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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO - UFRJ

INSTITUTO DE HISTÓRIA – IH
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA COMPARADA – PPGHC

Glaucia Ferreira Lima de Brito

A contribuição da Pastoral de Favelas


na Questão Habitacional
na Cidade do Rio de Janeiro
(1977 - 1993)

Rio de Janeiro

2015
Glaucia Ferreira Lima de Brito

A contribuição da Pastoral de Favelas


na Questão Habitacional
na cidade do Rio de Janeiro
(1977 - 1993)

Dissertação de Mestrado apresentada ao


Programa de Pós-Graduação em História
Comparada, Instituto de História da
Universidade Federal do Rio de Janeiro,
como parte dos requesitos necessários à
obtenção do título de Mestre em História
Comparada.

Orientador: Profº. Doutor André Leonardo Chevitarese.

Rio de Janeiro
2015
Glaucia Ferreira Lima de Brito

A contribuição da Pastoral de Favelas


na Questão Habitacional
na cidade do Rio de Janeiro
(1977 - 1993)

Dissertação de Mestrado apresentada


ao Programa de Pós-Graduação em
História Comparada, Instituto de
História da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, como parte dos
requesitos necessários à obtenção do
título de Mestre em História
Comparada.

Aprovada por:

________________________________________________
Profº. Doutor André Leonardo Chevitarese - PPGHC

________________________________________________
Profº. Doutor José D’Assunção Barros - PPGHC

________________________________________________
Profº. Doutor Mario Sérgio Ignácio Brum - UERJ

________________________________________________
Profª. Doutora Marta Mega de Andrade - PPGHIS

________________________________________________
Profª. Doutora Maria Regina Candido - NEA/UERJ

Rio de Janeiro
2015
Brito, Glaucia Ferreira Lima.

A contribuição da Pastoral de Favelas na Questão Habitacional na


cidade do Rio de Janeiro (1977 – 1993). Glaucia Ferreira Lima de Brito
– 2015. 97 F.

Dissertação (Mestrado em História Comparada) –Universidade Federal


do Rio de Janeiro, Instituto de História, Rio de Janeiro, 2015.

Orientador: André Leonardo Chevitarese

1. História 2. Habitação 3. Pastoral 4. Favelas.


I. Chevitarese, André Leonardo (Orient.) II. Universidade Federal do
Rio de Janeiro – Programa de Pós-Graduação em História Comparada
III – A contribuição da Pastoral de Favelas na Questão Habitacional na
cidade do Rio de Janeiro (1977 – 1993).
Agradecimentos

Para que este trabalho fosse realizado tive o apoio de muitos e é a estes que dirijo meus
agradecimentos.

Inicialmente, agradeço aos meus pais, Geraldo Lopes e Dinah Ferreira, pelo dom da
vida e pelo incentivo aos meus estudos. Sei que nem sempre foi fácil me manter na escola,
porém, aqui estou e espero poder retribuir a vocês todo o esforço em me educar e proporcionar
meu sustento. Por isso, lhes sou imensamente grata. À Juliana, minha irmã, pelo carinho e
incentivo.

Sou muito grata aos membros do PPGHC, em especial aos componentes da banca de
seleção, a professora Drª Leila Rodrigues da Silva, nossa atual coordenadora, o professor Dr.
Wagner Pinheiro, assim como o professor Dr. Silvio de Carvalho Almeida Filho e o professor
Dr. Vantuil Pereira, por acreditarem em minha ideia e permitirem que a mesma se concretizasse.

Agradeço de forma muito especial ao Professor Doutor André Leonardo Chevitarese,


meu orientador. Sou grata pela oportunidade, pelos apontamentos, pelo incentivo, pelo
conhecimento transmitido de uma forma sempre tão amistosa, paciente e acolhedora. Professor,
sem a sua ajuda, nada disso seria possível!

Um outro “André”, o Barroso, companheiro de caminhada pastoral e de estudo, sou


grata a ele por ter possibilitado meu encontro com o professor Chevitarese.

À Ivanete, por ter me ajudado a acreditar que o possível estava ao meu alcance.

Aos amigos Isaías e Leonor, Wagner e Miquilina, Raquel e Maria Luíza agradeço a
amizade, o apoio, os anos de convivência e a constante disponibilidade em me ajudar sem
medida. Vocês são mais que amigos, são irmãos que a vida me presenteou. Agradeço também a
ajuda e o incentivo da minha afilhada Amanda.

Ao Cônego Geraldo Marques, meu formador pastoral e amigo, pelo incentivo e


empréstimo de livros. Aos padres Lúcio Zorzi e Niraldo, ao diácono Carlos Henrique, pelo
apoio e empréstimo de material de pesquisa e pela chance de ouvir suas experiências pastorais.
Aos padres João Cribin e Wilson, os quais já não estão entre nós, porém, se fizeram presentes
neste trabalho por meio de sua produção textual e experiência de vida. A este grupo acrescento
Dona Josefa e Antônio pelas horas de depoimentos tão ricos de vivência pastoral, a mim
fornecidos.
À equipe diocesana da Pastoral de Favelas, em especial à Jozefa, ao Luis Severino, Sr.
José Melquíades e Maria da Paz, com os quais convivi durante esses meses. Agradeço ao
Monsenhor Luiz Antônio, por ter aberto as portas da Pastoral e acolhido meu trabalho de forma
tão generosa. Agradeço ao grupo por ter me possibilitado analisar os documentos da pastoral,
assim como o empréstimo de livros de sua biblioteca. Agradeço também ao Vigário episcopal
do Vicariato Oeste, Monsenhor Luis Artur, e sua secretária, Elaine, por terem permitido a
consulta aos roteiros de Círculos Bíblicos.

Agradeço aos companheiros de vida acadêmica, os quais foram indispensáveis para que
eu conseguisse chegar até aqui. Estou falando do Fábio e da Nathália, pela ajuda nas questões
técnicas, da Elaine, do Mazola e do Jardel, pelos diálogos sempre tão proveitosos. Agradeço de
modo especial, aos colegas de PPGHC: José Henrique e Nicolas. O companheirismo de vocês
me ajudou a chegar ao fim desta jornada.

Sou grata aos companheiros do laboratório de pesquisa, LHER, pelo espaço de


aprendizado.

Agradeço aos familiares, de forma especial minha cunhada, Janice, meus sobrinhos, Gil
e Verônica, pelas traduções, pedidas sempre de última hora e a meus sogros, Luis e Elenice,
pelo apoio e compreensão.

Por último, dirijo um agradecimento especial aos meus filhos, Julia, Alice e João
Ricardo. Agradeço a paciência diante da minha ausência e o amor incondicional que vocês
dedicaram a mim. Ao Ricardo, meu esposo, companheiro e agente da Pastoral de Favelas, cuja
atuação me serviu fonte de inspiração para escrever este trabalho. Agradeço o apoio, a amizade,
o companheirismo, a paciência e o incentivo, sinais do amor que nos une.
Resumo

A dissertação aborda a forma como se deu a atuação de dois grupos pertencentes à Igreja
Católica nas favelas e áreas periféricas da cidade do Rio de Janeiro entre os anos de 1977 e
1993: a Pastoral de Favelas e as Comunidades Eclesiais de Base, tendo os Círculos Bíblicos
seus núcleos formadores. Numa conjuntura caracterizada pela abertura política, permitindo a
formação de movimentos sociais, esferas da Igreja Católica passaram a desenvolver um serviço
pastoral fundamentado na Teologia da Libertação e na “opção preferencial pelos pobres”.
Atuando, portanto, de forma contra hegemônica ao assumir como sua a luta do povo por direitos
sociais, em especial pelo direito à moradia digna. Nosso estudo procura demonstrar que as
lideranças católicas realizaram um serviço que extrapolou a esfera pastoral, configurando-se
como uma atuação de caráter político. Através de cânticos, folhetos e orações, com conteúdo
altamente político, esses agentes politizaram a prática pastoral e sacralizaram a luta do povo,
permitindo gerar no povo uma visão crítica da realidade social e a capacidade de organizar-se
para lutar por seus direitos.

Palavras-chave: Favela, Comunidades Eclesiais de Base, Teologia da Libertação.


Abstract

This dissertation adresses the way that two different currents of the Catholic Church served on
the slums and peripheries of the city of Rio de Janeiro between 1977 and 1993: the Favelas
Pastoral and the Base Ecclesial Communities, with the Círculos Bíblicos as their original nuclei.
On a political opening scenario that allowed the formation of social movements, some instances
of the Catholic Church developed a pastoral service based on the Liberation Theology and the
“preferential option for thepoor”. Therefore, the movement performed in a anti hegemonically
way defending the people’s fight for social rights, specially for habitation. This study
demonstrates that the catholic leadership worked in a scale beyond the pastoral sphere, which
can be analysed as a political interference. Through chants, leaflets and preyers, which brought
a high political vision, these agents politicized the pastoral practise and sacralized the people’s
claim, promoting the formation of a common critical vision about the social reality and giving
the people the capacity to organize themselves in order to fight for their rights.

Keywords: Favela, Base Ecclesial Communities, Liberation Theology.


Sumário

Introdução .............................................................................................................................8

Capítulo 1: Uma nova Igreja para um novo tempo .............................................................10

Capítulo 2: Poder Público e CNBB: dois projetos habitacionais antagônicos .................... 45

Capítulo 3: A Pastoral de Favelas e as Comunidades Eclesiais de Base. Ferramentas para

a luta popular .......................................................................................................................70

Conclusão ........................................................................................................................... 93

Bibliografia ......................................................................................................................... 95
Introdução

Nosso objeto de estudo consiste em analisar a forma como ocorreu a atuação da


Pastoral de Favelas (PF), articulada à atuação das Comunidades Eclesiais de Base
(CEB’s) – na forma dos grupos de Círculos Bíblicos – na luta em prol da moradia, junto
a diversas comunidades carentes na arquidiocese do Rio de Janeiro. Nosso recorte
temporal compreende o ano de 1977, quando foi fundada a Pastoral de Favelas e 1993,
ano em que a Campanha da Fraternidade, lançada pela CNBB, teve como tema
Fraternidade e Solo Urbano.
Faz-se importante ressaltar, logo de início, que nosso trabalho se pauta no
contexto da História Política Renovada – formulada por Rosanvallon – a qual
reconhece a dimensão política como pertencente a um contexto mais abrangente,
contudo, presente nas práticas cotidianas da sociedade. Reconhecemos que a Igreja
Católica se constitui em um ator social capaz de influenciar uma determinada realidade
social e política e, ao mesmo tempo, sofrer influências da mesma.
Pretendemos demonstrar que durante este período, a PF e as CEB’s atuaram
como duas forças contra hegemônicas em relação ao poder público, uma vez que se
contrapuseram à política de descaso do Estado em relação aos moradores de favelas, de
loteamentos e de ocupações de terras na cidade. Desenvolvendo nas comunidades em
que estavam inseridas, uma consciência crítica nos membros, colaborando para que os
mesmos formulassem uma pauta de lutas. Para encaminhar nossa análise sobre estes
grupos, nos baseamos nos conceito de Estado ampliado, formulado por Antonio
Gramsci, pois este considera que os grupos que formam a sociedade civil (escolas,
igrejas,...) integram um todo maior, chamado Estado ampliado.
No primeiro capítulo vamos discutir os antecedentes históricos que
influenciaram no surgimento da Teologia da Libertação. Buscamos demonstrar que essa
teologia se deu em um contexto social de mudanças ocorridas no mundo, evidenciado
pela formulação de novos conceitos, inclusive no mundo acadêmico. Em seguida,
elencamos os grupos que, ligados à Igreja Católica, se abriram às novas perspectivas em
relação à sociedade e, em especial, aos pobres.
9

No segundo capítulo, analisamos a política habitacional do Estado brasileiro


durante a Ditadura Militar, com o objetivo de demonstrar que todo o movimento
comunitário, ao qual a PF e as CEB’s se inseriram, se constituiu como resposta à
postura autoritária e, por vezes, ausente do poder público. Procuramos ainda,
estabelecer uma comparação entre o referencial do Estado e o referencial dos grupos
religiosos por nós estudados, para demonstrar que os mesmos são incompatíveis entre
si, reforçando a dicotomia entre estes atores sociais.
Finalmente, no terceiro capítulo, apresentamos nossa percepção em relação à
maneira pela qual a PF e as CEB’s atuaram, dentro de nosso recorte temporal, nas
diversas comunidades em que se envolveram. Procuramos evidenciar que seus agentes
foram o que Antonio Gramsci classifica como intelectuais orgânicos, ou seja, pessoas
que uma vez conhecedoras de uma determinada realidade, atuam nesta no sentido de
elaborar uma visão de mundo contrária à vigente, uma visão crítica, capaz de subverter,
pelo menos em parte, a ordem estabelecida. Além disso, lançamos mão do conceito de
poder simbólico, formulado por Pierre Bourdieu, para analisarmos o conteúdo do
material utilizado nos encontros religiosos, os quais, na nossa percepção, carregam em
si forte conteúdo simbólico, o qual serviu de recurso para, por meio da mística,
sacralizar a luta política em favor dos desfavorecidos. Por fim, encerramos o trabalho
destacando que devido às diversas lideranças envolvidas nos grupos aqui analisados, a
década de 80 não pode ser considerada uma década perdida.
Capítulo 1

Uma Nova Igreja Para Um Novo Mundo

1.1 O alvorecer de novos referenciais

A década de 1960 correspondeu a um período de surgimento de novos


referenciais em diversos campos. Particularmente, nos chama atenção a publicação de
inúmeros estudos no campo da História, que traz a lume uma nova concepção de
pesquisas. Utilizando novos problemas, novas abordagens e a percepção de novos
objetos, pesquisadores se desvencilham de uma concepção de produção histórica
pautada nos feitos do Estado e partindo de análises de fontes “oficiais”, inauguram uma
forma de produção acadêmica. Valendo-se da oralidade, do cotidiano dos indivíduos,
percorrem as entrelinhas da história e descobrem outro olhar sobre o mundo: o olhar dos
“anônimos”. Aquela que permite a inclusão dos grupos populares na análise acadêmica.
Ao avaliar suas práticas sociais, religiosas, seu vocabulário, historiadores da chamada
Nova História, conseguiram perceber novas formas de enxergar o mundo e de se
organizar em sociedade1.
Neste mesmo período, a Igreja Católica experimenta a efervescência de um novo
jeito de atuar na sociedade. Mobilizada pela ação política dos leigos, assim como por
diversos movimentos sociais, ela se “dessacralizou”, assumindo seu papel mundano,
mudou referenciais, tornando-se mais próxima da sociedade e , sob o olhar de muitos,
mais próxima do ideal cristão.
Nosso objetivo, com este capítulo, é analisar o alvorecer de um ideal cristão que
culminou na formulação da Teologia da Libertação, base teórica da criação da Pastoral
de Favelas, em meados da década de 1970, na cidade do Rio de Janeiro, a qual será
analisada no terceiro capítulo. Para isso, será necessário retroceder alguns anos no
tempo e analisar a influência dos mesmos na formulação deste novo paradigma
teológico e, por que não dizer, político.

1
Organizada por Jacques Le Goff e Pierre Nora, a coletânea “História: Novos Problemas, Novas
Abordagens, Novos Objetos” constitui-se na obra de referência da chamada Nova História. Responsável
pela ampliação das possibilidades de produção histórica, tornou possível a análise de fontes e de objetos
que, até então, eram desconsiderados pela academia.
11

1.2 Uma nova Igreja para um novo tempo

Durante o final dos anos 50 e começo dos 60, alguns setores da Igreja no Brasil,
assim como parte dos leigos envolvidos nas atividades pastorais, se deslocaram em
direção ao movimento das classes dominadas (trabalhadores, subproletários) e das
forças sociais que se organizavam no intuito de encaminhar transformações estruturais
que atendessem às necessidades dos grupos mais empobrecidos da sociedade brasileira.
Isso se deveu ao envolvimento de alguns setores do universo católico nas questões
sociais deste período (LIMA, 1979: 30).
Segundo Souza Lima, duas forças exerceram forte influência neste processo: o
grupo progressista do episcopado e a Ação Católica Brasileira. Essas duas forças, apesar
de intimamente ligadas, possuíam uma diferença de fundamental importância para a
análise da atuação das mesmas: a forma como cada uma se articulou às esquerdas
brasileiras e ao processo de organização das lutas das classes populares na sociedade
brasileira (LIMA, 1979: 30).
Luiz Gonzaga de Souza Lima, considera que, desde meados da década de 50,
uma nova ideologia começa a ser forjada no seio do grupo progressista do episcopado
católico no Brasil, e a base dessa nova ideologia consiste na constatação de que as
injustiças existentes na sociedade se constituem em um reflexo das suas contradições
estruturais. Neste contexto, então, verifica-se que o comportamento do episcopado
brasileiro assume um novo rumo, caracterizado pela ação para a transformação da
sociedade (LIMA, 1979: 31).
Marina Bandeira (BANDEIRA, 2000: 210) acrescenta que

“A maior consciência das raízes do problema socioeconômico, e suas implicações para


a vivência da fé católica no Brasil, iria fazer com que setores do episcopado
começassem a se distanciar de posições da Igreja elitista e da Igreja centralizadora, que
haviam marcado a alta hierarquia nas décadas precedentes, e a buscar novos rumos”.

Ao fazer uma análise da Igreja Católica no Brasil desde 1930, a autora salienta
que o pós-guerra gerou um reconhecimento da miséria do povo brasileiro por parte de
setores do clero e, devido a esta constatação, a mudança de visão sobre sua ação na
sociedade começa a ocorrer já a partir de 1945. O trecho em destaque demonstra que a
mudança de visão social na Igreja não atinge todo o corpo episcopal, pelo contrário,
provoca, ao longo dos anos seguintes ao término da II Guerra Mundial, um
distanciamento entre um grupo conservador, sintonizado com as classes abastadas do
12

país e outro, cada vez mais envolvido com as questões sociais do Brasil.
Posteriormente, em uma fase mais aguda, tal distanciamento evoluiu para uma ruptura
entre Igreja e Estado em meados da década de 60.
Diferentes de alguns pesquisadores – em sua maioria estrangeiros –, que veem as
mudanças ocorridas na Igreja como frutos do medo do comunismo e de uma tentativa
do clero em manter a influência da Igreja Católica sobre a sociedade brasileira2, autores
por nós pesquisados consideram que fatores internos, ligados, sobretudo, à realidade das
camadas mais pobres da população, foram os motivadores para a mudança no perfil da
Igreja naquela época3.
Sob o olhar de Gonzaga Lima, o novo direcionamento do comportamento do
clero não se deveu somente à existência da miséria, mas à ação dos próprios miseráveis,
ou seja, à formação de um projeto social articulado pelos grupos populares componentes
da sociedade. Isso nos leva a considerar que o clero foi incentivado pelo meio e não o
contrário. Ou ainda, como o autor sugere, é possível que, em função do envolvimento
do clero com as questões referentes aos grupos mais pobres da sociedade, estes tenham
percebido a Igreja com um espaço aberto a ouvir seus anseios e, a partir daí, tenham
provocado um processo de “conversão” da instituição, capaz de mudá-la ao ponto de
fazer nascer uma “nova” Igreja Católica no país (LIMA, 1979: 32).
O autor acredita que a ação do grupo progressista do clero foi determinada por
seu envolvimento com as lutas sociais e não exatamente por uma ideologia. Esta última
teria sido, na verdade, fruto de sua ação no meio social. Isso quer dizer que os meios em
que a influência do grupo progressista foi mais evidente – no meio educacional, por
exemplo – não ocorreu através de uma escolha preliminar, mas em função da
organização da luta em defesa de seus direitos, assim como por mudanças estruturais no
país. A mobilização popular, portanto, serviu de motivação – e por que não dizer, de
convocação – para a ação social do clero (LIMA, 1979: 33).
Corresponde a um elemento importante o fato de que no momento em que a
participação popular tornava-se mais intensa nos diversos setores da sociedade, havia na
direção da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (daqui para frente CNBB) um
grupo de bispos progressistas que, não só apoiava, mas incentivava a participação

2
Sobre esta questão ver, por exemplo, o trabalho de Thomas C. Bruneau, pesquisador norte-americano
que considera que a Igreja Católica começou a mudar suas práticas com o objetivo de preservar sua
influência junto ao povo brasileiro. Thomas C. Bruneau.
3
Sobre esta abordagem é possível citar: Marina Bandeira (2000), Luiz Alberto Gomez de Souza (1984),
Luiz Gonzaga de Souza Lima (1979), José Oscar Beozzo (1984), além de Michael Löwy (2000).
13

efetiva do clero e dos leigos nos diversos movimentos populares que se organizavam
naquela época. Um grupo de bispos que reconhecia a ação social como a concretização
do ideal cristão.
Portanto, a participação dos leigos nos movimentos sociais não dependia de uma
autorização da Igreja, pelo contrário, era compreendida como algo inerente à condição
do cidadão, que está inserido em um corpo social. Esses leigos pertenciam a classes
sociais, as quais viviam um momento de intensos conflitos e, por isso mesmo estavam
sensíveis aos problemas existentes nelas. Em função disso, observa-se uma “feliz
coincidência histórica” o fato de haver, naquela época, na CNBB, uma direção aberta a
aceitar e valorizar a participação do clero de dos leigos na vida política do país (LIMA,
1979:33).
Entretanto, para a melhor compreensão da forma como se deu a participação dos
católicos, faz-se importante analisar o conteúdo de classe da ação tanto do grupo de
bispos progressistas quanto dos católicos engajados. Este ponto nos possibilita tanto
reconhecer as diferenças entre estes dois grupos componentes do universo católico
inseridos no processo histórico em curso no país, quanto entender o comportamento da
Igreja Católica no seu conjunto (LIMA, 1979: 33).
O conteúdo que compunha a ação dos grupos progressistas da hierarquia
católica, com a intenção de participar do processo de mudanças no país, estabeleceu-se
sob a influência de dois aspectos favoráveis. O primeiro corresponde às inovações
referentes à doutrina social da Igreja, no âmbito mais mundial; e o segundo corresponde
à existência do “desenvolvimentismo”, a qual funcionava como ideologia da aliança de
classes no poder. Isto quer dizer que o esforço realizado pelo grupo progressista em prol
de mudanças estruturais, recebia a legitimação da doutrina social da Igreja. Essas
mudanças não contestavam nenhum princípio eclesiástico. Além disso, as mudanças
propostas não criavam nenhum antagonismo em relação às classes dominantes. Pelo
contrário, tais mudanças deveriam acontecer dentro dos limites do projeto de
desenvolvimento populista (LIMA, 1979: 34).
No início da década de 60 a Igreja, no plano político, encontrava-se dividida em
três grupos. De um lado, uma fração do episcopado católico que, mesmo não sendo
unitária e majoritária dentro da Igreja, apoiava as forças sociais envolvidas no processo
de mudanças estruturais. No entanto, sua ação se desenvolvia no sentido de legitimar o
projeto social dos setores mais progressistas do populismo. De outro, uma parcela maior
do episcopado se subdividia em dois campos: um grupo quantitativamente expressivo,
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apoiava os setores mais atrasados da aliança de classes com o poder e, uma fração
menor, que prestava apoio a uma corrente radicalmente conservadora, porém, destacada,
naquele momento, da gestão do poder político (LIMA,1979:34).
No decorrer do primeiro quartel da década de 60, na medida em que o processo
político brasileiro se desenvolvia, as classes dominantes se dividiam e o corpo episcopal
da Igreja não se isentou disso. A Igreja Católica, que tinha tradicionalmente as classes
dominantes como sua principal base social, viveu as consequências dessa divisão. Em
1964, a maioria do clero católico brasileiro apoiou o golpe de Estado e se integrou aos
grupos que se aliaram em torno do projeto político defendido pelos militares no poder.
Outro grupo, porém, manteve-se contrário ao golpe, sofrendo forte repressão dentro da
própria instituição (LIMA, 1979: 35).
Na visão de Marina Bandeira (2000), a chamada “questão social” no interior da
Igreja Católica se intensifica em função de diversos fatores, surgidos em meados da
década de 40. No plano externo, a autora apresenta a influência das mensagens sociais
de Pio XII e dos discursos sobre fraternidade realizados pelos chefes de governos que
derrotaram os regimes fascista e nazista. Em relação ao plano interno, além dos
sentimentos de esperança e liberdade surgidos com a queda do Estado Novo, a autora
destaca, dentre outros pontos, a influência exercida pelos chamados “bispos
nordestinos”4, os quais, com o apoio dos núncios, conseguem fazer suas denúncias
tomarem dimensão nacional. O surgimento da Ação Católica Brasileira (daqui para
frente ACB), que segundo a autora (BANDEIRA, 2000: 215), suscita uma aproximação
e uma relação mais espontânea entre setores do laicato e do episcopado, além da adoção

4
Segundo Marina Bandeira, em sua obra “A Igreja Católica na Virada da Questão Social (1930-1964)”, a
expressão “Bispos nordestinos” é usada para designar todos os bispos que denunciam as injustiças sociais
no Brasil no período posterior à II Guerra Mundial. Em um momento em que o país assiste ao
crescimento dos índices de empobrecimento do povo, em especial ao fenômeno da fome no Nordeste
brasileiro, um grupo de bispos começa a tomar consciência das causas dos problemas sociais brasileiros e
as suas consequências para a vivência da fé católica no país.Essa tomada de consciência gera, na visão da
autora, um distanciamento das posições deste setor do episcopado e as posições da Igreja conservadora.
Do grupo de “bispos nordestinos” é possível destacar os seguintes nomes de: “Dom Fernando Gomes dos
Santos, paraibano, bispo de Penedo, Alagoas (1941), futuro bispo de Aracaju; Dom José Delgado,
pernambucano, bispo de Caicó, Rio Grande do Norte (1941), futuro bispo de São Luís do Maranhão;
Dom Portocarrero Costa, pernambucano, bispo de Mossoró, Rio Grande do Norte (1943); Dom Avelar
Brandão Villela, alagoano, bispo de Petrolina, Pernambuco (1941), futuro bispo de Teresina e,
posteriormente, de Salvador. Juntamente aos bispos mencionados, alguns sacerdotes irão assumir a “causa
dos pobres” e dentre estes, é importante citar o nome de: Padre Hélder Câmara, cearense; Padre José
Vicente Távora, pernambucano e Padre Eugênio de Araújo Salles, norte-riograndense. Vale ressaltar que
a denominação bispos nordestinos não se aplicava, na época, apenas aos nascidos no nordeste do país,
mas a todos aqueles que, de algum modo, se identificavam e apoiavam as posições suas posições. É o
caso de Carlos Carmelo de Vasconcellos Motta, mineiro, arcebispo de São Paulo e de Dom Jaime de
Barros Câmara, catarinense, arcebispo do Rio de Janeiro.
15

de técnicas e métodos de apostolado que colaboram para a formulação de interpretações


mais objetivas da realidade social e econômica do país. A ACB, portanto, abre caminho
para a realização de reuniões e encontros anuais em nível nacional e, posteriormente,
regional.
Um último item destacado na análise da autora e interessante para o nosso
trabalho, é o pontificado de João XXIII.O referido pontificado desperta nosso interesse
pelo fato de que foi este papa quem convocou o Concílio Vaticano II, o qual serviu de
impulso para a reformulação da prática pastoral católica no contexto do mundo
contemporâneo. Segundo Marina Bandeira (2000: 206) o papado de João XXIII, apesar
de curto, foi significativo pelo fato de ter colaborado para a mudança da imagem da
Igreja em diversos aspectos. Provocou polêmica ao mencionar pela primeira vez, com
sentido positivo, a palavra “socialização” na encíclica Mater et Magistra, em 1961. A
autora (BANDEIRA, 2000: 206) destaca ainda que o papa João XXIII, na encíclica
Pacem in Terris, de 1963

“preocupa-se com todos os seres humanos, acentua a importância dos direitos humanos
no plano espiritual. Refere-se aos ‘Sinais dos Tempos’, dentre os quais destaca: a
ascensão econômico-social das classes trabalhadoras, a crescente consciência da
dignidade da mulher e os direitos das minorias. Insiste na participação dos cidadãos na
vida pública (cf. João XXIII 1963).”

