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CAPÍTULO 4 – UM CONCEITO CENTRAL: MACROMARKETING

Antes de apresentar os desenvolvimentos mais pontuais da disciplina de Marketing e socie-


dade (expostos no capitulo anterior), é conveniente situar melhor o que chamamos de macromar-
keting. Esta é a meta deste capítulo, no qual desenvolvo a visão geral de macromarketing, com foco
no desenvolvimento histórico desta subdisciplina, e faço depois uma discussão do conceito central
de sistema agregado de marketing, para ao final ilustrar o desdobramento temático atual, que guia-
rá o desenvolvimento dos capítulos seguintes desta segunda parte do livro.
Aqui sigo um caminho próximo do que foi seguido no capítulo anterior, resgatando aspectos
históricos, mas com foco no objeto do capítulo. Embora não seja possível fugir de uma linguagem
mais acadêmica para atingir esse propósito, o fiz com o cuidado de não perder o senso e o objetivo
do texto, mantendo fidelidade e rigor na seleção e apresentação das informações mais relevantes.

4.1. Um início de conversa

Um aspecto a respeito de marketing, que conseguimos visualizar tanto nas discussões ante-
riores quanto na nossa própria vivência, é sua presença no nosso dia a dia, e o quanto as atividades
econômicas são associadas, e em boa parte definidas, pelas atividades de marketing. Basta lembrar
que cotidianamente estamos procedendo a ações de troca, com diversos agentes, por vezes na con-
dição de demandantes, por vezes na condição de ofertantes. Estas ações, e seus resultados presen-
tes e futuros, determinam o que fazemos e o que faremos, por vezes em situações que estão aparen-
temente fora do contexto de troca.
Por exemplo, quando um pequeno agricultor decide produzir uma determinada variedade de
feijão, tal decisão estará provavelmente associada a uma expectativa de demanda futura dos con-
sumidores familiares e individuais (somente não seria assim no caso de produção para o próprio
consumo). Se este agricultor percebe que não haverá demanda ou interesse no produto final de sua
plantação, muito provavelmente evitará o esforço de produção para não correr o risco de uma per-
da futura.
A determinação de marketing aqui é bem clara: a expectativa do consumidor e sua disposi-
ção para consumir uma determinada variedade estão na base da decisão do pequeno produtor agrí-
cola sobre o que plantar ou não. Se avançarmos um pouco mais na cadeia de produção para um
nível industrializado de agricultura ou mesmo de processamento industrial, observaremos um con-
dicionamento mais intenso, incluindo, por exemplo, determinações sobre variações de tipos e qua-
lidade dos produtos, definição de presença ou ausência de determinadas substâncias (como deter-
minados produtos químicos, por exemplo), embalagem, dinâmica de produção, determinação de
lotes, política de distribuição, definição de preços...
Por outro lado, a presença das ações e das decisões que envolvem marketing no dia a dia das
pessoas passa despercebida na grande maioria das vezes. Como observado, a lembrança da presen-
ça de marketing em diversos momentos do cotidiano, é muito mais recorrente quando vem associ-
ada a alguma forma de prejuízo para a sociedade, como é o caso das ações antiéticas da propaganda
ou das ações dos marqueteiros (como vimos no capítulo 2).
Precisamos ordenar os elementos para construir uma forma de visualização desta dimensão
mais ampla de nosso campo, direcionado ao sentido desenvolvido para a disciplina Marketing e
sociedade. Esta visão ampliada da atividade de marketing, que é a dimensão que nossa disciplina se
propõe a usar na construção de seu discurso e suas avaliações, foi primeiramente trazida para o
contexto de marketing por um conjunto de pensadores que cunharam a expressão macromarketing
para dar conta deste tipo de análise.

4.2. A constituição do macromarketing

A difusão do que marketing faz, ou o reconhecimento de que muito do que ocorre na socie-
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dade é determinado ou influenciado por marketing, constitui uma razão para que a sociedade anali-
se, julgue e eventualmente cobre alguma coisa de marketing. Neste item, partimos deste pressupos-
to, e desenvolvemos uma perspectiva evolutiva desta preocupação.
Como informamos nos capítulos anteriores, marketing ganhou uma evidência social maior
(nos Estados Unidos) a partir dos anos de 1950, com sua incorporação pelo campo da administra-
ção, e por sua presença nos organogramas das empresas americanas. O desenvolvimento da área
em torno da administração de marketing faria ver, a partir da estruturação da oferta, dos estudos a
respeito do consumidor, e especialmente da publicidade e da propaganda, que marketing constituía
uma ‘ferramenta’ eficiente para ampliação do benefício para os usuários (especialmente as empre-
sas). Já as conseqüências despropositadas do uso destas ferramentas (como a indução ao consumo
compulsivo, por exemplo) seriam motivo para que a sociedade se preocupasse e cobrasse respon-
sabilidade de marketing.
É como conseqüência de um posicionamento mais ativo da sociedade em relação às práticas
que se desenvolveram, por volta dos anos 1960 e 1970 (ainda nos Estados Unidos), algumas ações
de regulamentação da oferta pelo governo, e a organização dos movimentos de consumidores, no
que se convencionou chamar de escola ativista55.
Esta escola se baseia fundamentalmente nos estudos sobre as iniciativas dos consumidores
de se engajarem em uma cobrança sistemática sobre as empresas e sobre o estado para moderar os
efeitos maléficos das ações das empresas e para providenciar benefícios para a parte (normalmente
mais) fraca do processo de troca, que são normalmente os clientes (este engajamento dos consumi-
dores constitui o chamado movimento consumerista, encabeçado por consumidores ou pelos ór-
gãos de estado). Isto pode ser entendido como a preocupação da sociedade com marketing.
De forma quase paralela, tivemos a reorientação de marketing a partir da redefinição (ex-
pansão) do escopo da disciplina (como descrevemos no capítulo anterior), e o conseqüente desen-
volvimento temático fragmentado. Do processo de fragmentação, as diversas novas disciplinas sur-
gidas foram quase sempre direcionadas a aspectos ou organizações não vinculados a interesses
empresariais (como marketing social e público, por exemplo). Isto pode ser entendido como a re-
presentação da preocupação de marketing com a sociedade em uma perspectiva além dos resulta-
dos sociais das empresas.
Figura 4.1 – Fatores de institucionalização do macromarketing

Interesse da sociedade Interesse de marketing


por marketing pela sociedade

Institucionalização do
macromarketing

Fechamento do escopo Conceito de sistema


de marketing (troca) agregado de marketing

Observe que agora temos a ilustração de uma preocupação de marketing com a sociedade e
uma preocupação da sociedade com marketing (ou assuntos e responsabilidades de marketing).
Agregamos a este interesse mútuo mais dois debates centrais: primeiro, o debate que se desenvol-
veu no mesmo período (anos 1970) em torno do escopo de marketing (a partir da chamada teoria
das trocas sociais; ver capítulo 1), com a confirmação da troca como o elemento de marketing e a
conseqüente percepção da relevância do contexto como parte do processo de troca; segundo, a

55 SHETH, J. D.; GARDNER, D. M.; GARRETT, D.E. Marketing theory: evolution and evaluation. New York: John

Wiley and Sons, 1988.


