e
áspera, o tom de desconfiança.
― As câmeras são usadas para fins de segurança e não de controle. ―
argumentou Ettore.
― Controle? ― Roberto arqueou a sobrancelha, expressando
sarcasmo. ― É o começo de uma nova gestão. Em breve, me tornarei o sócio
majoritário e tudo estará subordinado a mim. Quero que as nossas decisões e
votações sejam filmadas, apenas isso.
― Tenho certeza de que saberá administrar com sabedoria os seus
quarenta por cento. ― falou Francesco, com orgulho.
― O tio Aquino tá vivo, e você continua com os vinte por cento como
nós. ― advertiu-o Ettore.
― Cadê o diabo das câmeras? ― indagou Miguel, vasculhando o
ambiente com as pálpebras semicerradas.
― As ações do grupo oscilaram com a internação de um dos membros
da diretoria e, assim que vazar para a imprensa a demissão em massa que
faremos em breve, mais especulações negativas afetarão o mercado
financeiro.
― Não é o momento oportuno para nos desfazermos da mineradora,
Roberto. A bem da verdade, por mim, nem deveria ser pauta de reunião. ―
disse Ettore, convicto.
― Preciso mencionar que a recessão do país e o declínio global do
setor do petróleo e gás são pontos a ser considerados para se manter uma
empresa que opera no vermelha faz algum tempo?
― O Roberto tem razão.
― Não é uma questão de ele ter razão, pai. ― Ettore apertou a boca
antes de continuar, agora, voltando-se para o primo: ― Acontece que você só
tá esperando a morte do seu pai para se desfazer do negócio pelo qual o tio
Aquino era apaixonado.
―Misturar sentimentos com negócios é pedir para afundar. ― Roberto
foi objetivo.
― É fato que a mineradora não tá no seu auge, mas o momento de nos
desfazermos dela não é agora. Quero manter o grupo intacto, como o pai e o
tio o construíram.
― Eles não fizeram isso sozinhos. ― disse Miguel, por fim, pondo-se
de pé e, encarando Roberto, foi curto e grosso: ― Quero que retire a porra
das câmeras.
― É mesmo? ― perguntou, com ar de troça. ―E por que eu o faria?
― Porque eu quero e isso já é um bom motivo.
― Filho, acalme-se, são apenas câmeras.
― O Roberto vai filmar as reuniões e revê-las quando se masturbar. ―
Ettore o desafiou com o olhar.
― Possivelmente.
Tudo aconteceu num segundo. E, de repente, uma cadeira voou em
direção à câmera acoplada à parede, no alto da poltrona de Roberto,
espatifando-a. Em seguida, Miguel pegou o próprio celular e o arremessou
contra a outra câmera, na extremidade oposta da primeira, rente ao ângulo de
noventa graus entre o teto e a parede.
Francesco e Ettore se afastaram da mesa, talvez temendo serem
atingidos pelo impulso furioso do outro. Mas Roberto manteve-se calmo e
relaxado, assistindo a mais um ataque de fúria louca do primo.
Viu-o quebrar uma segunda cadeira e, assim, pôr abaixo a última
câmera.
Ninguém apareceu para ver o que acontecia na sala do alto escalão.
Eram notórias as brigas entre os executivos. Os funcionários do andar abaixo,
ou seja, os gerentes de cada setor, ouviam os gritos, os objetos quebrados,
portas batidas com força, os xingamentos em português misturados ao
italiano, socos contra a parede e, talvez um dia, o estampido de um ou vários
tiros.
O jornal local apelidou os Manganelli de família Gucci do
agronegócio.
Roberto esperava apenas que o papel de Maurizio, o único Gucci
assassinado, não fosse seu.
Depois de extravasar o desagrado contra a gravação das reuniões,
Miguel ajeitou-se no terno que se abriu, revelando a camisa impecavelmente
branca, secou a testa suada com um lenço de seda e fixou o olhar duro no
primo ao lhe dizer, apontando o dedo indicador em riste:
― Vou barrar todas as suas determinações. A reunião de merda acabou
para mim, senhores. ― anunciou, ao bater em retirada. ― Tenham todos um
péssimo dia e vão à merda.
― Anotarei o custo de cada móvel e objeto quebrado para que sejam
descontados da sua remuneração. ― avisou-o, sem se alterar, antes que o
touro bravio cruzasse a soleira da porta.
Viu o tio balançar a cabeça, resignado. Provavelmente considerando
que a impetuosidade do filho remetesse à origem materna. Os Manganelli
tendiam a considerar que os erros da prole se deviam aos genes das mães e
nunca aos seus próprios defeitos. Embora a genética dos tiranos talvez ainda
não fosse bem explorada pela ciência do comportamento.
Ettore, por outro lado, tinha um sulco profundo entre as sobrancelhas,
o que demonstrava que estava preocupado.
― Pai, tá na hora de comprarmos as ações do Miguel.
Roberto entendeu a deixa e a matemática implicada nisso. Voltou-se
para o tio, encarando-o fixamente como se desafiasse a sua lealdade para com
ele.
Ao longo de todos esses anos, tio, o senhor me disse que eu era
parecido com a sua personalidade firme e empreendedora do que seus
próprios filhos. E agora? Irá me trair, cedendo à malícia do caçula para
somarem sessenta por cento entre os dois?
Francesco baixou a cabeça, parecendo ponderar por um ou dois
minutos. Mas depois deu a sua opinião a respeito:
― A quem pensa que engana, Ettore? Acha mesmo que cairei na sua
armadilha? Você teria sessenta por cento das ações, porque, com certeza, em
menos de meio ano daria um jeito de me chutar da corporação que eu fundei.
― Jamais faria isso ao senhor, pai. ― ele parecia realmente ofendido.
Assim era a dinâmica familiar. Pai não confiava em filho, mas
colocava a mão no fogo pelo afilhado que o menosprezava. Filho quebrava
tudo, porque odiava trabalhar na empresa do pai, que o desprezava por não
ser como o afilhado e protegido. Pai morria no hospital, sozinho e dopado,
porque o mais importante para o filho era vender ou não a mineradora antes
que as ações despencassem.
Ah, família, doce família, pensou Roberto, vendo Ettore levantar-se,
irritado, por mais uma vez não ter o apoio do pai.
De repente lhe veio a imagem de Zalon chorando desesperadamente a
falta da mãe.
Capítulo 21

Zalon tinha um iPhone escondido dentro do sutiã e o Samsung Galaxy


todo ferrado na mão.
As roupas novas ficaram na mansão de Roberto, como o combinado.
Mas, agora, de volta à casa das tias, precisava esconder o iPhone antes que
Maitê descobrisse sobre a reviravolta no plano de vingança. Afinal, o alvo
dois tencionava se vingar do alvo um. Zalon tinha de se vingar do alvo um
também. Mas Maitê queria se vingar do alvo dois.
Que bagunça.
A irmã jamais permitiria que Zalon aceitasse a oferta do alvo dois para
dar o golpe do baú, e indiretamente ajudá-la a se vingar do alvo um. Para
Maitê, tal proposta soaria como um tipo de sociedade e cumplicidade para
com um dos inimigos. Ainda mais vindo de Roberto, o pior dos alvos.
Por outro lado, não queria mentir para ela. Pois, sentia que, se omitisse
a proposta do Manganelli, estaria meio que se aliando a ele e traindo Maitê.
Mas, poxa, era uma oferta irresistível e fácil de ser executada. Ettore
seria atingido e, depois disso, o próprio Roberto, traído. Pois ele não sabia
que também era usado para fins de retaliação. Zalon o entregaria de bandeja a
Maitê com todas as informações sobre seus sentimentos mais íntimos,
doloridos e profundos.
Rafa assobiou assim que a viu entrar na pequena sala, com dois sofás
de corino, mantas de algodão atiradas para esconder os rasgos de uso, a mesa
de centro com bibelôs de animais de cerâmica como um mini zoológico e a
estante de livros e, na parte aberta, a televisão de 21 polegadas.
―Uau! Que cabelão lindooooo! Parece uma atriz de Hollywood,
sister!
― Gostou mesmo? Olha que vou relatar o seu depoimento para a
Gerusa, hein. ― brincou.
― Diz pra moça que ela tem talento. Não que eu entenda dessas
besteiras, mas o seu cabelo tava que era uma vassoura de piaçava, dava pena
de ser ver, e agora tem brilho, cor, sei lá... ― deu de ombros, parecendo
pasma.
― Bem, agora é só o seu que parece uma vassoura de piaçava. ―
provocou-a.
― Ah, mas vou lá na Gerusa e resolvo isso, sô.
― Ainda não se curou desse sotaque fajuto?
― Cês é que não encarnaram o personagem direito. De minha parte,
sou uma atriz visceral. ― disse, afetada, jogando-se no sofá. ― Ah, já vou
avisando: bloquearam o cartão clonado. Que bosta, né? Só deu tempo de
comprar a roupa da festa do velho Manganelli. ― bufou.
― A gente já sabia que isso ia acontecer. ― desconversou e, olhando
em torno, sondou-a: ― A Maitê tá fazendo o horário normal dela, o da noite,
lá no salão country?
― Sim. E vou te dizer, ontem ela não parava de falar na vingança.
Pegou até um caderno para anotar cada passo, sabe? Li por cima que escreveu
vários pontos para ser desenvolvidos, tipo: investigação dentro das mansões,
conversa com empregados da fazenda e um monte de coisa... que esqueci. ―
sorriu e desfez o sorriso em segundos. ― Se eu não me divertir com essa
vingança, vou cair fora. Não entrei no negócio à-toa, quero adrenalina!
― Então senta direito aí que vou te contar uma coisa. ― postou-se ao
lado da irmã, mordeu o lábio inferior, sentindo-se incomodada. ― Mas
precisa me prometer que não vai abrir o bico.
― A tia Paulina tá na sala de costura... ― avisou, com um meneio de
cabeça em direção ao corredor.
― Sei, né? Dá para ouvir o barulho da máquina. E hoje é dia de faxina
da tia Joaquina... ― parou de falar, respirou fundo e foi direto ao assunto: ―
O problema mesmo é a Maitê.
― Hum... o que descobriu sobre os Manganelli que fará a nossa irmã
pegar a espingarda e matar todos eles?
Ponderou se valia a pena contar com a cumplicidade de alguém que
fazia piada de tudo.
― Passei a noite com o Roberto.
― Pelo olho vesgo de Satã! ― Rafa sentou sobre os joelhos, os olhos
arregalados e um esboço de sorriso diabólico. ― Ele fode bem?
― Não, não sei. Acha que sou o quê, hein? Uma doida irresponsável?
― impacientou-se.
― Bom, mas não faz parte da vingança pegar os caras?
― Mas esse cara em questão é da Maitê.
― Acho que tem mais coisa pra me contar. ― olhou-a de modo
significativo.
Zalon contou tudo, da compra das roupas e do iPhone, o salão de
cabeleireiro, a noite no hotel (menos sobre o pesadelo de Roberto) e, enfim, a
proposta de namoro de fachada.
― Ele quer se vingar do Ettore, o meu Ettore?
― Rafa, o Ettore é pra ser meu; o seu alvo é o Miguel. ― corrigiu-a.
―Ah, é mesmo, o cavalo velho sexy. ― riu-se. ― Bom, não vejo
problema em fingir que é namorada dele para atingir o Ettore, ficará até mais
fácil pra você.
― Também acho. Só que a Maitê não verá assim.
― Verdade.
― Não sei o que fazer.
―Sabe quando a tia disse que os planos bem-feitos tinham chance de
se foder nos detalhes e os fodidos podiam dar certos, porque eram loucos?
Ela não usou essas palavras, mas basicamente foi isso que entendi. E olha só
o que aconteceu, um dos cretinos vai te ajudar com a vingança do outro
cretino. Isso é fantástico!
― Eu sei, parece bom demais. Só que terei de me passar por namorada
do Roberto.
― Entendi perfeitamente. Você será a isca para atrair o Ettore e depois
o fisgar, e é aí que o pegaremos.
― Pegar? Rafa, até agora não sei o que faremos com eles.
― É certo que a Maitê vai torturá-los e depois suicidar os três. ―
disse, com a maior naturalidade.
― Não sou uma assassina... Aliás, nós não somos.
― Epa, fala por você. Como disse o nosso amado adorador do
BNDES, “meus gostos são muito peculiares”.
― Isso aí é a sigla de um banco. Você quis dizer BDSM, o Christian
Gray.
― Ok, gênio da lâmpada. Minha opinião é a de que vale a pena aceitar
a proposta do Roberto. Agora, talvez seja melhor esperar um pouquinho para
avisar a Maitê.
Zalon fez que não com a cabeça.
― Ele vai anunciar o nosso compromisso a qualquer momento e
depois a notícia vai se espalhar pela cidade feito rastilho de pólvora.
― Por isso mesmo. Quando chegar aos ouvidos da nossa irmã, você
dirá que enfim o plano de vingança começou a render frutos.
― Você é tão ousada, Rafa. ― disse, em tom de admiração. ― Parece
que não tem medo de nada.
― É que eu sou inconsequente, aí é fácil. ― afirmou, erguendo o
polegar para cima em sinal positivo, sorrindo com naturalidade.
Mais tarde, diante da máquina de costura, Zalon ouviu da tia Paulina:
― A Getrusa não existe, né?
― Não sei, tia, a minha amiga se chama Gerusa. ― tentou sair pela
tangente.
― Oh, graciosa. ― ela a encarou, examinando-lhe a feição. ― Usaram
produto caro no seu cabelo, duvido que sua amiga tenha dinheiro para isso.
Ela é daqui do bairro?
― Não, é do outro lado da estrada. ― respondeu, de olho na agulha
que picava o tecido enquanto o costurava com rapidez. ― Por acaso, alguma
vez menti pra senhora?
― Espero que nunca.
― Só acho que não precisa saber de tudo, é ruim para o nosso
relacionamento. ― argumentou.
― Aham, sei. Sinto cheiro de mentira no ar. ― disse a outra,
balançando a cabeça com pesar.
Mas Zalon não pôde rebater a afirmação, pois os seus peitos vibraram.
Levou um susto daqueles, machucou o dedo na agulha da máquina,
lambeu-o antes de disparar porta afora.
― Aonde vai, garota? ― a tia elevou a voz, assustada com o seu
rompante.
― PEIDAR NO CORREDOR! ― gritou de volta.
Só sabia justificar suas fugidas com apenas uma desculpa.
Foi para o avarandado e tirou o iPhone do sutiã.
― Vê se me atende mais rápido, sou um homem ocupado.
― Continua reclamando, Roberto, e eu vendo esse iBosta pro primeiro
craqueiro que encontrar na rua. ― ameaçou-o.
― Belo negócio, ainda vende para um pobre mais pobre que você.
Mas isso não é importante. Quero que compareça à fazenda para o anúncio
do nosso noivado.
― Meu Deus. ― sentiu a musculatura endurecer.
― Sei que a gente combinou um namoro, mas é melhor deixar a coisa
mais séria, assim desperta a tara interior do meu primo cretino.
― Vamos casar também? Jesus, você é o quê, hein? Um louco de
camisa de força?
Ele riu baixinho.
― O seu sexto sentido é bastante aguçado, mas não, tô reabilitado e
pronto para viver em sociedade. ― respondeu, num tom forçosamente
solene. ― Não haverá casamento, o Ettore antes disso tentará seduzi-la e
você irá me abandonar como a outra cadela fez. Só que desta vez,
apaixonado, irá perder o foco da empresa e isso será a ruína dele.
― Não sou uma cadela.
― Ainda tá remoendo essa parte? É modo de falar, não quis ofendê-
la.
― Diga de outro modo, ora. Porque não sou uma cadela. ― repetiu.
― Você não é uma cadela, Zalon.
― Obrigada pela consideração. ― rebateu, mal-humorada.
― Bem, mandarei o meu motorista uma hora antes do jantar para que
você se vista com as roupas que deixou comigo.
―Tem como esse anúncio não sair no jornal?
Precisava urgentemente falar com Maitê.
― Impossível. A assessoria de imprensa do grupo fará um breve
comunicado.
― Mas para as revistas de agronegócio, né?
― Não, minha doce noiva, as de fofoca mesmo. Não sou o seu
atorzinho de sonho erótico, mas estampo algumas capas de revista sem que
sejam de economia. ― debochou.
― Ah, sei, as de investigação criminal.
Controla a língua, Zalon!
― Vou falar apenas uma vez e espero que guarde bem fundo na sua
mente... ― ele parou como se pensasse a respeito do que diria a seguir: ― Eu
não sou o fazendeiro que acabou com a sanidade da sua mãe.
― Jamais imaginei que você fosse ele. ― mentiu, sentindo o ar faltar
nos pulmões.
― Mas às vezes parece que me odeia. O que é estranho, já que nunca
nos amamos. Portanto, não há motivo para sentimentos intensos e profundos
entre nós. Tô certo, Zalon Toledo?
― Para de me investigar.
― O detetive já foi despachado.
― Não confio em você.
― Tá certíssima, sócia. Contudo, falei a verdade, demiti o
incompetente.
― Então é o seguinte: se não der certo com o Ettore, nosso acordo será
rompido imediatamente. ― a voz soou fria, embora tremesse da cabeça aos
pés.
― Concordo plenamente com você.
Capítulo 22

Às vezes Roberto se obrigava a sair com Miguel, já que não o via


como um inimigo declarado, embora um não doaria órgão ao outro em caso
de necessidade extrema. Que morresse. Por outro lado, era como se voltasse a
conviver com o próprio pai anos atrás, quando o velho não era tão velho e,
assim, tinha mais energia, força e grosseria.
― Por que diabos marcou encontro com clientes do Rio de Janeiro no
salão country? ― resmungou Miguel, depois de sair da própria Silverado e
parar diante da fachada sofisticadamente rústica do Garotas do Campo. ―
Temos dezenas de salas para ocupar no prédio da empresa, e você quer fazer
a social nessa porra barulhenta. ― acrescentou, de mau humor.
― A sugestão partiu dos cariocas, que querem conhecer a cultura dos
caubóis.
― Então que fossem a Barretos, caralho.
― Os camaradas querem uma linhagem inteira dos genes dos nossos
cavalos árabes, milhares de dólares, e você só se preocupa em ter que sentar à
mesa e beber uns drinques?
Os dois se encaminharam à entrada do recinto. Roberto vestia o jeans
escuro e a camisa de botões, da mesma cor. O Stetson importado igual ao do
primo, que, obviamente, trajava a sua roupa de vaqueiro. Era capaz até de
nem ter tomado banho e vindo direto da lida depois de limpar uma baia
fedendo a mijo de cavalo.
O gerente do estabelecimento os levou diretamente às mesas dos
Manganelli.
Roberto pediu uísque sem gelo, e Miguel, cerveja gelada. Tirou o
chapéu da cabeça, ajeitou as mechas do cabelo com os dedos e deu uma
olhada ao redor.
― Se a gente fosse ao Rio, teríamos que marcar uma conversa de
negócios num bar em Copacabana, de frente para o mar?
Ergueu os olhos do cardápio, escolhia os petiscos, e julgou que fosse
uma piada dita de um jeito sério. Porém, de fato, Miguel o questionava com
seriedade. Ele tinha o rosto tão sério que parecia esculpido na madeira.
― Creio que sim.
― Odeio samba.
― Assim como tudo mais. ― voltou a se decidir entre a porção de
fritas com queijo derretido ou uma tábua variada de frios, picles e outras
especiarias. ― Odeia viver? Devia pensar a respeito de se matar. ―
acrescentou, como quem não queria nada, pondo o cardápio na mesa.
― É uma boa ideia. ― deu de ombros. ― Mas antes lhe daria um tiro
na coluna para vê-lo rastejar aos pés do Ettore. Nada como uma boa
humilhaçãozinha antes de encontrar a face zangada de Deus.
― Vou para o inferno, caro primo, junto com você. E, lá, com certeza,
serei o sócio majoritário da bodega.
Miguel quase sorriu, mas apenas espichou um canto da boca.
― Imagina só, você e o tio Aquino juntos na eternidade do fogo
queimando seus rabos.
― Isso, sim, seria uma bela tortura.
O outro olhou em torno e, de repente, uma garota morena, magra,
bonita e de traços delicados, aparentando uns vinte anos, parou diante da
mesa deles. Usava o avental escuro preso na cintura e no pescoço, com a
estampa do touro com várias flores miúdas e coloridas em torno dos chifres,
logo abaixo a frase: GAROTAS DO CAMPO – Salão Country e Bar.
― O que os senhores vão beber? ― a cara amarrada, a caneta entre os
dedos pousada no bloco de pedidos, o olhar analisando um e outro.
Roberto sabia que era Maitê, a cafetina e irmã de Zalon.
― Não tá vendo o meu copo cheio? ― apontou para a própria bebida.
― Desculpa, senhor, mas o patrão me mandou ficar atenta à mesa dos
donos da cidade.
Miguel fechou a cara ao responder num tom seco:
― O seu patrão é um débil mental.
Notou o arquear surpreso da sobrancelha da garçonete.
― O meu primo de cascos quis dizer que os verdadeiros donos são os
nossos pais.
― Um mais morto que o outro.
― Miguel, acho que a moça não é chegada aos fuxicos da nossa
família.
Miguel deu de ombros, apertando a boca antes de falar.
― Ela pode usar a informação para vender aos jornais. Vai faturar
mais do que trabalhando nessa bosta barulhenta.
― Ela tá aqui, sr. Manganelli. Ela não é invisível! ― disse a garota,
baixinho, porém, enfática.
Roberto sorriu, deliciando-se com o tom de desafio e provocação para
o lado do primo.
― E tá aqui ainda por quê? Chispa!
Por um momento, a moça se manteve no mesmo lugar, parecendo
travar uma árdua batalha interior. Talvez cogitasse mandar Miguel à merda
ou cuspir na cerveja que traria em seguida.
Por mais que tivesse um belo arranjo com Zalon, a fim de ajudá-lo na
conquista e derrocada de Ettore, tencionava brincar um pouquinho com
Maitê. Queria ver até onde a mocinha iria na sua tentativa de sedução.
― Não seja rude com a dama, Miguel. Parece até que tá falando com a
vaquinha mimosa que namorou mês passado...ou seria na década passada?
― Cadê os putos do Rio? Não tenho paciência para aguentar você e o
antro da caipirada de grife dessa merda de lugar. ― rosnou e, voltando-se
para a garçonete ainda de cara fechada, foi taxativo: ― Por acaso, teus pés
estão grudados no cimento ou você só se mexe do lugar depois de um tapa na
bunda?
Roberto balançou a cabeça, irritado com o comportamento estúpido do
outro. Era como Aquino, um animal na lida com as pessoas, em especial, com
as mulheres.
―Volta pra fazenda, Miguel. ― sugeriu, pacientemente. ​― Eu mesmo
converso com os empresários cariocas. Ninguém merece aguentar o seu
humor dos infernos nem mesmo o diabo em pessoa.
― Diabo em pessoa é você, torcendo para a morte rápida do próprio
pai. ― rosnou.
Notou quando Maitê se afastou, sem deixar de fitá-lo com atenção,
provavelmente memorizando a informação dada por Miguel.
Sim, meu anjo, quero meu pai morto.
Então imagina o que eu faria com quem não tem o meu sangue.
Disse tudo isso no olhar que lhe endereçou.
A caminho do banheiro, tinha de passar pelo bar, e foi ali que viu a
irmã de Zalon falando baixinho e gesticulando muito com as mãos,
demonstrando raiva. Assimilou rapidamente que o gerente não a queria
servindo a mesa deles...
Você incomodou o sr. Miguel. Será que não pode ser educada? Sabe
quantas faveladas querem o seu lugar?
Foi até ambos, exibindo o sorriso que trazia um belo arco-íris ao
ambiente próximo de uma tempestade. Aprendeu a sorrir assim quando
entendeu que se sujeitando ao pai, um dia, teria chance de derrotá-lo.
― Quero essa garota atendendo a minha mesa. ― foi taxativo, fitando
com ar superior o gerente. ― É a melhor do estabelecimento. E, se não
cuidar, a levarei para trabalhar na minha empresa. ― piscou o olho para ela.
Estranhamente a garota sorriu e foi um tipo de sorriso agradável e
charmoso.
― Muito obrigada, sr. Roberto. ― agradeceu-lhe, quase se curvando.
― Bom, Maitê, então pode voltar com o pedido dos senhores
Manganelli.
Ela, mais uma vez, lançou-lhe um longo olhar. E ele analisou a morena
elegante na sua roupa simples de garçonete. Tinha o pescoço altivo, parecia
até que nascera para ser rica. Era linda, muito linda, diferente da beleza loira
e angelical de Zalon. Porém, havia um quê nela que não soava bem, uma
fragilidade fingida, um charme falso, uma personalidade fabricada. Ao passo
que Zalon era autêntica, até palavrão falava, xingava-o inclusive.
Zalon era única.
Ao voltar do banheiro, notou que Maitê havia espichado o corpo ao
entregar a garrafa de cerveja e o copo diante de Miguel, encurvando-se para
frente e, com isso, empinando bem o traseiro para trás, na direção em que
Roberto vinha.
Trinta e sete anos no planeta davam algumas pistas sobre uma garota
que se contorcia para exibir o próprio corpo, em especial, o traseiro, para um
homem que ela sabia que chegaria à mesa a qualquer momento.
Hum, um belo traseiro... dá para se fazer coisas boas e ruins com ele.
― Você, por acaso, é uma idiota?
A voz de Miguel soou grossa feito um trovão e, no instante seguinte,
ele se pôs de pé. Entre as pernas, a mancha de cerveja parecia uma ejaculada
fora de hora.
― Desculpa, sr. Michel.
A moça errou o nome de propósito. Roberto parou antes de se achegar
à mesa, examinando a garota. Era durona, sem dúvida alguma, e isso o
fascinou.
Quando, no entanto, ela foi limpar a parte do líquido virado próximo a
Miguel, perdeu o equilíbrio e caiu de lado, direto no chão, as pernas abertas
sem elegância alguma.
Roberto adiantou-se para ajudá-la a se erguer, pegou-a na mão e a pôs
de pé. Deu para notar o vermelhidão das suas bochechas. Céus, ela tinha o
quê... uns 20, 21 anos, segundo o detetive. Era fácil então ficar constrangida
por tão pouco.
― Obrigada novamente. ― disse, agora, sem o fitar.
― Uma égua de pernas fracas!
Foi o que Miguel falou, alto o suficiente para que os clientes da mesa
ao lado caíssem na gargalhada, apoiando-o.
― Você se machucou? ― Roberto viu o sangue no joelho dela, mas
também o olhar de fúria que lançou a Miguel.
― Tira as mãos de mim. ― mandou, entredentes.
Se a ordem fosse dada por um homem, teria lhe soado como um
convite para um soco na cara. Mas era uma jovem pobre que acabava de ser
duplamente humilhada, então tudo que fez se resumiu a lhe obedecer.
No instante em que ela se pôs de pé e alinhou o avental rente ao corpo,
meio que para ganhar tempo, deu três ou quatro passos e parou diante do
fazendeiro sentado na cadeira, o cigarro na boca, o olhar verde quase azulado,
um tanto hostil, cravado no rosto dela.
― Busca outra bebida. Agora. ― mandou Miguel, com brusquidão.
Ela não se moveu.
Roberto sentou na cadeira à espera do que viria a seguir. Torceu
intimamente para que a irmã de Zalon não se acovardasse. O lance de
enfrentar quem a humilhou para, em seguida, pôr o rabo entre as pernas o
enojava. Havia feito muito isso diante de Aquino. Acumulou, portanto, tanta
raiva que previa uma bela festa no próprio coração assim que lesse a
declaração de óbito do pai.
Então a garota fez o impensável. Abaixou-se rente à cabeça de Miguel,
como se fosse se desculpar feito uma gueixa serviçal, mas a mão veio detrás
das costas e, com força, acertou-o em cheio no maxilar, a cabeça chegou a
pender para o lado, e ele quase caiu da cadeira.
Os clientes pararam imediatamente de rir. Mas Roberto explodiu uma
sonora gargalhada, dobrando meio corpo para frente.
― Sou um ser humano, sr. Manganelli!
A reação do primo não podia ser diferente. Ele se ergueu com
brusquidão e a cadeira caiu para trás. O corpo grande se projetou quase
tocando o da garota bem mais baixa e magra que ele. Os olhos claros se
escureceram acompanhados do olhar incendiado que ela lhe endereçou.
Miguel fez um sinal para o gerente. Assim que o outro chegou, com
bastante calma na sua voz grossa de trovão, determinou, taxativo:
― Demita a infeliz, ou não volto mais aqui.
― Não seja idiota, Miguel. ― Roberto intercedeu, aos risos, junto à
garota.
O primo o fitou como se desejasse vê-lo morto.
― E você, vai tomar bem no meio do seu cu! Vou para casa e, se os
cariocas vierem, mande-os à fazenda amanhã. Lugar de discutir venda de
animal é em propriedade rural e não em puteiro de gente fina.
― Por favor, senhor Manganelli, aqui não é um puteiro. Estamos há
vinte anos no mercado, temos uma reputação a zelar. ― justificou-se um dos
donos, assim que notou o rebuliço na principal ala do estabelecimento.
― Então ponha essa imunda na rua.
Foi o que ouviu do primo assim que lhe deu as costas e saiu do recinto,
batendo forte as botas no chão.
― Você tá bem? ― perguntou à Maitê, ainda sentada no chão, o rosto
desfigurado pelo choro.
― Nunca tô bem. ― pareceu admitir, a contragosto.
O gerente estava pálido e confuso, e o proprietário do Garotas do
Campo havia assumido um ar de nobre ofendido. Embora Roberto
suspeitasse que tudo aquilo era fachada. Sabia que bater de frente com o filho
de um dos fundadores da cidade, ainda mais que o imóvel onde o camarada
lucrava de modo a manter o seu padrão de alto nível fosse dos Manganelli, o
colocava em maus lençóis.
Deu-lhe um tapinha amistoso no ombro.
― Relaxa, cabra, o Miguel não é o nosso parente favorito. ― piscou o
olho, com descaso.
― Sinto muito, sr. Roberto.
Isso, acertou o caminho, curve-se a quem um dia mandará em tudo.
― Não sinta, pouco me importa. ― deu de ombros. ― Mas se demitir
a garota, aí sim, o bicho vai pegar. ― manteve o sorriso, agora, desafiador.
Saiu do salão country com a sensação de que Maitê seria forçada a
pedir demissão. Afinal, por causa dela, o chefe se meteu no meio de um
tiroteio entre os Manganelli. Se fizesse a vontade de Roberto, teria que arcar
com as consequências de um sério confronto com o Manganelli sangue
quente. Caso optasse por contrariar o filho de Aquino, testaria o imprevisível.
Roberto, portanto, era o imprevisível.
Para o bem e para o mal.
Capítulo 23

― Quase fui demitida.