Ao lermos as considerações da autora acerca do papado de João XXIII,


reconhecemos que sua atuação influenciou de modo particular as mudanças na Igreja
Católica no Brasil, no sentido de referendar a já mencionada guinada para a esquerda,
realizada pelos católicos no país.

1.3 Articulação política e religião na América Latina

Löwy (2000:135) considera que a Igreja brasileira é um caso único devido à sua
especificidade em relação à influência exercida pela teologia da libertação e seus
seguidores na sociedade. Esta realidade se fundamenta por meio de dois fatores
importantes: o primeiro é que a Igreja brasileira é a maior do mundo, além disso, seus
membros estão entre os principais fundadores do chamado “novo movimento popular” –
a CUT, o MST, as Associações de Moradores das Periferias e o PT – o qual é produto
da atividade comunitária das lideranças cristãs, fossem elas, clérigos ou agentes
pastorais.
16

Contudo, conforme já mencionado anteriormente, o início da década de 60 viu


nascer uma nova tendência, a qual ficou conhecida como “Esquerda Católica”.
Influenciada também por experiências revolucionárias (por exemplo a Revolução
Cubana), e teóricas (por exemplo a teologia francesa, a economia humanista defendida
pelo Padre Lebret; e pelas ideias socialistas de Emmanuel Mournier), seus seguidores
eram, sobretudo, os estudantes da Juventude Universitária Católica (daqui em diante
JUC).
Incentivados por ideias e experiências concretas, os cristãos brasileiros criaram
uma “cultura político-religiosa” inspirada na realidade brasileira e disposta a ser um
diferencial na luta por justiça. Os anos 60 do século XX, portanto, viram surgir uma
nova práxis cristã, mergulhada nos problemas sociais e disposta a intervir de forma a
vencê-los, por meio da conscientização e organização popular, sintetizada no método
ver-julgar-agir.
Uma característica fundamental desta nova tendência foi o abandono da teologia
europeia, tradicional, própria dos grupos de visão conservadora e a adoção de uma
interpretação teológica crítica do sistema capitalista, que incorporou elementos do
marxismo, o que permitiu a emergência de uma visão teológica e pastoral pautada na
perspectiva das periferias.
A especificidade brasileira encontrava-se exatamente no fato de que surgia,
naquele momento, uma vivência religiosa intimamente articulada a uma práxis social,
cultural e política também em formação. Pode-se dizer que era o alvorecer de um
referencial teológico e político, o qual tomou como ponto de partida os anseios e
esperanças do povo que vivia à margem da política, da cultura e da própria religião. Em
relação a isso Löwy (2000: 139) explica que

“este último aspecto foi certamente um dos mais importantes: nos primeiros
anos da década de 60, militantes católicos, com o apoio da Igreja, formaram o
Movimento pela Educação Básica (MEB), a primeira tentativa católica de criar uma
prática pastoral radical entre as classes populares. Tendo como base a pedagogia de
Paulo Freire, o MEB tinha como objetivo não só alfabetizar os pobres, mas também
conscientizá-los e ajudá-los a se tornarem agentes de sua própria história. Em 1962, os
militantes da JUC e do MEB criaram a Ação Popular – AP, movimento político não
confessional dedicado à luta pelo socialismo e ao uso do método marxista.”

Os estudantes católicos, portanto, buscavam “a construção de uma estrutura


social mais justa e mais humana” e esperavam da Igreja Católica do Brasil “um
17

verdadeiro compromisso com as classes exploradas, negando verdadeiramente a


estrutura capitalista”, geradora da desigualdade social e da pobreza. (LÖWY, 2000:137)
Acreditavam também, que deveriam interferir na realidade dos mais pobres com
o objetivo de lhe possibilitar a formação de uma consciência crítica da realidade e,
assim, pudessem descobrir-se como protagonistas de mudanças estruturais na
sociedade.Tendo sido, segundo M. Löwy (2000:140), a verdadeira precursora do
cristianismo da libertação durante a década de 60, a chamada Esquerda Católica
Brasileira, na visão do autor, possuía um número não muito significativo de adeptos, o
que fez com que fosse alvo fácil de intensas críticas por parte da hierarquia eclesial, a
qual considerou a ala esquerda da JUC ilegítima e contrária à sã doutrina social da
Igreja. Depois do Golpe de 1964, a Ação Popular se distanciou da Igreja Católica,
assim como do próprio cristianismo e, mesmo ainda contando o apoio de muitos
cristãos, leigos e clérigos, muitos de seus membros, agora afastados do meio eclesial,
passaram a integrar o Partido Comunista do Brasil (PC do B).
Em função de reconhecermos a importância dos inúmeros grupos integrados por
militantes católicos, bem como por membros do episcopado, que atuaram no Brasil ao
longo das décadas mencionadas, encaminharemos um breve relato sobre os mesmos,
com o objetivo de melhor situar nossos leitores.

1.3.1 Ação Católica Brasileira

Considerada um dos mais importantes movimentos leigos da Igreja em sua


contemporaneidade, a ACB nasceu a partir do pontificado de Pio XI (1922-1939).
Surgiu com o objetivo de recuperar e fortalecer a presença cristã católica na sociedade,
buscando reconquistar as massas, principalmente a classe trabalhadora, a qual se
encontrava atraída por outras ideologias. Em função deste objetivo, era fundamental,
então, a penetração nos espaços das principais instituições e organizações sociais, para
imprimir nelas “as práticas pessoais de um espírito católico” (SEMERARO,1994: 39).
A ACB foi lançada no Brasil em 1923, por iniciativa de Dom Sebastião Leme,
arcebispo do Rio de Janeiro, cujo propósito era realizar uma renovação da Igreja a partir
dos grupos de elite, ou seja, de cima para baixo, iniciando no Rio de Janeiro e
estendendo-se por algumas capitais e, assim, abrangendo todo o país (SEMERARO,
1994: 39).
18

Ao longo das suas primeiras décadas, a ACB desenvolveu seus trabalhos sob a
orientação dos movimentos da Ação Católica europeia, mais baseada na via litúrgica e
na pura formação (SOUZA, 1984:86). Contudo, a partir de meados da década de 1940,
mais precisamente em 1946, com a nova redação dos seus estatutos, começa a se
delinear na ACB uma consciência no sentido de elaborar uma ação católica
especializada, adequada aos problemas brasileiros. Logo, a mudança de perfil se fez
sentir nos anos seguintes, quando se reconheceu que os estatutos de 1946 não atendiam
aos anseios de seus membros. Sobre esta questão, Giovanni Semeraro (SEMERARO,
1994: 40) comenta que

“Em julho de 1950, durante a quarta semana nacional da ACB, realizada no Rio de
Janeiro, chegou-se à conclusão de que os vários ramos do apostolado deveriam se
especializar segundo o ‘meio’ no qual se trabalhava. Consolidaram-se assim: a JAC
para o meio rural; a JEC para o meio estudantil secundarista; a JIC para o meio
independente; a JOC para o meio operário; a JUC para o meio universitário e
movimentos de adultos, entre os quais vão ter expressão a ACO e ACI, respectivamente
para o meio operário e independente.”

Este trecho nos leva a considerar que a renovação na Igreja Católica brasileira, a
qual culminou na Teologia da Libertação e nas Pastorais Sociais, foi fruto de uma
realidade social que exigia mudanças e que teve início no processo de inquietação
vivido pelas lideranças da ACB.
Segundo Lima (1979: 36), a ACB correspondeu a um novo referencial para os
católicos e sobre isso argumenta que

“Os grupos de vanguarda da ACB (...) propugnavam em favor de transformações


radicais da estrutura social, que deveriam realizar-se com a ascensão das massas ao
controle do poder político, para suprimir as causas estruturais das injustiças: a ACB,
através dos setores mais avançados, faria uma escolha revolucionária. Neste sentido, a
ACB daquele período foi a primeira protagonista do deslocamento da Igreja e dos
católicos brasileiros de suas tradicionais bases sociais e, vista nesta perspectiva, é
necessário constatar que influenciou profundamente toda a instituição.”

A citação demonstra como o autor deposita na ACB o papel de efetuar uma


mudança nos referenciais pastorais dos católicos. Contudo, ele procura também
evidenciar que esta mudança não partiu da hierarquia, pelo contrário, ocorreu a partir
dos leigos, os quais reformularam o movimento trazido da Europa.
Neste contexto os leigos foram assumindo de forma mais contundente novas
tarefas, o que resultou no reconhecimento por parte do clero de seu protagonismo na
ação da Igreja. Colaboraram para a mudança nas perspectivas da ação religiosa através
19

de novos referenciais teóricos e teológicos, além de trazerem a questão política, de


forma muito veemente, para o interior da Igreja no Brasil.
Ao se depararem com a difícil realidade da vida dos trabalhadores no meio rural
e no meio urbano, e imbuídos de convicções, que aos poucos foram amadurecendo no
interior dos grupos acima citados, os leigos engajados iniciaram um processo de
transferência de eixo de atuação, dando maior ênfase aos aspectos profissionais que aos
ligados às componentes apostólicas. Seu objetivo era aproximar-se dos movimentos
sociais e educativos (SEMERARO, 1994: 40).
Esse processo culminou na elaboração de um relatório, em julho de 1961, pelos
assistentes nacionais da ACB, o qual foi entregue ao Episcopado brasileiro. O referido
documento classificava a ACB como um movimento de evangelização e, como tal,
deveria envolver-se com a realidade brasileira na sua concretude e ser dirigida pelos
leigos. Outra questão que merece destaque no documento, segundo Giovanni Semeraro
(1994: 54), é o fato de que o mesmo mencionava a importância do compromisso com o
povo, assim como, com a formulação de linhas determinantes das bases de uma pastoral
popular.
Os anos de 1960-66 foram caracterizados pela atuação da Ação Católica nos
meios específicos e essa atuação colaborou enormemente para a formação de uma
Pastoral da Juventude comprometida mergulhada na realidade de seu meio e, por isso
envolvida com a transformação da sociedade, como ideal cristão. A ACB, portanto,
tornou-se um manancial de lideranças – muitas das quais eram liberadas, ou seja,
financiadas para se dedicarem em tempo integral à formação de novas lideranças. Os
grupos surgiam em variados meios: escolas, sindicatos, fábricas e universidades. A
ligação que eles mantinham com a Igreja se dava por meio de uma coordenação
nacional (BORAN, 1983:22).
O engajamento se devia, principalmente, ao método utilizado – ver-julgar-agir –,
o qual colaborava para que o jovem reconhecesse sua condição na sociedade e, ao
mesmo tempo, fizesse uma revisão de vida avaliando “suas atitudes de cristão no seu
meio ambiente natural (família, escola, trabalho, comunidade)”, e quais as ações por ele
realizadas na tentativa de transformar o meio em que estava inserido.
O ano de 1966 foi marcado pelo fim da ACB. Isso ocorreu devido a alguns
fatores. O primeiro foi o aumento da repressão por parte do regime militar, o segundo
fator se relaciona às divergências surgidas entre as lideranças internas da ACB, em
20

especial, os dirigentes da JUC e da JEC, aliadas às divergências na hierarquia católica


(BORAN, 1983:23).
A lógica pastoral da ACB foi substituída pelo chamado cristianismo de
movimentos, o qual teve como exemplos nas décadas de 60 e 70, Emaús, Cursilho da
Cristandade e TLC (Treinamento de Liderança Cristã). A base metodológica consiste
em usar o testemunho pessoal para causar forte impacto emocional em seus
participantes, deixando de lado a abordagem social do evangelho e dedicando grande
atenção à resolução dos problemas pessoais. Contudo, não gerava nos jovens um
comprometimento com a ação pastoral. Eram “fábricas” de encontros, produzindo
lideranças que atuariam somente nos próprios encontros e não na vida comunitária
propriamente dita.
As palestras ministradas enfatizavam que a raiz do problema social era apenas
fruto do egoísmo humano, sem mencionar os problemas relativos às questões estruturais
da sociedade. Segundo esta lógica pastoral, “a solução para os males da sociedade se
encontrava na conversão de cada indivíduo dentro dela”, ou seja, acreditavam que
transformando os jovens, automaticamente a sociedade seria transformada também
(BORAN, 1983:23).
A metodologia voltada para o aspecto espiritualista levou a juventude a fechar-se
em seu movimento de encontro ou, em alguns casos, dentro de sua paróquia. Essa
experiência obteve grande apoio por parte da hierarquia católica pelo fato de atender aos
interesses dos grupos conservadores, os quais pretendiam, de alguma forma frear a
juventude, principal força motriz da esquerda católica.

1.3.2 Juventude Universitária Católica

O surgimento deste grupo está relacionado com o trabalho do Centro Dom Vital
e nas preocupações de seu diretor, Alceu Amoroso Lima, os quais fundaram em 1929, a
Associação dos Universitários Católicos, integrada em 1937 à JUC, criada em 1935
como um setor da ACB.
O objetivo central da JUC era estabelecer uma influência no sistema educacional
brasileiro, de forma que, por meio de uma presença organizada no meio universitário,
fosse possível proporcionar ao mesmo uma cristianização da elite intelectual e, assim,
interferir nos destinos do país.
21

A evolução da JUC se deu de fato a partir da reorganização da ACB, com os


novos estatutos de 1946 e 1950, estabelecendo novo rosto para sua inserção no meio
universitário e aproximando-se dos grupos políticos de esquerda no país. Observa-se,
neste período, observa-se uma mudança significativa nos objetivos do movimento, os
quais deixam de ser vinculados apenas às questões doutrinárias e religiosas, próprias da
militância da JUC, para formular um discurso de crítica à universidade e à cultura de
caráter elitista por ela fomentada, incentivando as lutas em prol da reforma universitária
e de mudanças na sociedade brasileira de caráter estrutural.
O período compreendido entre os anos de 1959 e 1964 ocorreu uma série de
mudanças significativas na estrutura da JUC, além do movimento assumir atitudes e
defender opiniões que, de tão questionadoras, geraram intensa preocupação no interior
da Igreja e na sociedade. Essas mudanças estão relacionadas às novas ideias e linhas de
ação formuladas ao longo dos anos 50 e aprofundadas nos Conselhos Nacionais, as
quais refletiam a crescente preocupação com os problemas vividos pela sociedade
brasileira, avaliados como fruto do sistema capitalista, este visto como desumano e
anticristão (SEMERARO, 1984: 50).
Em alguns anos a JUC tornou-se o movimento mais à frente em relação aos
outros setores da Igreja, mesmo se comparada a outros grupos ligados à ACB, como a
Juventude Operária Católica (JOC) e à Juventude Agrária Católica (JAC), os quais
viviam um momento voltado para a espiritualidade do trabalhador, além da própria
ACO (Ação Católica Operária), esta última em fase inicial (SEMERARO, 19884: 50).
A estrutura organizacional da JUC era composta pela Equipe Nacional, que tinha
a tarefa de coordenar o movimento em âmbito nacional e pelas equipes regionais, as
quais possuíam importante papel na diversificação e na dinâmica do movimento.
Ao longo dos anos a JUC contou com diferentes grupos, os quais exerceram
maior influência sobre as linhas de atuação do movimento. Nos primeiros nove anos de
atuação da JUC, foi o grupo de São Paulo quem assumiu certa liderança no plano
nacional. Contudo, nos anos seguintes, ou seja, de 1959 até 1964, o grupo de Belo
Horizonte exerceu este papel, tendo como destaque os estudantes ligados à Faculdade
de Ciências Econômicas, importantes fornecedores de reflexões acerca dos problemas
mais agudos do país (SEMERARO, 1984:51).
Vale mencionar alguns nomes destas lideranças que exerceram tão forte
influência ao pensamento jucista. No grupo de São Paulo pode-se destacar: “Plínio de
Arruda Sampaio, Paulo Gaudêncio, Celso Lamparelli, Luiz Eduardo Wanderley,
22

Francisco Withacker Ferreira e seu assistente Mons. Enzo Gusso”. Já do grupo mineiro
faziam parte: “Herbert José de Souza (Betinho), Antônio Otávio Cintra, Henrique
Novaes, Paulo Haddad, Vinícius Caldeira Brant” e seu assessor, o Pe. Luiz Viegas
(SEMERARO, 1984: 51).
A influência da JUC nas cidades universitárias do Brasil chegou, em dez anos de
existência do movimento, a 52 cidades. Ainda, de acordo com José Oscar Beozzo
(1984: 64), os 550 participantes do Congresso de 10 anos da JUC, correspondiam a
cerca de um décimo do total.
A partir de 1959, a JUC aprofunda sua ação no meio social com um diferencial,
o fato de que a ação política do movimento passava a ser um compromisso evangélico
de suas lideranças. Este ano também foi decisivo pelo fato de que as lideranças jucistas
foram interpeladas pelo Pe. Almery Bezerra, durante o Conselho de Belo Horizonte,
ocorrido em julho de 1959, no sentido de que a JUC necessitava da formulação “de um
ideal histórico”. Com isso a JUC reconhecia que não bastava identificar a política
universitária como atividade fundamental, era preciso ampliar seu raio de atuação na
tentativa de alcançar a realidade do operário e do homem do campo, pois reconhecia,
naquele momento, que não era possível a transformação da universidade sem que
houvesse uma transformação da sociedade brasileira como um todo (SEMERARO,
1984: 52).
Foi neste contexto que a coordenação do Regional Centro-Oeste, o qual reunia
estudantes de ciências sociais da UFMG, apresentou o documento intitulado “Algumas
Diretrizes de um Ideal Histórico Cristão para o povo brasileiro”. Constitui-se como a
primeira publicação católica a atacar diretamente o capitalismo e a propor a sua
superação, demonstrando clara afinidade com o marxismo. Observa-se ainda uma
relação direta da JUC com os grupos políticos da esquerda brasileira, mesmo guardando
inúmeras críticas aos mesmos.
A atuação política da JUC se mostra mais intensa em 1960, quando declarou
apoio a Oliveira Guanais, candidato de esquerda à presidência da UNE (União Nacional
dos Estudantes). Em seguida, em 1961, o presidente eleito para o Diretório Central dos
Estudantes (DCE) da PUC do Rio de Janeiro, foi Aldo Arantes, militante da JUC, com
uma chapa composta por membros da União da Juventude Comunista (UJC). Com o
mandato de Aldo Arantes se iniciou um período de hegemonia católica na UNE, que se
estendeu até a instauração do golpe de 1964.
23

Esta aproximação estabelecida entre a JUC e a UNE pareceu preocupante para a


hierarquia católica e esta, temendo os desdobramentos que tal aproximação poderia
causar, exige que Aldo Arantes escolha entre a permanência na JUC e a militância na
UNE. A sua escolha pela presidência da UNE e colaborou para o distanciamento das
lideranças da JUC em relação à hierarquia da Igreja.
A maior vinculação das lideranças da JUC à UNE correspondeu a um maior
desenvolvimento da juventude católica nas lutas estudantis e universitárias e a sua
influência sobre a UNE tornou-se ainda mais forte. A tensão entre JUC e Igreja Católica
aumentou quando, em 1961, por ocasião do 1º Seminário Nacional de Reforma
Universitária, promovido pela UNE, em Salvador, a entidade redigiu um “Manifesto”
contra o Projeto de “Diretrizes e Bases da Educação Nacional”, o qual contava com a
sustentação da Igreja Católica, o apoio da CNBB e estava de acordo com os interesses
da Associação dos Educadores Católicos (AEC).
A tensão tornou-se ainda mais evidente com a apresentação, durante o Conselho
Nacional da JUC de Natal, em julho de 1961, do documento “O Evangelho, fonte de
revolução brasileira”, apontando medidas de cunho revolucionário para o país. Durante
este evento, as discussões tiveram tom mais intenso e foram discutidos temas como
Socialismo, Subdesenvolvimento, Revolução Brasileira, chegando-se mesmo a citar a
revolução armada como alternativa para o Brasil (SEMERARO, 1984: 54).
Em reação ao conteúdo do documento e às discussões realizadas durante o
encontro de Natal, a hierarquia da Igreja Católica se manifesta de forma incisiva. Dom
Eugênio Salles, então Administrador Apostólico de Natal, ordena a retirada da seção
local da JUC do conjunto do Movimento Nacional. Além disso, Pe. Caldeirão Beltrão,
que esteve presente no Conselho, indignado com o teor das reflexões encaminhadas,
redigiu um relatório com severas críticas ao movimento e o distribuiu entre diversos
bispos do país.
A reação da Igreja Católica não parou por aí. Segundo Giovanni Semeraro
(1984:54), em outubro de 1961, a Comissão Central da CNBB publicou o seguinte
documento: “Diretrizes da Comissão Episcopal da ACB e do Apostolado dos Leigos
para a JUC”. Este documento corresponde não só a uma resposta às ações do
movimento como também a uma tentativa de “corrigir” os rumos tomados pela JUC,
referendando pontos caros para a Igreja, tais como, a “sacralização das estruturas
temporais”, a “vida sobrenatural”, a “santificação” como prioridade das lideranças.
24

O documento chama atenção ainda para o perigo do “neo-laicismo”, da atitude


insubordinada em relação às autoridades da Igreja Católica e da subestimação da
doutrina social da Igreja. Enfatiza que a JUC “atua por mandato” e que, mesmo
reconhecendo as preocupações da JUC com os problemas sociais brasileiros, considera
ilícito apontar para os cristãos o socialismo como alternativa para a solução dos
problemas políticos, econômicos e sociais. Da mesma forma que não é lícito a
afirmação da doutrina da violência como via para o estabelecimento de uma revolução
brasileira, em assembleias e círculos do movimento.
Por fim, orienta a participação no Movimento de Educação de Base, assim como
no Sindicalismo Rural, movimentos ligados à Igreja, como alternativas de participação
segura para as lideranças da JUC, ao invés de participarem das Ligas Camponesas, algo
considerado de ideologia duvidosa. Todos estes apontamentos vieram juntamente com a
proibição de lideranças jucistas concorrerem em eleições para cargos de direção de
organismos de política estudantil, seja no plano nacional ou no plano internacional,
assim como de partidos políticos, sem desocupar seus postos de direção da JUC
(SEMERARO, 1984: 55).
A pressão não viera apenas por parte da Igreja, mas também da imprensa
conservadora e de grupos políticos de direita capitalista, os quais, reunidos em torno do
jornal O Estado de São Paulo, com o apoio do complexo IPES/IBAD (Instituto de
Pesquisas e Estudos Sociais e Instituto Brasileiro de Ação Democrática,
respectivamente) e da ajuda financeira de quatrocentas empresas de São Paulo e do Rio
de Janeiro. Toda esta pressão tinha como objetivo criminalizar a JUC. Dreifuss (1986:
283) analisa esta questão de forma muito contundente:

“Visando a contrariar os esforços da AP e da UNE, a elite orgânica desenvolveu uma


difícil e dura campanha de contenção e desagregação dirigida especialmente contra a
UNE e também a sua congênere mais nova, a União Brasileira de Estudantes
Secundários – UBES, bem como contra outras organizações estudantis de cunho
popular, como Juventude Estudantil Católica – JEC, a Juventude Universitária Católica
– JUC e a União Metropolitana de Estudantes – UME.”

Apesar de toda pressão conservadora vinda de diversos grupos, os anos de 1960


e 1962, significaram para a JUC um período de desenvolvimento na consciência, no
debate e nas práticas nos diversos níveis do movimento. A JUC se fez presente em
vários movimentos pelo país, no Movimento de Educação de Base (MEB), idealizado
pela CNBB, nas Ligas Camponesas, nos Centros Populares de Cultura (CPC), bem
25

como no Movimento de Cultura Popular (MCP), da mesma forma que nas experiências
desenvolvidas pela UNE-Volante e no programa de alfabetização de Paulo Freire. Os
jucistas também se fizeram presentes na Frente Nacionalista e nas eleições para a
Confederação dos Trabalhadores na Agricultura (a CONTAG). Essa influência ocorreu
também na formação da Ação Popular (AP) (SEMERARO, 1994: 56).

Após um período de efervescência da militância, a JUC foi aos poucos sofrendo


um esvaziamento progressivo. Este quadro se deveu em grande parte à migração de
militantes jucistas para a AP. Durante certo período houve uma militância conjugada,
em função de uma consciência histórica comum. Porém, esta realidade não dura por
muito tempo já que os movimentos se distanciam nos anos posteriores. AP, nos anos
seguintes ao golpe de 64, toma a direção da clandestinidade. Já a JUC, devido à
intervenção da Igreja, abandona suas lutas sociais e começa a retomar o seu caráter
inicial.

1.3.3 Conferência Nacional dos Bispos do Brasil

Segundo Riolando Azzi, a fundação da Conferência Nacional dos Bispos do


Brasil correspondeu a um verdadeiro marco na história do catolicismo brasileiro. O
nascimento desta instituição se deveu sobretudo a Dom Hélder Câmara que na época,
ainda padre e assessor do núncio D. Carlo Chiarlo, realizava semanalmente um balanço
dos problemas do país. Diante dos resultados deste trabalho, percebeu a necessidade da
existência de um secretariado – ou uma conferência – que auxiliasse os bispos na
reflexão sobre estas questões (AZZI, 2008:127).
Desta forma, no dia 15 de outubro de 1952 foi fundada a CNBB, durante uma
reunião episcopal ocorrida no Rio de Janeiro, no palácio São Joaquim. Convocados pela
ACB, os vinte arcebispos e cardeais do Brasil, deram início, em caráter experimental à
Conferência dos Bispos do Brasil, cujo presidente eleito foi o Cardeal Dom Carlos
Carmelo e secretário-geral, Dom Hélder Câmara, agora bispo auxiliar de Dom Jaime
(BANDEIRA, 2000: 223).
Tendo como marca a ênfase da Igreja Católica na atenção às questões sociais e
econômicas do país, a CNBB, assim como seu secretário-geral, Dom Hélder, contaram
com o apoio de leigos engajados no trabalho pastoral, oriundos da Ação Católica. Essas
lideranças leigas tiveram papel fundamental na formação de uma visão mais atenta dos
26

bispos em relação aos problemas sociais vivenciados pelos brasileiros, em especial os


mais pobres. Outra característica importante da CNBB, já no seu nascimento, foi a
preocupação de se colocar a serviço do povo por meio de ações em conjunto com o
poder público (AZZI, 2008: 127).
Segundo Marina Bandeira, o primeiro endereço da CNBB, desde sua fundação
até início de 1954, foi a sede da ACB, na Rua México, nº 11, 16º andar, no Rio de
Janeiro. A manutenção da entidade foi garantida ao longo dos anos iniciais até 1964,
por meio de contribuições de bispos, doações particulares feitas a Dom Hélder, além do
trabalho voluntário ou remunerado em caráter simbólico de lideranças da ACB
(BANDEIRA, 2000: 223). Isso nos leva a reconhecer a proximidade entre a ACB e a
CNBB, nos anos 50 e meados de 1960, além de compreender a sua ênfase na tentativa
de interferir nos problemas sociais vividos pelos brasileiros das classes mais pobres.
Com relação a isso Giovanni Semeraro (1994: 41) afirma:

“A análise das suas posições na segunda metade dos anos 50 e início dos anos 60
demonstra como a CNBB se tornara uma grande força para as mudanças no Brasil e na
Igreja. Embora os reformistas constituíssem uma minoria dentro da CNBB,
conseguiram articular uma visão da missão da Igreja que foi muito além das posições
triunfalistas das décadas anteriores. Um grande número de iniciativas e
pronunciamentos desencadearam visíveis mudanças na Igreja e na concepção de
evangelização que facilitaram as atuações mais ousadas da esquerda católica.”