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discussão sobre o conceito de sistema de marketing, deixada de lado com o debate da corrente ge-
rencial, mas sempre oferecendo um potencial de compreensão de marketing consistente.
Como consequência de tudo isto, foi necessária a institucionalização de um projeto específico
de discussão disciplinar, que o fizesse além da perspectiva gerencial reinante na época. Tal contexto
de discussão ficou denominado por macromarketing, nome que remete, em uma primeira análise, a
uma visão ampliada da atividade de marketing56. Observemos na figura 4.1 uma ilustração destes
movimentos iniciais.

4.2.1. Tentativas de fechamento do escopo

Este processo culminou, no ano de 1976, na realização do primeiro seminário temático, lide-
rado pelo pesquisador americano Charles Slater, com a preocupação preliminar de definir macro-
marketing e fixar um escopo temático preliminar. Primeiramente, a idéia em torno de macromarke-
ting parecia ser relativamente clara: trata-se da análise da atividade agregada, com uma análise em
conjunto dos impactos da sociedade sobre marketing, e dos impactos de marketing sobre a socie-
dade.
Mas, o que se estuda em macromarketing em termos mais objetivos? O que diferencia ma-
cromarketing da perspectiva clássica de marketing? Caberia uma replicação dos princípios conven-
cionais de marketing (ou da administração de marketing) ao nível agregado, como foi o caso das
disciplinas de marketing social e público, por exemplo? Estas e outras questões foram o guia do
debate que se seguiu nos anos seguintes, até a primeira metade da década de 1980.
Em um esforço que ficou entendido como um dos maiores avanços na época, tivemos o artigo
de Shelby Hunt e John Burnett, que procederam a um amplo levantamento da literatura sobre o
assunto até 1982, e desenvolveram (e testaram empiricamente a consistência) nove proposições de
classificação temática, como uma forma de diferenciar a visão de macromarketing das demais vi-
sões de marketing (chamada micromarketing)57. As nove proposições foram reunidas por Stanley
Shapiro, citado acima, de acordo com três critérios centrais: nível de agregação, perspectiva de
análise e conseqüência gerada. O quadro 4.1 mostra as proposições assim organizadas.
Quadro 4.1 – Proposições de Hunt e Burnett
CRITÉRIO 1 – O NÍVEL DE AGREGAÇÃO
1. O estudo do sistema de marketing total de uma sociedade é macro;
2. O estudo do sistema de consumo total de uma sociedade é macro;
3. O estudo dos sistemas de marketing intermediários (incluindo canais, sistemas
varejista e atacadista, e as indústrias) é um misto de macro e micro;
4. O estudo das organizações individuais e consumidores individuais é micro.
CRITÉRIO 2 – A PERSPECTIVA DE ANÁLISE
5. Quando uma unidade de marketing de análise é investigada na perspectiva da
sociedade, a investigação é macro;
6. Sempre que uma questão é examinada na perspectiva da empresa, a investigação
é micro.
CRITÉRIO 3 – A CONSEQUÊNCIA GERADA
7. O estudo das conseqüências do sistema de marketing total na sociedade é macro;
8. O estudo das conseqüências dos sistemas de marketing intermediários sobre o
sistema de marketing total é macro;
9. O estudo das conseqüências de sistemas de marketing de organizações individu-
ais sobre sistemas de marketing intermediários é ao mesmo tempo micro e macro

Embora possa parecer ainda algo incompleto, as proposições de Hunt e Burnett clareiam a

56 Cf. SHAPIRO, S. J. Macromarketing: origins, development, current status and possible future direction. Euro-
pean Business Review, v. 18, n. 4, p. 307-321. 2006.
57 HUNT, S. D.; BURNETT, J. J. The macromarketing/micromarketing dichotomy: a taxonomical model, Journal

of Marketing, v. 46, p. 11-26, sum., 1982.


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compreensão do que seja macromarketing; mas novos desenvolvimentos eram necessários. Uma
proposta complementar foi desenvolvida por George Fisk e Robert Nason58, exposta a seguir:
• Primeiro, os dois autores postularam que qualquer ação de marketing é sempre de natureza
micro, independente do tipo ou do tamanho da organização que a desenvolve. Isto implica dizer
que ações de marketing social, de organizações sem fins lucrativos e de marketing governamen-
tal não são de macromarketing. Vale destacar aqui que estas possibilidades são ações que asso-
ciam marketing à sociedade no sentido de serem não vinculadas a empresas e sim a organiza-
ções de interesse social. Mas de fato, sua ação é restrita ao seu nível de atuação. Para nosso en-
tendimento, são ações que cabem, em boa medida, na disciplina de Marketing e sociedade, mas
não necessariamente macromarketing;
• As externalidades que são geradas pelas ações de micromarketing estão no domínio de macro-
marketing, independentemente do tipo de organização ser empresarial ou não. Veja o destaque
aqui: a ação de marketing não é macromarketing, mas a externalidade gerada pode ser assim
considerada, em razão da relação que guarda com o nível mais geral de observação;
• Com exceção das análises da interação no nível da organização, as interações de marketing no
nível ampliado, e a comparação entre diferentes sistemas, são consideradas macromarketing. O
mesmo pode-se dizer das ações de regulação e de políticas públicas (mas a implementação da
ação de marketing assim definida tem um caráter micro);
• Por outro lado, marketing internacional, a despeito de ter uma abrangência mais ampla (a prio-
ri), é micromarketing, assim como o são os estudos de comportamento do consumidor. É válido
destacar aqui que há estudos de comportamento do consumidor (como comportamento ético)
que se inserem bem em um contexto de Marketing e sociedade, ainda que eventualmente não
seja parte de macromarketing.

Foi ainda nos anos 1980 que se lançaram dois canais fundamentais de difusão do conheci-
mento na área, primeiramente o Journal of Macromarketing em 1981, e o Journal of Public Policy
and Marketing, no ano seguinte. O primeiro era parte de um projeto coletivo para potencializar o
desenvolvimento da área (começando inclusive pela definição de foco, como comentado logo aci-
ma), e o segundo com um foco diretamente associado, mas restrito a temas relacionados a políticas
públicas. No Brasil da época muito pouco se falava ou se pensava sobre o assunto, que veio a ser
pauta de algumas reflexões em nível nacional somente nos anos 2000.

