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INSTITUTO DE HISTÓRIA – IH
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA COMPARADA – PPGHC
Rio de Janeiro
2015
Glaucia Ferreira Lima de Brito
Rio de Janeiro
2015
Glaucia Ferreira Lima de Brito
Aprovada por:
________________________________________________
Profº. Doutor André Leonardo Chevitarese - PPGHC
________________________________________________
Profº. Doutor José D’Assunção Barros - PPGHC
________________________________________________
Profº. Doutor Mario Sérgio Ignácio Brum - UERJ
________________________________________________
Profª. Doutora Marta Mega de Andrade - PPGHIS
________________________________________________
Profª. Doutora Maria Regina Candido - NEA/UERJ
Rio de Janeiro
2015
Brito, Glaucia Ferreira Lima.
Para que este trabalho fosse realizado tive o apoio de muitos e é a estes que dirijo meus
agradecimentos.
Inicialmente, agradeço aos meus pais, Geraldo Lopes e Dinah Ferreira, pelo dom da
vida e pelo incentivo aos meus estudos. Sei que nem sempre foi fácil me manter na escola,
porém, aqui estou e espero poder retribuir a vocês todo o esforço em me educar e proporcionar
meu sustento. Por isso, lhes sou imensamente grata. À Juliana, minha irmã, pelo carinho e
incentivo.
Sou muito grata aos membros do PPGHC, em especial aos componentes da banca de
seleção, a professora Drª Leila Rodrigues da Silva, nossa atual coordenadora, o professor Dr.
Wagner Pinheiro, assim como o professor Dr. Silvio de Carvalho Almeida Filho e o professor
Dr. Vantuil Pereira, por acreditarem em minha ideia e permitirem que a mesma se concretizasse.
À Ivanete, por ter me ajudado a acreditar que o possível estava ao meu alcance.
Aos amigos Isaías e Leonor, Wagner e Miquilina, Raquel e Maria Luíza agradeço a
amizade, o apoio, os anos de convivência e a constante disponibilidade em me ajudar sem
medida. Vocês são mais que amigos, são irmãos que a vida me presenteou. Agradeço também a
ajuda e o incentivo da minha afilhada Amanda.
Agradeço aos companheiros de vida acadêmica, os quais foram indispensáveis para que
eu conseguisse chegar até aqui. Estou falando do Fábio e da Nathália, pela ajuda nas questões
técnicas, da Elaine, do Mazola e do Jardel, pelos diálogos sempre tão proveitosos. Agradeço de
modo especial, aos colegas de PPGHC: José Henrique e Nicolas. O companheirismo de vocês
me ajudou a chegar ao fim desta jornada.
Agradeço aos familiares, de forma especial minha cunhada, Janice, meus sobrinhos, Gil
e Verônica, pelas traduções, pedidas sempre de última hora e a meus sogros, Luis e Elenice,
pelo apoio e compreensão.
Por último, dirijo um agradecimento especial aos meus filhos, Julia, Alice e João
Ricardo. Agradeço a paciência diante da minha ausência e o amor incondicional que vocês
dedicaram a mim. Ao Ricardo, meu esposo, companheiro e agente da Pastoral de Favelas, cuja
atuação me serviu fonte de inspiração para escrever este trabalho. Agradeço o apoio, a amizade,
o companheirismo, a paciência e o incentivo, sinais do amor que nos une.
Resumo
A dissertação aborda a forma como se deu a atuação de dois grupos pertencentes à Igreja
Católica nas favelas e áreas periféricas da cidade do Rio de Janeiro entre os anos de 1977 e
1993: a Pastoral de Favelas e as Comunidades Eclesiais de Base, tendo os Círculos Bíblicos
seus núcleos formadores. Numa conjuntura caracterizada pela abertura política, permitindo a
formação de movimentos sociais, esferas da Igreja Católica passaram a desenvolver um serviço
pastoral fundamentado na Teologia da Libertação e na “opção preferencial pelos pobres”.
Atuando, portanto, de forma contra hegemônica ao assumir como sua a luta do povo por direitos
sociais, em especial pelo direito à moradia digna. Nosso estudo procura demonstrar que as
lideranças católicas realizaram um serviço que extrapolou a esfera pastoral, configurando-se
como uma atuação de caráter político. Através de cânticos, folhetos e orações, com conteúdo
altamente político, esses agentes politizaram a prática pastoral e sacralizaram a luta do povo,
permitindo gerar no povo uma visão crítica da realidade social e a capacidade de organizar-se
para lutar por seus direitos.
This dissertation adresses the way that two different currents of the Catholic Church served on
the slums and peripheries of the city of Rio de Janeiro between 1977 and 1993: the Favelas
Pastoral and the Base Ecclesial Communities, with the Círculos Bíblicos as their original nuclei.
On a political opening scenario that allowed the formation of social movements, some instances
of the Catholic Church developed a pastoral service based on the Liberation Theology and the
“preferential option for thepoor”. Therefore, the movement performed in a anti hegemonically
way defending the people’s fight for social rights, specially for habitation. This study
demonstrates that the catholic leadership worked in a scale beyond the pastoral sphere, which
can be analysed as a political interference. Through chants, leaflets and preyers, which brought
a high political vision, these agents politicized the pastoral practise and sacralized the people’s
claim, promoting the formation of a common critical vision about the social reality and giving
the people the capacity to organize themselves in order to fight for their rights.
Introdução .............................................................................................................................8
Conclusão ........................................................................................................................... 93
Bibliografia ......................................................................................................................... 95
Introdução
1
Organizada por Jacques Le Goff e Pierre Nora, a coletânea “História: Novos Problemas, Novas
Abordagens, Novos Objetos” constitui-se na obra de referência da chamada Nova História. Responsável
pela ampliação das possibilidades de produção histórica, tornou possível a análise de fontes e de objetos
que, até então, eram desconsiderados pela academia.
11
Durante o final dos anos 50 e começo dos 60, alguns setores da Igreja no Brasil,
assim como parte dos leigos envolvidos nas atividades pastorais, se deslocaram em
direção ao movimento das classes dominadas (trabalhadores, subproletários) e das
forças sociais que se organizavam no intuito de encaminhar transformações estruturais
que atendessem às necessidades dos grupos mais empobrecidos da sociedade brasileira.
Isso se deveu ao envolvimento de alguns setores do universo católico nas questões
sociais deste período (LIMA, 1979: 30).
Segundo Souza Lima, duas forças exerceram forte influência neste processo: o
grupo progressista do episcopado e a Ação Católica Brasileira. Essas duas forças, apesar
de intimamente ligadas, possuíam uma diferença de fundamental importância para a
análise da atuação das mesmas: a forma como cada uma se articulou às esquerdas
brasileiras e ao processo de organização das lutas das classes populares na sociedade
brasileira (LIMA, 1979: 30).
Luiz Gonzaga de Souza Lima, considera que, desde meados da década de 50,
uma nova ideologia começa a ser forjada no seio do grupo progressista do episcopado
católico no Brasil, e a base dessa nova ideologia consiste na constatação de que as
injustiças existentes na sociedade se constituem em um reflexo das suas contradições
estruturais. Neste contexto, então, verifica-se que o comportamento do episcopado
brasileiro assume um novo rumo, caracterizado pela ação para a transformação da
sociedade (LIMA, 1979: 31).
Marina Bandeira (BANDEIRA, 2000: 210) acrescenta que
Ao fazer uma análise da Igreja Católica no Brasil desde 1930, a autora salienta
que o pós-guerra gerou um reconhecimento da miséria do povo brasileiro por parte de
setores do clero e, devido a esta constatação, a mudança de visão sobre sua ação na
sociedade começa a ocorrer já a partir de 1945. O trecho em destaque demonstra que a
mudança de visão social na Igreja não atinge todo o corpo episcopal, pelo contrário,
provoca, ao longo dos anos seguintes ao término da II Guerra Mundial, um
distanciamento entre um grupo conservador, sintonizado com as classes abastadas do
12
país e outro, cada vez mais envolvido com as questões sociais do Brasil.
Posteriormente, em uma fase mais aguda, tal distanciamento evoluiu para uma ruptura
entre Igreja e Estado em meados da década de 60.
Diferentes de alguns pesquisadores – em sua maioria estrangeiros –, que veem as
mudanças ocorridas na Igreja como frutos do medo do comunismo e de uma tentativa
do clero em manter a influência da Igreja Católica sobre a sociedade brasileira2, autores
por nós pesquisados consideram que fatores internos, ligados, sobretudo, à realidade das
camadas mais pobres da população, foram os motivadores para a mudança no perfil da
Igreja naquela época3.
Sob o olhar de Gonzaga Lima, o novo direcionamento do comportamento do
clero não se deveu somente à existência da miséria, mas à ação dos próprios miseráveis,
ou seja, à formação de um projeto social articulado pelos grupos populares componentes
da sociedade. Isso nos leva a considerar que o clero foi incentivado pelo meio e não o
contrário. Ou ainda, como o autor sugere, é possível que, em função do envolvimento
do clero com as questões referentes aos grupos mais pobres da sociedade, estes tenham
percebido a Igreja com um espaço aberto a ouvir seus anseios e, a partir daí, tenham
provocado um processo de “conversão” da instituição, capaz de mudá-la ao ponto de
fazer nascer uma “nova” Igreja Católica no país (LIMA, 1979: 32).
O autor acredita que a ação do grupo progressista do clero foi determinada por
seu envolvimento com as lutas sociais e não exatamente por uma ideologia. Esta última
teria sido, na verdade, fruto de sua ação no meio social. Isso quer dizer que os meios em
que a influência do grupo progressista foi mais evidente – no meio educacional, por
exemplo – não ocorreu através de uma escolha preliminar, mas em função da
organização da luta em defesa de seus direitos, assim como por mudanças estruturais no
país. A mobilização popular, portanto, serviu de motivação – e por que não dizer, de
convocação – para a ação social do clero (LIMA, 1979: 33).
Corresponde a um elemento importante o fato de que no momento em que a
participação popular tornava-se mais intensa nos diversos setores da sociedade, havia na
direção da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (daqui para frente CNBB) um
grupo de bispos progressistas que, não só apoiava, mas incentivava a participação
2
Sobre esta questão ver, por exemplo, o trabalho de Thomas C. Bruneau, pesquisador norte-americano
que considera que a Igreja Católica começou a mudar suas práticas com o objetivo de preservar sua
influência junto ao povo brasileiro. Thomas C. Bruneau.
3
Sobre esta abordagem é possível citar: Marina Bandeira (2000), Luiz Alberto Gomez de Souza (1984),
Luiz Gonzaga de Souza Lima (1979), José Oscar Beozzo (1984), além de Michael Löwy (2000).