Zalon suspendeu a respiração ao ver a feição pálida de Maitê.
Ela sentou e tirou os tênis e as meias.
― Você é a funcionária do mês desde que começou a trabalhar lá. ―
constatou, vendo Rafa se aproximar para ouvir a conversa.
― Contenção de despesas, só pode. Os melhores sempre se fodem
primeiro. ― deu a sua opinião a mais nova, pouco antes de morder uma
maçã.
― Um Manganelli desprezível mandou me demitir.
Zalon e Rafa se entreolharam, cúmplices.
― Me humilhou, gritou comigo, me chamou de imunda. ― ela estava
à beira do choro, um choro de raiva.
― O Roberto é um cretino. ― disse Rafa, procurando não olhar na
direção de Zalon.
― Mas quem frequenta o Garotas do Campo é o antipático do Ettore.
― concluiu, sentindo-se incomodada pela crítica a Roberto.
― Foi o cavalo velho.
― O QUÊ? O MEU ALVO? ELE TEVE A PETULÂNCIA DE TE
HUMILHAR, AQUELE ESCROTO?
No instante seguinte, Rafaela foi até o armário onde as tias guardavam
a espingarda, abriu-o e a retirou de lá. Zalon foi atrás dela, pois sabia que a
irmã entendia apenas duas linguagens: a da loucura e a da violência.
― Vai atirar no Miguel, é? E parar na cadeia por homicídio.
― Foda-se! ― atravessou a cozinha, mas não passou da sala. ― Sai da
porra da minha frente, Maitê, que vou abrir a cabeça daquele cavalo com um
balaço!
― Fica calma, ok? ― a voz de Maitê suavizou, e era essa a técnica que
usava para administrar a mente confusa e traumatizada da irmã. ― Não fui
demitida. Alguém interveio e conseguiu me manter no emprego.
Tia Paulina chegou à sala, os olhos quase saltados da cara.
― Me dá a espingarda aqui, Rafa.
― Depende.
― Depende do quê? De eu chamar uma ambulância para uma
internação psiquiátrica involuntária? ― foi dura.
― Faz isso, velha, faz!
― Rafaela, pede desculpas. ― mandou Zalon.
― Ô caralho que vou! Vem com papo de me internar por que não
consegue me controlar. Nem minha mãe é. Não é nada minha, só uma velha
caridosa que adotou três desgraçadas sem-teto.
Maitê esbofeteou a irmã e aproveitou para arrancar a arma da mão
dela.
― Passou dos limites, Rafa. ― disse, puxando-a em seguida para um
abraço.
Rafaela não chorava, não se emocionava, só demonstrava sentimento
que se limitava à raiva, à euforia e ao sarcasmo. Se fosse uma planta,
certamente não seria uma flor e sim um cacto.
― Agora precisamos conversar sobre o que eu descobri com uma
cliente. ― disse Maitê, levando a caçula de volta à sala.
― Velha, é? Não te criei, é? Sete anos você tinha... quando veio para
cá.
Zalon foi até a tia e a abraçou, confortando-a de sua mágoa. Rafa
ignorou o comentário, pois a atenção já estava voltada para Maitê.
― É sobre o cavalo que vou capar?
― Não sei. ― suspirou, resignada. ― Mas parece que dez anos atrás
um dos três estava no exterior.
― Ou seja, na época em que o advogado apareceu...
― E que a nossa mãe foi enforcada, Zalon. Isso mesmo.
― Hum... e qual dos alvos tá livre da nossa vingança?
― Por que tá tão interessada em saber, Zalon? Não vai me dizer que se
sente atraída pelo Ettore? ― Maitê não disfarçou a irritação.
― Nada disso. Se quer saber, ele trata mulher como um legítimo
machista cretino.
― Por isso irá sofrer. Penso que esse deve ser de fato capado.
― Ok, Maitê, mas ele não se sente atraído por mim. Quando me viu na
festa, fez até piadinha sobre o meu sobrenome, disse que é o nome do
perfume do Antônio da bandeira.
― O Ettore é teu e ponto final.
― Prefiro o Roberto.
― Não me irrita, Zalon.
― Voto para a Zalon pegar o Roberto. ― disse Rafa, em sua defesa.
― Isso não é uma votação!
― E todas as comidas que fiz, as roupas que costurei, o amor que dei.
― continuou tia Paulina choramingando pela casa. ― Agora não sou
ninguém. Filhos são bichos ingratos mesmo. Eu devia ter adotado três
coelhos.
― Ai, Jesus, que drama! ― reclamou Rafa, deitando no sofá, as mãos
cruzadas sobre o peito, as pernas esticadas. ― Ei, tia, vem me ver morta no
caixão!
― Vai me ver antes, Rafa. Toda azulada, fria, a alma com o Nosso
Senhor. ― a voz trêmula de emoção.
― Como é que o povo ainda acredita em Deus, hein? ― indagou Rafa,
sentando-se no sofá, o semblante sério e interrogativo. ― Falo sério. A
tecnologia tá aí pra provar que quem criou toda essa porra não foi Deus.
― No exterior, como? ― Zalon achou por bem retomar o assunto. ―
Essa sua fonte é confiável?
― Cozinheira do sr. Francesco, se aposentou faz pouco tempo, tá com
os seus oitenta e poucos anos.
― Bem, então, quem foi para o exterior quando tomaram as nossas
terras? ― Zalon sentiu-se estranhamento aflita.
― Ela não lembra.
― Meu, só tem velha nessa cidade?
― Se não morrer, no futuro você será mais uma velha na cidade.
― Tia Paulina, não tenta apelar para um coração que eu já doei para a
ciência.
― Que idiotice acabou de dizer. ― falou Zalon, balançou a cabeça
num gesto de pesar. ― Mas, me diz uma coisa, Maitê, como pode acreditar
que ela fala a verdade?
― Porque trabalhou com eles e até me passou o telefone da secretária
do Francesco, que tá na empresa há quase quarenta anos.
― Outra velha sem memória.
― Rafa, você nunca foi preconceituosa.
― Sabe que é, tia? As velhas me olham na rua como se eu fosse uma
banduta, mistura de bandida com puta, e eu tô cansada disso. Um dia desses
vou dar uma bengalada nos cornos delas. O povo tá mais perto de cair fora do
planeta do que de chegar e, ainda por cima, não evolui, não melhora.
― Suas reclamações foram anotadas no Livro da Vida. ― debochou
Zalon.
― Pode anotar no cu das velhas também, em neon, assim todo mundo
sabe que elas são malvadas. As velhinhas dos biscoitos, tricô e amor pelas
crianças e animais foram assassinadas faz décadas.
― Isso é verdade. ― admitiu Zalon. ― Outro dia, sentei sem querer
no banco do busão para idosos e quase apanhei de um sessentão que
provavelmente era fisiculturista.
― O assunto é esse, por acaso? ― interveio Maitê, com azedume ―
Vingadas e felizes, vamos então conversar sobre os perigosos senhores da
terceira idade?
― Bem feito quando eles têm hemorroidas.
― Chega, Rafa. ― reclamou Maitê e, voltando-se para Zalon,
comunicou: ― Os clientes cariocas dos Manganelli parecem que voltarão
amanhã ao salão country. E, dessa vez, o cavalo velho ficará na baia e o
príncipe desencantado acompanhará o sociopata assassino. Isso significa que,
assim que o Ettore chegar, você vai aparecer por lá e o paquerar. Entendeu,
Zalon?
Não posso paquerar o primo do meu futuro noivo.
― Acho que a Rafa faz mais o estilo do Ettore.
― Por mim, troco o alvo de boas.
― Ouvi dizer que ele gosta de loiras novinhas e meio malucas. ―
incentivou Zalon, fingindo desinteresse no caso.
― Opa, mas eu sou séria e profunda! ― gargalhou de boca bem
aberta, deu para ver até as amígdalas cor-de-rosa.
Maitê a fitou por um momento, talvez imaginando se valia a pena
juntar a irmã caçula com um cafajeste de carteirinha. Porém, algo mudou
nela, a raiva maior parecia direcionada agora para outro alvo específico. A
humilhação de Miguel, talvez. O infeliz a magoou, tocou na ferida da sua
rejeição e desamparo. Afinal, o fulano, pai de todas, a abandonou sabendo
que a filha já tinha perdido a própria mãe. Ele foi cruel.
Rafa foi até a porta a fim de ter certeza de que estavam a sós e
comentou:
― Deixa a Maitê pensar que tá nos liderando. O Roberto já te escolheu
e, no final das contas, serão os Manganelli que nos escolherão, assim como
um condenado à morte escolhe a forma preferida de execução. ― sorriu,
expressando legítimo prazer.
O mesmo sorriso que ela viu nos lábios de Roberto quando ele dizia
coisas ruins.
Capítulo 24

Na manhã do anúncio do seu noivado fajuto com Roberto, Maitê


entrou esbaforida na cozinha, parou junto à soleira da porta, os olhos
brilhando e, na mão, trazia um jornal amarelado, do tipo velho mesmo,
amassado, sabe lá de onde havia tirado aquele troço.
Depois ela soube que era o jornal da vizinha da piscina de plástico.
― Vocês nem sabem o que descobri.
― Bem, foi ajudar a tia Joaquina a faxinar a choça da vizinha biruta,
imagino que tenha encontrado um estoque de remédios tarja preta. ―
debochou Zalon.
― Acho mais fácil ter descoberto os neurônios afundados na piscina
da demente. ― completou Rafa, sem qualquer compaixão, sorrindo inclusive.
― Aqui, nesse bendito jornal local, tem uma discreta reportagem sobre
a viagem de um dos Manganelli ao exterior. Não entendi direito o motivo,
mas parece que foi coisa de investidor, banqueiro, sei lá.
― Miguel-cavalo-da-Silva! Tomara que na volta o avião caia. ― Rafa
rogou praga.
― A data da notícia é de dez anos atrás e, se prestar atenção no
cabeçalho da página, tem até o dia e o mês... ― ela pôs a mão na boca e
sentou na cadeira mais próxima, pálida pra diabo.
Zalon se preocupou.
― Isso quer dizer que quem viajou para... para onde mesmo?
― Estados Unidos. ― informou, num balbucio. ― É, sim, o que você
tá pensando.
― MEU DEUS! QUEM ESTAVA NESSA VIAGEM NÃO TEM
NADA A VER COM O QUE ACONTECEU COM A MARIANE? ― Rafa
berrou.
Tia Joaquina entrou correndo em casa, os óculos escuros gigantes, a
calça jeans pantalona e a bata indiana.
― Ouvi tudo!
― Depois desse grito, até o papa ouviu. ― considerou Zalon,
balançando a cabeça, contrariada.
― O cabra viajou por duas semanas... ― começou Maitê ― e, antes
disso, deve ter se preparado para a viagem de negócios. É assim que os CEOs
funcionam, são organizados, criteriosos e não admitem falhas. ― sorriu sem
jeito ao receber os olhares intrigados das irmãs. ― Bem, é o que escuto no
salão country. Quase todo happy hour é lá. E, se vocês pensam que eles vão
para dançar e relaxar, uma ova. Os caras abrem os laptops e continuam a
trabalhar, só que à base de uísque.
― Pelo amor de Deus, quem deixará de ser um alvo?
Zalon nem se deu ao trabalho de olhar para o lado, sabia que
encontraria o olhar debochado da irmã mais nova.
― Aposto minhas fichas no Ettore.
― Cala a boca, Rafa! ― Zalon exclamou num impulso.
― Não importa. ― Maitê dobrou o jornal ao meio como se tivesse
acabado de ter uma ideia que a desmotivou por completo. ― Isso não
significa nada. O cabra pode ter mandado o advogado fazer o serviço, ou
seja, contratar os capangas enquanto usava a viagem de negócios como álibi.
― Exatamente, filha. ― disse a tia Paulina. ― Pra ver como essa
família é do mal.
O estômago de Zalon se comprimiu.
― Mais do que nunca, vou pegar firme com o Roberto. ― afirmou
Maitê. ​― Ele até que foi civilizado e me paquerou. Vou investir nele pronta
para entrar naquela mansão dos infernos, vasculhar tudo até descobrir a
conexão entre ele e o advogado... Ou talvez eu encontre o contrato comercial
de posse da nossa antiga fazenda.
― Não pode se aproximar do Roberto.
― E por que não, Zalon? ― Maitê estreitou as sobrancelhas,
desconfiada.
― Posso responder por ela. ― disse tia Joaquina, olhando de uma
para outra com bastante atenção. ― Se lesse o jornal local do dia e mais vinte
revistas de fofocas, vulgo de celebridades, e não um jornaleco de uma década
atrás, saberia que Roberto Manganelli anunciará em breve o seu noivado.
― Não acredito. ― a boca de Maitê ficou branca e ressecada.
― Se apaixonou por ele, foi? ― Rafa debochou.
― Pelo amor de Deus, faz mais uma pergunta desse tipo e eu te
arranco as orelhas fora e dou para os porcos comerem. ― afirmou, num tom
ameaçador.
― E depois a louca sou eu. ― deu de ombros, se voltando para
Zalon. ― Minhas orelhas são pequenas, de que adiantaria? Só se fosse para
alimentar porcos da índia. ― deu de ombros.
― O Roberto é meu. Somente eu sei como lidar com ele! O perfil
psicológico é compatível com as minhas intenções, é um lobo em pele de
cordeiro, sutil, educado quase amigável, tem aquele charme de psicopata.
E o corpo definido com um troféu volumoso entre as coxas.
Meu Deus. Zalon sentia que começava a adoecer da cabeça. Pois, a
cada característica mencionada, ela mais se interessava pelo seu futuro noivo.
― E quem é a futura enforcada que se casará com o maldito filho do
Aquino?
A tia deitou o jornal na mesa, lançou um longo olhar para Zalon e saiu
sem se voltar.
Ou seja, apoio moral nem pensar.
Fechou os olhos à espera da explosão da mina terrestre plantada no
meio do ambiente. Maitê folheou o jornal. O silêncio que se seguiu foi tão
pesado que lhe doeu a alma. Talvez dali a pouco lhe doesse também o meio
da cara. Irritada, a irmã arremessaria algum objeto pontudo.
Mas não foi o que aconteceu.
― Então conseguiu seduzir o pior deles. ― não lhe pareceu uma
pergunta e sim mera constatação com o acréscimo de um tom de censura.
Baixou a cabeça, envergonhada, por ter roubado no plano de vingança.
― Sei que queria o Roberto, Maitê. ― falou, baixinho, tensa.
― Quero mesmo é destruir todos, inclusive os velhos. Pôr fogo na
fazenda, entregá-los à Receita Federal, acabar com a reputação deles. A cada
dia tenho mais ideias criativas para esmagá-los. ― ela parou de falar e pôs os
dois braços nos ombros da irmã. ― Mas se você conseguiu um atalho,
aproveite-o. Só não esqueça que ele é dissimulado, um camaleão, se passa
por amigo atencioso, leal e confidente...Mas, no fundo, é filho de um
assassino de índios e de uma doente mental. Acha mesmo que tem de algo
bom naquele homem que não esconde a vontade de assumir o grupo
empresarial, ainda que seja por cima do cadáver do pai?
Diabos. Ela estava completamente certa.
― Ele vai apenas me ajudar a conquistar o Ettore.
― E por quê?
― Maitê, eles se odeiam.
Rafa se aproximou e as abraçou por cima dos ombros.
― Então usaremos o Roberto para atingir o Ettore e, depois, o Ettore
nos ajudará a foder o cavalo velho. No final das contas, o Roberto será
destruído mesmo será pela Zalon. ― sorriu, com ar confiante.
A confiança rasa de seus 17 anos.
―Agora me diz, Maitê, quem tava no exterior à época da morte da
mãe?
Rafa se voltou para as irmãs, os olhos atentos nem piscavam. A voz de
Maitê falhou quando revelou o nome:
― Roberto.
Capítulo 25

Ettore não comunicava publicamente as festas que realizava na sua


mansão.
A questão era que ele não podia expor aos patriarcas dos Manganelli,
que os milionários exóticos, extravagantes e pervertidos das metrópoles
desciam dos seus jatinhos particulares no aeroporto da fazenda direto para a
mansão que oferecia tudo em excesso. Exatamente tudo. Festas à fantasia,
orgias e sadomasoquismo.
Ettore era um workaholic. Mas também um hedonista.
O que o tornava uma presa fácil de seus instintos mais primários.
Roberto aproveitou a oportunidade para levar Zalon no seu vestido de
seda prateado, curto até o meio das coxas, o cabelo solto, a pouca maquiagem
para realçar também a pouca idade e um enorme anel de brilhante que lhe
custou um milhão de reais. Uma safira de doze quilates e catorze diamantes.
Se a futura sra. Manganelli fizesse uma pequena pesquisa na internet,
descobriria que Kate Middleton tinha um igual.
Mas tudo que ouviu foram xingamentos de uma garota que usava
calculadora ao fazer as compras no supermercado.
― Acha que me impressiona usar uma porcaria de anel? Feio pra
caramba, por sinal! O Ettore vai olhar para o meu decote e não para o meu
dedo.
― Não seja ridícula. O que importa é o investimento que faço em você
e isso significa que, para ele, você é importante para mim. ― disse, com
frieza, tentando enfiar a porra do anel no dedo excessivo magro dela. ―
Diabos, não tem versão infantil.
― Não quero usar isso, vão me assaltar, arrancar o meu dedo, me
mutilar.
― Acha mesmo que, como minha futura mulher, andará por aí de
Uber?
― O povo do busão também não é confiável.
Roberto pegou-a debaixo do queixo e a fez fitá-lo.
― Motorista particular, meu anjo. Nada menos que isso.
―Fodeu.
― Se foder com o motorista, será despachada da minha vida e da
cidade. ― falou, sério.
― Não, não vou foder com o cabra, digo... a Maitê...
― Estranho, não disse pra ela que você me levou no papo, me laçou os
tornozelos, me conquistou, seduziu, fez o diabo, sou todo seu? ― sarcástico e
cínico.
Charmoso até o último fio de cabelo loiro.
― Sim, fiz tudo isso pra você me ajudar a conquistar o Ettore. ―
explicou ― Ninguém te quer como cunhado, sossega o facho.
― Partiu o meu coração em mil pedaços.
― Se é que tem coração.
― Zalon, quando vi a sua irmã, linda pra caralho, tive certeza absoluta
de que você tem mais chance de me conquistar do que ela.
Encarou-o tentando encontrar vestígio de deboche.
― Pouco me importa. O Ettore é tesudo e você, não. ― mentiu.
Ele riu alto.
― Se gosta de ser amarrada e chicoteada. ― deu de ombros.
Roberto se pôs atrás dela e lhe prendeu uma correntinha de ouro no
pescoço.
― Outro presentinho, minha querida noiva.
― Chicoteada?
― Hum, se interessou mais no chicote do que na joia...
― MEU DEUS, VOCÊS TÊM UM CATIVEIRO?
Roberto não pôde conter o impulso de recuar diante do susto que levou
quando Zalon inesperadamente gritou.
― Um celeiro.
― E escravizam as pessoas lá?
― Sexualmente. Quero dizer, mulheres, claro.
― Como assim?
― Ettore é um dom. ― disse, preparando-se para sair da própria suíte.
― Dom? Dom de quê? ― Zalon pareceu confusa, até sentou na
beirada da cama, olhando pensativa para o chão. ― Tia Joaquina tem o dom
de saber quando uma patroa vai ou não pagar a faxina. Aí ela rouba em
objetos o valor que seria cobrado e nunca mais volta, além de contar para a
associação das faxineiras que a tal madame é 171. A tia Paulina tem o dom
de prever quando chove, diz que o tornozelo doí como se tivesse levado um
chute do Pelé. E o meu dom é o de me foder. Desde que nasci, só sei me
foder...
Segurando a vontade de rir, ele sentou ao lado dela. Com a paciência
de um monge e a estudada perspicácia de um pervertido, indagou:
― E já fodeu muito?
― Não. Pra falar a verdade... o povo mais me fode do que eu fodo os
outros.
― Bem, vou lhe perguntar de outra forma. ― ela o fitou com seus
olhos com rímel duro pra cacete, e ele esclareceu: ― Já fez sexo com
alguém?
― Isso não te interessa.
― Preciso saber. O Ettore ficará maluco de tesão se souber que tenho
uma noiva virgem. É certo que ficará obcecado em tê-la como sua submissa.
― Nunca.
― Já disse, ele é um dom.
― Dom de quê, Roberto? ― impacientou-se.
― Ah... ― começou a falar, demonstrando tédio, ― essas coisas de
sadomasoquismo, o cabra manda e a cabrita obedece, entende? Rola
brinquedinhos sexuais, palmadas, relhos na bundinha, um pouco de violência,
nada para machucar e sim para gozar, extrair o máximo do orgasmo. A
mulherada vicia, isso é certo.
Ela o fitou por um momento, analisando a feição quase sorridente, de
um malandro sorridente, por assim dizer.
―E você? Gosta disso, de bater em mulher?
― Não confunda sadomasoquismo com relacionamento abusivo.
― Gosta ou não?
― O que importa? A gente não vai foder, Zalon. ― foi taxativo.
― Por acaso tô pedindo por isso? Me vê de joelhos com a cara enfiada
ente as suas coxas? ― ficou com raiva, abriu a boca, só saiu besteira.
― Me deixou excitado. ― falou, num a voz rouca, olhando-a
fixamente.
― Então manda o Ettore chicotear a sua bunda, ora.
― Não sou submisso nem ao meu pai. ― começou, mas, por algum
motivo, pareceu mudar de ideia. ― Já fui, se quer saber, deixei o Aquino
pisar no meu lombo. Mas eu tinha um belo propósito para me sujeitar a isso.
― A participação na empresa.
― Sim.
― E as terras que faltavam para fechar o feudo em metade do domínio
de Santa Bárbara. ― foi na jugular, sem piscar, firmando seus solhos nos
dele.
― Isso nunca me interessou.
― E a quem interessaria?
― Jamais saberá, Zalon. Essa é uma das estratégias que tenho para te
controlar. ― foi duro.
― Já me tem nas suas mãos, vou acabar com o Ettore.
― Se conseguir, eu dou um jeito de lhe dar o nome do fazendeiro que
comprou as terras dos Toledo.
― Roberto MANGANELLI.
― Como?
― É esse o nome dele. ― afirmou, com menosprezo, mal abrindo a
boca para falar.
Roberto esboçou um sorriso cruel.
― Eu jamais faria negócio com um cretino que abandonou a família.
― respondeu, com legítimo desprezo.
― Onde estava dez anos atrás? ― ela o questionou.
― Fodendo com a sua mãe.
Ela o esbofeteou novamente, e ele a empurrou contra o colchão da
cama, montou sobre ela e desceu a cabeça até a sua face. Os olhos chispavam
de raiva e os músculos da face forçavam debaixo da pele.
― Não se meta no meu passado, vadiazinha.
― Só fiz uma pergunta. ― tentou recuar.
― Não, é a segunda vez que me agride fisicamente e eu não admito
isso. ― afirmou, entredentes.
― Desculpa, errei. Nunca bati em ninguém, nem na Rafa. ―justificou-
se.
Ele baixou a cabeça e a beijou nos lábios. Um toque sensual, devagar,
como que aproveitando a delicadeza de sua carne, o gosto e a perícia do seu
beijo. Depois lhe entreabriu os lábios e a penetrou com a língua até encontrar
a dela e a cercar, chupá-la enquanto as mãos a firmavam nas costas e nuca.
Gostou tanto do beijo, sentiu tanta vontade de saboreá-lo que o
enrodilhou em torno do pescoço com os braços, puxando-a para si e,
instintivamente, afastou as pernas meio que se oferecendo sexualmente.
Roberto se afastou para fitá-la. O olhar frio como de quem sabe o seus
limites e até onde ir.
―Precisa se arrumar e atuar como minha noiva. Finja que tá
apaixonada por mim, estarei no bar perto da piscina.
Para ele, era nítido que o beijo nada significou.
― Vai me apresentar a todos como sua noiva? Tenho certeza de que o
resto da família não estará.
― Almoçaremos amanhã com o tio Francesco, o Miguel e a vadia da
minha madrasta. Hoje será apenas uma apresentaçãozinha ao garanhão
italiano. ― fez troça.
― E se ele me beijar?
― Dê corda e o beije de volta.
―E se ele quiser foder?
―Dê corda... e o estrangule. ― falou, sério.
― Hahaha, se vou me meter em encrenca por causa de ricos, tô fodida.
― Zalon, existe um técnica erótica de excitação que é através da
asfixia. Portanto, não banque a lerda. ― criticou-a.
― Então posso foder com o seu primo?
Ele já estava de pé, impecável no terno escuro, seguro de si, o homem
dono de suas pegadas.
― Se o fizer, ele a deixará hoje mesmo. Entenda, minha doçura, que o
seu trunfo é a sua boceta... ou melhor, que a sua boceta agora é minha. ―
sorriu, cínico, piscando o olho pra ela.
Antes que ele chegasse à porta, viu-se dizendo:
― Não sei quem é o pior dos dois.
― Três. ― respondeu, por cima do ombro. ― O Miguel também é
sádico, maluco e ambicioso. Avise as garotinhas do campo, suas ingênuas
irmãs, para tomarem cuidado com eles.
―Bando de mimados prepotentes. ― disse, com menosprezo. Mas
quando ele se virou para encará-la, ela sorriu: ― Nem beijar direito sabe.
Ele também sorriu.
― Bela cartada.
― Sim, uma bela cartada para uma boceta de valor. ― afastou as
pernas a fim de mostrar o fundilho da calcinha. ― E o seu pau, my friend,
vale quanto? ― desafiou sem sorrir.
Notou em Roberto, mais uma vez, aquele seu típico brilho
maquiavélico, o azul parecia chamuscar.
― Tá tentando me seduzir, lebre assustada?
― Não.
― Quem você pensa que é para me desafiar? ― perguntou, com ar de
troça.
― Apenas uma leoa acuada. ― arqueou a sobrancelha, confrontando-
o.
Ele desviou seus olhos dos olhos dela e a encarou entre as pernas sem
intenção de ser discreto.
―Para sua informação... ― ele começou a falar, voltando a sentar na
beirada da cama, tocando com a ponta dos dedos na coxa feminina. ― você
será minha antes do Ettore.
― Não serei do Ettore.
― O quê? ― ele parou de tocá-la, parecendo visivelmente confuso. ―
É o nosso acordo.
― Não vou foder com dois cretinos.
Roberto baixou a cabeça e era nítido que escondia uma risada baixa.
Ergueu-a novamente e a encarou.
― Então invista no Ettore. Você não tem futuro comigo.
Rafa era doida. Diagnosticada por um psiquiatra. Ninguém lembrava o
nome do transtorno, mas era possível que fosse de origem genética. Maitê era
normal. Portanto, o lado problemático era o materno. Ao passo que Zalon,
irmã de sangue da paciente não medicada, também tinha chance de ser
portadora de algum ou alguns transtornos, maluquices, piração, bizarrices, o
que fosse.
Pois ela sentou na cama, deslizou a calcinha até os tornozelos e ergueu
a barra do vestido à altura da cintura, exibindo o sexo depilado.
Enfrentou o olhar sério e quase zangado de Roberto. Quase zangado,
uma vez que ele parecia mais era furiosamente excitado.
― Eu. Quero. Você. ― falou bem devagar, olhos nos olhos, de igual
para igual.
― Não joga comigo, menininha. ― disse, entredentes.
― Engano e destruo o Ettore...
― Claro que sim. ― a voz rouca, os olhos lhe percorrendo o corpo, as
narinas dilatadas.
― Mas quero o teu, o teu pau bem fundo na minha boceta. Agora.
Capítulo 26