O trecho acima evidencia que a postura da Igreja, no que se refere ao grupo


ligado à CNBB, adquire novo caráter, mais voltado para a atuação no meio político e a
questão agrária recebe atenção de destaque, em função de ser considerada como um dos
grandes problemas do Brasil naquele momento. Foi com este espírito de intervenção no
meio social que os encontros do Episcopado do Nordeste (Campina Grande em 1956, e
Natal, em 1959) resultaram na criação da Superintendência do Desenvolvimento do
Nordeste (SUDENE) e das Frentes Agrárias, as quais se espalharam em pouco tempo,
pelo nordeste brasileiro e por alguns estados do sudeste (SEMERARO, 1994:42).
O ano de 1960 presencia a intensificação da tensão no episcopado. Isso se deveu
a uma série de acontecimentos que colocam em situação de confronto grupos do
episcopado brasileiro com posições diferentes. De um lado, a coesão do episcopado
brasileiro evidenciada pela reeleição, desde 1952, de Dom Hélder Câmara para o cargo
de secretário geral da CNBB, de outro os murmúrios de uma parcela do episcopado
contra a “hegemonia nordestina” na entidade. Além disso, o país vivia internamente as
consequências negativas do desenvolvimentismo implementado por Kubitschek e a
27

expectativa de eleições para o cargo de presidente da república e, no plano externo, a


tensão gerada pela Guerra Fria e pela aproximação em relação à União Soviética
(BANDEIRA, 2000: 232)
Segundo Marina Bandeira (2000: 233) a reação contra a “ameaça comunista”
por parte do grupo conservador do episcopado foi imediata, tendo Dom Jaime e Dom
Scherer, como seus importantes representantes. Um fato que evidencia a reação
conservadora foi a publicação do livro Reforma Agrária, Questão de Consciência,
formulado por Dom Antônio de Castro Mayer (bispo de Campos), Dom Geraldo
Proença Sigaud (bispo de Jacarezinho), Plínio Correa de Oliveira e Luis Mendonça de
Freitas. O livro, publicado pela organização conhecida como Tradição, Família e
Prosperidade (TFP), defendia o resgate da moral e dos valores religiosos do povo, a
distribuição de terras incultas do Estado para agricultores pobres, como solução do
problema agrário, além de ser uma crítica feroz ao comunismo no país.
Posição contrária a de Dom Hélder Câmara, que ao final da década de 50 e
início dos anos 60 se tornou uma das principais vozes do episcopado brasileiro a serviço
da questão social. A viabilização da Cruzada São Sebastião e do Banco da Providência
são exemplos do envolvimento de Dom Hélder na questão do auxílio aos mais
necessitados. Vistas como assistencialistas, essas iniciativas foram alvos de críticas de
seus opositores e motivo de divergências com Dom Jaime. O apoio veio do Núncio
Apostólico, Dom Armando Lombardi, e do Papa João XXIII (BANDEIRA, 2000: 236).
O clima de tensão não se resume apenas ao plano interno, mas também alcança a
relação com o Estado, já que em 1961, parte do episcopado apoiou a campanha a favor
da legalidade, após a renúncia do presidente Jânio Quadros. Neste mesmo ano, meses
antes da renúncia, o então presidente Jânio Quadros assinou um convênio para a criação
do MEB (Movimento de Educação de Base), além da criação do Grupo de Trabalho do
Estatuto da Terra, ao qual Dom Hélder foi incluído (BANDEIRA, 2000: 239).
As dissensões entre o episcopado e os grupos políticos conservadores aumentou
após dois episódios polêmicos. O primeiro ocorreu em fevereiro de 1964, com a
descoberta da chamada “Cartilha Comunista” do MEB, atribuída erroneamente a Dom
Hélder, pelo então governador do estado da Guanabara, Carlos Lacerda. O caso tomou
grande espaço na imprensa de todo país. O segundo foi a visita de João Goulart a Dom
Hélder Câmara, atendendo ao convite deste e de Dom Carlos Carmelo, seguido do
famoso discurso aos sargentos. Segundo Marina Bandeira (2000: 247), o convite dos
dois bispos, objetivava fazer um apelo ao presidente, no sentido de evitar o que ambos
28

pensavam ser o início de uma revolução, da qual somente o próprio presidente


imaginava sair vitorioso. Ao contrário do que os bispos esperavam, a reunião tornou-se
pública, estampando nos jornais da época, uma foto do presidente João Goulart com
Dom Hélder e Dom Carmelo, gerando na opinião pública, a certeza do apoio da Igreja
como um todo ao presidente.

1.3.4 Ação Popular (AP)

Segundo o documento-base da Ação Popular (daqui para frente AP) seu


surgimento nasceu da necessidade de uma atuação política específica, desvinculada da
estrutura eclesiástica, por parte de algumas das principais lideranças da JUC.
O documento-base formulado por seus membros defina o movimento como

“a expressão de uma geração que traduz em ação revolucionária as opções fundamentais


que assumiu como resposta ao desafio da nossa realidade e como decorrência de uma
análise realista do processo social brasileiro na hora histórica em que nos é dado viver”
(LIMA,1979: 118).

Colocando-se como “a expressão de uma geração”, a AP toma para si o


compromisso de encaminhar a luta pela transformação da sociedade, entendendo que a
mesma somente se dará a partir da organização da classe trabalhadora. Desta forma, a
AP se coloca em uma luta que é de todos contra o grande capital e pela libertação do
homem. A linha política socialista apresentada no documento evidencia sua influência
humanista e cristã, apesar de o movimento se colocar como desvinculado de qualquer
instituição religiosa. Isso nos parece muito evidente quando o texto apresenta a ideia de
que a AP assume a luta do homem e com o homem, ou ainda quando afirma que estende
a mão para o nosso irmão miserável.
No início do ano de 1962, em Belo Horizonte, ocorreu a fundação da AP, em um
encontro que reuniu membros de vários grupos: do Jornal Ação Popular, de Belo
Horizonte, do grupo do Rio de Janeiro, com a presença de Pe. Henrique Vaz, assim
como, o grupo da UNE, de Aldo Arantes, além de membros isolados da JUC (Henrique
Lage, Alípio Freitas, Almery Bezerra), assim como diversos políticos e intelectuais. O
encontro contou com a presença de cerca de cem pessoas, as quais passaram uma
semana discutindo uma forma de equacionar todas as forças políticas da esquerda
brasileira. Assim estabeleceram a formação de um movimento que pudesse aglutiná-las
(SEMERARO, 1984: 59).
29

Mesmo contando em sua maioria, com militantes ligados ao cristianismo


católico, em especial da Ação Católica, havia naquele momento, o interesse de ressaltar
o caráter político do movimento e descaracterizá-lo como uma iniciativa religiosa para
evitar que fosse definido como um partido de ideologia cristã. Desta forma, no “Esboço
Ideológico”, apresentado durante a assembleia em Belo Horizonte, foram apresentados
os principais pontos que definia o movimento da AP.
O documento apresentava a visão filosófica e política que norteava os seus
membros, naquele momento de nascimento do movimento. Inicialmente o texto define o
Brasil como uma sociedade dividida em duas classes opostas entre si: a dos dominantes,
de um lado; a dos dominados de outro. Além disso, tomando como base “conceitos de
consciência histórica, comunicação das consciências e a dialética histórica, trabalhados
por Pe. Vaz”, analisa historicamente a realidade brasileira em sua fase de “economia
colonial” e de dependência econômica em relação aos “países metropolitanos”
(SEMERARO, 1984: 60).
No ano seguinte, no I Congresso da AP, em Salvador (BA), o documento-base
foi aprovado pela maioria das bancadas dos estados presentes e sofreu correções
posteriores, feitas pela Coordenação do Rio de Janeiro e revisada por Pe. Vaz.
Em linhas gerais, o documento apresentava como objetivos do movimento:

“traduzir em ‘ação revolucionária as opções fundamentais que assumiu como resposta


ao desafio de nossa realidade’ e ‘transformar radicalmente’ a sociedade pela
‘mobilização consciente do povo’ na luta pelo ‘homem com o homem’” (SEMERARO,
1984: 60).

Apesar dos objetivos expostos demonstrarem uma opção clara de combate ao


capitalismo, o trecho demonstra que a AP esperava atuar no sentido de transformar a
realidade brasileira com traços do humanismo cristão, próprio da experiência católica
advinda da Ação Católica, como já foi mencionado anteriormente. A AP era a
concretização da ação política dos cristãos no sentido de mudar a realidade brasileira,
tendo como referência o ideal socialista.
Não se reconhecendo com um movimento eclesial, estava livre das restrições
estabelecidas pela Igreja, tornando possível, assim, tomar para si posições políticas
próprias da esquerda mais radical e se inserir de maneira mais fácil em setores mais
politizados do país. Com este perfil, tornou-se em pouco tempo, uma organização de
esquerda com peso político significativo e dividia este lugar com o PCB e o PC do B
(SEMERARO, 1994: 62).
30

A participação de diversos setores da sociedade era algo muito evidente e,


segundo Lima (1979: 44):

“A adesão dos setores mais avançados da JUC e da JEC assegurava à AP.


imediatamente, a hegemonia e a direção do movimento universitário e grande força no
movimento dos estudantes médios. De 1961 a 1964, a maioria no movimento estudantil
fazia parte da organização que nascia, e a própria presidência da União Nacional dos
Estudantes Brasileiros (UNEB) foi ocupada por militantes da Ação Popular. A
hegemonia da AP sobre o movimento estudantil brasileiro se prolongou por muitos anos
depois de 1964. Em outros setores da pequena e média burguesia, a presença da AP não
era negligenciável, principalmente entre profissionais, professores e bancários, e em
muitas localidades essa presença se exprimia através dos respectivos movimentos
sindicais.”

Apesar da AP ter uma inserção muito expressiva no meio estudantil e


universitário, seu documento apresenta de maneira clara seu compromisso em estar
presente nos grupos mais subalternos da sociedade (LIMA, 1979: 119)
Segundo Giovanni Semeraro (1994: 64), a AP procurou inserir-se na luta
camponesa e até mesmo, a acompanhar a ação das ligas. Contudo, foi no meio sindical
que a AP estabeleceu um vínculo mais estrito com o movimento de trabalhadores do
campo. Já no movimento operário, a inserção da AP teve como principal obstáculo os
chamados Círculos Operários, os quais se constituíam como redutos da direita católica,
o que inviabilizava a ação das lideranças da AP. Ao contrário, a Juventude Operária
Católica e a Ação Católica Operária foram entidades que colaboraram com o trabalho
da AP, o que resultou em certo crescimento no meio operário.
De qualquer forma, a AP tornou-se referência de movimento popular no início
da década de 60. A respeito disso Gionvanni Semeraro (1994: 64) afirma que

“nenhum movimento político no Brasil teve, talvez, um crescimento tão vertiginoso e


um sucesso tão rápido como a AP, no curto prazo de dois anos. Além da trajetória
fulgurante, o que mais impressiona é o fascínio de suas propostas, a dedicação febril de
seus militantes e a incisividade dos resultados. São diversas as variantes que concorrem
para tanta repercussão: o entusiasmo juvenil, o senso da missão política, a efervescência
do momento histórico, as perspectivas do otimismo cristão, a autenticidade de suas
lideranças, os métodos democráticos e as novas práticas educativas.”

Contudo, toda essa vivacidade foi contida pelo Golpe de 1964. Lima (1979: 46)
considera que a AP estava por se constituir em um espaço privilegiado da participação
política, bem como de militância fundamentada pelo humanismo cristão e buscando a
construção do socialismo, além de estar destinado a ter um papel de destaque na política
brasileira.
31

Vale dizer que um movimento com tamanha importância e inserção no meio


popular apresentou também equívocos que demonstraram sua fragilidade. José Beozzo
(1984: 131) menciona que

“O grande pecado da ação anterior à Revolução de 1964 consistiu em despertar e agitar


as forças populares, sem um esforço paralelo de organização e em uma falta de política
revolucionária consequente.”

O autor considera que um grande obstáculo para o movimento foi a distância


entre prática e teoria, a ausência de estudos aprofundados sobre o poder político e sobre
o período de transição entre a fase revolucionária e a de construção do socialismo. Além
disso, a ênfase dada à análise econômica dissociada das perspectivas histórica e
filosófica (BEOZZO, 1984: 131).
O Golpe de 1964 marcou brutalmente a história da AP. Assim como ocorreu
com outros movimentos da esquerda brasileira, a AP tornou-se um movimento
clandestino. Na visão de Semeraro (1994:65) o abandono do humanismo cristão e o
afastamento de suas bases sociais, transformou a AP em uma pequena e impaciente
organização que passara a disputar a hegemonia da direção da classe operária e da
Revolução Brasileira com outras organizações clandestinas. Neste contexto, o
movimento radicalizou-se e assumiu a luta armada como estratégia principal de atuação.
Segundo o mesmo autor (SEMERARO, 1994: 66), nos primeiros anos de 1970,
a AP vivia um processo de lutas e divisões internas, com isso o movimento foi reduzido
a um pequeno partido de tendência maoísta. Posteriormente, em 1973, seus membros
optaram pela dissolução da AP e a vinculação ao PC do B. Contudo, uma parcela menos
expressiva de seus membros manteve sua identidade como AP e seguiu a linha
marxista-leninista, com rígida ideologia. Este período foi marcado pela radicalização
extrema do movimento e, em função disso, caracterizado pelo afastamento, bem como
pela expulsão de muitos dos seus membros fundadores.

1.3.5 Movimento de Educação de Base (MEB)

O início dos anos 60 foi marcado pela tentativa, por parte dos diversos grupos de
esquerda, de fomentar nas classes populares do país uma consciência da realidade
brasileira e, assim, possibilitar a participação política do povo. Para isso todos esses
32

grupos viam na educação a chave para a eclosão desse processo de mudança das
estruturas do país.
Sendo assim, muitas iniciativas aconteceram em todo Brasil. Foram experiências
de educação popular que permitiram a inovação nos métodos e na criação de práticas
pedagógicas inovadoras, as quais foram importantes não só para aquele momento, mas
devido a sua importância, influenciaram a sociedade, a Igreja e marcaram a história da
educação brasileira.
O Movimento de Educação de Base (MEB) foi um desses movimentos. Foi
fundado em 1961, pela CNBB em convênio com o governo federal. O presidente Jânio
Quadros assumiu o financiamento, enquanto que o bispo de Aracaju, Dom José Távora,
encarregava-se pela organização do projeto. O objetivo principal do MEB era viabilizar
a alfabetização de adultos, por meio de escolas radiofônicas implantadas no interior do
país, assim como nas regiões menos desenvolvidas do Brasil. (SEMERARO, 1994: 67)
O MEB conjugava dois interesses: o do governo e o da Igreja Católica. Na visão
de Eduardo Wanderley (1984:49), o governo buscava dar conta das urgências da
educação, da necessidade de ampliar o número de eleitores, de diminuir o poder das
oligarquias rurais e de controlar as massas no aspecto ideológico. Por outro lado, a
Igreja Católica – segundo a Declaração da Comissão Geral da CNBB (CNBB, 1961),
publicada em 1961 – estava interessada em expandir sua preocupação com a educação,
assegurar sua influência sobre o povo, além de frear o avanço do comunismo no país.

1.4 América Latina nos anos 60 e 70, Um Contexto propício ao Desenvolvimento da


Teologia da Libertação

Segundo Löwy (2000: 69), a formação da Teologia da Libertação (daqui para


frente TL) está intimamente ligada a uma série de mudanças ocorridas não só no interior
da Igreja Católica mas no mundo e, em especial, na América Latina. Com já foi
mencionado, tratou-se de um período que se inicia ainda na década de 50 e que se
desenvolveu ao longo dos anos seguintes, partindo da periferia para do centro da Igreja
Católica.
Para alguns estudiosos da TL, a Igreja Católica mudou devido ao espaço tomado
pelo povo dentro da instituição, levando a estrutura eclesial a um processo de
conversão, além de fazer com que a Igreja agisse a partir dos mais pobres. Isto pode ser
33

exemplificado pelo movimento da Ação Católica e seus desdobramentos (JOC, JUC,....)


(GOMES, 1979: 54).
Para Bruneau (apud LÖWY, 2000: 68), porém, a TL foi uma tentativa de evitar a
perda de influência diante do surgimento de diversos movimentos como, as Igrejas
Protestantes e os movimentos políticos de esquerda. Além disso, em meio a uma crise
econômica, a elite da Igreja reconheceu a necessidade de voltar-se para as classes mais
pobres.
Nossa análise converge para a primeira visão, onde se considera, de acordo com
Löwy (2000:71) que

“Foi a convergência desses conjuntos muito distintos de mudanças que criou as


condições que possibilitaram a emergência da nova ‘Igreja dos Pobres’, cujas origens, é
preciso observar, remontar a um período anterior ao Vaticano II. De uma maneira
simbólica, poderíamos dizer que a corrente cristã radical nasceu em janeiro de 1959, no
momento em que Fidel Castro, Che Guevara e seus camaradas entraram marchando em
Havana, enquanto que, em Roma, João XXIII publicava a primeira convocação para a
reunião do Concílio.”

O trecho acima revela uma tentativa de articular o surgimento da TL a outros


acontecimentos que denotam uma mudança de paradigmas no mundo da qual a IC não
se isentou. Pelo contrário, foi influenciada desde as suas bases até extratos de sua
estrutura hierárquica. No que se refere especificamente à adesão à TL, há uma evidência
de que tanto pelos movimentos laicos, quanto pelo clero tratava-se de grupos periféricos
em relação à estrutura hierárquica (LÖWY, 2000: 71).
A JUC, a JOC e a AC são exemplos de movimentos católicos laicos que
assumiram a Teologia da Libertação como estrutura teórica para fundamentar sua
atuação no Brasil. Nos demais países da América Latina grupos de diversas vertentes
como, as federações de camponeses cristãos (El Salvador), os comitês para a promoção
da reforma agrária (Nicarágua) e, sobretudo, as CEB’s, se comprometeram com as lutas
populares e estabeleceram uma leitura da Bíblia baseada no marxismo.
É importante esclarecer que nem toda a Igreja Católica foi envolvida pelo
Cristianismo da Libertação, pelo contrário, amplos setores no interior da instituição não
só se colocaram como contrários a essa teologia, como também a combateram
fortemente em todo o mundo, assim como no próprio continente latino-americano. Um
exemplo disso foi o CELAM (Conselho Episcopal Latino Americano), órgão regulador
da hierarquia da Igreja na América Latina, dirigido pela ala conservadora católica, desde
os anos 70. Ao contrário da CLAR (Conferência Latino-Americana de Religiosos), que
34

congrega ordens religiosas, como dominicanos, jesuítas e franciscanos, apresentando-se


muito mais voltada e comprometida com a teologia da libertação e com a chamada
“igreja dos pobres” (LÖWY, 2000:65).
Muitos foram os grupos que se declararam contrários a essa linha teológica
dentro da própria Igreja Católica, o que gerou no interior da instituição um clima de
tensão em diferentes momentos e em segmentos distintos. Um exemplo disso foi o fato
de amplos setores da Igreja Católica terem sido favoráveis à instauração da ditadura
militar no Brasil, em 1964.
No âmbito externo, ao longo dos anos 70, a CNBB sofreu intensa pressão por
parte de Vaticano. Ela, contudo, não aceitou a condenação da Teologia da
Libertação.(LÖWY, 2005: 65). Longe de ser uma instituição homogênea, a Igreja
Católica, em especial na América Latina, apresentou uma amplitude significativa de
grupos de caráter laico, de congregações e ordens religiosas e de movimentos que se
apresentavam afinados com uma visão mais progressista e comprometida com a causa
dos pobres, enquanto que dialogavam mais com uma religiosidade mais conservadora.
Ao pensar estes grupos no interior de um vasto espectro, pode-se observar rapidamente
o quanto eles eram diferentes entre si. Dentre os mais conservadores, por exemplo,
encontra-se um grupo fundamentalista, defensor de ideais ultrarreacionários, muito
próximos do fascismo: refiro-me aqui aos católicos da Tradição, Família e
Propriedade. Uma segunda parcela, também de visão conservadora e tradicionalista,
contrária à TL, é aquela que se encontra associada à Cúria Romana e às classes
dominantes. Neste caso, o exemplo é a própria liderança do CELAM. Há ainda um
terceiro grupo, composto por lideranças com certa autonomia intelectual em relação à
alta hierarquia da Igreja Católica e que possui uma visão mais reformista e moderada,
disposta a sair em defesa dos direitos humanos e de certas demandas sociais
relacionadas aos pobres: trata-se aqui daquele campo que exerceu forte influência sobre
a Conferência de Puebla, em 1979, e, em alguma medida, sobre a de Santo Domingo,
em 1992. O quarto grupo a merecer destaque, distancia-se da visão teológica e
pastoral da visão dos três grupos anteriormente mencionados. Ele corresponde a uma
corrente de postura radical, voltada para a TL, articulada aos movimentos populares,
dos trabalhadores do campo e da cidade. Como seus maiores representantes, podemos
citar: Pedro Casaldáliga e Paulo Arns (no Brasil), Mendez Arceo e Samuel Ruiz (no
México) e Oscar Romero (em El Salvador).
35

Desta forma, pode-se reconhecer que a divisão no seio da Igreja Católica é algo
mais amplo que um modelo vertical comum, ou seja, entre os grupos “que vêm de
baixo” (movimentos cristãos populares, comunidades eclesiais de base, etc) contra
“aqueles que vêm de cima” (hierarquia, bispos e chefes da instituição). Na visão de M.
Löwy (2000: 67), o modelo de divisão é também horizontal, pois perpassa toda a
estrutura clerical e divide-se em tendências diferentes – ou opostas. Estamos falando
dos movimentos laicos, das conferências episcopais, das ordens religiosas e do clero
diocesano, em uma instituição que, apesar das contradições existentes, preserva a
unidade não exatamente para evitar uma cisão, mas porque seus objetivos religiosos
ultrapassam o âmbito do social ou do político.
Consideramos pertinente a visão apresentada pelo autor, pois que a mesma deixa
transparecer a profundidade dos conflitos existentes entre os grupos acima
mencionados. A divergência entre estes grupos é de caráter ideológico e traduz em
ações em que os grupos mais próximos das esferas de poder na hierarquia eclesial,
limitam a ação pastoral e a produção teológica dos outros grupos, em especial os grupos
ligados à TL.
Um exemplo desta realidade é a própria Pastoral de Favelas – assim como todas
as outras pastorais sociais –, a qual foi desalojada de suas instalações na Cúria da
Arquidiocese do Rio de Janeiro durante a gestão de D. Eusébio Sheid (2000-2009). Ela
só retornou ao seu antigo endereço na gestão de D. Orani Tempesta.

1.5 O impacto do Golpe Militar de 1964 sobre os Movimentos Populares

René Dreifuss (1986:281), ao analisar as ações da elite orgânica brasileira nas


diversas áreas de atividade política, afirma logo de início, que esta atividade, juntamente
com a organização de alguns eventos aparentemente desconexos da vida dos diversos
segmentos da sociedade, tiveram, na verdade, a coordenação da elite orgânica
concentrada no IPES e no IBAD.
Essas atividades políticas não eram semelhantes em seu formato, pelo contrário,
possuíam, segundo o autor, natureza bastante diversa e buscaram atingir diferentes
extratos sociais. Eram planejadas para exercer um apoio mútuo e para serem
complementares entre si, de forma a produzir um resultado cumulativo.
A ação minuciosamente organizada pela elite orgânica do país tinha como
objetivo o seu estabelecimento no poder do Estado e, ao mesmo tempo, permitir
36

desenvolver mudanças econômicas, administrativas e políticas que atendessem aos seus


interesses, os quais estavam representados no IPES.
Segundo o autor, o projeto do IPES/IBAD tinha como estratégia principal o
desenvolvimento de uma ampla campanha que buscava manipular a opinião pública,
assim como doutrinar as forças empresariais de maneira a moldar os interesses de classe
“para si”. Dreifuss (1986:281) considera ainda, que o complexo IPES/IBAD

“estava envolvido em uma abrangente campanha que visava impedir a


solidariedade das classes trabalhadoras, conter a sindicalização e a mobilização dos
camponeses, apoiar as clivagens ideológicas de direita da estrutura eclesiástica,
desagregar o movimento estudantil e bloquear as forças nacional-reformistas no
Congresso e, ao mesmo tempo, mobilizar as classes médias como a ‘massa de manobra’
da própria elite orgânica. Ainda, as manobras táticas faziam-se necessárias por uma
outra razão fundamental: conduzir a estrutura social a um ponto de crise onde as Forças
Armadas, cujo apoio foram simultaneamente e intensivamente aliciado, seriam levadas
a intervir sob uma liderança coordenada.”

O trecho nos leva a considerar que o complexo IPES/IBAD se empenhou em


preparar cuidadosamente a sociedade para o golpe militar, na medida em que os
intelectuais buscaram, através de atividades de cunho ideológico, “impedir a
solidariedade” e a organização da sociedade em torno de projetos comuns. Ao mesmo
tempo, buscava-se, com esses eventos, contribuir para o fortalecimento dos grupos
conservadores, em especial a Igreja Católica, a qual era um elemento de grande
influência na formação da opinião do povo.
Todo esse empenho encontrava razão no fato de que em fins da década de
cinquenta, um grupo significativo da sociedade brasileira, formado por intelectuais,
estudantes, alguns políticos, militantes de partidos, assim como membros do clero e
militares, esforçou-se para desenvolver nas massas uma consciência de classe, assim
como uma postura reivindicatória em relação ao Estado e o “caráter positivo e
necessário de certos objetivos nacionais”. Esta ação visava organizar a massa popular
para, uma vez reconhecendo seu verdadeiro potencial, participar ativamente da mudança
social que estava por vir. Para atingir tal objetivo, várias organizações foram envolvidas
neste processo, como, por exemplo, a AP, a JUC e setores radicais da Igreja, em
especial as CEB’s e do MEB, a UNE, as quais já foram mencionadas por nós
anteriormente (DREIFUSS, 1986: 282).
Sobre a questão da criação de diversas organizações voltadas para a mobilização
das massas, vale destacar o papel da UNE, a qual adquiriu grande destaque no início da
década de sessenta e apontou, em um de seus encontros nacionais, uma pauta com
37

diversas demandas relacionadas à economia (por exemplo, inflação, capital estrangeiro,


imperialismo); à política exterior independente (incluindo o apoio à Cuba); aos
movimentos grevistas no país; às campanhas para a alfabetização; e à reforma
educacional e universitária. Em 1960, durante o I Seminário Nacional da Reforma
Universitária, na cidade de Salvador, os estudantes universitários demonstraram
amadurecimento político significativo quando formularam a chamada “Declaração da
Bahia”.
Segundo este documento, os estudantes consideravam que o Brasil se constituía
em “uma nação capitalista em fase de desenvolvimento”, possuidora de “uma
infraestrutura agrária sob controle de poderosos grupos estrangeiros”, além de “um
Estado oligárquico” apresentando contradições indicativas da falência da estrutura
liberal burguesa.
Os participantes do seminário apontavam como solução para as demandas
mencionadas a “socialização dos setores fundamentais da economia”, a extinção da
alienação do proletariado, a participação efetiva dos trabalhadores nos órgãos
governamentais e a criação, por parte do governo, de condições para que as
organizações do proletariado se desenvolvessem de forma plena (DREIFUSS, 1986:
283).
Durante os anos finais da década de cinquenta e início da década de sessenta,
portanto, configurou-se como um momento de efervescência do movimento popular,
tendo os estudantes, os agentes pastorais e membros do clero, assim como militantes
políticos como protagonistas. Contudo, todo esse processo foi alvo da chamada “elite
orgânica”, reunida no complexo IPES/IBAD, conforme explica Dreifuss (1986:283):

“Visando a contrariar os esforços da AP e da UNE, a elite orgânica


desenvolveu uma difícil e dura campanha de contenção e desagregação dirigida
especialmente contra a UNE e também contra sua congênere mais nova, a União
Brasileira de Estudantes Secundários – UBES, bem como contra outras organizações
estudantis de cunho popular, como Juventude Estudantil Católica – JEC, a Juventude
Universitária Católica – JUC e a União Metropolitana de Estudantes – UME.”