4.2.2. Crítica e fixação

Podemos dizer que as duas perspectivas mostradas são uma boa segurança para uma análise
do que está e do que não está no nível de macromarketing. Seria fácil apontar alguns tópicos que
seriam convencionais de macromarketing, e foi isto que os anos subseqüentes trouxeram. Na re-
trospectiva desenvolvida por Roger Layton e Sanford Grossbart são apontados os diversos temas
que foram sendo analisados sob o guarda-chuva de macromarketing59, com destaque para os se-
guintes: marketing e políticas públicas, regulação de mercado (canais, clientes e ofertantes), justiça
distributiva, impactos ambientais de marketing, consumo responsável, ética de marketing e ética do
cliente, dentre outros.
Não precisamos analisar muito detidamente para visualizar o quanto macromarketing pare-
cia difuso em termos temáticos, a considerar, é bom que se diga, os temas estudados nesta época
(até o final da década de 1980). Este seria um dos motivos das principais críticas tecidas sobre ma-
cromaketing. A disciplina teria falhado, em seus primeiros 10 ou 15 anos de existência, em constitu-
ir um escopo temático centrado, além de se basear em conceitos também igualmente difusos, como

58 FISK, G.; NASON, R. W. Editors’ working definition of macromarketing. Journal of Macromarketing, v. 2, p. 3-

4. 1982.
59 LAYTON, R. A.; GROSSBART, S. Macromarketing: past, present, and possible future. Journal of Macromarket-

ing, v. 26, n; 2, p. 193-213, 2006.


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o conceito de sistema de marketing, algo que é intuitivo, mas que precisaria ser melhor definido
para dar mais consistência à disciplina (desenvolvo este conceito no item 4.2).
Os anos de 1990 seriam para uma consolidação de macromarketing tanto nestes aspectos
quanto no avanço metodológico e de uma justificativa mais consistente de sua existência e de seu
valor para a literatura especializada de marketing, que seguia seu desenvolvimento em outras áreas
sem maiores problemas, com avanços nas áreas de marketing de relacionamento, estratégia, servi-
ços, e, claro, nas técnicas e aplicações de administração de marketing. Mas uma definição e a preci-
são não chegaram como se esperaria (e não chegaram ainda hoje). Até pelo contrário: novos temas
se incorporaram ao guarda-chuva de macromarketing desde então, com destaque para os tópicos
de história de marketing, marketing e qualidade de vida, e os condicionantes macro-ambientais de
marketing (como globalização, desenvolvimento econômico, aspectos culturais, condições econô-
micas globais, por exemplo; no item 4.4 retomamos este debate para a condição mais atual).
Provavelmente, o que tivemos de mais diferenciado em termos de orientação foram os en-
tendimentos de que macromarketing seria uma dimensão, tópico ou disciplina de marketing (para
nós um tópico da disciplina de marketing e sociedade) que analisa a relação e as influências entre
marketing e sociedade em uma perspectiva de compreensão baseada nas ações do sistema de mar-
keting, mas agora com um propósito orientado para a promoção do desenvolvimento societal (veja
bem: societal no sentido de desenvolvimento humano, social e ambiental)60.
Ainda na década de 1990, como forma de ampliar o número de interessados, os pesquisado-
res (sua grande maioria estadunidenses) em macromarketing (e os líderes do próprio Journal of
Macromarketing) partiram para uma nova expansão de escopo, com articulação em torno dos tópi-
cos de qualidade de vida (em uma aproximação com a ISQOLS – The International Society for Qua-
lity-of-Life Studies), de história de marketing (em uma aproximação com a CHARM Association, que
desenvolve a Conference on Historical Analysis & Research in Marketing); e de desenvolvimento (em
uma aproximação com a ISMD – International Society for Marketing and Development).
Uma consequência de tal aproximação foi o espaço que estas instituições ganharam para pu-
blicar seus temas de interesse no Journal of Macromarketing. Desde então, os temas de base destas
entidades passaram a ser também temas de interesse da disciplina de macromarketing. A conse-
qüência mais obvia de tal situação é a continuidade de macromarketing como uma área fragmenta-
da, inconsistente, e de baixo prestígio acadêmico, apesar de termos diversos pesquisadores de peso
na área (de fato, o resultado atual destes mais de 30 anos de construção de macromarketing ainda
não o fez uma disciplina de marketing, especialmente em comparação com outras áreas, como ad-
ministração de marketing, comportamento do consumidor, marketing models, dentre outras).
Como mais um desdobramento, houve um verdadeiro distanciamento de vários potenciais
interessados no tema, e, como consequência, não houve no Brasil o interesse em desenvolver mais
extensivamente uma estrutura para desenvolvimento da área, nem em termos de pesquisa nem em
termos de educação61.
No quadro 4.2 está exposto um resumo do que foi apresentado neste item. Como observado
acima, nosso pressuposto neste texto é que macromarketing é parte da disciplina de Marketing e

60 Cf. PETERSON, M. Focusing the future of macromarketing. Journal of Macromarketing, v. 26, n; 2, p. 245-249,

2006. Peterson deixa bem clara sua proposta, ao defender que um caminho seguro para o desenvolvimento de
macromarketing é se definir como uma área transdisciplinar focada no desenvolvimento societal.
61 Quando revisava estas páginas, no ano de 2014, fiz uma pesquisa no site de busca google acadêmico com a

palavra-chave macromarketing somente com sites em língua portuguesa, e não foi encontrada qualquer refe-
rência de um desenvolvimento temático no país, nem qualquer disciplina voltada especificamente para o tema,
afora o eu se pesquisava e ensinava na Universidade Federal da Paraíba. No entanto, ainda que não seja um dos
caminhos preferenciais de pesquisadores, estudantes e praticantes de marketing, a subdisciplina de macro-
marketing manteve sua atratividade, e as remodelagens necessárias são entendidas como parte dos desafios
evolutivos da área. Acredito que o Brasil pode efetivamente participar deste processo evolutivo, com contri-
buições em termos de pesquisa, ensino e intervenções, com o desdobramento dos esforços que vem sendo
feitos e casos de sucesso, como a linha de pesquisa do Programa de Pós-graduação em Administração da UFPB,
já citado.
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sociedade, e tem seu objetivo de análise e potencial intervenção nos sistemas agregados de marke-
ting (esta perspectiva é a mesma desde a década de 1970, e vem mantendo-se assim, apesar das
idas e vindas).
Quadro 4.2 – Resumo da evolução de macromarketing
Período Aspectos relevantes
• Interesse da sociedade por marketing e de marketing pela sociedade
• Movimento de expansão do escopo de marketing
Anos 1970 • A troca (e o sistema de troca) como objeto de marketing
• Primeiro seminário de macromarketing
• Primeiros esforços de definição
• Debate sobre o conceito e o escopo de macromarketing
• Desenvolvimentos dos primeiros periódicos
Anos 1980
• Fragmentação temática
• Primeiras evidências de dificuldades
• Sistematização das críticas à área
Anos 1990 • Tentativas de fixação temática
• Aproximação com entidades de interesse temático
• Fechamento do conceito de sistema de marketing em torno da idéia
de promoção de desenvolvimento societal
Anos 2000
• Aprofundamento do conceito de sistema integrado de marketing
• Integração ao contexto da disciplina de Marketing e sociedade
Anos 2010 • Consolidação da subdisciplina
(em anda- • Consolidação de grupos de pesquisadores e de mestres e doutores na
mento) área, inclusive no Brasil

O problema que se coloca, também como dito acima, é saber o que é um sistema agregado de
marketing. No item seguinte apresento uma discussão sobre este conceito central não apenas para
macromarketing, mas para a própria disciplina de Marketing e sociedade.