13
efetiva do clero e dos leigos nos diversos movimentos populares que se organizavam
naquela época. Um grupo de bispos que reconhecia a ação social como a concretização
do ideal cristão.
Portanto, a participação dos leigos nos movimentos sociais não dependia de uma
autorização da Igreja, pelo contrário, era compreendida como algo inerente à condição
do cidadão, que está inserido em um corpo social. Esses leigos pertenciam a classes
sociais, as quais viviam um momento de intensos conflitos e, por isso mesmo estavam
sensíveis aos problemas existentes nelas. Em função disso, observa-se uma “feliz
coincidência histórica” o fato de haver, naquela época, na CNBB, uma direção aberta a
aceitar e valorizar a participação do clero de dos leigos na vida política do país (LIMA,
1979:33).
Entretanto, para a melhor compreensão da forma como se deu a participação dos
católicos, faz-se importante analisar o conteúdo de classe da ação tanto do grupo de
bispos progressistas quanto dos católicos engajados. Este ponto nos possibilita tanto
reconhecer as diferenças entre estes dois grupos componentes do universo católico
inseridos no processo histórico em curso no país, quanto entender o comportamento da
Igreja Católica no seu conjunto (LIMA, 1979: 33).
O conteúdo que compunha a ação dos grupos progressistas da hierarquia
católica, com a intenção de participar do processo de mudanças no país, estabeleceu-se
sob a influência de dois aspectos favoráveis. O primeiro corresponde às inovações
referentes à doutrina social da Igreja, no âmbito mais mundial; e o segundo corresponde
à existência do “desenvolvimentismo”, a qual funcionava como ideologia da aliança de
classes no poder. Isto quer dizer que o esforço realizado pelo grupo progressista em prol
de mudanças estruturais, recebia a legitimação da doutrina social da Igreja. Essas
mudanças não contestavam nenhum princípio eclesiástico. Além disso, as mudanças
propostas não criavam nenhum antagonismo em relação às classes dominantes. Pelo
contrário, tais mudanças deveriam acontecer dentro dos limites do projeto de
desenvolvimento populista (LIMA, 1979: 34).
No início da década de 60 a Igreja, no plano político, encontrava-se dividida em
três grupos. De um lado, uma fração do episcopado católico que, mesmo não sendo
unitária e majoritária dentro da Igreja, apoiava as forças sociais envolvidas no processo
de mudanças estruturais. No entanto, sua ação se desenvolvia no sentido de legitimar o
projeto social dos setores mais progressistas do populismo. De outro, uma parcela maior
do episcopado se subdividia em dois campos: um grupo quantitativamente expressivo,
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apoiava os setores mais atrasados da aliança de classes com o poder e, uma fração
menor, que prestava apoio a uma corrente radicalmente conservadora, porém, destacada,
naquele momento, da gestão do poder político (LIMA,1979:34).
No decorrer do primeiro quartel da década de 60, na medida em que o processo
político brasileiro se desenvolvia, as classes dominantes se dividiam e o corpo episcopal
da Igreja não se isentou disso. A Igreja Católica, que tinha tradicionalmente as classes
dominantes como sua principal base social, viveu as consequências dessa divisão. Em
1964, a maioria do clero católico brasileiro apoiou o golpe de Estado e se integrou aos
grupos que se aliaram em torno do projeto político defendido pelos militares no poder.
Outro grupo, porém, manteve-se contrário ao golpe, sofrendo forte repressão dentro da
própria instituição (LIMA, 1979: 35).
Na visão de Marina Bandeira (2000), a chamada “questão social” no interior da
Igreja Católica se intensifica em função de diversos fatores, surgidos em meados da
década de 40. No plano externo, a autora apresenta a influência das mensagens sociais
de Pio XII e dos discursos sobre fraternidade realizados pelos chefes de governos que
derrotaram os regimes fascista e nazista. Em relação ao plano interno, além dos
sentimentos de esperança e liberdade surgidos com a queda do Estado Novo, a autora
destaca, dentre outros pontos, a influência exercida pelos chamados “bispos
nordestinos”4, os quais, com o apoio dos núncios, conseguem fazer suas denúncias
tomarem dimensão nacional. O surgimento da Ação Católica Brasileira (daqui para
frente ACB), que segundo a autora (BANDEIRA, 2000: 215), suscita uma aproximação
e uma relação mais espontânea entre setores do laicato e do episcopado, além da adoção
4
Segundo Marina Bandeira, em sua obra “A Igreja Católica na Virada da Questão Social (1930-1964)”, a
expressão “Bispos nordestinos” é usada para designar todos os bispos que denunciam as injustiças sociais
no Brasil no período posterior à II Guerra Mundial. Em um momento em que o país assiste ao
crescimento dos índices de empobrecimento do povo, em especial ao fenômeno da fome no Nordeste
brasileiro, um grupo de bispos começa a tomar consciência das causas dos problemas sociais brasileiros e
as suas consequências para a vivência da fé católica no país.Essa tomada de consciência gera, na visão da
autora, um distanciamento das posições deste setor do episcopado e as posições da Igreja conservadora.
Do grupo de “bispos nordestinos” é possível destacar os seguintes nomes de: “Dom Fernando Gomes dos
Santos, paraibano, bispo de Penedo, Alagoas (1941), futuro bispo de Aracaju; Dom José Delgado,
pernambucano, bispo de Caicó, Rio Grande do Norte (1941), futuro bispo de São Luís do Maranhão;
Dom Portocarrero Costa, pernambucano, bispo de Mossoró, Rio Grande do Norte (1943); Dom Avelar
Brandão Villela, alagoano, bispo de Petrolina, Pernambuco (1941), futuro bispo de Teresina e,
posteriormente, de Salvador. Juntamente aos bispos mencionados, alguns sacerdotes irão assumir a “causa
dos pobres” e dentre estes, é importante citar o nome de: Padre Hélder Câmara, cearense; Padre José
Vicente Távora, pernambucano e Padre Eugênio de Araújo Salles, norte-riograndense. Vale ressaltar que
a denominação bispos nordestinos não se aplicava, na época, apenas aos nascidos no nordeste do país,
mas a todos aqueles que, de algum modo, se identificavam e apoiavam as posições suas posições. É o
caso de Carlos Carmelo de Vasconcellos Motta, mineiro, arcebispo de São Paulo e de Dom Jaime de
Barros Câmara, catarinense, arcebispo do Rio de Janeiro.
15
“preocupa-se com todos os seres humanos, acentua a importância dos direitos humanos
no plano espiritual. Refere-se aos ‘Sinais dos Tempos’, dentre os quais destaca: a
ascensão econômico-social das classes trabalhadoras, a crescente consciência da
dignidade da mulher e os direitos das minorias. Insiste na participação dos cidadãos na
vida pública (cf. João XXIII 1963).”
Löwy (2000:135) considera que a Igreja brasileira é um caso único devido à sua
especificidade em relação à influência exercida pela teologia da libertação e seus
seguidores na sociedade. Esta realidade se fundamenta por meio de dois fatores
importantes: o primeiro é que a Igreja brasileira é a maior do mundo, além disso, seus
membros estão entre os principais fundadores do chamado “novo movimento popular” –
a CUT, o MST, as Associações de Moradores das Periferias e o PT – o qual é produto
da atividade comunitária das lideranças cristãs, fossem elas, clérigos ou agentes
pastorais.
16
“este último aspecto foi certamente um dos mais importantes: nos primeiros
anos da década de 60, militantes católicos, com o apoio da Igreja, formaram o
Movimento pela Educação Básica (MEB), a primeira tentativa católica de criar uma
prática pastoral radical entre as classes populares. Tendo como base a pedagogia de
Paulo Freire, o MEB tinha como objetivo não só alfabetizar os pobres, mas também
conscientizá-los e ajudá-los a se tornarem agentes de sua própria história. Em 1962, os
militantes da JUC e do MEB criaram a Ação Popular – AP, movimento político não
confessional dedicado à luta pelo socialismo e ao uso do método marxista.”
Ao longo das suas primeiras décadas, a ACB desenvolveu seus trabalhos sob a
orientação dos movimentos da Ação Católica europeia, mais baseada na via litúrgica e
na pura formação (SOUZA, 1984:86). Contudo, a partir de meados da década de 1940,
mais precisamente em 1946, com a nova redação dos seus estatutos, começa a se
delinear na ACB uma consciência no sentido de elaborar uma ação católica
especializada, adequada aos problemas brasileiros. Logo, a mudança de perfil se fez
sentir nos anos seguintes, quando se reconheceu que os estatutos de 1946 não atendiam
aos anseios de seus membros. Sobre esta questão, Giovanni Semeraro (SEMERARO,
1994: 40) comenta que
“Em julho de 1950, durante a quarta semana nacional da ACB, realizada no Rio de
Janeiro, chegou-se à conclusão de que os vários ramos do apostolado deveriam se
especializar segundo o ‘meio’ no qual se trabalhava. Consolidaram-se assim: a JAC
para o meio rural; a JEC para o meio estudantil secundarista; a JIC para o meio
independente; a JOC para o meio operário; a JUC para o meio universitário e
movimentos de adultos, entre os quais vão ter expressão a ACO e ACI, respectivamente
para o meio operário e independente.”
Este trecho nos leva a considerar que a renovação na Igreja Católica brasileira, a
qual culminou na Teologia da Libertação e nas Pastorais Sociais, foi fruto de uma
realidade social que exigia mudanças e que teve início no processo de inquietação
vivido pelas lideranças da ACB.
Segundo Lima (1979: 36), a ACB correspondeu a um novo referencial para os
católicos e sobre isso argumenta que
O surgimento deste grupo está relacionado com o trabalho do Centro Dom Vital
e nas preocupações de seu diretor, Alceu Amoroso Lima, os quais fundaram em 1929, a
Associação dos Universitários Católicos, integrada em 1937 à JUC, criada em 1935
como um setor da ACB.
O objetivo central da JUC era estabelecer uma influência no sistema educacional
brasileiro, de forma que, por meio de uma presença organizada no meio universitário,
fosse possível proporcionar ao mesmo uma cristianização da elite intelectual e, assim,
interferir nos destinos do país.
21
Francisco Withacker Ferreira e seu assistente Mons. Enzo Gusso”. Já do grupo mineiro
faziam parte: “Herbert José de Souza (Betinho), Antônio Otávio Cintra, Henrique
Novaes, Paulo Haddad, Vinícius Caldeira Brant” e seu assessor, o Pe. Luiz Viegas
(SEMERARO, 1984: 51).