― Você é uma vadia muito barata e fácil de manipular, por isso a


escolhi para o meu primo. ― o menosprezo todo ali.
Ela deitou para trás, na cama, e fitou o teto decorado, puxou pra cima
todo o vestido e exibiu os pequenos seios, os mamilos rosados, a pele sedosa
com sardas e delicados sinais de nascença, até mesmo na ponta de um dos
bicos intumescidos.
Sentiu o ar refrescante entrar pela janela e lambê-la na pele.
Arrepiou.
A atenção voltada para o detalhe em gesso no canto de noventa graus
da parede acima da imensa cama, que se assemelhava a pedaços de nuvens
endurecidos, adornos como seios mutilados, pés sem dedos, mas podia ser
tudo fruto de sua imaginação, pois acabava de dar um passo além da linha
vermelha que dividia a estrada reta que levava à beira do penhasco. Talvez os
adornos fossem o céu do penhasco.
― Não me sinto sua o suficiente para seduzir o seu primo. ― a voz
saiu rouca, os olhos ainda no teto, via-se bailando nua entre um Manganelli e
outro. ― Talvez eu tenha que experimentar Miguel também... e depois
Francesco, o mais experiente. Me excita ter um homem de quase 70 anos me
comendo de quatro, me excita, Roberto, me excita muito.
Ele se ajoelhou subitamente na cama, a raiva estampada na feição
constrita.
― O acordo é eu lhe entregar o Ettore e nada mais. ― foi mordaz. ―
Vista-se e cumpra o seu papel de vigarista que é.
― Sim, senhor. ― respondeu, sem se mexer, apenas o fitando com um
leve sorriso debochado.
― Levanta da cama, Zalon. ― mandou, sem elevar a voz.
― Então para de olhar para os meus seios.
― São bonitos, apenas isso. Peito bonito é o que não falta por aí. ―
deu de ombros.
― Mas os meus são únicos, porque são os meus peitos, Roberrrto. ―
forçou o sotaque italiano, fitando-o entre as pálpebras semicerradas.
― Guarda a sua sedução barata para o dominador que irá chicoteá-la
presa numa coluna do celeiro. ― declarou com desprezo, mas ao mesmo
tempo, raiva.
― E você assistirá ao meu açoite? ― ronronou, deitando-se de bruços,
mostrando o delicado traseiro.
Ouviu-o respirar forte, como se segurasse o ar nos pulmões. Ela era
inexperiente, mas intuía que o autocontrole daquele homem estava por um
fio.
― Gostará de ver as cicatrizes nas minhas costas como as suas?
Seremos iguais, Roberrto.
―Não sabe o que fala. ― ele sussurrou.
Ele tentou se erguer da cama, mas ela foi mais ágil e o puxou pelo
Rolex de ouro.
― Me dê um último beijo.
Sim, me beija como não beijou a sua mãe antes de ela partir para
sempre e te deixar aos leões.
A feição masculina se endureceu a ponto de ela se encolher num canto,
temendo um possível espancamento. Ele parecia paralisado, fitando-a com o
olhar maligno.
Quando enfim sentou novamente ao lado dela, à beira da cama, puxou-
a por trás pelos cabelos. Ela gemeu. Ele puxou com mais força até fazê-la
deitar cabeça nas coxas dele.
― Tá me machucando. ― gemeu, as lágrimas nos olhos.
A mão em garra a tocou debaixo do maxilar, e ela teve a impressão de
que teria a mandíbula deslocada. Mas tudo que Roberto fez se resumiu a
baixar a cabeça e, a mão lhe firmando a face, beijou-a com paixão.
A língua a penetrou e sugou a dela, os lábios se chocaram num beijo
desesperado e violento. Sentiu o gosto do sangue e a quentura do prazer que a
invadiu feito um tornado de fogo.
Puxou-o pela gola da camisa para aprofundar o beijo, queria senti-lo
todo, a força, a imponência, o quanto lhe era inacessível e, ao mesmo tempo,
humano, cruamente humano.
A mão masculina apossou-se do delicado seio, a ponta do polegar
estimulou o bico até endurecê-lo. Ela gemeu e deslizou a mão para a abertura
da calça social. Mas ele se esquivou e a empurrou para o meio da cama. No
instante seguinte, abriu-lhe as pernas, as mãos em cada tornozelo e encaixou-
se entre elas. Chupou-a na boceta, lambeu os lábios da vagina, mordiscou-os
levemente. Roçou a ponta do nariz e a boca no monte de vênus e chupou o
períneo.
Apertou a boca para não gritar. Pois, por mais que Roberto a levasse
para o auge do orgasmo, tencionava ser má, não demonstrar que ele lhe dava
prazer, simular que era pouco, nada, um embuste, um workaholic mau de
cama, um caubói digno de ser expulso do clube dos caubóis viris.
― É a sua primeira vez? ― inesperadamente ele se afastou, ergueu a
cabeça, a boca úmida do sumo do sexo dela.
― Não.
― Por que mentiu?
― Foi o seu narcisismo que concluiu. ― acusou, ouvindo o som
metálico do zíper da calça ser abaixado
― Saiba que se foder com Ettore, vou te matar. ― afirmou, sério.
― Isso se antes você não morrer envenenado por mim. ― rebateu,
inclinando a cabeça para vê-lo descer a calça até os joelhos. ― Não se dispa
por completo. Quero foder com um homem rico vestindo roupa de rico.
Quanto custa?
― A sua trepada?
― Não, quanto custa a sua roupa?
― Talvez uns cinco mil, sou econômico.
― E você, quanto você custa? ― insistiu.
Ele sorriu, parecendo diabolicamente encantado.
― Valho milhões, meu anjo.
― Um homem que vale milhões me fodendo. Eu, a que não tem onde
cair morta.
Os olhos dele se escureceram, a feição se suavizou e, no lugar de fodê-
la com força, puxou-a para si, abraçando-a.
― Se repetir essa merda mais uma vez...
― O que fará, Manganelli? ― perguntou, cheirando o delicioso
perfume do terno dele. ― Me enforcará?
― Não sei o que farei. ― admitiu.
Virou-a de costas, puxou-a pelos braços no alto da cabeça dela e
afundou o pau na boceta molhada que se abriu para recebê-lo todo, até o
fundo, duro, forte, dominador.
Ela deixou o ar escapar numa golfada grossa e era como se toda sua
respiração se esvaísse.
― Parece que tá me esfaqueando... ― gemeu.
― Tô te matando, como quer, só que bem devagar. ― ele sustentou os
próprios braços, ao lado do corpo dela, para a encarar. ― Agora o seu passe
se valorizou para o meu primo.
Ela enlaçou-o pela cintura com as pernas.
― A minha vida sexual não é da sua conta nem da conta do seu
maldito primo. ― lambeu os lábios secos com a língua e, imediatamente, foi
beijada.
Ele embaralhou os dedos por entre os cabelos longos dela, enquanto
deslocava bem devagar o quadril, enterrando-se fundo nela para, em seguida,
quase se retirar de todo.
Era como uma tortura, do tipo quente e molhada, enlouquecedora, e
Zalon simplesmente fazia parte dela, jogava com ele sem deixar de aproveitar
cada segundo de prazer.
Ela tinha esse direito, o de sentir prazer como uma fêmea normal nos braços
de um macho que tudo sabia sobre lhe despertar sensações abrasadoras.
―Não é virgem, mas é inexperiente. ― ele murmurou, numa voz
arrastada e rouca, sem deixar de aumentar a intensidade do vaivém sexual.
― Então me ensina tudo. ― pediu. ― Tudo que você sabe e faz de
melhor. ― gemeu, tendo a orelha mordiscada pelos dentes frontais dele que,
em seguida, chuparam o lóbulo.
Sentiu que estava prestes a gozar. Não queria que terminasse logo.
Ansiava por mais tempo com ele, o cheiro do terno, do pescoço... Vê-lo
trepando completamente vestido de executivo bem-comportado, embora
tivesse o olhar de alguém nada confiável.
Ele diminuiu o ritmo e deslizou os lábios entreabertos pelo contorno do
pescoço dela. Lambeu o ombro nu e depois chupou com força o bico do seio.
Doeu e foi bom.
― Seu bruto!
Ele afundou o pau com violência.
― Machuquei a putinha?
Queria esbofeteá-lo para arrancar uma reação agressiva dele, porque o
prazer que sentia parecia pedir ainda mais prazer. Estava zonza, entorpecida.
A cabeça bateu contra a cabeceira acolchoada diante das duras estocadas do
pau de Roberto.
― Foi delicioso. ― arfou, soltando a gravata dele para, a seguir,
erguer meio corpo e mordê-lo no pescoço. ― Doeu... mio Ettore?
Não confundiu os nomes, o fez de propósito.
Roberto levou a mão em garra ao pescoço dela como se lhe fosse
estrangular. Apertou um pouco, o suficiente para ela se arrepender de tê-lo
provocado
― Vou passar a noite com a advogada do meu pai e tenho certeza
absoluta de que não direi o seu nome quando eu gozar dentro do rabo dela. ―
afirmou, olhando-a com menosprezo.
― Faça isso... ― começou a falar, sentindo-o deslizar o pau no
clitóris, masturbando-o, a cada penetração agressiva. ― tenta trair a sua
noiva e terá novamente um par de chifres, corno italiano.
Ele apertou o seu pescoço, e ela tossiu. E, assim que o fez, Zalon
encharcou-se de gozo, gritando selvagemente.
Roberto a soltou e a virou de bruços. Afastou-lhe as pernas e a
penetrou, por trás, na boceta, bombeando até ele próprio gozar.
Zalon não conseguiu se mexer.
O medo e o prazer a paralisaram.
Ele tentou matá-la, sim!
Ele era o mal, o mal encarnado. O mal bem-vestido inclusive. Inclinou
a cabeça para o lado e o viu puxar a calça e afivelar o cinto. A respiração
ofegante, o cabelo desgrenhado, as mãos trêmulas.
Cada terminal nervoso do seu corpo tremia, pulsava, latejava. Tinha
acabado de atingir o orgasmo e desejava mais. Sentiu-se plena e insatisfeita.
Precisava passar a noite com ele, fodendo com ele, temendo pela própria vida
ao lado dele.
Deus. Por favor. Não me deixa ficar louca.
Roberto retornou do banheiro da suíte, penteado, perfumado e alinhado
ao seu estilo CEO de Dallas. O olhar zombeteiro sobre o seu corpo ainda nu
atirado na cama, de bruços.
― Se pensa que vai engravidar de mim, pode tirar esse sorrisinho
sacana da cara. ― falou, parecendo de bom humor.
Merda! Ele não usou preservativo.
― Pílula do dia seguinte. ― pensou rápido. ―Vou engravidar é do
Ettore. ― mentiu.
― Impossível. ― disse, imperturbável.
― Vou conquistar o Ettore, casar com ele e ter filhos...
― Hum, sim, tudo isso. ― ele fechou os dois botões do terno e
comentou serenamente. ― Mas ele detesta crianças, assim como o Miguel.
― Bom, sinto lhe dizer então... Mas talvez eu não compre a pílula do
dia seguinte e, como tô no meu período fértil, você será papai. ― sorriu ao
vê-lo esboçar um ar surpreso. ― Mas, como me casarei o quanto antes com o
Ettore, o idiota achará que o filho é dele.
― Preciso lhe fazer uma pergunta, cara sócia.
―Já sei o que é, a trepada foi sim parte dos negócios. Não teve
conotação romântica. ― declarou, dando de ombros.
― Você, por acaso, sofre de algum tipo de demência?
Ela o encarou de cara amarrada e notou que ele estava sério.
― Não.
― Por acaso, não lhe passou pela cabeça que fodi sem preservativo por
um motivo em especial?
― Sim, tava louco de tesão, perdeu a cabeça e acha que camisinha
atrapalha a coisa.
Ele riu alto.
― Minha lebre ingênua.
― Vou tacar a minha sandália na sua cabeça se me chamar de lebre de
novo! ― rosnou.
Roberto foi até ela, sentou ao seu lado, fez-lhe um carinho no cabelo e,
de um modo quase paternal, falou:
― Uma semente ruim pode dar belos frutos, como um dia disse ao
meu pai. Mas eu menti. Essa semente ruim aqui jamais arriscará deixar o seu
legado na forma humana.
― Já sei, odeia criança.
― Não, eu gosto muito de crianças. ― vendo-a franzir o cenho,
completou: ― Mas fiz vasectomia.
― Você nem tem filhos pra fazer vasectomia! Como um médico
sensato aceitou...
― Dinheiro e poder, Zalon. ― piscou o olho pra ela.
Olhou fundo nos olhos dele e, vendo a imensidão de tristeza e
amargura, perguntou num fiapo de voz:
― E se um dia se apaixonar por uma mulher e quiser ter filhos com
ela?
― Não tenho material emocional para me apaixonar.
― Você se apaixonou pela mulher que o traiu.
― Pois é, foi assim que descobri que não tenho material emocional
para romances. ― foi cínico.
― Mas, porra, se aparecer uma fugitiva do hospício que te ame e
queira ter filho com você... Bem, desculpa a sinceridade, mas olha a merda
que você fez!
― Diavolo.
― Aham, vai se cagar, como é que um cara amarra o saco antes de ter
filho!
― Diavolo, por que tá irritada?
Ele ria. Ele ria dela, o desgraçado.
― Porque tô com pena de você, ora. E da coitada que te amar e quiser
ter bebezinhos com sua cara. Você é bonito, mesmo antipático, arrogante,
estúpido, cínico e com tendência ao homicídio.
―Homicídio? ― ele arqueou a sobrancelha como se acabasse de ouvir
algo absurdo.
― Quase me estrangulou há pouco. ― reclamou.
― Porque notei que gosta de sexo violento. ― respondeu,
calmamente, encarando-a sem desviar. ― Tô errado?
Zalon nem sabia se gostava de sexo até aquela noite.
Sim, agora ela gostava de sexo. E muito.
― Não tenho problema mental.
Imagina só, vou dizer que gosto de sexo violento e o cara vai me
enforcar numa árvore, como o outro Manganelli fez.
― Isso se chama fetiche, fantasia e não problema mental. ― ele bateu
no colchão, chamando-a de volta para junto de si. ― Você me provocou o
tempo inteiro para que eu perdesse a paciência e fosse agressivo. Fiz o seu
jogo. E gostei muito dele. Sou assim também, intenso. Asfixia erótica é uma
prática que não gosto de fazer, assim como o sadomasoquismo. Só que você é
chegada nisso.
―Pois é, sou perfeita para o Ettore.
― Hum... me provocando para me induzir à raiva e fodê-la de novo.
― afirmou, um meio sorriso o deixou mais lindo. ― Que se dane a festa e a
apresentação ao meu primo.
Ele foi até a porta e a trancou.
Capítulo 27

Fragrância de jasmim com notas de menta. Uma delicada linha de


espuma cheirosa. Antes de chegar à metade do volume de água da banheira
de mármore, Roberto desligou o registro.
O tamanho do banheiro equivalia ao da sala da casa das tias. Duas
colunas de pedras trabalhadas sustentavam o ambiente, dividindo-o, de um
lado, a pia dupla com balcão e o imenso boxe com a ducha. Do outro, o
jardim de inverno como paisagem de fundo da banheira que ficava a três
degraus do piso.
Lustre de candelabros sobre a banheira e, na parede, um conjunto de
janelas. Do terceiro andar e abertas, propiciavam privacidade. Papel de
parede numa textura que puxava para o dourado opaco quase bege.
Roberto a levou pela mão até o lugar e a esperou absorver o
deslumbramento diante do luxo que ele sabia que ela não estava acostumada.
― Porra, até o banheiro é fresco. ― resmungou, incrédula e, de certo
modo, intimidada.
― Sofisticado, quis dizer. ― sussurrou à orelha, enquanto lhe
acariciava a nádega com a ponta dos dedos.
Uma carícia gostosa, suave e erótica.
Voltou-se para ele, que ainda estava vestido no terno, e falou:
― Perdeu a vontade de me apresentar ao Ettore?
― Pra falar a verdade, você me falou algo que me fez pensar. ―
juntou as mãos, levando os dedos aos lábios num gesto contemplativo. ―
Tem razão, sabe? Para que ele a deseje, você precisa se sentir pertencendo a
mim. E eu preciso me importar com você. É tudo uma questão de psicologia
comportamental. ― acrescentou, com frieza.
― Em suma, você quer foder comigo.
― Isso mesmo.
― Porque te deixo excitado.
― Acertou de novo.
― E tá inventando uma desculpa idiota, porque teme que o Ettore me
coma e você não.
―Hum... tenho uma leve impressão de que já te comi, não é mesmo?
― gracejou e, em seguida, pegou-a em cheio na boceta, apertando-a com
posse. ― Deliciosa, por sinal.
Esse hômi tá bagunçando os meus pensamentos. Me perdoa, Maitê,
mas fica com o alvo um, três, quatro, duzentos, foda-se, o dois é meu.
Sentiu-o enterrar o dedo médio fundo nela, a outra mão a pegou pela
nuca e a fez encará-lo.
― Quero que deixe o Ettore de joelhos. Entendeu? ― tirou e
recolocou o dedo na vagina e depois o levou aos lábios, provando o fluido
dela. ― Você é toda gostosa. ― empurrou-a contra a parede e a masturbou
no clitóris. ― E depois acaba com ele, pisa, sapateia enquanto eu penso num
plano para comprar os vinte por cento de suas ações.
Ela se agarrou nos ombros dele, as pernas bambas, o fogo queimando o
sexo, a falta de ar.
Então ele se afastou antes de ela atingir o orgasmo, deixando-a
desamparada e, sem a força do corpo dele para segurá-la, caiu de joelhos.
Não teve tempo de reagir.
Viu-o se despir totalmente, se dirigir ao balcão da pia, abrir a gaveta e
rasgar a embalagem do preservativo.
― Ué, e a vasectomia? ― debochou, mesmo esparramada no chão,
mesmo com o clitóris zumbindo de tesão, mesmo sentindo prazer, raiva,
prazer, raiva.
Prazer e raiva de Roberto.
― Quem disse que é apenas a sua boceta que me interessa? ―
devolveu a pergunta num tom de cínica zombaria. E enquanto deslizava o
preservativo pelo pênis duro e grosso, comentou: ― O seu cérebro, por
exemplo, me interessa muito. Além do seu rosto perfeito, suas pernas
tortinhas, seus pés delicados, as mãos de fada que me é um afago a cada
bofetada. Mas obviamente que a camisinha é para foder o seu rabinho.
Zalon prendeu a respiração.
― Nem tenta.
― Oh, vou tentar e conseguir. Ninguém me impede do que eu quero,
leoa acuada. ― riu-se, baixinho, achegando-se até ela. ― Vá para a banheira
e relaxa um pouco antes de sentir o meu poder te invadindo bem fundo. Não
foi assim que pediu o meu pau em você? Bem fundo, Roberrrto. ― imitou-a,
num tom de troça, embora parecesse mais com sadismo.
Se fosse o tipo de pessoa que mentisse a si mesma, diria que queria
fugir. Mas a verdade era que desejava experimentar tudo com ele. Roberto
não era apenas um homem diferente dos outros; ele era uma pessoa única e
instigante.
Sentia medo dele, não podia negar. Porém, era esse mesmo medo que a
atraía para ele. Por outro lado, provocava-o, sim, para deixá-lo mais irritado e
perigoso. E, com isso, mais medo sentia.
Medo pior seria se ela se viciasse nele.
Ela deitou na água perfumada e foi invadida por uma sensação
narcotizante de paz. O que era estranho, pois estava prestes a ser sodomizada.
No entanto, ter Roberto sentado no deck da banheira, as pernas cruzadas de
modo a não lhe deixar ver a suntuosa ereção, a fez se sentir plena. E não foi
porquê sabia que o excitava e, com isso, seria mais fácil se vingar dele. Mas
foi o modo como ele a olhou, parecendo apreciar a sua plenitude, deixando
transparecer no próprio rosto relaxado como lhe era agradável vê-la deitada
numa banheira com sais perfumados. Ela, que tinha uma vida dura como
costureira no bairro operário. E ele sabia disso.
― Às vezes você parece uma pessoa boa. ― arriscou dizer, ainda de
olhos fechados, aspirando a fragrância gostosa da água morna.
― É assim que as vítimas pensam dos seus carrascos.
Ela abriu um olho e o viu sorrindo.
― Não consigo interpretar esse seu sorriso. ― admitiu, agora, abrindo
os dois olhos para se manter atenta a ele.
Roberto baixou a cabeça e a beijou na testa. Foi um beijo casto quase
de pai ou irmão mais velho.
― Interprete como o sorriso de um homem que vai foder muito hoje.
― o tom de perversão se misturou à frieza.
― Comigo e com a outra mulher?
Por que sentiu uma ponta de ciúme, sua lesa?
―Você me interessa mais do que ela.
― Minha juventude?
― Talvez. Mas levo em consideração a sua utilidade aos meus
objetivos. ― sorriu, como um adorável filho da puta. ― Agora você vem
para mim, meu anjo...
― Disse satanás. ― murmurou, obedecendo-lhe.
Ele a tomou pelos ombros e a puxou para si, de maneira a colocá-la
deitada de bruços sobre as suas pernas. Mordiscou-lhe as nádegas com os
dentes frontais, a intenção não era a de machucar e sim a de excitá-la
arranhando a pele na superfície molhada.
― Bundinha gostosa. ― ele falou pouco antes lhe dar uma palmada.
― Aiiii! ― gritou, tentando escapar do seu colo.
Mas ele não permitiu que ela se movesse.
― O seu papai nunca bateu na sua bundinha?
― Parece um pedófilo falando.
― Você é uma velhota de 20 anos.
― 19.
― É isso que dá estudar em escola do governo... Você confundiu
pedofilia com complexo de Electra.
―O que é isso, esse complexo? ― inclinou a cabeça para trás a fim de
fitá-lo.
Antes da resposta, ele lhe separou delicadamente com as mãos as
nádegas e a lambeu entre elas de cima a baixo. A sensação molhada e morna,
tão gostosa e excitante, a fez instintivamente arquear a coluna se oferecendo a
ele. Arfou profundamente, agarrando-se às pernas nuas do amante.
Depois de contornar o aro de músculos do ânus feminino com a língua
e o chupar ― o barulho ecoando no ambiente, deixando-a embaraçada e
completamente encharcada de tesão na boceta que clamava por Roberto, pelo
pau enterrando duro e forte nela ―, ele se afastou para responder com
displicência:
― É um lance da psicanálise que tá relacionado à mitologia grega. Não
é divertido, você não precisa saber de tudo, Diavolo. Apenas curta o
momento.
― Mas... eu quero tudo, saber de tudo... ― quero tudo de você,
minha cocaína.
Ele sovou o traseiro dela enchendo a mão com suas carnes firmes,
apertando-o com força e intercalando a rudeza do ato com beijos e delicadas
mordidas. Não parecia tencionar feri-la.
― Menina curiosa. ― beliscou-lhe a bunda, ela gemeu, e ele a beijou
onde a machucou. ― Complexo de Electra é quando a filha deseja
sexualmente o próprio pai.
― Mas você não é o meu pai. ― objetou, com veemência.
― Aos 18 anos, eu ainda não tinha feito vasectomia. Imagina que
interessante, acabei de foder com a minha filhinha.
― Pervertido nojento. ― tentou novamente escapar.
― E vou comer o rabo dela.
―Não consegue falar nada bonito, Manganelli? ― reclamou, tentando
se virar para fitá-lo.
Roberto, no entanto, a prendeu contra as pernas e, imediatamente, ela
sentiu a frialdade de um gel espesso deslizando no contorno e dentro do cu. O
dedo indicador masculino, também besuntado, enfiou-se devagar no interior
do seu ânus.
Sem notar, abriu as pernas, aceitando a entrada do prazer. Ele a
masturbou no cu, e ela sentiu a boceta molhada. Um segundo depois, a outra
mão do amante se apossou das dobras vaginais, separando-as com os dedos
enquanto o polegar rodeava e friccionava com perícia o clitóris.
― Ainda quer ouvir algo bonito? ― perguntou, tendo os dedos dele
enfiados nos seus dois buracos. ― Ou uma nobre putaria?
― Me chama de algo belo em italiano. ― pediu, ofegando, à beira do
gozo, já que ele friccionava com mais intensidade o botão inchado.
― Puttana.
― Idiota!
Ouviu-o rir.
― Corno em italiano é corneto?
Levou uma palmada na bunda.
― É cornuto.
Ele a pegou no colo e a levou para cama, deitando-a sobre o lençol
escuro de seda.
― A puttana e o cornuto. ― ela repetiu, vendo-o esticar-se ao seu
lado.
― Aham, não prestamos, Diavolo.
― Fala por si mesmo, que quer arruinar gente do seu sangue.
― Imagino então que a golpista jamais pensou em enganar as próprias
irmãs, não é mesmo?
Diacho!
― Somos unidas.
― A Maitê ofereceu a bunda pra mim, se quer saber. Lá no salão
country, queria me seduzir, a mocinha.
― Claro, né. O Ettore é meu, e você é dela.
― O quê?
Ops, deixei escapar informação demais.
― Golpe do baú. Somos três golpistas miserentas, esqueceu, CEO de
Stetson?
Ele analisou o rosto dela como se procurasse vestígios de mentira e
traição.
― Não sou alvo de ninguém.
― Certo, não tá mais aqui quem falou.
― A sua irmã não tem a mínima chance comigo, pode avisá-la. Ainda
mais agora que oficialmente você é minha noiva.
― Ótimo. Fico feliz com sua fidelidade.
― Diavolo. ― ele a virou de costas para si, e ela notou o movimento
de pressão da cabeça do pau contra a abertura do cu, arreganhando-o aos
poucos, ardendo, dilatando-o. ― Se eu quiser, fodo a vida das três.
― Tudo bem, desde que comece por mim.
O quê? O que eu DISSE?
Desgraça de vida, que coisa gostosa essa dor ardida pra caralho.
― Você é gostosinha e doida, moleca. ― a voz arrastada. ― Tô me
segurando pra não meter tudo, até as bolas, entrar todo nesse cu apertado que
é o inferno de tesudo.
Ele desceu a mão para a bolinar no clitóris, excitando-a enquanto metia
o pau aos poucos por trás, até as bolas encostarem no traseiro.
Ouviu-o gemer baixo e rouco, profundo e longo.
Quando ele começou a se mexer dentro dela, fodendo-a como se
estivesse comendo a sua vagina e não o rabo, ela sentiu uma tremenda dor.
Ardia. Queimava. E, junto com a dor, a loucura do prazer violento.
Ele lhe ergueu a coxa e meteu o pau no cu e a mordeu no ombro com
força. Ela gritou, chorou, gritou novamente e pediu mais, mais forte, mais
fundo, mais dor.
Virou-a de bruços e montou nela, os joelhos fincados nas laterais da
cintura feminina, o pênis estocando o rabo dolorido, pegando fogo de tesão e
uma ardência infernal
De repente ele parou e se retirou de dentro dela.
― Não! Não! Continua! ― pediu, arfando, a maquiagem manchando a
fronha do travesseiro, mechas de cabelo no rosto inchado, os olhos injetados
de tesão.
― Tem sangue na camisinha. Eu a machuquei.
Ele saiu da cama e foi para o banheiro. Voltou sem o preservativo e a
pegou no colo, levando-a de volta à banheira.
― Vou morrer pela bunda? ― brincou, vendo-o sério.
― Acha isso uma brincadeira? Fica me levando ao limite para que a
minha natureza desgraçada destrua tudo? Quer que eu a destrua, que a
estupre, que a deixe louca num sanatório como as outras?
― Que outras? ― deitou na água morna que ele tinha lhe preparado.
Ele foi para o outro lado do banheiro e se enfiou debaixo da ducha.
Que outras? Ele enlouqueceu a mulherada?
Bem, ela não conseguia mais pensar direito desde que o deixou invadir
a sua mente.
Ele voltou do banho, a toalha enrolada na cintura.
― Vá para a cama.
― Que outras?
― As que conheci no hospício.
― Por que não usou o Tinder? ― provocou-o.
― Perdi o humor para as suas piadas de jeca. Vá para a cama, não vou
mandar de novo. ― a cara amarrada.
Ela sabia até onde podia ir com ele.
Saiu da banheira e vestiu o robe masculino que estava pendurado num
gancho.
Acompanhou-o até o quarto, deitou na cama, e ele lhe retirou o robe,
deixando-a nua debaixo do lençol. Abraçou-a por trás, o braço prendendo-a
contra o corpo masculino de modo possessivo.
― Preciso avisar que não dormirei em casa. ― ela sussurrou antes que
ele dormisse.
― Que se fodam. ― ouviu-o resmungar, apertando-a ainda mais para
si.
Zalon acatou a última frase como quem engole um comprimido para
dormir e...
Simplesmente dorme.
Capítulo 28