4.3. Conceito central: sistema agregado de marketing

A demanda de uma modelo geral para análise de macromarketing somente encontra uma ba-
se segura no conceito de sistema, que representa uma idéia associada, entre outras possibilidades
conceituais, a um conjunto integrado e interdependente de partes que, quando em ação, interagem
entre si no processamento de entradas as mais diversas, com a finalidade gerar um ou mais resul-
tados como saídas do sistema62.
É fácil perceber que a visualização das atividades de marketing em uma perspectiva sistêmi-
ca tem um potencial muito grande de facilitar sua compreensão, e é possível perceber aplicações
desta perspectiva em diversas atividades de marketing, como, por exemplo, em uma delimitação
das atividades de comunicação ou de pesquisa de marketing como sistemas. Para uma perspectiva
de interação com a sociedade como um todo, a visão sistêmica se transforma em um framework que
contribui para uma percepção mais objetiva do objeto e do escopo de disciplina marketing e de
macromarketing.
Faremos então um esforço de compreensão e conceituação do chamado ‘sistema agregado de
marketing’ (ou simplesmente sistema de marketing), e nos basearemos especialmente nos estudos

62 Não é nosso propósito estender a discussão sobre os elementos da chamada teoria geral dos sistemas, um

assunto que é bastante estudado em diversas disciplinas acadêmicas, como administração, computação, biolo-
gia, ecologia, geografia, dentre outras. Para quem quiser ter uma visão preliminar do assunto, recomendo a
seguinte referência: MOTTA, F. C. P.; VASCONCELOS, I. F. G. Teoria geral da administração. São Paulo: Thomson,
2002. Para quem quiser uma visão mais profunda, recomendo o livro de Ludwig Von Bertalanffy, o criador da
teoria geral dos sistemas A referencia é: BERTALANFFY, L. V. Teoria Geral dos Sistemas. Rio de Janeiro: Vozes,
1975.
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de William Wilkie e Elizabeth Moore63, e de Roger Layton64, que são trabalhos já publicados, e que
considero os mais completos em termos de informação e estruturação. Nos dois trabalhos, os auto-
res partem de algumas evidências da realidade empírica para construir um conceito parcial, mas
suficiente para uma compreensão global da atividade de marketing.

4.3.1 Definição e elementos

É de Roger Layton que vem uma definição mais adequada para sistema de marketing. Segun-
do este pensador, “um sistema de marketing é uma rede de indivíduos, grupos e/ou entidades liga-
das direta ou indiretamente, através da participação sequencial ou compartilhada em trocas eco-
nômicas que criam, ordenam, transformam, e disponibilizam sortimentos de produtos, sejam tangí-
veis ou intangíveis, como uma resposta à procura dos clientes”65.
Figura 4.2 – Visão geral do sistema de marketing

Entradas do sistema de marketing


• Agentes ofertantes e demandantes
• Desejo de benefícios
• Suposições de interesse
• Instituições de mediação
• Condicionamentos sociais diversos
• Informações e regras diversas...

Funcionamento do sistema

Ações Fluxos diversos


• Compra • Produtos
• Venda • Informações
• Negociações • Dinheiro e direitos
• Acordos diversos • Influência
• Fiscalização • Posse e propriedade
• Campanhas diversas... • Compromissos...

Saídas do sistema de marketing


• Ações e fluxos
• Valor gerado para os agentes e a sociedade
• Satisfação dos envolvidos
• Externalidades positivas e negativas
o Desenvolvimento econômico e social
o Qualidade de vida
o Externalidade negativas...

Condicionamentos externos Outros sistemas

63 WILKIE, W. L.; MOORE, E. S. Marketing’s contribution to society. Journal of Marketing, v. 63 (special issue), p.
198-218, 1999.
64 LAYTON, R. A. Marketing Systems: a core macromarketing concept. Journal of Macromarketing, v. 27, n. 3, p.

227-242, 2007.
65 Tradução de: “A marketing system is a network of individuals, groups, and/or entities linked directly or indi-

rectly through sequential or shared participation in economic exchange that creates, assembles, transforms, and
makes available assortments of products, both tangible and intangible, provided in response to customer de-
mand”.
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Nesta definição está explícito o pressuposto de que o sistema de marketing trata de aspectos
relacionados à troca. Assim, quando levamos em conta todo o conjunto de ações de troca, juntamen-
te com todo o conjunto de demandantes, ofertantes, produtos, e de todo o contexto institucional de
ocorrência, teremos uma visão do sistema geral de marketing. Neste, ocorrem as ações diversas
(compra, venda, negociação...), e os fluxos de bens, informações, dinheiro e influência, que ocorrem
por meio da interação dos agentes (interações moderadas pelas regras formais e informais, legais
ou ético/morais, que se aplicam a cada situação), que geram ao final os resultados totais da oferta e
da demanda, incluindo as posses e propriedades transferidas, os lucros auferidos, as satisfações e
desejos realizados, e a manutenção da estabilidade do sistema geral para realização de novos ciclos
e para sua expansão e aprimoramento. A figura 4.2 ilustra a visão estrutural do sistema de marke-
ting.
Esta visão geral pode ser especificada para atender a interesses de análise, estudo e inter-
venção mais focados. Assim, podemos manter foco no sistema geral de troca dos países, e depois
nos sistemas gerais de troca dos estados dentro dos países, e em seguida nos sistemas gerais de
municípios, bairros, ruas... As perspectivas de análise são, portanto, tão variadas quantos são os
recortes que o sistema recebe. Nestes termos, é possível desenvolver um foco na dimensão da es-
trutura do sistema, com o mapeamento de seus componentes e suas relações centrais; é também
possível desenvolver um foco nas forças intervenientes do sistema, em especial no ambiente exter-
no ao mesmo (como os fatores macroeconômicos e macro políticos), juntamente com as externali-
dades geradas pelo funcionamento do sistema; é viável analisar no sistema de marketing aspectos
de falhas ou gaps entre finalidade e resultado, com análises e proposições de aprimoramentos66.
Em geral, os diversos sistemas são definíveis a partir de um conjunto de elementos e dos re-
lacionamentos externos que desenvolvem. Na configuração de um sistema é necessária a conside-
ração de cinco aspectos centrais (quatro primeiros são apontados no estudo de Layton, e acrescen-
to mais o quinto). Os aspectos são os seguintes:
• Primeiro, os sistemas de marketing são estruturas de troca econômica e social, ou seja, normal-
mente, os sistemas agregados trazem aspectos além da mera troca econômica;
• Segundo, os sistemas de marketing delimitados têm relação direta com outros sistemas, não
sendo normalmente autossuficientes em termos de suprimentos, nem tendo toda sua produção
final mantida dentro do próprio sistema;
• Terceiro, os sistemas de marketing possuem subsistemas também estruturados, potencialmente
com os mesmos elementos do sistema agregado, porém em escala menor;
• Quarto, todo sistema possui especificidades de funcionamento, de estrutura e de resultados, que
os tornam, em boa medida, únicos, em comparação com outros sistemas;
• Por fim, todo sistema tem um nível de eficiência de suas atividades, que concerne principalmen-
te à relação entre os resultados efetivamente gerados e os recursos utilizados (está pressuposto
que as finalidades sejam alcançadas, ou seja, que haja eficácia no sistema). Obviamente, a efici-
ência do sistema relacionada tanto com sua dimensão interna quanto com sua dimensão exter-
na.