Desta forma, fica claro que no momento em que grupos da sociedade brasileira
davam início a um processo de mobilização e conscientização popular, configurando-se
como, possivelmente, o alvorecer da organização popular propriamente dita no seio da
sociedade brasileira, ocorreu uma articulação da elite de forma a impedir todo esse
processo.
38

O Golpe de 64 evidenciou as distinções internas na Igreja Católica no Brasil


pois, um grupo de bispos apoiou a ação dos militares. Isto fica evidente na declaração
escrita pelos bispos membros da CNBB, em junho de 1964:

“Em resposta às expectativas gerais e ansiosas do povo brasileiro, que viu a


marcha acelerada do comunismo na direção do poder, as forças armadas intervieram a
tempo, e impediram o estabelecimento de um regime bolchevique em nosso país... Ao
mesmo tempo em que agradecemos a Deus, que respondeu às preces de milhões de
brasileiros e nos libertou do perigo comunista, estamos gratos, também, aos militares
que, com sério risco de vida, se ergueram em nome dos interesses supremos da nação
(apud LÖWY, 2000: 140).”

O trecho acima mostra o apoio dos membros da CNBB ao golpe, considerando


este um ato de “providência divina”, mesmo com as reformas incentivadas pelo Papa
João XXIII e pelas reflexões desenvolvidas nos debates do Concílio Vaticano II. O
texto demonstra que uma parcela importante da Igreja no Brasil, caminhava em um
sentido contrário ao do clero conciliar.
Por outro lado, muitos militantes cristãos foram radicalmente contrários ao golpe
militar e nos anos seguintes, apesar de esfacelada pelos aparelhos de repressão, a
chamada “esquerda cristã” se inseriu em diversos grupos da sociedade civil, opositores
do regime. Estes cristãos eram leigos, mas também padres, religiosos e religiosas. Como
exemplo desta inserção é possível citar Frei Betto, religioso, membro da ordem dos
dominicanos, que juntamente com outros religiosos, decidiram apoiar a resistência
armada e colaborar com movimentos clandestinos, entre os quais a ALN (Ação para a
Libertação Nacional) – grupo guerrilheiro fundado por Carlos Marighella, líder do
Partido Comunista Brasileiro –, escondendo alguns de seus membros ou ajudando-os a
fugir do Brasil.
A luta dos cristãos da chamada Igreja de base se deu não só nos grupos que se
empenharam na luta armada, mas também nas pequenas comunidades, como fica
evidente no texto abaixo

“Estamos no tempo do Advento, tempo de espera, de preparação ao Natal: para


nós cristãos, Natal não é celebrar um aniversário, algo do passado... É viver um mistério
do presente: Cristo que hoje vem ao mundo, o Emanuel anunciado pelos profetas que
hoje é o Deus conosco, o Salvador que renasce hoje trazendo aos homens amados por
Deus o grande dom da PAZ!
‘Preparai os caminhos do Senhor’ anunciava João Batista na época do primeiro
Advento....
Bem aventurados vós, Coordenadores de Círculo Bíblico, que fareis ressoar,
neste Advento de 1970, a mesma mensagem de João Batista, vivendo e fazendo viver
uma intensa purificação de vida.
39

Bem-aventurados vós, Coordenadores de Círculos Bíblicos, que como Isaías


Profeta, como João Batista, como Maria Santíssima, colaborareis para colocar a
pequena Comunidade Cristã em estado de Advento, ajudando-a a se “encarnar”, a
“assumir totalmente (como Cristo na própria encarnação) as angústias e as esperanças
dos homens de hoje, a fim de oferecer-lhes as possibilidades de uma libertação plena, as
riquezas de uma salvação integral em Cristo, o Senhor”. (Medellín)
Isto, com outras palavras, quer dizer que a vossa pequena Comunidade Cristã
não poderá neste Advento deixar de fazer um esforço para encarnar-se nos problemas de
pobreza, de sofrimento, de salário injusto, de desemprego, de injustiça, de
analfabetismo, que angustiam a comunidade humana. Não seria verdadeiro Advento se
a sua Comunidade Cristã ou Círculo Bíblico, nestes dias não estendesse, de algum
modo, a mão ao Pobre.”

O referido trecho corresponde ao editorial dos roteiros de Círculos Bíblicos do


Vicariato Oeste, do mês de dezembro de 1970. Nele é possível observar a evidente
articulação entre fé e política quando afirma que viver o Advento – período do ano
litúrgico em que os cristãos se preparam para celebrar o nascimento de Jesus –
corresponde a viver as angústias e problemas experimentados pelos pobres, ou seja,
celebrar a encarnação do Cristo, passa necessariamente, pela vivência da realidade
social do povo. O texto sugere que os coordenadores de Círculos Bíblicos seriam os
novos profetas, apresentando, na atualidade, as críticas do sistema vigente e
apresentando a alternativa da nova sociedade – sem desemprego, fome e analfabetismo
–, a qual possibilitaria as condições para a instauração do almejado “reino de Deus”.
O protagonismo do leigo, evidenciado na pessoa do Coordenador de Círculo
Bíblico, constitui-se em outro aspecto de grande relevância no texto. Os Coordenadores
de Círculos Bíblicos são apontados como os profetas da atualidade, coartífices da
História da Salvação, comparados a Isaías (um dos profetas que, segundo os relatos
bíblicos, aparece como denunciador das injustiças sofridas pelo povo hebreu), a João
Batista (que também, segundo os textos bíblicos, corresponde àquele que preparou o
povo para a chegada do Messias) e a Maria (mãe de Jesus, mulher da camada social
mais simples do povo hebreu, que se torna mãe daquele que é visto pelos cristãos como
o Salvador).
A leitura deste texto também nos leva a conceber a ideia de que os
Coordenadores de CB’s, são vistos como aqueles que possibilitam o povo a enxergar na
sua realidade a própria história da salvação em curso. Aqueles, portanto, que têm a
responsabilidade – missão profética – de colaborar para que ocorra o novo advento, o
nascimento do homem novo, liberto da alienação que alimenta o capitalismo
consumista, competitivo e individualista, em uma sociedade nova, livre das estruturas
pecaminosas, geradoras das desigualdades sociais.
40

O que o texto revela de importante também é o fato de que enquanto o regime


militar tem no chamado “milagre econômico” a sua maior propaganda, uma parte da
Igreja Católica faz vir à tona exatamente o contrário, ou seja, a realidade do salário
injusto, do desemprego e do analfabetismo.
Foi no contexto de intensos embates entre parte da Igreja Católica e militares,
que ocorreu um aceno da possibilidade de diálogo entre os membros destas instituições
brasileiras: a Comissão Bipartite.
O objetivo desta comissão era iniciar um diálogo entre estas instituições de
grande peso na sociedade brasileira, as quais sempre foram aliadas ao longo da história
do Brasil, mas que naquele momento encontravam-se em situação de confronto. O
desafio principal era, “conciliar a dura Doutrina de Segurança Nacional com a ênfase
em justiça social adotada pela Igreja durante o Vaticano II”. Esse foi o ponto fulcral da
primeira reunião entre militares e episcopado, ocorrida em 3 de novembro de 1970,
tendo sido organizada por Candido Mendes e o general Muricy (SERBIN, 2004: 33).
Segundo Serbin (2004: 33), este era um tema que preocupava os bispos, os quais
estavam tomados de perplexidade com os ataques do regime militar à Igreja. Esta
preocupação derivava do fato de a maioria do clero ter apoiado o golpe militar contra o
comunismo. Entretanto, os anos seguintes ao golpe foram marcados por um
distanciamento por parte dos militares e um rompimento do diálogo outrora
estabelecido com a Igreja.
Os militares, por sua vez, foram nutridos pela noção de que a Igreja Católica
desconhecia a realidade econômica do país e, em função disso, era utilizada por parte do
“movimento comunista internacional” sem o conhecimento de seus dirigentes. Desta
forma, o episcopado desejava esclarecer a compreensão dos militares em relação ao
envolvimento da Igreja com o ativismo social, considerava que era de difícil
compreensão o relacionamento estabelecido pelos militares entre segurança e
desenvolvimento. Este era um ponto indefinido entre clero e militares e a pergunta feita
por dom Avelar foi, na visão de Serbin, oportuna e fundamental para evidenciar a
intensidade da tensão existente entre estes dois grupos: “onde termina a justiça social e
começa a subversão?”
Essa dificuldade se evidenciava no confronto entre militares e clero no que se
refere à repressão a padres e militantes leigos classificados como subversivos. Os bispos
entendiam que era necessário estabelecer um controle maior sobre o clero e de colaborar
41

com os militares no sentido de evitar situações politicamente delicadas entre as duas


instituições.
Durante o encontro na Casa de Retiro da Gávea dom Aloísio, por exemplo,
considerava importante que a Igreja fosse informada sobre a ação de seus membros,
com o objetivo de promover as “correções necessárias”. Dom Eugênio comentava
sobre a necessidade de valorizar a autoridade, realizando uma conciliação prévia com os
bispos, ou ainda, que estes fossem avisados sempre que possível acerca das medidas e
dos motivos que as determinaram.5
Por outro lado, os militares da chamada linha-dura dirigiram acusações à Igreja,
dizendo que ela penetrava indevidamente no “domínio temporal”, próprio do Estado.
Este grupo de militares foi representado no encontro por Dantas Barreto, que sem
rodeios, expressou o que os militares e muitos brasileiros de visão conservadora
pensavam acerca do papel da Igreja: ela deveria se resumir à sacristia, não interferindo,
portanto, no campo da política (SERBIN, 2004: 35).
Na visão de Serbin (2004: 35), o diálogo entre militares e bispos parecia restrito
ao campo do impossível, especialmente naquele momento de auge do regime militar.
Entretanto, as duas instituições necessitavam de apoio mútuo:

“Os generais queriam a bênção dos bispos ao seu regime, e os prelados queriam a
garantia dos privilégios e do espaço doutrinal concedidos à Igreja, de uma forma ou de
outra, desde o início da história do Brasil. Tanto os generais como os bispos
acreditavam que poderiam modificar as ideologias uns dos outros. O militares
enfatizavam os perigos do comunismo, enquanto a Igreja apontava para a necessidade
de justiça social. Os dois lados se atraíam reciprocamente porque compartilhavam um
profundo compromisso com a fé católica e uma preocupação quanto aos danos nas
relações entre a Igreja e o Estado. Apesar de tudo que havia acontecido desde 1964, em
novembro de 1970 eles ainda esperavam que a Igreja e as Forças Armadas pudessem
recompor seus laços e colaborar para o progresso do Brasil.”

A citação faz-se necessária pois elucida o grau de complexidade da relação entre


militares e Igreja Católica. Os dois grupos tinham consciência do grau de influência que
exerciam na sociedade brasileira. Ambos tinham consciência também das grandes
lacunas que os distanciavam naquele momento. Entretanto, as animosidades poderiam
ser superadas, na medida em que um espaço para o diálogo cordial fosse aberto, daí a
importância de tal encontro.

5
Trecho extraído do relatório sobre o 1º Encontro ‘Bipartite’, FGV/CPDOC, ACM, rolo 1, doc. nº 906, p.
2. Apud. Serbin, 2004: 34. Grifos nossos.
42

A análise de Serbin não se prende ao acontecimento em si, nem mesmo ao


aparato documental por ele analisado, mas procura observar as pessoas envolvidas no
processo por ele estudado. Os participantes dessa comissão partilhavam do mesmo
círculo de convivência, possuíam gostos semelhantes, uma erudição própria de um
conhecimento acadêmico adquirido em grandes universidades, além de serem membros
de famílias tradicionais.
O general Muricy era intelectual bem formado, apreciava música clássica e era
extremamente religioso, guardando apresso profundo pelos bispos. Já Tarcísio Meirelles
Padilha, um filósofo católico que começa a ganhar destaque no Brasil e no exterior, era
filho de um influente funcionário público, enquanto que seu falecido irmão era um
homem de destaque na imprensa nacional. Candido Mendes tinha em seu bisavô um
destacado senador, cuja esposa e filho foram “agraciados” com um título papal de
nobreza, o qual, apesar de herdado, ele nunca o usou. Tornara-se um brilhante
acadêmico, advogado e político.
Em relação aos bispos imbuídos de iniciar o difícil diálogo, é possível afirmar
que todos vivenciaram as benesses próprias da elite brasileira. A maioria teve formação
em Roma e em outros locais da Europa. Eram homens de costumes sofisticados,
cosmopolitas, acostumados com “os corredores do poder no Vaticano e no Brasil”. Em
1970, dom Eugênio e dom Vicente tornaram-se cardeais – o que os deixava
imediatamente abaixo do papa na hierarquia católica. (SERBIN, 2004:47)
Este aparte, em relação a dados biográficos de alguns membros da comissão
Bipartite, pode revelar que seus membros faziam parte das esferas de poder de nossa
sociedade e, de certo modo, partilhavam um mesmo habitus de classe que poderia tornar
concreta a ideia de um diálogo entre os mesmos.6
Como contraponto à tentativa de diálogo, os anos setenta no Brasil foram
marcados por duas situações extremas. De um lado o país vivia a euforia do “milagre”
econômico, de outro, a classe trabalhadora experimentava uma fase de intensa
exploração de seu trabalho e de forte repressão por parte do regime. O governo militar
manteve rígido controle sobre a política, a liberdade civil e a imprensa. Muitos que

6
O conceito de habitus, formulado por Pierre Bourdieu (2007), corresponde ao conjunto de valores,
regras, gostos e convenções assimilados pelos sujeitos sociais no decorrer do seu processo de
socialização. O habitus é composto pelas vivências passadas e age como um manancial de percepções,
apreciações e formas de agir na sociedade. É fornecedor de esquemas fundamentais para a intervenção na
sociedade e, normalmente, é adquirido na escola.
43

faziam oposição ao regime foram torturados e mortos, dentre os quais muitos militantes
católicos.
Este período foi marcado também por um número expressivo de padres, freiras,
bispos e militantes leigos que foram submetidos a maus-tratos por parte dos militares.
Sete clérigos foram assassinados. A CNBB se colocou como “a voz dos que não têm
voz”, defendendo as pessoas vitimadas pela tortura, além dos pobres.
A crítica pública da Igreja acerca das prisões, torturas e mortes realizadas pela
ditadura militar brasileira ganhou a esfera internacional. E, segundo Serbin (2004: 48),
essa crítica foi de fundamental importância e funcionou como o marco iniciador do
Brasil Moderno. Ela não estava restrita ao nosso país, como também foi importante para
toda a América Latina, já que nesta região a Igreja Católica construiu seu poder,
privilégio e influência social e política aliando-se aos grupos das elites dos diversos
países e, obviamente, apoiando o status quo vigente. Nos anos setenta, então, no dizer
do brasilianista Scott Mainwaring (apud SERBIN, 2004: 48), a Igreja Católica,
colaborou para a derrubada do regime por meio de sua legitimidade moral.
A Igreja Católica, como já mencionamos anteriormente, vivenciou nos anos
setenta um crescimento da ação pastoral, padres e freiras se espalharam pelo meio rural
e pelas cidades a fim de formar as Comunidades Eclesiais de Base e a motivar a
formação de pastorais sociais – foi nesta década que foi fundada a Pastoral de Favelas
na cidade do Rio de Janeiro. Surgiram também a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o
Conselho Indigenista Missionário (CIMI), os quais exerceram forte pressão sobre o
poder público em prol da reforma agrária e do respeito e preservação das nações
indígenas e suas reservas. As primeiras publicações dos teólogos da libertação vieram a
público e nascia a chamada “Igreja progressista”, a qual ganhou impulso ainda maior
por ocasião da formulação da “opção preferencial pelos pobres”, durante a Conferência
Episcopal de Puebla, no México, em 1979.
Enquanto setores da Igreja Católica empunhavam as bandeiras da reforma
agrária, dos direitos humanos e da defesa dos pobres, esta mesma instituição se
dedicava a fazer política de bastidores com os militares de alto escalão do país. A
descoberta do material que prova a existência desta comissão abre caminho para novas
interpretações acerca das estratégias tanto do governo brasileiro quanto da Igreja
Católica do país (SERBIN, 2004: 51).
Por outro lado, se a década de 80 é marcada pela ascensão dos movimentos de
encontro, como foi mencionado anteriormente, a chamada “Igreja do povo”, também se
44

prolifera nas periferias das grandes cidades, assim como no meio rural, através dos
grupos de Círculos Bíblicos, os quais serão tratados no terceiro capítulo deste trabalho.
Capítulo 2

Poder Público e CNBB: dois projetos habitacionais antagônicos

URBANIZA-SE? REMOVE-SE?
São 200, são 300
as favelas cariocas?
O tempo gasto em contá-las
É tempo de outras surgirem.
800 mil favelados
ou já passa de 1 milhão?
Enquanto se contam, ama-se
em barraco e a céu aberto,
novos seres se encomendam
ou nascem à revelia.
Os que mudam, os que somem,
os que são mortos a tiro
são logo substituídos.
Onde haja terreno vago
onde ainda não se ergueu
um caixotão de cimento
esguio (mas se vai erguer)
surgem trapos e panelas,
surge fumaça de lenha
em jantar improvisado.

Urbaniza-se? Remove-se?
Extingue-se a pau e a fogo?
Que fazer com tanta gente
brotando do chão, formigas
De um formigueiro infinito?
Ensina-lhes paciência,
conformidade, renúncia?
Cadastrá-los e fichá-los
para fins eleitorais?
Prometer-lhes a sonhada,
mirífica, rósea fortuna
distribuição (oh!) de renda?
Deixar tudo como está
para ver como é que fica?
Em seminários, simpósios,
comissões, congressos, cúpulas
de alta prosopopéia
elaborar a perfeita
e divina decisão?

Um som de samba interrompe


tão sérias indagações
e a cada favela extinta
ou em bairro transformada
com direito a pagamento
de COMLURB, ISS, Renda,
outra aparece, larvar,
46

rastejante, insinuante,
grimpante, desafiante
de gente qual gente: amante,
esperante, lancinante...
O mandamento da vida
Explode em riso e ferida.

Carlos Drumond de Andrade


“Crônica das Favelas Nacionais”,
Jornal do Brasil, 6/10/79.

A crônica que inicia este capítulo define de maneira muito clara a situação da
população favelada do Rio de Janeiro em fins da década de 1970. Apesar de ter sido
escrita após o auge do período conhecido como a “era das remoções”7, a crônica
expressa o sentimento, ainda presente no imaginário dos moradores que viveram os
anos de repressão exercida pelo governo. O auge deste período compreendeu os anos
entre 1964 e 1977. Contudo, mesmo a política de remoções ter sido deixada de lado,
cabe questionar: por que dos moradores se sentiam ainda inseguros em relação ao poder
público?
Na tentativa de responder a esta questão consideramos oportuno retroceder no
tempo e analisar o início da chamada questão habitacional em nosso país.
No livro “O que é Questão da Moradia” (RIBEIRO e PECHMAN, 1985), os
autores consideram que a questão habitacional no Brasil se forma em um contexto de
consagração da sociedade capitalista, marcado de um lado, por uma profunda
desigualdade de renda, determinada pela economia e, por outro, pelas características do
mercado imobiliário, que impõe elevados índices de preços dos imóveis, inviabilizando,
portanto, o acesso à habitação por aqueles que não possuem condições financeiras para
comprá-lo.
Na visão destes autores, a questão da moradia no Brasil possui como principais
traços, os preços elevados dos imóveis, as condições precárias das habitações e a
segregação das classes sociais, os quais estão intimamente ligados à estruturação do
sistema capitalista no país. O que nos leva a concluir, concordando com os autores, que
o problema de falta de moradia não pode ser justificado com a existência de uma
defasagem entre a oferta e a procura das mesmas, que resulta em uma elevação dos

7
Expressão utilizada por Mario Brum e outros autores que se dedicam ao tema da questão habitacional no
Rio de Janeiro. O auge deste período corresponde ao anos de 1964 e 1973.
47

preços dos imóveis, ao ponto de excluir os indivíduos das camadas mais pobres da
possibilidade de aquisição de habitação.
Na verdade, seguindo o raciocínio dos autores, em uma sociedade capitalista, o
que determina a demanda de um bem, é somente a “demanda solvável”, aquela
determinada pelos indivíduos que reúnem condições de pagarem por este bem
(RIBEIRO e PECHMAN, 1985: 9). O valor do mesmo é determinado, então, pela
possibilidade de lucro que oferece, e não pela importância que este possui para a
garantia de vida digna dos seres humanos. É neste contexto que a questão da moradia
torna-se, portanto, uma luta social, uma luta dos que estão à margem do direito à
habitação (CARVALHO FILHO, 2009).

2.1. A Política Habitacional durante o Regime Militar

A política habitacional no Brasil se constitui como o espaço da acumulação e da


miséria. Esta constatação feita por Maricato, resulta de seu estudo sobre a questão
habitacional durante o regime militar. Na sua visão (MARICATO, 1987: 29), a
intervenção estatal na política relativa à habitação se caracterizou pelo domínio estatal
das instâncias ligadas diretamente ao Sistema Financeiro de Habitação (SFH), assim
como de parte daquilo que se pode designar como provisão informal de habitações –
dentre muitas estão a autoconstrução, a favela, assim como o loteamento clandestino.
Dentro da política habitacional brasileira no período em destaque, a forma
predominante de obtenção de moradia era a casa própria, já que não havia subsídio
disponível para a moradia proletária. Desde 1965, chegando até meados da década de
1970, as experiências de moradias subsidiadas não corresponderam quantitativamente às
necessidades da sociedade, além de terem resultado em frequentes fracassos
(MARICATO, 1987:29).

2.2 A Criação do Sistema Financeiro de Habitação e do Banco Nacional de


Habitação

Após a queda do presidente João Goulart, estabelecida pelo Golpe Militar de


1964, foi criado no Brasil o Sistema Financeiro de Habitação (SFH) e, concomitante a
este, o Banco Nacional de Habitação (BNH), cuja função era a de “estimular a
construção de habitações de interesse social e o financiamento da aquisição da casa
48

própria, especialmente pelas classes da população de menor renda”8. Tais agências


contaram, segundo Botega (2008:13), com 1 bilhão de cruzeiros antigos para a
sustentação inicial, além de 1% da folha salarial submetida à Consolidação das Leis
Trabalhistas do Brasil, o que caracteriza garantia de crescimento e, ainda, a constatação
de que a questão da moradia popular se constituía, naquele momento, como algo
fundamental para o governo de Castelo Branco (BRUM, 2012; BOTEGA, 2008;
GONÇALVES, 2013).
Segundo Botega (2008:5) mesmo autor, o SFH teve, em 1967, quando o Brasil
já estava sob a presidência de Costa e Silva, uma ampliação de sua importância, em
função do BNH ter recebido a função de gestor dos depósitos do Fundo de Garantia por
Tempo de Serviço (FGTS)9. Ao mesmo tempo, com implantação do Sistema Brasileiro
de Poupança e Empréstimos (SBPE), o que possibilitou um relevante aumento do
capital do banco, tornando-o uma das maiores instituições financeiras do Brasil, ficando
apenas atrás do Banco do Brasil.
No entanto, Gabriel Bolaffi (1975:53), ao analisar o segundo relatório anual do
BNH, datado de 1971, conclui que

“‘os recursos utilizados pelo Sistema Financeiro de Habitação só foram suficientes para
atender a 24 por cento da demanda populacional’ (urbana). Isto significa que, seis anos
após a criação do BNH, toda a sua concentração para atender ou diminuir o déficit que
ele se propôs eliminar constituiu em que esse mesmo déficit aumentasse em 76 por
cento. De acordo com as previsões do BNH, em 1971 o atendimento percentual teria
sido de 25,3 por cento e, embora deva aumentar ligeiramente em cada ano até 1980, o
déficit deverá exceder 37,8 por cento do incremento da necessidade.”

A citação é clara com relação ao fato de o BNH não atingir, logo de início,
aquele que deveria ser seu maior objetivo “estimular a construção de habitações de
interesse social (...) especialmente pelas classes da população de menor renda”.
Contudo, para entender exatamente a raiz da inoperância do SFH/BNH é preciso
recorrer exatamente ao texto da lei, o qual, em seu Artigo 3º, determina que

“os órgãos federais enumerados no artigo anterior exercerão de preferência atividades


de coordenação, orientação e assistência técnica e financeira, ficando reservados: (...) à
iniciativa privada, a promoção e execução de projetos de construção de habitações
segundo as diretrizes urbanísticas locais.”10

8
Lei nº 4380/64 de 21 de agosto de 1964.
9
Fundo criado em 1967 pelo governo federal, que corresponde a depósitos compulsórios de 8% do salário
pago ao trabalhador regido pela CLT, que o trabalhador tem direito a reaver em caso de demisão sem
justa causa. É possível ainda, que a quantia do FGTS seja usada para a aquisição de imóvel para moradia.
10
Lei nº 4380/64 de agosto de 1964.
49

O trecho deixa evidente a reflexão de Botega quando afirma que o BNH surgiu
com a finalidade transmitir suas funções para a iniciativa privada. Ou seja, o BNH tinha
a função de arrecadar os recursos financeiros e, depois disso, transferi-los para os
agentes privados intermediários. O autor salienta que algumas medidas expressavam
tanto uma preocupação com o planejamento das ações urbanísticas, quanto interesses
relativos ao capital imobiliário. Cita como exemplo a medida que determinou que as
prefeituras deveriam elaborar planos de urbanização para os municípios, o que, a
princípio, se constituía como algo positivo. Contudo, a condição básica para a aquisição
do empréstimo junto ao Serviço Federal de Habitação e Urbanismo era de que tais
projetos deveriam ser formulados por empresas privadas. Não só o projeto, mas também
a cobrança das prestações devidas deveria ser dirigida a um conjunto de agentes
privados (companhias habitacionais, assim como iniciadores e sociedades de crédito
imobiliário) que retinham uma parcela dos juros e dos recursos financeiros advindos das
prestações recebidas ao longo de um ano, antes de os repassarem ao BNH (BOLAFFI,
apud, BOTEGA, 2008:15).
Desta forma, o SFH/BNH foi um instrumento importante para a movimentação
da economia nacional e do capital imobiliário brasileiro, afastando-se de seu suposto
objetivo principal, que era o de estimular as políticas habitacionais com vias a vencer o
déficit de moradia. (BOTEGA, 2008: 07)
Na verdade, vencer o déficit da moradia não era, segundo Gabriel Bolaffi, o
objetivo do BNH. Bolaffi (1982:47) defende que
“tudo indica (...) que o ‘problema da habitação’ (...) apesar dos fartos recursos que
supostamente foram destinados para a solução, não passou de um artifício político
formulado para enfrentar um problema econômico conjuntural”.