― Como...? Desculpa, eu sei, a gente sempre avisa uma a outra... Eu


sei, Maitê... já...
Roberto acordou ao ouvir a voz baixa de Zalon, que murmurava ao seu
lado. Precisou de meio minuto para assimilar que ela estava ao celular com a
irmã. O fato de não a ter avisado de que voltaria para casa, pelo visto,
despertou a ira da mandachuva das Toledo.
― Tô com o Roberto. Ele é meu noivo, ora... ― sussurrou.
De que adiantava sussurrar, se ela estava tão perto dele que podia
esticar a mão e pegar na sua bundinha macia? Talvez a pobre diaba foi
arrancada do sono profundo pela ligação da irmã e ainda estivesse sonolenta,
pois parecia que se justificava à outra como se tivesse 12 anos de idade.
― Não interessa... Agora que sabe onde tô, me deixa dormir...
Isso, põe a mandona no seu devido lugar.
Agora ele já estava bem desperto, deitado de costas para Zalon, os
ouvidos captando a conversa.
― O que tem a Rafa? Ela sempre faz isso, sai e não volta pra casa...
Pronto, as pobretonas não iam deixá-lo dormir em paz. Sentou na cama
e lançou um olhar azedo pra garota enfiada debaixo do lençol.
― Já vi tudo, por que tá agora com esses pudores? ― indagou, mal-
humorado puxando o lençol de cima do corpo nu dela.
Zalon tentou segurar a ponta, por algum motivo não queria ficar nua
diante dele. Mas coisa que Roberto não tinha era paciência pra tentar,
TENTAR, entender a cabeça de uma mulher.
Puxou a barra do lençol com força, e ela perdeu, ficando nua. Recebeu
um olhar matador. O que o excitou sobremaneira. Aquele rostinho de anjo, o
nariz levemente arrebitado, os lábios finos, os imensos olhos claros agora
faiscavam raiva. Aliás, o que ele mais via nos olhos dela era raiva. Pensou em
perguntar o motivo de odiá-lo se ele a estava ajudando a casar com um
milionário. Ela, uma garota bonita, era verdade, mas que falava o que
pensava sem filtro algum.
― Quero dormir. Desliga essa porra. ― mandou, firme e grosso.
Zalon saiu da cama, e ele acompanhou o corpo magro e nu, a cintura
estreita e a bunda em forma de pêssego, com aquele afastamento sexy entre
as coxas, que parecia chamar o seu pau para se enterrar nela.
― Vou telefonar pra ela, ver se tá muito bêbada, deixa comigo. ―
falou, saindo do quarto para se enfiar no banheiro.
Ele a viu fechar a porta atrás de si e considerou o quanto fora sortudo
em ser filho único. Teria agora mais rivais do que apenas os primos.
Voltou a deitar, desligou a luz dos spots indiretos do teto rebaixado e
esperou adormecer.
Que nada.
Até parecia que ia ter sossego com Zalon zanzando novamente pelo
quarto. Para não o acordar, ela não acendeu a luz, então esbarrou por tudo, o
joelho na cama, o quadril numa poltrona, tropeçou no tapete e falou quatro ou
cinco palavrões usados particularmente por caminhoneiros.
Até que a viu encolhida no canto da cama, abraçada aos joelhos,
parecia perdida.
Acendeu a luz e inclinou meio corpo, apoiando-se em um dos
cotovelos. O sono fora para o espaço sideral. Então o negócio era resolver
logo o problema da garota para conseguir voltar a dormir.
― Qual Toledo tá lhe dando problemas?
― Ninguém.
― Vem dormir então.
― A Rafa tá em um bar barra-pesada, enchendo a cara e dançando em
cima do balcão.
― Já fiz isso, é divertido. ― disse, com descaso. ― Vem dormir,
deixa a menina brincar, ora. Você é a versão medrosa da Maitê cafetina.
Ela se voltou e o fitou demonstrando raiva (pra variar), mas, mais do
que isso, preocupação.
― Os amigos da Rafa ligaram lá pra tia Joaquina... Ela tá deprê,
acabadona e, quando se sente assim, bebe até cair. Já foi parar no hospital em
coma alcoólico. ― ela se levantou e juntou as próprias roupas da cadeira. ―
Vou buscá-la no bar. Me empresta dinheiro pro Uber?
― Que Uber? Você tem motorista particular, já falei. ― olhou-a com
censura. ― Vai correr para salvar a encrenqueira de 18 anos? Ela precisa
aprender com a vida, levar uns tabefes de vez em quando...
― Ela tem 17, é menor e tem problemas emocionais. ― rebateu, com
um tipo de paciência misturado à magoa e à tristeza.
Viu-a se vestir e pegar a bolsa.
― São quatro da matina, não quero acordar o seu motorista...
Esticou o braço e pegou o celular no criado-mudo.
― Jonas, vá buscar a minha cunhada no... ― ele deitou o aparelho no
ombro ao indagá-la: ― Onde a farrista tá?
― É no Bumbum Tchan-Tchan. ― ele franziu o cenho, e ela pareceu
se ver na obrigação de esclarecer. ― É um clube noturno onde só toca funk
americano. Não sei o motivo desse nome estranho. ― deu de ombros.
Roberto suspirou, resignado, esfregando os olhos.
― Conhece o Tchan-Tchan no Bumbum?
― É o contrário, Roberto. ―corrigiu-o, com rispidez.
― O Bumbum Tchan-Tchan, sr. Manganelli?
A voz do outro parecia de incredulidade.
― Vá armado, ora. Se tá com medo, eu mando um dos seguranças.
― Senhor, não tenho medo, não. Mas lá só entra gente de gangue...
― Não me diga. ― voltou-se para Zalon. ― Claro que a Toledo se
mete com gangue. ― falou baixinho para ela, sarcástico.
― E você com políticos corruptos, grileiros, agiotas disfarçados de
banqueiros, fazendeiros assassinos e escravagistas, além de golpistas contra a
própria família.
Roberto sorriu, encantado. Como podia ser tão lindamente sacana?
― Ponto pra você, lhe devo um boa chupada.
Zalon arregalou os olhos ao notar que o motorista também ouviu a
mesma declaração pornô.
― Jonas, então junta o pessoal da segurança e traz a Rafaela Diavolo
para a minha fazenda.
― Sim, senhor.
Assim que desligou, Zalon foi taxativa.
― A Rafa não vai aceitar a sua intervenção. Não sabe com quem tá
lidando. ― balançou a cabeça, com pesar. ― Que merda. Não devia ter
falado pra você.
― Bom, já que realmente não vou dormir, me passa o telefone da
maluca.
― Não, você não tem tato pra lidar com ser humano.
― Quem não tem tato é o Miguel. É só falar com a cafetina que
ofereceu a bundinha pra mim. ― ironizou, sorrindo.
― Não.
― Foda-se então. Eles vão trazê-la amarrada, algemada, do jeito que
for. Esses homens fazem o que eu mando sem medir consequências. ― foi
seco.
Notou-a empalidecer.
Ah, sim, agora assimilou o teor da nossa conversa, garotinha?
Vontade de foder com essa cretina.
Vontade de ficar dias e dias na cama com ela.
Zalon entregou-lhe o próprio celular.
― Cadê o smartphone de verdade?
― No meu rabo.
― Malcriada. ― piscou o olho pra ela, com charme. Diabos, aquele
jeito sem modos o fascinava. Esperou a ligação completar e, assim que ouviu
um alô abafado, de gente grogue, foi direto ao ponto: ― Aqui é o seu
cunhado, tô mandando meus seguranças buscá-la no inferninho, e tudo que
você tem de fazer é obedecer.
― Cunhado?
― Roberto Manganelli, cara Rafaela.
― Vai tomar no teu cuzão!
Bem, se vê que é uma Toledo. Segurou-se para não rir.
― Ô família sofisticada essa, hein. Bom, se não vier por bem, eu
mesmo a buscarei. Mas aí será do meu jeito, ô fedelha fora da casinha! ―
falou, com a serenidade de um atirador de elite. ― Vou te pegar pelos
cabelos na frente dos seus amigos da boca de fumo, e o primeiro trouxa que
sacar uma arma, levará um tiro dos meus seguranças.
Viu quando Zalon fez que não com a cabeça.
― Acha que tenho medo de você, ô assassino psicótico? Vem me
pegar, vem. Tenho um trezoitão na minha bolsa pra usar bem no meio dos
teus zóio!
―Então teremos um belo duelo. Não sabe o quanto curto um desafio,
sua maluca.
Agora ele estava puto da cara.
― Roberto... por favor, deixa que eu falo com ela.
― Fica fora disso, Zalon, que a conversa é entre sociopatas.
― Sociopata é você, alvo dois! ― gritou Rafaela. ― Cavalo velho
igual ao Miguel e a bicha louca do Ettore. Tudo cheirador de cocaína,
assassinos... Ah, não!!!
― O que foi, Rafaela? Acabou de ver todos os parafusos da sua cabeça
caírem no chão? ― indagou, irritado, sentindo o olhar naturalmente de raiva
de Zalon sobre si.
― Não fala assim com a minha irmã.
― MEU DEUS DO CÉU! CADÊ OS SEGURA?
― O que foi, Roberto? Por que fez essa cara? ― perguntou Zalon,
sentando ao lado dele.
― Não sei, mas acho que ela tá em apuros. ― disse, antes de se
concentrar novamente na ligação: ― Os segura, como você diz, estão a
caminho. Mas você tá no fim do mundo, então terá que ter paciência. O que
aconteceu pra essa aflição repentina?
― Quanto tempo eles vão demorar, Roberto, cunhado fofo?
Ele se virou para Zalon que o fitava com o semblante fechado de
angústia.
― De fato, o diagnóstico é transtorno bipolar com ascendente em
escorpião. ― vendo-a sorrir sem jeito, outra vez se viu falando com a Toledo
mais doida: ― O que tá acontecendo?
― Ai, uma tragédia!!!! Preciso dos segura agora pra me tirar daqui.
Fiquei menstruada e tô sem absorvente, veio uma enxurrada e meu shortinho
tá bem comunista. Tô atrás de umas palmeiras, escondida. Parece uma
hemorroida...ops, hemorragia! Não era pra ter vindo antes do dia 20! Que
vergonha! Vão pensar que sou louca!
― Vão pensar? ― arqueou uma sobrancelha. ― Diante da gravidade
do fato, enviarei paramédicos junto com os seguranças.
― Jura?
― Vá se catar, Rafaela.
Encerrou a ligação, deixou o celular na cama e suspirou
profundamente.
― Ela tá bem?
― Sim, virá para minha casa. O que não falta é quarto de hóspede.
― Obrigada. ― pôs a mão na coxa dele num gesto de agradecimento.
― Vou esperar lá embaixo.
― Não, eu vou. Só preciso de uma roupa sua. Parece que ela ficou
naqueles dias e tá meio apavorada.
― Eu estaria apavorada se ela estivesse grávida. ― tentou brincar. Foi
até o closet e, de lá, gritou: ― LEVA TAMBÉM O MEU PACOTE DE
ABSORVENTE INTERNO!
Roberto deitou para trás na cama e fitou o teto. Com que tipo de gente
estava lidando?, pensou, aborrecido.
― Coloca isso numa sacola. Não pensa que vou levar na mão por aí.
― Por aí? ― ela apareceu à porta, sorrindo com ar debochado. ― A
gente tá na sua casa e não num shopping center.
― Você entendeu.
Pôs-se de pé, passou por ela para chegar ao closet e vestir uma roupa.
Afinal, estava pelado.
― Quem é o alvo do golpe do baú da Rafaela? ― vestiu uma calça de
moletom cinza e a camiseta branca. Ao se voltar, percebeu que Zalon se
manteve de costas para ele. ― Tá pensando em criar rapidinho uma mentira,
meu anjo? Chega disso. É o Miguel? Já aviso que não vai dar certo.
― E por que não?
― Ele não gosta de garotinhas nem de loucas, e a sua irmã resume a
merda toda. Além disso, ele a irritaria a ponto de ser assassinado por ela.
Acho que um dia o Miguel voltará de vez para o Texas.
― Era lá onde você estava dez anos atrás?
Ele riu alto.
― Dez anos atrás? A troco de quê?
― Curiosidade apenas.
― É? Então matarei a sua curiosidade. ― disse, com ar zombeteiro.
Foi até o outro lado do closet e abriu o que parecia um cofre moderno
embutido na parede. Retirou uma papelada e lhe entregou, pareciam
formulários.
Mas o que lhe chamou a atenção foi o cabeçalho da primeira folha.

Sanatório Thales Dolejal

― O que é isso?
― O lugar onde eu estava dez anos atrás, como queria saber. ―
respondeu, com naturalidade. ― Não tá vendo a data abaixo do carimbo. O
nome do lugar é em homenagem ao dono de uma a cidade no interior do
Mato Grosso. Ele também é proprietário do sanatório que só atende pelo SUS
e convênio de pobre. Mas fez uma concessão aos Manganelli, acolhendo um
workaholic com problemas mentais. ― disse, com ar divertido.
Ela precisou sentar no imenso pufe no meio do closet.
― Foi internado numa clínica psiquiátrica?
― Sim, aos 27 anos.
― Ficou internado por... ― leu a ficha cadastral dele, como paciente
― dois meses.
― Pois é, então não tive como fazer nada contra a sua mãe. Na
verdade... ― ele sentou ao lado dela para calçar as meias e os tênis e
comentou com naturalidade: ― Meu pai me internou depois de quase ser
morto por mim. Tentei esfaqueá-lo enquanto ele dormia. Por um segundo
rocei a lâmina no pescoço dele, naquela veia mais saliente, a cheia de sangue,
sabe? Imaginei então que certamente descobririam que eu era o assassino e a
minha carreira na empresa iria se foder. Preferi então não o matar. Mas ele
acordou e me viu com a faca na mão. Tio Francesco acredita que surtei de
tanto trabalhar. Miguel não queria a minha internação, ele pareceu até
inclinado a me apoiar, mas não se meteu no assunto. Ettore me abraçou e
sussurrou: você precisa descansar, meu primo. Ele pareceu sincero, mas
depois, já na ambulância meio grogue de sedativos, notei que sorria com ar
superior. Passei duas semanas dopado e o resto pensando em como destruir
os Manganelli, cada filho da puta que me mandou para o hospício.
Inesperadamente Zalon o abraçou e o beijou na testa como se fosse a
sua melhor amiga.
Capítulo 29

Ela acordou e soube que era dia quando notou a claridade do quarto ao
abrir os olhos. Fechou-os novamente, espichando o corpo sentindo aquela
sensação gostosa de plenitude, de ter dormido bem e, quando os abriu
novamente, viu duas gotas do oceano a fitando.
Ficaram se olhando por muito tempo. O rosto de Roberto expressava
serenidade, embora os olhos pareciam a inspecionar por dentro. Era estranho
esse pensamento, mas a impressão que tinha era a de que ele tentava ler a sua
alma. Ou talvez ainda estivesse dormindo, mas de olhos abertos.
― Bom dia. ― disse, baixinho, testando o sonambulismo dele.
Nada mudou. Ele continuou a encará-la, deitado de lado, um braço ao
redor da cintura dela.
O celular tocou e era o início de uma música clássica famosa. Portanto,
a ligação não vinha do aparelho dela. Mas Roberto a ignorou.
Até que suspirou profundamente e falou numa voz rouca e sonolenta,
sem abandonar o seu típico arzinho irreverente:
― Bom dia, minha adorada noiva. Sonhou comigo?
― Não, sonhei com o Thor. ― brincou, vendo-o fazer uma careta de
descontentamento.
Ela tentou sair da cama, mas foi pega pelo pulso e puxada para cima do
corpo dele.
― Aonde pensa que vai sem a minha autorização? ― ele parecia falar
sério, embora houvesse um tom de perversão no modo como olhava para os
lábios dela.
Zalon não se fez de rogada. Ela tinha debaixo de si um homem tesudo,
cheiroso e com ar sacana. Ergueu-se ligeiramente sobre ele, pegou na mão o
pau já ereto e sentou bem devagar nele, deitando a cabeça para trás ao senti-
lo a penetrar, deslizando com dureza, pois ainda não estava lubrificada.
― Tá doendo, não? ― ele gemeu, observando-a franzir o cenho.
― É assim que gosto.
― Sem preliminares?
― Assim que gosto de fazer com você, quis dizer...
Não conseguiu completar a frase, pois ele levantou meio corpo e,
agarrando-a na nuca, beijou-a. No meio do beijo, mordiscou-lhe o lábio
inferior e depois sugou a língua dela como fazia quando a chupava no sexo.
Ela o cavalgou com força, segurando-se nos ombros dele, os seios
sacudiam ainda que fossem pequenos, o suor pingava dos bicos duros.
― Tô viciada em você! ― arfou, a voz saiu grossa e pesada.
Ele a girou para debaixo de si mesmo e, sem se retirar de dentro dela,
fincou os joelhos na cama, arreganhou-lhe as pernas e deslizou o pênis de
modo a friccionar o clitóris a cada arremetida na boceta agora molhada de
tesão.
― Minha garota.
Mal ouviu o que ele falou, o zumbido alto e grave do orgasmo a
ensurdeceu. Parou de respirar ao ser atingida pela onda quente de prazer.
Sentiu-o estremecer e viu a feição máscula se modificar. Ele apertou os olhos
e entreabriu os lábios em busca de ar.
Inclinou a cabeça e viu a musculatura das coxas masculinas
trabalhando enquanto ele continuava a fodê-la sem parar, até levá-la ao
segundo orgasmo.
Depois de gozarem, o silêncio. Na verdade, dava para se ouvir o som
pesado da respiração de ambos.
Ela se virou para fitá-lo e, sem rodeios, falou:
―Quero mais.
― Eu também.
E Roberto a fodeu novamente.
Depois, exaustos, abraçaram-se. As pernas entrelaçadas, a cabeça de
Zalon descansando no peito largo e firme de Roberto. A calmaria latejante
após a tempestade sexual.
Acordaram perto das duas da tarde.
― Preciso voltar para casa. ― disse, sem a menor vontade de se
desvencilhar dos braços dele. ― Será que a Rafa ainda tá por aqui?
― Você não precisa voltar para casa, e a sua irmã não tem cinco anos
de idade. ― resmungou, a boca colada na testa dela.
― Hoje é dia de semana. O patrão trabalha se quer? ― provocou-o,
fazendo um carinho no cabelo loiro e desgrenhado dele.
― O patrão só faltou ao trabalho quando foi internado no clube dos
desajustados. ― brincou, rindo-se baixinho. ― Mas não penso em sair dessa
cama tão cedo.
― Tá acordado mesmo?
― Sim, bem acordado ao lado da minha leoa acuada.
― Sua voz tá tão sonolenta. ― provocou-o.
Ele baixou a cabeça e a beijou levemente nos lábios.
― Não é sonolência, meu anjo, é paz de espírito.
― Pensei que não soubesse que isso existe.
― Sei que o planeta Marte existe e nunca estive lá. ― disse, numa voz
divertida, beliscando-lhe a nádega. ― Mas a verdade é que nunca me senti
em paz como agora.
― Eu também não. ― sorriu, beijando-o a seguir no rosto.
― Deve ser a tal da química sexual, como se diz. ― gracejou, com
certo cinismo.
O tom que ele usou a fez recuar na intenção de lhe ser carinhosa.
Recolheu o sorriso do rosto e a vontade de continuar abraçada nele.
Conseguiu, enfim, se soltar e sair da cama.
― A porta tá trancada.
Foi o que ouviu, depois de vestir o robe dele para sair da suíte a fim de
procurar a irmã.
― É só destrancar. ― viu que a chave não estava na fechadura.
― Sim, claro. ― respondeu ele, com displicência, os braços cruzados
debaixo da cabeça. ― Quando eu quiser evidentemente.
Zalon escorregava de um lado para o outro na corda bamba dos
próprios sentimentos. De um lado, o vício de tê-lo consigo o tempo todo e, do
outro, a raiva por ele ser quem era.
― Cárcere privado?
― Não. ― respondeu, olhando-a seriamente. ― Vontade de ficar com
você.
― Certo, tudo bem, mas preciso te lembrar que o Ettore tem de nos ver
juntos?
― Outro dia, outra hora. ― ele esticou a mão, acrescentando um
sorriso charmoso ao pedido: ― Vamos apenas ficar juntos. Tirar férias do
mundo real, o que acha? Eu serei o seu Diazepam, e você será o meu... deixe-
me ver... Carbonato de Lítio. ― brincou, sorrindo abertamente.
Droga, preciso ser mais forte. Ele diz que o Ettore é um dom, um
cabra que domina a mulherada, mas é ele, Roberto, quem tá me dominando.
― Precisamos manter o foco.
Mesmo falando firme uma frase coerente e racional, aceitou a mão
estendida, os dedos que se entrelaçaram, os olhos nos olhos. E, quando deu
por si, deitou ao lado dele. Roberto a pegou debaixo do queixo para beijá-la e
depois declarou:
― O meu foco nesse momento é você.
Mais tarde ele interfonou para a cozinha e mandou que levassem o
almoço à suíte principal. Zalon ouviu indagar ao mordomo sobre o paradeiro
de Rafaela e, assim que encerrou a ligação, disse que a irmã ainda estava
dormindo.
― Ela se sente à vontade, isso é bom. Relaxa, Diavolo. ― a voz
macia e persuasiva. ― Agora vamos tomar um banho.
Debaixo da ducha, ele a puxou para um longo abraço. Ela fechou os
olhos, imaginou-se debaixo de uma cachoeira morna, o jato forte da água
batendo na sua nuca quando deitou a cabeça no peito dele.
Quando Roberto era terno, Zalon tinha vontade de chorar. Uma tristeza
antiga de uma vida não lembrada, soterrada num trauma, uma tristeza que
vinha à tona.
― Chora.
― Não quero. ― mentiu, levantando a cabeça para o encarar, mas a
água que pingava do cabelo dele a molhou nos olhos, e ela os fechou.
― Quer que eu a faça chorar?
― Não tem esse poder sobre mim.
― Eu sei que não. Talvez seja por isso que não consigo abrir a porta
do quarto e deixá-la partir.
― Não quero partir. ― admitiu, abraçando-o.
Zalon, mais tarde, soube que Rafaela voltou para casa à tarde, assim
que acordou, almoçou e tomou banho de piscina. O convite de Roberto foi
estendido para o resto da semana, caso ela o quisesse. Mas a garota preferiu
aceitar a carona para o bairro operário. Antes disso, porém, pediu para ele
fazer Zalon ligar o celular, queria lhe falar.
― Vocês não saíram do quarto o dia inteiro, os empregados estão
falando coisas sacanas sobre os dois. E o Ettore nem apareceu por aqui,
então não sei o motivo desse fingimento todo.
― A bateria do meu celular tá acabando...
― É só carregar, uai! Não tenta enganar a malandra aqui, cês tão é
fodendo, né? Ô cacete, essa vingança vai virar uma putaria só. ― reclamou,
mal-humorada.
― Bem, vou lhe dizer de outra forma: a bateria do meu celular tá
viciada.
Dito isso, desligou o aparelho.
Ela secou o corpo de Roberto com a toalha macia, e ele a carregou no
colo de volta para a cama. A mesa, no amplo terraço, já estava posta quando
chegaram.
O almoço delicioso não a satisfez. Aquela ânsia em comer até se
entupir como reflexo do medo de passar fome não existia mais. Provou um
pouco dos legumes, da carne e da massa tortei. Bebericou o vinho e saboreou
o pudim de leite. Não quis café preto.
O mordomo juntou rapidamente a louça usada e a pôs no carrinho de
inox e levou tudo para fora do quarto, arrastando-o nas rodinhas que, vez ou
outra, esbarravam na barra dos diversos tapetes espalhados pela suíte.
O robe que vestia era longo e largo, cabia no corpo de Roberto, mas,
para ela, ficava imenso. Prendeu o cabelo loiro num coque displicente, no
alto da cabeça, e se debruçou na amurada em torno do terraço, a altura
equivalente à de um prédio de três andares.
Observou os vaqueiros conduzindo os cavalos e, mais ao longe, o
rebanho de nelore. A planície verdejante, o arvoredo fazendo uma boa
sombra próximo à piscina logo abaixo. Admirou o belo jardim e lembrou o
quanto o dono daquela parte da propriedade era um entusiasta de jardins. E,
por um segundo ou dois, desejou viver o resto de sua vida ali, não na fazenda
do Grupo Manganelli. Queria viver era com Roberto. E, se ele de fato não era
o assassino de sua mãe nem o responsável pela coerção da compra das terras,
por que se impedir de amá-lo?
Foi como um raio. Não podia explicar a si mesma de outra forma a
resposta que lhe veio à mente ao desejo de aceitar que estava se apaixonando
por Roberto Manganelli. E, serpenteando com fúria, a resposta também a
atingiu feito um raio: não tenho material emocional para me apaixonar.
Foi o que Roberto declarou meio que a avisando para que também não
se apaixonasse.
Sentiu as mãos dele pousarem nos seus ombros e depois massageá-los.
― O médico, amigo meu, que trabalha na UTI onde tá o meu pai,
acabou de me ligar. ― Ele a abraçou por trás e falou junto à sua orelha: ― O
velho tá quase lá, e os demais Manganelli estão cercando a futura carniça.
― Vou com você.
― Claro que sim, irei apresentá-la como minha futura esposa.
Ela se virou de modo a encará-lo com seriedade ao afirmar convicta:
― Conta comigo, Roberto.
― Obrigado. Será uma honra tê-la ao meu lado em um momento tão
perfeito como esse, Diavolo.
Capítulo 30

Encontre a sua paz antes do túmulo o encontrar.


Essa frase nem sempre martelou a cabeça de Roberto, somente agora,
enquanto se encaminhava de mãos dadas com Zalon através do corredor que
acessava a unidade de terapia intensiva.
Enfim, o velho sucumbia. Agora com maior rapidez. A função cerebral
comprometida, vários órgãos se desligando, apenas o diabo do coração que
teimava em trabalhar feito assalariado pra fazer pose pro chefe. Ei, o chefe
tem um diagnóstico de morte encefálica!
O amigo médico o interceptou a meio caminho e, discretamente, levou-
a à sala de descanso dos colegas. Tinha uma televisão mostrando o filme
“Ghost – Do Outro Lado da Vida”, e ele considerou o quanto o universo era
irônico. Mas o que lhe chamou a atenção era o fato de que não havia médico
tirando uma soneca por lá.
― Infelizmente, o seu pai tá vivo somente por causa dos aparelhos.
Chegou o fim, meu amigo.
Hum, sempre fui contrário ao trabalho escravo das máquinas.
Mas antes que pudesse perguntar se o velho morreria dali a horas ou
minutos, o outro continuou:
― E a informação vazou à sua família, pois seus primos e o seu tio
estão junto ao leito do sr. Aquino.
― Bem, não pensem que estão mentalizando ondas positivas, meu
caro.
― Os aparelhos, Roberto.
Ele se voltou para a noiva, cuja observação foi dita num tom baixo e
tímido, talvez temendo falar besteira diante de um mé-di-co. Pobre levava
muito a sério determinados títulos.
Mas ela acertou em cheio.
― Sim, não há chance de ele recobrar a consciência. Na verdade, os
aparelhos já foram desligados após a confirmação da morte cerebral.
― Obrigado por me avisar sobre a chegada dos meus queridos
familiares. ― disse ele, dando-lhe um tapa amistoso no ombro. ― O que
acha de um iate ou uma casa numa ilha paradisíaca no nordeste? Quero lhe
dar um presente por sua lealdade a mim.
O médico, na faixa dos trinta e poucos, o fitou sem graça e, ao mesmo
tempo, demonstrou decepção.
Será que ele quer Santa Catarina inteira?
― A sua amizade é o meu maior tesouro. Por isso o avisei, Roberto. ―
rebateu, com um sorriso humilde antes de lhes dar as costas e seguir por uma
porta, deixando a sós com Zalon no corredor.
― É, sr. Milionário, essa sua mania de dar preço a sentimentos ainda
vai te foder.
Ele baixou a cabeça e fitou os sapatos italianos. O peso da angústia era
como duas barras de chumbo nos ombros. E a observação de Zalon não o fez
se sentir melhor.
― Eu não a trouxe aqui para bancar a voz da minha consciência. ―
rebateu, baixinho, sem amenizar o tom ríspido.
― Me perdoa, só tava cumprindo o meu papel de noiva dedicada. ―
fez troça.
Ele a olhou demoradamente, o semblante sério e, por fim, ainda sisudo,
declarou:
―Diavolo, não tente me excitar em público. ― quando a viu arregalar
os olhos, entre incrédula e assustada, acrescentou, agora, com um sorriso
sarcástico: ― Me atiça, vai, me atiça que eu gamo. ― piscou o olho pra ela.
Foram de mãos dadas em direção ao quarto particular da UTI.
O circo estava montado, não faltavam nem os palhaços, o ar de
profunda tristeza até poderia comover quem não os conhecesse.
Tio Francesco não trouxe a esposa para se despedir do cunhado, talvez
por intuir que a velha nem soubesse mais que era casada. Então lá estava o
alto escalão da diretoria do Grupo Manganelli e, no lugar de uma mesa de
reunião entre eles, o leito hospitalar com o moribundo.
― Meu filho, sinto muito. ― disse o tio, chegando até ele e o
abraçando.
Endureceu o corpo ao toque do velho, sentiu asco. Teve a impressão de
ter apertado demais a mão de Zalon, pois a ouviu gemer baixinho. Soltou-a e,
afastando-se discretamente de Francesco, impôs-se um ar solene.
― Essa é a minha noiva, Zalon Diavolo, tio Francesco.
Notou de esguelha quando Ettore se levantou da cadeira e virou a
cabeça em direção ao irmão, como se lhe perguntasse silenciosamente sobre o
fato. O tio, no entanto, reagiu de acordo o esperado. Abriu um sorriso de
velho bondoso e pegou o rosto de Zalon entre as mãos.
― Mas que bela moça, a mais bela de Santa Bárbara! Seja bem-vinda à
nossa família!
Foi a vez de ele sentir a mão pequena e feminina buscar a sua para
apertá-la. Algo a desconfortava. Ela não sorriu, parecia congelada numa
expressão de repulsa. Se o tal fazendeiro rico que arruinou a sua família não
tivesse morrido, segundo a própria Zalon lhe dissera, Roberto juraria que ela
suspeitava de Francesco e Aquino Manganelli.
E com toda a razão.
O tio a puxou para um abraço espalhafatoso e a virou para os seus
próprios filhos, exibindo-a como o troféu da virilidade do sobrinho:
― Venham conhecer a futura sra. Manganelli.
― A segunda futura, não é mesmo? ― Ettore sorriu, ao se encaminhar
para se pôr diante de Zalon e a encarar com seus charmosos olhos azuis. ―
Espero realmente que entre para a nossa família. ― pegou-lhe a mão e,
inclinando a cabeça, beijou-a no dorso.
Roberto sentiu uma necessidade quase física de esmagar a cabeça de
Ettore no chão.
― Ao contrário da minha primeira noiva, Zalon é uma mulher bem-
resolvida, empoderada, sabe o seu real valor.
― Mulher? ― Miguel se achegou, balançando a cabeça em negativo,
olhando-a de cima a baixo. ― É uma potranquinha recém-desmamada, pelo
amor de Deus.
― Bode velho. ― foi o que Zalon lhe disse, sorrindo com doçura.
Roberto e Francesco caíram na gargalhada. Ao passo que Ettore
semicerrou as pálpebras como se acabasse de ouvir o sussurro da própria
intuição, um aviso, por certo.
Miguel fechou a cara, pôs as mãos nos bolsos traseiros do jeans, deu
mais uma boa olhada em Zalon.
― Meus pêsames, Roberto, acabou de ficar noivo da sua sepultura. ―
dito isso, riu alto e, inesperadamente, puxou Zalon para um abraço.
Quando Miguel agia como Miguel, Roberto não o desprezava e até
sentia algo parecido com respeito. Como agora, quando relinchou, deu uma
patada, levou outra e acabou se divertindo e tratando bem Zalon.
O problema era quando algumas características de sua herança
genética emergiam, e ele via um Aquino mais jovem, mais bonito, mais forte
e indomável. Se o seu próprio pai tivesse metade do potencial e da
personalidade marcante de Miguel, Roberto jamais conseguiria viver à sua
sombra o tempo todo que viveu à espera do momento certo para lhe tomar
tudo. Por outro lado, como o primo jamais foi um espancador de gente
indefesa, um abusador físico e emocional, Roberto não teria motivo para lhe
tomar tudo. Agora, por exemplo, ele só queria os vinte por cento dele e não a
sua parte da fazenda e a própria vida.
Notou quando Zalon empurrou Miguel, as mãos firmes no tórax dele, o
olhar raivoso.
― Não lhe dei intimidade para tocar em mim. ― foi rude.
― Vixe, mais uma feminazi! ― gargalhou quem deveria se desculpar
por ser um grosseirão.
― Pensei que o preconceito em relação às feministas não alcançasse os
estábulos. ― sorriu ela, mais uma vez, como um anjinho lindo.
Essa garota é maravilhosa, puta que pariu.
― Perdoa o meu filho. ― veio Francesco à defesa do primogênito. ―
É grosso como a família da minha esposa, tudo criado no meio do mato feito
bicho. ― riu-se, com ar divertido.
― Não, tio... ― disse Roberto, também sorrindo, mas o seu sorriso era
aquele tipo que o diabo gostava. ― o seu filho puxou aos seus genes e aos do
seu irmão. ― voltando-se para Zalon, comentou com charme: ― Amor,
lembra aquele filme que vimos juntos...Como era mesmo o nome? Hum...
Ah, é “O Quadrúpede veste Prada”.
Viu-a sorrir de modo cúmplice e ouviu o rosnado de Miguel ao voltar a
sentar na cadeira ao lado de Ettore.
― Essa morte é pra quando, hein? Tenho mais o que fazer na fazenda.
― reclamou, de um jeito rude, o cavalo de terno.
Mas tal reclamação provocou uma crise de risos em Roberto. Pediu
licença baixinho e teve que sair do quarto, seguido por Zalon.
Precisou respirar fundo para se recompor.
―Acho que tá tendo uma crise nervosa. ― disse ela, parecendo
preocupada.
― Sim, tô histérico por que descobri que o Miguel lê os meus
pensamentos. ― comentou, apertando a boca pra conter novas risadas.
― Odeia mesmo o seu pai. ― constatou, quase num cochicho.
― Na verdade, eu amo, amo cada célula dele... ― rebateu, abraçando-
a com carinho enquanto descia os lábios para falar à sua orelha, baixinho e
rouco: ― em especial, as cancerosas. A metástase do amor.
Capítulo 31