Sobre este último aspecto, é fácil conceituar (embora não seja fácil mensurar) qual o nível de
eficiência de um sistema de marketing, bastando considerar o alcance de suas finalidades propostas
(por exemplo, fornecer produtos e serviços financeiros, desenvolver atividades de varejo, ou reali-
zar as atividades de distribuição) e o quanto isto custou em termos de recursos.
Na prática, é comum haver ineficiências em sistemas de marketing, nos dois vetores de ca-
racterização adotados. De fato, costumam ocorrer diferenças entre os resultados esperados ou de-
sejados e os resultados reais alcançados, o que pode ocorrer tanto em nível de resultado imediato

66 Muitas das possibilidades para abordagem e análise de um sistema de marketing podem ser observadas na

seguinte referência: LAYTON, R. A.; GROSSBART, S. Macromarketing: past, present, and possible future. Journal
of Macromarketing, v. 26, n. 2, p. 193-213, dec., 2006.
54

do sistema (como problemas na alocação de bens, falhas de serviços, problemas com a distribuição
etc.) quanto no nível agregado do macro sistema (como é caso das externalidades negativas geradas
pela ação do sistema, como a depredação do meio ambiente, e os problemas de poluição visual ou
sonora, e mesmo problemas de agressão a minorias ou a princípios sociais específicos, algo que é
muito comum em publicidade e propaganda). Também é comum que o sistema alcance seus resul-
tado gerando um custo muito elevado em termos de uso de recursos (por exemplo, explorando em
excesso os recursos naturais). Nos exemplos a seguir ilustro estas situações, e no capítulo 7 retomo
este debate.

4.3.2. Dois exemplos de sistemas de marketing

Para ilustrar um sistema de marketing, tomemos inicialmente o caso dos centros das grandes
cidades (mantemos foco nas cidades brasileiras, mas há sinalizações de que internacionalmente
ocorre o mesmo), e vamos proceder à descrição geral do que ocorre no dia a dia destes espaços
urbanos, pelo modelo geral do sistema de marketing descrito acima.

Os centros das cidades como sistemas de marketing


Os centros estão normalmente entre os bairros mais antigos das grandes capitais brasileiras,
e foram as sedes do poder público em épocas passadas, quando as cidades ainda eram pequenas.
Como foi comum na maioria dos grandes municípios brasileiros, as sedes atraíram a moradia de
grande parte da população da cidade, e agregaram alguns dos principais órgãos da administração
pública (a descrição que faço não alcança certamente todas as grandes cidades, mas ocorreu em
cidades como Fortaleza, João Pessoa, São Paulo, dentre outras).
Por esta razão, os centros desenvolveram, ao longo dos anos, uma infraestrutura de serviços
(escolas, serviços bancários, serviços de saúde, serviços religiosos, comércio, feiras, espaços de
lazer...) para viabilizar seu funcionamento pleno. Naturalmente, as regiões centrais atraíram uma
quantidade significativamente grande de pessoas para o desenvolvimento destas atividades, e, ao
longo dos anos, estes foram expandindo suas fronteiras e se tornando maiores, e mais movimenta-
dos.
Como consequência, uma parte dos moradores teve a tendência de mudar para regiões mais
distantes, em busca de maior segurança e mais tranquilidade, mas mantendo nos centros a referên-
cia de consumo e de trabalho. Estes novos locais tendem, assim como ocorreu com os centros, a
atrair também uma infraestrutura de serviços que faz com que, ao longo dos anos, estes novos es-
paços se tornassem independentes, dispensando os moradores da necessidade de se dirigirem para
os centros para a realização compras ou para seus trabalhos.
Os espaços deixados pelos residentes são normalmente ocupados por atividades comerciais
ou de serviços (lojas, bancos, estacionamentos, restaurantes...), e, depois de alguns anos, os centros
tornaram-se espaços comerciais, com um número reduzido de residentes, mas com uma enorme
pujança econômica. Mesmo com o desenvolvimentos dos corredores comerciais nos outros bairros,
e dos shopping centers, os centros continuaram sendo espaços de especialidade preferenciais (como
é o caso dos produtos eletrônicos da rua Santa Ifigênia, no Centro de São Paulo).
De forma quase natural, o que antes eram bairros residenciais foram reconfigurados para
servirem principalmente à atividade comercial. Diariamente, milhares de pessoas movimentam-se
de seus bairros para trabalhar ou para realizar compras ou receber serviços específicos nos cen-
tros. Em contrapartida, diariamente tem-se uma estrutura de oferta enorme, disponibilizando os
mais diversos produtos e serviços.
Em paralelo às atividades de oferta e de demanda, estão presentes nos centros os elementos
de ordenamento de sua estrutura geral, como a fiscalização do poder público para coibir abusos (de
demandantes e ofertantes), havendo ainda a estrutura de fisco para acompanhamento de transa-
ções e coleta de tributos, a presença dos órgãos de ordenamento social (polícia, agentes de trânsi-
to...), e a presença do poder público municipal para manutenção do espaço (tapar buracos, limpeza
urbana...), tudo isto com a finalidade de manter a estabilidade agregada do sistema.
55

Também diariamente são dirigidos aos centros os suprimentos de mercadorias (normalmen-