Na verdade, vencer o déficit da moradia no país não era exatamente o objetivo


do SFH/BNH. Segundo Ermínia Maricato (1987:30)

“O SFH possibilitou a capitalização das empresas ligadas à provisão de habitações,


permitiu a estruturação de uma rede de agentes financeiros privados, permitiu a
realização do financiamento do consumo. O longo tempo de giro do capital na produção
e o longo tempo de circulação da mercadoria habitação foram aliviados por meios da
entrada de recursos. A política de concentração da renda levada a efeito durante o
período assinalado (1968-1980) viabilizou a ampliação de um mercado imobiliário para
a provisão de residências de tipo capitalista.”
50

A citação é útil para tornar ainda mais clara a ideia de que a questão habitacional
no Brasil, foi caracterizada pela forte intervenção do Estado, efetivada através do
Sistema Financeiro de Habitação e do Banco Nacional de Habitação. Os dois órgãos,
criados durante a fase inicial da Ditadura Militar, foram fundamentais para o
fortalecimento do mercado imobiliário e da indústria da construção no país, bem como
possibilitaram a construção de um contingente significativo de habitações voltadas,
basicamente, para as classes média e alta.
Por outro lado, a ausência do Estado em relação às camadas de baixa renda da
população brasileira revela, na visão da autora, a outra face da questão habitacional no
Brasil: “o da ilegalidade, dos loteamentos clandestinos, da irregularidade das
construções, das invasões de terras, das favelas, dos cortiços, do sobretrabalho na
autoconstrução, do congestionamento habitacional, da promiscuidade, da
insalubridade, etc”.(MARICATO, 1987:87)
No início da década de 70 corresponde a um período em que o BNH passou a
investir fortemente em obras de infraestrutura urbana e em obras de importância
nacional. Os investimentos do BNH foram voltados, em sua grande maioria, para três
clientes. As grandes empresas de construção pesada, as quais foram responsáveis pelo
direcionamento da política habitacional no país. As prefeituras, assim como as empresas
estatais. Isso garantiu o domínio do mercado pelas grandes empresas, reforçado pelo
caráter centralizador dos recursos, exercido pelo BNH. Este quadro permitiu, por
exemplo, que pequenas obras se transformassem em empreendimentos faraônicos, além
de a tecnologia e a ideologia que fundamentaram os projetos fossem caracterizadas pelo
autoritarismo, próprio do regime, o qual viabilizou a formulação do capital das grandes
empresas de construção (MARICATO, 1987: 88).
Posteriormente, em meados dos anos 70, o BNH tenta uma mudança em sua
atuação, procurando viabilizar o financiamento de habitações. Apesar de não se
constituir em uma mudança radical na orientação da política da instituição, observa-se
pela primeira vez em sua história, a construção massiva de moradias, com o uso de
novas tecnologias, as quais permitiram maior produtividade (MARICATO, 1987: 89).
Contudo, a autora reconhece que o crescimento do movimento popular,
principalmente no contexto da abertura política do país, correspondeu a um motivo
relevante para a tentativa de mudança de rumo da atuação do BNH e é esta a questão
central de nosso trabalho.
51

2.3 A Política Habitacional no Estado do Rio de Janeiro durante o Regime Militar

Para um melhor entendimento acerca da questão habitacional no Rio de Janeiro


no período do Regime Militar é preciso recuar um pouco no tempo já que anos antes à
queda do presidente João Goulart, já se delineava aquilo que foi a tônica do período
militar: a chamada “era das remoções” (ver: VALLA, 1986; BRUM, 2012).
Segundo estudo já mencionado (BRUM, 2012), as políticas voltadas para o tema
favela fizeram parte da agenda dos governos desde o Estado Novo. Isso se deve mesmo
em função do tema – este visto como um problema a ser resolvido – ter ganho destaque
devido à urbanização, fruto da industrialização crescente a partir dos anos de 1930 e
1940.
Em função desta realidade, desde meados da década de 40 até 1960, ocorreu a
criação de diversos órgãos, além de inúmeras medidas relacionadas à questão das
favelas. Todas estas iniciativas tiveram a participação integral ou parcial do Estado. A
Fundação da Casa Popular e a Fundação Leão XIII são alguns dos exemplos de
iniciativas tomadas naquela época na tentativa de resolver o “problema” da favela.
O governo de Carlos Lacerda, no então Estado da Guanabara11, foi marcado pela
forte intervenção do Estado nas favelas. Em um primeiro momento marcado pela
urbanização, já num segundo, pela sua remoção. Ainda no período de campanha
eleitoral, Carlos Lacerda defendeu a ideia de urbanização das favelas, baseando-se nas
propostas do sociólogo José Arthur Rios12, o qual seria responsável desta área em seu
governo.
Arthur Rios defendia que as favelas deveriam ser urbanizadas contando com a
participação dos seus moradores, a qual deveria ocorrer por meio de associações de
moradores13. A organização de associações era algo fundamental pois, por meio destas,
os moradores teriam a oportunidade de reivindicar obras a serem feitas, além de

11
Após a transferência da capital da República para Brasília, o Rio de Janeiro deixa de ser capital e passa
à condição de Estado da Guanabara.
12
Vale ressaltar que José Arthur Rios foi influenciado em suas ideias pelo pensamento do Pe. Lebret, um
dos formadores da JUC.
13
É importante esclarecer que as associações de moradores tiveram início no Rio de Janeiro ainda na
década de 1940. Elas, segundo Mario Brum (BRUM, 2006: 54) surgiram em função de ações
governamentais direcionadas à população favelada. Fossem elas ações de cunho repressivo ou
paternalista, colaboraram para a formação da identidade do favelado, este visto até então, como algo a ser
removido, torna-se um ator social que luta por seu espaço na cidade, não aceitando passivamente a
remoção. As associações de moradores nasceram com o objetivo de ser um instrumento de mobilização
dos moradores de favelas em prol do direito à moradia. O contexto pós II Guerra Mundial e a abertura
política vivida com o fim do Estado Novo, foram fatores que incentivaram a organização da população
favelada no sentido de evitar a remoção e de ter seu direito à moradia garantido.
52

participarem com propostas e até mão de obra para a urbanização local. O projeto de
Rios se concretizou por meio do programa “Operação Mutirão”, o qual se baseava nos
princípios de desenvolvimento e autoajuda da comunidade. Essas duas primícias se
constituíam no centro do projeto, pois segundo seu idealizador, era preciso romper com
a dependência dos favelados em relação ao poder público.(BRUM, 2012: 57)
Este projeto contaria ainda com os recursos vindos do chamado “Fundo do
Trigo”14. Em entrevista citada por Mario Brum (BRUM, 2012: 58), Rios esclarece que
foi muito procurado por inúmeros políticos, interessados nos recursos que seriam
repassados pelo fundo. O autor, seguindo estudos anteriores (LEEDS & LEEDS, 1978),
aponta que o modelo de urbanização desenvolvido por Rios se chocava com os
interesses imobiliários devido a diversos fatores, dentre os quais é possível destacar: a
não remoção de favelas assentadas em locais valiosos, os quais poderiam ser utilizados
para grandes empreendimentos; a lógica de mutirão descartava a necessidade de
empréstimos junto a agências internacionais; além de não haver a ocorrência de nenhum
projeto de construção de novas habitações, que fosse de grande porte.
Segundo Valla (1986: 89), inúmeras mudanças de âmbito político e
administrativo ocorrem no estado da Guanabara, dentre as quais, o fim do SERFHA15,
cujas atribuições passaram para o Serviço Social das Favelas e para o Departamento de
Recuperação de Favelas.
Em substituição ao SERFHA foi criada, posteriormente, da Secretaria de
Serviços Sociais do Estado da Guanabara, tendo à frente Sandra Cavalvanti. A partir de
então, a política habitacional no estado da Guanabara toma novos rumos,
caracterizando-se pelo incremento da política de remoções de favelas do Rio de Janeiro
(BRUM, 2012: 58). Criada como órgão do executivo do Estado, a referida secretaria
passaria a controlar o conjunto de instituições estatais e semiestatais relacionadas às
favelas, descaracterizando a relação Estado/população favelada, existente no período do
SERFHA, que se baseava na mobilização comunitária (VALLA, 1986: 89).
Com a assinatura do Acordo do Trigo, ocorrida dias após a demissão de José
Artur Rios, o Estado da Guanabara recebia recursos significativos. Vários
14
Segundo Mario Brum o Fundo do Trigo corresponde a um acordo feito entre o governo do Estado da
Guanabara e a USAID (agência de desenvolvimento externo norte-americana). O Brasil compraria trigo
dos Estados Unidos e o dinheiro recebido seria reaplicado no Brasil em projetos de desenvolvimento, por
meio de empréstimos.
15
SERFHA (Serviço Especial de Recuperação de Favelas e Habitações Anti-Higiênicas) foi criado em
fins de 1956, inicialmente sem recursos, atuou como apoio à Fundação Leão XIII e à Cruzada São
Sebastião. Posteriormente, o órgão ganha autonomia e, sob a direção de José Artur Rios, inicia-se uma
política de urbanização das favelas, já mencionada no texto.
53

compromissos foram firmados no âmbito da promoção do espaço urbano, voltado para


as camadas menos favorecidas. Mario Brum (2012:58) cita “a urbanização da favela da
Vila da Penha; melhoria de 35 favelas do Rio de Janeiro; a construção de casas
populares em Bangu e Botafogo; a construção de um posto médico em Madureira”.
Além dos compromissos elencados, outra mudança importante foi feita. A
Fundação Leão XIII, passa a fazer parte do Estado, sendo integralmente pelo poder
executivo. Segundo Gonçalves (2013: 215), ela teve papel fundamental no apoio à
política de remoção (GONÇALVES, 2013: 215).
Vincent Valla (1986:90) afirma que

“A mudança em algumas instituições e a criação de outras criaram a base


institucional para a execução de uma estratégia de controle autoritário dos moradores de
favelas pelo Estado – levada a cabo pelo então Governo Lacerda. De uma certa forma a
relação Estado/favelas que se estabeleceu entre 1962 e 1965 foi uma antecipação da que
viria a partir de 1969 até 1973. Pode-se dizer que o Governo Lacerda expressou mais
diretamente os interesses do empresariado imobiliário e financeiro, da cúpula da Igreja
católica carioca e dos setores conservadores das camadas médias.”

A citação acima demonstra, na nossa visão, que os grupos de elite buscam


estabelecer estratégias de controle sobre a população pobre, com o objetivo de frear uma
organização que se construía ao longo de anos, assim como retirá-la de uma área
“destinada” à concretização dos interesses imobiliários. O trecho é bastante elucidativo,
já que aponta uma articulação de grupos da elite estadual, os quais estariam, logo em
seguida, apoiando o golpe militar e viam as favelas como um mal a ser sanado.
O governo de Carlos Lacerda também, em dezembro de 1962, criou a
Companhia de Habitação Popular do Estado da Guanabara (COHAB-GB). Os autores
(BRUM, 2012; GONÇALVES, 2013) argumentam que a criação da COHAB-GB foi
uma disputa política com o presidente João Goulart, que criou o Conselho Nacional de
Habitação. Lacerda concedeu à Cohab-GB um status jurídico de “empresa de economia
mista”16, sendo controlada majoritariamente pelo Estado. Com este status a companhia
tinha, por exemplo, o direito de negociar a compra e a venda de bens imobiliários sem
sofrer as restrições legais impostas à administração direta. Este fato foi de fundamental
importância para a atividade desta empresa, que passou frequentemente a comprar

16
O capital privado detinha 49% da COHAB, os quais eram pertencentes ao grupo político de Lacerda, na
pessoa do vice-governador Raphael de Almeida Magalhães (que a cumulava o cargo de secretário de
Planejamento) e de Flexa Ribeiro, genro de Lacerda e secretário de Educação. Fonte:LACERDA, Carlos.
Depoimento. Rio de Janeiro:Nova Fronteira, 1987 (apud LIMA, Nísia Trindade. “O movimento de
favelados do Rio de Janeiro: políticas de Estado e lutas sociais (1954-73)”. Dissertação de Mestrado em
Ciência Política – Rio de Janeiro:IUPERJ, 1989. Também citado por Mario Brum em Cidade Alta....
54

grandes extensões de terras, com o intuito de revendê-las sob a forma de pequenos lotes.
Isso lhe conferiu o papel de grande responsável pela construção de conjuntos
habitacionais no Rio de Janeiro. Esta ação se deu inicialmente em função dos recursos
provenientes do Fundo do Trigo, do artigo 66 da Constituição do estado da Guanabara,
além dos altos recursos advindos do Banco Nacional de Habitação, criado em 1964
(GONÇALVES, 2013: 216).
No ano de 1964, Carlos Lacerda instituiu a Comissão Executiva do
Desenvolvimento Urbano do Estado da Guanabara (Cedug), com a tarefa de prestar
auxílio ao escritório de arquitetura Doxiadis Associates, contratado pelo Estado para
elaborar um novo plano urbanístico para o Rio de Janeiro. Segundo Gonçalves (2013:
217), tal plano deu prioridade ao aspecto estético. Sendo assim, idealizou um espaço
urbano mais moderno e eficaz, se aproximando do modelo da América do Norte,
procurou mensurar as necessidades da cidade em suas diversas áreas e planejando as
intervenções no espaço público com vias no futuro. Segundo este plano, era necessário
urbanizar algumas favelas e só concordava com a remoção da favela desde que seus
moradores fossem para locais próximo ao seu local de trabalho e aos meios de
transportes urbanos. O plano propunha ainda, a oferta de moradias e de incentivos à
construção civil, além da difusão da propriedade privada nas camadas sociais mais
baixas, com a finalidade de incentivar “a responsabilidade dos indivíduos e a
estabilidade social”. O plano Doxiadis foi desenvolvido entre os anos de 1964 e 1965,
na fase final do governo Lacerda, mas não foi adotado por seu sucessor (e opositor
político) Negrão de Lima.
Contudo, se o nome de Carlos Lacerda nos remete ao período inicial das
remoções, o nome Sandra Cavalcanti, povoa a memória popular da fase em que a lógica
das remoções foi consagrada no Rio de Janeiro. À frente da Cohab, Sandra Cavalcanti
intensificou o processo de remoções de favelas para locais da periferia da cidade,
demonstrando o lado mais elitista e, por que não dizer, sombrio desta lógica.17

17
É importante ressaltarmos que o contexto de início da década de 1960 foi marcado também pela
organização de entidades ligadas aos interesses dos moradores de favelas, em especial, a Federação de
Associações das Favelas do Estado da Guanabara (FAFEG). Criada em julho de 1963, a referida
federação surgiu a partir, segundo Mario Brum (2012: 66), do contato travado entre os representantes de
favelas que fizeram parte de reuniões organizadas pela Coordenação de Serviços Sociais, o que se
configurou ainda como uma influência da gestão de Artur Rios, enquanto este estava à frente desta
instância governamental. Longe de ser uma entidade homogênea, pois foi composta por diversos grupos
políticos, dentre os quais podemos citar os comunistas, as lideranças vinculadas à Ação Católica Operária
e, ainda, aqueles ligados a Carlos Lacerda, a FAFEG reuniu inicialmente cerca de 20 associações.
Contudo, a entidade sofreu as consequências da Ditadura Militar comum aos movimentos sociais
organizados na época, sendo alvo de repressão e perseguição de muitos de seus líderes. Com a extinção
55

Desde o seu início, o discurso recorrente na COHAB era o de que a solução para
as favelas do Rio de Janeiro seria sua remoção. Em anos anteriores ao Golpe de 64,
durante o governo Lacerda, ocorreram diversas remoções realizadas em áreas destinadas
às obras do governo estadual como, por exemplo, as favelas removidas para a
construção do Mercado São Sebastião, na Avenida Brasil, ou ainda, a remoção da favela
do esqueleto, para a construção da Universidade do Estado da Guanabara (atual UERJ)
(BRUM, 2012: 61).
Contudo, num momento posterior as remoções passam a objetivar diretamente o
esvaziamento de áreas destinadas ao mercado imobiliário. A remoção da favela do
Pasmado, em 1964, é um exemplo desta fase, com os recursos adquiridos com a venda
de terrenos servindo para a continuidade do programa de remoção. Mario Brum (2012:
61) cita um depoimento de Sandra Cavalcanti bastante elucidativo sobre esta questão:
“Tivemos que remover algumas favelas. Removemos até algumas que existiam em
terrenos muito valorizados, onde fazer casinhas populares representava um tamanho
desperdício que seria um crime contra o pobre.”18
O depoimento é revelador dos planos do governo em relação à questão
habitacional, a qual era vista como um caso de dividir a cidade em duas áreas, uma para
as classes mais abastadas e outra para os pobres, ou seja, um caso de exclusão social.
Após a remoção da favela do Pasmado demarca então, a fase de remoções compulsórias
para conjuntos construídos com verbas da Aliança para o Progresso19. Um bom
exemplo desta política é a Vila Kennedy, que recebeu o nome como homenagem ao seu
financiador. O discurso veiculado na imprensa era de que a Vila Kennedy correspondia
ao início de uma revolução social no país, já que os antigos favelados para lá
removidos, receberiam um espaço com “escolas, serviço social e condições de higiene”.
Assim como o Pasmado, outras favelas foram removidas durante o ano de 1964.
Mario Brum (2012: 62) especifica que foram removidas totalmente as favelas:
“Pasmado, Getúlio Vargas; Maria Angu; João Cândido; Maneta; Vila do Sase”. As
favelas que foram parcialmente removidas foram: “Conjunto São José; Macedo
Sobrinho; Del Castilho; Marquês de São Vicente; Ladeira dos Funcionários”. Em

do Estado da Guanabara, a entidade passa a ser denominada Federação das Associações das Favelas do
Estado do Rio de Janeiro (FAFERJ).
18
Sandra Cavalcanti em entrevista realizada em setembro de 2000, a Carlo Eduardo Sarmento e Marly
Motta.
19
Consistiu em um programa de cooperação, financiado pelos EUA, cujo objetivo era o de incrementar o
desenvolvimento socioeconômico da América Latina, freando a influência da URSS na região. Ele foi
desenvolvido no início dos anos 60 e direcionou verbas não só para projetos no Brasil, mas também em
outros países da América Latina, com exceção de Cuba.
56

1965, foram totalmente removidas: “Rio Joana; Esqueleto. Foram removidas


parcialmente em 1965: “Turano; Morro do Quieto; Praia do Pinto e Brás de Pina”.
Somando, 6.290 famílias removidas durante o governo Lacerda, de janeiro de 1964 até
julho de 1965.20
As remoções implicavam em aumento nos gastos das famílias, já que, uma vez
ocupando uma moradia nos conjuntos, era preciso pagar à COHAB prestações mensais.
Aquelas famílias que não tivessem recursos para arcar com as prestações, iriam para as
casas de triagem, denominadas Centros de Habitação Provisória, como foi o caso de
Nova Holanda (BRUM, 2012: 62).
No ano de 1968 foram criados dois órgãos voltados para resolver o “problema”
das favelas no Rio de Janeiro: a CODESCO e a CHISAM. A CODESCO (Companhia
de Desenvolvimento de Comunidade), foi criada em março de 68, como resposta às
pressões feitas pela USAID21, com a tarefa de “promover a integração dos aglomerados
subnormais na comunidade normal adjacente”. (BLANK, 1980: 103 apud
VALLADARES, 1980)
Em maio de 1968 foi criada a CHISAM (Coordenação de Habitação de Interesse
Social da Área Metropolitana), ligada ao Ministério do Interior e ao BNH. O órgão se
constituiu no responsável pelas grandes remoções no Rio de Janeiro, até 1973.
Na visão de Valla (1986: 99),

“a CHISAM seria uma resposta do Governo federal à proposta da CODESCO,


pois essa iniciativa não favorecia nem o BNH e a indústria da construção civil, nem as
companhias de poupança, crédito e finanças. Se prevalecesse a orientação estadual
(CODESCO), permaneceria a ocupação de terras valiosas da zona sul do Rio de Janeiro.
E ainda mais: a CHISAM seria um exemplo de como resolver a ordem espacial urbana
em outras cidades brasileiras, selecionando, previamente, áreas para as classes altas e as
classes baixas. Assim, as remoções teriam o duplo significado de abrir novos espaços
físicos para construir e, simbolicamente, de livrar os mais abastados da confrontação
diária com a miséria das favelas.”

Com esta citação fica clara a intenção do governo com a criação do órgão. Ela
expressa exatamente a visão predominante na época em relação aos moradores das
favelas, como indivíduos alienados da sociedade em função de sua moradia, além de
serem indivíduos que, pelo fato de não pagarem impostos, não desfrutariam dos
benefícios do serviço público, ou ainda, que os moradores de favelas precisariam de

20
Jornal do Brasil, 29/09/1968.
21
A USAID (Agência para o Desenvolvimento Internacional dos Estados Unidos), segundo Valla (1986:
94) consistia em uma estratégia, de âmbito internacional, que reunia diversas instituições norte-
americanas, com o objetivo de desenvolver práticas de caráter assistencial, em países periféricos.
57

uma reabilitação social, moral, econômica e sanitária. Daí a necessidade da remoção do


lugar insalubre onde viviam (VALLA, 1986: 99).
A atuação da CHISAM resultou, no período entre 1968 e 1973, na remoção de
50 favelas e mais de 90.000 moradores, sendo que a maioria destas se localizava na
zona sul do Rio de Janeiro (VALLA, 1986: 99).
Vale ressaltar o caráter imperioso da remoção, o qual envolto em um discurso
“pedagógico”, cujo objetivo seria o de “educar” os moradores de áreas favelas de forma
a torná-los indivíduos aptos a viver como “cidadãos normais”. Bem entendido, a
CHISAM se utilizava da força policial quando, porventura, ocorria algum tipo de
resistência por parte dos moradores. Era comum, por exemplo, que tratores
acompanhassem os agentes no momento da remoção, para, uma vez os barracos
desocupados, estes seriam imediatamente derrubados, para evitar que uma nova família
o ocupasse (VALLA, 1986: 99; BRUM, 2012: 76).
Em contrapartida, a postura dos moradores à intervenção do governo, através da
CHISAM, não era sempre passiva. Pelo contrário, as comunidades, que já vinham se
organizando de épocas anteriores, resistiam seja indo ao Palácio do Governador, seja
através da FAFEG, ou ainda por meio da recusa diante da remoção, assim como do não
pagamento das prestações das habitações (VALLA, 1986: 100).
Embora o governo tenha ainda recorrido às remoções, as ações da CHISAM e da
CODESCO perderam força partir de 1973. Em relação aos conjuntos habitacionais, as
prestações estavam atrasadas na sua maioria, resultando no que Lícia Valladares (1978
apud VALLA, 1986: 100) constatou como alternativa da maioria dos moradores: passar
a casa para frente e voltarem para as favelas.
Antes de analisarmos a forma de atuação da Pastoral de Favelas, que será feita
no terceiro capítulo. Consideramos oportuno estabelecer uma comparação entre os
projetos habitacionais defendidos por os atores sociais em questão neste trabalho: o do
Estado – que classificamos como capitalista – e o da Pastoral de Favelas – que
chamamos utópico.

2.4 A cidade sob a lógica do capitalismo

No livro “A situação da classe trabalhadora na Inglaterra” Engels (1845, 1986:


88) analisa o modo de vida dos trabalhadores das indústrias da Inglaterra e conclui que
58

“As grandes cidades são habitadas principalmente por operários, visto que, na melhor
das hipóteses, há um burguês para dois, muitas vezes três e em alguns lugares para
quatro operários; estes operários nada possuem e vivem de seu salário que na maior
parte das vezes só permite a subsistência cotidiana. A sociedade, individualizada ao
máximo, não se preocupa com eles, atribuindo-lhes o encargo de prover às suas
necessidades e da família; contudo, não lhes fornece os meios de o fazerem de forma
eficaz e duradoura. Qualquer operário, mesmo o melhor, está constantemente submetido
às privações, quer dizer, a morrer de fome, e uma maioria sucumbe.”

Ao se deparar com a realidade dos trabalhadores ingleses, marcada


principalmente pela exploração do trabalho e pela precariedade nas condições de
trabalho e de vida, Engels percebe a cidade de forma negativa. A cidade é vista pelo
autor como um espaço destinado a produção de capital. É, por esta razão, portanto, que
se constitui no espaço da contradição. De um lado é na cidade onde ocorre o
desenvolvimento industrial e comercial em seu mais elevado nível, é o espaço onde se
observa um avanço tecnológico ilimitado, abrindo possibilidades para o acúmulo de
riquezas.
Por outro lado, porém, a cidade é, por ocasião da industrialização, onde ocorre
de forma mais radical, a destruição da dignidade humana, já que a realidade dos centros
industriais, descrita por Engels, caracteriza uma vida de penúria e degradação da classe
trabalhadora, gerando um imenso contingente de despossuídos sem precedentes até
então.
A cidade sob este olhar, pode ser definida como o espaço da exploração do
outro, da exclusão social, já que as relações de produção pressupõem a concentração de
riqueza nas mãos da burguesia. Além disso, para que a produção de capital seja
mantida, é preciso um Estado que se aproprie do espaço e determine a lei, normatize o
espaço de uso coletivo em prol da lógica capitalista.
Desta forma a própria cidade é transformada em mercadoria, pois aos espaços,
assim como tudo que há na cidade, é atribuído um valor. O lazer, o transitar e o morar.
Esta realidade gera segregação social pois exclui os que não possuem possibilidade de
“comprar” a vida na cidade.
Esta lógica se aplica à moradia pois, mesmo esta tendo uma importância que
incide diretamente sobre aquilo que é básico para a sobrevivência humana, ela é
incorporada na lógica de consumo, passando a ser um bem a ser adquirido. A busca
pela moradia torna-se, portanto, um motivo de disputa entre classes. Uma vez que o
indivíduo não possui recursos financeiros para adquirir sua moradia, ele tende a buscar
59

formas alternativas – “marginais” – para sua aquisição. Esta lógica está por trás da
formação da favela.
Afastando-se da visão conservadora em relação à habitação, é possível
compreender a favela – assim como outras formas “marginais” de moradia – como uma
alternativa, uma solução para quem não tem onde morar. É neste contexto, portanto, que
se justifica a luta pela moradia. Seguindo esta visão, Ermínia Maricato (MARICATO,
1987: 15) considera que seu trabalho

“está ao lado de outros, cuja orientação teórica é a de ver a cidade, não apenas como
local, mas também como objeto da reprodução de setores do capital. A reprodução da
força de trabalho tem a ver com o movimento geral de acumulação, mas ao nível da
habitação, tem a ver também com a luta que é travada em torno do ambiente construído:
que é fonte de lucro para o capital imobiliário, e condição necessária à vida para a força
de trabalho (num primeiro instante).”

Henri Lefebvre (1969: 2), ao analisar o papel da cidade no contexto de


dinamização da industrialização e do comércio, gerados pela ampliação do capitalismo,
observou não apenas as transformações na vida urbana ao longo desse processo, como
também percebeu que o espaço urbano, durante os séculos XVIII e XIX, caracterizou-se
como lugar de disputa e de demonstração de poder por parte dos detentores da riqueza.
Partindo deste princípio, Lefebvre (1969:20) observou que a cidade (em meados do
XIX) era o lugar do confronto de extratos diferentes da sociedade

“os camponeses afluem, instalam-se ao redor das ‘barreiras’ das portas, na periferia
imediata. Antigos operários (nas profissões artesanais) e novos proletários penetram até
o próprio âmago da cidade; moram em pardieiros mas também em casas alugadas onde
pessoas abastadas ocupam os andares inferiores e operários os andares superiores.
Nessa ‘desordem’, os operários ameaçam os novos ricos, perigo que se torna evidente
nas jornadas de junho de 1848 e que a Comuna confirmará.”

A citação evidencia que, mesmo erigida sob a lógica do capital, a vida urbana
era fundamentada na contradição, portanto, no confronto das diferenças, fossem elas
ideológicas, econômicas ou políticas. A cidade era o espaço onde coexistiam diversos
modos e padrões de vida. Este quadro proporcionava ao ambiente citadino um modo de
vida social intenso, de caráter positivo.
Contudo, uma vez sentindo-se ameaçada pela democracia subjacente às
experiências revolucionárias, sobretudo da experiência de 1848, a classe burguesa
implementou mudanças no espaço urbano, as quais acabaram por lhe retirar a ideia de
que o “‘habitar’ era participar de uma vida social, de uma comunidade”. Lefebvre
60

(1969) apresenta como exemplo a construção de subúrbios e loteamentos habitacionais,


afastados do centro de Paris, edificados para a classe operária, sob a iniciativa do
Estado. Como consequência, ocorreu um esvaziamento do centro da cidade, com ele
ganhando um novo significado, isto é, o espaço dos escritórios.
Em meados do século XX , em meio a uma crise imobiliária na cidade de Paris,
o direito à moradia aflora na consciência social, conforme observa Lefebvre (1969: 23):

“Ele se faz reconhecer de fato na indignação provocada pelos casos dramáticos, no


descontentamento engendrado pela crise. Entretanto, não é reconhecido formal e
praticamente, a não ser como um apêndice do ‘direitos do homem’. A construção a
cargo do Estado não transforma as orientações e concepções adotadas pela economia de
mercado. Como Engels previra, a questão da moradia, ainda que agravada,
politicamente desempenha apenas um papel menor.”