A influência da JUC nas cidades universitárias do Brasil chegou, em dez anos de
existência do movimento, a 52 cidades. Ainda, de acordo com José Oscar Beozzo
(1984: 64), os 550 participantes do Congresso de 10 anos da JUC, correspondiam a
cerca de um décimo do total.
A partir de 1959, a JUC aprofunda sua ação no meio social com um diferencial,
o fato de que a ação política do movimento passava a ser um compromisso evangélico
de suas lideranças. Este ano também foi decisivo pelo fato de que as lideranças jucistas
foram interpeladas pelo Pe. Almery Bezerra, durante o Conselho de Belo Horizonte,
ocorrido em julho de 1959, no sentido de que a JUC necessitava da formulação “de um
ideal histórico”. Com isso a JUC reconhecia que não bastava identificar a política
universitária como atividade fundamental, era preciso ampliar seu raio de atuação na
tentativa de alcançar a realidade do operário e do homem do campo, pois reconhecia,
naquele momento, que não era possível a transformação da universidade sem que
houvesse uma transformação da sociedade brasileira como um todo (SEMERARO,
1984: 52).
Foi neste contexto que a coordenação do Regional Centro-Oeste, o qual reunia
estudantes de ciências sociais da UFMG, apresentou o documento intitulado “Algumas
Diretrizes de um Ideal Histórico Cristão para o povo brasileiro”. Constitui-se como a
primeira publicação católica a atacar diretamente o capitalismo e a propor a sua
superação, demonstrando clara afinidade com o marxismo. Observa-se ainda uma
relação direta da JUC com os grupos políticos da esquerda brasileira, mesmo guardando
inúmeras críticas aos mesmos.
A atuação política da JUC se mostra mais intensa em 1960, quando declarou
apoio a Oliveira Guanais, candidato de esquerda à presidência da UNE (União Nacional
dos Estudantes). Em seguida, em 1961, o presidente eleito para o Diretório Central dos
Estudantes (DCE) da PUC do Rio de Janeiro, foi Aldo Arantes, militante da JUC, com
uma chapa composta por membros da União da Juventude Comunista (UJC). Com o
mandato de Aldo Arantes se iniciou um período de hegemonia católica na UNE, que se
estendeu até a instauração do golpe de 1964.
23
como no Movimento de Cultura Popular (MCP), da mesma forma que nas experiências
desenvolvidas pela UNE-Volante e no programa de alfabetização de Paulo Freire. Os
jucistas também se fizeram presentes na Frente Nacionalista e nas eleições para a
Confederação dos Trabalhadores na Agricultura (a CONTAG). Essa influência ocorreu
também na formação da Ação Popular (AP) (SEMERARO, 1994: 56).
“A análise das suas posições na segunda metade dos anos 50 e início dos anos 60
demonstra como a CNBB se tornara uma grande força para as mudanças no Brasil e na
Igreja. Embora os reformistas constituíssem uma minoria dentro da CNBB,
conseguiram articular uma visão da missão da Igreja que foi muito além das posições
triunfalistas das décadas anteriores. Um grande número de iniciativas e
pronunciamentos desencadearam visíveis mudanças na Igreja e na concepção de
evangelização que facilitaram as atuações mais ousadas da esquerda católica.”
Contudo, toda essa vivacidade foi contida pelo Golpe de 1964. Lima (1979: 46)
considera que a AP estava por se constituir em um espaço privilegiado da participação
política, bem como de militância fundamentada pelo humanismo cristão e buscando a
construção do socialismo, além de estar destinado a ter um papel de destaque na política
brasileira.
31
O início dos anos 60 foi marcado pela tentativa, por parte dos diversos grupos de
esquerda, de fomentar nas classes populares do país uma consciência da realidade
brasileira e, assim, possibilitar a participação política do povo. Para isso todos esses
32
grupos viam na educação a chave para a eclosão desse processo de mudança das
estruturas do país.
Sendo assim, muitas iniciativas aconteceram em todo Brasil. Foram experiências
de educação popular que permitiram a inovação nos métodos e na criação de práticas
pedagógicas inovadoras, as quais foram importantes não só para aquele momento, mas
devido a sua importância, influenciaram a sociedade, a Igreja e marcaram a história da
educação brasileira.
O Movimento de Educação de Base (MEB) foi um desses movimentos. Foi
fundado em 1961, pela CNBB em convênio com o governo federal. O presidente Jânio
Quadros assumiu o financiamento, enquanto que o bispo de Aracaju, Dom José Távora,
encarregava-se pela organização do projeto. O objetivo principal do MEB era viabilizar
a alfabetização de adultos, por meio de escolas radiofônicas implantadas no interior do
país, assim como nas regiões menos desenvolvidas do Brasil. (SEMERARO, 1994: 67)
O MEB conjugava dois interesses: o do governo e o da Igreja Católica. Na visão
de Eduardo Wanderley (1984:49), o governo buscava dar conta das urgências da
educação, da necessidade de ampliar o número de eleitores, de diminuir o poder das
oligarquias rurais e de controlar as massas no aspecto ideológico. Por outro lado, a
Igreja Católica – segundo a Declaração da Comissão Geral da CNBB (CNBB, 1961),
publicada em 1961 – estava interessada em expandir sua preocupação com a educação,
assegurar sua influência sobre o povo, além de frear o avanço do comunismo no país.
Desta forma, pode-se reconhecer que a divisão no seio da Igreja Católica é algo
mais amplo que um modelo vertical comum, ou seja, entre os grupos “que vêm de
baixo” (movimentos cristãos populares, comunidades eclesiais de base, etc) contra
“aqueles que vêm de cima” (hierarquia, bispos e chefes da instituição). Na visão de M.
Löwy (2000: 67), o modelo de divisão é também horizontal, pois perpassa toda a
estrutura clerical e divide-se em tendências diferentes – ou opostas. Estamos falando
dos movimentos laicos, das conferências episcopais, das ordens religiosas e do clero
diocesano, em uma instituição que, apesar das contradições existentes, preserva a
unidade não exatamente para evitar uma cisão, mas porque seus objetivos religiosos
ultrapassam o âmbito do social ou do político.
Consideramos pertinente a visão apresentada pelo autor, pois que a mesma deixa
transparecer a profundidade dos conflitos existentes entre os grupos acima
mencionados. A divergência entre estes grupos é de caráter ideológico e traduz em
ações em que os grupos mais próximos das esferas de poder na hierarquia eclesial,
limitam a ação pastoral e a produção teológica dos outros grupos, em especial os grupos
ligados à TL.
Um exemplo desta realidade é a própria Pastoral de Favelas – assim como todas
as outras pastorais sociais –, a qual foi desalojada de suas instalações na Cúria da
Arquidiocese do Rio de Janeiro durante a gestão de D. Eusébio Sheid (2000-2009). Ela
só retornou ao seu antigo endereço na gestão de D. Orani Tempesta.
Desta forma, fica claro que no momento em que grupos da sociedade brasileira
davam início a um processo de mobilização e conscientização popular, configurando-se
como, possivelmente, o alvorecer da organização popular propriamente dita no seio da
sociedade brasileira, ocorreu uma articulação da elite de forma a impedir todo esse
processo.
38
“Os generais queriam a bênção dos bispos ao seu regime, e os prelados queriam a
garantia dos privilégios e do espaço doutrinal concedidos à Igreja, de uma forma ou de
outra, desde o início da história do Brasil. Tanto os generais como os bispos
acreditavam que poderiam modificar as ideologias uns dos outros. O militares
enfatizavam os perigos do comunismo, enquanto a Igreja apontava para a necessidade
de justiça social. Os dois lados se atraíam reciprocamente porque compartilhavam um
profundo compromisso com a fé católica e uma preocupação quanto aos danos nas
relações entre a Igreja e o Estado. Apesar de tudo que havia acontecido desde 1964, em
novembro de 1970 eles ainda esperavam que a Igreja e as Forças Armadas pudessem
recompor seus laços e colaborar para o progresso do Brasil.”
5
Trecho extraído do relatório sobre o 1º Encontro ‘Bipartite’, FGV/CPDOC, ACM, rolo 1, doc. nº 906, p.
2. Apud. Serbin, 2004: 34. Grifos nossos.
42
6
O conceito de habitus, formulado por Pierre Bourdieu (2007), corresponde ao conjunto de valores,
regras, gostos e convenções assimilados pelos sujeitos sociais no decorrer do seu processo de
socialização. O habitus é composto pelas vivências passadas e age como um manancial de percepções,
apreciações e formas de agir na sociedade. É fornecedor de esquemas fundamentais para a intervenção na
sociedade e, normalmente, é adquirido na escola.
43
faziam oposição ao regime foram torturados e mortos, dentre os quais muitos militantes
católicos.
Este período foi marcado também por um número expressivo de padres, freiras,
bispos e militantes leigos que foram submetidos a maus-tratos por parte dos militares.
Sete clérigos foram assassinados. A CNBB se colocou como “a voz dos que não têm
voz”, defendendo as pessoas vitimadas pela tortura, além dos pobres.
A crítica pública da Igreja acerca das prisões, torturas e mortes realizadas pela
ditadura militar brasileira ganhou a esfera internacional. E, segundo Serbin (2004: 48),
essa crítica foi de fundamental importância e funcionou como o marco iniciador do
Brasil Moderno. Ela não estava restrita ao nosso país, como também foi importante para
toda a América Latina, já que nesta região a Igreja Católica construiu seu poder,
privilégio e influência social e política aliando-se aos grupos das elites dos diversos
países e, obviamente, apoiando o status quo vigente. Nos anos setenta, então, no dizer
do brasilianista Scott Mainwaring (apud SERBIN, 2004: 48), a Igreja Católica,
colaborou para a derrubada do regime por meio de sua legitimidade moral.
A Igreja Católica, como já mencionamos anteriormente, vivenciou nos anos
setenta um crescimento da ação pastoral, padres e freiras se espalharam pelo meio rural
e pelas cidades a fim de formar as Comunidades Eclesiais de Base e a motivar a
formação de pastorais sociais – foi nesta década que foi fundada a Pastoral de Favelas
na cidade do Rio de Janeiro. Surgiram também a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o
Conselho Indigenista Missionário (CIMI), os quais exerceram forte pressão sobre o
poder público em prol da reforma agrária e do respeito e preservação das nações
indígenas e suas reservas. As primeiras publicações dos teólogos da libertação vieram a
público e nascia a chamada “Igreja progressista”, a qual ganhou impulso ainda maior
por ocasião da formulação da “opção preferencial pelos pobres”, durante a Conferência
Episcopal de Puebla, no México, em 1979.