Roberto Manganelli era um mistério. E emocionalmente instável. De


certo modo, não lhe cabia bem esse termo, mas ela não sabia como classificá-
lo. Se tivesse mais estudos, principalmente em Psicologia, talvez entendesse
o comportamento dele.
Em compensação, era estranho, por exemplo, que ela sentisse afeto e
algo muito parecido com amor e atração sexual de alguém que a assustava.
Ele era um poço de cinismo, mas um tipo de doce cinismo. E isso realmente
não existia.
O certo era que aquele homem sofria tremendamente e havia sofrido
ainda mais no passado. E, como ele provou não ter ligação com a tragédia da
sua família, Zalon decidiu lhe ser a aliada. Afinal, não parecia haver lealdade
entre os Manganelli.
― Vamos voltar para o quarto. Manda a cambada se retirar para que se
despeça em paz do seu pai. ― falou, vendo-o a encarar como se a visse pela
primeira vez. ― Não é por ele nem pelos seus primos ou o seu tio. É por
você. Diga tudo ao velho, o amor que sentiu e teve que o reprimir, porque foi
machucado por ele. Diga que ele perdeu, que o ódio dele perdeu e o comeu
vivo. Diga que ele era um miserável que também não recebeu amor do
próprio pai e por isso sente muito por ele. Diga... para partir em paz e seguir a
luz.
Roberto sentou no banco de madeira e, por um instante, fixou os olhos
num ponto vago diante dele. Parecia olhar para o horizonte que terminava na
parede azulejada do hospital, mas a verdade era que ponderava sobre o que
acabava de ouvir.
― Você tem um bom coração, Diavolo. ― falou, numa voz sumida
quase distante. ― Espero que um dia conheça alguém que a faça feliz e lhe
dê uma linda ninhada de cabritinhas.
O que ele disse doeu fundo.
Não devia doer nem tão fundo.
― O Ettore me fará feliz.
Roberto sorriu um de seus sorrisos cretinos.
― Os Manganelli não nasceram para trazer amor e felicidade ao
mundo.
― Pelo menos ele não é atormentado como você, assim terei chance de
ensiná-lo a amar.
― Índole, a dele é a pior de todas.
― Dane-se, vou seguir o nosso plano até o fim. Vou casar com o seu
primo.
― Exatamente como o combinado. Seduz o trouxa, sem foder com ele,
e com isso o distrai dos negócios. ― falou, secamente.
― Enquanto você se torna corno pela segunda vez por causa do
mesmo homem. ― ironizou.
― Já disse para não foder com ele enquanto estivermos juntos. ―
olhou-a com seriedade. ― Não sabe jogar sem literalmente dar as cartas para
o seu oponente?
― Acho que não, já que literalmente dei as minhas cartas pra você. ―
rebateu, com azedume.
― Não sou o seu oponente, Diavolo.
Zalon achou por bem calar a boca, pois era certo que acabaria
demonstrando mágoa por saber que ele não sentia porra nenhuma por ela.
― Eu sei.
― Somos nós dois contra os Manganelli, capisci? ― ele brincou, sem
sorrir.
― Capixi.
― Na verdade, a resposta é capisco. ― beijou-a levemente nos lábios.
― Vou me despedir do meu pai, como sugeriu, tesoro. ― piscou o olho para
ela e se levantou. Empertigou a coluna e, quase sorrindo, acrescentou: ―
Afinal, quero ter certeza de que o desgraçado morreu.
Antes, contudo, que ele entrasse no quarto, Ettore aportou no corredor.
Deu uma rápida olhada no primo e depois fixou seus olhos nela.
― O seu rosto me é familiar. Já nos conhecemos?
Antes que abrisse a boca para responder, ouviu a intervenção de
Roberto.
― Claro que sim. Eu a levei à festa de aniversário do tio. Você e a sua
quenga de coleira debocharam do sobrenome da minha noiva.
Viu os maxilares de Ettore se retesarem.
― Não sabia que ela era a sua noiva. ― justificou-se, parecendo
sincero (ainda assim, um cretino).
― Ao contrário de você, minhas mulheres são alfas. Mas dizem que os
caras ditos dominadores só escolhem mulheres fracas como submissas,
porque as fortes, as como a minha linda noiva, jamais se submeteriam à
coleira e à ordem de macho. ― o modo como ele falou soou como uma
provocação, um chamado para uma briga, mas havia um tom de divertimento
bem claro.
Ettore esboçou um sorriso de canto de boca e sentou ao lado dela.
― Alfa? O seu rosto triste me mostra que é uma garota apaixonada por
quem não devia. ― falou, num tom terno.
Havia certo encanto no olhar que Ettore lhe endereçou, nada sexual,
era mais como um carinho sem a sensação do toque.
Mas o que lhe disse era verdadeiro. Roberto estava absolvido da
vingança, pelo menos por ela. Maitê, com certeza, o colocava no mesmo
balaio etiquetado “Família Manganelli”.
Ousou encarar quem a fitava com atenção, demonstrando ceticismo no
olhar sério. Claro, para Roberto, ela, a sua noiva de mentirinha, estava
atuando.
― Pois é, normalmente as pessoas se alegram em ambientes como
hospitais. Ainda mais na ala da UTI. ― foi o que ele falou ao primo, o canto
da boca repuxado num esgar de menosprezo.
Ele lançou-lhe mais um rápido olhar e depois entrou no quarto. Em
menos de um minuto, Francesco e Miguel estavam no corredor, enxotados,
por certo.
O mais velho se encaminhou para o fundo do corredor, onde havia um
janelão que dava para o estacionamento. Ele sentou na cadeira mais próxima
e levou as mãos ao rosto, chorava baixinho, os ombros sacudiam.
Miguel foi até o pai, mas não se aproximou a ponto de oferecer-lhe
conforto.
Pelo menos alguém daquela família se importava com Aquino.
― O Roberto me preocupa. ― ouviu de Ettore, ao seu lado, sentado
como antes estava o primo, voltado para frente. Vestia o mesmo tipo de roupa
também, um terno clássico. ― Notou o quanto o seu noivo se sente superior à
própria família?
Sim, notei, alvo um.
Talvez, porque ele realmente seja superior a vocês.
― Não.
Ele esboçou um sorriso simpático.
― Se ofenderá se eu perguntar a sua idade?
― Tenho 19, e você?
― Hum, muito mais que isso... Sou um trintão, já devia tá casado e
com filhos. Mas quem se interessa por um homem viciado em trabalho?
―Eu. ― acrescentou um sorriso estudadamente inocente. E,
apontando para a porta do quarto de Aquino, completou: ― Me apaixonei por
um cabra bem assim como você. Fazendeiros com jeitão de CEO me
fascinam. Vocês têm objetivos, são autoconfiantes e rústicos, líderes, homens
no comando...
― E protetores. ― interrompeu-a, olhando-a longamente. Depois
baixou os olhos, demonstrando timidez e voltou a fitá-la: ― No fundo,
trabalhamos muito para preencher um vazio. Fomos criados assim, não sei se
o Roberto lhe falou... Ninguém escolheu se tornar escravo da empresa dos
pais. ― ele parou de falar e riu baixinho. ― Tô parecendo aqueles riquinhos
chorões que reclamam da vida sentados numa pilha de barras de ouro.
― Enquanto outros pagam suas contas escavando poços de merda. ―
completo, séria, olhando firme pra ele.
Ettore parou de sorrir.
― Tem razão. ― ele assentiu também com a cabeça e, de um jeito
descontraído, falou: ― Parece até que já foi pobre. Lembro-me agora de que
é filha de comerciantes de alguma coisa, não?
Puta carai!
― Sim, sou rica, menos que você. Mas sinto empatia por quem não
tem a nossa sorte. ― ajustou um sorriso gentil, como quem ajeita a luva de
boxe antes de tentar nocautear o adversário.
Ele novamente a encarou de modo analítico. E, nesse ponto, era
incrível como se assemelhava à tática de análise de comportamento de
Roberto. Ambos estudavam a pessoa, a fala, as palavras usadas, a feição, a
linguagem não verbal. Eram estrategistas.
Será que o alvo três também era assim?
Que merda! Homens sagazes davam um trabalho do caramba. Por isso
que a maior parte das golpistas pegava cabra rico e trouxa.
Vixe, não tenho cabeça pra jogar com dois Manganelli ao mesmo
tempo.
Preciso escapar dessa conversa. E é agora!
Mas não posso dizer que vou peidar no corredor, porque já tô no
corredor.
― Com licença, Ettore, vou mijar. ― anunciou, toda digna,
levantando-se com um sorriso polido, as pernas trêmulas e a sensação de que
não devia ter dito mijar e sim urinar.
Durante o trajeto pelo longo corredor, sentiu o calor do olhar de Ettore
na sua nuca. Não devia ter prendido o cabelo num rabo de cavalo! Virou a
cabeça para trás a fim de ter certeza de que não era coisa da sua cabeça, essa
sensação de dois olhos queimarem uma nuca, puta merda, né? Isso não existe,
é expressão do povo que escreve livro.
Mas não é que o hômi tá me olhando mesmo?
E não é pra minha bunda!
Virou a cara, mostrando que não o estava paquerando, era fiel ao primo
dele, ora essa.
Era fiel mesmo.
Porque o amava.
Capítulo 32

Após a missa de sétimo dia, na capela da Fazenda do Grupo


Manganelli, Roberto foi para o escritório da advogada que faria a leitura do
testamento do pai.
Naquela tarde, optou por não dirigir, deixou o volante da picape nas
mãos de Jonas e sentou no banco traseiro da cabine dupla, de mãos dadas
com Zalon.
Ela havia mudado. Não apenas em relação às roupas que agora usava.
Depois de ele lhe dar um cartão de crédito, parecia que a ex-costureira
preferia agora comprar roupas prontas, exclusivas, as mais caras, quase todos
os dias. Sabia, no entanto, que não era apenas para ela. Zalon vestia a sua
família inteira. E Roberto achou bonito esse gesto. Mesmo que ela torrasse o
dinheiro dele sem dó nem piedade. Porém, a principal mudança que notou foi
a do comportamento da garota. Ela parecia mais arredia, irritada,
temperamental e ao mesmo tempo sensível. O humor oscilava de zero a cem,
nada de meios termos. Às vezes ela queria ficar na fazenda, passar a noite
com ele, dormir abraçados e, outras, o repelia, pedia para levá-la para casa,
precisava de espaço, debochava do que ele dissera sobre não perderem o foco
em relação ao golpe em Ettore.
O mais incrível de tudo não era Zalon parecer uma garota bipolar do
cacete e sim o fato de ele nem pensar em chispá-la de sua vida. Fosse outra,
já teria mandado embora e bloqueado o número do telefone.
Teve um pressentimento ruim. De que ela se apegou demais a ele,
misturou tudo na cabeça e se apaixonou. Aconteceu, entretanto, que no dia
seguinte a esse pensamento, ele a viu com Ettore. Os dois entraram no BMW
conversível dele, sem que ela o avisasse o motivo e o destino. Teve então um
segundo pressentimento, ainda mais aterrador: de que talvez Zalon estivesse
se apaixonando por Ettore.
E o ciúme começou a comê-lo vivo, como o câncer se banqueteou no
organismo de Aquino.
Mantenha o foco, seu desgraçado.
Foi o que disse a si mesmo, tragando com raiva o cigarro, a fumaça
pareceu queimar a garganta.
À recordação do misterioso passeio, ele falou sem deixar de observar a
paisagem através da janela da picape a caminho da leitura do testamento do
pai.
―Espero que o seu encontro com Ettore tenha sido produtivo.
―Cada momento com Ettore é produtivo. ― Zalon respondeu,
demonstrando indiferença.
― Tem razão. ― disse Roberto.
― Ele é um cara fácil, leve, sem tormentos ou traumas.
― Novamente devo lhe dar razão. ― controlou a vontade de perguntar
se, por acaso, ela estava comparando-o ao primo. ― Pessoas vazias são leves,
por isso você ganhará um barbante para segurar o Ettore no chão e não o
perder como as crianças perdem os seus balões.
Quando se virou para fitá-la, notou que ela o observava.
― Tomamos uns drinques.
― Ele a paquerou?
― Não notei. ― deu de ombros.
― Não sabe quando um homem a paquera? ― tinha a impressão de
que ela queria irritá-lo.
― Às vezes.
―Interessante. ― falou, meio que para si mesmo, voltando-se para a
paisagem ao seu lado. ― Tá economizando nas palavras por que não pode
comprá-las no cartão de crédito?
― Se tô gastando demais, posso devolver o cartão. Pensei que fosse
rico. ― o tom de deboche todo ali.
― Tô pagando pra você distrair o meu primo e quero informações
sobre o andamento da empreitada. Mas tudo que recebo são informações
vagas. ― foi seco.
― Da próxima vez eu gravo a nossa conversa. Pode ser?
Ele se virou para encarar um sorriso sardônico.
― Por que tá azeda?
― Acho um saco esse interrogatório.
― Ele tentou beijá-la?
― Claro que não. Acha mesmo que o cara ia forçar a barra logo no
primeiro encontro?
― Como assim, encontro? ― franziu o cenho. ― O cretino lhe pediu
discrição sobre a saída de vocês?
― Não.
― Por que não me avisou de que sairia com ele?
― Sei lá.
― Sabe que posso arranjar outra golpista para enganar o meu primo,
não? Desmancho esse noivado agora, e o Ettore não a levará nem ao bar da
esquina para beber água mineral com gás.
― Vou cumprir o nosso acordo. ― resmungou.
― Talvez eu rompa esse acordo, minha cara. Parece que há um
problema de hierarquia entre nós. Você ainda não assimilou que sou eu quem
tá no comando dessa porra. ― falou bem devagar, amenizando o tom áspero
da voz.
― Ficou zangado por que não falei que ia sair com Ettore? Todo esse
chilique é por isso?
Por um instante, admirando o rosto bonito e descaradamente
debochado, considerou deixar passar a pergunta idiota. Afinal, ela não tinha
nem 20 anos.
― Jonas, para o veículo.
― Agora? ― perguntou, o motorista, pego de surpresa.
Eles estavam quase chegando ao centro urbano, faltavam menos de
vinte minutos. Ou seja, ainda trafegavam na rodovia ladeada pelo
acostamento de mato alto.
― Sim. ― e, voltando-se para a noiva, falou: ― Desce, Zalon.
― Aqui?
― Exatamente.
Ela olhou em torno, parecendo assustada. O sol estava de rachar, o
asfalto exalava vapores quentes, o ar mormacento, a estrada de pouco tráfego
e o mato ocultando perigos, como animais perigosos ou estupradores e
bandidos à beira da estrada. Mas ele estava decidido a lhe mostrar com quem
ela andava. Não queria fazê-lo, jamais abandonou uma mulher desse jeito, na
rua, estrada, que fosse, desamparada.
― Pensei que éramos os dois contra todos. ― argumentou, parecendo
magoada.
― Me enganei, parece que você tá trabalhando sozinha no projeto. Boa
sorte e vá com Deus.
Viu-a lançar um olhar para a nuca do motorista, talvez acreditando que
ele fosse intervir ao seu favor. Não entendeu o motivo de um de seus
empregados a ajudar, contrariando o próprio patrão. Mas Zalon tinha o seu
modo peculiar de pensar.
O prazer que sentia ao atingir os seus oponentes, ao humilhar e
subjugar quem o contrariava o deixou na mão.
― Se me largar aqui, terei que telefonar para o Ettore me buscar. ―
não parecia que o desafiava, o tom estava mais para um apelo.
― O sinal de celular é péssimo nessa região. ― foi cruel, mas não se
sentiu bem a vendo amedrontada. ― O que acha de pedir desculpas e
melhorar o seu humor?
Ela fez que sim com a cabeça.
― Desculpa.
―Tá desculpada. ― rebateu, analisando-lhe a feição entristecida.
Depois se voltou para o motorista. ― Prossiga a viagem, Jonas.
As mãos da garota tremiam, assim como o queixo. Percebeu então que
o medo de ser abandonada na estrada acionou o trauma do abandono dos
pais. Abandono. Rejeição. Desesperança. Ele entendia tudo sobre isso.
Puxou-a para si e a abraçou, beijando-a no topo da cabeça.
― Não me traia com o Ettore, Zalon. ― pediu, mas a voz saiu num
tom de ameaça.
Ela se aconchegou nele e o abraçou com força.
― Jamais.
Aquino Manganelli tinha apenas um filho, mas também uma esposa.
Embora a dita cuja tivesse assinado um acordo pré-nupcial, ela sabia que o
marido lhe deixaria uma parte da herança. Afinal, o velho idiota sempre foi
apaixonado pela vagabunda.
Achou por bem deixar Zalon na antessala da Dra. Carine, uma vez que
a leitura de um testamento era quase como se ler em voz alta o extrato
bancário da pessoa. E o seu noivado era de mentirinha, a sua noiva era uma
golpista, amadora, mas golpista. E, portanto, era preciso se precaver quanto
ao excesso e tipo de informação que a deixava saber.
A advogada e ex-amante ― muito bem casada, por sinal, o recebeu
com um sorriso simpático, o mesmo oferecido a Verônica, vestida num
conjunto de calça e terninho como uma executiva do alto escalão.
Normalmente ela usava vestidos colados para salientar os 500 ml de silicone
em cada teta de vaca cretina que era.
Carine seguiu todo o protocolo, um testamento particular que tinha
como testemunha a secretária de Aquino, uma sessentona que por vezes
tentou lhe bancar a mãe. Simpatizava com ele, queria agradá-lo sem o
bajular, parecia sincera nas recomendações sobre ele se cuidar e ficar de olho
ao redor, que a inveja corroía o invejoso, mas podia também o transformar
em um bandido e, que todos naquele prédio e no país inteiro, o invejavam.
Roberto, ela dizia, você é superior a todos os Manganelli, é o melhor, o seu
pai é sortudo, um besta sortudo.
A advogada leu o inventário.
Cinquenta por cento da propriedade rural do Grupo Manganelli, que
abrangia as mansões do pai (onde Verônica morava com ele) e a do próprio
Roberto, além de um dos estábulos, parte do haras e do rebanho nelore. As
terras no interior do Paraná. Vinte por cento das ações da corporação e, nessa
parte, Roberto sentiu o ar estufar no peito e quase sorriu antecipando o prazer
da vitória sobre os primos. Aquino também era dono de vinte e cinco por
cento de toda Santa Bárbara, já que metade da cidade era dos Manganelli.
Francesco, portanto, detinha a parte restante. Um patrimônio, portanto, que
alcançava um altíssimo patamar.
― O sr. Aquino deixou a parte dele, da propriedade que inclui as duas
mansões, para a esposa.
Roberto não sabia dessa mudança no testamento original. Notou o
sorriso de vitória da madrasta.
― A senhora não tá lendo o testamento certo. ― corrigiu-a com
brandura.
Carine sorriu com condescendência antes de responder:
― Não houve alteração no segundo testamento.
― Esse é o segundo? ― instintivamente apontou para o papel na mesa
da advogada.
Pensei que ele tinha modificado o primeiro, o testamento original, sua
filha da puta. Quando você ia me dizer que ele já tinha modificado essa
porra antes?
― O primeiro testamento foi feito sem advogado. E, depois que ele me
contratou, o sr. Aquino pediu para modificá-lo.
Então o maldito quis modificar o segundo testamento?
Notou que a amante tentava responder com o olhar a pergunta
silenciosa que lhe fazia. Viu um sim brilhar nos olhos dela.
― Quanto tempo o Roberto tem para arrumar as malas e deixar a
fazenda? ― Verônica sorria ao questionar a advogada. ― Imagino que os
móveis da mansão também me pertençam. Uau, a mais luxuosa! Você viajou
o mundo mobiliando o seu cantinho, né, querido?
― Não vou sair da minha casa. ― afirmou, convicto.
― Mas tá no testamento aí, meu enteado do coração. ― sorriu, a boca
com colágeno parecia dois pedaços de salame. ― É certo que irei me mudar
para a sua casa. ― provocou-o, inclinando-se na cadeira ao seu lado,
exibindo o decote profundo que revelava parte dos seios.
― A mansão das putas é a do Ettore, e é nessa que você deve morar.
― falou, serenamente.
Viu quando a advogada baixou a cabeça, disfarçando a vontade de rir.
Em seguida, se recompôs e, parecendo querer pôr panos quentes na situação,
lembrou:
― Roberto, você herdou um patrimônio avaliado em 200 milhões.
Ceder a mansão onde mora não me parece uma grande perda.
― Eu a construí.
― Com as próprias mãos? ― Verônica debochou, fazendo biquinho
como uma adolescente de 38 anos de idade.
― Mas existe algo que precisa ser dito. ― interveio a advogada diante
do olhar que lançou à madrasta. ― A lei permite as chamadas condições
lícitas.
― Condições? Como assim?
Verônica, se não tivesse injetado tanto Botox na testa, por certo a teria
franzido. O tom de voz denunciava a surpresa misturada à desconfiança.
― Isso significa que o seu marido impôs condições para que você
receba a herança, mamãe.
― O Roberto tem razão, mas é apenas uma condição e bem simples.
― ponderou a advogada.
― Tudo bem, imagino até o que seja... O Aquino era muito apegado
aos nossos cavalos. Imagino que a condição seja a de eu mantê-los na
propriedade...
― O haras é meu. ― foi seco.
― Bem, mas... e o que mais seria? Manter a prataria da mãe dele
polida? Realmente ele só era apegado aos cavalos, nem mesmo à empresa.
― Sra. Castro, por favor, qual é a condição?
― A condição é a de eu matar o filho louco dele?
Então Carine fez o trabalho dela.
E nenhum Manganelli saiu feliz daquele escritório.
Capítulo 33

Ettore era gentil, charmoso e educado. Não havia resquício de cinismo,


tampouco de sarcasmo ou a típica sinceridade cruel de Roberto. Tinha o porte
altivo e arrogante, era verdade, mas parecia mais a ver com uma postura
defensiva. Assim como observou no noivo, o primo dele também sofreu nas
mãos do próprio pai.
A tarde escoou pelos dedos como areia e, quando viram, haviam se
passado quase duas horas. Ela sorveu um drinque delicioso, com pouco
álcool, e ele se manteve no uísque. Antes de irem ao bar, Ettore telefonou
convidando-a para uma cavalgada pela fazenda, sabia que Roberto ainda não
tinha lhe mostrado a propriedade devidamente, conhecia-o, acrescentou num
tom leve, sabia que ele não era um bom anfitrião.
Ela lhe disse que preferia ir à cidade, tomar um chope ou conversar na
praça. A última sugestão depois lhe soou ridícula. E, ao contar a Maitê, ouviu
a mesma opinião. Sorte sua que Ettore era um cavalheiro que relevava
mancadas e a convidou para conhecer um sofisticado bar próximo ao salão
country da cidade.
Ele falou pouco de Roberto, apenas que o primo era focado nos
negócios e desatento quanto à vida amorosa. Não entrou em detalhes sobre
ter feito sexo com a ex-noiva dele. Essa parte de mau-caratismo o Manganelli
deixou de fora. E, ao contrário de Roberto, que adorava enumerar os próprios
defeitos, Ettore parecia se portar como um príncipe encantado.
No final do evento, ela já suspeitava de que ele não era príncipe nem
encantado. A sua intuição a pôs em alerta quanto à possibilidade daquele
homem ser um assassino. Alguma coisa que falou, um gesto, o modo de a
olhar, bem, Zalon não conseguiu racionalmente identificar o que a fez ter
vontade de se afastar dele, pedir licença, inventar uma desculpa e cair fora.
Precisou de pouco tempo para perceber que o fato de ele ser diferente
de Roberto ― como se vendesse uma imagem melhor, o tornava mais
próximo de ter sido o cara por trás do advogado cretino.
Sentiu falta da sinceridade cruel de Roberto. E, mais do que isso, notou
que o primo dele aparentava ser o bom-moço da família, o-que-seguia-as-
regras, o senhor certinho. Ele jamais foi internado numa clínica psiquiátrica,
tampouco relinchava pela cidade como Miguel, um estúpido; porém,
autêntico.
Ettore era o cara perfeito.
Assim que a porta do escritório da advogada se abriu, ondas glaciais
atingiram o corredor e a frieza do imperfeito Roberto a acertou, gelando-a
também.
Ele caminhou à sua frente, ignorando-a. A cabeça longe, a coluna reta,
o ar de desagrado beirava à fúria contida. Pelo visto, mais uma vez o pai
aprontou. Depois de morto, continuou a exercer o seu malévolo papel.
― Acho melhor eu ficar em casa esta noite.
― Vamos logo com isso, Jonas. ― disse, mal-humorado, ao se
acomodarem na picape.
― Prefiro realmente...
― Ficará comigo, Zalon. E, por favor, não me aborreça. Simplesmente
aceita a minha determinação.
O tom de voz que usou era perigosamente baixo.
― Tudo bem.
Antes do jantar, ele se fechou no escritório. Depois a convidou para dar
uma volta na fazenda. Estendeu-lhe a mão e se forçou um sorriso.
― Você já recebeu uma ordem de despejo? ― perguntou ele, com uma
afetada naturalidade. Já o conhecia o suficiente para acreditar que algo
danoso estava para acontecer.
― Ainda não.
Ele se voltou para ela e sorriu.
― Eu recebi.
― Ah, tá.
― Juro, Zalon. ― sorriu abertamente ao parar diante da mansão do
falecido Aquino. ― Todos os garotos Manganelli são despejados da casa dos
pais aos 17 anos. Foi quando comecei a construir o meu castelo e, de certo
modo, o meu refúgio. Cada papel de parede, tapete, móvel, o tipo de piso,
cada merda de detalhe tem um significado pra mim. Eu precisava de um
segundo corpo, de alvenaria, que me protegesse do enviado do inferno.
― O que tá acontecendo com você?
― A pergunta que lhe faço é a mesma. ― ele tomou-lhe o rosto entre
as mãos e repetiu: ― O que tá acontecendo com você?
― Nada.
― Odeio mentira. ― balançou a cabeça com pesar e, a seguir,
esboçando um ar cinicamente tirano acrescentou: ― Olha como seu noivo
resolve os seus problemas.
Ele a olhou detidamente e depois lhe deu as costas. Subiu os três
degraus que levavam ao casarão e bateu à porta.
Assim que a empregada uniformizada atendeu, viu-o entregar um
envelope e declarar com displicência:
― É para a Verônica.
A mulher o fitou como se tivesse visto uma assombração. Devia ser
influenciada pelas coisas que ouvia da patroa. De fato, Roberto tinha uma
péssima reputação na família. O que o tornava ainda mais confiável.
Ele voltou até ela e sussurrou-lhe à orelha de modo travesso:
― O oficial de justiça aqui levou a intimação para a vagabunda
abandonar a fazenda em 24 horas.
― Não entendi.
― A Verônica só tinha direito à herança caso fosse uma pessoa que ela
não é. Mas como tenho provas fotografadas e filmadas de que a madame não
se enquadrou na tal condição lícita do testamento do marido, acabo de me
tornar o herdeiro de tudo e despejar a parasita.
Antes que tivesse tempo para assimilar o significado de tal declaração
dita quase alegremente, ouviu um grito esganiçado e o som inconfundível de
objetos de vidro arremessados contra a parede.
― LOUCO DESGRAÇADO! SEMENTE DO MAL!
Roberto puxou-a para debaixo do seu braço, aconchegando-a junto a si
e, balançando a cabeça resignado, comentou:
― A idiota errou o tipo de semente, do mal era o meu pai. Eu sou a
ruim. ― riu-se, baixinho.
― Meu Deus, ela te odeia.
― E quem não me odeia, Diavolo? ― indagou, com ar travesso.
― Não te odeio sempre, só de vez em quando.
Ele a abraçou com mais força.
― Quando não faço as suas vontades, de nova rica mimada?
― Não sou uma nova rica, ainda não dei o golpe no Ettore.
― Por falar nisso, não preciso mais dos seus serviços, meu anjo, tá
dispensada.
Ela parou de caminhar sentindo como se tudo tivesse parado junto, o
vento, os bichos, o balanço dos galhos das árvores, a própria respiração.
Ele estava terminando o recente noivado.
― Como assim?
― É muito simples, consegui tudo. Sou o único herdeiro do Aquino e
agora tenho os quarenta por cento da corporação e uma porrada de dinheiro.
O Ettore terá que lamber as minhas botas e os meus sapatos italianos. Assim,
não preciso de que o distraia, tampouco quero me vingar. A minha vingança é
o poder absoluto que tenho diante dos Manganelli.
― Mas...
Maitê. Preciso falar com Maitê. E nossa vingança, como fica?
―Tá decepcionada? ― ele inclinou a cabeça, sondando-lhe a feição.
― Confusa.
― Imagino que sim, só teve a chance de um primeiro encontro.
Infelizmente não poderei mais ajudá-la a conquistar o meu primo mau-
caráter. ― ele não parecia lamentar.
Ele tá me deixando...
Ele nunca foi meu, como posso sentir essa dor de abandono?
Não posso cobrar nada, xingar, acusar, cuspir na cara ou lhe dar um
bom soco. Roberto só tá se desfazendo da nossa sociedade. Uma questão de
negócios. Como ele falou, “muito simples”. A parte complexa coube a mim,
a de me apaixonar por quem não devia, como Ettore disse.
― Vou sair da sua casa ainda hoje. ― convidou-a para passar a noite
com ele só para despachá-la?
― Não.
― Acha que terá direito a uma última foda, a de despedida? ―
desafiou-o, procurando ocultar o tom de mágoa. ― Seguirei como antes de
você se intrometer. Eu quero um fazendeiro rico e escolhi o Ettore. A gente
até se deu bem no bar. Espero que não conte nada a ele, não atrapalhe, não
diga que sou uma pobre diaba do bairro operário.
― Menina, o Ettore é um narcisista, vai te destruir, sei o que falo.
Além disso, conheço o seu coração, Zalon, e ele é bem fraquinho. ― franziu
o nariz com charme.
― Meu coração é fraco, tudo bem, mas o meu cérebro não é. Quero
me tornar esposa de fazendeiro rico, dar uma boa vida à minha família...
― Conversa fiada, mocinha. Você quer é poder, status, tanto quanto à
vagabunda que acabei de expulsar das minhas terras. Mas, no seu caso, o seu
objetivo é válido. Uma vida dura, trabalhando como costureira... nem estilista
de moda é. ― comentou, balançando a cabeça, rindo-se. ― Me desculpa,
mas de fato errei na comparação. A minha madrasta vem de família rica, ela
tinha 18 aninhos quando conheceu o meu pai, quis sair de casa, fugir da
faculdade e de uma futura carreira. Queria, sim, ser esposa de fazendeiro,
praticamente um tipo de profissão.
― Quero casar com o Ettore. O motivo não importa. ― engoliu a
emoção, deixou-a no fundo do estômago queimando no suco gástrico.
― De quanto tempo eu precisei para te levar pra cama?
Ela o esbofeteou.
― Porque eu quis. ― respondeu, entredentes.
― Claro, não foi estuprada. ― comentou, levando a mão ao maxilar.
― Não perde essa mania, hein? Será que terei de mandar lhe amputar as
mãos?
― Não precisa, vou sair da sua vida.
Tentou lhe dar as costas, mas foi impedida pela mão no seu antebraço
que a virou para ele.
―Jamais será do Ettore, eu não permitirei. ― afirmou, puxando-a para
si a ponto dos rostos quase se tocarem. ― Sei que precisa se sentir segura e
protegida. Ando meio distante, é verdade. Sou assim, Zalon, introspectivo,
não sei expressar o que sinto.
― O problema é de confiança e não de falta de sentimento. ― rebateu,
afastando-se para o encarar.
― Talvez tenha razão. Ultimamente me sinto bem e mal ao mesmo
tempo. ― beijou na testa antes de prosseguir. ― Acordar ao seu lado mudou
a minha vida. Entende o que isso significa? Me tornei dependente de você, de
tê-la comigo. E eu nunca precisei de ninguém depois de adulto. Mas preciso
de você.
― Esse papo tá me deixando confusa.
― Percebi, seus olhos estão bem arregalados. ― comentou, com
espirituosidade. ― Eu a dispensei da função de noiva de mentirinha com a
intenção de torná-la minha noiva de verdade... ― ele ficou sério, muito sério.
― Porque me apaixonei por você.
― O quê?
Meu coração parou.
― Tive certeza disso quando a vi saindo de fininho com o cretino do
meu primo. Por outro lado, entendo que a sua meta seja a de enriquecer e
acho justa e válida. Você e as suas irmãs merecem uma vida digna e me
disponho a protegê-las. Aceito inclusive que me dê o golpe do baú, me
ofereço em sacrifício feito um cordeirinho à suprema entidade Zalon.
Ele a beijou antes que ela pudesse assimilar o que acabava de ouvir.
Mas assim como o comportamento dele a confundia e a instigava, a carícia
gostosa tão cheia de paixão apagou todos os pensamentos da sua mente de
mulher apaixonada.
Ao se separarem, ela sentiu que precisava se sentir segura (sim,
segurança, sempre a maldita segurança) sobre o que havia escutado.
― Tá apaixonado por mim a ponto de seguir com o noivado?
― Não. ― fez um carinho no rosto dela, sorrindo de um jeito terno
como Ettore também sorriu. ― Tô apaixonado a ponto de a tornar minha
esposa o quanto antes. Quero você na minha cama e na minha vida pra
sempre, Diavolo.
Ela sentiu os olhos se encherem de lágrimas.
― Verdade?
Ele então suspirou profundamente, um ricto de preocupação lhe
marcou a testa ao dizer:
― Preciso apenas lembrar que não poderei lhe dar filhos. Na verdade,
eu não quero perpetuar a genética do Aquino. Portanto, tá no seu direito
recusar o meu verdadeiro pedido de casamento.
―A minha prioridade de vida não é a de ter filhos, mas é bom saber se
a adoção é uma opção. ― sorriu com doçura.
― O que você quiser, minha garota. ― devolveu-lhe o mesmo sorriso.
Dormiram abraçados a noite inteira. Embora, durante a madrugada,
Zalon acordou para sonhar. A vida agora era melhor que qualquer fantasia ou
devaneio romântico. Admirou o noivo dormindo e, mais uma vez, viu-se
refém do magnetismo de sua personalidade e beleza.
Como o amava!
Aconchegou-se mais nele, aninhando-se debaixo do braço possessivo
em torno dela, e pensou na sorte de ter aceitado participar do plano de
vingança da irmã. Ainda mais sabendo que o seu alvo não tinha nada a ver
com a tragédia do passado. Ele mesmo sofrera as suas próprias.
E agora também a amava.
Capítulo 34

Zalon não estava mais entre os seus braços.