A crítica feita pelo autor procura demonstrar que, apesar das tentativas de
submeter as camadas populares aos objetivos capitalistas, a consciência impulsiona os
indivíduos à luta pelos direitos básicos à vida. E nos leva a perceber que, pela lógica
capitalista a cidade não é vista como espaço para todos, principalmente os mais
empobrecidos.
Sem querer fazer transposições que poderiam ocasionar em análises anacrônicas,
consideramos atual e pertinente a crítica feita por Lefebvre, pois o direito à moradia
ainda não foi plenamente solucionado e encontramos uma resposta para o
questionamento feito no início do capítulo: por que mesmo após o abandono da política
de remoções os moradores das favelas da cidade do Rio de Janeiro permaneciam
temerosos com relação à postura do poder público? Por que o Estado, segundo a lógica
capitalista, está a serviço das elites econômicas da sociedade e, por isso, baseiam suas
ações de acordo com as necessidades desses grupos. Na visão de Ermínia Maricato
(2000), a existência das chamadas “moradias ilegais” resulta de um mercado
imobiliário excludente, que impede a inserção nele, das famílias com rendas mais
baixas.

2.5. A Cidade sob o Olhar da Pastoral de Favelas

“É na cidade, que deveria ser o lugar privilegiado de convivência humana, que


a economia de mercado tem revelado os piores frutos do egoísmo individualista que a
caracteriza, institucionalizando-se num sistema de injustiça radical o qual, em nome de
seus princípios, violenta os direitos mais elementares de vastos contingentes da
população” (CNBB, 1982: 10).
61

Assim é expresso o ideal de cidade, na visão do episcopado brasileiro reunido na


CNBB. A cidade é concebida como o espaço da convivência harmoniosa entre os
indivíduos, espaço onde as oportunidades são iguais e onde todos vivem dignamente.
Ao contrário do Estado, que parte da lógica capitalista para formular sua
concepção acerca da questão habitacional, o referencial que fundamentou a atuação da
Pastoral de Favelas segue uma lógica pautada em outros pressupostos. Analisemos cada
um deles.
Em 1982, a CNBB traz a lume o documento 23 intitulado “Solo Urbano e Ação
Pastoral”. Ele busca expressar as preocupações e propostas da Igreja Católica
relacionadas ao tema do solo urbano no país.22
O texto, já em sua introdução, toma como referência o Concílio Vaticano II,
quando afirma que a missão da Igreja Católica no mundo deve se dar “na realidade
concreta da história, compartilhando as esperanças e as angústias dos homens”.
Servindo, portanto, de justificativa para a preocupação do episcopado católico no Brasil
com a questão do solo urbano.
Ainda na introdução, o documento expressa a complexidade do tema e convoca
os especialistas a se envolverem na tentativa de elaboração de propostas concretas para
a solução do problema. Contudo, esta convocação não isenta a participação do povo,
pelo contrário, reconhece que o “saber popular” é tão valioso quanto o “saber técnico”
para a resolução do problema.
Inspirados no método ver-julgar-agir, os membros da CNBB produziram um
documento que apresentava a situação do solo urbano no Brasil, deixando claro
elementos para uma reflexão ético-teológica acerca do tema, além de oferecer pistas
para a ação concreta.
Ao analisar a situação do solo urbano no Brasil, o documento começa a “ver” a
realidade constatando que o processo de crescimento acelerado dos grandes centros
urbanos é causado, principalmente, pelas ondas migratórias vindas do meio rural.
Demonstra com dados estatísticos que entre 1940 e 1980, a população urbana do Brasil
saltou de 40% para 67%, e que durante a década de 70 foi registrado, pela primeira vez,

22
O Documento nº23 da CNBB foi publicado em fevereiro de 1982, seguindo a lógica de documentos
anteriores, os quais foram fruto de assembleias, sediadas na cidade de Itaici, no estado de São Paulo, que
reuniam bispos do Brasil com o objetivo de refletirem sobre os problemas do país a partir da análise de
técnicos, de fundamentos teológicos, além da doutrina social da Igreja Católica. Ainda hoje estas
assembleias ocorrem, gerando novos documentos.
62

na história do país, um decréscimo da população rural, em comparação com dados do


censo feito pelo IBGE em 1960 (CNBB, 1982: 6).
O texto reconhece que o crescimento das cidades não ocorre apenas devido ao
êxodo rural, pois os centros urbanos aumentaram também por crescimento vegetativo e
ampliação do perímetro urbano. Resulta daí a constatação de que é preciso reverter os
fatores que incidem sobre essa aceleração, é preciso segundo o documento, reconhecer,
por exemplo, que devido à falta de oportunidades de trabalho, o homem do campo é
levado a buscar nas cidades “expectativa de melhores oportunidades de vida (...),
amplificada pelos meios de comunicação e pelo precário modo de vida no meio rural”
(CNBB, 1982: 10).
A linha de pensamento expressa no documento nos leva a considerar que dentre
os motivos que geram a vinda de contingente populacional do campo para a cidade
estão razões econômicas e também ideológicas, na medida em que os meios de
comunicação criam uma imagem da “cidade grande” como o espaço das oportunidades
e do progresso para todos. Isso significa que a vinda de indivíduos para a cidade,
possivelmente servir de mão de obra barata nos grandes centros, era algo que
interessava aos grupos ligados ao grande capital – donos de empresas do ramo da
construção civil, por exemplo.
Nossa compreensão tem como base o pensamento de Pierre Bourdieu quando
considera que os meios de comunicação são instrumentos da ideologia dominante e lhe
são úteis para gerar na população pobre – classe dominada, segundo o referido autor –
um convencimento de que o centro urbano poderia lhe proporcionar a melhor qualidade
de vida23.
Por outro lado, se há uma aceleração do crescimento das cidades e isso interfere
na qualidade de vida da população, o documento reconhece que a situação do solo
urbano se agrava devido à “apropriação antissocial” do mesmo. As ondas migratórias do
campo para a cidade coincidem com a valorização do solo urbano de forma abrupta.
Segundo o documento da CNBB (1982:9), a especulação imobiliária nas grandes
cidades do Brasil

23
Pierre Bourdieu, em seu livro o Poder Simbólico, considera que o poder simbólico é um poder quase
mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força física (física ou econômica),
graças ao efeito de mobilização. Ele só se exerce se for reconhecido, se não for entendido como arbitrário.
63

“Atinge hoje proporções graves o expediente da estocagem de terrenos para fins


especulativos. Glebas ou lotes vazios guardados para estes fins ocupam, em média, a
terça parte dos espaços edificáveis das cidades brasileiras. A valorização econômica dos
terrenos urbanos tem sido alarmante a partir de meados da década de 60. O preço real
médio dos terrenos, no mínimo, triplicou no espaço de 20 anos. (...) A especulação
imobiliária, ao aumentar o preço do solo, agrava a situação habitacional do país e
permite uma característica fundamental na destinação do solo urbano: há solos de
habitação, repartidos desigualmente entre as diversas camadas sociais, como também
solos de especulação, estocados e ociosos, destinados exclusivamente a operações
imobiliárias.”

A extensa citação, sinaliza o teor de denúncia do documento, o que em nossa


concepção reforça a ideia de que a Igreja Católica foi, uma voz de denúncia das
injustiças sociais no país. Ao classificar certas áreas como “solos de especulação”, o
documento reitera a ideia de injustiça social com relação ao ato de habitar e afirma que
“é na cidade, que deveria ser o lugar privilegiado de convivência humana, que a
economia de mercado tem revelado os piores frutos do egoísmo individualista que a
caracteriza”, revelando seu posicionamento crítico em relação ao sistema econômico
vigente (CNBB, 1982: 10).
A crítica à apropriação desigual do solo é referendada na segunda parte do
documento, quando os bispos apresentam os elementos para uma reflexão ético-
teológica acerca do tema em questão. O texto argumenta que a cidade, segundo o relato
bíblico no livro dos Salmos, por exemplo, é vista como o lugar da convivência fraterna
entre seus membros, pelo fato de ser uma criação divina. Interpretação reiterada,
tomando como base a Encíclica Laborem Exercens, de João Paulo II, quando esta
afirma que a cidade deve ser para o homem e não o homem para a cidade.24
Os bispos consideram que na medida em que a cidade é espaço da exploração da
mão de obra humana e da especulação imobiliária, ela torna impossível a concretização
do ideal cristão de convivência pacífica e fraterna. Pelo contrário, recuperando o
pensamento de Santo Tomás de Aquino, os bispos afirmam que a falta de partilha é
fonte de conflitos.25 Além disso, segundo o Papa Paulo VI, em sua Encíclica Populorum
Progressio, “a terra foi dada a todos e não apenas aos ricos”. Decorre daí a ênfase
dada pela CNBB (1982: 26), quando ela diz

24
A Encíclica Laborem Exercens , de autoria do papa João Paulo II, foi publicada em 1981, por ocasião
da celebração dos noventa anos da Rerum Novarum. Nesta carta o Papa discorre sobre a questão do
trabalho no mundo.
25
O pensamento de Santo Tomás de Aquino mencionado no documento da CNBB, foi extraído do
Dicionário Bíblico, organizado pelo Mons. A. Vicent, no verbete “propriedade”, publicado pelas Edições
Paulinas.
64

“a propriedade privada não constitui para ninguém um direito incondicional e absoluto.


Ninguém tem o direito de reservar para seu uso exclusivo aquilo que é supérfluo,
quando a outros falta o necessário. (...) É, portanto, totalmente alheio à ética cristã um
sistema que privilegia a minoria mais rica na partilha dos bens produzidos pelo trabalho
de todos, que deixa à maioria a pobreza, quando não a miséria. Todos os habitantes da
cidade devem, por seu trabalho, contribuir para a prosperidade da mesma. Portanto, têm
direito aos bens e serviços por ela proporcionados.”

Tomando como base o trecho em destaque, consideramos que a CNBB se


posicionou de forma crítica à maneira como se dava, naquele momento, a ocupação do
solo urbano no país, reconhecendo esta forma de ocupação não só como distante da
ética cristã, mas como parte integrante de um sistema econômico pautado no
individualismo.
Na terceira parte do documento, esta crítica ao sistema torna-se mais evidente,
especialmente quando a CNBB alerta para o risco iminente de um conflito entre “os
muitos que têm pouco a perder e os poucos que têm muito a perder”, ou seja, um
conflito de caráter social e econômico. Por isso, os bispos se empenharam em propor
reformas e apresentarem experiências em curso, além de oferecerem pistas de ação
pastoral para toda a Igreja no Brasil. Eles apresentaram, logo de início, a necessidade de
realização de reformas, esclarecendo que

“[elas não devem] induzir à ilusão de que estas sejam suficientes. Para eliminar a
situação de injustiça estrutural, importa visar a novos modelos de organização da
cidade, o que exige, por sua vez, mudança do modelo sócio-político-econômico
vigente.”

O documento expressa a preocupação com a reformulação da estrutura social e


não apenas de reformas pontuais, pois estas não atingiriam o cerne da questão: o sistema
injusto que fundamenta o uso do solo urbano no país e que é o gerador dos problemas
sociais, não se restringe à cidade, como também se aplica ao campo. Em função disso, o
documento propõe como passo inicial à realização de reformas na legislação, uma
distribuição social do solo urbano de maneira justa, sem permitir que esta seja objeto do
das regras de mercado.
Além disto, os membros da conferência propuseram subverter a lógica vigente
quando consideraram, a curto prazo, que era preciso que o poder público regularizasse
as áreas de ocupação sem que os moradores precisem pagar pelo “chão que por direito
já e seu e que, por vezes, foi até por ele criado”. A re-significação da ideia de aquisição
da propriedade fica evidente quando é sugerido, por exemplo, o incentivo a ações que
tenham como base a “autoconstrução ou o mutirão”, sem que ocorra prejuízo à
65

qualidade da moradia, além do apoio do poder público às associações comunitárias das


cidades que buscam organizar e executar nas comunidades projetos de urbanização,
assim como de saneamento. O que na nossa visão é expressão do valor da coletividade e
todo trabalho em conjunto, em contraposição à competitividade, própria do capitalismo
liberal (CNBB, 1982:41).
Ao analisarmos as ações pastorais em cursos elencadas no texto do Documento
23, foi possível reconhecer o que já foi por nós observado: as ações pastorais são, na
verdade, ações políticas. Os bispos reconhecem que a ação evangelizadora tem como
principal consequência o processo de conscientização do povo no que se refere aos seus
direitos fundamentais e, de forma específica, o direito ao uso do solo urbano. O que
gera uma adesão cada vez maior por parte da população em especial dos moradores das
periferias.
As CEB’s são vistas como núcleos de reunião e espaço de experiência de vida
comunitária cristã, capazes de estabelecer entre seus membros uma convivência baseada
em valores de igualdade e justiça. Além disso, firme na ideia de que o povo é capaz de
resolver seus próprios problemas, a Igreja busca incentivar cada vez mais o surgimento
das comunidades eclesiais de base, assim como de outros grupos, tais como as Pastorais
sociais e a participação do povo nos mesmos. Para tanto. Promove diversos momentos
de reunião – encontros, seminários e congressos – voltados para a reflexão e formação
dos leigos, acerca dos problemas do país (CNBB, 1982: 42).
Como afirma a cientista social Eli Diniz (DINIZ, 1983: 49), ao analisar a pauta
de atividades das associações de moradores na cidade do Rio de Janeiro, constatou que
após os trabalhos comunitários, tais como mutirões,

“situam-se as reuniões e encontros com representantes da Igreja Católica. A maioria das


associações entrevistadas (61%) realiza com frequência tais reuniões. Foram
destacados particularmente os encontros promovidos pela Pastoral de Favelas e as
discussões especificamente voltadas para a questão da posse da terra.” (grifos nossos)

O trecho serve para reforçar nossa visão acerca do trabalho da PF no período por
nós estudado, salientando a atuação da pastoral no sentido de fornecer às lideranças
locais conhecimento sobre a legislação vigente e como os mesmos poderiam, uma vez
conhecendo a lei, fossem capazes de questioná-la quando preciso, ou ainda utilizá-la a
seu favor, na medida em que isso fosse possível.
66

Nos anos de 1986 e 1993, a CNBB lançou duas Campanhas da Fraternidade26


(daqui para frente CF) com o tema relacionado à questão agrária. Em 1986, o lema era
“Terra de Deus, terra de irmãos”, trazia a tona o problema da má distribuição de terra
no Brasil, em especial no meio rural, problemas este que gerava um intenso êxodo da
população do campo para a cidade e, com isso, um crescimento desordenado dos
centros urbanos do país, em especial São Paulo e Rio de Janeiro.
Em 1993, a CNBB traz como tema de reflexão da Campanha da Fraternidade, a
questão do solo urbano no Brasil. Através do lema “Onde moras?”, o texto da
campanha procurou expor a situação de parte significativa da população brasileira que
vive à margem do direito à habitação.
O texto-base da CF’93 (CNBB, 1993: 7) considera que

“o direito à terra e à moradia como condição básica para o desenvolvimento da vida


plena: do INDIVÍDUO (subjetividade, inviolabilidade), da FAMÍLIA, (acolher, gerar,
defender e promover a vida), da FRATERNIDADE (solidariedade) e do EXERCÍCIO
DA CIDADANIA (condições para viver e morar saudável e dignamente –
infraestrutura, equipamentos sociais e meio ambiente – participar e decidir a vida da
cidade)”.

Por meio deste trecho é possível reconhecer a preocupação global com o ser
humano, pois transparece o reconhecimento que a moradia digna torna possível a vida
em seus diferentes aspectos e, ao mesmo tempo, a ausência dela impede não só o
desenvolvimento intelectual e moral do indivíduo, como o impossibilite de viver de
forma satisfatória sua cidadania, pelo fato de que a vida familiar pode ser vista como um
aprendizado para a vida na coletividade.
Tomando como referência o método ver, julgar e agir, o texto-base apresenta o
crescimento das cidades no Brasil tem atingido índices alarmantes e que os centros
urbanos não oferecem condições satisfatórias para a vida digna das pessoas que nelas
habitam. Demonstra que 77,5% da população reside nos centros urbanos e este

26
As Campanhas da Fraternidade tiveram início em 1962, no Rio Grande do Norte, durante a Quaresma.
Em 1963, por ocasião do Concílio Vaticano II, os bispos, reunidos em Roma, foi decidido então, que a
mesma deveria ser promovida em âmbito nacional, durante o período da Quaresma. Portanto, a CNBB
promove as Campanhas da Fraternidade desde 1964, sempre com um tema para reflexão durante o
período quaresmal e um lema, o qual serve de slogan para a campanha. A escolha do período se relaciona
com a ideia de reflexão e estímulo à solidariedade. A cada ano a CNBB elege um tema, o qual servirá de
motivação para a reflexão das comunidades e, partindo do método ver, julgar e agir procura sensibilizar
os cristãos para colaborarem com doações em dinheiro para ações de caridade, além de pistas de ação
pastoral em torno do tema abordado. Vale ressaltar que ao longo dos anos a CNBB foi abrindo espaço
para sugestões de temas advindos das comunidades do país.
67

percentual corresponde a aproximadamente 120 milhões de pessoas, contra, apenas 35


milhões que vivem no campo e afirma que dificilmente este quadro irá se reverter.
Como algumas causas, o texto-base aponta: uma política agrária voltada para a
concentração de terra, para a mecanização e para a produção voltada para a exportação,
assim como a possibilidade de empregos e uma maior oferta de serviços sociais
(educação, saúde, cultura e lazer), de comércio e serviços, além de melhores condições
de vida. Contudo, as expectativas não se dão na prática e a cidade que, em um primeiro
momento parece uma possibilidade de progresso pessoal e familiar, não absorve o
contingente vindo do campo, seja no aspecto do trabalho, seja no dos serviços públicos,
seja no da moradia. Devido a esta dinâmica, os grupos menos favorecidos, os quais são
formados sobretudo por migrantes vindos do campo, acabam por ficar a margem do
trabalho, da saúde e da educação. É neste contexto de exclusão que crescem as favelas e
outros tipos de moradias improvisadas, marcadas pela precariedade (CNBB, 1993: 15).
Ao citar o uso solo urbano como um problema social, o texto-base da CF’93,
realiza uma abordagem do tema a partir das reflexões encaminhadas no documento nº
23 da CNBB, sobre o uso do solo urbano, anteriormente por nós mencionado, e
reconhece que, no período entre 1982, ano em que o este foi publicado, e 1993, ano da
campanha da fraternidade sobre solo urbano, as mudanças no sentido de superar o
problema em questão não foram suficientemente satisfatórias. Daí, então, a necessidade
da campanha trazer o tema aos grupos da sociedade brasileira.
Com relação às pistas de ação, comparativamente ao documento 23 da CNBB, o
texto-base é mais específico com relação à função da Lei Orgânica, do Plano Diretor
dos municípios, assim como para com as favelas e outras situações de moradia popular,
como os cortiços, por exemplo. Acerca da Lei Orgânica, o texto sugere que esta deve
atuar de forma a “garantir a função social da cidade e da propriedade”.
Considera também, que o Plano Diretor deve estabelecer regras e mecanismos
que garantam o controle do uso solo urbano, além de uma política “de produção e
regularização fundiária urbanística”. No que diz respeito ao poder público o texto-base
(CNBB, 1993: 62) considera importante

“ - Recomendar a participação dos conselhos populares nas discussões e elaboração das


Leis Orgânicas dos municípios;
- Atuar junto às Câmaras Municipais no sentido de garantir nas Leis Orgânicas dos
municípios, instrumentos e mecanismos que permitam viabilizar soluções adequadas
para a moradia popular;
68

- Garantir, nas discussões dos Planos Diretores Municipais a prioridade de áreas para
a implantação de programas de assentamentos humanos da população de baixa renda;
- Propor a criação de ‘comissões’ de terra, compostos do poder municipal e dos
movimentos populares, para viabilizar a discussão do uso real da terra, cadastramento
de imóveis urbanos com potencial de uso social;
- Acompanhar a execução das leis aprovadas pela Lei Orgânica Municipal que
estabelece as diretrizes políticas do Plano Diretor.”

Ao analisar as pistas de ação relacionadas a ações de cunho político-estatal, é


possível observar a relevância atribuída à participação popular. Consideramos esta
questão emblemática da lógica desenvolvida pela Pastoral de Favelas nas comunidades
faveladas do Rio de Janeiro desde a sua fundação. Sob a visão da Igreja reunida na
CNBB, cabe à Pastoral de Favelas “apoiar e incentivar as iniciativas, organizações e
articulações do Movimento de Favelados” (CNBB, 1993: 63).

Vale ressaltar que a CNBB é uma organização autônoma – não está presa ao
Vaticano – por isso possui liberdade em relação às normas vindas de Roma, ao contrário
da Pastoral de Favelas que, sendo parte da estrutura da arquidiocese do Rio de Janeiro,
está diretamente ligada ao centro da Igreja Católica. Esta diferença se constitui em um
ponto fulcral em nossa análise pois, uma vez reconhecendo isso, é possível melhor
compreender o papel de cada uma na Igreja e na sociedade. Em meio ao um contexto de
ausência de políticas públicas voltadas para a ação sobre os problemas que atingiam a
população mais pobre do Brasil, a CNBB é criada como uma instituição autônoma,
disposta a levantar os problemas e apontar pistas para a solução dos mesmos, sem os
possíveis “entraves” vindos do Vaticano. O papel da CNBB é o de apontar pistas de
ação não só para a sociedade como um todo e para o Estado, mas para a própria Igreja
Católica.
As Campanhas da Fraternidade são o maior exemplo disso. Ao propor um tema
para a reflexão, a CNBB pretende estabelecer uma unidade de ação entre os cristãos,
mesmo reconhecendo que cada comunidade irá se apropriar – ou não – daquela reflexão
de uma forma, contudo, partindo do mesmo texto-base. As CF’s são uma forma de
levar os cristãos a se mobilizarem em torno de um problema específico, daí a criação de
pastorais como a Pastoral do Menor, da Favela, do Trabalhador e do Negro. As
pastorais sociais são um apelo da realidade social, uma vez concretizada sua razão, a
pastoral social sai de cena, ou muda sua forma de atuação.
Esta é portanto, uma chave de reflexão para o entendimento da atuação da
Pastoral de Favelas na cidade do Rio de Janeiro ao longo de 35 anos. Seu surgimento se
69

deu em um contexto de ausência de políticas públicas no âmbito habitacional que não


atendiam às necessidades do povo. A PF nasceu a partir de experiências anteriores –
Cruzada São Sebastião, Fundação Leão XIII – as quais foram um ensaio para algo
maior: uma ação pastoral que atuasse efetivamente na organização do povo para que
este realizasse uma pressão junto ao poder público, com o objetivo de execução de
política habitacional que incluísse os interesses do precisavam de moradia. Daí a
necessidade, por exemplo, de um setor jurídico na PF.
Capítulo 3

A Pastoral de Favelas e as Comunidades Eclesiais de Base.


Ferramentas para a luta popular

“Se calarem a voz dos profetas


as pedras falarão,
se fecharem uns poucos caminhos
mil trilhas nascerão.
Muito tempo não dura a verdade
nessas margens estreitas demais(...).
É Jesus esse pão de igualdade,
Viemos pra comungar
com a luta sofrida de um povo
que quer ter voz, ter vez, lugar.
Comungar é tornar-se um perigo,
Viemos pra incomodar.
Com a fé e a união nossos passos ainda vão chegar.”

O trecho da letra da música em destaque define o trabalho desenvolvido pela


Pastoral de Favelas e pelos Círculos Bíblicos na arquidiocese do Rio de Janeiro desde
meados da década de 1960. Amplamente entoado por grupos religiosos, o cântico
estabelece uma relação direta entre o conteúdo religioso – pois menciona os profetas
descritos na Bíblia – com a luta do povo por direitos. Encarna nos cristãos da atualidade
o espírito profético – entendendo o profeta como aquele que denuncia as injustiças
contra o povo e anuncia um tempo de justiça e paz, além de suscitar o sentido de
resistência diante da repressão.
Assim, então, iniciamos a reflexão deste capítulo que tem como objetivo central
analisar a natureza do trabalho da Pastoral de Favelas, articulado ao trabalho
desenvolvido pelos grupos de Círculos Bíblicos no Rio de Janeiro a partir de meados da
década de 70 – por ocasião da fundação da Pastoral de Favelas – até o início da década
de 1990.

3.1 A Questão Social Torna-se uma Missão Pastoral

Durante a década de 1960 – mais precisamente entre os anos de 1962 e 1965 –


ocorreu o Concílio Vaticano II, que foi uma assembleia dos bispos católicos romanos,
71

convocada pelo então papa João XXIII. Esta assembleia destinava-se a realizar reformas
internas na estrutura da Igreja Católica, além de proporcionar condições para o retorno à
unidade dos cristãos (BANDEIRA, 2000: 207).
Segundo o teólogo João Batista Libanio, dentre os principais objetivos do
Concílio, pode-se destacar dois aspectos: o ecumenismo e o pastoral. No que diz
respeito à questão do ecumenismo, buscou-se lançar as bases do diálogo com todas as
denominações religiosas, cristãs ou não. No aspecto pastoral – que é o que mais nos
interessa analisar –, foi feita a tentativa de estabelecer um diálogo com a cultura
moderna, com as diversas ideologias, inclusive o humanismo ateu. Desta forma, o
destinatário da mensagem conciliar não era apenas ao cristão católico, pelo contrário,
buscou-se travar um diálogo dentro da Igreja, entre seus diferentes membros, entre
Igreja Católica e outras denominações religiosas mas, sobretudo, um diálogo com a
realidade social e econômica do mundo (LIBANIO, 1992).
Este Concílio, foi responsável por lançar no terreno da América Latina as
sementes de uma nova visão de igreja, aberta para os problemas do mundo
(BANDEIRA, 2000). Em um trecho da Constituição Gaudium et Spes, a qual compõe o
texto final do Concílio Vaticano II e que trata do papel da Igreja no mundo atual, esta
ideia fica clara quando o documento afirma:

“que as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje,


sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças,
as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma
verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração. Porque a sua
comunidade é formada por homens, que reunidos em Cristo, são guiados pelo Espírito
Santo na sua peregrinação em demanda do Reino do Pai, e receberam a mensagem da
salvação para comunicar a todos. Por este motivo, a Igreja sente-se real e intimamente
ligada ao gênero humano e à sua história.” 27

O trecho acima demonstra uma preocupação com o estar da Igreja no mundo,


compreendendo que este estar deve se incorporar à vida do homem integralmente,
abandonando a visão verticalizada da fé (homem-Deus) e abraçando a visão
horizontalizada da fé (sociedade-Deus). A fé deveria ser vivida a partir das experiências
da vida dos seres humanos, dentro da sociedade, articulando, portanto, as duas
dimensões: a FÉ e a VIDA.

27
GAUDIUM ET SPES – Constituição Pastoral do Concílio Vaticano II sobre a Igreja no Mundo de Hoje
– 7/12/1967, parágrafo 1, p. 200.
72

Os pressupostos da ação social da Igreja Católica e dos cristãos, traçados no


Concílio Vaticano II, foram “as sementes” de deram origem à chamada Teologia da
Libertação. Tomando como base João Batista Libanio (LIBANIO, 2000), a Teologia da
Libertação pode ser definida com um momento ético, crítico e profético da experiência
cristã e convoca a Igreja a experimentar uma prática pastoral baseada na solidariedade
em relação aos pobres, sendo porta-voz das injustiças sociais, reconhecendo nestas,
pecados sociais, e sendo anunciadora da justiça, da igualdade e da paz. Foi nesta
perspectiva que os temas do negro, do índio, da mulher afloraram como reflexões
fundamentais para a instauração dessa nova sociedade pautada na justiça social. Essas
reflexões permitiram o surgimento de diversas pastorais sociais, tais como: a Pastoral do
Menor, a Pastoral Operária e a Pastoral de Favelas.