te no horário noturno), que são produzidas em vários lugares, algumas provenientes de outros
bairros da cidade, outras provenientes de outros municípios, outros estados ou até de outros paí-
ses. A estrutura geral de suprimentos é condicionada pela estrutura do sistema (por exemplo, são
quase sempre fornecidos produtos acabados, pois são dirigidos aos clientes finais), e sempre em
consonância com a suposição (ou o conhecimento) da demanda atual. Assim, tem-se a determina-
ção do sistema e seus agentes sobre o que é fornecido de fora, mas há também a determinação do
que é fornecido (proveniente de outros sistemas) sobre o que é comercializado nos centros.
O amadurecimento e a evolução natural, ou induzida, do sistema criam especialidades locais,
com a consolidação dos corredores comerciais, que repetem as características do sistema global,
mas com foco na especialidade (por exemplo, há corredores focados em produtos de informática, e
outros especializados em produtos eletro-eletrônicos). Temos, então, a estruturação de sistemas de
marketing dentro de sistemas maiores de marketing, configurando assim os subsistemas.
Em paralelo à superestrutura varejista, temos a estrutura de apoio, com a presença de res-
taurantes e lanchonetes, serviços de transporte público, serviços financeiros diversos, e temos tam-
bém a inserção de atividades paralelas que aproveitam o fluxo de pessoas que fluem para o varejo e
da estrutura de acesso montada, como é o caso de igrejas, salões de cabeleireiro, escolas, clínicas
médicas, sindicatos...
A expectativa final de um centro como um sistema de marketing é que todos os envolvidos
encontrem a plena satisfação de seus interesses, desde os clientes, passando pelos ofertantes e seus
fornecedores, até aos órgãos de estado (que em boa medida representam o interesse social coletivo
neste sistema). A manutenção da existência destes espaços assim por décadas sugere que estes
resultados tem sido alcançados.
De seu funcionamento agregado, os centros geram benefícios os mais diversos, como por
exemplo: disponibilidade de uma ampla gama de oferta concentrada em termos geográficos; com-
petição em termos de especialidades (especialmente nos corredores); geração de emprego, renda, e
receita para as fazendas públicas, seja de natureza municipal e estadual; dinamização da atividade
produtiva, inclusive fora do sistema, dentre outras.
No entanto, também existem as externalidades negativas, destacando-se as seguintes: viabi-
lização do mercado irregular (como mercado de produtos pirateados e de ambulantes sem autori-
zação, que se dirigem aos centros para aproveitar a movimentação existente), depredação do pa-
trimônio histórico e arquitetônico das cidades (casas antigas transformam-se em lojas ou estacio-
namentos, praças tornam-se espaços de comercialização irregular e/ou prostituição...); atração de
delinquência e corrupção; enfraquecimento dos laços sociais (especialmente durante as noites,
quando praticamente os centros param); poluição visual, sonora e ambiental...
Pela própria evolução de negócios e pelas externalidades negativas citadas, os centros trans-
formaram-se, ao longo dos anos, em espaços de grande dinamismo econômico (os centros estão
sempre entre os espaços que mais geram tributos aos estados e municípios), mas com uma baixa
vitalidade social e cultural, embora mantendo ainda muitas atividades deste gênero67. Não sem
razão, os governos das cidades tendem a desenvolver ações especificas para as áreas centrais, como
é o caso, por exemplo, das cidades de Fortaleza e São Paulo, por exemplo, que criaram subprefeitu-
ras para revitalizar seus centros e moderar os efeitos da atividade do sistema agregado de marke-
ting. Isto exemplifica a iniciativa de estado para moderar a externalidade negativa da atividade de
marketing68.

67 Um interessante trabalho analisando este aspecto foi desenvolvido por Susie Pryor e Sanford Grossbart, que

analisaram o centro de uma cidade americana e verificaram que diversos eventos e atividades sociais e cultu-
rais são parte do dinamismo destes espaços. A referência é: PRYOR, S.; GROSSBART, S. Ethnography of an
American Main Street. International Journal of Retail & Distribution Management, v. 33, n. 11, p. 806-823, 2005.
68 Há relatos de iniciativas como estas também em outros países, como descrito na seguinte referência sobre o

Canadá: HERNANDEZ, T.; JONES, K. Downtowns in transition: emerging business improvement area strategies.
International Journal of Retail & Distribution Management, v. 33, n. 11, p. 789-805, 2005.
56

Outro sistema que chama a atenção nas cidades litorâneas brasileiras caracterizadas como
turísticas são os corredores de beira-mar. Descrevo a seguir uma visão geral destes corredores
como sistemas de marketing, seguindo a mesma orientação da primeira descrição (embora a expo-
sição não seja vinculada, as idéias baseiam-se especialmente na realidade de cidades nordestinas).

Corredores de beira-mar de cidades turísticas


Algumas cidades brasileiras de zona de praia, especialmente as capitais, há décadas transfor-
maram-se em ambientes de atração de turistas, dentre outras coisas, pelo acesso ao mar e pela
infraestrutura montada para um aproveitamento pleno do benefício deste acesso.
Historicamente, a zona de praia das maiores cidades foi durante muitos dos anos um ambiente
de trabalho dos pescadores e de casas para temporadas das classes economicamente mais abasta-
das, cujas famílias moravam normalmente nas zonas centrais, como apontado acima. No entanto, ao
longo das décadas do século XX, o movimento que fez com que as famílias saíssem das zonas cen-
trais acabou conduzindo-as para manter residência fixa nas zonas de praia, provocando ao longo
dos anos uma grande valorização imobiliária69.
Este movimento, ao mesmo tempo em que ‘expulsava’ os primeiros moradores (pescadores)
das proximidades para as zonas mais periféricas ou os segregava em espaços pontuais70, também
atraía empreendedores interessados na estruturação de meios de oferta para as novas comunida-
des agora residentes. Os bairros que se desenvolveram nestas áreas tornaram-se aos poucos espa-
ços privilegiados, constituindo normalmente os ditos ‘bairros nobres’ das cidades.
A construção e a consolidação de uma infraestrutura mais completa fariam com que estes
mesmos espaços se tornassem os lugares prediletos para os visitantes destas cidades. O crescente
movimento destes mesmos visitantes, inclusive atraídos pela beleza natural das praias e pelas con-
dições privilegiadas de segurança e acesso ao consumo, conduziu com o tempo a uma nova remode-
lagem do espaço. De fato, as áreas residenciais e os pequenos prédios foram aos poucos sendo subs-
tituídos por grandes edifícios erguidos para os serviços de hotelaria; algumas áreas cederam lugar a
restaurantes que, embora atendam a clientes da cidade, são mais direcionados aos turistas.
Os moradores que ficaram tiveram que ver os corredores de tráfego mais próximos da praia
(as ruas ou avenidas de beira-mar) sendo ocupados por uma estrutura de oferta direcionada ao
lazer e ao turismo. Em complementos, os espaços foram sendo ocupados por serviços complemen-
tares, como os taxistas, os quiosques de vendas de lanches e bebidas, as feirinhas com produtos da
tradição local (especialmente para turistas), os clube e boates noturnos, além de bancos, serviços de
câmbio, bancas de revistas, e inclusive vendedores ambulantes, feirantes itinerantes, dentre outros.
Estes locais passaram a constituir o que chamamos de corredor de beira-mar.
Observe que temos neste espaço a constituição de um verdadeiro sistema de marketing, base-
ado na oferta de organizações acima citadas e na demanda provenientes especialmente de turistas,
mas também de moradores locais e maior poder aquisitivo. Esta condição, mais a intenção de go-
vernos estaduais e municipais de dar ao turismo um status de atividade econômica estratégica,
promoveram uma série de intervenções de melhoria e ordenamento destes corredores, como, por
exemplo, um policiamento ostensivo e especializado (inclusive com delegacias especializadas de
atendimento ao turista), fornecimento de serviços de informação, acompanhamento do ordena-
mento de trânsito adaptado (nestes espaços, normalmente a velocidade é mais controlada e as fai-
xas são melhor cuidadas e fiscalizadas), e manutenção intensiva da estrutura, na maioria das vezes
com a disponibilização dos ditos calçadões para praticantes de esportes.
A dinâmica de funcionamento destes corredores é típica e possui diferenciações de acordo