Enquanto setores da Igreja Católica empunhavam as bandeiras da reforma
agrária, dos direitos humanos e da defesa dos pobres, esta mesma instituição se
dedicava a fazer política de bastidores com os militares de alto escalão do país. A
descoberta do material que prova a existência desta comissão abre caminho para novas
interpretações acerca das estratégias tanto do governo brasileiro quanto da Igreja
Católica do país (SERBIN, 2004: 51).
Por outro lado, se a década de 80 é marcada pela ascensão dos movimentos de
encontro, como foi mencionado anteriormente, a chamada “Igreja do povo”, também se
44
prolifera nas periferias das grandes cidades, assim como no meio rural, através dos
grupos de Círculos Bíblicos, os quais serão tratados no terceiro capítulo deste trabalho.
Capítulo 2
URBANIZA-SE? REMOVE-SE?
São 200, são 300
as favelas cariocas?
O tempo gasto em contá-las
É tempo de outras surgirem.
800 mil favelados
ou já passa de 1 milhão?
Enquanto se contam, ama-se
em barraco e a céu aberto,
novos seres se encomendam
ou nascem à revelia.
Os que mudam, os que somem,
os que são mortos a tiro
são logo substituídos.
Onde haja terreno vago
onde ainda não se ergueu
um caixotão de cimento
esguio (mas se vai erguer)
surgem trapos e panelas,
surge fumaça de lenha
em jantar improvisado.
Urbaniza-se? Remove-se?
Extingue-se a pau e a fogo?
Que fazer com tanta gente
brotando do chão, formigas
De um formigueiro infinito?
Ensina-lhes paciência,
conformidade, renúncia?
Cadastrá-los e fichá-los
para fins eleitorais?
Prometer-lhes a sonhada,
mirífica, rósea fortuna
distribuição (oh!) de renda?
Deixar tudo como está
para ver como é que fica?
Em seminários, simpósios,
comissões, congressos, cúpulas
de alta prosopopéia
elaborar a perfeita
e divina decisão?
rastejante, insinuante,
grimpante, desafiante
de gente qual gente: amante,
esperante, lancinante...
O mandamento da vida
Explode em riso e ferida.
A crônica que inicia este capítulo define de maneira muito clara a situação da
população favelada do Rio de Janeiro em fins da década de 1970. Apesar de ter sido
escrita após o auge do período conhecido como a “era das remoções”7, a crônica
expressa o sentimento, ainda presente no imaginário dos moradores que viveram os
anos de repressão exercida pelo governo. O auge deste período compreendeu os anos
entre 1964 e 1977. Contudo, mesmo a política de remoções ter sido deixada de lado,
cabe questionar: por que dos moradores se sentiam ainda inseguros em relação ao poder
público?
Na tentativa de responder a esta questão consideramos oportuno retroceder no
tempo e analisar o início da chamada questão habitacional em nosso país.
No livro “O que é Questão da Moradia” (RIBEIRO e PECHMAN, 1985), os
autores consideram que a questão habitacional no Brasil se forma em um contexto de
consagração da sociedade capitalista, marcado de um lado, por uma profunda
desigualdade de renda, determinada pela economia e, por outro, pelas características do
mercado imobiliário, que impõe elevados índices de preços dos imóveis, inviabilizando,
portanto, o acesso à habitação por aqueles que não possuem condições financeiras para
comprá-lo.
Na visão destes autores, a questão da moradia no Brasil possui como principais
traços, os preços elevados dos imóveis, as condições precárias das habitações e a
segregação das classes sociais, os quais estão intimamente ligados à estruturação do
sistema capitalista no país. O que nos leva a concluir, concordando com os autores, que
o problema de falta de moradia não pode ser justificado com a existência de uma
defasagem entre a oferta e a procura das mesmas, que resulta em uma elevação dos
7
Expressão utilizada por Mario Brum e outros autores que se dedicam ao tema da questão habitacional no
Rio de Janeiro. O auge deste período corresponde ao anos de 1964 e 1973.
47
preços dos imóveis, ao ponto de excluir os indivíduos das camadas mais pobres da
possibilidade de aquisição de habitação.
Na verdade, seguindo o raciocínio dos autores, em uma sociedade capitalista, o
que determina a demanda de um bem, é somente a “demanda solvável”, aquela
determinada pelos indivíduos que reúnem condições de pagarem por este bem
(RIBEIRO e PECHMAN, 1985: 9). O valor do mesmo é determinado, então, pela
possibilidade de lucro que oferece, e não pela importância que este possui para a
garantia de vida digna dos seres humanos. É neste contexto que a questão da moradia
torna-se, portanto, uma luta social, uma luta dos que estão à margem do direito à
habitação (CARVALHO FILHO, 2009).
“‘os recursos utilizados pelo Sistema Financeiro de Habitação só foram suficientes para
atender a 24 por cento da demanda populacional’ (urbana). Isto significa que, seis anos
após a criação do BNH, toda a sua concentração para atender ou diminuir o déficit que
ele se propôs eliminar constituiu em que esse mesmo déficit aumentasse em 76 por
cento. De acordo com as previsões do BNH, em 1971 o atendimento percentual teria
sido de 25,3 por cento e, embora deva aumentar ligeiramente em cada ano até 1980, o
déficit deverá exceder 37,8 por cento do incremento da necessidade.”
A citação é clara com relação ao fato de o BNH não atingir, logo de início,
aquele que deveria ser seu maior objetivo “estimular a construção de habitações de
interesse social (...) especialmente pelas classes da população de menor renda”.
Contudo, para entender exatamente a raiz da inoperância do SFH/BNH é preciso
recorrer exatamente ao texto da lei, o qual, em seu Artigo 3º, determina que
8
Lei nº 4380/64 de 21 de agosto de 1964.
9
Fundo criado em 1967 pelo governo federal, que corresponde a depósitos compulsórios de 8% do salário
pago ao trabalhador regido pela CLT, que o trabalhador tem direito a reaver em caso de demisão sem
justa causa. É possível ainda, que a quantia do FGTS seja usada para a aquisição de imóvel para moradia.
10
Lei nº 4380/64 de agosto de 1964.
49
O trecho deixa evidente a reflexão de Botega quando afirma que o BNH surgiu
com a finalidade transmitir suas funções para a iniciativa privada. Ou seja, o BNH tinha
a função de arrecadar os recursos financeiros e, depois disso, transferi-los para os
agentes privados intermediários. O autor salienta que algumas medidas expressavam
tanto uma preocupação com o planejamento das ações urbanísticas, quanto interesses
relativos ao capital imobiliário. Cita como exemplo a medida que determinou que as
prefeituras deveriam elaborar planos de urbanização para os municípios, o que, a
princípio, se constituía como algo positivo. Contudo, a condição básica para a aquisição
do empréstimo junto ao Serviço Federal de Habitação e Urbanismo era de que tais
projetos deveriam ser formulados por empresas privadas. Não só o projeto, mas também
a cobrança das prestações devidas deveria ser dirigida a um conjunto de agentes
privados (companhias habitacionais, assim como iniciadores e sociedades de crédito
imobiliário) que retinham uma parcela dos juros e dos recursos financeiros advindos das
prestações recebidas ao longo de um ano, antes de os repassarem ao BNH (BOLAFFI,
apud, BOTEGA, 2008:15).
Desta forma, o SFH/BNH foi um instrumento importante para a movimentação
da economia nacional e do capital imobiliário brasileiro, afastando-se de seu suposto
objetivo principal, que era o de estimular as políticas habitacionais com vias a vencer o
déficit de moradia. (BOTEGA, 2008: 07)
Na verdade, vencer o déficit da moradia não era, segundo Gabriel Bolaffi, o
objetivo do BNH. Bolaffi (1982:47) defende que
“tudo indica (...) que o ‘problema da habitação’ (...) apesar dos fartos recursos que
supostamente foram destinados para a solução, não passou de um artifício político
formulado para enfrentar um problema econômico conjuntural”.
A citação é útil para tornar ainda mais clara a ideia de que a questão habitacional
no Brasil, foi caracterizada pela forte intervenção do Estado, efetivada através do
Sistema Financeiro de Habitação e do Banco Nacional de Habitação. Os dois órgãos,
criados durante a fase inicial da Ditadura Militar, foram fundamentais para o
fortalecimento do mercado imobiliário e da indústria da construção no país, bem como
possibilitaram a construção de um contingente significativo de habitações voltadas,
basicamente, para as classes média e alta.
Por outro lado, a ausência do Estado em relação às camadas de baixa renda da
população brasileira revela, na visão da autora, a outra face da questão habitacional no
Brasil: “o da ilegalidade, dos loteamentos clandestinos, da irregularidade das
construções, das invasões de terras, das favelas, dos cortiços, do sobretrabalho na
autoconstrução, do congestionamento habitacional, da promiscuidade, da
insalubridade, etc”.(MARICATO, 1987:87)
No início da década de 70 corresponde a um período em que o BNH passou a
investir fortemente em obras de infraestrutura urbana e em obras de importância
nacional. Os investimentos do BNH foram voltados, em sua grande maioria, para três
clientes. As grandes empresas de construção pesada, as quais foram responsáveis pelo
direcionamento da política habitacional no país. As prefeituras, assim como as empresas
estatais. Isso garantiu o domínio do mercado pelas grandes empresas, reforçado pelo
caráter centralizador dos recursos, exercido pelo BNH. Este quadro permitiu, por
exemplo, que pequenas obras se transformassem em empreendimentos faraônicos, além
de a tecnologia e a ideologia que fundamentaram os projetos fossem caracterizadas pelo
autoritarismo, próprio do regime, o qual viabilizou a formulação do capital das grandes
empresas de construção (MARICATO, 1987: 88).
Posteriormente, em meados dos anos 70, o BNH tenta uma mudança em sua
atuação, procurando viabilizar o financiamento de habitações. Apesar de não se
constituir em uma mudança radical na orientação da política da instituição, observa-se
pela primeira vez em sua história, a construção massiva de moradias, com o uso de
novas tecnologias, as quais permitiram maior produtividade (MARICATO, 1987: 89).
Contudo, a autora reconhece que o crescimento do movimento popular,
principalmente no contexto da abertura política do país, correspondeu a um motivo
relevante para a tentativa de mudança de rumo da atuação do BNH e é esta a questão
central de nosso trabalho.
51
11
Após a transferência da capital da República para Brasília, o Rio de Janeiro deixa de ser capital e passa
à condição de Estado da Guanabara.
12
Vale ressaltar que José Arthur Rios foi influenciado em suas ideias pelo pensamento do Pe. Lebret, um
dos formadores da JUC.