3.2 A Formação da Pastoral de Favelas na Cidade do Rio de Janeiro

Foi na conjuntura de valorização do “momento social do viver cristão”


(LIBANIO, 2000) que a Pastoral de Favelas nasceu, tomou impulso e colaborou para a
formulação de um projeto habitacional que se contrapunha ao projeto definido pelos
grupos hegemônicos na sociedade. A prática religiosa da Pastoral de Favelas nas
comunidades onde a mesma se inseriu, constituiu-se em um rompimento com a visão
religiosa e política que prevaleciam no Rio de Janeiro da década de 1970, construindo,
assim, uma religiosidade próxima da realidade das comunidades carentes e, desse modo,
gerando uma re-significação da própria mensagem bíblica.
Apesar de terem existido outras experiências anteriores desenvolvidas pela
Igreja Católica, voltadas para a questão habitacional28, a Pastoral de Favelas
correspondeu a um trabalho evangelizador diferenciado, devido à concepção de ação
pastoral que a norteava, fundamentada na Teologia da Libertação, a qual se contrapunha
à visão pastoral da igreja tradicional.29 Este tipo de ação pastoral, desenvolvido pelos
agentes da PF estava em consonância com as diretrizes pastorais postuladas pela

28
Estamos falando da Fundação Leão XII e da Cruzada São Sebastião, realizadas pela Arquidiocese do
Rio de Janeiro, anteriores à criação da Pastoral de Favelas.
29
Tomamos como referência para analisar o advento da Teologia da Libertação na América Latina, o
livro de Clifford Geertz, “Observando o Islã”, no qual o autor se utiliza do método comparativo para
analisar as especificidades do processo de islamização de dois países: o Marrocos e a Indonésia. Em sua
análise verifica que essas diferenças são resultantes de processos sociais distintos, além disso, reconhece
que nesse processo de consolidação do islamismo os símbolos clássicos não desaparecem, mas se fundem
e se unificam aos novos princípios, de forma variada, originando uma diversificação das formas locais de
fé, o que possibilita uma realidade religiosa que acomoda tanto o novo quanto o tradicional.
73

Conferência Episcopal Latino-americana, ocorrida em Puebla, em 1978 e isso nos fica


claro, quando o documento afirma que a “igreja tem consciência de que a ação social
humanizadora é parte integrante de sua missão de evangelizar”.30
O trecho acima é, portanto, esclarecedor de que, para os bispos da Igreja
Católica na América Latina, a evangelização dos povos não se resumia às ações ligadas
a uma mera doutrinação e a atos litúrgicos mas, sobretudo, correspondia a uma leitura
da realidade humana a partir dos escritos bíblicos e a uma ação, nesta realidade, de
caráter transformador. Não basta cuidar do espírito, é preciso cuidar do corpo, ou seja,
dos problemas sociais.
Foi com esta visão de igreja que a PF foi fundada na cidade do Rio de Janeiro
(BRUM, 2005). O marco inicial da PF no Rio de Janeiro foi a ameaça de despejo
sofrida pelos moradores da favela do Vidigal, no ano de 1977. Apesar de neste
momento, o apogeu da política de remoções ter passado, os moradores da localidade
receberam o aviso de funcionários da Fundação Leão XIII de que todos seriam
removidos para o conjunto Antares, em Santa Cruz.
A justificativa dada pelo então secretário de obras, foi a de que a área oferecia
risco de desabamento, daí a necessidade de remover as famílias para um local seguro.
Esse discurso, na verdade, ocultava o objetivo de concessão da área para a construção
de um hotel de luxo, já que o terreno encontra-se em área de privilegiada vista para o
mar, à margem da Avenida Niemeyer (MAGALHÃES, 2013).
No entanto, um grupo de moradores, com o auxílio da Pastoral de Favelas,
conseguiu dar visibilidade ao caso, fazendo com que o mesmo chegasse até a imprensa.
Esta mobilização foi fundamental para, em um primeiro momento, evitar a remoção e
possibilitasse que as famílias passassem as festas de fim de ano em suas casas. Passados
alguns meses, a data da remoção foi marcada e a ação da Fundação Leão XIII,
acompanhada por caminhões da COMLURB e aparato policial, foi freada por uma
liminar que impediu a remoção, conseguida por advogados que se colocaram a serviço
dos moradores.
O caso da favela do Vidigal, portanto, coloca-se não só como marco da fundação
da PF, mas também como o episódio que determina o fim da chamada “política das
remoções” no Rio de Janeiro, como afirma o pesquisador Alex Ferreira Magalhães, em
sua obra “O Direito das Favelas”:

30
Documento de Puebla, p. 1254.
74

“Os moradores da Favela do Vidigal conseguiram impedir essa remoção apoiados pela
Igreja Católica – especialmente a Pastoral de Favelas – por juristas renomados – o
escritório de advocacia de Sobral Pinto, no qual atuava o jovem advogado Bento Rubião
– por alguns parlamentares e realizando frequentes denúncias à imprensa. O “caso” do
Vidigal se tornou paradigmático, dentre outros motivos, por ter sido um dos mais
expressivos êxitos dos movimentos de favelas contra as políticas de remoção e por ter
sido um caso talvez o primeiro da história da cidade do Rio de Janeiro, em que esse
resultado foi obtido pela via judicial.”31

Neste contexto de fracasso da política de remoções, cresce entre as lideranças


ligadas à Igreja Católica, a certeza de que o caminho a ser trilhado é o de encaminhar
uma ação pastoral na qual as lideranças eclesiais atuassem na organização da luta em
prol da moradia, distanciando-se cada vez mais da concepção assistencialista em relação
ao pobre, própria da prática pastoral da Igreja Católica anterior ao Concílio Vaticano II.
Segundo Mario Brum (2006: 79), a Pastoral de Favelas surge no Rio de Janeiro
como a concretização dos anseios de lideranças que buscam a formação de um “novo
associativismo”, caracterizado pela “oposição a um tipo de associativismo, na visão
destas lideranças, atrelado ao Estado, às políticas clientelistas e que não buscava uma
transformação efetiva da realidade do favelado”.32

3.3.1 As Estratégias de Luta são Ações Pastorais

A atuação da Pastoral de Favelas, desde seu início, foi a de fomentar a


organização da comunidade para que esta, a partir de uma análise crítica da realidade
em que vivia, organizasse uma pauta de reivindicações para, assim, programar sua luta.
De modo geral, a atuação das lideranças da Pastoral de Favelas nas comunidades,
poderia se dar de diversas formas como, por exemplo, através do incentivo à formação
de associações de moradores e da assessoria pastoral nas associações já existentes. É o
que podemos observar em um trecho do jornal O Globo Leopoldina, do dia 02 de
dezembro de 198333, com circulação semanal:

“Técnicos do Banco Nacional de Habitação – BNH – já iniciaram o


levantamento socioeconômico e o cadastro dos moradores da Favela Marcílio
Dias, em Bonsucesso. O trabalho deverá estender-se até o final de dezembro para
que em janeiro sejam iniciadas obras de urbanização. A informação é de

31
MAGALHÃES, Alex Ferreira. O Direito das Favelas. RJ: Letra Capital – Singular. 2013. P. 60.
32
Segundo Mario Brum (2006) a Pastoral de Favelas se insere no contexto de reorganização do
movimento comunitário em um momento de abertura política do país.
33
Jornal O Globo Leopoldina, 02/12/1983.
75

Francisco Sales, um dos membros da associação de moradores e agente da


Pastoral de Favelas da Zona da Leopoldina.”

O apoio jurídico prestado aos moradores também é uma marca do trabalho desta
pastoral, como mostra outro trecho da matéria anteriormente citada:

“Conforme informações de Francisco Sales, que mora na favela há dez anos, há


cerca de cinco anos, a Cruzada São Sebastião doou uma área de maré ao
Estaleiro Emac como forma de pagamento por um trabalho realizado. Pouco
tempo depois o Estaleiro começou a aterrar a área, mas o trabalho foi embargado
pela Justiça: - Nós acionamos a Pastoral de Favelas e seus advogados
conseguiram parar a obra.” (grifo nosso)

A forma como se deu a atuação das lideranças da PF desde seus primórdios, na


década de 70, nos remete ao pensamento de Antonio Gramsci em relação aos conceitos
de Estado e de Sociedade Civil, por ele formulados, os quais no entendimento deste
teórico, são conceitos complementares. Isso nos fica claro quando Gramsci afirma:

“O projeto que fiz sobre os intelectuais é muito amplo [...]. Este estudo também
leva a certas determinações do conceito de Estado, que, habitualmente é
entendido como sociedade política (ou ditadura, ou aparelho coercitivo, para
moldar a massa popular segundo o tipo de produção e a economia de um dado
momento), e não como um equilíbrio da sociedade política com a sociedade civil
(ou hegemonia de um grupo social sobre toda a sociedade nacional, exercida
através das organizações ditas privadas, como a igreja, os sindicatos, as escolas,
etc.) e é especialmente na sociedade civil que operam os intelectuais”. (grifo
nosso)34

Nesta perspectiva, compreendemos a PF como um elemento de ação


política na sociedade civil, componente do chamado Estado ampliado, seguindo a visão
de Antonio Gramsci, que se contrapôs ao discurso hegemônico dos grupos dominantes –
discurso pautado na ideia de que o morador da favela é, essencialmente, um infrator, já
que ocupa, ou melhor, invade uma área de terra que não é sua. Sua contraposição ao
projeto dominante se deve, justamente, ao fato de ter colaborado com a organização das
comunidades em torno de associações de moradores, assim como de ter permitido que
as mesmas tivessem acesso ao meio jurídico, desenvolvendo nos moradores uma
percepção mais clara e crítica da realidade vivida, além do reconhecimento de que a luta
organizada pelos cidadãos pode fazer a lei.

34
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere: Maquiavel – notas sobre o Estado e a política. V.2. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 458.
76

Esta realidade pode ser vista também no caso da comunidade da Matriz de


Guaratiba, a qual após ter vivido por mais de 27 anos a angústia do “fantasma da
remoção”, conseguiu os títulos de posse, por meio da luta organizada da comunidade,
através da Associação de Moradores e com o apoio jurídico da Pastoral de Favelas.35
Após manifestações em frente o Palácio Guanabara, o governo do Estado encaminhou a
desapropriação da área onde viviam as famílias.
Afastando-se de uma postura assistencialista, predominante nos grupos ligados à
ala conservadora da Igreja Católica, a PF buscou, durante os anos de 1980, levar a
comunidade a reconhecer seu próprio potencial de ação transformadora na sociedade.
Colocando em prática o ditado popular de “ensinar a pescar”, os agentes dessa pastoral
aplicavam como fio condutor de seu trabalho o chamado “método VER, JULGAR e
AGIR”, o qual foi formulado no contexto do Concílio Vaticano II e das Conferências
Episcopais, ocorridas na América Latina, onde foi forjada a “opção preferencial pelos
pobres” como referencial teológico e pastoral.
Como o próprio nome sugere, esta metodologia se desenvolve em três etapas:
1ª. Buscam-se ver a realidade social e política em que a comunidade está inserida,
analisando como ela se organiza, que problemas ela possui e como esses atingem a
população, de maneira especial, os mais pobres;
2ª. A tarefa é julgar a realidade social nos seus diversos aspectos, a luz dos escritos
bíblicos, buscando identificar os “pecados sociais” nela existentes; e
3ª. Corresponde ao momento em que os grupos elaboram pistas de ação, as quais
significam um “agir cristão” sobre a realidade social vigente, objetivando a
transformação da mesma.
Esta metodologia era aplicada pelos agentes da pastoral em encontros
comunitários e materiais produzidos para o estudo da realidade. Esta ação era realizada
não só no Rio de Janeiro, mas em todo o Brasil, como explicita o texto do documento nº
23 da CNBB sobre o Solo Urbano e Ação Pastoral. O documento afirma que a Igreja,

“promove realização de encontros, seminários e congressos, em Regionais e Dioceses,


com publicações de subsídios e conclusões sobre o assunto, bem como encontros de
representantes das classes dirigentes, em que se questionam e debatem problemas de
moradia popular.”36

35
Jornal Favelão: a voz dos favelados. Novembro/1984 – Ano II, nº17.
36
Documento 23, CNBB, Solo Urbano e Ação Pastoral. Edições Paulinas. p. 42
77

Como mostra o trecho acima, a ação dos agentes da PF ocorria em duas frentes,
da mesma forma que se dedicavam à formação e organização políticas das
comunidades, viabilizavam também, encontros com representantes do poder público,
tais como, secretários municipais e parlamentares dos níveis da administração pública.
Além dos encontros, outras estratégias foram usadas pela PF. Dentre elas é
importante destacar a publicação do jornal “Favelão: a voz dos favelados”. Criado em
novembro de 1981, com circulação mensal, o jornal tinha, na época de sua criação o
objetivo de, como o nome sugere, ser o porta-voz das comunidades faveladas do Rio de
Janeiro. Seu conteúdo era voltado para a apresentação dos problemas sofridos pelas
comunidades, assim como suas conquistas.
Era constante também, a preocupação em despertar a consciência crítica dos
leitores, para questões mais amplas. Como exemplo de tais temas, podemos citar:
eleições, cultura afro, política nacional e movimento negro. Sempre através de textos,
charges e com uma linguagem que procurava estar próxima a linguagem dos leitores.
O periódico era produzido por uma equipe formada por moradores de favelas, os
quais participavam da PF e contavam com a assessoria profissional. Como explica
Marco Morel, em pesquisa sobre jornais comunitários no Rio de Janeiro, durante a
década de 1980, o Favelão era diferente dos jornais comunitários em circulação na
época, pois era feito em papel jornal, formato tabloide, impressão em off-set,
diagramação profissional, fotografias,etc (MOREL, 1986). A viabilização deste jornal,
somente foi possível por meio de um convênio entre a Arquidiocese do Rio de Janeiro e
a Fundação Ford, órgão que liberava a verba, que era repassada à equipe pela própria
diocese.
Com uma postura combativa, o jornal buscou dar visibilidade ao trabalho da
Pastoral de Favelas, mas apresentava com frequência temas de caráter polêmico, como
foi o caso da denúncia de reações preconceituosas por parte de moradores da zona sul
da cidade, tratado no editorial do jornal. O texto a seguir corresponde ao editorial do
exemplar nº 17, do mês de novembro de 1984, que apresenta uma resposta a uma
campanha liderada pelo Jornal do Brasil, a qual teria como conteúdo principal a
exclusão dos pobres do espaço das praias da zona sul da cidade:

“Esta é a campanha que o JB vem desenvolvendo junto à população com o


objetivo de resgatar a “beleza” da grande cidade maravilhosa... A campanha está
intimamente ligada à linha editorial que este jornal vem adotando durante algum
tempo. E o alvo principal desses ataques somos nós favelados; no entender deste
jornal e muitos outros de sua linha; somos o Câncer da sociedade, lixo de
78

encostas e por aí vai... moradores de bairros vem participando, individualmente


e de forma bastante preconceituosa, tentando com isso formar uma forte
campanha contra os favelados; pensando que vão fazer voltar a política de
remoção como acontecia constantemente há alguns anos atrás [...] Mas isso não
tornará a repetir. Temos memória. [...] Redescobrimos nossos direitos enquanto
cidadãos, e a partir daí ninguém irá se sobrepor a nós, agora temos consciência
de nossos direitos jurídicos”[...]37

O trecho supracitado busca dissipar na consciência dos moradores das favelas os


estigmas que este espaço carregou (e carrega) desde seu nascimento. Apesar de
controverso, o nascimento das favelas na cidade do Rio de Janeiro38, foi marcado pela
ideia de que consiste em um território sem regras, construído a partir de ocupações
ilegais, portanto, por indivíduos que cometeram uma infração, a de tomar posse de um
terreno que não lhe pertence, além de ser tratado como sinônimo de algo insalubre,
ligado à ideia de falta de higiene, um espaço a ser evitado, habitado por pessoas à
margem da civilidade.
Em função desses estigmas, os agentes da PF consideravam que sua missão era a
de ajudar a romper na consciência dos favelados, a visão negativa estabelecida ao longo
de décadas pelos meios de comunicação, os quais seriam um reflexo do senso comum
da sociedade.
O trecho acima também nos permite a percepção do grau de consciência crítica
adquirido pelos leigos engajados no trabalho da Pastoral de Favelas, mesmo sendo um
grupo de lideranças, uma vanguarda, tratam-se de moradores das comunidades, grupos
formados por indivíduos simples, sem conhecimento acadêmico, mas sensíveis à luta
por direitos básicos em uma sociedade marcada pela exclusão social. Este é o caso de
Antônio, morador da favela Marcílio Dias
Ao analisar este texto, produzido por essas lideranças, conseguimos
compreender o que Antonio Gramsci quis dizer, em sua obra Introdução à Filosofia da
Práxis, quando afirma que o indivíduo que não possui senso crítico é apenas um
homem-massa, sem capacidade de perceber de forma clara a realidade em que está
inserido. Gramsci afirma:

“Criticar a própria concepção do Mundo significa, pois, torná-la unitária e


coerente, elevá-la até ao ponto a que chegou o pensamento universal mais
evoluído. E significa também criticar toda a filosofia que existiu até agora, na
medida em que deixou estratificações consolidadas na filosofia popular. O
começo da elaboração crítica é a consciência do que realmente somos, isto é, um

37
Jornal Favelão: a voz dos favelados. Novembro, 1984, nº 17 ano II.
38
Explicar as teorias sobre o surgimento da favela no Rio.
79

“conhecer-te a ti mesmo” como produto do processo histórico desenvolvido


anteriormente e que deixou em nós uma infinidade de vazios sem estarem
inventariados. Mas devemos começar por fazer esse inventário.”39

A Pastoral de Favelas, segundo nossa visão, possibilitou que inúmeros grupos de


moradores de comunidades faveladas do Rio de Janeiro, iniciassem um processo de
“conhecer-se a si mesmo”, de realização de um “inventário social” e de reconhecimento
de sua condição de classe no interior da sociedade deixando, assim, de serem homens-
massa para se tornarem cidadãos, construtores de uma nova ordem social.

3.4 Comunidades Eclesiais de Base: Um Jeito Novo de Ser Igreja

A experiência das CEB’s teve seu início em torno dos anos 1960, contudo, não
se pode determinar onde ocorreu seu surgimento de forma precisa. Alguns teóricos
afirmam que ela surgiu em Volta Redonda, interior do Rio de Janeiro, enquanto que
outros consideram que a sua eclosão ocorreu na Diocese de Natal, em Nísia Floresta
(BETTO, 1981).
Mesmo não tendo uma precisão com relação ao local onde surgiu, esse modelo
de igreja caracterizou-se pela articulação fé e política e foram definidas pelos bispos do
Brasil, como verdadeiros “centros de evangelização”, como “motores de libertação e
desenvolvimento” (CNBB, 1982: 5). Esta definição se pauta no contexto que delineou
seu surgimento, o período da realização do Concílio Vaticano II, segundo o qual a Igreja
Católica deveria abri-se para a realidade social dos cristãos, em especial dos mais
empobrecidos, na tentativa de promover a vida humana, como condição para a
instauração do Reino de Deus.
É com este entendimento que consideramos que a Pastoral de Favelas no Rio de
Janeiro teve como vetor de seu trabalho os Círculos Bíblicos, definidos como “sementes
de Comunidades Eclesiais de Base”, ou ainda como “semente de igreja”, igreja no meio
de povo”, todos estes termos servem para designar um tipo de grupo de pessoas que
possuem algumas características e que se definem por

“Comunidades, porque reúnem pessoas que têm a mesma fé, pertencem à mesma
região. Motivadas pela fé, (...) vivem uma comum-união em torno de seus problemas de
sobrevivência, de moradia, de lutas por melhores condições de vida e de anseios e

39
GRAMSCI, Antonio. Introdução à Filosofia da Práxis. Tradução Serafim Ferreira, 1ª edição. Lisboa:
Ed. Antidoto, 1978, p. 11.
80

esperanças libertadoras. São eclesiais, porque congregadas na Igreja, como núcleos


básicos de comunidade de fé. São de base, porque integradas por pessoas que trabalham
com as próprias mãos (classes populares): donas de casa, operários, subempregados,
aposentados, jovens e empregados dos setores de serviços, na periferia urbana; na zona
rural, assalariados, arrendatários, peões e seus familiares.(...)”40

Essas comunidades possuem a capacidade de desenvolver traços próprios da


localidade onde estão inseridas, no entanto, existem características que as unificam. A
primeira dessas características é a de territorialidade, ou seja, são comunidades que
reúnem pessoas de uma mesma localidade. Constituem-se em grupos de pessoas que
vivem na mesma realidade social e partilham os mesmos problemas. Este traço
favoreceu, por exemplo, a implementação da luta e a conquista de melhorias para a
população local, tais como luz, água e esgoto (BINGEMER, 2009).
A leitura da Palavra de Deus com centralidade do encontro de seus membros
corresponde a um segundo traço de unidade entre as CEB’s. A leitura e reflexão da
Bíblia, não como um livro de histórias de um tempo passado, ou ainda como um livro
que transmite lições de moral, mas sobretudo, como uma fonte de reflexão sobre a
história da vida de um povo – o povo de Deus – relida por este mesmo povo, a luz da fé
em um Deus visto como libertador (BETTO, 1981).
Esta noção da Bíblia, sugere a ideia de continuidade, ou seja, o povo da
atualidade se reconhece no sofrimento do povo do tempo de Jesus, levando a reflexão
dos porquês deste sofrimento e concluindo que são destinatários da mensagem salvífica
de Jesus, como mostra o trecho bíblico do livro de Mateus 11, 1-6:

“João estava na prisão, quando ouviu falar das obras do Messias, enviou a ele alguns
discípulos, para lhe perguntarem: ‘És tu aquele que há de vir, ou devemos esperar
outro? Jesus respondeu: ‘Voltem e contem a João o que vocês estão ouvindo e vendo: os
cegos recuperam a visão, os paralíticos andam, os leprosos são purificados, os surdos
ouvem, os mortos ressuscitam e aos pobres é anunciada a Boa Notícia. E feliz é aquele
que não se escandaliza por causa de mim!”41 (grifos nossos)

O texto acima explicita os destinatários da mensagem de Jesus, o autor bíblico


enfatiza a condição social desses destinatários, os excluídos e os pobres. Nesta
perspectiva, uma leitura bíblica, articulada à vida do povo, leva os membros das CEB’s
a se reconhecerem como destinatários do chamado Reino de Deus.
Esta análise da Bíblia se relaciona com uma terceira característica das CEB’s,
também fundamental: a sua metodologia, baseada na participação e discussão dos

40
BETTO, Frei. Op. cit. p. 17.
41
Tradução para o português a partir da Bíblia de Jerusalém.
81

problemas cotidianos da comunidade em forma de assembleia, o que servia de incentivo


ao exercício da reflexão e da organização do discurso e elaboração de ações concretas.
Essas comunidades também apresentam como característica a formação de
ministérios leigos, os quais nascem da necessidade da própria comunidade, como, por
exemplo, o ministério da Palavra, responsável por encaminhar as celebrações da
Palavra. O ministro é um membro da comunidade, que se dispõe a desenvolver um
determinado serviço, necessário ao grupo. Esse serviço pode estar relacionado a algo de
natureza religiosa, como por exemplo, os Ministros da Eucaristia – responsáveis pelo
sacramento da comunhão na comunidade, mas pode também, estar ligado a alguma ação
de promoção social, como por exemplo, a alfabetização dos membros da comunidade.
Esses ministros são os agentes pastorais, os quais correspondem a padres, religiosos,
religiosas e leigos, que assumem a liderança dos serviços comunitários (BETTO,
1981:7).
Vale ressaltar que a Igreja Católica no Brasil, através das diversas dioceses, bem
como da CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – criada 1952 e idealizada
por Dom Hélder Câmara, colaborou com a formação das lideranças comunitárias,
através de cursos, seminários e diversos materiais de caráter teórico e possuíam teor
teológico, assim como político e social. Tal suporte teórico tinha como objetivo
alimentar essas comunidades, as quais eram vistas como “o despertar da fé” no
continente latino-americano, como a expressão da reconquista de um espaço popular de
oração e de ação no mundo.
Segundo Faustino Teixeira, as CEB’s, carregam em si um potencial
transformador, pois tendo como centro da reflexão a leitura bíblica, promove uma
inserção no mundo, observando as mazelas deste e estabelecendo uma relação de
compromisso com os empobrecidos e Deus (TEIXEIRA, 1988).
Apesar de terem sido, desde seu início, mais numerosas no meio rural42, as
CEB’s tiveram um desenvolvimento significativo nas áreas mais empobrecidas do meio
urbano, especialmente pelo fato de se aproximarem, por meio de sua metodologia e
preocupação social, dos problemas vividos pelo povo. De modo geral, uma CEB’s
começa como um grupo de Círculo Bíblico43, no qual, são utilizados “folhetos em
linguagem popular – linguagem visual e não conceitual, concreta e não abstrata, como

42
CNBB. Comunidades: Igreja na base. Estudos da CNBB. São Paulo: Edições Paulinas. 1981. p. 20.
43
A formulação dos Círculos Bíblicos é atribuída ao Frei Carlos Mesters, carmelita holandês, sua obra se
insere na corrente da Teologia da Libertação. Desenvolve até os dias atuais diversos materiais que servem
para a formação de lideranças, assim como, o incentivo à leitura popular da Bíblia.
82

nas parábolas do Evangelho – onde os fatos da vida são comparados aos da Bíblia.”
(BETTO, 1981: 33). Tal comparação possibilita que os membros do grupo reconheçam
na sua história, a continuidade da história do povo de Deus, ou seja, reconhece-se como
um construtor da “História da Salvação”. Deste modo, as comunidades refletem a vida à
luz da fé, buscando ações de cunho transformador da realidade e, ao mesmo tempo,
deslocando a promessa de salvação do plano celeste para o terreno.
Os fatos da vida são situações elaboradas a partir de fatos cotidianos, podendo
ser uma situação onde do povo experimenta a falta de fé, de oração, mas pode também,
ser algo relacionado a um problema vivido pela comunidade como, por exemplo,
racismo, ou ainda, ameaça de despejo.
Os Círculos Bíblicos foram iniciados no Rio de Janeiro a partir do Concílio
Vaticano II. No ano de 1967, o arcebispo Dom Jaime de Barros Câmara, dividiu a
Arquidiocese do Rio em seis Vicariatos. O objetivo da divisão era atender melhor às
diferentes realidades da cidade, já bastante populosa. No Vicariato Oeste – que
compreendia a perifeira da cidade, do bairro de Anchieta até Sepetiba – foram fundados
os primeiros grupos de Círculos Bíblicos, com o incentivo e apoio pastoral de um grupo
de padres e religiosas daquela área.
O trabalho evangelizador tornou possível a ação política, a historiadora Gizele
Almeida, em seu estudo sobre a Vila Kennedy – sub-bairro de Bangu, formado a partir
da remoção de famílias de favelas do Rio de Janeiro, durante o governo Carlos Lacerda
– ressalta a importância da Igreja Católica e, em especial dos grupos de Círculos
Bíblicos, na organização de uma pauta de reivindicações para a população local, durante
as décadas de 70 e 80 (ALMEIDA, 2005).
Desta feita, concluímos que os Círculos Bíblicos, foram elementos catalisadores
de um cristianismo dinâmico, voltado para o fomento de diversas pastorais sociais,
especialmente da Pastoral de Favelas, as quais tornaram possível a mobilização social
em diversas comunidades da Arquidiocese do Rio de Janeiro.