69 Para o caso específico da zona de praia da cidade de Fortaleza, é interessante a descrição do geógrafo e pes-

quisador Eustógio Dantas, na seguinte referência: DANTAS, E. W. C. Mar à vista: estudo da maritimidade em
Fortaleza. Fortaleza: Museu do Ceará/Secult, 2002 (Coleção Outras Histórias – 12).
70 Na cidade de Fortaleza é conhecida a Favela do Poço da Draga, imersa em uma área nobre do bairro litorâ-

neo Praia de Iracema, reconhecido por ser um dos principais pontos turísticos desta cidade.
57

com a sazonalidade da atividade turística, o que faz destes sistemas de marketing distintos em rela-
ção a outros sistemas de mesma natureza (como os corredores comerciais especializados por pro-
duto, como é comum nos centros comerciais). Ainda que exista aqui um conjunto de características
comuns com outros sistemas, como são os fornecedores de produtos para os restaurantes e os fun-
cionários destes mesmos estabelecimentos, é fácil visualizar que a especialização da oferta para a
atividade turística condiciona a visualização de um tipo especial de sistema.
Observemos que, de modo agregado, a especialização traz um conjunto de benefícios para os
agentes envolvidos e para o espaço. De fato, para o turista há o benefício de encontrar uma oferta
agregada especializada e direcionada a atender a suas demandas; para os ofertantes, há a vantagem
de estar no local para onde vão os seus principais clientes além de estarem em cadeia com os ofer-
tantes de produtos e serviços complementares aos seus; para os governos, há a vantagem inicial da
boa imagem que a cidade deixa nos visitantes, além, e principalmente, os resultados positivos em
termos de geração de impostos e promoção de emprego, renda, e o conseqüente dinamismo eco-
nômico. Em uma perspectiva mais global, a delimitação do espaço é vantajosa para a sociedade e
geral, que se especializa e mantém um alto nível de satisfação agregada, inclusive para quem não
reside ou não costuma freqüentar estes corredores.
Por outro lado, temos também alguns problemas criados, a começar pelos problemas já clássi-
cos no Brasil de prostituição, que se aproxima destes espaços pela circulação de dinheiro que se
cria pela dinâmica do setor (o problema se torna maior intenso quando há esquemas de prostitui-
ção envolvendo menores de idade, algo comum especialmente em capitais do Nordeste brasileiro)
Também é comum estas áreas transformarem-se em lugares apropriados para a ação de delinqüen-
tes, que ameaçam especialmente a mulheres, idosos e crianças.
Ainda assim, e apesar de operarem com preços mais elevados que nos demais locais (o que di-
ferencia seu público, e em boa medida limita o acesso de grande parte da população), os corredores
de beira-mar vêm mantendo uma dinâmica de diferenciação e valorização, em um saldo bastante
positivo em termos de geração de valor, e espaços de diferenciação e bom gosto para habitantes e
visitantes das cidades.

4.3.3. Características do sistema de marketing

É relevante ressaltar que, para a perspectiva de marketing, a abordagem destes sistemas se


diferencia de outras perspectivas que podem ser aplicadas a este mesmo sistema (como uma pers-
pectiva econômica ou sociológica, por exemplo) por manter foco na atividade de troca. Seria ainda
possível analisar nestes sistemas os elementos convencionais da análise mercadológica, como o
ordenamento do composto de marketing, as iniciativas estratégicas convencionais dos agentes
ofertantes, as especificidades associadas ao consumidor, o condicionamento imposto pelo sistema
regulador estatal e social, a natureza e especificidades dos produtos e serviços envolvidos, e, natu-
ralmente, das interações entre estes agentes.
Em cada sistema teremos sempre seus constituintes particulares, seus fluxos específicos, su-
as regras próprias de funcionamento, suas variações, enfim, temos uma dinâmica específica que
envolve trocas econômicas, sociais, culturais e relacionais. Em um esforço de esclarecer alguns as-
pectos-chaves que caracterizam um sistema de marketing, Wilkie e Moore observaram um conjunto
de características centrais, dos quais destacamos as seguintes: a grande quantidade de entradas, a
responsabilidade limitada da função de marketing no sistema, a presença de agentes com ativida-
des fora do interesse de troca (econômica), e a existência de subdivisões especializadas.
Sobre o primeiro aspecto, observamos facilmente que qualquer sistema de marketing menos
trivial terá sempre um conjunto razoavelmente grande de entradas (veja o caso dos centros comer-
ciais, com seus múltiplos fornecedores, produtores, empresas de transporte...). Estas entradas têm o
potencial de condicionar a natureza do sistema, de modo a constituir diferenças e nuances (por esta
razão, os centros das cidades são diferentes entre si, embora possuam características próximas,
como narrado acima).
Também observamos que, no sistema agregado, marketing tem responsabilidade total por
58

algumas atividades específicas (como gerenciar as atividades de atendimento e pesquisa de marke-


ting em um sistema de varejo), tem responsabilidade parcial sobre outras (como dar suporte de
informação aos departamentos de produção de empresas envolvidas com atividades industriais que
são fornecedores do sistema), e responsabilidade limitada ou nula sobre outros aspectos (como
gerenciamento de recursos humanos de empresas, ou de gerenciamento de atividades contábeis e
de controle, ou ainda no serviço de segurança geral do sistema). Esta característica é um primeiro
reconhecimento de que marketing tem uma função limitada no gerenciamento do sistema (por
exemplo, em um sistema na forma de corredor comercial, marketing não é responsável pela segu-
rança física das pessoas; esta responsabilidade é dos órgãos de polícia, ainda que as instituições
ofertantes eventualmente influenciem na formação da cobertura policial ou que contratem segu-
rança privada).
Quadro 3.3 – Características gerais de um sistema
O sistema agregado de marketing
1. Incorpora diversas atividades, incluindo as funções clássicas de distribuição, planos e
programas de marketing, além das ações de consumidores e dos governos;
2. É composto por fluxos planejados e contínuos entre os participantes, incluindo fluxos
de produtos e materiais, entrega de serviços, dinheiro, e ainda os fluxos de informação e
influência;
3. É extensivo em diversos aspectos,
a) Na extensão de todo o caminho desde a produção de materiais, passando por múlti-
plos processos intermediários de uso, até chegar nas residências individuais;
b) Na combinação de materiais/produtos de diversas partes do mundo na constituição
de uma oferta de mercado;
c) Com múltiplos conjuntos de profissionais de marketing, que competem e desenvol-
vem diversas ações em paralelo;
d) Na arquitetura da atividade de troca, com diversos produtores vendendo para diver-
sos compradores, e diversos compradores comprando de diversos produtores;
4. É estruturalmente sofisticado, e está baseado em uma estrutura física e de comunica-
ções massivas, que de forma regular e rotineira cria e entrega bens e serviços por toda a
sociedade;
5. É uma base de alocação de recursos em uma economia de mercado, porque a res-
posta que os consumidores dão para as ofertas de mercado determina quais bens e ser-
viços serão criados no futuro;
6. É governado por forças de eficiência, especialmente as forças de interesse pessoal,
competição, e características das demandas de mercado;
7. É condicionado por forças sociais, incluindo leis, regulamentações governamentais,
normas culturais, e códigos de ética de negócios e de conduta de clientes;
8. Está baseado em processos coordenados, com produtores e revendedores buscando
compras interdependentes para um ajustamento de padrões pré-especificados com as
expectativas de demandas pelos consumidores;
9. Opera através de interações humanas, experiência e confiança na medida em que os
participantes desenvolvem e mantêm relacionamentos de mercado com a base para
condução de seus sistemas de atividades;
10. É um sistema aberto, dirigido ao crescimento e à inovação, na medida em que os
participantes buscam solucionar seus problemas e perseguir oportunidades, investindo
com esperança e fé nas operações futuras do mercado.