13
É importante esclarecer que as associações de moradores tiveram início no Rio de Janeiro ainda na
década de 1940. Elas, segundo Mario Brum (BRUM, 2006: 54) surgiram em função de ações
governamentais direcionadas à população favelada. Fossem elas ações de cunho repressivo ou
paternalista, colaboraram para a formação da identidade do favelado, este visto até então, como algo a ser
removido, torna-se um ator social que luta por seu espaço na cidade, não aceitando passivamente a
remoção. As associações de moradores nasceram com o objetivo de ser um instrumento de mobilização
dos moradores de favelas em prol do direito à moradia. O contexto pós II Guerra Mundial e a abertura
política vivida com o fim do Estado Novo, foram fatores que incentivaram a organização da população
favelada no sentido de evitar a remoção e de ter seu direito à moradia garantido.
52
participarem com propostas e até mão de obra para a urbanização local. O projeto de
Rios se concretizou por meio do programa “Operação Mutirão”, o qual se baseava nos
princípios de desenvolvimento e autoajuda da comunidade. Essas duas primícias se
constituíam no centro do projeto, pois segundo seu idealizador, era preciso romper com
a dependência dos favelados em relação ao poder público.(BRUM, 2012: 57)
Este projeto contaria ainda com os recursos vindos do chamado “Fundo do
Trigo”14. Em entrevista citada por Mario Brum (BRUM, 2012: 58), Rios esclarece que
foi muito procurado por inúmeros políticos, interessados nos recursos que seriam
repassados pelo fundo. O autor, seguindo estudos anteriores (LEEDS & LEEDS, 1978),
aponta que o modelo de urbanização desenvolvido por Rios se chocava com os
interesses imobiliários devido a diversos fatores, dentre os quais é possível destacar: a
não remoção de favelas assentadas em locais valiosos, os quais poderiam ser utilizados
para grandes empreendimentos; a lógica de mutirão descartava a necessidade de
empréstimos junto a agências internacionais; além de não haver a ocorrência de nenhum
projeto de construção de novas habitações, que fosse de grande porte.
Segundo Valla (1986: 89), inúmeras mudanças de âmbito político e
administrativo ocorrem no estado da Guanabara, dentre as quais, o fim do SERFHA15,
cujas atribuições passaram para o Serviço Social das Favelas e para o Departamento de
Recuperação de Favelas.
Em substituição ao SERFHA foi criada, posteriormente, da Secretaria de
Serviços Sociais do Estado da Guanabara, tendo à frente Sandra Cavalvanti. A partir de
então, a política habitacional no estado da Guanabara toma novos rumos,
caracterizando-se pelo incremento da política de remoções de favelas do Rio de Janeiro
(BRUM, 2012: 58). Criada como órgão do executivo do Estado, a referida secretaria
passaria a controlar o conjunto de instituições estatais e semiestatais relacionadas às
favelas, descaracterizando a relação Estado/população favelada, existente no período do
SERFHA, que se baseava na mobilização comunitária (VALLA, 1986: 89).
Com a assinatura do Acordo do Trigo, ocorrida dias após a demissão de José
Artur Rios, o Estado da Guanabara recebia recursos significativos. Vários
14
Segundo Mario Brum o Fundo do Trigo corresponde a um acordo feito entre o governo do Estado da
Guanabara e a USAID (agência de desenvolvimento externo norte-americana). O Brasil compraria trigo
dos Estados Unidos e o dinheiro recebido seria reaplicado no Brasil em projetos de desenvolvimento, por
meio de empréstimos.
15
SERFHA (Serviço Especial de Recuperação de Favelas e Habitações Anti-Higiênicas) foi criado em
fins de 1956, inicialmente sem recursos, atuou como apoio à Fundação Leão XIII e à Cruzada São
Sebastião. Posteriormente, o órgão ganha autonomia e, sob a direção de José Artur Rios, inicia-se uma
política de urbanização das favelas, já mencionada no texto.
53
16
O capital privado detinha 49% da COHAB, os quais eram pertencentes ao grupo político de Lacerda, na
pessoa do vice-governador Raphael de Almeida Magalhães (que a cumulava o cargo de secretário de
Planejamento) e de Flexa Ribeiro, genro de Lacerda e secretário de Educação. Fonte:LACERDA, Carlos.
Depoimento. Rio de Janeiro:Nova Fronteira, 1987 (apud LIMA, Nísia Trindade. “O movimento de
favelados do Rio de Janeiro: políticas de Estado e lutas sociais (1954-73)”. Dissertação de Mestrado em
Ciência Política – Rio de Janeiro:IUPERJ, 1989. Também citado por Mario Brum em Cidade Alta....
54
grandes extensões de terras, com o intuito de revendê-las sob a forma de pequenos lotes.
Isso lhe conferiu o papel de grande responsável pela construção de conjuntos
habitacionais no Rio de Janeiro. Esta ação se deu inicialmente em função dos recursos
provenientes do Fundo do Trigo, do artigo 66 da Constituição do estado da Guanabara,
além dos altos recursos advindos do Banco Nacional de Habitação, criado em 1964
(GONÇALVES, 2013: 216).
No ano de 1964, Carlos Lacerda instituiu a Comissão Executiva do
Desenvolvimento Urbano do Estado da Guanabara (Cedug), com a tarefa de prestar
auxílio ao escritório de arquitetura Doxiadis Associates, contratado pelo Estado para
elaborar um novo plano urbanístico para o Rio de Janeiro. Segundo Gonçalves (2013:
217), tal plano deu prioridade ao aspecto estético. Sendo assim, idealizou um espaço
urbano mais moderno e eficaz, se aproximando do modelo da América do Norte,
procurou mensurar as necessidades da cidade em suas diversas áreas e planejando as
intervenções no espaço público com vias no futuro. Segundo este plano, era necessário
urbanizar algumas favelas e só concordava com a remoção da favela desde que seus
moradores fossem para locais próximo ao seu local de trabalho e aos meios de
transportes urbanos. O plano propunha ainda, a oferta de moradias e de incentivos à
construção civil, além da difusão da propriedade privada nas camadas sociais mais
baixas, com a finalidade de incentivar “a responsabilidade dos indivíduos e a
estabilidade social”. O plano Doxiadis foi desenvolvido entre os anos de 1964 e 1965,
na fase final do governo Lacerda, mas não foi adotado por seu sucessor (e opositor
político) Negrão de Lima.
Contudo, se o nome de Carlos Lacerda nos remete ao período inicial das
remoções, o nome Sandra Cavalcanti, povoa a memória popular da fase em que a lógica
das remoções foi consagrada no Rio de Janeiro. À frente da Cohab, Sandra Cavalcanti
intensificou o processo de remoções de favelas para locais da periferia da cidade,
demonstrando o lado mais elitista e, por que não dizer, sombrio desta lógica.17
17
É importante ressaltarmos que o contexto de início da década de 1960 foi marcado também pela
organização de entidades ligadas aos interesses dos moradores de favelas, em especial, a Federação de
Associações das Favelas do Estado da Guanabara (FAFEG). Criada em julho de 1963, a referida
federação surgiu a partir, segundo Mario Brum (2012: 66), do contato travado entre os representantes de
favelas que fizeram parte de reuniões organizadas pela Coordenação de Serviços Sociais, o que se
configurou ainda como uma influência da gestão de Artur Rios, enquanto este estava à frente desta
instância governamental. Longe de ser uma entidade homogênea, pois foi composta por diversos grupos
políticos, dentre os quais podemos citar os comunistas, as lideranças vinculadas à Ação Católica Operária
e, ainda, aqueles ligados a Carlos Lacerda, a FAFEG reuniu inicialmente cerca de 20 associações.
Contudo, a entidade sofreu as consequências da Ditadura Militar comum aos movimentos sociais
organizados na época, sendo alvo de repressão e perseguição de muitos de seus líderes. Com a extinção
55
Desde o seu início, o discurso recorrente na COHAB era o de que a solução para
as favelas do Rio de Janeiro seria sua remoção. Em anos anteriores ao Golpe de 64,
durante o governo Lacerda, ocorreram diversas remoções realizadas em áreas destinadas
às obras do governo estadual como, por exemplo, as favelas removidas para a
construção do Mercado São Sebastião, na Avenida Brasil, ou ainda, a remoção da favela
do esqueleto, para a construção da Universidade do Estado da Guanabara (atual UERJ)
(BRUM, 2012: 61).
Contudo, num momento posterior as remoções passam a objetivar diretamente o
esvaziamento de áreas destinadas ao mercado imobiliário. A remoção da favela do
Pasmado, em 1964, é um exemplo desta fase, com os recursos adquiridos com a venda
de terrenos servindo para a continuidade do programa de remoção. Mario Brum (2012:
61) cita um depoimento de Sandra Cavalcanti bastante elucidativo sobre esta questão:
“Tivemos que remover algumas favelas. Removemos até algumas que existiam em
terrenos muito valorizados, onde fazer casinhas populares representava um tamanho
desperdício que seria um crime contra o pobre.”18
O depoimento é revelador dos planos do governo em relação à questão
habitacional, a qual era vista como um caso de dividir a cidade em duas áreas, uma para
as classes mais abastadas e outra para os pobres, ou seja, um caso de exclusão social.
Após a remoção da favela do Pasmado demarca então, a fase de remoções compulsórias
para conjuntos construídos com verbas da Aliança para o Progresso19. Um bom
exemplo desta política é a Vila Kennedy, que recebeu o nome como homenagem ao seu
financiador. O discurso veiculado na imprensa era de que a Vila Kennedy correspondia
ao início de uma revolução social no país, já que os antigos favelados para lá
removidos, receberiam um espaço com “escolas, serviço social e condições de higiene”.
Assim como o Pasmado, outras favelas foram removidas durante o ano de 1964.
Mario Brum (2012: 62) especifica que foram removidas totalmente as favelas:
“Pasmado, Getúlio Vargas; Maria Angu; João Cândido; Maneta; Vila do Sase”. As
favelas que foram parcialmente removidas foram: “Conjunto São José; Macedo
Sobrinho; Del Castilho; Marquês de São Vicente; Ladeira dos Funcionários”. Em
do Estado da Guanabara, a entidade passa a ser denominada Federação das Associações das Favelas do
Estado do Rio de Janeiro (FAFERJ).
18
Sandra Cavalcanti em entrevista realizada em setembro de 2000, a Carlo Eduardo Sarmento e Marly
Motta.
19
Consistiu em um programa de cooperação, financiado pelos EUA, cujo objetivo era o de incrementar o
desenvolvimento socioeconômico da América Latina, freando a influência da URSS na região. Ele foi
desenvolvido no início dos anos 60 e direcionou verbas não só para projetos no Brasil, mas também em
outros países da América Latina, com exceção de Cuba.