3.4.1 A Sacralização da Luta

Ao longo de nossa análise, foi possível perceber o teor simbólico presente não só
nos textos e documentos, mas também nos ritos, nos cânticos e em outros materiais
produzidos e utilizados pelas nas Comunidades Eclesiais de Base e Círculos Bíblicos,
além de encontros da PF. Nossa percepção foi a de que todo este conjunto de materiais
83

funcionou como elementos de desconstrução do discurso dominante, colaborando para


que os membros das comunidades iniciassem um processo de tomada de consciência e
elaboração de uma visão crítica da realidade social e política da qual faziam parte.
Pierre Bourdieu, em sua obra “O poder simbólico”, analisa como as classes
dominantes estabelecem seu poder de forma a atingir a hegemonia da sociedade. O
autor explica que a hegemonia é conquistada por meio de sistemas simbólicos que são
construtores de uma determinada realidade. O poder simbólico, formulado por Bourdieu
é

“esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não
querem saber que lhes estão sujeitos ou mesmo que o exercem. (...) é um poder de
construção da realidade que tende a estabelecer uma ordem gnoseológica: o sentido
imediato do mundo (e, em particular, do mundo social)(...)”44

No nosso entendimento, o teórico francês considera que para que as classes


dominantes permaneçam exercendo seu poder sobre as classes subalternas, é preciso
que as mesmas exerçam sobre os grupos dominados um determinado poder, o qual
consiste em algo que dá sentido à realidade vivida, estabelecendo verdades e padrões
que determinam a ordem social. Esse poder, de caráter “mágico”, é exercido por
sistemas simbólicos45, responsáveis por transmitir os padrões e verdades elaborados
pelos grupos dominantes aos dominados, de maneira que estes aceitem a dominação.
Estes sistemas se constituem na escola, na arte, assim como na religião.
Os apontamentos de Bourdieu nos possibilitam reconhecer que a Igreja Católica
se constituiu em um desses instrumentos simbólicos de hegemonia. Em relação ao
período por nós estudado, é possível reconhecer esta articulação da Igreja Católica com
os grupos dominantes quando, por exemplo, alguns setores desta instituição apoiaram
abertamente a implantação do regime militar no Brasil, chegando a realizar
manifestações públicas como, por exemplo, a chamada Marcha da Família com Deus
pela Liberdade, amplamente estudada por inúmeros pesquisadores.
Contudo, a mesma Igreja Católica correspondeu a uma força contra hegemônica
durante o período anteriormente mencionado, em que o governo democrático de João
Goulart foi deposto e nos anos seguintes, quando se configurou o governo ditatorial dos
militares no país. Nossa afirmação se fundamenta na práxis religiosa desenvolvida pelas
44
BOURDIEU, Pierre. “Sobre o poder simbólico”. In: O poder simbólico. p 7-9.
45
Bourdieu classifica a arte, a escola, assim como a religião como sistemas simbólicos. Para elaborar este
conceito, o teórico parte da tradição neo-kantiana que trata os diversos universos simbólicos (língua, mito,
arte e ciência) como instrumentos de conhecimento do mundo.
84

CEB’s e pelas pastorais sociais, em especial, pela Pastoral de Favelas, na qual se


centraliza nosso objeto de análise.
Partindo das lutas do povo e de uma visão de que as estruturas que produzem as
injustiças sociais são pecaminosas, portanto, precisam ser mudadas para que não mais
produzam pecados sociais (BOFF, 1994: 29), muitos cristãos católicos desenvolveram
uma determinada prática pastoral e litúrgica que se pautava exatamente na reflexão e
celebração da luta do povo, não enquanto a espera de um Deus “todo poderoso”, capaz
de mudar repentinamente a realidade dos homens, mas enquanto a construção do Reino
de Deus propriamente dito, dentro da história humana.
Nossa análise neste capítulo, terá como centro letras de algumas músicas
entoadas pelos grupos de Círculos Bíblicos, Comunidades Eclesiais de Base, assim
como núcleos de pastorais sociais, em especial os da Pastoral de Favelas, não só do Rio
de Janeiro, mas de todo o país, alinhados com a chamada Teologia da Libertação, por
considerarmos que as mesmas demonstram, com muita clareza, o “poder simbólico” do
qual estamos falando.46
Assim como a metodologia do VER-JULGAR-AGIR, muitas músicas foram
elaboradas partindo da articulação entre fé e vida, ou ainda, fé e política, propiciando às
comunidades a possibilidade de realização de uma análise da sociedade de forma
estrutural, como é possível observar na letra da música “Pirâmide”, de autor
desconhecido, mas amplamente cantada pelas comunidades durante dos anos 80:

“Na terra dos homens pensada em pirâmide,


há poucos em cima e muitos na base.
Na terra dos homens pensada em pirâmide,
os poucos de cima esmagam a base.

Refrão: Ó povo dos pobres, povo dominado,


Que fazes aí com ar tão parado?
O mundo dos homens tem de ser mudado,
Levanta-te povo, não fiques parado.

Na terra dos homens pensada em pirâmide,


Viver não se pode, pelo menos na base.
O povo dos pobres que vive na base,
vai fazer cair a velha pirâmide.

E a terra dos homens já sem a pirâmide

46
As letras que foram analisadas neste texto fazem parte de uma seleção maior de cânticos religiosos com
teor político, amplamente utilizados nos encontros pastorais. Inúmeras questões sociais, tais como o
racismo, a questão de gênero, ou ainda, as relativas ao mundo do trabalho, fazem parte das letras por nós
analisadas. Contudo, os restringimos a apresentar alguns exemplares da seleção, os quais foram
escolhidos em função do conteúdo estar muito próximo das ideias apontadas no capítulo.
85

Pode organizar-se em fraternidade.


Ninguém é esmagado na Nova Cidade.
Todos dão as mãos em viva unidade.”47

A letra acima citada demonstra uma visão crítica da realidade social em vigor. O
conteúdo trata de uma sociedade dividida, baseada na opressão de um grupo, chamado
“os poucos de cima”, sobre o grupo dos “muitos de baixo”. No nosso entendimento, a
letra em questão, faz uma alusão clara à sociedade capitalista – na música, chamada de
“terra dos homens” – na qual uma minoria, detentora dos aparelhos privados de
hegemonia (GRAMSCI, 2001), exerce um poder opressor sobre o povo pobre.
Por outro lado, a letra aponta para uma perspectiva revolucionária, na medida
em que apresenta como solução a derrubada da estrutura social opressora e a construção
de uma sociedade igualitária. Para isso, é posta como necessária a união dos “muitos de
baixo”, ou seja, a solução está na organização do povo, levando a acreditar que a
mudança da realidade somente se dará a partir dos pobres, uma vez que estejam juntos e
organizados. Somente então, será possível vislumbrar uma sociedade nova: pautada na
fraternidade e na união. Tais valores fundamentais para o povo experimentar qualquer
conquista social, seja ela grandiosa ou algo imediato, como por exemplo, esgoto para os
moradores. Com isso, estas mudanças poderiam ser vistas como indícios do Reino de
Deus.
Vale ressaltar, que a letra não menciona a destruição de pessoas, de vidas
humanas, mas de estruturas sociais, o que sugere uma revolução sem guerra, uma luta
sem inimigos, possivelmente um caminho de conversão daqueles “de cima”, que
oprimem seus irmãos “de baixo”.
Em seu livro “Igreja, Carisma e Poder”, Leonardo Boff (BOFF, 1994), ao
discorrer a respeito de um modelo de Igreja que emerge do povo, afirma que no início
dos anos 60 se desenvolveu um processo de tomada de consciência por parte dos países
latino-americanos em relação a sua condição de subdesenvolvidos e em relação
também, aos mecanismos que sustentavam este subdesenvolvimento, como estruturas
criadas pelos países de centro da economia-mundo (Atlântico Norte) (WALLERSTEIN,
1990). O autor considera que esse subdesenvolvimento surge a partir de uma relação de
dependência para com os países ricos e, por assim dizer, uma relação de submissão
econômica, política e cultural. A solução para o fim deste quadro, segundo o filósofo

47
Cântico de domínio popular, extraído da Cartilha Cantando Nossa Libertação, elaborada pela Ação
Católica Operária. RJ, 1986, p. 24.
86

em questão, somente será possível mediante “uma libertação que garanta o


desenvolvimento autossustentado”, voltado para atender as necessidades do povo e não
dos países ricos e de grupos sociais aliados aos mesmos.
Contudo, salienta que “o sujeito histórico desta libertação é o povo oprimido”,
na medida em que reconheça sua condição de oprimido dentro do sistema capitalista e,
deste modo, consiga organizar-se, de maneira a elaborar estratégias que possibilitem a
formulação de uma sociedade “menos dependente e injustiçada” (BOFF, 1994: 27-28).
No entanto, o autor enfatiza que este projeto de sociedade não exclui os outros grupos
sociais, pelo contrário, as outras classes podem e devem incorpora-se a este projeto,
desde que não queiram assumir sua hegemonia (BOFF, 1994: 28).
Foi com esta perspectiva que muitos militantes, sobretudo jovens, se envolveram
nos problemas do povo latino-americano, durante os anos 60 e desenvolveram
movimentos na busca por tornar viável esta libertação e, muitos destes, implementaram
a luta de guerrilha contra os governos ditatoriais do continente. Muitos destes jovens,
oriundos de extratos sociais diferenciados (origem burguesa), mas movidos por
idealismos adquiridos, sobretudo, em grupos de reflexão como a Juventude
Universitária Católica e a Ação Operária Católica, viam na luta política e na guerrilha a
possibilidade de libertação popular.
Em um contexto posterior, na passagem dos anos 60 para os 70, as bases da
Igreja assumem nova importância não só eclesiológica,mas também política. O povo
retomava seu processo de conscientização e de organização nas suas bases. O autor
explica que:

“Tudo, geralmente, começa com círculos bíblicos. Depois se passa à criação da pequena
comunidade eclesial de base. Sua esfera, inicialmente, é aprofundar a fé internamente, preparar a
liturgia, os sacramentos e a vida de piedade. Num estágio um pouco mais avançado se passa a
tarefas de mútua ajuda nos problemas da vida dos membros. Na medida em que estes se
organizam e aprofundam a reflexão se dão conta de que seus problemas possuem um caráter
estrutural. (...) Aí emerge a questão política, e o tema da libertação ganha conteúdos concretos e
históricos. Não se trata apenas de uma libertação do pecado (do qual sempre nos devemos
libertar), mas de uma libertação que também possui dimensões históricas (econômicas, políticas e
culturais).(...)”48

A longa citação tem o objetivo de elucidar o cerne da libertação pela qual o povo
canta e luta em seus encontros pastorais. Não se prende à quebra do sistema político
vigente, mas a libertação de uma ideologia e de uma organização socioeconômica
contrária à vontade de Deus. Trata-se também de uma luta nascida no meio do povo,

48
Boff. Op. cit. p.28.
87

onde o conhecimento acadêmico não é o veículo de conscientização, mas as dores e


necessidades dos membros da comunidade. Daí o protagonismo dos oprimidos na
elaboração e concretização do projeto libertador, o qual só poderá realizar-se no curso
da história humana.
Nossa percepção é a de que, ao elaborarem um jeito genuíno de celebrar, essas
comunidades colaboraram para a reformulação dos referenciais de religião e de
sociedade, pois ao humanizarem o divino, divinizaram o humano, santificando sua luta,
portanto, em um ambiente de extrema religiosidade, a luta se torna legítima.
Os símbolos se tornam instrumento de libertação, pois transformam o sonho (a
utopia) em algo palpável, além de levarem os indivíduos à tomada de consciência, pois
traduzem uma determinada ideologia, a qual se contrapõe à cultura dominante. Ajudam
a romper com a “integração fictícia”49 da sociedade em torno da cultura dominante,
levando aquela parcela da comunidade a romper com a ordem estabelecida. Daí, por
exemplo, não verem como algo marginal, fora da lei, a ocupação de uma área
desabitada – sendo a terra dom de Deus, esta não deve estar nas mãos de uma minoria.
Como se evidencia na letra do cântico de autor desconhecido, que trata das contradições
da vida em sociedade:

“A vida que a gente vive é cheia de divisão,


mas Deus não quer isso não,
mas Deus não quer isso não.
De um lado é palácio subindo,
do outro é barraco caindo.
De um lado é alguém dominando,
do outro é alguém se curvando,
mas Deus não quer isso não,
mas Deus não quer isso não.” (cântico de domínio popular)

Da mesma forma que os símbolos criam uma identidade entre os membros da


comunidade, possibilita uma cumplicidade vista como comunhão entre os mesmos. Ou
ainda, a oração do Pai Nosso adquire um novo significado, imerso nas dores do povo
devido à violência urbana e perseguição dos inúmeros militantes de movimentos

49
A classe dominante elabora instrumentos de dominação, as chamadas produções simbólicas, as quais
por sua vez, se dão por meio de uma violência simbólica sobre os dominados, com o objetivo de atender
aos interesses da classe dominante. Deste modo, reconhece-se que os sistemas simbólicos servem para a
reprodução da cultura dominante, mas se apresentam como interesses universais. Isto torna possível a
integração real da classe dominante e a integração fictícia da sociedade em seu conjunto e torno do
projeto da classe dominante. Para tanto, é necessária a desmobilização da classe dominada, através da
ordem estabelecida.
88

sociais, no contexto da ditadura militar brasileira durante os anos 60 e início dos 70,
como explicita a letra da música “Pai Nosso dos Mártires”, de autoria de José Vicente:

“Pai Nosso, dos pobres marginalizados


Pai Nosso dos mártires, dos torturados,
Teu nome é santificado naquele que morre defendendo a vida.
Teu nome é glorificado quando a justiça é nossa medida.
Teu reino é de liberdade, fraternidade, paz e comunhão.
Maldita toda violência que devora a vida pela repressão.
Queremos fazer Tua vontade, és o verdadeiro Deus libertador,
Não vamos seguir as doutrinas corrompidas pelo poder opressor.
Pedimos- Te o pão da vida, o pão da segurança, o pão das multidões.
O pão que traz a unidade, que constrói o homem em vez de canhões.
Perdoa-nos quando por medo, ficamos calados diante da morte,
Perdoa e destrói os reinos em que a corrupção é a lei mais forte.
Protege-nos da crueldade, do Esquadrão da Morte50, dos prevalecidos,
Pai Nosso revolucionário, parceiro dos pobres, Deus dos oprimidos.”51

A letra da música apresenta uma síntese da ideia de articulação entre fé e


política, vivenciada nos encontros comunitários e pastorais quando afirma que o Deus
que se acredita é “parceiro dos pobres”, um companheiro de luta, Deus irmão, atuante
na história do povo, como grande incentivador da sua luta, despido da ideia do “Deus
todo-poderoso”, preso ao reino celeste. Evidencia também, os pecados coletivos, seja da
classe dominante – que reprime e explora – seja os pecados dos dominados – a omissão
diante dos sinais de morte na sociedade.
Daí a associação de Francisco de Assis52 – fundador de uma ordem mendicante
da Idade Média (LE GOFF, 2001) – com os pobres, mendigos e marginalizados do
presente. Francisco de Assis, na música Canta Francisco é colocado como alguém
sensível às angústias do povo:

“Há um tempo só paixão, grito e ternura,


clamando as mudanças que o povo espera
justiça aos pequenos, ordem do evangelho
reconstrói a igreja na paixão do pobre.
Há crianças nuas nesta paz armada,

50
Segundo Márcia Regina da Costa, era um grupo composto por membros da polícia civil de São Paulo
que iniciou sua atividade em 1968, com o argumento de perseguir e matar os supostos “marginais” que
causavam perigo à sociedade, inspirados pelo Esquadrão da Morte do Rio de Janeiro.Era o nome dado a
grupos que atuaram nos anos 50 e 60, como grupos de extermínio, formados por membros do poder
legislativo, do executivo e do judiciário, bem como por membros da sociedade civil e, a partir de 1964
com a participação de integrantes do regime militar estabelecido no país. Esses grupos atuaram na ação de
fazer uma “limpeza” urbana, exterminando marginais, mendigos, assim como, membros de grupos
políticos de esquerda, opositores do regime militar estabelecido no país.
51
CD O Povo Canta a Sua Luta. José Vicente.
52
Francisco de Assis, fundador da Ordem dos Frades Menores, Ordem de Santa Clara e da Ordem
Franciscana Secular, no século XIII. Foi canonizado pelo Papa Gregório IX, em 1228.
89

Há Francisco povo sendo perseguido


Há jovens marcados sem teto nem sonho,
Há um continente sendo oprimido
Com as mãos vazias solidariedade
Como os que não temem perder nada mais
Defendem com a morte a dignidade
Com a teimosia que constrói a paz.”53

A música menciona a reconstrução da Igreja, tomando como referência a


situação vivida por Francisco de Assis ao afirmar ter ouvido do crucifixo da capela de
São Damião, o pedido de Jesus para que reconstruísse sua igreja. Na época, Francisco
teria entendido que deveria reconstruir o prédio da pequena capela, com o passar do
tempo, em meio à discordância com a prática do clero da Igreja Católica, na sua visão,
distante dos princípios do evangelho, passou a investir na mudança institucional da
Igreja Católica. Na letra da música, “reconstruir a igreja” é “reconstruir a sociedade”.
Portanto, a luta por mudanças na Igreja da Idade Média, protagonizada por
Francisco de Assis, torna-se, no contexto da América Latina do século XX, a luta pela
construção de uma vida digna para o povo, protagonizada pelos cristãos da atualidade.
O simbolismo presente nos cânticos, assim como os símbolos da classe
dominante, são de fácil assimilação por parte de quem os entoa, contudo, seu caráter é
de ação inversa, pois corresponde à destruição do poder simbólico, a qual somente será
possível a partir da “tomada de consciência do arbitrário” que nele está contido. Isto
será, na visão de Bourdieu, “a revelação da verdade objetiva e aniquilamento da
crença e destruição das falsas evidências, responsáveis por desmobilizar os
dominados” (BOURDIEU, 1989). A luta cotidiana do povo torna-se o caminho da
esperança, uma virada de consciência no interior da comunidade, o aniquilamento da
crença propriamente dito.
Desta feita, o que gostaríamos de demonstrar é que o conjunto de cânticos
entoados pelos membros de pastorais assim como de CEB’s de nosso país,
correspondeu a uma verdadeira ferramenta na desconstrução da cultura dominante, ou
seja, de caráter contra hegemônico, no interior dos diversos grupos religiosos.
Vale ressaltar, que os indivíduos que compuseram essas letras são, na sua
maioria, integrantes de comunidades, sem uma formação acadêmica. Isso nos leva a vê-
los com verdadeiros intelectuais orgânicos, segundo a visão de Antonio Gramsci, já
que, através de sua produção musical, possibilitaram a mobilização das comunidades e a
tomada de consciência crítica pelos membros destas.
53
Canta Francisco, de autoria de Luiz A. Passos
90

3.5 Uma década quase perdida

O livro de Gelsom Florentino de Almeida, “Uma década quase perdida. PT,


CUT, crise e democracia no Brasil: 1979-1989)”, analisa ente período, compreendido
por muitos autores como “a década perdida”54, sob a ótica dos movimentos sociais. A
ideia central defendida pelo autor é a de que este período de dez anos correspondeu a
um momento de lutas e conquistas da classe trabalhadora.
O autor critica a concepção de que “a década de 1980 é vista como um momento
de redefinição do país, em que um leque de possibilidades ‘desperdiçadas’ teria como
consequência principal o prolongamento da chamada ‘crise dos anos 80’ até os dias
atuais”, usando como argumento os índices econômicos e a elevação da concentração
de renda em um momento de forte recessão. (ALMEIDA, 2011:18)
Para sustentar sua tese o autor parte do argumento de que essa crise foi, na
verdade, uma crise de hegemonia, configurada pela falência das condições criadas pelo
golpe militar de 1964, pelo enfraquecimento do modelo de desenvolvimento
dependente-associado, bem como pelo decréscimo nos índices de crescimento
econômico, os quais desestruturaram as bases do “milagre econômico”. A crise do
petróleo, de 1973, foi um fator importante para a configuração deste quadro e, não só
atingiu diretamente o preço do produto e de seus derivados, como também gerou um
aumento dos juros no mercado financeiro internacional, encarecendo o fluxo de
poupança externa.
Apesar disso, a política desenvolvimentista foi mantida, mesmo com taxas de
crescimento mais baixas – em torno de 4% ao ano – distante dos 10% a.a., do período
anterior, sendo mantida até 1979, quando a política de caráter recessivo, determinada
pelo FMI, começa a ser implementada.
Os efeitos da política de crescimento foram sentidos pela população
desde 1974, e se caracterizaram por meio “do prolongamento do arrocho salarial e da
concentração de renda, acirramento das desigualdades regionais, aumento do custo de
vida etc.” (ALMEIDA, 2011: 18) Esse contexto presenciou o surgimento de inúmeros
movimentos representativos da insatisfação da classe média, como por exemplo, o

54
O livro “Uma década perdida: dez anos de PT no poder”, escrito por Marco Antonio Villa, analisa o
período em que o Partido dos Trabalhadores governou o país e nesta análise afirma que as “conquistas
realizadas” neste período não alcançaram aquilo que as propagandas do governo divulgaram nos meios de
comunicação.
91

movimento contra a carestia, ou ainda a expressiva votação no MDB, a campanha pela


anistia, assim como o apoio às greves dos médicos e dos professores.
Paralelamente a isso, diversas greves de metalúrgicos foram organizadas, a
começar pela greve dos funcionários da Scania, em 1978, e a sua extensão por outras
montadoras do ABC paulista. Na visão do autor tais greves representaram, o
rompimento com o sindicalismo oficial, além de expressarem uma contestação da
legitimidade não só da política, mas também do governo. Vencendo a repressão por
parte dos empresários e do poder público esse movimento se expressou em diversos
desdobramentos, dentre eles o autor aponta

“a organização da Conferência da Classe Trabalhadora (Conclat) e


posteriormente de uma nova central sindical – a Central Única dos Trabalhadores
(CUT); a criação inovadora de um Partido dos Trabalhadores (PT), calcado em novas
bases sociais e em uma relação quase horizontal entre a base e a direção; e,
indiretamente, no campo, a revitalização do movimento dos trabalhadores Rurais Sem-
Terra (MST). (...) foi justamente nos anos 80 que ocorreram a transição e a
consolidação do regime democrático, não apenas a normalização das instituições e a
revitalização política, mas, sobretudo, o desenvolvimento da sociedade civil.”
(ALMEIDA, 2011: 19)

O autor considera enxerga o PT, a CUT e o MST como sendo os três agentes
fundamentais para o início de um novo processo de relação travada entre o Estado e a
sociedade, que possibilita considerar que o período em questão não foi, de todo, uma
década perdida.
Foi neste contexto que a Pastoral de Favelas adquiriu força na zona oeste da
arquidiocese do Rio de Janeiro. Existindo desde os anos 70, fomentada, sobretudo, por
sacerdotes e religiosas que tiveram um papel fundamental na formação de lideranças
leigas, para a atuação no serviço pastoral. Ela foi responsável pela organização das
comunidades através da fundação de Círculos Bíblicos e, posteriormente, de associações
de moradores.
Tratando-se de áreas periféricas da cidade, formadas geralmente por
loteamentos, conjuntos habitacionais e por favelas – vale destacar que as lideranças
mencionadas atuaram na ocupação de áreas desabitadas para a formação de novas
comunidades, como exemplos destas, podemos citar as comunidades do Parque
Esperança e do Parque Ricardense, situadas em Anchieta e em Ricardo de Albuquerque,
respectivamente – As quais apresentavam inúmeras carências em sua infraestrutura que,
obviamente, eram agravadas em função da ausência do poder público. Estamos falando
92

de áreas nos bairros de Guadalupe, Anchieta e Parque Anchieta, Ricardo de


Albuquerque, Magalhães Bastos, Campo Grande e Santa Cruz.
O trabalho de conscientização política e de organização das comunidades era
liderado, por sacerdotes, religiosas e leigos moradores da localidade. Geralmente o
processo era iniciado com a fundação de um Círculo Bíblico, com o tempo os laços
comunitários se fortaleciam e, a partir das reflexões encaminhadas, os membros
fundavam uma associação de moradores, construíam um centro comunitário, o qual
servia de abrigo não só para as assembleias da associação, mas também, para os
encontros do Círculo Bíblico, de catequese e demais pastorais. Nesses “núcleos”
comunitários eram, então, desenvolvidas as diversas lutas, dentre as quais podemos
citar: a luta por saneamento básico, por regularização do abastecimento de água, pela
iluminação pública e, ainda, pela construção e abertura do posto de saúde municipal na
localidade.
A organização das comunidades era intercambiada pelas lideranças religiosas. A
Pastoral de Favelas era responsável pela promoção de encontros entre diferentes
comunidades da arquidiocese, criando assim, uma rede maior de lideranças. Através
desses encontros de organização e formação – que acontecem até os dias de hoje – as
comunidades tinham a oportunidade de encaminhar propostas e reivindicações. Foi
desta forma, que a Campanha da Fraternidade de 1993, sobre o solo urbano, foi
consolidada, conforme o próprio texto-base da campanha esclarece: “Para 1993, a
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), ouvindo as sugestões das
comunidades, movimentos, pastorais e dioceses, escolheu o tema ‘Moradia e
Fraternidade’.” (Texto-base CF, 1993: 6)
Desta forma, em função da experiência por nós vivida e aqui relatada,
concordamos com Gelsom Rozentino de Almeida, quando este afirma que esta teria
sido, se não fossem experiências como a que trazemos a lume, com este trabalho, de
fato uma década perdida.
Conclusão

Com o objetivo de concluir a reflexão encaminhada neste capítulo, faz-se


oportuno ressaltar que discutir a questão habitacional hoje é algo de fundamental
importância, pois em um momento em que é consagrada a lógica neoliberal de um
Estado com estrutura cada vez mais enxuta, observa-se a negligência deste em relação
aos princípios básicos para uma vida em sociedade com o mínimo de dignidade.
Portanto, a questão habitacional foi um problema social no passado, mas permanece, no
presente, como um problema ainda a ser superado.
Sendo assim, vejamos alguns pontos importantes nesta reflexão. O primeiro
corresponde ao fato de que a fundação da Pastoral de Favelas, assim como das
Comunidades Eclesiais de Base, presentes em toda arquidiocese do Rio de Janeiro, em
especial nas periferias e nas comunidades carentes, foi o resultado de uma trajetória
construída ao longo de décadas e a partir de continuidades e permanências que contou
com o envolvimento de diversos grupos, os quais não se restringiram àqueles ligados à
Igreja Católica, mas tratou-se de um processo que contou com a participação de
associações de moradores, partidos políticos, militares e o Estado propriamente dito, ou
seja, um processo dialético marcado pela tensão inerente ao jogo político travado no
seio da sociedade civil, ou ainda, na concepção de Gramsci, travado entre os grupos
participantes do chamado Estado ampliado.
Sendo assim, vale salientar que, diante dos documentos pesquisados, reforça-se
nossa hipótese de que a PF, assim como as CEB’s, foram, durante a década de 80,
elementos de fundamental importância para a organização da luta em prol do direito à
moradia na cidade do Rio de Janeiro, constituíram-se, portanto, em aparelhos privados
de hegemonia, sobretudo, porque através do trabalho desenvolvido por ambas,
possibilitaram que os indivíduos nelas inseridos, tivessem a oportunidade de construir
uma visão crítica da realidade social e buscassem, a partir das mesmas, a formulação de
um projeto social alternativo, baseado na justiça e na igualdade, e desenvolvido a partir
de uma pauta de lutas organizadas pelos próprios moradores.
Este ponto se insere em um segundo aspecto também relevante, que é a postura
da Igreja Católica no Brasil e na América Latina com relação aos direitos sociais. Nas
leituras por nós realizadas, ficou claro o discurso – e a prática – de diversos segmentos
94

desta instituição (membros do clero, religiosas, leigos, teólogos, etc) empenhados não
só em fomentar uma reflexão na sociedade e dentro da Igreja, mas também em
encaminhar pistas de ação que pudessem se traduzir em melhorias para a população
mais pobre.
Como terceiro ponto, concluímos que o caráter simbólico dos cânticos – da
mesma forma que a leitura encarnada da Bíblia – foi tão importante para a mobilização
popular quanto o método ver-julgar-agir e outros materiais utilizados no trabalho
pastoral, pois permitiu, a elaboração de uma identidade que fortaleceu os laços afetivos
entre os membros das comunidades, bem como, construiu, nos mesmos, um ideal de
luta.
Ao compararmos dois projetos antagônicos – o do Estado (sobretudo durante o
período do regime militar) e o da Igreja dos pobres, assumido pela PF e pelas CEB’s –
buscamos demonstrar que, sendo incompatíveis, a PF teve, como dissemos
anteriormente, um papel contra-hegemônico na sociedade brasileira, durante o período
por nós analisado. Isso se materializou no trabalho desenvolvido pelas lideranças
pastorais onde havia núcleos da PF e Círculos Bíblicos (que para nós correspondem a
uma versão urbana de CEB) constituídos e atuantes.
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