Outra característica é que os agentes presentes dentro das fronteiras do sistema não se en-
volvem unicamente com atividades de troca. Assim, os demandantes não estão sempre envolvidos
com as atividades de demanda, assim como os agentes de fiscalização e defesa do consumidor não
estão sempre desenvolvendo ações de fiscalização. Por exemplo, eventualmente, os consumidores
estão no sistema por razões distintas, como é o caso dos frequentadores dos centros comerciais
com a finalidade de congregação social; há ainda os turistas que são praticantes de esporte e que
aproveitam para correr nos corredores de beira-mar de cidades turísticas. Esta característica refor-
ça o que dissemos acima sobre a limitação de marketing, e alerta para o fato de que o sistema é de
59

marketing, mas nem tudo no sistema é estritamente marketing.


Observamos ainda que cada atividade de marketing do sistema pode possuir um desdobra-
mento de tarefas que os fazem, eventualmente especializados e mais independentes (mas não fora
do sistema) em termos de execução (por exemplo, as atividades de comunicação de marketing cos-
tumam ser independentes em termos de, por exemplo, atividades de distribuição).
Wilkie e Moore propõem ainda os elementos de uma caracterização universal dos sistemas
de marketing, apontando dez características. No quadro 3.3 apresento a caracterização destes dois
autores (extraído diretamente do texto e traduzido).

4.4. Considerações e encaminhamentos

Como vimos, a grande maioria dos temas apresentados no capítulo anterior como parte da
disciplina de Marketing e sociedade estão associados a macromarketing (no extremo, é possível
visualizar marketing social como uma intervenção na perspectiva de macromarketing, porém, por
conveniência dos pensadores e interessados, os tópicos de marketing social acabaram saindo do
escopo desta disciplina). Por esta razão, entendemos que o desenvolvimento de uma abordagem de
Marketing e sociedade seguindo o fio condutor do conceito e da estrutura disciplinar de macromar-
keting pode oferecer uma compreensão mais consistente para o desenvolvimento da disciplina. Nos
capítulos seguintes desenvolvo tópicos de nossa disciplina, mas que são convencionalmente temas
de macromarketing e estão alinhados como o que se publica nos periódicos desta área.
Para estes capítulos, busquei selecionar os tópicos que já possuem uma quantidade significa-
tiva de estudos e interessados. Dentre as inúmeras possibilidades, selecionei os seguintes:
• Marketing e justiça social: analisa a promoção de justiça social (especialmente justiça distributi-
va) a partir dos princípios e da prática de marketing. Inclui-se aqui a análise da atividade de
marketing voltada para públicos em desvantagem (idosos, deficientes...), em especial os clientes
de baixa renda;
• Marketing, políticas públicas e regulação de mercado: trata dos temas relacionados à ação de
políticas públicas sobre marketing e de o quanto marketing contribui, ou pode contribuir, para o
desenvolvimento de políticas públicas de desenvolvimento social ou de moderação da ação dos
agentes de marketing. Inclui-se aqui a análise da regulação de estado sobre as ações e institui-
ções de marketing;
• Marketing e desenvolvimento: trata da análise da ação de marketing como promotora do desen-
volvimento econômico, social e cultural dos sistemas de marketing e do entorno próximo. Inclu-
em-se aqui a análise das externalidades geradas pela prática de marketing e tópicos sobre globa-
lização de mercado;
• Marketing e qualidade de vida: trata da análise da qualidade de vida como algo que pode ser
promovido a partir da atividade dos sistemas de marketing, ou seja, analisa-se marketing como
um meio de geração e manutenção de qualidade de vida dos envolvidos no sistema;
• Consumo responsável e sustentável: trata dos aspectos relacionados ao consumo, em uma pers-
pectiva multidisciplinar, e os aspectos de responsabilidade e sustentabilidade relacionados à
ação de consumo. Inclui-se aqui a análise do consumo saudável e livre de problemas tanto para a
sociedade quanto para o próprio consumidor.

Faço um comentário final, antes de seguir para a exposição do conteúdo apontado. Pelo que
dissemos nestes primeiros quatro capítulos é fácil perceber, antes de qualquer desenvolvimento
específico, o quanto uma visão do nível proposto pela nossa disciplina de Marketing e sociedade (e
de macromarketing, em particular) é algo necessário para marketing. Creio que já podemos dizer
que qualquer sujeito que se queira anunciar como especialista ou praticante avançado de marke-
ting precisa desta visão ampliada.
Em outras palavras, não há como avançarmos para um nível mais desenvolvido de conheci-
mento e prática de marketing sem considerar a perspectiva do sistema agregado de marketing,
60

inclusive para compreender que as ações de marketing de qualquer organização individual, empre-
sa ou não, terá sua realização no contexto de um sistema de marketing que receberá sua influência,
e que também condicionará as ações desta organização. Podemos então compreender que discus-
são de marketing (ou de Administração de marketing) precisa da perspectiva de macromarketing
para seu aprimoramento e para sua eficiência.
Além disto, creio que já temos uma indicação, agora mais consolidada, do que marketing po-
de fazer, e em boa medida já faz, para se reposicionar e poder atingir o desafio descrito no capítulo
2 de ser uma função socialmente reconhecida. Veja que, naquele capítulo, enfatizei que os caminhos
para que marketing superasse a visão socialmente depreciada que possui seria caminhar no sentido
de incorporar o conceito atual da American Marketing Association, e se voltar para a geração de
valor e para o desenvolvimento da sociedade como sua meta fundamental. Pelo que expusemos,
uma das preocupações de macromarketing tem sido justamente esta, o que fica visível nos temas
definidos (como qualidade de vida, desenvolvimento, consumo responsável e sustentável...). Nos
próximos capítulos avançamos no sentido de mostrar e discutir o que já temos de conhecimento
consolidado neste sentido e dar as indicações de o quanto já avançamos, indicando ainda o quanto
temos que avançar.

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