56
Com esta citação fica clara a intenção do governo com a criação do órgão. Ela
expressa exatamente a visão predominante na época em relação aos moradores das
favelas, como indivíduos alienados da sociedade em função de sua moradia, além de
serem indivíduos que, pelo fato de não pagarem impostos, não desfrutariam dos
benefícios do serviço público, ou ainda, que os moradores de favelas precisariam de
20
Jornal do Brasil, 29/09/1968.
21
A USAID (Agência para o Desenvolvimento Internacional dos Estados Unidos), segundo Valla (1986:
94) consistia em uma estratégia, de âmbito internacional, que reunia diversas instituições norte-
americanas, com o objetivo de desenvolver práticas de caráter assistencial, em países periféricos.
57
“As grandes cidades são habitadas principalmente por operários, visto que, na melhor
das hipóteses, há um burguês para dois, muitas vezes três e em alguns lugares para
quatro operários; estes operários nada possuem e vivem de seu salário que na maior
parte das vezes só permite a subsistência cotidiana. A sociedade, individualizada ao
máximo, não se preocupa com eles, atribuindo-lhes o encargo de prover às suas
necessidades e da família; contudo, não lhes fornece os meios de o fazerem de forma
eficaz e duradoura. Qualquer operário, mesmo o melhor, está constantemente submetido
às privações, quer dizer, a morrer de fome, e uma maioria sucumbe.”
formas alternativas – “marginais” – para sua aquisição. Esta lógica está por trás da
formação da favela.
Afastando-se da visão conservadora em relação à habitação, é possível
compreender a favela – assim como outras formas “marginais” de moradia – como uma
alternativa, uma solução para quem não tem onde morar. É neste contexto, portanto, que
se justifica a luta pela moradia. Seguindo esta visão, Ermínia Maricato (MARICATO,
1987: 15) considera que seu trabalho
“está ao lado de outros, cuja orientação teórica é a de ver a cidade, não apenas como
local, mas também como objeto da reprodução de setores do capital. A reprodução da
força de trabalho tem a ver com o movimento geral de acumulação, mas ao nível da
habitação, tem a ver também com a luta que é travada em torno do ambiente construído:
que é fonte de lucro para o capital imobiliário, e condição necessária à vida para a força
de trabalho (num primeiro instante).”
“os camponeses afluem, instalam-se ao redor das ‘barreiras’ das portas, na periferia
imediata. Antigos operários (nas profissões artesanais) e novos proletários penetram até
o próprio âmago da cidade; moram em pardieiros mas também em casas alugadas onde
pessoas abastadas ocupam os andares inferiores e operários os andares superiores.
Nessa ‘desordem’, os operários ameaçam os novos ricos, perigo que se torna evidente
nas jornadas de junho de 1848 e que a Comuna confirmará.”
A citação evidencia que, mesmo erigida sob a lógica do capital, a vida urbana
era fundamentada na contradição, portanto, no confronto das diferenças, fossem elas
ideológicas, econômicas ou políticas. A cidade era o espaço onde coexistiam diversos
modos e padrões de vida. Este quadro proporcionava ao ambiente citadino um modo de
vida social intenso, de caráter positivo.
Contudo, uma vez sentindo-se ameaçada pela democracia subjacente às
experiências revolucionárias, sobretudo da experiência de 1848, a classe burguesa
implementou mudanças no espaço urbano, as quais acabaram por lhe retirar a ideia de
que o “‘habitar’ era participar de uma vida social, de uma comunidade”. Lefebvre
60
A crítica feita pelo autor procura demonstrar que, apesar das tentativas de
submeter as camadas populares aos objetivos capitalistas, a consciência impulsiona os
indivíduos à luta pelos direitos básicos à vida. E nos leva a perceber que, pela lógica
capitalista a cidade não é vista como espaço para todos, principalmente os mais
empobrecidos.
Sem querer fazer transposições que poderiam ocasionar em análises anacrônicas,
consideramos atual e pertinente a crítica feita por Lefebvre, pois o direito à moradia
ainda não foi plenamente solucionado e encontramos uma resposta para o
questionamento feito no início do capítulo: por que mesmo após o abandono da política
de remoções os moradores das favelas da cidade do Rio de Janeiro permaneciam
temerosos com relação à postura do poder público? Por que o Estado, segundo a lógica
capitalista, está a serviço das elites econômicas da sociedade e, por isso, baseiam suas
ações de acordo com as necessidades desses grupos. Na visão de Ermínia Maricato
(2000), a existência das chamadas “moradias ilegais” resulta de um mercado
imobiliário excludente, que impede a inserção nele, das famílias com rendas mais
baixas.
22
O Documento nº23 da CNBB foi publicado em fevereiro de 1982, seguindo a lógica de documentos
anteriores, os quais foram fruto de assembleias, sediadas na cidade de Itaici, no estado de São Paulo, que
reuniam bispos do Brasil com o objetivo de refletirem sobre os problemas do país a partir da análise de
técnicos, de fundamentos teológicos, além da doutrina social da Igreja Católica. Ainda hoje estas
assembleias ocorrem, gerando novos documentos.
62
23
Pierre Bourdieu, em seu livro o Poder Simbólico, considera que o poder simbólico é um poder quase
mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força física (física ou econômica),
graças ao efeito de mobilização. Ele só se exerce se for reconhecido, se não for entendido como arbitrário.
63
24
A Encíclica Laborem Exercens , de autoria do papa João Paulo II, foi publicada em 1981, por ocasião
da celebração dos noventa anos da Rerum Novarum. Nesta carta o Papa discorre sobre a questão do
trabalho no mundo.
25
O pensamento de Santo Tomás de Aquino mencionado no documento da CNBB, foi extraído do
Dicionário Bíblico, organizado pelo Mons. A. Vicent, no verbete “propriedade”, publicado pelas Edições
Paulinas.
64
“[elas não devem] induzir à ilusão de que estas sejam suficientes. Para eliminar a
situação de injustiça estrutural, importa visar a novos modelos de organização da
cidade, o que exige, por sua vez, mudança do modelo sócio-político-econômico
vigente.”
O trecho serve para reforçar nossa visão acerca do trabalho da PF no período por
nós estudado, salientando a atuação da pastoral no sentido de fornecer às lideranças
locais conhecimento sobre a legislação vigente e como os mesmos poderiam, uma vez
conhecendo a lei, fossem capazes de questioná-la quando preciso, ou ainda utilizá-la a
seu favor, na medida em que isso fosse possível.
66
Por meio deste trecho é possível reconhecer a preocupação global com o ser
humano, pois transparece o reconhecimento que a moradia digna torna possível a vida
em seus diferentes aspectos e, ao mesmo tempo, a ausência dela impede não só o
desenvolvimento intelectual e moral do indivíduo, como o impossibilite de viver de
forma satisfatória sua cidadania, pelo fato de que a vida familiar pode ser vista como um
aprendizado para a vida na coletividade.
Tomando como referência o método ver, julgar e agir, o texto-base apresenta o
crescimento das cidades no Brasil tem atingido índices alarmantes e que os centros
urbanos não oferecem condições satisfatórias para a vida digna das pessoas que nelas
habitam. Demonstra que 77,5% da população reside nos centros urbanos e este
26
As Campanhas da Fraternidade tiveram início em 1962, no Rio Grande do Norte, durante a Quaresma.
Em 1963, por ocasião do Concílio Vaticano II, os bispos, reunidos em Roma, foi decidido então, que a
mesma deveria ser promovida em âmbito nacional, durante o período da Quaresma. Portanto, a CNBB
promove as Campanhas da Fraternidade desde 1964, sempre com um tema para reflexão durante o
período quaresmal e um lema, o qual serve de slogan para a campanha. A escolha do período se relaciona
com a ideia de reflexão e estímulo à solidariedade. A cada ano a CNBB elege um tema, o qual servirá de
motivação para a reflexão das comunidades e, partindo do método ver, julgar e agir procura sensibilizar
os cristãos para colaborarem com doações em dinheiro para ações de caridade, além de pistas de ação
pastoral em torno do tema abordado. Vale ressaltar que ao longo dos anos a CNBB foi abrindo espaço
para sugestões de temas advindos das comunidades do país.
67
- Garantir, nas discussões dos Planos Diretores Municipais a prioridade de áreas para
a implantação de programas de assentamentos humanos da população de baixa renda;
- Propor a criação de ‘comissões’ de terra, compostos do poder municipal e dos
movimentos populares, para viabilizar a discussão do uso real da terra, cadastramento
de imóveis urbanos com potencial de uso social;
- Acompanhar a execução das leis aprovadas pela Lei Orgânica Municipal que
estabelece as diretrizes políticas do Plano Diretor.”
Vale ressaltar que a CNBB é uma organização autônoma – não está presa ao
Vaticano – por isso possui liberdade em relação às normas vindas de Roma, ao contrário
da Pastoral de Favelas que, sendo parte da estrutura da arquidiocese do Rio de Janeiro,
está diretamente ligada ao centro da Igreja Católica. Esta diferença se constitui em um
ponto fulcral em nossa análise pois, uma vez reconhecendo isso, é possível melhor
compreender o papel de cada uma na Igreja e na sociedade. Em meio ao um contexto de
ausência de políticas públicas voltadas para a ação sobre os problemas que atingiam a
população mais pobre do Brasil, a CNBB é criada como uma instituição autônoma,
disposta a levantar os problemas e apontar pistas para a solução dos mesmos, sem os
possíveis “entraves” vindos do Vaticano. O papel da CNBB é o de apontar pistas de
ação não só para a sociedade como um todo e para o Estado, mas para a própria Igreja
Católica.
As Campanhas da Fraternidade são o maior exemplo disso. Ao propor um tema
para a reflexão, a CNBB pretende estabelecer uma unidade de ação entre os cristãos,
mesmo reconhecendo que cada comunidade irá se apropriar – ou não – daquela reflexão
de uma forma, contudo, partindo do mesmo texto-base. As CF’s são uma forma de
levar os cristãos a se mobilizarem em torno de um problema específico, daí a criação de
pastorais como a Pastoral do Menor, da Favela, do Trabalhador e do Negro. As
pastorais sociais são um apelo da realidade social, uma vez concretizada sua razão, a
pastoral social sai de cena, ou muda sua forma de atuação.
Esta é portanto, uma chave de reflexão para o entendimento da atuação da
Pastoral de Favelas na cidade do Rio de Janeiro ao longo de 35 anos. Seu surgimento se
69
convocada pelo então papa João XXIII. Esta assembleia destinava-se a realizar reformas
internas na estrutura da Igreja Católica, além de proporcionar condições para o retorno à
unidade dos cristãos (BANDEIRA, 2000: 207).