A madrugada jogava o seu frescor através do janelão aberto, que
separava o quarto do amplo terraço. O cabelo loiro espalhado no travesseiro,
encobria parte do rosto da garota nua debaixo do lençol. Ela não perdia a
mania de esconder a própria nudez após o sexo. Usou como argumento o fato
de que ele (supostamente) se cansaria de ver o seu corpo nu. Mas, na verdade,
o que demonstrava era uma disfarçada timidez.
Tímida e medrosa.
Ainda assim, enfrentava qualquer um como se estivesse em pé de
igualdade.
A coragem de Zalon enfrentar os próprios medos o excitava
sobremaneira. No momento em que se declarou a ela, notou o quanto ficou
apreensiva e perdida no plano que saíra do seu controle. Paralisou, se
recompôs e o enfrentou. Tremia toda e os olhos arregalados quase fora da
cara. Mas nada a deteve, e ela aceitou mais uma mudança radical na sua vida
de garota de 19 anos.
Levou a mão para entre as pernas femininas e a tocou suavemente. Ela
se mexeu, resmungou, prestes a acordar.
― É apenas um sonho. ― sussurrou junto à sua orelha.
Ergueu um pouquinho e lentamente uma coxa feminina e, como ela
estava deitada de costas para ele, meteu o pau por trás, na boceta que o
abocanhou no diâmetro grosso.
Ouviu-a ofegar e, no instante seguinte, abriu os olhos.
― Continua dormindo, minha Zalon. ― instigou-a a participar da
fantasia.
Ela voltou a fechar os olhos, comportando-se como se estivesse
desmaiada ou morta, sem controle algum sobre o próprio corpo.
Ele agarrou com força a coxa macia, deslocou os quadris num vaivém
sexual cadenciado com a urgência de fodê-la. Meteu e tirou, ouvindo-a gemer
alto sem sair do papel que lhe cabia.
Tapou com a mão a boca de Zalon enquanto batia forte o pau dentro do
corpo que se curvava para recebê-lo. Ela gritou na palma da mão dele.
Roberto aumentou a intensidade das estocadas até senti-la estremecer ao
chegar no ponto mais agudo do orgasmo.
Em seguida ele gozou. Deixou-a deitada ainda de olhos fechados e foi
para o banheiro.
Debaixo da ducha pensou nos últimos acontecimentos, grato a si
mesmo por ter uma mente ágil e preparada para as emergências.
Lá estava ele, diante da advogada que acabava de anunciar que para
Roberto receber a herança deixada pelo pai também teria de cumprir uma
condição lícita.
Antes mesmo de ouvir qual seria a tal condição, apertou os maxilares a
ponto de lhe doer a mandíbula. O desgraçado não tinha o direito de cagar
regra depois de morto. O desgraçado não o obrigaria a mais nada a fim de
tomar posse do que era seu. O desgraçado não o humilharia da sepultura.
Por Deus, por que não matei esse desgraçado antes de ele me matar
por dentro?
― Roberto, você tá bem?
A voz de Carine veio de longe, do outro lado de um longo túnel escuro,
que era exatamente a representação da sua alma.
― Oh, o coitadinho tá em estado de choque.
― Você é quem deveria estar. ― retrucou, sem lhe dar atenção, já que
encarava a advogada que lia silenciosamente o que lhe diria a seguir.
― Para receber a parte do seu pai do controle do Grupo Manganelli,
independente da condição lícita da sua madrasta se cumprir ou não, você terá
de se casar.
Ouviu a risada histérica ao lado.
― Mas ele já tá noivo! Que dificuldade. ― disse, contrariada.
― Esse testamento foi feito há bastante tempo, o sr. Aquino não sabia
sobre o futuro noivado do filho. ― esclareceu a advogada. ― Mas há outro
detalhe. ― acrescentou, fitando-o. ― O prazo para se casar é de trinta dias a
contar da data do atestado de óbito. Portanto, você tem menos de um mês
para me trazer a sua certidão de casamento. ― advertiu-o, impassível.
― Eu sempre fui fiel ao meu marido, não tenho problema algum em
atender à condição imposta.
― Sra. Castro... ― ele ignorou a madrasta, inclinando meio corpo para
frente. ― Então o defunto me mandou casar sem se importar com quem? O
fato de ele ter se casado com uma vagabunda não significa que eu faça o
mesmo.
― Mas acho que só uma vadia bem desesperada aceitaria casar com
um ex-interno de hospício ambicioso e rancoroso. Você é um perigo,
Roberto. É capaz de matar qualquer um que atravesse o seu caminho.
― É mesmo? E como você e a sua bunda com enxerto de gordura da
barriga ainda estão vivos? ― indagou, com acidez.
― Entenda... ― interveio novamente a advogada. ― que a condição
imposta não é contra lei e, além do tempo para se casar, você terá de se
manter casado por dois anos. Caso contrário, o próximo beneficiário é o sr.
Francesco Manganelli.
― Há mais alguma coisa que eu deva saber? ― seguro, preciso quase
cirúrgico, as emoções adestradas.
― Se não cumprir a condição, ainda receberá o patrimônio
mencionado. Veja que o casamento o beneficia apenas em relação ao controle
do grupo empresarial, ou seja, o seu tio irá deter os quarenta por cento do
controle acionário. Você continuará a ser milionário, casando-se ou não. ―
salientou, de modo significativo.
Ao chegar à mansão, esperou Zalon entrar no banho e juntou os
documentos para entregar a Verônica. O despejo de suas tralhas da mansão
do maldito aconteceria naquela noite.
Feito isso, ele teria de pedir a golpista amadora, porém conhecida e
manipulável, em casamento. Uma rápida manobra, um casamentinho
inesperado, um leve obstáculo. Por mais que Zalon quisesse dar o golpe do
baú num ricaço, não seria a oferta de dinheiro que a faria se casar com ele.
A garota era uma romântica do tipo mais sonso que existia. Iria
declarar um suposto amor e cumprir a vontade do pai. A última, embora
ainda amarga. Mais do que nunca odiava aquele que sempre o controlou e o
manipulou quando não conseguiu mais o espancar.
Encontrou-a sentada na cama, de costas para ele, virada para o janelão
enrolada no lençol.
― Tá acordada ou é sonâmbula? ― provocou-a.
― Tô pensando... ― a voz arrastada. O tecido claro e sedoso deslizou
dos seus ombros magros, revelando parte das costas, e era uma imagem
sensual e bonita, como ele bem observou. ― Me pediu em casamento ou eu
sonhei?
Ele sorriu consigo mesmo e sentou do lado oposto da cama. Ambos de
costas um para o outro.
― Estamos sonhando acordados.
― Eu disse sim?
― Por que diria não, se vai trocar um fazendeiro rico por um
milionário?
― Acha mesmo isso?
― O quê, minha Diavolo?
― Me apaixonei por você, Roberto.
Ele trincou os maxilares ao ouvi-la se declarar. Fechou os olhos e
respirou fundo, controlando a vontade de dizer que não era um idiota
manipulável.
― Eu não preciso disso, Zalon. ― falou, serenamente. ― Não preciso
ouvir sobre os seus supostos sentimentos por mim. Se me ama ou não, isso é
com você mesma. A única coisa de que precisa saber é que tô apaixonado por
você e a sua busca por dinheiro, status ou vingança... ou, sei lá, tudo isso
junto, acabou. Entendeu? Um alimentará o outro do que necessita.
Ela se virou para ele, os olhos sonolentos, o cabelos desgrenhado, a
beleza juvenil que o fascinava.
― Quer dizer que não precisa se sentir amado?
Ele sorriu um sorriso cínico, mas foi sincero ao declarar com brandura:
― Eu nunca fui amado, Zalon. O que importa agora?
O olhar que ela lhe endereçou foi tão melancólico que, por um instante,
quase acreditou que de fato nutrisse sentimentos por ele.
O que também não importava.
Capítulo 35

Dali a poucos dias, ela estaria casada com Roberto. Tudo aconteceu tão
repentinamente que lhe custava absorver o teor da mudança e as
consequências disso.
Viu quando o noivo preencheu um cheque de valor vultoso ao dono do
cartório para que acelerasse o processo da papelada, e o outro lhe garantiu
que estariam casados no máximo em uma semana. Ou melhor, que os papéis
do casamento no civil estariam prontos para serem assinados.
De certo modo, estranhou a pressa em se casar. Tentou não pensar
besteira. Fez de tudo para distrair a mente, não a deixando entrar no terreno
da especulação sombria e pessimista. Acreditava que fora coincidência ele ter
resolvido casar assim que soube da herança. Porém, imaginou, por um
momento, que algo aconteceu no escritório. Mas não tinha como saber direito
o quê. Afinal, qual seria a ligação entre a leitura de um testamento e um
inesperado pedido de casamento? Mais do que isso, o que a intrigava era a
pressa do noivo em se casar.
Mas acreditou na sua declaração de amor. Embora não tenha lhe dito
que a amava e sim que estava apaixonado. E, a bem da verdade, Zalon não
sabia se havia ou não diferença entre as duas expressões. Talvez, para
Roberto, estar apaixonado significava amar alguém. Para ela, contudo, eram
sentimentos de níveis desiguais. A gente podia se apaixonar todos os meses
por um cara diferente, a questão da química física ou intelectual atraía um
para o outro. Mas isso não significava que a paixão iria se transformar em
amor. Em última análise, sentir amor era alcançar o máximo dos sentimentos,
o rei deles, o leão da floresta. Amar era se colocar no lugar do outro, planejar
uma vida inteira a dois, caminhar de mãos dadas como se ninguém fosse
capaz de os separar. O amor transcendia, aprofundava, preenchia e
transbordava. Enquanto a paixão explodia, intensa e louca, e depois se
apagava. Até chegar a próxima.
Ela tinha certeza de que amava Roberto.
Foi ele quem lhe abriu a porta da picape, saindo de trás do volante para
contorná-la e se postar ao seu lado.
― Virei buscá-la à noite.
― Tudo bem.
Ele a beijou de leve nos lábios.
Ao se afastarem, teve o rosto tomado pelas mãos grandes e masculinas
enquanto era avaliada detidamente por um par de olhos bastante sagaz.
― A Maitê não vai gostar do nosso casamento.
― Você também é rico. ― brincou, sem jeito.
― Rico e apaixonado por você. Evidentemente, sou o cara perfeito
para os planos dela. Mas, ainda assim, não sou o Ettore, e a sua irmã me
parece exercer o papel de líder do bando.
― Não somos um bando. ― falou, ressentida.
― Bando de garotas do campo, Zalon. Não quis ofendê-la.
Ela baixou a cabeça, incomodada com a intensidade daquele olhar.
Tinha a impressão de que era analisada e avaliada por ele o tempo todo.
― Minha irmã sabe o que é melhor para nós. ― disse apenas.
― Ela só tem 21 anos, não sabe nada da vida para ser considerada
como mentora ou modelo.
― Somos unidas.
― Até algo acontecer e as separar. ― foi amargo. ― Meus primos e
eu também éramos unidos até o início da adolescência. Para mim, o Ettore
era como um irmão mais novo, o caçula, e o Miguel, o mais velho, que sabia
mais sobre o gado e as terras. Mas o tempo passou e nós mudamos. Nossos
pais incentivaram a competição entre os rapazes da segunda geração da
família no Centro-Oeste, e as nossas mães caíam de cama, doentes, sem
poder intervir e mudar a porra do nosso destino.
― Acho que os seus primos gostariam de retomar a amizade.
― Oh, sim, em especial, o Ettore. ― zombou. ― O camarada me traiu
com a minha própria noiva, pelo amor de Deus.
― Ele quis chamar a sua atenção para o fato de ela não ser confiável. E
não era mesmo.
― Foi o que o idiota lhe disse? ― indagou, com rispidez.
― Sim, e acreditei nele. Parece que fez o mesmo com uma das
namoradas do Miguel, e a mulher o esbofeteou e contou para o namorado, no
caso, o irmão dele. Viu, essa aí tinha caráter, mas a sua noiva não. O Ettore
tem pavor da família perder tudo para uma vigarista.
― Eu sei o motivo. ― comentou, olhando-a fixamente. ― O meu pai
quase perdeu tudo para a Verônica. Isso só não aconteceu porque o tio
Francesco o obrigou a fazê-la assinar um acordo pré-nupcial. A vagabunda
era rica, mas dinheiro nunca é demais. ― e, olhando para o horizonte,
acrescentou: ― Assim como o poder nunca é demais.
― Dinheiro e poder. É por causa dessas merdas que famílias inteiras
são destruídas. ― comentou, controlando a irritação.
― Sim, as que passam fome, você quer dizer. ― brincou, beijando-a
na ponta do nariz. ― Tenho que ir, minha Diavolo. Nada irá mudar se
continuarmos a filosofar debaixo do sol.
Agora ela estava na cozinha, sentada à mesa, bebendo suco de laranja
artificial, aqueles com bastante corante.
Sentia-se tensa e receosa de enfrentar a ira de Maitê e das tias ao contar
que se casaria com um dos Manganelli. Sabia, por outro lado, que Rafa
entenderia a sua escolha. Talvez até a ajudasse a acalmar as outras feras.
― E acreditou? ― foi a primeira pergunta que recebeu da irmã velha.
― De uma hora pra outra, o Roberto se apaixonou por você?
― Bom, a gente já tava um tempo juntos...
― Fo-den-do. Só isso.
― Nossa, Maitê, que boca suja. ― reclamou tia Paulina.
― Sujeira é o que a Zalon tá fazendo ao se casar com um daquela
família nojenta.
― Ele não tem nada a ver com o que aconteceu a nossa mãe. ―
argumentou.
― Mas faz parte da família, tudo igual.
― A Maitê tem razão. ― tia Paulina novamente interveio, agora
sentando à mesa, dando a entender que participaria da conversa. ― É uma
questão de índole, um fruto nunca cai tão longe do pé.
― Ele odeia o pai, foi maltratado quando era criança.
― Mas é um cabra ambicioso demais, como uma maldito Manganelli
que é.
― Maitê, eles não se suportam e isso mostra o quanto são diferentes.
― É você quem tá vendo diferença entre eles. ― reagiu a irmã. ― E
sabe por quê? Amor, o amor nos cega. É clichê? Sim, um clichezão da porra,
mas também a mais pura verdade.
― Me desculpa, mas você não convive com o Roberto como eu.
― Não queria me meter... ― disse Rafa, pulando do peitoril da janela
de onde estava sentada. ― Mas acho que a Zalon tem razão, o cabra é gente
boa. Por mais que seja mandão e quadrado, do tipo de dar ordens e tal, não
me pareceu igual aos outros. Pelo contrário, ninguém gosta dele. ― riu-se. ―
Olha a fama do cabra. Nem a família gosta dele!
― Acontece que você entrou naquela fazenda para uma vingança e não
pra viver uma história de amor. ― afirmou a irmã mais velha, decepcionada.
― Ainda tem o Ettore e o Miguel, não afunda na cadeira, não. ―
comentou Rafa, despreocupadamente.
―Esse casamento vai estragar tudo.
― Não, pelo contrário, estarei lá dentro e assim vou fuxicar em tudo
até encontrar o maldito contrato de compra das nossas terras.
― Viu, Maitê, a Zalon tá apaixonada, mas ainda tem tutano.
― Já se perguntou o motivo de ele sair do escritório da advogada que
acabou de ler o testamento do seu pai e, em seguida, lhe pedir em casamento?
Tem coisa aí, uma coisa muito da graúda que o fez mudar de ideia quanto a
ele se vingar do primo. É estranho que agora ele largue de mão o
ressentimento e só queira viver de amor com você. Ele, o mais inescrupuloso.
Zalon se pôs de pé com tanta rapidez que mal notou a tremedeira no
corpo. Era raiva. Sentiu uma tremenda raiva de Maitê.
― O inescrupuloso, como você diz, estava internado numa clínica
psiquiátrica por causa do próprio pai. O inescrupuloso tem cicatrizes nas
costas de espancamento quando era criança. O inescrupuloso tem pesadelos
com a mãe morta, porque nunca lhe disse que a amava. É esse mesmo
inescrupuloso que tira dos meus ombros a carga pesada da vingança que
você, somente você, inventou.
O assunto, para ela, acabou ali.
Juntou suas roupas e as colocou na mochila. Foi para a parte da frente
da casa à espera de Roberto, que voltaria para pegá-la.
Não pôde deixar de notar o olhar curioso dos vizinhos fuxiqueiros de
trás das suas cortinas ordinárias.
Minutos depois, a picape parou junto ao meio-fio da calçada. Ela se
levantou quando o viu sair do veículo. Ele a encarou com um esboço de
sorriso estampando a feição suave e relaxada e depois abriu os braços. Zalon
correu para Roberto, que a levantou no colo, abraçando-a por um bom tempo.
Ninguém o amou, ele disse.
Ela o amaria por todos.
Capítulo 36

Era a primeira vez que Roberto voltava a pôr os pés na casa dos pais. A
última fora por conta de um jantar que Aquino e Verônica ofereceram à
comunidade de fazendeiros abastados. Ele se obrigou a ir. Evidentemente
aproveitou para interagir e fechar negócios. A todo instante, porém, sentia os
olhos da mãe plantados nas suas costas e a palavra traidor lhe chegava aos
ouvidos num sussurro.
Ao adentrar a ampla sala de piso frio e móveis claros e modernos, o
ambiente quase praiano idealizado por Verônica, foi tomado por uma extrema
melancolia. Já não havia mais vestígios da existência de sua mãe, rastros de
sua vida em algum canto ou cômodo, um porta-retratos sobre o piano ou uma
tapeçaria sua, uma pintura comprada antes de adoecer. Nada. Era como se
Aquino tivesse, desde sempre, ter sido casado apenas com Verônica.
Mas agora nem ela estava mais lá. Voltou pra sua terra, tinha o teto do
pai pecuarista para a abrigar. E, em breve, miraria os peitos duros de silicone
em algum velho rico e moribundo e aplicaria novo golpe.
Seria essa a vida de Zalon? Pular de fazendeiro para fazendeiro até se
acertar com um?
Conhecia-a o suficiente para saber que o dinheiro não a movia, assim
como também não movia Verônica. A sua madrasta era um fantoche da
própria necessidade de status. Mas Zalon era manipulada por algo sombrio e
profundo, a raiva, aquela raiva que lhe chegava aos olhos e parecia contar
tudo sobre o seu passado.
Um fazendeiro rico comprou as terras da família Toledo. Fez o negócio
primeiro com o pai que as abandonou e depois conseguiu a assinatura no
contrato de compra e venda junto à mãe, que, em seguida, se matou. Zalon
atribuiu então a tragédia à manobra do fazendeiro ao persuadir à sua mãe a
vender o único patrimônio que tinham e, pelo visto, também ganha-pão.
Roberto farejou algo no ar, mais precisamente na raiva demonstrada
por Zalon, bem como na ideia de sua irmã a respeito de aplicar o golpe do
baú em Ettore. Afinal, por que Ettore? E por que não outro fazendeiro? Eles
não eram os únicos.
Ao lembrar da conversa que tiveram, percebeu somente agora que
Zalon quis contar mais ou sondá-lo a fim de obter informações. Ele teve essa
impressão antes e, mais do que nunca, estava certo de que a noiva não
escolheu Ettore apenas por ser um milionário solteiro e sim por que
suspeitavam que ele era o tal fazendeiro que acabou com a família das irmãs.
Ele saberia onde estava a verdade. Era apenas uma questão de
encontrar a escritura e ver a assinatura do comprador.
Zalon, sem saber, lhe deu TUDO, simplesmente tudo que ele mais quis
na porra da vida, que era o controle majoritário do Grupo Manganelli.
Agora, era a sua vez de retribuir o favor.
Subiu ao escritório do pai, olhou em torno tentando lembrar aonde ele
deixava a combinação do cofre. O velho era velho. Portanto, esquecido. Tio
Francesco sugerira ao irmão que escrevesse os números que abriam o seu
cofre num papel e o escondesse. E foi o que Aquino fez. Assim não precisaria
decorá-los, bastava pegar o tal papel.
Um detalhe da personalidade do pai era bastante conhecido. Ele se
apegava aos detalhes, raciocinava com afinco para chegar a uma conclusão
sempre óbvia.
Roberto apenas baixou os olhos para as gavetas da escrivaninha e,
sorrindo levemente, retirou-as do lugar. Em meio ao caos de canetas,
elásticos, pregos, moedas antigas e outras tralhas, considerou que não
houvesse papel por ali, apenas entulho de objetos.
A última gaveta estava trancada.
Deu uma olhada em torno em busca da chave e não a encontrou.
Chutou a gaveta até quebrar no lugar onde ficava a fechadura. Abriu-a, a
madeira cedeu e espalhou farpas no piso.
Pegou um papel enrolado no formato de um cone longo, guardado
junto à lateral interna da gaveta. Era o mapa de Santa Bárbara. A demarcação
das terras dos Manganelli aparecia nos círculos vermelhos feitos de caneta
esferográfica.
Franziu o cenho, reconhecendo a parte que cabia à família como donos
legais do município. Não havia, portanto, fazendeiro que tivesse terras em
seu nome, pois apenas o centro comercial e o bairro operário ― o maior da
cidade, com quase o total de área de fazendas, estavam fora da demarcação
feita no mapa. Cada círculo possuía no seu interior a letra “M”. E isso só
podia significar a marcação do domínio dos Manganelli. Havia, entretanto,
uma parte de terra, vizinha a deles, cuja marcação era em amarelo, uma seta
apontada e um “T” enorme escrito no mapa.
Precisou de poucos minutos para assimilar que aquele mapa era a
prova da apropriação das terras das Toledo por parte dos Manganelli. O que
anos atrás foi o lar de Zalon, das suas irmãs e pais, hoje nada mais era que a
pastagem do gado. O rebanho se expandiu e precisaram de novas áreas para o
rodízio do pasto.
As novas áreas foram negociadas com o homem que abandonou a
mulher e as filhas. Um porco. Um sujo. Um monstro igual ao seu próprio pai.
Sentou na cadeira e enterrou o rosto entre as mãos.
Quem tirou vantagem da falta de caráter do pai de Zalon? Elas sabiam
que fora alguém da sua família, por isso mesmo a troca do sobrenome.
Acreditavam pelo visto que o filho da puta fizesse parte da geração mais
jovem dos Manganelli.
Mas estavam enganadas.
Por mais que não suportasse os seus primos, a obsessão pela posse de
terras era uma característica da primeira geração dos Manganelli em Santa
Bárbara.
Afastou as mãos do rosto e somente assim viu a ponta de um envelope
escapando da gaveta recém-aberta. Leu o papel que puxou do seu interior, era
o contrato de compra e venda das terras de Jerônimo e Mariane Toledo.
Passou a ponta dos dedos pela assinatura, com a caneta esferográfica azul, do
nome de quem podia ter sido a sua sogra. A letra bonita parecia tremida e
havia uma falha da tinta na última sílaba.
Ao lado da assinatura dos alienantes da propriedade, o nome do único
comprador.
E a certeza de que se casaria com alguém decidida a se vingar.
Capítulo 37

Zalon acordou e se espreguiçou como uma gata debaixo do sol


fraquinho. Rolou para o lado a espera de tocar no corpo do noivo para abraçá-
lo, mas estava sozinha. Considerou que estivesse no banho e a vontade de se
juntar a ele debaixo da ducha a motivou a sair da cama.
Pegou o lençol para encobrir a nudez. Imaginou, contudo, o rosto
surpreso de Roberto ao vê-la zanzar nua pela suíte. Por que esconderia um
corpo que era amado e desejado por ele?
Parou à porta do banheiro ao perceber que o lugar estava vazio.
Era estranho que ele tivesse saído para trabalhar sem a beijar.
Bom, era estranho que ela considerasse estranho algo vindo de
Roberto, o cara mais imprevisível do planeta.
Tomou um banho, vestiu um jeans e uma regata e calçou as botas de
vaqueira que lhe custaram dois mil reais. A bem da verdade, custaram a
Roberto. Ela jamais pagaria mais de cem reais por um calçado. Onde morava,
por exemplo, dava para comprar tênis por R$ 89,90, duravam bastante tempo,
a sola boa, a lona macia. Ao passo que as rasteirinhas não chegavam a vinte
paus. Mas quando viu o par de botas de couro legítimo, com detalhes em cor-
de-rosa nas laterais, sacou o cartão de crédito do Manganelli rapidinho. Era
tímida para andar pelada na frente dele, todavia, na hora de usar o cartão a
timidez se mandava. Maitê acreditava que ela o fazia por vingança e
aprovava os gastos. Rafa, no entanto, sabia que Zalon era uma baita
consumista. A desgraceira toda era a pobreza. Pobre consumista era a pior
combinação possível. O cadastro do SPC, o tal do Serviço de Proteção ao
Crédito, bem o sabia.
Prendeu o cabelo num rabo de cavalo juvenil e não se maquiou.
Borrifou perfume no pescoço e um pouco nas axilas. Pegou a bolsa e a pôs no
ombro. Admirou-se diante do espelho, decidida a fazer uma visita ao futuro
maridinho.
A desculpa seria a saudade. A verdade, porém, era que queria pegá-lo
de surpresa e ver se realmente estava trabalhando ou o comportamento
esquivo, de sair sem se despedir, fazia parte de algum esquema...
Ok, que esquema, sua maluca?
Precisa admitir a si mesma que se sentia insegura. Ele era bonito e
milionário, tinha uma personalidade forte e irresistível, ainda que fosse cruel
e sádico na medida certa, ou seja, do jeito sexualmente cruel e
charmosamente sádico.
Sorriu consigo mesma, transbordando de amor por aquele homem.
Queria vê-lo trabalhando, vestido no terno escuro e alinhado, mandando e
desmandando em todos. Mas também havia um quê de ciúme e posse
latejando dentro dela. Temia não o encontrar na empresa ou vê-lo na sala
sozinho com outra mulher. Sabia que os caras de escritório tinham amantes
onde trabalhavam. Às vezes passavam mais tempo com as colegas de
trabalho do que em casa.
Roberto era seu e chutaria a bunda da primeira executiva que cruzasse
o caminho dos dois.
Jonas estava a postos, escorado na picape debaixo da sombra de uma
árvore de copa larga.
― Ainda não tô acostumada a ter um motorista particular. ―
comentou, sem jeito.
Ele mexeu na aba do chapéu de modo cavalheiresco ao rebater:
― E a guarda-costas? O patrão me mandou ser o seu motorista e
segurança particular.
― Jura? Que chique. ― sentou ao lado dele e acrescentou, agora, um
minuto depois de assimilar a informação: ― Segurança? Vão querer me
sequestrar, porque sou noiva de um cabra cheio da nota?
O outro riu baixinho.
― O seu Roberto se preocupa com a senhora.
― Não me chama de senhora, pelo amor de Deus! ― bateu de modo
amistoso no braço dele.
― É a minha patroa, uai.
― Jura que você é de Minas? Minha irmã adora fazer sotaque
mineiro... epa, quero dizer, nós também somos de lá.
― É mesmo? Eu não, sou do interior de Santa Catarina.
Certo, o uai era de todo mundo então, considerou, sorrindo sem graça
para o motorista.
Foi Jonas quem lhe disse que os diretores usavam a cobertura do
prédio para os seus respectivos escritórios.
Ela apertou o botão do último andar e aguardou o elevador subir. Atrás
de si, a parede espelhada. Virou-se e deu uma olhada no visual. Gostou do
que viu, os olhos brilhavam, as bochechas coradas. Enfim, parecia cheia de
vida. Se o cheia de vida era o mesmo que cheia de amor... bem, era assim
mesmo que se sentia.
Aportou num corredor acarpetado e longo, as paredes o ladeando
cobertas de quadros, paisagens de Santa Bárbara desde a sua colonização
anos atrás. O belo pântano com ares sombrio, pintado na tela, existia de
verdade. Os círculos de água no rio lodoso recebiam o desenho das sombras
do entrelaçamento dos galhos das árvores em outra tela, e isso também
existia. O verde pulsando na estação chuvosa e depois se tingindo de amarelo
no verão, a metamorfose das cores de acordo com a temperatura da região,
cada aspecto rural, singelo e misterioso eternizado nos quadros.
Ao fim do corredor, lia-se a plaquinha preta com letras em dourado:
Conselho Executivo.
Abriu a porta e viu que era uma sala de reunião. A mesa retangular e
ampla, várias cadeiras, e demais móveis.
Antes de seguir à direita, por outro corredor, sentiu duas mãos nos seus
ombros.
― Perdida?
Reconheceu a voz de Ettore.
― Um pouco. ― admitiu, voltando-se para ele.
O homem era um caso sério, bonito pra caramba, até furo no queixo
tinha. Não era à-toa que dominava a mulherada, colocava-a na coleira e a
chicoteava no traseiro. O olhar era sacana, mas não explicitamente sacana.
Era mais como se ele fosse um filho da puta que se esmerava em se passar
por bom-moço pra enganar ou encobrir suas patifarias.
Patifarias, sim. Era certo que Ettore não prestava.
Será que ela estava sob a influência de Roberto?
― Posso ser o seu guia. ― sorriu, de modo cativante.
― Vim conhecer o escritório do meu noivo.
― Imaginei que fosse esse o motivo. ― piscou o olho para ela e pegou
a sua mão. ― É uma pena que não tivemos reunião hoje, você teria assistido
a um belo espetáculo.
― Que pena mesmo. Sempre tive curiosidade em saber o que os
executivos fazem nas reuniões.
― Quanto aos outros eu não sei, mas aqui tudo é mais divertido. Às
vezes o Miguel quebra um cinzeiro, uma cadeira ou o próprio celular, como
já aconteceu. ― ela arregalou os olhos, e ele riu antes de continuar: ― Isso
não é nada. Roberto e eu tentamos manter a classe, mas o meu pai e o Miguel
são passionais, creio que a verve italiana tá mais neles.
― Duvido que você e o Roberto nunca tenham se pegado no tapa. ―
provocou-o.
Ele fez um biquinho com a boca, um gesto infantil que ficou bastante
charmoso no rosto másculo.
― Bem... digamos que as nossas brigas sejam mais verbais. Eu não
escolho as melhores palavras para atingir o seu noivo, e ele faz o mesmo
comigo.
― É uma pena que não sejam unidos. ― mentiu. Queria mesmo era
que Roberto acabasse com ele e o irmão.
― Essa é a dinâmica da nossa família, é assim que funcionamos. ―
disse, com descaso, dando de ombros.
― Por que não tentam se reaproximar?
― O Roberto é ganancioso e quer nos tirar da empresa, tomar tudo dos
Manganelli só pra si. Seria um suicídio profissional baixar a guarda para o
meu primo. ― de repente ele parou de falar e a pegou debaixo do queixo: ―
Ele não a fará feliz. Sei disso, porque recebi nos meus braços a sua ex-noiva.
Ela estava carente e insegura, perdida, sem saber com quem lidava. O meu
primo é um camaleão com veneno de escorpião. Ou seja, muda as cores da
sua personalidade de modo a confundir os outros e depois os destrói. ― a voz
baixa e arrastada com todos os tons da persuasão.
― Diz o cara que teme perder a sua parte na empresa para o primo. ―
zombou.
― Bem se vê que se tornou uma forte aliada do Roberto. É uma pena
que tenha escolhido o lado negro da força. ― disse, com ar divertido.
Ela separou os lábios para dizer que era a mais forte aliada do homem
que amava, mas não conseguiu. A boca de Ettore colou-se a sua e a impediu
de falar, calando-a num beijo. Ele lhe separou os lábios com a língua, que a
penetrou e sugou a sua, enquanto as mãos a puxavam para si, abraçando-a
com impetuosidade.
Tentou empurrá-lo com as mãos, mas não havia espaço no
enquadramento do arco entre os braços dele. Era impossível se mexer.
Capítulo 38