Segundo o teólogo João Batista Libanio, dentre os principais objetivos do
Concílio, pode-se destacar dois aspectos: o ecumenismo e o pastoral. No que diz
respeito à questão do ecumenismo, buscou-se lançar as bases do diálogo com todas as
denominações religiosas, cristãs ou não. No aspecto pastoral – que é o que mais nos
interessa analisar –, foi feita a tentativa de estabelecer um diálogo com a cultura
moderna, com as diversas ideologias, inclusive o humanismo ateu. Desta forma, o
destinatário da mensagem conciliar não era apenas ao cristão católico, pelo contrário,
buscou-se travar um diálogo dentro da Igreja, entre seus diferentes membros, entre
Igreja Católica e outras denominações religiosas mas, sobretudo, um diálogo com a
realidade social e econômica do mundo (LIBANIO, 1992).
Este Concílio, foi responsável por lançar no terreno da América Latina as
sementes de uma nova visão de igreja, aberta para os problemas do mundo
(BANDEIRA, 2000). Em um trecho da Constituição Gaudium et Spes, a qual compõe o
texto final do Concílio Vaticano II e que trata do papel da Igreja no mundo atual, esta
ideia fica clara quando o documento afirma:
27
GAUDIUM ET SPES – Constituição Pastoral do Concílio Vaticano II sobre a Igreja no Mundo de Hoje
– 7/12/1967, parágrafo 1, p. 200.
72
28
Estamos falando da Fundação Leão XII e da Cruzada São Sebastião, realizadas pela Arquidiocese do
Rio de Janeiro, anteriores à criação da Pastoral de Favelas.
29
Tomamos como referência para analisar o advento da Teologia da Libertação na América Latina, o
livro de Clifford Geertz, “Observando o Islã”, no qual o autor se utiliza do método comparativo para
analisar as especificidades do processo de islamização de dois países: o Marrocos e a Indonésia. Em sua
análise verifica que essas diferenças são resultantes de processos sociais distintos, além disso, reconhece
que nesse processo de consolidação do islamismo os símbolos clássicos não desaparecem, mas se fundem
e se unificam aos novos princípios, de forma variada, originando uma diversificação das formas locais de
fé, o que possibilita uma realidade religiosa que acomoda tanto o novo quanto o tradicional.
73
30
Documento de Puebla, p. 1254.
74
“Os moradores da Favela do Vidigal conseguiram impedir essa remoção apoiados pela
Igreja Católica – especialmente a Pastoral de Favelas – por juristas renomados – o
escritório de advocacia de Sobral Pinto, no qual atuava o jovem advogado Bento Rubião
– por alguns parlamentares e realizando frequentes denúncias à imprensa. O “caso” do
Vidigal se tornou paradigmático, dentre outros motivos, por ter sido um dos mais
expressivos êxitos dos movimentos de favelas contra as políticas de remoção e por ter
sido um caso talvez o primeiro da história da cidade do Rio de Janeiro, em que esse
resultado foi obtido pela via judicial.”31
31
MAGALHÃES, Alex Ferreira. O Direito das Favelas. RJ: Letra Capital – Singular. 2013. P. 60.
32
Segundo Mario Brum (2006) a Pastoral de Favelas se insere no contexto de reorganização do
movimento comunitário em um momento de abertura política do país.
33
Jornal O Globo Leopoldina, 02/12/1983.
75
O apoio jurídico prestado aos moradores também é uma marca do trabalho desta
pastoral, como mostra outro trecho da matéria anteriormente citada:
“O projeto que fiz sobre os intelectuais é muito amplo [...]. Este estudo também
leva a certas determinações do conceito de Estado, que, habitualmente é
entendido como sociedade política (ou ditadura, ou aparelho coercitivo, para
moldar a massa popular segundo o tipo de produção e a economia de um dado
momento), e não como um equilíbrio da sociedade política com a sociedade civil
(ou hegemonia de um grupo social sobre toda a sociedade nacional, exercida
através das organizações ditas privadas, como a igreja, os sindicatos, as escolas,
etc.) e é especialmente na sociedade civil que operam os intelectuais”. (grifo
nosso)34
34
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere: Maquiavel – notas sobre o Estado e a política. V.2. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 458.
76
35
Jornal Favelão: a voz dos favelados. Novembro/1984 – Ano II, nº17.
36
Documento 23, CNBB, Solo Urbano e Ação Pastoral. Edições Paulinas. p. 42
77
Como mostra o trecho acima, a ação dos agentes da PF ocorria em duas frentes,
da mesma forma que se dedicavam à formação e organização políticas das
comunidades, viabilizavam também, encontros com representantes do poder público,
tais como, secretários municipais e parlamentares dos níveis da administração pública.
Além dos encontros, outras estratégias foram usadas pela PF. Dentre elas é
importante destacar a publicação do jornal “Favelão: a voz dos favelados”. Criado em
novembro de 1981, com circulação mensal, o jornal tinha, na época de sua criação o
objetivo de, como o nome sugere, ser o porta-voz das comunidades faveladas do Rio de
Janeiro. Seu conteúdo era voltado para a apresentação dos problemas sofridos pelas
comunidades, assim como suas conquistas.
Era constante também, a preocupação em despertar a consciência crítica dos
leitores, para questões mais amplas. Como exemplo de tais temas, podemos citar:
eleições, cultura afro, política nacional e movimento negro. Sempre através de textos,
charges e com uma linguagem que procurava estar próxima a linguagem dos leitores.
O periódico era produzido por uma equipe formada por moradores de favelas, os
quais participavam da PF e contavam com a assessoria profissional. Como explica
Marco Morel, em pesquisa sobre jornais comunitários no Rio de Janeiro, durante a
década de 1980, o Favelão era diferente dos jornais comunitários em circulação na
época, pois era feito em papel jornal, formato tabloide, impressão em off-set,
diagramação profissional, fotografias,etc (MOREL, 1986). A viabilização deste jornal,
somente foi possível por meio de um convênio entre a Arquidiocese do Rio de Janeiro e
a Fundação Ford, órgão que liberava a verba, que era repassada à equipe pela própria
diocese.
Com uma postura combativa, o jornal buscou dar visibilidade ao trabalho da
Pastoral de Favelas, mas apresentava com frequência temas de caráter polêmico, como
foi o caso da denúncia de reações preconceituosas por parte de moradores da zona sul
da cidade, tratado no editorial do jornal. O texto a seguir corresponde ao editorial do
exemplar nº 17, do mês de novembro de 1984, que apresenta uma resposta a uma
campanha liderada pelo Jornal do Brasil, a qual teria como conteúdo principal a
exclusão dos pobres do espaço das praias da zona sul da cidade:
37
Jornal Favelão: a voz dos favelados. Novembro, 1984, nº 17 ano II.
38
Explicar as teorias sobre o surgimento da favela no Rio.
79
A experiência das CEB’s teve seu início em torno dos anos 1960, contudo, não
se pode determinar onde ocorreu seu surgimento de forma precisa. Alguns teóricos
afirmam que ela surgiu em Volta Redonda, interior do Rio de Janeiro, enquanto que
outros consideram que a sua eclosão ocorreu na Diocese de Natal, em Nísia Floresta
(BETTO, 1981).
Mesmo não tendo uma precisão com relação ao local onde surgiu, esse modelo
de igreja caracterizou-se pela articulação fé e política e foram definidas pelos bispos do
Brasil, como verdadeiros “centros de evangelização”, como “motores de libertação e
desenvolvimento” (CNBB, 1982: 5). Esta definição se pauta no contexto que delineou
seu surgimento, o período da realização do Concílio Vaticano II, segundo o qual a Igreja
Católica deveria abri-se para a realidade social dos cristãos, em especial dos mais
empobrecidos, na tentativa de promover a vida humana, como condição para a
instauração do Reino de Deus.
É com este entendimento que consideramos que a Pastoral de Favelas no Rio de
Janeiro teve como vetor de seu trabalho os Círculos Bíblicos, definidos como “sementes
de Comunidades Eclesiais de Base”, ou ainda como “semente de igreja”, igreja no meio
de povo”, todos estes termos servem para designar um tipo de grupo de pessoas que
possuem algumas características e que se definem por
“Comunidades, porque reúnem pessoas que têm a mesma fé, pertencem à mesma
região. Motivadas pela fé, (...) vivem uma comum-união em torno de seus problemas de
sobrevivência, de moradia, de lutas por melhores condições de vida e de anseios e
39
GRAMSCI, Antonio. Introdução à Filosofia da Práxis. Tradução Serafim Ferreira, 1ª edição. Lisboa:
Ed. Antidoto, 1978, p. 11.
80
“João estava na prisão, quando ouviu falar das obras do Messias, enviou a ele alguns
discípulos, para lhe perguntarem: ‘És tu aquele que há de vir, ou devemos esperar
outro? Jesus respondeu: ‘Voltem e contem a João o que vocês estão ouvindo e vendo: os
cegos recuperam a visão, os paralíticos andam, os leprosos são purificados, os surdos
ouvem, os mortos ressuscitam e aos pobres é anunciada a Boa Notícia. E feliz é aquele
que não se escandaliza por causa de mim!”41 (grifos nossos)
40
BETTO, Frei. Op. cit. p. 17.
41
Tradução para o português a partir da Bíblia de Jerusalém.
81
42
CNBB. Comunidades: Igreja na base. Estudos da CNBB. São Paulo: Edições Paulinas. 1981. p. 20.
43
A formulação dos Círculos Bíblicos é atribuída ao Frei Carlos Mesters, carmelita holandês, sua obra se
insere na corrente da Teologia da Libertação. Desenvolve até os dias atuais diversos materiais que servem
para a formação de lideranças, assim como, o incentivo à leitura popular da Bíblia.
82
nas parábolas do Evangelho – onde os fatos da vida são comparados aos da Bíblia.”
(BETTO, 1981: 33). Tal comparação possibilita que os membros do grupo reconheçam
na sua história, a continuidade da história do povo de Deus, ou seja, reconhece-se como
um construtor da “História da Salvação”. Deste modo, as comunidades refletem a vida à
luz da fé, buscando ações de cunho transformador da realidade e, ao mesmo tempo,
deslocando a promessa de salvação do plano celeste para o terreno.
Os fatos da vida são situações elaboradas a partir de fatos cotidianos, podendo
ser uma situação onde do povo experimenta a falta de fé, de oração, mas pode também,
ser algo relacionado a um problema vivido pela comunidade como, por exemplo,
racismo, ou ainda, ameaça de despejo.
Os Círculos Bíblicos foram iniciados no Rio de Janeiro a partir do Concílio
Vaticano II. No ano de 1967, o arcebispo Dom Jaime de Barros Câmara, dividiu a
Arquidiocese do Rio em seis Vicariatos. O objetivo da divisão era atender melhor às
diferentes realidades da cidade, já bastante populosa. No Vicariato Oeste – que
compreendia a perifeira da cidade, do bairro de Anchieta até Sepetiba – foram fundados
os primeiros grupos de Círculos Bíblicos, com o incentivo e apoio pastoral de um grupo
de padres e religiosas daquela área.
O trabalho evangelizador tornou possível a ação política, a historiadora Gizele
Almeida, em seu estudo sobre a Vila Kennedy – sub-bairro de Bangu, formado a partir
da remoção de famílias de favelas do Rio de Janeiro, durante o governo Carlos Lacerda
– ressalta a importância da Igreja Católica e, em especial dos grupos de Círculos
Bíblicos, na organização de uma pauta de reivindicações para a população local, durante
as décadas de 70 e 80 (ALMEIDA, 2005).
Desta feita, concluímos que os Círculos Bíblicos, foram elementos catalisadores
de um cristianismo dinâmico, voltado para o fomento de diversas pastorais sociais,
especialmente da Pastoral de Favelas, as quais tornaram possível a mobilização social
em diversas comunidades da Arquidiocese do Rio de Janeiro.
Ao longo de nossa análise, foi possível perceber o teor simbólico presente não só
nos textos e documentos, mas também nos ritos, nos cânticos e em outros materiais
produzidos e utilizados pelas nas Comunidades Eclesiais de Base e Círculos Bíblicos,
além de encontros da PF. Nossa percepção foi a de que todo este conjunto de materiais
83
“esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não
querem saber que lhes estão sujeitos ou mesmo que o exercem. (...) é um poder de
construção da realidade que tende a estabelecer uma ordem gnoseológica: o sentido
imediato do mundo (e, em particular, do mundo social)(...)”44
46
As letras que foram analisadas neste texto fazem parte de uma seleção maior de cânticos religiosos com
teor político, amplamente utilizados nos encontros pastorais. Inúmeras questões sociais, tais como o
racismo, a questão de gênero, ou ainda, as relativas ao mundo do trabalho, fazem parte das letras por nós
analisadas. Contudo, os restringimos a apresentar alguns exemplares da seleção, os quais foram
escolhidos em função do conteúdo estar muito próximo das ideias apontadas no capítulo.
85
A letra acima citada demonstra uma visão crítica da realidade social em vigor. O
conteúdo trata de uma sociedade dividida, baseada na opressão de um grupo, chamado
“os poucos de cima”, sobre o grupo dos “muitos de baixo”. No nosso entendimento, a
letra em questão, faz uma alusão clara à sociedade capitalista – na música, chamada de
“terra dos homens” – na qual uma minoria, detentora dos aparelhos privados de
hegemonia (GRAMSCI, 2001), exerce um poder opressor sobre o povo pobre.
Por outro lado, a letra aponta para uma perspectiva revolucionária, na medida
em que apresenta como solução a derrubada da estrutura social opressora e a construção
de uma sociedade igualitária. Para isso, é posta como necessária a união dos “muitos de
baixo”, ou seja, a solução está na organização do povo, levando a acreditar que a
mudança da realidade somente se dará a partir dos pobres, uma vez que estejam juntos e
organizados. Somente então, será possível vislumbrar uma sociedade nova: pautada na
fraternidade e na união. Tais valores fundamentais para o povo experimentar qualquer
conquista social, seja ela grandiosa ou algo imediato, como por exemplo, esgoto para os
moradores. Com isso, estas mudanças poderiam ser vistas como indícios do Reino de
Deus.
Vale ressaltar, que a letra não menciona a destruição de pessoas, de vidas
humanas, mas de estruturas sociais, o que sugere uma revolução sem guerra, uma luta
sem inimigos, possivelmente um caminho de conversão daqueles “de cima”, que
oprimem seus irmãos “de baixo”.
Em seu livro “Igreja, Carisma e Poder”, Leonardo Boff (BOFF, 1994), ao
discorrer a respeito de um modelo de Igreja que emerge do povo, afirma que no início
dos anos 60 se desenvolveu um processo de tomada de consciência por parte dos países
latino-americanos em relação a sua condição de subdesenvolvidos e em relação
também, aos mecanismos que sustentavam este subdesenvolvimento, como estruturas
criadas pelos países de centro da economia-mundo (Atlântico Norte) (WALLERSTEIN,
1990). O autor considera que esse subdesenvolvimento surge a partir de uma relação de
dependência para com os países ricos e, por assim dizer, uma relação de submissão
econômica, política e cultural. A solução para o fim deste quadro, segundo o filósofo
47
Cântico de domínio popular, extraído da Cartilha Cantando Nossa Libertação, elaborada pela Ação
Católica Operária. RJ, 1986, p. 24.
86
“Tudo, geralmente, começa com círculos bíblicos. Depois se passa à criação da pequena
comunidade eclesial de base. Sua esfera, inicialmente, é aprofundar a fé internamente, preparar a
liturgia, os sacramentos e a vida de piedade. Num estágio um pouco mais avançado se passa a
tarefas de mútua ajuda nos problemas da vida dos membros. Na medida em que estes se
organizam e aprofundam a reflexão se dão conta de que seus problemas possuem um caráter
estrutural. (...) Aí emerge a questão política, e o tema da libertação ganha conteúdos concretos e
históricos. Não se trata apenas de uma libertação do pecado (do qual sempre nos devemos
libertar), mas de uma libertação que também possui dimensões históricas (econômicas, políticas e
culturais).(...)”48
A longa citação tem o objetivo de elucidar o cerne da libertação pela qual o povo
canta e luta em seus encontros pastorais. Não se prende à quebra do sistema político
vigente, mas a libertação de uma ideologia e de uma organização socioeconômica
contrária à vontade de Deus. Trata-se também de uma luta nascida no meio do povo,
48
Boff. Op. cit. p.28.
87
49
A classe dominante elabora instrumentos de dominação, as chamadas produções simbólicas, as quais
por sua vez, se dão por meio de uma violência simbólica sobre os dominados, com o objetivo de atender
aos interesses da classe dominante. Deste modo, reconhece-se que os sistemas simbólicos servem para a
reprodução da cultura dominante, mas se apresentam como interesses universais. Isto torna possível a
integração real da classe dominante e a integração fictícia da sociedade em seu conjunto e torno do
projeto da classe dominante. Para tanto, é necessária a desmobilização da classe dominada, através da
ordem estabelecida.
88
sociais, no contexto da ditadura militar brasileira durante os anos 60 e início dos 70,
como explicita a letra da música “Pai Nosso dos Mártires”, de autoria de José Vicente:
50
Segundo Márcia Regina da Costa, era um grupo composto por membros da polícia civil de São Paulo
que iniciou sua atividade em 1968, com o argumento de perseguir e matar os supostos “marginais” que
causavam perigo à sociedade, inspirados pelo Esquadrão da Morte do Rio de Janeiro.Era o nome dado a
grupos que atuaram nos anos 50 e 60, como grupos de extermínio, formados por membros do poder
legislativo, do executivo e do judiciário, bem como por membros da sociedade civil e, a partir de 1964
com a participação de integrantes do regime militar estabelecido no país. Esses grupos atuaram na ação de
fazer uma “limpeza” urbana, exterminando marginais, mendigos, assim como, membros de grupos
políticos de esquerda, opositores do regime militar estabelecido no país.
51
CD O Povo Canta a Sua Luta. José Vicente.
52
Francisco de Assis, fundador da Ordem dos Frades Menores, Ordem de Santa Clara e da Ordem
Franciscana Secular, no século XIII. Foi canonizado pelo Papa Gregório IX, em 1228.
89
54
O livro “Uma década perdida: dez anos de PT no poder”, escrito por Marco Antonio Villa, analisa o
período em que o Partido dos Trabalhadores governou o país e nesta análise afirma que as “conquistas
realizadas” neste período não alcançaram aquilo que as propagandas do governo divulgaram nos meios de
comunicação.
91
O autor considera enxerga o PT, a CUT e o MST como sendo os três agentes
fundamentais para o início de um novo processo de relação travada entre o Estado e a
sociedade, que possibilita considerar que o período em questão não foi, de todo, uma
década perdida.
Foi neste contexto que a Pastoral de Favelas adquiriu força na zona oeste da
arquidiocese do Rio de Janeiro. Existindo desde os anos 70, fomentada, sobretudo, por
sacerdotes e religiosas que tiveram um papel fundamental na formação de lideranças
leigas, para a atuação no serviço pastoral. Ela foi responsável pela organização das
comunidades através da fundação de Círculos Bíblicos e, posteriormente, de associações
de moradores.
Tratando-se de áreas periféricas da cidade, formadas geralmente por
loteamentos, conjuntos habitacionais e por favelas – vale destacar que as lideranças
mencionadas atuaram na ocupação de áreas desabitadas para a formação de novas
comunidades, como exemplos destas, podemos citar as comunidades do Parque
Esperança e do Parque Ricardense, situadas em Anchieta e em Ricardo de Albuquerque,
respectivamente – As quais apresentavam inúmeras carências em sua infraestrutura que,
obviamente, eram agravadas em função da ausência do poder público. Estamos falando
92
desta instituição (membros do clero, religiosas, leigos, teólogos, etc) empenhados não
só em fomentar uma reflexão na sociedade e dentro da Igreja, mas também em
encaminhar pistas de ação que pudessem se traduzir em melhorias para a população
mais pobre.
Como terceiro ponto, concluímos que o caráter simbólico dos cânticos – da
mesma forma que a leitura encarnada da Bíblia – foi tão importante para a mobilização
popular quanto o método ver-julgar-agir e outros materiais utilizados no trabalho
pastoral, pois permitiu, a elaboração de uma identidade que fortaleceu os laços afetivos
entre os membros das comunidades, bem como, construiu, nos mesmos, um ideal de
luta.
Ao compararmos dois projetos antagônicos – o do Estado (sobretudo durante o
período do regime militar) e o da Igreja dos pobres, assumido pela PF e pelas CEB’s –
buscamos demonstrar que, sendo incompatíveis, a PF teve, como dissemos
anteriormente, um papel contra-hegemônico na sociedade brasileira, durante o período
por nós analisado. Isso se materializou no trabalho desenvolvido pelas lideranças
pastorais onde havia núcleos da PF e Círculos Bíblicos (que para nós correspondem a
uma versão urbana de CEB) constituídos e atuantes.
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