Zalon desviou o rosto e teve a nuca presa por uma das mãos de Ettore,
firmando o beijo e o aprofundando.
O único gesto que lhe restou para tentar escapar do cerco, foi levantar
o joelho para acertá-lo entre as pernas. Entretanto, no mesmo instante que
tentou fazê-lo, ele a empurrou contra a parede, imprensando-a com o próprio
corpo.
― Não! ― gritou, assim que teve a chance de se apartar do beijo.
― Você é noiva do Roberto, um canalha, então é certo que também
não presta. ― afirmou, pegando em cheio um dos seios. ― E é assim que eu
trato quem não presta. ― disse, entredentes.
Quando a beijou novamente, Zalon o mordeu no lábio inferior. Sentiu
o gosto do sangue na boca e ouviu o som de um trovão no meio do corredor:
― Larga a minha mulher, seu desgraçado!
Por um instante não reconheceu a voz de Roberto. O tom cínico e
sarcástico foi substituído por um rosnado de fera, grave, rouco e ameaçador.
Ettore esboçou um sorriso superior e era como mostrasse ao primo que
mais uma vez ele foi traído.
― O que posso fazer se elas têm a mesma índole que a sua? ―
declarou, com cinismo.
Zalon o esbofeteou. E não foi apenas uma vez. Deu-lhe uma bofetada
em cada bochecha, daquelas bem dada, de estalar alto. E, no minuto seguinte,
Roberto a puxou para si, abraçando-a.
― Vem pra mim. ― apertou-a em seus braços, beijando-a no topo da
cabeça.
― Acha mesmo que ela o ama? Se quer saber, fiz uma pesquisa rápida
na internet e não existe família Diavolo. Mais uma vez tá sendo enganado,
seu idiota.
Roberto a encarou.
― Minha Diavolo, amore mio, o que veio fazer aqui?
― Você não se despediu de mim hoje pela manhã. ― respondeu, com
simplicidade.
― É verdade, me perdoa. ― beijou-a na testa e depois levemente nos
lábios. ― Veio me ver?
― Sim, me senti incomodada e insegura. ― admitiu, baixando o olhar.
― Queria ver se tinha muita mulher bonita na sua empresa.
― Oh, que dengo, tão pura e inocente a farsante. ― Ettore ironizou,
agora, sem usar a máscara de bom-moço.
Era esse homem que Roberto enfrentava todos os dias.
― A minha sala é a última, indo reto pelo corredor, ok? Vá e me
espera que já lhe dou atenção. ― declarou, com ternura.
Assim que ela se afastou, ouviu o barulho seco de um soco. Virou-se
para trás e dois CEOs bem-vestidos se soqueavam feito pugilistas numa
arena. Roberto acertou o queixo de Ettore, que balançou a cabeça para trás e,
após um segundo se recompôs, desferindo-lhe um golpe que o acertou
debaixo do queixo. Não precisou muito para que os dois se atirassem no chão
e se esmurrassem como nas lutas do UFC.
Levou a mão à boca, petrificada de medo.
Uma das portas se abriu, e Miguel apareceu com sua eterna carranca de
mau humor. Pegou o irmão, por trás, pela gola do terno e o ergueu do chão,
empurrando-o contra a parede e se pondo entre ambos.
― Já se aqueceram, agora chega disso.
O noivo ainda estava no chão quando falou com rispidez:
― Se tocar na minha mulher de novo, eu vou te matar. Entendeu,
Ettore?
― Pouco me importa a sua Verônica. Quero mais que tome bem no
meio do rabo. ― disse, limpando o sangue do nariz.
― Certo, já desabafou. ― interveio Miguel, largando o irmão. ― O
pessoal da segurança viu o espetáculo e tá subindo aqui pra acalmar os
ânimos. Depois a gente vira meme interno que o pessoal criativo do TI faz e
não gostamos. Chega de barraco, porra! Sorte de vocês que o pai tá na
fazenda, senão ele ia te dar uma dura, Ettore. ― Miguel se voltou para
Roberto e falou: ― Sabe muito bem que o nosso velho te idolatra, mas você
ainda não tem os quarenta por cento pra cagar moral pra cima de nós.
― Vou esmagar os dois com a ajuda do paizinho de vocês, bando de
escrotos. ― a voz era perigosamente baixa e rascante.
Miguel empurrou o irmão para o interior da primeira sala que viu e
fechou a porta atrás de si.
― Eu não quis beijá-lo.
― Não mesmo? ― ele a encarou, sério. ― Sei que tá jogando comigo,
Zalon. Topei entrar no seu jogo inclusive. Mas agora acabou a malandragem,
entendeu? Vamos casar de verdade e não a quero perto do Ettore.
― Foi pura coincidência.
― Vou arrebentar a cara daquele cafajeste.
Dito isso, ele se encaminhou em direção a porta fechada por Miguel.
― Amo você. Por favor, não seja bobo de continuar brigando com o
Ettore. Eu o recusei, ele veio pra cima... Amo muito você, Roberto, e jamais
deixaria outro homem me beijar. ― abriu o seu coração.
Ele a avaliou longamente.
― Merda de vida! ― fechou os olhos e depois os abriu para fitá-la. ―
Quer me deixar louco, não é?
― Não.
Ele balançou a cabeça como que relutando a aceitar o que sentia. Pelo
menos foi isso que lhe pareceu. Os olhos molhados, os maxilares trincados, a
expressão de dor.
― Não posso permitir que... Não vou deixar que se interesse pelo meu
primo. Você não.
― Claro que não. ― tomou-lhe o rosto entre as mãos. ― Somos nós
dois contra o resto, lembra?
Ele respirou fundo e a beijou nas mãos.
― Sim, somente nós dois.
Capítulo 39

O terraço do escritório assemelhava-se ao avarandado de um


apartamento sofisticado. Cântaros em barro com folhagens naturais ladeavam
um aparador de superfície de madeira, sustentado por colunas de mármore,
com arranjos de petúnias, rosas e tulipas cultivadas nos vasos de cerâmica
entalhados artesanalmente. Uma grade de ferro contornava todo o espaço,
tomada pelas trepadeiras. Um sofá de vime com assentos de tecido macio
dividia espaço com a mesa e quatro cadeiras sobre o piso cujo material
parecia o mesmo que sustentava o aparador de flores.
Zalon aspirou a deliciosa fragrância floral. Parou diante da amurada e
admirou a cidade a vários degraus abaixo dela, consciente da presença de
Roberto bem atrás de si.
― Esse era o escritório do meu pai. ― começou ele, bem perto dela,
mas sem a tocar. ― Como era o macho alfa da matilha, ficou com o melhor
lugar, a sala com o avarandado. A decoração foi feita pela Verônica, antes era
apenas um espaço vazio para onde ele vinha fumar.
― Vai mantê-lo assim?
― Penso que você pode planejar algo simples e bonito para mim. ―
quando ela se voltou para ele, continuou: ― Quero vê-la na minha empresa
quando a deixar na fazenda para vir trabalhar.
― Como assim?
― Agora, Zalon, entro na minha sala e vejo a vagabunda da minha
madrasta nessa decoração de perua. Mas pretendo encontrar você aqui, em
cada detalhe que escolher com o seu gosto estético de menina simples. ―
explicou, oferecendo-lhe um sorriso.
― Acho que não sei fazer essas coisas. ― corou.
―Bem, pode começar a aprender, aqui tá a chance. ― pegou o queixo
dela e lhe ergueu o rosto. ― Sinto uma imensa necessidade de estar com você
o tempo inteiro e isso só mostra o quanto eu era solitário e não sabia.
― Pensei que fosse me dizer que essa necessidade mostra o quanto me
ama. ― provocou-o, com um sorrisinho travesso.
Ele piscou o olho para ela, com charme, antes de rebater:
― Acho que os meus sentimentos por você são óbvios demais, não?
― Não.
― Então serei mais claro. ― pegou-a pela cintura e puxou para si,
beijando-a longamente.
Roberto não trabalhou naquela manhã, pois em seguida a levou para
almoçar em um restaurante sofisticado perto do prédio do Grupo Manganelli.
Antes de entrarem, Zalon apontou com o dedo para a loja ao lado, uma
butique chique que vendia roupas para jovens descoladas da alta sociedade.
Os preços eram exorbitantes; os produtos, por outro lado, pareciam ter sido
desenhados por um estilista com problemas de autoestima, já que
privilegiavam apenas corpos magros e altos.
― Tia Paulina me mandou largar a costura e procurar emprego decente
no centro. Vim aqui, nessa loja que precisava de vendedora, mas a gerente
nem me deixou passar pela porta. Disse que já tinha contratado uma pessoa.
Aí eu apontei para a placa de aceita-se currículo, e ela sorriu e repetiu: já
temos alguém, minha lindinha. A Maitê me falou que a dona só contrata
gente da cidade e não do bairro operário. Minha roupa era de pobre e a minha
cara também, sem falar no cabelo ressecado pra diabo.
Suspirou profundamente e seguiu em direção ao restaurante. Mas
Roberto a deteve, segurando-a pela mão.
― O que acha de se divertir um pouco?
― O quê? ― achou graça da pergunta.
― Vamos não fazer compras na butique da cretina. Que tal?
O sorriso de canto de boca era um convite para um beijo. E ela o
beijou.
― Uma vingancinha?
― Gosta disso, não é?
Apesar do ar brincalhão, ela considerou que ele a analisava... mais uma
vez.
― Não, vinganças são atos destrutivos.
― Mas também atos de libertação.
― Minha vida tá maravilhosa ao seu lado, não me importo em ter sido
tratada como cidadã de quinta categoria, eu não preciso mais do emprego.
― Claro que não, futura sra. Manganelli. ― disse ele, com ardor,
olhando para os lábios dela. ― Todas as noites na minha cama, e todos os
dias na minha vida.
As lágrimas lhe chegaram aos olhos sem deslizar pela face.
― É disso que falo, do presente, é o que nos importa.
Ele ficou sério e depois a beijou no dorso da mão.
― Tem razão, minha Zalon.
Durante o almoço, o seu celular vibrou e ela o atendeu, sem reconhecer
o número da ligação.
― Alô? ― viu quando Roberto a fitou, ainda mastigando bem devagar
o seu ravióli.
― Se tá com o seu noivo, sugiro que peça licença e vá para um lugar
onde possa me dar atenção. Quem tá falando é a Verônica, você sabe quem
é, pois tava junto com o meu enteado quando ele me despejou da minha casa.
Por que lhe daria atenção?
― Me desculpa, mas a ligação tá ruim... ― disse, encarando o olhar
interrogativo do noivo.
― Agora não é o momento para ser leal a esse cretino, meu bem. Eu
tava no escritório da advogada quando ela leu o testamento do meu marido e
sei o motivo do Roberto apressar o casamento de vocês. Talvez já saiba e
concorde, tudo bem, mas acho que você é novinha demais pra ser esperta.
Sim, toda a estratégia de sedução, golpe e vingança em Ettore mudou
de uma hora para outra. Depois de sair da advogada, repentinamente Roberto
a pediu em casamento. E, antes disso, declarou seu amor por ela.
― Fala, Maitê, o que a Rafa quer? ― tentou sorrir para o noivo, não
conseguiu disfarçar a tensão, por isso ele continuou a encarando, atento à
conversa.
― Não sei quem são, mas captei a sua atuação, querida. Bem, serei
curta e grossa. O Aquino colocou como condição para o Roberto herdar a
sua parte no grupo empresarial um bendito casamento. O meu marido queria
ver o filho casado. Sorte de vocês é que já estão noivos, não é mesmo? Na
verdade, a minha intenção é apenas a de lhe abrir os olhos, porque ele pode
tá atraído por você, é jovem e bonitinha, mas a ideia de casar tão rápido diz
respeito ao recebimento da herança, apenas isso. Se não acredita em mim,
peça para que o casamento seja realizado no final do ano e veja a reação
negativa dele. E, se ainda assim, não estiver convencida, vá até o escritório
da ex-amante dele, a advogada Carine. Agora é com você, queridinha. Bye!
Bye!
A ligação foi encerrada, mas a conversa ainda ressoava alto na sua
cabeça. A voz de Verônica, tão segura e controlada, e o teor do assunto. No
fundo, Zalon sabia que algo estava errado no pedido de casamento de
Roberto.
― O que a nossa Rafa aprontou?
― Como?
― A ligação. ― mencionou, franzindo o cenho.
― Ah, bem, ela... ela anda com um grupo de rapazes que a tia Paulina
acredita que seja uma gangue, mas não é.
― E como sabe que não?
Ela o olhou diretamente, o estômago doeu quando lhe disse numa voz
fria:
― Porque eu conheço as pessoas.
Roberto endereçou-lhe um sorriso enigmático.
Assim que a deixou na mansão e voltou à empresa, Zalon pediu um
Uber e rumou para o bairro operário. Contou a Rafa sobre a ligação de
Verônica, e a irmã disse para não confiar em quem tinha sido casada com o
pai abusador de Roberto. Era verdade, a mulher realmente não prestava.
Sentiu-se melhor ao analisar o assunto sob a perspectiva de Rafa. Ainda
assim, decidiu tirar a limpo a questão com a advogada.
― Vou com você. ― afirmou a irmã, pedindo outro Uber. ―Vamos
meter tudo no cartão do cabra.
― Ele dormiu com a advogada. ― balbuciou.
― Isso de acordo com a madrasta. Dá para notar que ambos se amam,
só-que-não.
― Deve ter dormido para conseguir algo. Ele é assim, ambicioso,
ganancioso...
― E dormiu com você por quê?
Baixou a cabeça sem ter a resposta.
A advogada não abriu o bico, alegando que o testamento de Aquino
Manganelli não era documento público e exigia sigilo. Se ela queria alguma
informação que perguntasse ao próprio noivo. Agiu com frieza, não mostrou
os dentes nem foi grossa. Apenas a impediu de ter acesso a confirmação do
que Verônica lhe disse.
Durante o trajeto de volta para casa, no banco de trás do Uber com
Rafaela, Zalon se lembrou da noite em que Roberto intimou a madrasta a sair
da fazenda.
Ele falou algo sobre condição lícita.
Se Aquino condicionou o recebimento da herança para a esposa, era
certo que fez o mesmo para o filho que ele nunca amou.
―Eu o amo.
― E ele a ama?
― Ele disse que sim, Rafa. ― baixou a cabeça, a vontade de chorar
esmagava o seu peito. ― Um cara como ele jamais amaria alguém como eu.
― Pelo amor de Deus, se você falasse essa merda na frente da Maitê,
ela voaria a mão na sua cara. O cabra é o demônio, nem a família gosta dele,
e você é amada por muita gente. ― abraçou-a.
― Preciso fazer uma coisa.
― O quê? ― afastou-se para fitá-la.
Zalon esperou que Roberto atendesse a sua ligação e endereçou um
sorriso triste à irmã pouco antes de falar:
― Pensei melhor e gostaria de ter um casamento inesquecível, sabe?
E, pra isso, precisamos de mais tempo. O que acha de casarmos perto do
Natal?
O coração na garganta. A aflição muda no olhar que acompanhava a
paisagem de Santa Bárbara. As ruas do centro comercial apinhadas de gente,
em seguida, a estrada e depois a entrada de chão batido do bairro operário.
Sentiu que sufocava.
― De jeito nenhum, vamos casar semana que vem.
― Por que tão rápido?
― Simples, eu quero assim.
― E a minha opinião a respeito, como fica?
Ouviu-o suspirar do outro lado da ligação.
― Quando eu chegar em casa, a gente conversa, minha Diavolo. ―
agora o tom de voz era macio.
― Tá bem.
― Amo muito você.
Não conseguiu dizer o mesmo, embora o amasse loucamente.
Despediu-se com um até mais e desligou.
Vazia e sem chão.
― Acabou, Rafa. O sonho acabou.
Capítulo 40

As velas tremeluziam no castiçal italiano, sopradas levemente pelo


vento que entrava pela janela da sala de jantar. A toalha de linho debaixo dos
dois pratos, taças de vinho e talheres. As empregadas à espera da chegada da
noiva do patrão para começar a servirem o jantar.
Roberto estava à cabeceira da mesa havia quarenta minutos, desde a
quarta rejeição de sua ligação para o celular de Zalon. Ela, que nunca o
rejeitou, não o atendia. Tentou se comunicar com Rafaela, mas deu na caixa
postal.
De repente um pensamento sombrio se assomou a outro. Onde ela
estava quando lhe telefonou? Desde que voltara à mansão, ela não atendeu
mais as suas ligações. A conversa sobre a procrastinação do casamento não
lhe causou estranheza. Era fato que as mulheres preferiam casamentos
suntuosos, com muitos convidados, luxo e pompa a cerimônias simples feitas
às pressas.
A sensação de algo ruim começou a tomar a forma de uma obsessão.
Levantou da cadeira disposto a pegar a picape e se dirigir à casa das Toledo.
Santa Bárbara inteira sabia que Zalon era a sua noiva e, a partir disso, se
tornara alvo de possíveis sequestradores ou de seus inimigos, que não eram
poucos. Temia por ela. Por Deus, jamais se perdoaria se algo acontecesse
àquela mulher.
Havia pouco tráfego àquela hora da noite na estrada da região das
fazendas. Acelerou o veículo de modo a se manter nos cem por hora. Uma
das mãos no volante; a outra segurava o celular. Mais uma vez a chamada foi
rejeitada.
Apertou os lábios com força, tomado pelo mais genuíno pânico.
Alguém se apoderou do celular de Zalon. Alguém a assaltou ou a
machucou. Por que ela não mandou Rafaela ou Maitê entrar em contato com
ele? Somente via um motivo para o seu silêncio: ela estava à mercê de
criminosos.
Estacionou junto ao meio-fio da calçada diante da casa com a tinta
gasta, a porta fechada, a claridade vinda de dentro aparecia através do tecido
da cortina das janelas. Antes disso, o pequeno portão e o jardim bem-cuidado.
A rua era estreita, com casas de baixo custo, crianças corriam,
andavam de bicicleta, brincavam e era quase nove da noite. O lugar era
melancólico, mas também tranquilo, singelo e familiar. Velhos sentados em
cadeiras de praia conversando, xingando as crianças, rindo alto.
Eram visivelmente pobres, as roupas simples, as casas modestas e
precisando de reparos. Eles, no entanto, pareciam não se importar.
Abriu o portão e entrou. Parou debaixo da luminária onde mariposas a
circundavam num voo quase suicida, a qualquer momento uma delas grudaria
no calor da lâmpada.
Bateu à porta e aguardou, recuando um passo para olhar em torno,
desconfiado do ambiente distinto que estava acostumado.
― Boa noite, sou Roberto Manganelli. ― apresentou-se à mulher que
surgiu à porta vestida num robe atoalhado, a feição demonstrava irritação. ―
A senhora deve ser a Joaquina, não? ― arriscou, semicerrando as pálpebras.
― Não, senhor, sou a Paulina. O que quer aqui, Manganelli?
A pronúncia do sobrenome foi feita com menosprezo. Mais uma vez
ele apostava que as Toledo buscavam uma vingança contra os Manganelli. E,
ele, por sinal, fazia parte do plano delas.
― A Zalon.
― Ela não quer falar com você.
Sentiu um peso imenso sair dos seus ombros. Ela estava bem, inteira,
segura.
― Então ela está aí?
― Sim, mas não quer falar com você. ― repetiu.
― O que acha de ela mesma me dizer o motivo? ― tentou,
diplomático.
― Acho que deve cair fora antes que a Joaquina apareça com a
espingarda. ― foi seca.
― Só me resta então é invadir a sua casa.
Dito isso, ele empurrou a porta e passou pela mulher, esbarrando no
corpo roliço que teve de recuar para não perder o equilíbrio.
― Vou chamar a polícia!
― É minha, pode chamar. ― rebateu, olhando em torno, a sala de
móveis simples e o corredor que parecia levar aos quartos.
Maitê apareceu na sala, usava um short e uma blusa, descalça, o cabelo
preso num coque alto e displicente.
― O que faz aqui?
― Vim buscar a minha noiva.
― A nossa irmã não sairá de casa, o noivado já era, acabou.
― Não me diga! E como ficará o plano de dar o golpe num ricaço?
Vão tentar o Ettore? Ele já sabe que vocês são do bairro operário. O plano
das Diavolo deu merda.
― Tá nervoso, Manganelli? ― sorriu.
― Roberto. Esqueça o meu sobrenome, eu não sou a minha família. ―
afirmou, retesando os maxilares.
Zalon apareceu de trás da irmã.
― Você é exatamente igual aos demais membros da sua família. ―
acusou-o, séria, o rosto inchado e vermelho.
― Por que chorou?
Viu-a retirar o anel de noivado do dedo e deixar na mesa.
― Leva embora.
― É seu. ― disse, confuso. ― O que tá acontecendo?
Rafaela e quem ele acreditou que fosse a mulher da espingarda
apareceram na sala.
― Uau! Seja bem-vindo ao submundo de Santa Bárbara! ― Rafa riu
alto. ― Viu como é linda essa parte da sua cidade? Gostou do lugar, co-lo-ni-
za-dor? Obrigada pela energia elétrica e a rede de esgotos, a gente realmente
tá muito feliz com a consideração do seu prefeito.
― A cidade não é minha, não fundei essa porra. ― trincou os
maxilares.
― O seu interesse é o grupo empresarial. ― Zalon o encarava com
olhar magoado e hostil. ― Faria qualquer coisa para ter as ações do seu
falecido pai. Até mesmo mentir que me ama.
― Não menti.
Viu-se falando sem hesitar.
― A farsa acabou, Manganelli. ― disse Maitê. ― A sua madrasta
soltou o verbo. Inventou esse sentimento todo pra levar a Zalon no bico, casar
rapidinho e pôr a mão na herança do velho.
― Eu não menti. ― repetiu, encarando o olhar de dor da noiva. ―
Existe, sim, uma condição para eu receber a participação do meu pai no
conselho administrativo, o que não me impede de herdar o patrimônio dele...
― deu de ombros.
― Sem encenação, conheço você, sei da sua obsessão pelo controle
das empresas. Acabou aqui, ok? ― declarou ela, encarando-o dignamente,
embora parecesse tomada de angústia.
― Se me conhecesse realmente, saberia que não confio em ninguém e
jamais dividiria a minha vida com qualquer uma.
― Sou qualquer uma, a vigarista que ia dar o golpe do baú no seu
primo.
― É o amor da minha vida.
Notou as lágrimas rolarem pelo rosto jovem e tão entristecido, aquilo
lhe partia o coração. Vê-la infeliz o destruía. Jamais se sentiu tão mal como
naquele momento. Precisava dela, voltar com ela, ouvi-la e vê-la sempre,
tocar nela e se doar sem medo nem reservas.
― Ninguém vai cair na sua lábia, moço. Olha onde estamos? Aqui
todo mundo é malandro, filho. ― disse Paulina.
― Acho que o assunto tá encerrado.
― Tenho uma agenda de contatos, Zalon. Você bem sabe que mulher
não me falta. Posso casar com qualquer uma para cumprir a condição do
testamento. Preciso ficar casado por apenas dois anos, ou seja, nada sobre
fidelidade é mencionado. Sou um homem de negócios movido pelo cérebro,
jamais seria idiota de me deixar ser manipulado por uma mulher. E a única
chance de uma mulher me dominar é eu me apaixonando por ela. Sou
apaixonado por você, acredita em mim.
― Isso ele tem razão. Realmente o trio Manganelli tem um bom
acervo de sirigaitas.
―Cala a boca, Maitê. Não amolece! ― xingou-a Rafa, olhando-o de
cara feia.
― Tô falando o que penso, ora. Senti sinceridade agora.
― Porque ele te ajudou com o lance do cavalão lá no salão country.
― Mas ele também te ajudou quando você tava bêbada e toda
menstruada...
― Chega disso! ― interveio a mulher que lhe abriu a porta, a que
parecia mais zangada do que todas. ― Quem tem de decidir se aceita ou não
o cabra é a Zalon.
― Faço qualquer coisa para viver com você. Até mesmo aceito o fato
de que nunca foi uma golpista. ― declarou, olhando-a com firmeza. ― Sei
que vocês pretendem se vingar dos Manganelli. Fomos nós quem tomamos as
suas terras, eu sei disso agora.
― Hômi, a gente tava quase cedendo aqui...Mas você apertou o botão
errado. ― afirmou Maitê, os olhos marejados de água.
― Sim, vingança. ― disse Zalon. ― E a minha vez de me vingar
chegou. Adeus, Roberto. ― deu-lhe as costas e saiu sem olhar para trás.
Ele ameaçou dar um passo a frente, só não o fez porque sabia que teria
de atravessar uma muralha de mulheres.
― Eu sei quem participou da compra das terras de vocês, mas ainda
preciso descobrir se foi uma transação comercial cretina ou se envolveu um
homicídio camuflado de suicídio. ― disse, uma cortina de lágrimas o
impedia de analisar a expressão facial das irmãs Toledo. ― Voltarei com
todas as informações que vocês buscaram a vida inteira.
Virou-se para sair e, ao chegar a porta, pôde ouvir o estouro de um
pranto convulso. Sabia que quem chorava era a mentora do plano de
vingança.
Capítulo 41

Ele sentia como se um milhão de raios explodissem no seu peito, raios


serpenteando o céu da sua mente, raios dentro das veias. O ódio se misturou à
angústia e ao rancor. Mais uma vez Aquino o destruiu. Tirou da sua vida a
única mulher que amou. Única! Tinha certeza absoluta de que nem mesmo a
própria mãe foi capaz de amar. A semente ruim à beira de uma
transformação, mas eis que a foice dilacera os primeiros ramos virados para o
sol.
Esmurrou a campainha da mansão de Miguel até ser atendido pela
governanta, o cabelo grisalho caído nos ombros. Era uma índia, que
aparentava sessenta e poucos anos, a governanta da casa do filho mais velho
de Francesco.
Passou por ela sem lhe dar satisfação, tampouco foi interpelado pela
senhora que apenas o acompanhou com os olhos.
Subiu a escadaria e abriu a porta do quarto de Miguel. Como previa,
ele dormia sozinho.
Acendeu a luz e, assim que o primo se sentou na cama ainda sonolento,
gritou:
― O QUE O PAI DE VOCÊS FEZ À FAMÍLIA TOLEDO?
Miguel esfregou os olhos e bocejou alto antes de falar numa voz grossa
de sono:
― Vou chamar uma ambulância pra te levar de volta ao hospício.
Roberto zanzou pela suíte, fitando o chão, procurando controlar os
sentimentos que não o deixavam pensar direito. Respirou fundo, arou o
cabelo com os dedos e parou diante do primo.
― Fizeram uma negociata de terras nas nossas costas, os malditos
velhos... Mataram uma mulher... Ou talvez a tenham levado a se matar,
mesma porra! Ela não queria vender as terras! Praticamente a coagiram como
criminosos!
― Cabra, nada do que tá falando faz sentido. ― coçou debaixo do
queixo, calmo e controlado.
― Chama a porra do seu irmão aqui!
― É claro que não. Você tá fora de si, caralho.
― Quando eu tava na clínica, não aconteceu nada de anormal em
Santa Bárbara? O suicídio de uma mãe de família, por exemplo, não lembra
disso?
O primo enfim pareceu assimilar que ele falava sério. Semicerrou as
pálpebras como se buscasse a informação no fundo da mente.
― Foi um golpe danado na comunidade, não se falava em outra coisa,
a mulher que se enforcou na árvore. ― comentou, sério.
― Foi por causa da gente!
― O quê? Tá doido... digo, voltou a ficar doido?
Pegou o celular e ligou para Ettore.
― Se não vai chamar o cretino, eu mesmo o faço.
Miguel pulou da cama e se pôs ao seu lado.
― O que ele tem a ver com isso? Aliás, o que eu tenho a ver com essa
porra?
Ignorou-o, pois se concentrou na voz bastante desperta do outro lado
da ligação.
― O que quer, Roberto?
― Vem pra casa do Miguel.
― Tá me dando ordens agora, é? Nem com as ações do tio você vai
mandar em mim, imagina agora. Vai dormir com sua ninfeta.
― Não é sobre ações!
― Tô ocupado, amanhã conversamos.
― Vem agora ou vou acertar um tiro no meio da cara do seu pai,
entendeu? ― a voz saiu rascante como metal deslizando no asfalto soltando
faísca.
― O que o velho tem a ver com isso? ― Miguel se pôs de pé, nu como
veio ao mundo, o semblante fechado.
― O que o Francesco aprontou? ― Ettore, por sua vez, demonstrou
serenidade.
― Ele matou uma mulher.
― Nunca.
― Vem agora, seu maldito covarde.
A ligação foi encerrada, e esse era o sinal de que Ettore se dirigia à
mansão do irmão.
― Que conversa de assassinato é essa?
Foi até a janela e acendeu um cigarro, as mãos trêmulas, o desespero
nos olhos. Não ficaria sem Zalon. Iria reconquistá-la. Naquela noite teria a
confirmação de toda a história dos Manganelli.
― Espera o Ettore chegar.
― Diabos, que se fodam! Vão conversar na puta que pariu, sai da
minha casa.
― Põe uma roupa e desce. Você vai descobrir que não viemos de uma
geração de desbravadores e sim de assassinos. ― afirmou, mal separando os
lábios.
Assim que desceu o último degrau da escada, a governanta abriu a
porta para um Ettore vestido apenas no jeans, o cabelo desgrenhado, o corpo
suado.
― É, tava no meio de uma foda. ― reclamou, torcendo o lábio pra
baixo.
― Ele tá tendo uma crise de nervos, acho bom internar de novo. ― foi
o que disse Miguel, já vestido, descendo a escadaria com um cigarro
pendurado no canto da boca.
Roberto se voltou para o primo mais canalha e pragmático.
― A família Diavolo não existe.
Ettore abriu um sorriso largo.
― Não diga.
― Que Diavolo?
― A noiva do nosso priminho.
― Diavolo? Que diabo de nome é esse?
― É o sobrenome que as irmãs Toledo usaram para se infiltrar entre os
Manganelli. ― esclareceu Roberto, assumindo de vez o controle de suas
emoções.
― Tá brincando? ― Ettore gargalhou.
― Golpe do baú. É só o que tem nessa terra: golpistas. ― resmungou
Miguel, sentando no sofá, as pernas afastadas, a cara amarrada.
― Não. Elas sabiam antes de nós que a nossa maldita família destruiu
a delas.
― Aham, sei. Conversa de ninfetinha desprotegida. ― debochou
Ettore, se esparramando no sofá como se fosse assistir a um filme. ― É isso
que te excita, Roberto? Ouvir histórias tristes de garotas tesudas?
― O que me excita é imaginá-lo morto deitado num caixão, mas isso
não vem ao caso. A questão é que dez anos atrás os Manganelli pressionaram
a mãe delas a vender as suas terras. A mulher surtou e se enforcou.
― O que temos a ver com isso? Por acaso colocamos a corda ao redor
do pescoço dela?
― Empatia, ô filho de uma égua. ― rosnou Miguel. ― Se foi um
Manganelli, temos que descobrir que traste fez isso e devolver as terras. Sou
a favor de meter a polícia no meio, isso é homicídio.
― Se a transação comercial foi legal, não vejo motivo pra drama.
― Seu escroto. ― Roberto grunhiu e, em seguida, ligou para o tio: ―
Só tem uma pessoa que pode me dizer o que aconteceu.
― Ah, o pai. Pois é, talvez ele tenha pressionado a pobre diaba a
vender as terras, talvez não.
― A questão não é essa, Ettore. ― começou Miguel. ― A mulher que
se matou é aquela que tinha três filhas. Lembra que todo mundo falou do
caso? Saiu até na tevê.
―Suicídio, ora. Não foi essa que o marido abandonou alguns dias
antes? Pois então, a polícia já deu o caso por encerrado há anos, e eu não vejo
ligação alguma conosco.
― Tio, precisamos conversar.
― Tô na cama, filho. Pode ser amanhã?
― Tem que ser agora.
― Por favor, Roberto, já passou da minha hora de dormir. ―
reclamou.
― O senhor não vai dormir hoje enquanto não esclarecer um assunto
pendente do passado. ― ameaçou-o.
Ouviu um longo suspiro.
― O que quer saber? ― perguntou, com brusquidão.
―Quem matou a esposa de Jerônimo Toledo? ― foi direto ao ponto.
Capítulo 42

― Espera, que vou até aí.


Foi o que tio Francesco lhe disse vinte minutos antes de chegar à casa
de Miguel.
O velho tinha se penteado e vestido o robe por cima do pijama. O
semblante preocupado, mas sem vestígio de tensão.
― Sabe quem comprou as terras, não? Já deve ter encontrado o
contrato de compra e venda. ― concluiu, fitando-o atentamente.
― Sei, sim. Foi o meu pai. ― endureceu os maxilares com pesar. ― O
maldito queria as terras dos Toledo, conseguiu que o tal Jerônimo as
vendesse, mas precisava também da assinatura da esposa dele.
A certeza de que Zalon jamais o perdoaria doeu tanto que chegou a
anestesiá-lo. Não havia mais futuro para eles, para o amor que sentia por ela.
A garota entrou na sua vida disposta a se vingar dos Manganelli e ele,
Roberto, era o filho único do homem que desgraçou a família dela.
― Sim. ― considerou o velho, soltando os braços ao longo do corpo
num gesto de resignação pouco antes de sentar no sofá e continuar: ― Era o
sonho dele, ser dono de toda Santa Bárbara. Fundamos a cidade, mas com
outros colonos que depois venderam as suas terras. Eu não queria mais
investir em terras, tava focado na siderurgia e na mineradora. Mas o Aquino
queria um feudo... ― riu-se, com amargura. ― Ele mesmo se autointitulava
de senhor feudal, gabava-se disso, como se fosse um título bonito. ―
esfregou os olhos, demonstrando cansaço e prosseguiu no relato, numa voz
baixa e mansa: ― Confesso que me desliguei dessa parte e me foquei nos
negócios que me interessavam.
― O senhor não comprou as terras desse tal Toledo? ― Miguel o
inquiriu.
O velho fitou o filho longamente.
― Por que vocês estão falando sobre esse assunto, hein?
Mas foi Roberto quem respondeu.
― Minha noiva é filha da Mariane Toledo.
― Cristo! ― Francesco levou a mão à testa. ― Que coincidência
absurda.
― O Aquino coagiu a Mariane a assinar o contrato?
― Roberto... ― suspirou, profundamente. ― Ninguém batia de frente
com o seu pai.
― Isso é uma confissão, tio?
― Não, de jeito nenhum. Soube do ocorrido pela tevê e fui confrontar
o meu irmão. Ele e o Dr. Geraldo Gotardo negociavam as terras nas
adjacências da nossa propriedade, e as do Toledo faziam parte do plano de
expansão do Aquino.
― E o que o tio disse? ― indagou Ettore, soltando a fumaça do cigarro
pelo nariz.
― Ele expulsou as crianças e os empregados assim que a Mariane foi
enterrada. ― ergueu os olhos opacos para o sobrinho. ― Despejou-as da
própria casa. Achei desumano, e então ele me falou que o gado precisava de
mais área de pastagem, era urgente, o rebanho tava crescendo.
― Para aonde as meninas foram? ― Miguel tinha um sulco profundo
entre as sobrancelhas.
― O bairro operário. ― respondeu Roberto. ― Foram criadas pela ex-
cozinheira da família e a sua irmã.
― Até resolverem planejar uma vingança contra nós para ter as suas
terras de volta. ― deduziu Ettore.
― Não vamos perder o foco. ― falou para o primo. ― Sei que uma
mãe de três meninas que foram abandonadas pelo pai jamais se mataria.
Quero apenas, tio, que confirme o fato de que o Aquino mandou matá-la.
Francesco empalideceu.
― Um dia ele bebeu demais, parecia possuído pelo remorso, tava
diferente, entende? Não tinha aquela agressividade no olhar, era mais como
um...
― Sentimento de culpa? ― completou Ettore. ― É complicado
imaginar o tio Aquino sentindo empatia por alguém.
― Era por si mesmo. ― Roberto concluiu. ― Ele se abriu com o
senhor?
― Roberto... por que quer saber de tudo isso se o seu pai já morreu? ―
a pergunta veio num tom de súplica, demonstrando o quanto lhe doía falar a
respeito.
― Porque a mulher que eu amo não me quer mais. ― respondeu,
secamente.
― Tá na cara que ela nunca te amou. ― interveio Miguel. ― Você foi
usado, meu velho. Não escolheu a porra dos Manganelli à toa, se infiltrou
para se vingar.
― Sim, mas o alvo era o Ettore. ― considerou, sentando à beira do
móvel e, voltando-se para o tio, falou: ― Desembucha tudo.
― Espera! Por que eu era o alvo?
― Talvez as irmãs Toledo considerassem que nós três ou um de nós
tivéssemos participado do assassinato da mãe. Pra elas, a Mariane não se
matou.
― Também acho que não. ― deu a sua opinião Miguel.
Mas quem pôs um fim à dúvida foi Francesco.
― Não, ela foi assassinada depois de assinar o contrato. ― a voz
sumida.
Estava certo do ocorrido e do quanto a pobre mulher sofreu nas mãos
do seu algoz, ainda assim ele sentiu o golpe como se tivesse levado um soco
no estômago.
― Puta merda. ― murmurou Ettore, amassando o cigarro no cinzeiro.
― O Aquino mandou o advogado conseguir a assinatura da mulher do
Jerônimo de qualquer jeito, não importava, ele só queria as terras e ponto
final. Isso deu margem para o camarada agir como bem queria. E era o que
corroía o seu pai, Roberto, ele acreditava que o advogado mandou matar a
Mariane, para que ela não o denunciasse por ter sido forçada a assinar. ― ele
parou de falar, exalando forte o ar pela boca. ― Preciso de uma bebida.
Miguel se levantou do sofá e foi até o bar.
― Onde tá esse advogado?
― Morto, Roberto. Foi encontrado morto em um quarto de motel ao
lado do suposto amante.
― O quê?
― A polícia concluiu que um matou o outro. ― afirmou Francesco,
assim que tomou um gole do uísque sem gelo. ― O Aquino me contou então
que quando o advogado lhe entregou o contrato assinado, admitiu que teve de
levar um conhecido seu para persuadir a mulher. Esse cara era um bandido pé
de chinelo, cliente dele no início de sua carreira como advogado. Ele viu o
cara estrangular e depois amarrar a corda no pescoço da Mariane Toledo. A
coisa saiu do controle, era só uma encenação de agressão, nada seria levado a
cabo. E a mulher somente assinou depois que o bandido ameaçou de estuprar
as filhas dela. Dá para imaginar uma cena horrorosa dessas? ― o velho
enterrou o rosto entre as mãos.
― Dá pra imaginar o quanto elas nos odeiam? ― falou Miguel, o
semblante fechado.
Roberto se pôs de pé, inquieto e hostil.
― O senhor acreditou nessa versão, tio?
Notou quando Ettore se encaminhou até a janela fechada, arou o cabelo
com os dedos, visivelmente incomodado ao declarar:
― Foi o seu pai, Roberto.
― Ele jamais assumiu a autoria dos crimes. ― disse Francesco.
― O Aquino mandou matar a Mariane e depois deu cabo do advogado
e o seu cúmplice. ― declarou Roberto, incisivo.
O velho baixou a cabeça, fitou o copo que segurava com as mãos
trêmulas.
― Desconfio que sim.
Capítulo 43

Zalon tentou dormir, rolou na cama, ouviu música nos fones, mas nada
apagava a imagem de Roberto, ali, na sua casa, a voz quase sumida e
emocionada dizendo: você é o amor da minha vida.
O fato de amar aquele homem não podia cegá-la. Ele era um poço de
ambição e lhe faltava apenas um detalhe para ter todo o poder que ansiava
havia anos. De certo modo, tal poder era como uma vingança contra o próprio
pai. Pensando assim, era compelida não apenas a recebê-lo de volta, como
também a ajudá-lo a atingir os seus objetivos. Mas lhe era difícil aceitar que
talvez os sentimentos dele não fossem verdadeiros e sim um mero jogo para a
manipular.
Fato era que o seu coração acreditou nele. No olhar cheio de amor e
angústia, no apelo dos seus gestos e no desespero ao ser rejeitado.
Viu diante dos seus olhos um homem forte desmoronar.
Sentia, no fundo, que ele a amava. Todos os gestos e atitudes durante o
noivado de mentirinha lhe pareceram reais. O carinho, a ternura, a proteção e
o ardor sexual não foram de mentirinha. Tampouco as longas conversas, as
risadas, as provocações. Ela viveu um sonho de amor. E, se ele não tivesse
uma personalidade forte e a fama de manipulador, jamais teria acreditado em
Verônica. Jamais! Mas Roberto tinha péssimos antecedentes morais.
Vestiu o jeans e a regata. Calçou os tênis e saiu do quarto. Fez um café
forte e o despejou na caneca, que levou consigo para fora da casa.
Sentou no degrau diante da porta aberta, assoprou o líquido fumegante
e o bebeu aos golinhos. Observou a rua vazia debaixo do céu que amanhecia
aos poucos, preguiçosamente, mudando as suas cores num degradê que
sugeria um dia ensolarado.
A melancolia também tinha cor. Dizia-se por aí que era azul. Ela então
vestia azul por dentro e mal fazia ideia de como aguentaria o resto do dia, de
todos os demais dias da sua vida longe de Roberto.
Mas sabia que era forte o bastante para não cair.
Reconheceu de imediato a picape que parou diante da casa. Esperou
inclusive que Jonas descesse para buscá-la... Por que ele a buscaria? Era a
força do hábito. O motorista chegava, ela entrava na picape e seguia para
encontrar o noivo ou fazer compras.
Quem abriu o portãozinho não foi Jonas e sim o patrão dele. A camisa
social por cima da calça, aberta nos dois primeiros botões, sem a gravata de
seda. O semblante sério, as olheiras de quem não havia pregado o olho, os
ombros encurvados no lugar da postura altiva.
Ele trazia na mão um envelope grande e retangular.
― Tudo de que precisa saber tá aqui.
― O que tem para me mostrar? ― depositou a caneca no chão para
pegar o envelope, mas não o abriu.
― Talvez o meu destino. ― disse ele, vasculhando-lhe a expressão
facial. ― O nosso destino.
― Aquilo que falei antes, sobre ter me vingado de você, é mentira. ―
admitiu.
― Eu sei.
― A sua internação na clínica o livrou de ser o meu alvo, e eu jamais
machucaria um inocente.
― Eu também sei. ― disse, os olhos ternos pousados nela. Depois se
agachou à sua frente. ― Mas não me libera da culpa, sou o filho de quem
mandou matar a sua mãe.
Ela sentiu o chão se abrir debaixo dos seus pés e uma força a puxou
para cair. Por mais que fosse forte, agora sabia que podia sim cair, despencar,
se arrebentar toda.
O choro saiu num soluço alto e, no instante seguinte, Roberto a
amparou, abraçando-a. Afagou-lhe o cabelo, trazendo o rosto dela para o seu
ombro.
― Eu o odiava, você bem sabe. Aquele homem nunca devia ter
nascido. ― beijou-a no topo da cabeça e a aconchegou junto ao peito como
se ela fosse uma criança. ― Tenho uma dívida imensa para com você e as
suas irmãs. Prometo cuidar e proteger vocês mesmo de longe.
― Por quê? Por que ele a matou? ― perguntou, chorando.
― Era um desgraçado. Ele praticamente matou a minha mãe também.
Tem gente que nasce para fazer o mal, se alimenta disso, se fortalece
destruindo. E o Aquino acabou com uma família para ter mais área de pasto
para o seu rebanho, um motivo fútil.
― Ele aproveitou que você tava internado para fazer isso. ―
considerou, limpando as lágrimas do rosto. ― Acha que foi coincidência?
― Você sabe que o motivo da minha internação foi em razão de eu ter
tentado matá-lo. Nunca tive problemas psiquiátricos; só ódio mesmo. Ódio de
quem me espancou a infância e adolescência inteiras. Portanto, um ódio
justificado. ― ele afagou-lhe a bochecha com o dorso da mão. ― Mas eu
ainda não tinha pensado nessa hipótese, talvez aja um fundamento nela. Por
mais que ele fosse o abusador, no fundo, parecia me temer. Era como se
soubesse que um dia eu daria o bote, não sei como explicar... ― puxou-a para
um novo abraço.
― Minhas irmãs continuarão a odiar os Manganelli. ― foi honesta. ―
Não importa que o assassino esteja morto. Estamos condicionadas a odiar
vocês.
Ele se afastou para encará-la.
― Não me odeie, não você. ― pediu.
― Eu não o odeio.
― A gente pode consertar o nosso relacionamento. E o primeiro passo
é o de indenizá-las pela perda financeira, já que não posso trazer a sua mãe de
volta. ― ela baixou a cabeça, mas ele lhe tomou o rosto entre as mãos e
falou: ― Fiz os cálculos para atualizar o valor das terras da sua mãe e
acrescentei mais meio milhão e a mansão do Aquino pelo dano emocional
causado. Amanhã irei ao cartório para fazer a transferência da propriedade do
imóvel para vocês três e a escritura. É o mínimo que a família Manganelli
deve as Toledo.
― Acho justo. Mas os seus primos concordam?
― Sou eu quem tá as indenizando, o dinheiro é meu e não deles.
― Não sei o que dizer.
― É a minha obrigação, o meu pai tirou tudo de vocês.
― Mas o seu tio sabia e ficou quieto. ― desferiu, secamente. ―
Deixou a polícia encobrir o caso.
― Exatamente. ― contraiu os maxilares. ― Ele pensa que se safou.
― E será que nunca, nunca mesmo, comentou nada com os filhos?
Roberto pareceu ponderar a respeito de algo que lhe havia escapado,
estreitou as pálpebras, e depois a fitou de modo avaliativo.
― Bem, a atuação de ambos foi excelente.
― Como a nossa, quando fingíamos que nos amávamos no noivado de
mentira.
― Eu não fingi. ― foi categórico. ― Me apaixonei por você desde
que descobri que era do bairro operário. Uma garota espontânea e safada,
mentirosa e linda, tão menina e tão... ― ele parou de falar, apertou a boca e
os maxilares se projetaram debaixo da pele com pontos de barba. ― Eu não
vou casar com ninguém se não for com você.
― Perderá o posição de fodão da empresa, e o seu tio será o chefão do
grupo.
― Isso significa que não voltará pra mim?
―Tô lhe dando a chance de conseguir o que mais quer na vida, que é o
controle acionário. Tirei o meu time de campo, deixando-o livre para se casar
com um de seus contatos. Talvez o nosso destino seja cada um viver a sua
vida como acredita.
― Em que você acredita?
― No amor que sinto por você.
― Mas não acredita em mim nem no meu amor por você, não é
mesmo? ― o olhar que lhe endereçou era de dor.
De repente ele se ajoelhou diante dela.
― Não posso voltar para casa sozinho, porque é você a minha casa.
Por que me ensinou a amar se agora quer me abandonar? Me deixasse
estragado como eu era, a semente ruim, o desalmado sem coração. ―
implorou.
― Desalmado? Nunca. Você ouve tanta merda da sua família que
acaba acreditando e fazendo disso um marketing pessoal bem negativo, por
sinal. ― irritou-se. ― Eu jamais amaria um homem mau, mas não posso
ceder sem ter a certeza de que também sou amada. E você até agora não
provou isso.
Levantou-se e o viu ainda ajoelhado, olhando agora para o chão, numa
atitude de derrota.
Fechou a porta atrás de si, temendo estender-lhe a mão e não a soltar
nunca mais.
Capítulo 44

Dois Meses Depois

― É aí, olhando pra janela, que encontra inspiração pra trabalhar?


Zalon ouviu a secretária de Roberto entrar na sala dele e fazer a
pergunta num tom de zombaria. Por mais que estivesse na antessala do
escritório dele, a porta entre os dois ambientes estava arreganhada depois da
senhora abri-la e falar sem polidez alguma.
― Não a chamei aqui. ― ouviu-o resmungar.
― Ultimamente o senhor não me chama pra nada, nem sei porque
venho trabalhar, é um tédio só. Quase durmo sentada na cadeira, meu traseiro
tá tão achatado que parece uma panqueca.
― Peça demissão, e o problema estará resolvido.
― Pode me demitir, se quiser. Não quero perder os meus direitos
trabalhistas.
― Certo, tá na rua. ― disse ele, parecendo desinteressado pelo
assunto.
― Meu Deus do céu, como pôde me demitir? ― a voz grossa e
tabagista saiu esganiçada. ― Dei a minha vida por essa empresa!
― Primeiro, a senhora pediu para ser demitida e, segundo, o seu tempo
de empresa é de cinco anos. Acho que não deu nadinha da sua vida de viúva
aposentada.
―Pra falar a verdade, pensei que fosse me mandar voltar ao trabalho,
não pensei que fosse me demitir.
― Pode continuar trabalhando ou cair fora. Pouco me importa.
Zalon observou o tom de amargura. De pé, quase à porta, via apenas o
encosto alto da poltrona de Roberto, que parecia absorto na tarefa de olhar
para a janela, de costas para a entrada do escritório.
― Ah, mas isso eu sei. Nunca o vi tão magro e abatido.
― Volte ao trabalho. ― ordenou, secamente.
― As reuniões também estão calmas, não provoca mais os primos.
Ainda não se recuperou do rompimento do noivado, eu sei. Mas precisa
seguir adiante.
― Sim, tô pensando em me jogar dessa janela sentado na cadeira. O
que acha? Seguirei adiante?
― Bom, faça como quiser. Vim aqui só para lhe avisar que a sua ex-
noiva tá esperando pra entrar.
Roberto imediatamente girou a cadeira de modo a ficar diante da
escrivaninha.
― A Zalon veio me ver?
― Acho que sim, não se entusiasme, ela pode estar armada. ―
comentou, ajeitando os óculos de grau no rosto.
― Há quanto tempo ela tá esperando?
― Dois minutos. Ela entrou, e eu tirei a minha panqueca da cadeira
para vir avisá-lo. ― apertou o canto do lábio.
― Peça para que entre.
― Então se arruma direito, parece um CEO mendigo.
A secretária chegou à porta e sinalizou para que ela adentrasse o amplo
recinto. A cortina do janelão estava afastada, exibindo o céu escuro quase
cinza chumbo. Logo uma tempestade despencaria em Santa Bárbara, a
temperatura baixaria até voltar a subir.
Mas agora Zalon só tinha atenção para Roberto, que ajeitava as fraldas
da camisa para dentro da calça, depois de arrumar o cabelo, arando-o com os
dedos.
― Emagreceu. ― foi a primeira coisa que notou diferente nele.
― Um pouco. ― rebateu, sério. ― Você tá perfeita.
Ela parou diante da mesa e deixou os braços cair ao longo do corpo,
um tanto intimidada por revê-lo.
― Obrigada. Vim lhe dizer que a Maitê decidiu morar na mansão do
Aquino com as tias e a Rafa.
Ele franziu o cenho.
― Pensei em comprar a mansão de vocês, assim teriam mais
dinheiro... Acho precipitado que elas convivam com gente que não presta.
― A sua família. ― considerou ela.
― Minha família é você. ― foi taxativo. ― Eu me refiro aos meus
primos e o meu tio.
― Eu? Que esquisito me dizer isso. Pelo visto o seu casamento foi
bastante discreto. Não saiu na imprensa. ― sondou-o.
― Porque não teve casamento. ― ele lhe indicou a cadeira com um
gesto de mão. ― Senta e me conta como tá a sua vida.
―Abriu mão do controle acionário do grupo? ― perguntou, intrigada.
― Eu disse que somente me casaria com você. ― afirmou, com
simplicidade. ― O Tio Francesco detém agora o poder que eu teria caso o
meu pai não fosse um cretino.
― Ou você tivesse casado.
― Sim, é verdade. Talvez o meu gesto nobre de abrir mão de uma
realização profissional sirva como prova de que a amo.
― Por que parou de me procurar?
― Imaginei que assim você me procuraria. ― levantou da cadeira e
contornou a mesa, parando ao seu lado. ― Um homem que rasteja deixa de
ser homem.
― O dia que me chamou de golpista amadora, disse que fingiria que
tava apaixonado por mim. Isso ficou na minha cabeça, a sua capacidade de
manipulação.
― Mas era esse o nosso plano inicial, Zalon. Ambos fingiríamos que
estávamos apaixonados um pelo outro. ― agachou-se ao seu lado. ― Agora
não tô fingindo.
― A tal condição do testamento do seu pai acabou com a sua vida, não
é?
Doeu passar tanto tempo sem vê-lo, evitando sair do bairro operário,
enfiando a cara na costura enquanto as tias resolviam o que fazer com a parte
da grana recebida de Roberto. Maitê tentava lhe trazer notícias da cidade
sobre os Manganelli, mas ela se recusava a ouvi-las. Um dia Rafa disse que
era possível que o casamento tivesse acontecido de modo sigiloso, pois a
única obrigação que Roberto tinha era a de entregar uma certidão de
casamento à advogada. Com isso, ele não precisava fazer uma festa, soltar
fogos e avisar meio mundo.
Relutou à ideia de procurá-lo.
Mas assim como um criminoso sempre volta ao local do crime, uma
mulher apaixonada sempre tenta rever o amado. A desculpa que deu a si
mesma foi a decisão maluca das irmãs de serem vizinhas de Ettore e Miguel.
E não era por interesse sexual ou afetivo. Rafa e Maitê continuavam a odiar
os Manganelli.
Roberto a beijou no dorso da mão, um carinho todo seu, e mirou os
olhos nos dela.
― Ficar longe de você é que tá acabando com a minha vida. ― o olhar
cheio de súplica também era terno ao prosseguir numa voz tomada pela
tristeza: ― Agora, perto de você, me sinto angustiado. Só de pensar que vai
embora, passar por aquela porta e me deixar, me causa um grande sofrimento.
Eu não consigo respirar. Você se tornou vital para a minha existência. Eu a
amo mais que tudo. Eu a amo a ponto de reverter a minha cirurgia para lhe
dar bebês, muitos bebês, os nossos bebês. Eu a amo...
Ela o calou com um beijo.
Epílogo

Vítor Hugo fez o carreto para as irmãs Toledo. Cobrou trezentos paus,
levou dois ajudantes, o Gordo e o Magro. Encheram uma Kombi velha
apenas com malas de roupas, caixas de papelão com documentos, objetos aos
quais eram apegadas e os calçados, além das máquinas de costura e todas as
lâmpadas da casa alugada. Elas sabiam que lâmpadas queimavam. A mansão
devia ter lâmpadas, mas elas iam queimar também. As tias não queriam
gastar com lâmpadas. Uma tarde inteira discutindo sobre lâmpada até
gastarem a palavra. Zalon não aguentava mais ouvir o mesmo papo.
Maitê então disse:
― A gente tem uma nota preta no banco, tia Paulina. Pra que pensar
em lâmpada?
― Lâm-pa-da. ― soletrou Rafa, sentada no piso da sala sem móveis,
uma vez que tia Joaquina os tinha doado à vizinhança. Foi uma festa
daquelas, rolou até churrascada. ― Sei não, mas acho que é uma
proparoxítona.
― Só por que vocês estão ricas não precisamos desperdiçar dinheiro.
― Vocês, uma ova. A grana é nossa. ― rebateu a Toledo mais velha.
― Li que mesquinhez não atrai a abundância.
― Mas eu não li nada disso, vou pegar essas lâmpadas que comprei
com o suor do meu trabalho, cada uma custa quinze reais, minha filha.
Zalon puxou a irmã para o lado e comentou num sussurro:
― Ela tá nervosa com a mudança, deixa levar o que quiser.
― Nervosa? Nunca vi essas duas mais tensas, parece que morrem de
medo de ter uma vida melhor, eu, hein!
― Você passa anos vivendo no mesmo lugar, sendo bom ou ruim,
acaba se acostumando. O que elas têm medo mesmo é do novo, de uma vida
diferente.
― Nossa, a minha medrosa favorita tá cada dia mais sensata. ― Maitê
sorriu, dava para perceber o tom de orgulho.
― Que nada, ainda sou medrosa e infantiloide. Ontem mesmo tive
uma crise de risos e quase fiz xixi na calça, porque o Roberto me contou que
o Miguel se irritou na reunião, deu um soco na parede e acabou quebrando
dois dedos. Tá com o braço engessado até o cotovelo. Imagina a figura, ogro
que só, com a pata machucada. ― riu alto.
― Realmente você é team Roberto, né?
― Claro que sim, é o meu marido, uai.
― Eta, que o seu casamento foi um luxo só, saiu até no jornal de
Campo Grande, pode isso?
― Era para ser uma cerimônia para os mais íntimos, mas o meu amor
disse que íntimo mesmo só os sentimentos, o resto tem que mostrar pra dar
motivo para invejá-lo. ― sentiu o peito estufar de felicidade.
― Tá feliz?
― Muito, Maitê.
― Que bom, porque pretendo infernizar a vida do Miguel. Agora, que
seremos vizinhos, ele vai pagar por ter me humilhado no salão country e,
claro, por ter nascido um Manganelli. ― afirmou, com obstinação.
Zalon não teve tempo de lhe dizer que concordava com a sua decisão e
que, agora, teriam Roberto como aliado. Rafa achegou-se e, ajeitando o
cabelo longo num rabo de cavalo, disse:
― Minhas amizades não mudarão, e elas estão aqui. Vou morar na
fazenda dos italianos do Paraguai, mas continuarei visitando o povo do meu
bairro. E, mais, já aviso que no próximo fim de semana, vai rolar um pagode
lá na mansão. Quero levar os meus amigos pra piscina.
Maitê e Zalon se entreolharam.
― Será que os Manganelli se irritarão ao ver um bando de pagodeiros
entrarem na sua propriedade de luxo? ― a irmã mais velha perguntou,
sorrindo de modo travesso.
― Bem... ― começou Zalon. ― Roberto estará na cama comigo,
porque passamos a maior parte do tempo assim. Ettore e Francesco vão odiar,
são bestas, se acham os superiores. O Miguel vai fechar a cara e, se o barulho
chegar à mansão dele, com certeza berrará com os seus amigos até arranjar
uma briga daquelas. Portanto...
― VAI TER PAGODÃO NA FAZENDA DOS MANGANELLI!
As três gritaram juntas e depois caíram na
gargalhada.

FIM
Sobre a Autora

Janice Diniz é autora de livros de cowboy com mais de 20 milhões


de leituras na internet.

Seus romances se encontram entre os mais vendidos da Amazon, desde


2014, nas categorias de Romance Erótico e Comédia Romântica.
É autora, entre outros, da “Trilogia Matarana”, “Cowboys de Santa
Fé”, “Cowboys de Sacramento”, “Trilogia Irmãos Lancaster”: Bruto e
Apaixonado (Livro 1) e, em breve, Bruto e Seduzido (Livro 2), Bruto e
Desejado (Livro 3) - Editora HarperCollins/selo Harlequin.

E considerada como a “Rainha dos Cowboys Brasileiros”.


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